A FIGURA DO “AMICUS CURIAE” COMO UM INSTRUMENTO DE PARTICIPAÇÃO DE MINORIAS NA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL BRASILEIRA

May 26, 2017 | Autor: A. Melo Franco de... | Categoria: Amicus Curiae, Controle De Constitucionalidade
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Thomas Bustamante, José Adércio Leite Sampaio Adriana Campos Silva & Ana Luísa Navarro Moreira Organização

SEPARAÇÃO DOS PODERES, DEMOCRACIA E CONSTITUCIONALISMO

Anais do II Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política Volume 1

Belo Horizonte 2016

SEPARAÇÃO DE PODERES, DEMOCRACIA E CONSTITUCIONALISMO Thomas Bustamante, José Adércio Leite Sampaio, Adriana Campos Silva, Ana Luísa Navarro Moreira (Orgs.) Copyright © desta edição [2016] Initia Via Editora Ltda. Rua dos Timbiras, nº 2250 – sl. 103-104, Lourdes Belo Horizonte, MG - CEP 30140-061 www.initiavia.com Editora-Chefe: Isolda Lins Ribeiro Revisão: autores Diagramação e capa: Brenda Batista Imagem da Capa: Colunas do STF e escultura “A Justiça”, de Alfredo Ceschiatti, por Evaristo Sá/AFP (11. fev. 2007) TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial deste livro ou de quaisquer umas de suas partes, por qualquer meio ou processo, sem a prévia autorização do Editor. A violação dos direitos autorais é punível como crime e passível de indenizações diversas. ______________________________________________________

C749

Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política (2. : 2015 : Belo Horizonte, MG) Separação de poderes, democracia e constitucionalismo / organizadores: Thomas Bustamante, José Adércio Leite Sampaio, Adriana Campos Silva, Ana Luísa Navarro Moreira - Belo Horizonte : Initia Via, 2016. 295 p. – (Anais do II Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política, v. 1) ISBN 978-85-64912-88-5 (Volume 1) ISBN 978-85-64912-87-8 (Coleção) 1. Direito constitucional - Congressos . 2. Filosofia do direito – Congressos. I. Bustamante, Thomas. II. Sampaio, José Adércio Leite Sampaio. III. Silva, Adriana Campos. IV. Moreira, Ana Luísa Navarro. V. Título. CDU: 340(061.3)

Programas de Pós-Graduação Stricto Senso da Universidade Federal de Minas Gerais e da Escola Superior Dom Helder Câmara Apoios institucionais: Capes e Fapemig. https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V01

COMISSÃO ORGANIZADORA Thomas da Rosa de Bustamante (Presidente) Bernardo Gonçalves Fernandes José Adércio Leite Sampaio Élcio Nacur Rezende Igor de Carvalho Enríquez Evanilda Nascimento de Godoi Bustamante João Víctor Nascimento Martins Ana Luisa de Navarro Moreira Grégore Moreira de Moura Ludmila Lais Costa Lacerda Christina Vilaça Brina Deivide Júlio Ribeiro Beatriz Souza Costa Cácia Rita Stumpf Francisco Haas Lucas Azevedo Paulino Adriano Souto Borges Renan Sales de Meira Franklin Vinícius Marques Dutra

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SUMÁRIO

A lei formal resultante do processo legislativo é legítima em abstrato? Dificuldades no para além do positivismo em “Law and Disagreement” André Freire Azevedo De Alexy a Waldron: perspectivas sobre o ativismo judicial e os limites da atuação dos poderes Rafael Carrano Lelis Paola Angelucci Judiciário, veto players e capacidades institucionais: condições de legitimidade da inserção das Cortes no processo decisório Thaís Amoroso Paschoal Lunardi O ativismo judicial na teoria de Ronald Dworkin Marcos Porto Barbosa

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STF e as virtudes passivas: em busca de um controle de constitucionalidade dialógico Carolina Alves das Chagas

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A judicialização da política e a necessidade de cooperação institucional Victor Ferreira

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Democratização do controle jurisdicional de constitucionalidade brasileiro: a legitimidade da jurisdição constitucional por meio do método difuso José Nilton Nascimento Neves

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Cícero e a convivência harmônica dos poderes: um legado para a Modernidade Ana Guerra Ribeiro de Oliveira Igor Moraes Santos

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Uma reflexão sobre as instituições democráticas a partir do Tribunato della Plebe 115 Amanda Cataldo de Souza Tilio dos Santos Legitimidade constitucional e mecanismos de feedback : abrindo caminhos para a reconstrução de uma constituição difusa no Brasil Gabriel Cruz Ativismo judicial e o conflito entre democracia e constitucionalismo Flavio Baumgarten Baiao A figura do “amicus curiae” como um instrumento de participação de minorias na jurisdição constitucional brasileira Alexandre Melo Franco Bahia Amanda Melillo de Matos A audiência pública na ADPF 186 e suas repercussões Amanda Lima Sousa Priscila da Silva Barros Audiências públicas no Supremo Tribunal Federal: discurso democrático e prática tecnocrática Mário Cesar da Silva Andrade A participação social nas deliberações judiciais, conforme o novo Código de Processo Civil Gresiéli Taíse Ficanha Viviane Lemes da Rosa

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O processo de nomeação dos ministros do Supremo Tribunal Federal revisitado Gabriela Miranda Duarte Renato César Cardoso

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Por uma cartografia constitucional dos naufrágios e das Descobertas: as potencialidades e limites dos diálogos transconstitucionais entre o Supremo Tribunal Federal e as Cortes 234 Constitucionais da Hungria e da Colômbia Daniel Capecchi Nunes Participação e representatividade: a desvinculação entre o discurso de crise e a ampliação dos instrumentos de democracia participativa Desirée Cavalcante Ferreira A aplicação do princípio da simetria constitucional: uma análise comparativa entre a Constituição Federal e a Constituição Estadual do Maranhão José Guimarães Mendes Neto Votação da PEC da redução da maioridade penal: artifício ou formalidade regimental? Maria Clara Barros Mota Matheus Cazeca Oliveira Ferreira Representatividade democrática e os poderes da República: STF enquanto guardião da Constituição e assegurador de direitos LGBTT João Felipe Zini Cavalcante de Oliveira Mateus Oliveira Barros

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A LEI FORMAL RESULTANTE DO PROCESSO LEGISLATIVO É LEGÍTIMA EM ABSTRATO? DIFICULDADES NO PARA ALÉM DO POSITIVISMO EM “LAW AND DISAGREEMENT” André Freire Azevedo1 Introdução O objetivo do presente trabalho é discutir algumas das ideias propostas por Jeremy Waldron em “Law and Disagreement” (1999), especialmente em seus capítulos IV e V, sobre a autoridade da lei em sentido formal. O propósito de Waldron aqui é desenvolver uma teoria da autoridade da lei em que o fato do desentendimento ocupe uma posição central, não uma posição periférica: na noção de que, na prática, mesmo após a deliberação as pessoas continuarão a discordar de boa-fé sobre o bem comum e sobre questões sobre as quais uma legislatura deve deliberar. Waldron propõe que a análise se baseie na ideia de “circunstâncias da política”, que seriam a necessidade de uma estrutura, decisão ou curso comum de ação sobre determinado assunto, mesmo em face do desentendimento sobre quais eles devem ser. O desentendimento persistente impõe à aspiração de autoridade do direito que o reconhecer e seguir algo como direito legítimo seja visto, pelo agente, como uma alternativa a tentar descobrir por si próprio o que é melhor fazer em relação à matéria endereçada pela lei: o critério pelo qual algo é reconhecido como direito não pode estar relacionado com o mérito da questão que a lei busca endereçar (ele deve parecer arbitrário em relação à questão substancial, que é objeto de controvérsia em primeiro lugar). Mestrando em Direito Constitucional e Teoria da Constituição na UFMG (Brasil) com período sanduíche na Universidad de la República – Uruguay (UdelaR), com bolsa da Asociación de Universidades Grupo Montevideo e da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da UFMG. Bolsista CAPES. Estagiário-docente nos cursos de Direito e Ciências do Estado da UFMG, com bolsa REUNI. Representante discente no Colegiado do Programa de Pós-Graduação e na Congregação da Faculdade de Direito da UFMG. Bacharel em Direito pela UFMG (2014). Advogado. E-mail: [email protected].

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À luz das considerações de Habermas (2003b) sobre a obra de Waldron, buscaremos enfrentar algumas perguntas: mesmo partindo do pressuposto de que, numa democracia, ninguém pode reivindicar acesso privilegiado à “verdade” sobre assuntos legislativos ou constitucionais (o que impõe uma concepção procedimentalista de legitimação), é possível, como pretende Waldron, encontrar uma fonte de autoridade para a lei que não se limite à contingência da força, como no positivismo de Kelsen, ou se oculte no costume, no positivismo de Hart, sem recorrer aos méritos cognitivos de um processo legislativo que se pretende racional? Além disso, seria possível afirmar, com Waldron, a partir de um modelo puramente ideal de democracia direta, que o procedimento majoritário se legitima a partir da institucionalização do respeito aos indivíduos e às suas diferentes visões sobre direitos e justiça, desconsiderando as relações desiguais de poder que operam concretamente na sociedade?

1. A formalidade deliberativa pode conferir legitimidade à lei em sentido formal a despeito dos méritos cognitivos de um processo legislativo que se pretende racional? Waldron quer encontrar uma explicação para a legitimidade da lei formal que se encontre no próprio processo legislativo, uma vez que em função da perspectiva de desentendimento mútuo entre os distintos atores políticos, bem como diante das “circunstâncias da política”, o critério de legitimidade da lei deve parecer arbitrário em relação à questão substancial endereçada pela lei (que é objeto de controvérsia e desentendimento em primeiro lugar). Para um autor como Kelsen (1985), o Direito é um sistema autorreferente de normas estruturado hierarquicamente, que estipula os próprios critérios procedimentais de criação de normas válidas, na medida em que se move de um nível mais alto da estrutura hierárquica ao nível mais baixo por ele regulado; não obstante, a normatividade desse procedimento se reduz à segurança das provisões jurídicas emanadas. Normas jurídicas derivam sua força normativa e validade da ocorrência de determinados eventos passados; quais procedimentos, práticas e autoridades podem contar como corretas é definido pela lei, e apenas pela lei. O custo de uma tal pureza metodológica, que pretende conhecer seu objeto (o que

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é o direito) excluindo dessa análise tudo o que não pertença ao seu objeto (incluindo o que deve ser o direito) é o de privar a ciência jurídica dos critérios para avaliar a correção das decisões judiciais e a legitimidade de ordenamentos jurídicos: a ciência jurídica não tem de aprovar ou desaprovar o seu objeto, mas apenas tem de conhecer e descrever. Embora as normas jurídicas, como prescrições de dever-ser, constituam valores, a tarefa da ciência jurídica não é de forma alguma uma valoração ou apreciação do seu objeto, mas uma descrição do mesmo alheia a valores (Kelsen 1985, 74).

Waldron não aceita uma premissa como a de que a autoridade da lei decorre da facticidade de sua imposição concreta: para ele, a maioria de nós pensa que há mais razões para obediência à lei quando ela expressa uma visão que conduz ao bem comum do que em seu próprio interesse egoístico. Ele não quer encontrar um fundamento de autoridade que se resuma à aquiescência, à acomodação, à contingência da força (Kelsen) ou ao costume (Hart), mas um fundamento de autoridade que seja capaz de induzir respeito, sem para tanto recorrer aos méritos cognitivos substanciais de um processo legislativo que se pretenda racional. No quadro puramente ideal delineado por Waldron, uma assembleia legislativa compreende todos os representantes esclarecidos de uma cidadania também esclarecida2. Nesse quadro exemplar, o problema da autoridade da lei promulgada é o seguinte: por que um cidadão esclarecido preferiria a visão da legislatura do que a própria, se ele pensou sobre as questões envolvidas tanto quanto a legislatura? Se a visão advogada por esse cidadão não é a escolhida, por que conceder autoridade à visão prevalecente? Por que o cidadão não deve agir com base em suas próprias compreensões? Embora cite Hart, para quem o mero fato de que uma proposição é direito, de acordo com critérios positivos, não é razão suficiente para respeitá-la – pois as proposições de direito não devem ser respeitadas função de sua positivação, mas devem ser identificadas como direito nesses termos, sendo a segunda questão sobre o mérito da lei uma questão moral independente e posterior (Waldron 1999, 95) – Waldron termina buscando encontrar nos carac2

Waldron admite expressamente que o livro não inclui uma discussão adequada sobre representação, e essa ausência, que será posteriormente tratada, é pungente.

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teres formais do processo legislativo enquanto tal, a partir de um modelo ideal de democracia direta, uma fonte abstrata de autoridade para a lei, que fundamente o dever de respeito à lei. Prometendo não recorrer a argumentos substanciais, Waldron quer encontrar no processo legislativo de positivação da lei enquanto tal um certo tipo de reconhecimento e respeito no sentido de que o produto do processo legislativo representa a decisão provisoriamente adotada por uma comunidade, e que ela não deveria ser ignorada ou descartada simplesmente porque alguns de nós propõem, quando puderem, repeli-la (Waldron 1999, 100). Waldron quer encontrar uma explicação para a sugestão de que quando uma lei é aprovada na legislatura, ela permanece em nome de toda a comunidade e a ela deve ser deferido todo o respeito que esse status comunitário a confere, a despeito de seus méritos – e essa explicação pretende se impor mesmo sobre quem acredita que tem bases para afirmar que a legislatura está errada. Ainda em seu modelo ideal de democracia direta, Waldron afirma que o voto majoritário satisfaria esse requerimento, porque permite que qualquer membro seja capaz de identificar a política vitoriosa como a “política favorecida pela maioria”, quer ele pense ou não que ela é de fato o melhor a se fazer em relação à matéria controversa objeto de regulação. O princípio majoritário, para ele, não seria meramente impessoal ou utilitário, mas respeitaria os indivíduos cujos votos são agregados: respeitando as diferentes opiniões sobre justiça e bem comum (pois ninguém tem que mudar de opinião por causa de um almejado consenso3); e incorporando Waldron, nesse ponto, parece tecer uma crítica indireta a Habermas; no entanto, o consenso em Habermas não é uma “ideia reguladora” cuja tônica normativa imporia um determinado comportamento ou orientação aos agentes políticos. Em Habermas, a idealidade da generalidade do significado é um pressuposto contrafático da ação linguística, na medida em que para que seja possível pressupor a existência de um pensamento que vai além dos limites de uma consciência individual empírica e tem conteúdo independente em relação à corrente de vivências de um indivíduo, os membros de uma comunidade de linguagem têm de partir de uma idealidade: pressupor que falantes e ouvintes podem compreender uma mesma expressão gramatical de modo idêntico; que o sinal, o conceito ou o significado devem ser idênticos, na pluralidade de eventos significativos correspondentes (Habermas 2003a, 28–9). O fato de que a coordenação da ação é feita por intermédio da linguagem já implica a existência de um pano de fundo de entendimentos que se pressupõem (ainda que contrafactualmente) tácitos, ou a própria comunicação se mostraria impossível. Conforme explica Marcelo Cattoni, “a ‘situação ideal de fala’ nada mais é, segundo Habermas, do que um ‘experimento de pensamento’, uma

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um princípio de respeito por cada pessoa que participa do processo pelo qual se escolhe um curso de ação como “nosso”, mesmo em face do desentendimento. É porque discordamos sobre o que conta como resultado substantivamente respeitável que precisamos de um procedimento decisório que assegure respeito recíproco; encaixar a substância no cerne da determinação do procedimento necessariamente privilegiaria uma visão controversa sobre o que esse mesmo respeito exige. A decisão majoritária difere de cara-ou-coroa, por exemplo, porque dá peso decisório positivo ao fato de que determinado membro do grupo possui determinada opinião, na medida em que cada preferência individual é contada (Waldron 1999, 113): ela envolve um comprometimento em dar peso igual a cada visão individual no processo em que a opinião do grupo será definida. Waldron parte do pressuposto de que a persistência do desentendimento sobre questões políticas substanciais indica que uma visão privilegiada e imparcial não está disponível a ninguém no processo de interpretação dos caracteres constitucionais essenciais (Habermas 2003b, 189). De fato, numa democracia ninguém pode reivindicar acesso privilegiado à “verdade” sobre assuntos legislativos ou constitucionais; o fato de que um ponto de vista imparcial de um observador ideal está fora do alcance de todos é uma venerável intuição igualitária, e os participantes numa deliberação podem muito bem perseguir um propósito cognitivo sobre a correção normativa de enunciados morais e, ao mesmo tempo, serem barrados de qualquer acesso público à “verdade” sobre o assunto – mais precisamente, barrados de em algum momento alcançar em público determinado resultado que se possa esperar que todos possam aceitar racionalmente (Habermas 2003b, 190). Segundo Habermas, esse lapso (entre a “verda‘ficção metodológica’, e representa, assim destituída de toda e qualquer conotação essencialista, tão-somente uma projeção empreendida por meio da reconstrução dos pressupostos idealizantes, de caráter contrafactual, da racionalidade comunicativa, já presentes na facticidade dos processos sociais, subjacentes, portanto, a toda interação lingüística voltada ao entendimento; aqui, pois, a transcendência é imanente, é intramundana. Em contraste com a projeção de ideais, à luz dos quais podemos identificar desvios, ‘os pressupostos idealizantes que nós já sempre temos de adotar, se pretendemos alcançar o entendimento mútuo, não envolvem qualquer tipo de correspondência ou de comparação entre ideia e realidade’ (...). O mal-entendido essencialista é substituído por uma ficção metodológica elaborada para dispor de um pano-de-fundo sobre o qual o substrato de complexidade societária inevitável torna-se visível” (Cattoni de Oliveira 2012, 43).

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de sobre a matéria”, aspirada pelos participantes do discurso, e o fato de que ela presumidamente não se faz disponível em público) explica por que uma concepção procedimentalista de legitimação se mostra atraente; simultaneamente, no entanto, essa concepção exige a elaboração de uma justificativa de matriz positivista ainda mais complexa, para que seja possível explicar por que um procedimento como o deliberativo pode desfrutar de uma “autoridade” que existe a par dos méritos cognitivos inerentes ao discurso racional (Habermas 2003b, 190). Waldron procura uma fonte de autoridade que produza reconhecimento, não mera aquiescência ou aclimatização, sem se apoiar no argumento decisionista de que alguma decisão é às vezes melhor que nenhuma, nem no argumento funcionalista, de que a lei é um meio adequado para a finalidade de coordenação de ações e interações em face do desentendimento; se a autoridade tampouco se baseia no conteúdo cognitivo ou na expectativa de racionalidade dos resultados, por que, então, a autoridade é gerada a partir da conexão entre uma votação e o evento deliberativo que a precede, de tal forma que os cidadãos devem aceitar resultados controversos como “dignos de respeito”? (Habermas 2003b, 190). O problema, para Habermas, pode assim ser descrito: The epistemic pluralist, like the positivist, must look to find a source that confers legitimacy upon law apart from its content. But unlike the positivist, he must discover it in some feature of the process of deliberation, and that means beyond the power of sanctioning or the suggestion of tradition (Habermas 2003b, 190–1)4.

Waldron, para Habermas, tenta seguir diversos caminhos. Propõe que os cidadãos devem confiar na autoridade dos parlamentos por causa da superior “expertise” proporcionada pela deliberação entre pessoas distintas entre si, que se manifesta em procedimentos formais de discussão focada numa proposição textual (Waldron 1999, 85). No entanto, como aponta Habermas, “tanto “Os pluralistas epistêmicos, assim como os positivistas, devem buscar encontrar uma fonte que confere legitimidade à lei separada do seu conteúdo. Mas, ao contrário dos positivistas, deve descobri-la em alguma característica do processo de deliberação, e isso significa que para além do poder de sanção ou da sugestão da tradição” (tradução livre).

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uma autoridade derivada de uma divisão epistêmica do trabalho quanto a tomada de uma perspectiva mútua são dificilmente independentes da expectativa de aprimoramento da qualidade cognitiva dos resultados” (Habermas 2003b, 191)5. A superior “expertise” proporcionada pela deliberação nos parlamentos é uma suposição empírica que não pode ser pressuposta simplesmente a partir das características formais e abstratas do processo legislativo; além disso, ela se refere a uma questão substancial. O relato de Waldron sobre os procedimentos parlamentares revela sub-repticiamente os propósitos cognitivos de um processo deliberativo que está desenhado para suportar, desde uma diversidade de perspectivas, contribuições relevantes para o debate das mesmas questões (Habermas 2003b, 191). Há, para Waldron, uma conexão entre debates de larga escala e a autoridade da lei. Nesse quadro, é necessária uma noção de deliberação orientada especificamente para as tarefas e circunstâncias da legislatura, pois a discussão sobre dar ou não autoridade para uma medida é diferente de patrocinar uma conversa infinita: deve estar atenta a prazos, por exemplo, bem como deliberar em todo estágio e aspecto dos procedimentos, de tal forma que haja articulação entre esses estágios (projeto de lei; consultas; audiências em comissões; bicameralismo; leituras, etc.), num processo legislativo estruturado, mas unificado (1999, 71). Acima de tudo, sua concepção de deliberação legislativa deve respeitar o fato de que uma assembleia legislativa reúne pessoas diferentes umas das outras – em termos de pano de fundo, experiências e crenças –, que não raro se opõem em suas visões sobre política, justiça social e direitos. Essas características devem ser aproveitadas ao máximo pelo processo legislativo, de tal forma que emerja como resultado uma lei que possa responder às preocupações dos cidadãos (Waldron 1999, 72). Aqui, a estruturação do procedimento é colocada como uma etapa necessária para a produção de uma lei substancialmente mais adequada para responder às demandas dos cidadãos. Nas palavras de Habermas: As soon as we interpret those procedures (…) in the light of the purpose of finding the best and fairest solution for society-wide coordination problems, it is obvious that “deliberative formality” Tradução livre de “But an authority deriving from both the epistemic division of labour and the taking of a mutual perspective is hardly independent of the expectation to enhance the cognitive quality of content and outcome”.

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could not confer any legitimacy on majority decisions apart from its inherently cognitive merits. Waldron repeats that a vote may be called for, “when a discussion is exhausted,” but fails to explain what “exhaustion” can mean here. If it means that participants “run out of reasons,” we realize that reasons provide the missing link in the argument. Without the epistemic promise of an unrestricted exchange of a sufficiently wide range of relevant reasons, the legitimizing force that springs from a formally structured deliberation would remain mysterious6 (Habermas 2003b, 191).

Para Habermas, a “formalidade deliberativa” só pode funcionar como uma fonte de legitimidade se os arranjos comunicativos forem suficientemente inclusivos e ilimitados, a ponto de encontrarem certas condições epistêmicas: todas as questões relevantes devem encontrar o caminho para a agenda e ser consideradas com justiça e competência, sobre as bases das melhores informações disponíveis e à luz de contribuições pertinentes pró e contra. Só sob essas condições um voto majoritário falível e reversível é percebido como a interrupção de um discurso permanente, em função de exigências práticas; o voto goza da presunção de aceitabilidade racional sem impor à minoria qualquer mudança de consciência (Habermas 2003b, 192). A possibilidade de consenso não é um ideal regulatório, mas um pressuposto contrafactual de respeitabilidade de decisões majoritárias, que assim podem ser entendidas como etapas provisórias de um processo deliberativo cuja lógica interna é a busca permanente da aceitabilidade racional dos seus resultados.

2. O procedimento majoritário se legitima abstratamente porque respeita indivíduos e suas diferentes visões sobre direitos e justiça, a despeito das relações desiguais de poder que operam concretamente na sociedade? 6

“A partir do momento em que interpretamos esses procedimentos à luz do propósito de encontrar a melhor e mais justa solução para problemas que abrangem toda a sociedade, é óbvio que a ‘formalidade deliberativa’ não poderia conferir nenhuma legitimidade para as decisões majoritárias à parte dos seus méritos cognitivos inerentes. Waldron repete que uma votação pode ser convocada ‘quando uma discussão se exaurir’, mas falha em explicar o que ‘exaustão’ pode significar aqui. Se significa que os participantes ‘esgotaram suas razões’, percebemos que as razões fornecem a conexão faltante do argumento. Sem a promessa epistêmica de uma irrestrita troca de razões relevantes e suficientemente amplas, a força legitimadora que brota de uma deliberação formalmente estruturada permaneceria misteriosa” (Tradução livre).

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No contexto de seu propósito mais amplo de encontrar uma fonte de autoridade no procedimento, a despeito de quaisquer considerações substantivas, Waldron procura encontrar a autoridade da lei aprovada por meio do procedimento majoritário na justa representação dos afetados (que permite que diferentes vozes sejam ouvidas no procedimento decisório, cf. Waldron 1999, 86) e no respeito recíproco à diversidade de opiniões (no sentido de evitar a tentação de tratar visões opostas como inferiores – ignorantes, preconceituosas ou autocomplacentes, cf. Waldron 1999, 111). O princípio majoritário respeitaria os indivíduos cujos votos são agregados: respeitando as diferentes opiniões sobre justiça e bem comum e incorporando um princípio de respeito por cada pessoa que participa do processo pelo qual se escolhe um curso de ação coletivo, mesmo em face do desentendimento, porque envolve um comprometimento em dar peso igual a cada visão individual no processo em que a opinião do grupo será definida. No entanto, a institucionalização da inclusão e da tolerância, ou a atribuição de igual peso a distintas perspectivas políticas, não podem ser tomadas como um resultado automático da adoção do princípio majoritário de decisão; mais além, “ela só pode contar como uma fonte de legitimação procedimental se nós já pressupusermos previamente princípios substanciais compartilhados de equidade” (Habermas 2003b, 191). Waldron está correto em pressupor que, em condições modernas, não é possível que o direito goze de autoridade senão a partir de um procedimento de autolegislação democrática, no qual os cidadãos podem decidir por si próprios sobre as regras que regularão sua convivência recíproca. A autoridade da lei de fato merece respeito quando é “alcançada de uma maneira respeitosa para com as pessoas que buscam agir em concerto para a resolução de problemas” (Waldron 1999, 108). Seu erro parece estar em pressupor que os imensos desafios de um efetivo processo de autolegislação democrática possam ser resolvidos com o recurso a um modelo ideal concebido em circunstâncias completamente abstratas – como se o procedimento majoritário, apenas por dar um peso supostamente igual, num plano abstrato, a cada visão individual no processo em que a opinião do grupo será definida, fosse capaz de institucionalizar um processo político respeitoso para com todos os envolvidos. A decisão majoritária, para Waldron, é justa: a pretensão de igualdade está na base dessa pretensão de justiça e é, segundo ele,

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bastante exigente particularmente quando um amplo número de pessoas está envolvido; o peso de cada voto pode ser mínimo no processo, mas o envolvimento de muitas pessoas é a consequência da estrutura e extensão do problema, bem como da exigência de que “o que afeta a todos deve ser decidido por todos” (Waldron 1999, 114). Waldron parece querer encontrar a “essência” das nossas instituições políticas: num plano puramente ideal de uma democracia direta (ou, quiçá, no máximo, em uma democracia representativa total e perfeitamente funcional), o procedimento majoritário respeita a diversidade de opiniões e permite que todas as distintas vozes sejam ouvidas no procedimento decisório. A questão é: a priori, apenas e tão somente nesse plano. Waldron admite expressamente que o livro não inclui uma discussão adequada sobre representação, e essa ausência é pungente. Afinal, soa até mesmo tautológica a afirmação de que parece ser essencial que um texto que trata justamente a legitimidade do produto do processo legislativo em uma democracia representativa contenha uma discussão sobre representação política. A chamada “crise da representação política”, por exemplo, é um tema que envolveu amplos debates no âmbito da ciência política nos últimos 30 anos: os fatos apontam antes para um enfraquecimento dos dispositivos representativos do que a uma aproximação das nossas democracias concretas a um modelo puramente funcional de representatividade7. Só é possível aferir concretamente se o procedimento majoritário encapsula a legítima representação dos envolvidos in concreto, a partir da análise histórica, política e sociológica do funcionamento dos mecanismos representativos em cada caso: o que teriam a dizer sobre isso as mulheres, que compõem 51,95% do eleitorado brasileiro, mas não alcançam o percentual de 10% das cadeiras do Congresso Nacional na atual legislatura? A partir do momento em que tentamos transpor o modelo “ideal puro de uma democracia direta” de Waldron ao contexto de sociedades concretas, veremos sem muita dificuldade que a institucionalização de uma tal inclusão e tolerância, a ponto de conferir autoridade à lei formal com base na presunção de que ela é fruto de uma decisão efetivamente coletiva por parte de toda a comunidade, é algo um Escapa aos propósitos desse trabalho uma revisão da ampla bibliografia sobre a questão da “crise da representação política”. Recomenda-se a leitura de Miguel 2003, em que há um apanhado da discussão.

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tanto quanto mais complexo. A solução reconstrutiva8 de Habermas, mais fincada na realidade histórica, também é procedimental: o exercício da autonomia pública, em um processo de autolegislação democrática em que uma comunidade regula sua convivência por meio do direito, depende no mínimo de um sistema de direitos fundamentais que lhe é constitutivo, uma vez que garante a autonomia dos sujeitos juridicamente associados. O recurso aqui não é a um argumento de substância, que, segundo Waldron, replicaria o problema que se busca solucionar: a teoria não pode antecipar o conteúdo mesmo desse sistema de direitos, cuja configuração deve ser deixada a cargo dos próprios sujeitos associados – configuração que, se for o caso, pode ocorrer inclusive por meio de sua interpretação construtiva em sede de jurisdição constitucional, cuja existência, se não é uma necessidade histórica, tampouco é uma violação apriorística a uma suposta “verdade essencial” subjacente a instituições democráticas bem ordenadas (Waldron 2006). É hoje evidente que há muito mais na autonomia do que pode ser assegurado apenas pelo Estado (Honneth 2009, 358). Em qualquer caso, o procedimento majoritário só pode pretender contar com alguma presunção de autoridade com base na inclusão e no respeito se há no mínimo alguma garantia de institucionalização epistêmica dessa inclusão e desse respeito no próprio procedimento – que pode começar pela referência comum a um mesmo sistema de direitos fundamentais garantidores de uma esfera de autonomia privada constitutiva da autonomia pública dos cidadãos no Estado, ainda que esses direitos sejam pensados, a nível teórico, de modo também puramente procedimental. Sem esse tipo de garantia, em uma legislatura de um sistema político presente em um mundo invariavelmente não ideal (no sentido de que não há nenhuma verdade essencial pura por trás das nossas instituições políticas e de que a democracia se mostra A ideia de reconstrução é introduzida por Habermas ligada à identificação e comprovação de potenciais de racionalidade já inscritos na realidade, que façam jus à orientação pela emancipação que caracteriza o campo crítico – não no sentido de refazer conceitualmente algo dado ou recontar sua história, mas no sentido de reflexão sobre “as regras que têm de ser supostas como princípio para compreensão do sentido e mesmo do não sentido do que é construído social e simbolicamente”, regras, estruturas e processos que constituem a racionalidade imanente aos objetos simbólicos, “racionalidade que eles reivindicam por si mesmos para que possam ter sentido” (Nobre and Repa 2012, 19).

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como um processo que não possui fundamentos filosóficos últimos), a exigência moral de que, por exemplo, uma minoria sub-representada reconheça a autoridade de uma lei aprovada por meio do procedimento majoritário (em função do fato de que esse é supostamente o único procedimento justo em abstrato), quando encontra as circunstâncias imperfeitas dos nossos sistemas políticos, se transforma em outra exigência, muito menos nobre: a de que a igualdade de participantes proporcionada pelo princípio majoritário, por mais que, quando muito existente, seja meramente formal, é o máximo a que é possível aspirar nas “circunstâncias da política”; qualquer outra aspiração ao reconhecimento de direitos seria impor sobre uma “maioria injustiçada” uma visão necessariamente controversa sobre esses direitos. Essa, é claro, é uma visão de equidade política bastante controversa; ela, no entanto, deve ser pressuposta caso adotemos a proposta de Waldron enquanto modelo de legitimidade procedimental. Direitos podem, sim, ser pleiteados de modo abusivo, mesmo por minorias sub-representadas, e o processo legislativo pode, sim, gozar de uma presunção relativa de legitimidade: a questão é que tanto pretensões abusivas quanto a legitimidade do processo legislativo em que se aprovou determinada lei só se mostrarão enquanto tais nos seus respectivos contextos históricos, políticos e sociais. A justiça não é um ideal puro, mas só aparece em circunstâncias sociais concretas, em relações sociais comumente aceitas que são constituídas por práticas perpassadas de conteúdo moral (Honneth 2009; 2014). Nenhuma teoria conseguirá encapsular condições de legitimidade de um sistema democrático por meio da construção um procedimento normativo ideal que pretenda deduzir de si próprio o conteúdo da justiça (que inclui as condições políticas de legitimação do direito), a partir de um puro exercício de racionalidade normativa: é necessário partir da reconstrução das práticas sociais que nos informam sobre o que o respeito à justiça exige. A justiça e a legitimidade só se apresentam enquanto tais in concreto, na história.

Referências Cattoni de Oliveira, Marcelo Andrade. 2012. Teoria Da Constituição. Belo Horizonte: Initia Via.

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DE ALEXY A WALDRON PERSPECTIVAS SOBRE O ATIVISMO JUDICIAL E OS LIMITES DA ATUAÇÃO DOS PODERES Rafael Carrano Lelis1 Paola Angelucci2 Introdução O presente trabalho procura confrontar marcos teóricos opostos no que diz respeito à análise do ativismo judicial e da possível interferência entre dois poderes, a saber, Judiciário e Legislativo. Intenta-se criar uma ponte de diálogo entre dois autores que não se encontram em discussão e nem mesmo são usualmente abordados em conjunto. Para tanto, parte-se das ideias construídas por Robert Alexy, em oposição à visão de Jeremy Waldron, destacando a linha de pensamento dos dois autores com relação à (e os limites da) atuação de cada um dos poderes anteriormente mencionados. Pretende-se esclarecer, primeiramente, a diferença entre os termos judicialização e ativismo judicial, para então abordar as teorias dos autores e, em seguida, realizar uma análise do voto do Ministro Barroso em recente caso do STF. Busca-se verificar se há, de fato, no momento do julgamento, ilegítima interferência do poder Judiciário no âmbito do Legislativo. Finalmente, procura-se explicitar se e quando tal interferência seria justificada. Partindo de Alexy, destaca-se a importância da atuação do Judiciário como ponte entre a abstração da norma e a concretude do direito, especialmente nos casos em que o Legislativo não demonstra eficiência. Embora os questionamentos levantados acerca dos limites do Judiciário sejam pertinentes, importa destacar as noções de ponderação e prioridade: é a dignidade humana que deve ser o Graduando em Direito na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Brasil, e-mail: [email protected] 2 Mestre em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), professora da Universidade Federal Fluminense (UFF/Macaé) e pesquisadora associada do Centro de Direitos Humanos e Empresas (HOMA), da Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil. E-mail: [email protected] 1

https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V01_A02

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centro de resistência nos casos concretos. Por outro lado, ressalta-se a forte crítica construída por Waldron em relação à interferência do Judiciário no Legislativo. Argumentando, principalmente, contra o controle judicial de constitucionalidade (judicial review), aponta a falta de legitimidade do Judiciário para intervir em questões definidas pelos representantes do povo, alertando para possíveis danos causados à democracia. Além disso, destaca que não há evidências que indiquem o Judiciário como melhor protetor de direitos do que as assembleias legislativas. Sendo assim, fica clara a posição do professor, posicionando-se fortemente contrário ao ativismo judicial.

1. Judicialização versus ativismo judicial A judicialização, frequentemente apresentada como judicialização da política, pode ser apontada como uma consequência da adoção de uma constituição substantiva e garantidora de direitos fundamentais, tal como a Constituição de 1988. Quando a Carta Magna amplia significativamente os direitos dos cidadãos brasileiros em áreas como saúde e educação, é natural que cheguem ao Judiciário questionamentos ou demandas referentes a tais direitos. Dessa forma, há, invariavelmente, uma análise do Poder Judiciário sobre questões de cunho político, às quais, anteriormente, reservava-se a discussão apenas ao Legislativo e Executivo. Nesse cenário, é possível aceitar a judicialização como um fenômeno inevitável no caso brasileiro; deve-se, entretanto, ressaltar que ela se torna exagerada (“judicialização da vida”), muitas vezes, pelo sistema brasileiro de controle de constitucionalidade. Sendo assim, a judicialização pode ser identificada como um fato, sendo dever do Poder Judiciário decidir sobre aqueles temas que a ele são levados (BARROSO, 2012, p. 24-27). Em contraposição, tem-se o ativismo judicial, que possui uma definição controversa. Os Estados Unidos são um grande exemplo nesse sentido, tendo o termo sido usado por liberais para criticar a atuação conservadora de juízes e também por conservadores para criticar a atuação liberal de outros tantos magistrados (CAMPOS, 2014, p.60-61; MACHADO, 2008, p. 16-18). Barroso define o ativismo como uma atitude (em oposição à judicialização, que seria um fato), ou seja, “a escolha de um modo

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específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo seu alcance”. Tal atuação estaria associada a uma retração ou omissão legislativa, buscando o Judiciário, então, a concretização dos valores constitucionais (BARROSO, 2012, p. 25-27). Machado avança um pouco mais na conceituação do ativismo, apontando-o como uma tentativa da jurisdição constitucional de monopolizar os debates substantivos (que envolvem, por exemplo, política e moral). Sob esse prisma, o Judiciário se coloca como o único competente para “dar a última palavra”, contrariando, inclusive, as opiniões legislativas a respeito do tema, estabelecendo um exclusivismo judicial (MACHADO, 2008, p. 52-61). Destacamos, portanto, os conceitos a serem utilizadas neste trabalho: 1) judicialização: número excessivo de demandas levadas ao Poder Judiciário para deliberar sobre matérias de cunho político; 2) ativismo judicial: forma de interferência nos demais poderes, por meio da interpretação ampliativa do texto constitucional, com o intuito de garantir o exclusivismo judicial, isto é, que o Judiciário seja sempre aquele a dar a última palavra.

2. A visão de Jeremy Waldron A maioria das críticas de Waldron diz respeito ao judicial review, caracterizando-o como um instrumento de sobreposição do Judiciário ao Legislativo. A partir disso, serão destacados três principais argumentos do autor acerca da dinâmica do ativismo judicial e sua (i)legitimidade. A apresentação dos argumentos será feita em dois momentos: os dois primeiros são argumentos vinculados a quatro premissas específicas estabelecidas pelo professor e, por isso, serão apresentados separadamente do terceiro, que não está vinculado a tais premissas.

2.1 Argumentos relacionados às premissas 2.1.1 As quatro premissas A primeira premissa de Waldron é a necessidade de existência, na sociedade em que se estuda, de instituições democráticas em razoável bom funcionamento (WALDRON, 2006, p. 1359-1362), o que é facilmente identificável no cenário brasileiro, uma vez que

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nossos legisladores são eleitos por meio do sufrágio universal e as eleições são realizadas periodicamente, sempre sendo respeitadas as regras eleitorais previamente elaboradas. A segunda premissa consiste na existência de instituições judiciais também em razoável bom funcionamento, decidindo litígios e responsáveis pela manutenção do rule of law. Além disso, é importante, para a aplicabilidade dos argumentos, que as instituições judiciais não tenham sua composição realizada por meios eleitorais (WALDRON, 2006, p. 1363-1364). Novamente, a premissa é facilmente identificável, uma vez que nossos juízes chegam ao cargo por meio de concursos públicos ou indicações (portanto, não são eleitos), além de serem responsáveis pela resolução de conflitos e aplicação da lei. A terceira premissa (talvez aquela de maior dificuldade de apontamento de correspondência no Brasil) prevê a existência de um compromisso, por parte da maioria da sociedade, com os direitos da minoria. Não obstante, em um primeiro momento, possa se alegar que não há tal compromisso diante de atuações legislativas e de parte da população brasileira, Waldron esclarece que a mera existência de uma constituição ou outro documento escrito que garanta os direitos da minoria revela essa preocupação por parte da sociedade (WALDRON, 2006, p. 1364-1366). Sendo assim, tendo em vista nossa constituição substantiva e altamente garantidora, é possível identificar, também, a aplicabilidade da terceira premissa. Já a quarta premissa remete à existência de discordância sobre direitos na sociedade. Há de se ressaltar que, ainda que se possa se iniciar assim, tal discordância não deve ser meramente relacionada a questões interpretativas, isto é, não é uma discordância superficial, mas concernentes a questões profundas referentes a direitos como: aborto, ações afirmativas, significado de tolerância religiosa, regulação de gastos eleitorais etc. (WALDRON, 2006, p. 1366-1369).

2.1.2 Argumento da legitimidade O primeiro argumento se refere à legitimidade de o Judiciário tomar decisões cuja competência original é do Legislativo. Destaca-se o grande prejuízo à democracia, uma vez que essa é baseada no voto e garante aos candidatos eleitos legitimidade de representação e para tomada de decisões pelo povo brasileiro. (WALDRON,

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2006, p. 1371-1376). A questão pode ser exemplificada com a decisão sobre descriminalização das drogas, atualmente em debate no Supremo. Tendo em vista que ambos os lados possuem argumentos plausíveis, de acordo com a Constituição e fortemente embasados, há de se definir quem será o responsável pela decisão final. Por fim, destaca-se que não deve ser usado como contra-argumento quaisquer falhas no sistema eleitoral brasileiro.

2.1.3) Argumento da proteção de direitos Um ponto constantemente levantado pelos defensores do ativismo judicial e do judicial review seria uma suposta falta de seriedade no tratamento dos direitos nos órgãos legislativos, enquanto o Judiciário se voltaria mais seriamente para a questão. No entanto, Waldron nos aponta bons exemplos de que o Legislativo tem capacidade de se dirigir seriamente a tais questões, como os debates que ocorreram no parlamento britânico na década de 60, referente a questões como liberação do aborto, legalização da conduta homossexual, entre outras matérias de grande relevância no campo de concessão de direitos. Para além disso, Ronald Dworkin (que se ressalte: um defensor do judicial review) aponta que o Judiciário, notadamente os juízes, não detém conhecimento acerca de todas as questões, principalmente relacionadas a caráter moral e amplamente discutidas na sociedade, não tendo eles, portanto, posições especialmente diferenciadas quando confrontados com tais questões (DWORKIN, 1996 apud WALDRON, 2006, p. 1350). Outro argumento seria que a decisão do Legislativo só deve ser alterada pelo Judiciário quando violar direitos. Todavia, há discordância na sociedade sobre qual seria o teor de determinados direitos e, nesse sentido, não se pode preferir um método de definição de qual seria o entendimento desse direito (em detrimento de metodologia diversa), embasando-se no resultado que advirá desse processo decisório (WALDRON, 2006, p. 1376-1379).

2.2) Argumento da dignidade da legislação Waldron aponta que uma das principais resistências aos le-

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gisladores é o fato de que, ao editar uma nova norma, eles estão alterando despudoradamente o que a lei significava antes. Há uma resistência das pessoas em aceitar tal atitude, fundada no receio acerca da forma pela qual serão realizadas tais alterações. Por outro lado, ele destaca que a alteração da lei pelo Poder Judiciário se dá de forma mascarada e dissimulada, principalmente na common law. O Judiciário finge apenas estar realizando seu trabalho de aplicação da lei, o que gera um menor desagrado por parte da população, que compreende a atitude não como alteração à lei, mas apenas à sua aplicação. Os juízes tendem a justificar suas decisões baseados na detenção da chamada “técnica jurídica”, atitude que leva o cidadão comum a não questionar as decisões, por acreditar estarem além de seu entendimento. Sendo assim, questiona-se se esta atuação do Judiciário não pode ser utilizada para restringir direitos da população sem nem mesmo sofrer resistência.

3. A judicialização sob a perspectiva de Robert Alexy Antes de tratar do fenômeno da judicialização em si, destacamos, tendo como referência o entendimento alexyano, a importância de centralizar o caráter de exigibilidade dos direitos subjetivos públicos frente à omissão estatal. As condições formais geradoras dos direitos fundamentais sociais estabelecem o direito subjetivo do indivíduo a uma ação fática positiva do Estado. Desta forma, dois pressupostos levam ao direito de cobrar uma ação do Estado: i) se o Estado detém a possibilidade jurídica e fática de fazer algo, mas deixa de fazê-lo e ii) se esta omissão, em face das circunstâncias concretas, ameaça sem justificativa causar dano a uma pessoa (ARANGO, 2005, P.154). Este zelo pelos direitos fundamentais sociais está ligado ao conceito de liberdade fática (ou real) desenvolvido por Alexy. Segundo o autor, a liberdade jurídica, quer dizer, a autorização do ordenamento para fazer ou deixar de fazer algo, perde o valor diante da ausência de uma liberdade fática, a qual consiste na real possibilidade de escolha entre as alternativas permitidas (ALEXY, 2008, p.503). Neste sentido, este é o conceito de liberdade fática em Alexy: “em relação a uma alternativa de ação juridicamente livre, a é faticamente livre na medida em que tem a possibilidade real de fazer ou deixar de fazer aquilo que é permitido” (ALEXY, 2008, p.226).

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Esta noção de liberdade fática retoma a ideia Kantiana de autonomia para a construção de uma vida digna e evidencia que a ausência das condições mínimas para o exercício destes direitos impede o planejamento de vida dos sujeitos segundo a sua vontade. A partir desta reflexão, invocamos a importância da atuação do Judiciário como instrumento de efetividade. Os questionamentos acerca dos limites de sua atuação são, por óbvio, pertinentes, tanto quanto os limites orçamentários nos obrigam às escolhas difíceis, nos conduzem aos hard cases. Todavia, as noções de ponderação e prioridade fazem valer a dignidade humana como centro de resistência nesses casos. Passamos agora para a análise do principal argumento contra a judicialização dos direitos fundamentais sociais: a objeção democrática - ou seja, a questão da indevida interferência do Judiciário no Legislativo. Partindo da perspectiva alexyana, defende-se a correção da utilização do Judiciário enquanto meio para a concretização dos direitos fundamentais sociais. Para combater a objeção democrática, recorremos a dois argumentos de Sarmento. O primeiro argumento atenta para o significado da democracia. O efetivo exercício democrático pressupõe a fruição de direitos básicos por todos os cidadãos, o que significa permitir que cada um forme livremente as suas opiniões e participe dos diálogos políticos travados na esfera pública. A concretização dos direitos às condições materiais básicas de vida são, portanto, condições de viabilidade do próprio exercício democrático. Neste sentido, a atuação do Judiciário passa a ser devida quando age no sentido de satisfazer as condições materiais básicas de vida, principalmente considerando a postura de omissão dos outros poderes (SARMENTO, 2008, p. 541) Já o segundo argumento relaciona-se à natureza normativa da Constituição: o dever do Judiciário de aplicar as normas jurídicas vigentes em situações de litígio, mesmo quando isto significa controlar o exercício do poder estatal, não é incompatível com a democracia, mas é, ao contrário, um elemento dela. Nestes casos, o Judiciário atua como guardião dos direitos fundamentais (SARMENTO, 2008, p. 542).

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4. O ativismo de Waldron e a judicialização de Alexy: pontos de encontro e divergência A partir da exposição conceitual do tema, partindo da necessária diferenciação entre ativismo e judicialização, podemos apontar para a percepção de que a aplicação da teoria alexyana é predominantemente realizada nos casos de judicialização, ou seja, casos em que o Judiciário é chamado a decidir diante da omissão legislativa ou executiva no tratamento formal e na prestação efetiva, respectivamente, referentes aos direitos fundamentais sociais. Todavia, alguns pontos de discussão específicos são igualmente relevantes, tanto quando se trata de judicialização quanto nos casos de ativismo. Embora seja indispensável entender que se tratam de procedimentos diversos, a análise de tais pontos se faz necessária e é comum a ambos os casos, como será visto na aplicação desta discussão ao voto do Ministro Barroso, tema do próximo capítulo. Os pontos aos quais fazemos referência são fundamentais para a argumentação a favor e contra ambos os procedimentos. São eles: 1) o argumento democrático - quando e até que ponto se considera legítima a interferência do Judiciário nos demais poderes eleitos por voto; 2) o direito à autonomia – Alexy entende que os direitos fundamentais sociais derivam do direito geral à autonomia, sendo indispensáveis a um cidadão livre; da mesma forma, quando se fala em ativismo, o Judiciário se pretende detentor da última palavra, muitas vezes, em casos em que entende necessário ampliar ou alterar a interpretação constitucional afim de garantir o exercício autônomo de direitos fundamentais que até então haviam sido negados; 3) o significado de democracia – enquanto Sarmento entende que a interferência nos poderes pode ser uma maneira de garantir o exercício dos direitos políticos, Waldron aponta para o fato de que a supressão da vontade do povo em favor da técnica jurídica pode justamente ameaçá-los, principalmente devido à forma dissimulada de legislar por parte do Judiciário; 4) a capacidade do Judiciário para decidir sobre temas específicos – Waldron questiona este ponto salientando a falta de especialidade para temas como microencefalia e aborto, enquanto a corrente alexyana aponta como solução a disponibilidade de recursos como o amicus curiae. Partindo, portanto, dos marcos teóricos adotados, focaremos nos quatro pontos acima explicitados para direcionar a análise

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do recente voto do ministro Roberto Barroso no Recurso Extraordinário (RE) 635.659, que discute a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal. Na sessão de julgamento do dia 10/09/15, o ministro se manifestou exclusivamente sobre o uso da maconha, indicando a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006), que define como crime o porte de drogas para uso pessoal. A análise do voto será feita com base no documento intitulado “Anotações para o voto oral do Ministro Luís Roberto Barroso”, disponibilizado pelo próprio ministro e amplamente divulgado na internet nos dias posteriores à sessão em que foi apresentado o voto. O documento conta com todos os argumentos analisados pelo ministro, assim como com a ementa do voto realizado. A escolha deste voto para os fins do artigo baseia-se na grande repercussão e atualidade do caso, que evidencia o impacto (jurídico e social) decorrente dos quatro pontos de discussão que pretendemos explorar no item a seguir.

5. O Caso da descriminalização das drogas (RE 635659) 5.1 Contextualização do caso A matéria chegou ao STF por meio do Recurso Extraordinário 635659, impetrado pelo Defensor Público do Estado de São Paulo, contrariando decisão do Colégio Recursal do Juizado Especial Cível de Diadema/SP. O recorrente procura a declaração de inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas), por considerar que tal artigo violaria os princípios da intimidade, autonomia privada e lesividade.

5.2 Análise do voto do Ministro Luís Roberto Barroso Trata-se de um caso de ativismo em que é possível vislumbrar os quatro pontos de discussão destacados no capítulo anterior, ou seja, a partir do qual podemos extrair indicações de como devem ser tratados estes aspectos, seja diante do ativismo, seja diante da judicialização. Vale frisar que tal caso foi considerado como ativismo baseado na conceituação previamente definida no início do trabalho, levando em consideração, portanto, a interferência na

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atuação de outros poderes por meio da interpretação ampliativa dos poderes do Judiciário e, também, a tentativa de se estabelecer um exclusivismo judicial, ao proferir a última palavra sobre determinado tema.

5.2.1) O Argumento democrático Barroso (2015, p.1) esclarece que o processo em questão trata da descriminalização, e não da legalização da maconha. Dessa forma, não se discute a ilicitude do consumo da droga, mas sim se as medidas aplicadas diante desta conduta continuarão a ser penais ou se serão substituídas por outros instrumentos, como sanções administrativas. Quer dizer, logo de início já vislumbramos o ponto 1 de conflito: o argumento democrático. É legítimo que o STF, a partir deste julgamento, possa alterar a medida aplicável ao ilícito penal previsto pelo legislador? Afinal, embora esteja claro que o julgamento de constitucionalidade das leis está previsto dentro das atribuições do STF, não haveria o risco de uma invasão no Poder Legislativo quando o Supremo ultrapassa a vontade do legislador democraticamente eleito e, ainda que de maneira embasada, substitui a representação da “vontade do povo” por nova interpretação “técnica” da questão? No caso vislumbrado, percebemos claramente a fluidez da limitação da divisão dos poderes. Sendo este um julgamento de inconstitucionalidade, o STF não ultrapassa o seu natural âmbito de atuação: zelar para que a norma penal avaliada não desafie os fundamentos constitucionais é uma atuação legítima do Supremo. Indicar qual instrumento deveria substituir a pena atualmente prevista, talvez nem tanto. Afinal, o ato criativo da lei é função característica do poder Legislativo. Outro argumento é o citado pelo próprio Barroso (2015, p.2) em suas anotações: a interpretação constitucional pautada na garantia dos direitos fundamentais é oponível às maiorias políticas, ou seja, ainda que destoe do entendimento popular (e, portanto, da atuação de seus representantes), não deixa de ser legítima. Logo, ao prever medidas alternativas para o usuário, Barroso não estaria extrapolando a divisão de poderes e nem desrespeitando o argumento da legitimidade democrática.

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Por outro lado, é essencial aplicar ao caso alguns apontamentos feitos por Waldron. A descriminalização do uso e porte de drogas é uma questão controversa e alvo de muitos debates ao redor do mundo; a questão tratada se encontra, portanto, dentro da discussão apontada por Waldron quanto à discordância sobre direitos na sociedade. Logo, não cabe ao Judiciário decidir qual dos lados discordantes (ambos embasados em normas constitucionais e amplamente defendidos por diversos setores da sociedade) seria o correto, uma vez que isso seria se opor à decisão do legislador que já havia definido sua posição no debate. O Judiciário, assim, avançaria mais uma vez às suas competências, estabelecendo o exclusivismo judicial e decretando a última palavra. Ademais, a interferência (ilegítima) do Judiciário evidencia-se no momento em que o Ministro propõe a adoção de um critério objetivo que sirva como distinção entre o uso e o tráfico. Neste ponto, propõe que quem esteja portando até 25 gramas da droga seja considerado usuário e não traficante. Ora, é claro que o STF tem o papel de aferir a constitucionalidade das leis, no entanto, jamais deve ter a pretensão legislativa, o que ocorre ao estabelecer um limite que o legislador em nenhum momento previu. Para além disso, ressalta-se que o Ministro, em instante algum, admitiu estar transbordando sua área de atuação; pelo contrário, garantiu durante seu voto que estaria dentro da mais restrita área de ação judicial. Sendo assim, reforça-se o ponto levantado por Waldron de que o Judiciário procura sempre dissimular suas atuações legislativas, o que abre espaço, como anteriormente frisado, para atuações abusivas e restritivas de direitos por parte desse poder.

5.2.2 A Capacidade do judiciário Os dados trazidos por Barroso (2015, p.3-7) combatem o questionamento acerca da capacidade do Judiciário para tratar de um caso tão específico. Este tipo de caso exige a incorporação de conhecimentos externos aos jurídicos para a elaboração de uma decisão justa. As anotações do ministro caminham neste sentido ao apontarem para o fracasso da guerra às drogas em outros países, conclusão corroborada por três convenções da ONU. Além disso, Barroso destaca a importância de levar em conta o contexto brasileiro: o ministro não apenas incorpora a compreensão das consequ-

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ências das políticas contra drogas adotadas por outros países, mas desde o princípio entende que tais experiências devem ser vistas à luz da realidade social e econômica do Brasil. Isto inclui, portanto, pontos importantes como a neutralização do poder do tráfico, o questionamento acerca do modo de aplicação do Direito Penal no país (que mira em classe e cor específicas) e o tratamento médico do usuário. Não obstante, é possível concordar que, assim como o Ministro, ao preparar seu voto, vale-se de análise e estudos aprofundados sobre a temática realizados por especialistas na área, também o tem disponível e o faz o legislador ao propor projeto de lei ou de emenda constitucional. Dessa forma, não há de se falar que o juiz seria detentor de maior conhecimento a respeito da temática, uma vez que ele, assim como o legislador, necessita informações alheias à sua formação.

5.2.3 O Direito à autonomia Ao tratar do direito fundamental à privacidade, Barroso (2015, p.7) afirma que deve ser preservado este espaço na vida do indivíduo em que o Estado (ou mesmo outros indivíduos) não possam interferir sem maiores justificativas. Se os hábitos pessoais do sujeito não afetam a esfera jurídica de terceiro, não há justificativa para que sejam regulados. O ministro segue no mesmo tom ao tratar especificamente sobre a autonomia. Criminalizar o uso da maconha corresponde à uma ingerência indevida na esfera privada, desrespeitando, portanto, um direito fundamental. O indivíduo perde, neste caso, parcela importante do direito geral à autonomia, que, como explicado por Alexy, fundamenta todos os outros direitos – inclusive os que permitem o exercício da cidadania. Novamente, evidencia-se um ponto de divergência com o pensamento de Waldron, visto que, ainda que se concorde com a necessidade de garantia do direito à autonomia, o neozelandês entende que esta deve (e será) garantida pelo legislador, não havendo necessidade de interferência do Judiciário. Sendo assim, é essencial apontar que o Legislativo já havia tomado sua decisão quanto ao alcance dos limites da autonomia privada, ao estabelecer o artigo 28 da Lei de Drogas, no qual entende que o porte e consumo da

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droga, especificamente da maconha (pois esta é a tratada no voto), causariam tamanho dano ao Estado e ao coletivo, que permitiria a restrição da autonomia do indivíduo. No entanto, o STF, caso confirme e siga a linha de pensamento exposta no voto de Barroso, apresenta-se como contrário à definição de autonomia dada pelo legislador, sentindo-se na liberdade de impor sua definição do que seria o direito à autonomia.

5.2.4 O Significado de democracia Há, então, uma clara ligação com o significado da democracia: ainda que se entenda a postura do STF neste caso como, em alguns pontos, invasão ao poder legislativo, tal extrapolação seria justificada com base na garantia do real exercício democrático. Quer dizer, em uma democracia efetiva, não faz sentido que o indivíduo tenha uma esfera tão íntima criminalizada pelo Estado e se, diante disso, o Legislativo permanece omisso, configura-se legítima a atuação do STF para a garantia do caráter democrático do nosso governo. Todavia, deve-se tomar cuidado, principalmente, com a forma como se dá a interferência, ainda mais quando ela se apresenta embasada na suposta técnica jurídica detida pelo Judiciário. Os juízes tendem a dissimular sua alteração da lei, que pode passar despercebida pela população e deixar aberta a possibilidade de quaisquer alterações futuras pelos julgadores.

Conclusão Os argumentos apresentados sugerem que uma alternativa viável seria o esgotamento dos recursos legislativos para que, então, fosse legítima a interferência do Judiciário em casos como o analisado. As fronteiras entre o âmbito de atuação dos poderes são maleáveis, desde que fundadas na real necessidade e adequação neste sentido. A comunicação e coordenação entre os poderes permite não só um sistema democrático mais eficiente, mas também mais justo e representativo. Embora se reconheça a euforia acerca de votos progressistas como o apresentado, não se pode furtar à honesta análise da possibilidade jurídica deste tipo de atuação do Judiciário, atentando, todavia, para que não se converta em um formalismo capaz de minar

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os avanços materiais. Conclui-se, portanto, que seria prematuro, neste momento, condenar ou suportar integralmente alguma das posições apresentadas neste trabalho. Nos parece mais proveitoso reavaliar de forma constante e com base no desenvolvimento dos casos concretos, os argumentos colocados e suas consequências para a democracia e para o alcance dos direitos tutelados. Deixamos, ainda, aberta esta interrogação afim de que estudos complementares possam melhor fundamentar a opção por uma das duas teorias.

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JUDICIÁRIO, VETO PLAYERS E CAPACIDADES INSTITUCIONAIS CONDIÇÕES DE LEGITIMIDADE DA INSERÇÃO DAS CORTES NO PROCESSO DECISÓRIO. Thaís Amoroso Paschoal Lunardi1 Introdução O número de atores que integram o desenho institucional e a relação entre esses atores é fundamental para que se compreenda o processo decisório de um determinado Estado2. Esse arranjo institucional leva em consideração cada uma das instituições políticas que compõem um Estado e sua relação na criação e alteração de políticas públicas. Madison, no Federalista 51, já afirmava ser essencial “traçar de tal maneira a construção do governo, que todas as suas diferentes partes possam reter-se umas às outras nos seus lugares respectivos”3. Matthew Taylor, em obra específica em que analisa a atuação das Cortes no Brasil a partir de alguns exemplos extraídos da jurisprudência do STF, destaca que as evidências sugerem que, ao longo das últimas duas décadas, durante a transição do Brasil para a economia de mercado e o governo democrático, os tribunais ajudaram a definir as alternativas disponíveis para os policymakers, legitimando ou deslegitimando determinadas opções políticas4. Em outro trabalho, em que analisa a implementação de poMestre, doutoranda em Direito das Relações Sociais e integrante do Núcleo de Pesquisa Constitucionalismo e Democracia: filosofia e dogmática constitucional contemporâneas do PPGD da Universidade Federal do Paraná. Professora da Universidade Positivo, em Curitiba, Brasil. Endereço eletrônico: [email protected] 2 George Tsebelis, buscando analisar o funcionamento das instituições políticas, chama de veto players ou atores com poder de veto os “atores individuais ou coletivos cujo acordo é necessário para uma mudança do status quo”. George Tsebelis, Atores com poder de veto – como funcionam as instituições políticas, trad. Micheline Christophe (Rio de Janeiro: FGV Editora, 2009), 41. 3 Alexander Hamilton, John Jay e James Madison. O Federalista, trad. Hiltomar Martins Oliveira (Belo Horizonte: Líder, 2003), 317. 4 Matthew M Taylor, Judging Policy. Courts and Policy Reforms in Democratic Brazil (Stanford University Press, 2008), 3. 1*

https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V01_A03

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líticas públicas no Brasil, o mesmo autor afirma que o STF e o Judiciário como um todo têm impactado de forma significativa nas políticas públicas adotadas pelo Governo Federal, “permitindo que algumas vozes minoritárias sejam incorporadas, ainda que minimamente ou de forma marginal, na elaboração dessas políticas”5. O presente trabalho pretende analisar justamente essa questão. Afinal, em que situações o Poder Judiciário pode ser considerado um veto player, e como essa caracterização contribui para a democracia a partir do exame do critério contramajoritário? O que justificaria essa postura das Cortes em determinados casos se, em outros, assumem postura evidentemente deferente? E, nos casos em que o poder de veto é exercido, pode-se afirmar tratar-se de postura legítima, ou estariam as Cortes invadindo indevidamente uma esfera que, a priori, caberia aos Poderes Legislativo ou Executivo? Em outras palavras, e como indaga Víctor Ferreras Comella, é preciso apurar-se “qué condiciones deben darse para que tengamos razones para crer que los tribunales harán um mejor trabajo que las asambleas legislativas a la hora de extraer las consecuencias normativas de los principios abstractos enunciados en la Constitución”?6 A análise considera dados extraídos das últimas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, no Brasil. Busca-se, ao final, investigar até que ponto a consideração das capacidades institucionais7 do Poder Judiciário pode influenciar na sua adequada caracterização como um veto player.

1. Judiciário como veto player e o paradoxo da democracia A engrenagem institucional de um Estado, em especial no que se refere à criação, alteração e implementação de políticas, tem gerado o que se convencionou chamar de “paradoxo da democracia”. Resumidamente, indaga-se sobre a legitimidade de se retirar algumas decisões da esfera democrática, excluindo-as da apreciação popular e transferindo-as para um órgão que, em última análise, apresentará o significado das normas constitucionais, fixando, Matthew M. Taylor, “O Judiciário e as Políticas Públicas no Brasil”, Revista de Ciências Sociais 50 (2007): 235. 6 Victor Ferreres Comella, Una defensa del modelo europeo de control de constitucionalidade (Madrid: Marcial Pons, 2011), 68. 7 Cass R Sustein and Adrian Vermeule, “Interpretation and Institutions”, Michigan Law Review 101 (2003): 885-951. 5

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assim, as pautas de conduta. Haverá, portanto, questões politicamente decidíveis, que, contudo, não poderão ser decididas democraticamente. Como ressalta Michelman, “o princípio do constitucionalismo requer que algumas escolhas sobre as leis de feitura das leis sejam colocadas fora do alcance das deliberações democráticas”, sendo a lei básica intocável pelas políticas majoritárias8. Trata-se, portanto, de um espaço que deve ser preenchido pelo Poder Judiciário. O problema surge quando se questiona a adequação dessa tomada de decisões ao ideal democrático, o que pode demonstrar que, à primeira vista, o atendimento a esta premissa do Estado de Direito poderia implicar a invasão, pelo Poder Judiciário, de um espaço que, a priori, deveria ser ocupado pelo Legislativo. Questiona-se, em síntese, como conciliar a democracia com as limitações impostas por um Estado de Direito que, em última análise, impõe limites à tomada de decisões pela maioria. Ou, ainda: como outorgar ao Poder Judiciário a última palavra sobre o que é o Direito sem que se prescinda o ideal democrático. Partindo da teoria kelseniana acerca do Tribunal Constitucional como legislador negativo, Rodrigo Brandão destaca a necessidade de que “se perca o medo de admitir-se que o STF, em um número razoável de casos, atua como legislador positivo, e mesmo que ele pode fazê-lo em determinadas situações sem que haja necessária afronta ao princípio da separação de poderes”9. De fato, a discussão sobre o que se convencionou chamar de “paradoxo da democracia” comumente resulta no confronto entre ativismo e autocontenção judicial. Em outras palavras: ao agir de forma ativista na solução dos problemas que lhe são apresentados, o Supremo Tribunal Federal ultrapassa os limites de sua função constitucional, imiscuindo-se num campo em que somente a soberania popular poderia atuar? Ou, na realidade, trata-se de postura necessária à salvaguarda dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal?

Jorge Reis Novais, defensor do constitucionalismo a

Frank. I. Michelman, Excerpts from Brennan and democracy, (Princeton University Press, 1999), 2. 9 Rodrigo Brandão, “Aplicação direta de princípios constitucionais, ativismo judicial e superação do dogma do ‘legislador negativo’”, in Direitos fundamentais e jurisdição constitucional, ed. Clèmerson Merlin Clève e Alexandre Freire (São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014), 775. 8

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partir da ideia dos direitos fundamentais como “trunfos contra a maioria”, fundamento para a jurisdição constitucional, procura justificar o papel dos Tribunais Constitucionais na revisão das leis editadas pelo Legislativo: “As entorses às regras democráticas e ao princípio da igualdade de participação política que inevitavelmente ocorrem quando se atribui a uma elite judicial o poder de invalidar as decisões da maioria democraticamente legitimada pelo voto popular só encontram justificação adequada quando simultaneamente concebemos os direitos fundamentais como garantias jurídico-constitucionais furtadas à livre disponibilidade da maioria democrática e que, por isso, carecem de ser protegidas por um poder independente”10.

Para este autor, “dar à maioria democrática a possibilidade de determinar, em última instância, a força concreta de resistência de um direito fundamental seria subverter as regras do Estado de Direito e pôr em causa a própria ideia de direitos fundamentais” 11. A “maioria”, no caso, de acordo com sua concepção, seria, portanto, adversária dos direitos fundamentais, o que indicaria uma atuação mais acentuada das Cortes Constitucionais como veto players.

2. Supremo Tribunal Federal e função contramajoritária Segundo estatística elaborada pelo próprio STF, a Corte julgou um total de 2.677 ações diretas de inconstitucionalidade, com decisão final12. Desse total: 973 ações não foram conhecidas (36,35%); 182 foram julgadas parcialmente procedentes (6,8%); 500 foram julgadas improcedentes (18,68%); e 692 foram julgadas procedentes (25,85%)13. Nas ações em que o pedido foi julgado procedente, houve significativo reconhecimento de inconstitucionalidade formal, em decorrência de usurpação de competência na edição de leis estaduJorge Reis Novaes, Direitos fundamentais e justiça constitucional (Coimbra Editora, 2012), 138. 11 Novaes, Direitos fundamentais, 174. 12 Dados atualizados até 14.12.2015. 13 Fonte: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=adi 10

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ais14, havendo poucas ações que, tendo por objeto legislação editada pelo Congresso Nacional, invalidaram essas normas por inconstitucionalidade material. Dos casos em que se declarou a inconstitucionalidade de legislação federal por vício material, poucos revelam propriamente o exercício de uma função contramajoritária. Ou seja, em pouquíssimas situações a Corte agiu com vistas à proteção de minorias prejudicadas pela edição de normas pelos representantes da maioria. Um outro detalhe importante: muitas ADIs julgam questões repetitivas, ou seja, declaram inconstitucionais leis estaduais de Estados diversos pelos mesmos fundamentos (em geral, usurpação de competência da União para legislar). A existência de decisões em que efetivamente se exerceu uma função contramajoritária – sobretudo em âmbito federal -, porém, ainda que reduzida, não pode ser desconsiderada. Afinal, ao menos nessas situações, a caracterização do STF como um veto player parece plausível. Trata-se de indicativo de que, em alguns casos, notadamente de violações a direitos das minorias, cabe atribuir à Corte Constitucional o poder de veto. Para ilustrar essas situações, tomou-se como base o julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade em que se reconheceu a inconstitucionalidade de Decreto-Lei do Estado do Rio de Janeiro (Estatuto dos Servidores Civis daquele Estado), “que implica efetiva redução de direitos a pessoas de preferência ou concreta orientação homossexual”. Inicialmente proposta e distribuída como ADPF 132, a ação foi recebida como ADI, e julgada em conjunto com a ADI 4277, ambas tendo por objeto a interpretação conforme à Constituição do art. 1723 do Código Civil, constantemente violado por normas regulamentares e decisões do Poder Judiciário local. Vale destacar trecho do voto proferido pelo relator, Min. Ayres Britto: “Bem de todos, portanto, constitucionalmente versado como uma situação jurídica ativa a que se chega pela eliminação do Foi o que ocorreu, por exemplo, nas ADIs 5163; 5130; 5028; 4947; 5020 e 4965 (propostas, respectivamente, pelos Estados do Piauí e da Paraíba, nas quais se invalidou a resolução 23.389/2013 editada pelo TSE, que definiu a representação dos Estados e do DF na Câmara dos Deputados); 4992; 4925; 4734; 4701; 4639; 4587 (em que se declarou inconstitucional dispositivo do regimento interno da Assembleia Legislativa de Goiás que previu o pagamento aos parlamentares de parcela indenizatória em razão de convocação extraordinária); 4478; 4457; 4433; 4391; 4369; 4276; 4232; 4161; 4154; e 4083. 14

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preconceito de sexo. Se se prefere, “bem de todos” enquanto valor objetivamente posto pela Constituição para dar sentido e propósito ainda mais adensados à vida de cada ser humano em particular, com reflexos positivos no equilíbrio da sociedade. O que já nos remete para o preâmbulo da nossa Lei Fundamental, consagrador do “Constitucionalismo fraternal” sobre que discorro no capítulo de nº VI da obra “Teoria da Constituição”, Editora Saraiva, 2003. Tipo de constitucionalismo, esse, o fraternal, que se volta para a integração comunitária das pessoas (não exatamente para a “inclusão social”), a se viabilizar pela imperiosa adoção de políticas públicas afirmativas da fundamental igualdade civil-moral (mais do que simplesmente econômico-social) dos estratos sociais historicamente desfavorecidos e até vilipendiados. Estratos ou segmentos sociais como, por ilustração, o dos negros, o dos índios, o das mulheres, o dos portadores de deficiência física e/ou mental e o daqueles que, mais recentemente, deixaram de ser referidos como “homossexuais” para ser identificados pelo nome de “homoafetivos”. Isto de parelha com leis e políticas públicas de cerrado combate ao preconceito, a significar, em última análise, a plena aceitação e subsequente experimentação do pluralismo sócio-político-cultural.

Merece destaque, ainda, o voto proferido na ocasião pelo Min. Luiz Fux, no qual se dá destaque ao exercício da função contramajoritária da Corte: “Mesmo que já dito antes, não é demais registrar novamente que o tema revolve preconceitos ainda muito disseminados e arraigados na sociedade brasileira. Independentemente do resultado deste julgamento, a sua repercussão social será imensa e são, em boa parte, imprevisíveis as suas consequências. Mas assim será toda vez que as liberdades essenciais dos indivíduos – em especial aquelas ligadas à sua identidade – forem alvo de ameaças do Estado ou dos particulares e o Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição, for convocado a assegurar a proteção os direitos fundamentais. Particularmente nos casos em que se trata de direitos de minorias é que incumbe à Corte Constitucional operar como instância contramajoritária, na guarda dos direitos fundamentais plasmados na Carta Magna em face da ação da maioria ou, como no caso em testilha, para impor a ação do Poder Público na promoção desses direitos”.

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O Supremo Tribunal Federal, assim, julgou procedentes os pedidos por unanimidade, determinando que qualquer interpretação do art. 1723 do Código Civil seja conforme à Constituição Federal, reconhecendo às uniões homoafetivas as mesmas regras e consequências da união heteroafetiva. Um detalhe, porém, merece destaque. Trata-se da figura do backlash15, que comumente se destaca nas situações em que a decisão da Corte no exercício da função contramajoritária gera o que se chama de “reação violenta”, ainda que pela via da correção legislativa, preservando-se, assim, a vontade da maioria na alteração do status quo. A este respeito, vale lembrar que o Estatuto da Família (PL 6583/2013) busca definir a família como núcleo formado pela união entre homem e mulher, caracterizando evidente reação do Legislativo à posição do Poder Judiciário no que se refere à união homoafetiva, manifestada no caso analisado. Algo muito parecido com o que ocorreu no caso da contribuição para custeio de iluminação pública, que igualmente caracterizou o fenômeno da correção de decisão judicial pela via legislativa. Em linhas muito gerais, o STF reconheceu, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 233.332, a inconstitucionalidade da cobrança, pois não se trata de taxa, já que não corresponde à contraprestação de serviço público específico e divisível. Porém, em 2002, o Poder Legislativo editou a Emenda Constitucional n. 39/02, acrescentando a contribuição dentre as figuras tributárias previstas na Constituição Federal, incluindo o art. 149-A16. No julgamento do Recurso Extraordinário n. 573.675/SC, a EC foi considerada constitucional pelo STF. Em resumo, portanto, pode-se concluir que o STF, por vezes, atua como um veto player, em especial quando exerce a função contramajoritária ao invalidar leis editadas pelo Congresso Nacio“The political grammar of backlash is similar. Backlash expresses the desire of a free people to influence the contente of their Constitution, yet backlash also threatens the Independence of law. Backlash is where the integrity of the rule of law clashes with the need of our constitutional order for democratic legitimacy”. Reva Siegel e Robert Post, “Roe Rage: Democratic Constitutionalism and Backlash”, Harvard Civil Rigths-Civil Liberties Law Review 42 (2007): 376. 16 “Art. 149-A Os Municípios e o Distrito Federal poderão instituir contribuição, na forma das respectivas leis, para o custeio do serviço de iluminação pública, observado o disposto no art. 150, I e III. Parágrafo único. É facultada a cobrança da contribuição a que se refere o caput, na fatura de consumo de energia elétrica”. 15

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nal em prejuízo aos interesses da minoria. Em algumas situações, porém, o exercício desse poder de veto provoca um backlash, sobrevindo nova legislação que altera o status quo. No caso da contribuição para custeio de iluminação pública, essa reação do Legislativo provocou manifestação do STF no sentido de acompanhar a alteração implementada pelo Legislativo, sendo a Corte, nesse caso, considerada um ator absorvido pelo Legislativo.

3. Judiciário, processo decisório e capacidades institucionais: um fundamento para a superação da tensão entre constitucionalismo e democracia. Não há, propriamente, um déficit democrático ao se atribuir ao Judiciário relevante posição na definição e concretização das normas constitucionais, ainda que, para tanto, em determinadas situações, a decisão judicial seja resultado de uma postura menos deferente. É preciso, porém, averiguar-se os casos em que, adotada essa postura, estará a Corte invadindo indevidamente uma esfera que, a priori, caberia aos Poderes Legislativo ou Executivo. Como explica Jorge Reis Novais, a defesa da justiça constitucional contra a objeção democrática pode surgir também a partir de uma visão minimalista e procedimentalista, voltada à proteção das minorias e a garantir as “condições da democracia”, devendo os juízes constitucionais ater-se à “garantia das pré-condições procedimentais da comunicação e deliberação democráticas”, além de garantir a “desobstrução dos canais da livre comunicação e de reforço da representação e da participação políticas17. Embora as teorias procedimentalistas pareçam ser mais defensáveis na solução da suposta tensão entre constitucionalismo e democracia – na medida em que, embora com uma pretensão quase inalcançável de universalidade, apresentam premissas que podem contribuir para a legitimidade do procedimento da tomada de decisões judiciais18 -, Novais. Direitos fundamentais, 144. Encontramos em Jürgen Habermas, por exemplo, a ideia de que a prática de uma decisão judicial, para ter uma aceitabilidade racional, deve pautar-se na moral, sob o ponto de vista dos participantes, a partir de uma teoria da argumentação que leve em conta o discurso jurídico procedimentalista. O problema da racionalidade da jurisprudência consistiria, assim, na resposta à questão sobre “como a aplicação de um direito contingente pode ser feita internamente e fundamentada racional17 18

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todas essas teorias estão voltadas a um nível ideal, que não se pode, sequer, ter a pretensão de se alcançar. Assim, parece que a resposta à suposta tensão entre constitucionalismo e democracia – ou, mais propriamente, a convivência harmoniosa entre a revisão judicial e o processo democrático – será encontrada no ponto de equilíbrio entre as habilidades e limitações de cada um dos poderes, à luz das situações concretas que lhes são apresentadas para solução, bem como dos resultados que produzem sobre as instituições que são alcançadas pelas decisões tomadas nesse processo. Cass Sunstein e Adrian Vermeule, nesse sentido, construíram a teoria das “capacidades institucionais”19. Em síntese, pretende-se analisar “como o exercício dessas capacidades se desenvolve em arranjos marcados pela pluralidade de atores judiciais e não judiciais, cada um com suas diferentes capacidades, recursos e mecanismos para fazer escolhas”. Assim, e a partir das capacidades institucionais do Judiciário e das instituições possivelmente afetadas por suas decisões, “busca-se determinar os limites da atuação legítima das cortes em situações de efetiva ou potencial tensão interinstitucional”20. Desse modo, a partir da consideração das habilidades e limitações de cada poder e sua função no desenho institucional (atribuída originalmente pela Constituição Federal), e desde que sem qualquer desconsideração do direito positivo, poderão ser estabelecidos critérios mais concretos e seguros para se definir o papel a ser adotado pelo Judiciário na intepretação das normas constitucionais, sem que, com isso, se viole ou despreze as funções dos demais poderes e as premissas básicas da democracia. De outro lado, “resolver tensões interinstitucionais entre o Legislativo e o Judiciário apelando para classificações rígidas como ‘questões de direito/judiciáveis’ e ‘questões políticas’ ou ‘questões de princípio’ e ‘questões de política’” não se revela um bom uso do mente no plano externo, a fim de garantir simultaneamente a segurança jurídica e a correção”. Jürgen Habermas, Direito e democracia – entre facticidade e validade I, trad. Flávio Beno Siebeneichler (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997), 247) 19 Sunstein and Vermeule. Interpretation, 885-951. 20 Diego Werneck Arguelhes e Fernando Leal, “O argumento das ‘capacidades institucionais’ entre a banalidade, a redundância e o absurdo”, in Tratado de direito constitucional: Constituição no século XXI, v. 2, ed. Felipe Dutra Asensi e Daniel Giotti de Paula (Rio de Janeiro: Elsevier, 2014), 401.

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argumento das capacidades institucionais, significando, na verdade, o recurso “a uma estratégia de argumentação tipicamente não orientada para a comparação das capacidades de diferentes e concretos atores institucionais”21.

Assim, pouco importa se os juízes são eleitos ou nomeados por outros poderes, ou se o Judiciário teria menos capacidade para decidir questões políticas. A partir da teoria das capacidades institucionais, os juízes poderiam decidir até mesmo com base em argumentos de política, quando, à luz do desenho institucional, verificar-se que possui o Judiciário melhor capacidade para atuar em determinada situação. Sua atuação como veto player nessas situações, portanto, se justificaria a partir de sua capacidade institucional, e nada teria de ilegítima. Conrado Hübner Mendes, destacando que o papel da teoria é “fixar valores e parâmetros que auxiliem no julgamento e nas reformas das instituições reais”, conclui que a definição sobre quem deve decidir “não é questão de hermenêutica constitucional, mas de desenho institucional”, na medida em que “boas técnicas de interpretação constitucional não resolvem qualquer objeção democrática a qualquer instituição”22. Pensar em capacidades institucionais significa, dessa forma, levar a sério as limitações e qualificações de uma determinada instituição no desenvolvimento de análises estáticas e dinâmicas relacionadas ao exercício de suas funções23, com uma permanente cooperação entre os poderes, pressupondo “um modelo de ‘concorrência harmônica’ entre elas”. Assim, “apesar dos inevitáveis desacordos, as diferentes instituições que atuam em um mesmo arranjo estão comprometidas com a realização, na maior medida possível, de um ou mais objetivos comuns determinados pela ordem constitucional em que atuam24. 21

Arguelhes e Leal. O argumento das capacidades institucionais, 401. Conrado Hübner Mendes, Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação (São Paulo: Saraiva, 2011), 24. 23 Arguelhes e Leal, O argumento das capacidades, 423. 24 Arguelhes e Leal, O argumento das capacidades, 408. 22

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Enquanto o Judiciário teria uma preferência prima facie nas decisões sobre direitos fundamentais, ao Legislativo caberia a tomada de decisões envolvendo políticas públicas. A este respeito, Rodrigo Brandão defende a adoção de um modelo dialógico no que se refere às decisões do Judiciário, Legislativo e Executivo. Ao Legislativo, por exemplo, caberia a edição de Emendas Constitucionais que implicassem a superação da orientação estabelecida pelo Judiciário25. Segundo Rodrigo Brandão, na interpretação judicial são “desconsiderados os limites ‘externos’ à atuação do Judiciário (também denominados políticos ou institucionais), notadamente a possibilidade de reação dos demais ‘poderes’ a decisões judiciais indesejadas”, destacando haver “condicionantes políticas à expansão do Poder Judiciário, assim como há limites políticos à sua atividade”, caminhando, assim, na direção do desenvolvimento de sua teoria dos diálogos constitucionais26.

Conrado Hübner Mendes, acerca da necessária interação entre as instituições (sob o olhar do que chama de “ângulo competitivo da interação”), destaca a busca por maximizar seus “desempenhos deliberativos”, que, segundo sua concepção, “é o que podemos esperar de melhor de uma democracia organizada sob o princípio da separação de poderes”, na medida em que “estimula uma competição pelo melhor argumento e traz vibração ao regime”, tornando possível “pensar na legitimidade das cortes e parlamentos de maneira contextual e comparativa”27. O diálogo, assim, impregnado na prática decisória dos poderes, ainda que resultando em divergência, proporcionará um engajamento no exercício da persuasão, o que contribui para a democracia, pois “busca alimentar uma cultura pública de maior densidade deliberativa”28. Para José Ribas Vieira, o equívoco na interpretação constitucional pelo Judiciário resultaria no “controle pelos poderes políticos, fazendo surgir, assim, a presença do diálogo”29.

25

Rodrigo Brandão, Supremacia Judicial versus Diálogos Constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição? (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012). 26 Brandão, Supremacia, 64/65. 27 Hübner Mendes, Direitos fundamentais, 203/204. 28 Hübner Mendes, Direitos fundamentais, 203/204. 29 José Ribas Vieira, Diálogos institucionais e ativismo (Curitiba: Juruá, 2010), 72.

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Ao mesmo tempo, a atuação contramajoritária do Judiciário faz com que os demais atores políticos busquem comportar-se estrategicamente em relação a essas decisões, antecipando-se e evitando, assim, posterior declaração de invalidade de suas decisões e influenciando, desse modo, a produção de políticas30.

Conclusão A atuação das Cortes como veto players pode ser justificada a partir da teoria das capacidades institucionais. Assim, considerados inúmeros fatores que contribuem para a maior efetividade dos direitos nos casos concretos, a consideração das capacidades institucionais dos atores poderá dar uma direção segura quanto à legitimidade das decisões, possibilitando a adequada interação dos atores integrantes do desenho institucional.

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O ATIVISMO JUDICIAL NA TEORIA DE RONALD DWORKIN Marcos Porto Barbosa1 Introdução A questão do ativismo judicial é um tema atual nas pesquisas acadêmicas e nas discussões jurídicas e versa sobre o papel do Poder Judiciário. De fato, os estudos sobre o ativismo judicial avançaram em maior escala em campos afetos ao Direito, apesar de não jurídicos propriamente ditos, como as Ciências Humanas, em especial a Sociologia, a Filosofia e a Ciência Política. Tais estudos acabaram por gerar reflexos na Ciência Jurídica, influenciando a Filosofia do Direito, a Sociologia do Direito, a Hermenêutica Jurídica, a Teoria da Constituição e a Teoria do Direito. O ativismo judicial, desde que não se deixe de lado a interdisciplinaridade a ele inerente, está inserido no campo de investigação do Direito Constitucional. Dessa forma, o ativismo judicial passou a instigar o meio acadêmico, o que propiciou a realização de estudos e reflexões sobre o tema. O ativismo judicial é um assunto que versa sobre o papel do Judiciário em um Estado Democrático de Direito. Ele deve ser compreendido como a ampliação da esfera de atuação do Poder Judiciário, que pode resultar na invasão das atribuições dos outros Poderes. Nesse sentido, os magistrados, no exercício da jurisdição constitucional, passam a atuar ativamente para a preservação da Constituição e a concretização dos direitos fundamentais. Consequentemente, eles acabam por deliberar sobre questões de natureza política, que deveriam ficar a cargo dos Poderes Executivo e Legislativo. Com isso, o Judiciário deixa de apreciar questões estritamente jurídicas para decidir sobre controvérsias políticas. É o que se denomina de judicialização da política. Vianna et al.2 aduzem que o princípio democrático implica Pós-graduado em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro. Advogado público. Brasil. Contato: [email protected]. 2 VIANNA, Luiz Werneck et al. A judicialização da política e das relações sociais 1

https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V01_A04

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uma crescente institucionalização do Direito na vida social, invadindo espaços que até então eram inacessíveis a ele, como algumas esferas da vida privada. Essa noção de ativismo judicial é construída pelos autores a partir de resgate histórico. Com a publicização das relações de caráter privado, o Direito aproximou-se do ideal de Justiça, tirando a exclusividade do tema da justiça social, restrita antes ao Parlamento e à sociedade civil. Dessa forma, redefiniu-se o papel do Judiciário em razão de uma agenda igualitária do Estado de Bem-estar Social, cabendo a ele o controle político. Com isso, chama-se o Judiciário para exercer as funções de freio e contrapeso no interior do sistema político, de forma a compensar a “tirania da maioria”. Considera-se que a atuação do Poder Judiciário em esfera eminentemente política ganha relevo tendo em vista a consolidação de um Estado Democrático de Direito. Diante desse paradigma estatal, o Poder Judiciário se torna mais ativo para efetivar os direitos fundamentais. Desta maneira, visa-se à consolidação da cidadania por meio da atuação do poder Judiciário. Portanto, diante do tema do ativismo judicial, em uma abordagem interpretativa, faz-se necessário investigar o tema a partir da teoria construída por Ronald Dworkin, jusfilósofo americano com uma vasta obra sobre interpretação, ética, moralidade e valor no Direito. Para tanto, faz-se fundamental o resgate das principais construções teóricas do autor que podem se aproximam de reflexões sobre o ativismo judicial. O objetivo do presente artigo é identificar na teoria de Ronald Dworkin pontos de aproximação com tema do ativismo judicial, reconstruindo as principais ideias do autor sobre o papel dos magistrados no processo interpretativo de jurisdição constitucional. A fim de se compreender como o conceito de ativismo judicial pode ser incorporado e compreendido à luz da teoria de Ronald Dworkin, é preciso fazer considerações sobre as ideias de argumentos de política e argumentos de princípio, bem como sobre o método interpretativo utilizado pelos magistrados para julgar casos difíceis. Essas reflexões sobre o assunto constam da obra “Levando os Direitos a Sério” 3, em que Dworkin discorre sobre a atuação dos juízes em casos difíceis, quando eles devem se servir de argumenno Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. 3 DWORKIN, Ronald. Casos Difíceis. In: DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Matins Fontes, 2002. Cap. 4. p. 127-203.

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tos de princípio para fundamentarem as suas decisões. Ademais, na obra “Justice for Hedgehogs”, Dworkin analisa o tema da responsabilidade moral, que serve de substrato para a compreensão que os magistrados possuem uma obrigação de buscarem, da melhor forma possível, encontrar o direito das partes. Dessa forma, iremos listar elementos da teoria de Dworkin que buscam compreender o papel do Poder Judiciário. Em um primeiro momento, será resgatada a crítica de Dworkin ao modelo positivista de interpretação e à possibilidade de aplicação da discricionariedade judicial. Em seguida, serão diferenciados argumentos de política a argumentos de princípio. Após isso, serão exploradas as suas principais objeções ao ativismo judicial, bem como a refutação dessas críticas por Dworkin. Depois, será problematizada a aplicação da moralidade pessoal frente a teoria dos direitos, enumerando-se cada uma das três principais críticas a essa teoria. Por derradeiro, será abordado o conceito e as implicações da responsabilidade moral.

1. A superação do modelo positivista A fim de se compreender como o conceito de ativismo judicial pode ser incorporado e compreendido à luz da teoria de Ronald Dworkin, é preciso fazer considerações sobre as ideias de argumentos de política e argumentos de princípio, bem como sobre o método interpretativo utilizado pelos magistrados para julgar casos difíceis. Essas reflexões sobre o assunto constam da obra “Levando os Direitos a Sério” 4, em que Dworkin discorre sobre a atuação dos juízes em casos difíceis, quando eles devem se servir de argumentos de princípio para fundamentarem as suas decisões. Dworkin busca fazer uma crítica ao modelo positivista de interpretação e decisão, propondo um modelo alternativo que não recai na discricionariedade judicial positivista diante de situações de indeterminação da lei. Ora, considera-se que, para a teoria positivista, quando um caso não pode ser submetido a uma regra de direito clara, estabelecida previamente, o juiz é dotado de poder discricionário para decidir o caso. Nessa situação, o magistrado cria um novo direito jurídico, que se aplica retroativamente ao caso DWORKIN, Ronald. Casos Difíceis. In: DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Matins Fontes, 2002. Cap. 4. p. 127-203.

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analisado. Todavia, ao atuar dessa forma, o magistrado estaria verdadeiramente legislando, isto é, criando uma nova relação jurídica de direitos e deveres que não fora prevista pelo legislador, em uma posição ativista que extrapola os seus limites institucionais. A seu turno, Dworkin procura justamente refutar essa perspectiva positivista de atuação discricionária dos magistrados diante da falta de previsão legal para uma situação concreta. Para tanto, o jusfilósofo concebe que há uma resposta única correta para os casos difíceis, isto é, aqueles em que não há uma regra de direito clara e preestabelecida pelo legislador para a definição de um caso concreto. Essa ideia de resposta única para o caso difícil parte da construção de uma teoria dos direitos, que indica que as partes possuem o direito a uma resposta correta, mesmo diante de casos difíceis, que consiste na afirmação ou negação de um direito subjetivo no caso concreto. A busca dessa resposta única não se encontra fundada na discricionariedade do legislador, como uma teoria positivista poderia supor. Em realidade, Dworkin diminui a margem de ativismo judicial ao limitar a possibilidade de decisão do julgador à busca da resposta correta de modo fundamentado e justificado. É nesse sentido que afirma o autor: Em minha argumentação, afirmarei que, mesmo quando nenhuma regra regula o caso, uma das partes pode, ainda assim, ter o direito a ganhar uma causa. O juiz continua tendo o dever, mesmo nos casos difíceis, de descobrir quais são os direitos das partes, e não de inventar novos direitos retroativamente. Já devo adiantar, porém, que essa teoria não pressupõe a existência de nenhum procedimento mecânico para demonstrar quais são os direitos das partes nos casos difíceis. Ao contrário, o argumento pressupõe que os juristas e juízes sensatos irão divergir frequentemente sobre os direitos jurídicos, assim como os cidadãos e homens de Estado divergem sobre os direitos políticos. Este capítulo descreve as questões que os juízes e juristas têm que enfrentar, mas não garante que todos eles dêem a mesma resposta a essas questões.5

Depreende-se que Dworkin concebe que não há um proceDWORKIN, Ronald. Casos Difíceis. In: DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Matins Fontes, 2002. Cap. 4. p. 127-128.

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dimento preestabelecido para se obter a resposta correta em casos difíceis. Essa ausência de procedimento prévio para a determinação dos direitos não significa que eles não existem, pois isso significaria aceitar a polêmica tese da filosofia que nenhuma proposição pode ser verdadeira a não ser que possa ser demonstrada. Quando aplicada aos direitos jurídicos, essa tese parece não se revelar adequada, pois leva a um indefinismo decisional. Em outros termos, a verdade não necessita de demonstração para que sua existência seja possível. Em um paralelo, o mesmo ocorre com os direitos jurídicos nos casos difíceis. Cumpre ressaltar que, anteriomente ao livro “Levando os Direitos a Sério (1978), Dworkin havia publicado o trabalho “O Modelo de Regras (1967)”, posteriormente republicado como o capítulo “O Modelo de Regras I””. Em tal trabalho, Dworkin rejeitara o positivismo jurídico como capaz de explicar a realidade jurídica, com fulcro na ideia que em comunidades jurídicas complexas as pessoas que discutem o conteúdo do Direito se baseiam em considerações morais. Como salienta María Lourdes Santos Perez6, a obra de Dworkin colocou em xeque a teoria positivista como teoria do Direito, ao propor um novo modelo de regras, por meio do verdadeiro ataque mais poderoso que já ocorreu contra o positivismo nas últimas décadas. Para tanto, Dworkin utiliza o instrumental da tese dos direitos, da tese da interpretação e da tese da integridade. Nesse primeiro momento de sua vasta produção acadêmica, Dworkin desenvolve a tese dos direitos para enfrentar o positivismo de Hart. É de se notar que Dworkin procura romper com o modelo de regras positivista, que é apegado às regras jurídicas, a partir de um diálogo com a teoria de Hart. Ao conceber que os princípios são normas jurídicas, assim como as regras, o filósofo destaca que a diferença entre as duas espécies normativas está na natureza lógica. Enquanto as regras seguem a lógica do “tudo ou nada” para sua aplicação, os princípios enunciam uma razão que conduz o argumento a certa decisão, possuindo dimensões de peso e importância. Como expõe Taylisi de Souza Corrêa Leite7, no modelo de regras de Dworkin, a questão principal é a definição de princípio e PEREZ, María Lourdes Santos. El pensamiento de Ronald Dworkin: balance y críticas. Anuario de filosofía del derecho, ISSN 0518-0872, nº 22, p. 319-332, 2005. 7 LEITE, Taylisi de Souza Corrêa. O modelo de regras de Ronald Dworkin. Revista de Estudos Jurídicos UNESP, v. 15, n. 21, 2011 6

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sua diferenciação das regras jurídicas, a partir de uma crítica à regra suprema de reconhecimento de Hart, que seria incapaz de prever todas as possibilidades das decisões judiciais, abrindo margem para a discricionariedade judicial. Dessa forma, Dworkin concebe que as decisões judiciais são e devem ser guiadas por princípios. Reformulando suas palavras, a argumentação no processo jurisdicional devem levar em conta argumentos de princípio, e não argumentos de política. Distanciando-se de Hart, que é favorável à discricionariedade judicial diante de casos difíceis, Dworkin defende a utilização de argumentos morais substantivos. Portanto, Dworkin propõe o reconhecimento dos princípios como verdadeiras normas jurídicas. O autor relembra que tradicionalmente o julgamento deve ficar à sombra da legislação. De fato, ao se ter em mente a teoria clássica da separação das funções estatais, atribui-se a cada um dos conjuntos de órgãos estatais uma função preponderante, cabendo ao Poder Judiciário a função jurisdicional (decidir os direitos nos casos concretos de forma definitiva, pondo fim aos litígios a ele submetidos). Por isso, qualquer atuação do Judiciário em funções legislativas (criação de normas jurídicas gerais e abstratas) seria indevida, pois invade o campo de competência do Poder Legislativo, a que foi atribuída preponderantemente a função legiferante. Nesse lanço, os juízes devem aplicar o direito criado pelo Legislativo, sem criar novos direitos nos casos concretos. Todavia, muitas vezes as práticas jurídicas se revelam diferentes. Isso porque as normas jurídicas são vagas e incompletas, devendo ser interpretadas para a aplicação nos casos submetidos à análise do Judiciário. Diante dessa situação, os juízes, algumas vezes, criam novos direitos, ainda que tenham que agir como se fossem delegados do Legislativo. Isto é, nessa visão os juízes podem até criar novos direitos, desde que legislem da mesma forma que o Legislativo o faria quando estivesse diante do mesmo problema. Contra essa perspetiva de atuação judicial como delegado do Legislativo Dworkin irá se insurgir. Ademais, também se encontra disseminado o entendimento que os juízes devam atuar como legisladores segundos, isto é, em um grau ainda maior de subordinação ao Legislativo. Nessa abordagem, os juízes criam leis de mesma natureza que o Legislativo, por iniciativa própria, criaria se estivesse diante dos mesmos fatos e argumentos. Esse é um grau ainda maior de subordinação porque

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qualquer entendimento que os juízes façam de um caso difícil está subordinado a uma compreensão anterior do legislador. Da mesma forma, Dworkin irá se insurgir contra esse segundo entendimento. De acordo com a teoria dworkiniana, os juízes não legislam diante de casos difíceis. Ou seja, eles não são nem legisladores delegados do Legislativo, nem legisladores segundos. Por isso, Dworkin não concebe que os magistrados se encontrem em uma situação que lhes imponha uma atitude ativista, em sentido pejorativo (invasão de competência do legislativo ao legislar no caso concreto, indo além de decisões políticas já tomadas). Essa ideia que os juízes não legislam no caso concreto deve ser analisada a partir da distinção entre argumentos de princípio e argumentos de política. Toca, então, explicitar essa distinção.

2. Argumentos de princípio e argumentos de política De um lado, os argumentos de política justificam uma decisão política com fulcro na observância de algum objetivo da comunidade como um todo. De outro lado, os argumentos de princípio justificam uma decisão política com espeque na proteção de um direito individual ou de um grupo. É oportuna a lição trazida por Dworkin: Os argumentos de política justificam uma decisão política, mostrando que a decisão fomenta ou protege algum objetivo da comunidade como um todo. O argumento em favor de um subsídio para a indústria aeronáutica, que apregoa que tal subvenção irá proteger a defesa nacional, é um argumento de política. Os argumentos de princípio justificam uma decisão política, mostrando que a decisão respeita ou garante um direito de um indivíduo ou de um grupo. O argumento em favor das leis contra a discriminação, aquele segundo o qual uma minoria tem direito à igualdade de consideração e respeito, é um argumento de princípio. Estes dois tipos de argumento não esgotam a argumentação política Às vezes, por exemplo, uma decisão política, como a de permitir isenções extras de imposto de renda para os cegos, pode ser defendida como um ato de generosidade ou virtude pública, e não com base em sua natureza de política ou princípio. Ainda assim, os princípios e políticas são os fundamentos essenciais para a

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justificação política.8

É possível que alguma política seja justificada com base nos dois tipos de argumento. Um programa que seja basicamente uma questão de política pode se valer de argumentos de princípio para justificar sua formulação específica, ao passo que um programa que dependa basicamente de princípios pode utilizar argumentos de política. Ou seja, os argumentos de princípio e de política estão presentes em diversos tipos de políticas, a depender de sua justificação e dos objetivos pretendidos pelo legislador. É preciso salientar que as decisões judiciais, na teoria de Dworkin, são sempre justificadas com base em argumentos de princípio, ainda que a lei tenha sido promulgada com a justificativa em um argumento de política. Isso ocorre porque no Poder Judiciário as partes buscam fazer valer os seus direitos subjetivos, ainda que eles tenham origem em uma política de geração de benefícios para toda a comunidade. Judicialmente, a decisão judicial vai estar baseada em argumento de princípio, pois ela irá confirmar ou negar algum direito subjetivo às partes que ingressaram em juízo para solucionarem um conflito. Vale refletir se essa conclusão também se aplica aos casos difíceis. Em outros termos, é necessário verificar se diante de casos em que não há uma norma clara e prévia para a solução da controvérsia o magistrado também deve decidir com fundamento em argumentos de princípio. Caso os juízes fossem legisladores segundos, tanto os argumentos de princípios quanto os argumentos de política poderiam ser empregados, pois uma política poderia ter sido concebida em razão de benefícios para toda a comunidade ou de efetivação de direitos subjetivos para os cidadãos. Entretanto, essa não é a tese defendida por Dworkin. O pensador é adepto da compreensão que as decisões judiciais em casos difíceis devem ser fundamentadas em argumentos de princípios, e não de política, a partir de uma perspetiva que utiliza substratos da teoria política e da teoria do direito. Portanto, verifica-se que o ativismo judicial, na teoria de Dworkin, está limitado aos argumentos de princípio, mesmo diante dos casos difíceis, DWORKIN, Ronald. Casos Difíceis. In: DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Matins Fontes, 2002. Cap. 4. p. 129-130.

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o que retira de Poder Judiciário a discricionariedade para legislar ao decidir os casos concretos. Nesse sentido, os magistrados devem buscar os direitos subjetivos das partes, a partir da interpretação, sem que seja necessário se recorrer à inovação legislativa em casos de imprecisão ou indeterminação da norma.

3. Objeções ao ativismo judicial A despeito dessa construção da teoria de Dworkin, é possível identificar duas objeções ao ativismo judicial, no sentido de originalidade, que apontam que a atuação dos juízes deve estar subordinada à legislação. A primeira crítica está centrada na teoria democrática e destaca que os juízes não possuem legitimidade para inovar legislativamente por não terem sido eleitos. Já a segunda crítica faz referência à impossibilidade de aplicação retroativa de uma nova lei, que deveria ocorrer caso os juízes fossem inovadores em suas decisões. Nas palavras exatas de Dworkin: A conhecida história de que a decisão judicial deve ser subordinada à legislação é sustentada por duas objeções à originalidade judicial. De acordo com a primeira, uma comunidade deve ser governada por homens e mulheres eleitos pela maioria e responsáveis perante ela. Tendo em vista que, em sua maior parte, os juízes não são eleitos, e como na prática eles não são responsáveis perante o eleitorado, como ocorre com os legisladores, o pressuposto acima parece comprometer essa proposição quando os juízes criam leis. A segunda objeção argumenta que, se um juiz criar uma nova lei e aplicá-la retroativamente ao caso que tem diante de si, a parte perdedora será punida, não por ter violado algum dever que tivesse, mas sim por ter violado um novo dever, criado pelo juiz após o fato.9

Nesse sentido, esses argumentos levam à conclusão que a decisão judicial deve ser a menos original possível. Apesar disso, Dworkin sustenta que as objeções somente são aplicáveis às decisões judiciais fundadas em argumentos de política e não em argumentos de princípio. DWORKIN, Ronald. Casos Difíceis. In: DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Matins Fontes, 2002. Cap. 4. p. 132.

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De acordo com a primeira crítica, os juízes, como não são eleitos, não detêm legitimidade democrática para criarem novos direitos. Realmente, ao se ter em conta o Direito como política, ganham destaque os objetivos de toda a comunidade. Por isso, as decisões que afetam toda uma comunidade devem ser originárias de um processo político que permita a expressão dos diversos interesses individuais em uma comunidade. Dessa forma, a melhor forma de traduzir os objetivos de uma comunidade em realidade é por meio da política, em que há representantes do povo eleitos, ao passo que a atuação de um juiz não eleito, com base em argumentos de política, seria ilegítima. Já a segunda crítica repreende a aplicação retroativa de novos direitos criados pelo julgador. Se essa decisão foi tomada com base em argumentos de política, a sua adoção levaria ao sacrifício de direitos subjetivos individuais em face do bem-estar coletivo em uma ideia de eficiência econômica global. Contudo, o caso se torna diferente quando o magistrado adota uma decisão baseada em argumento de princípio. Nessa perspectiva, nenhuma das críticas constitui uma objeção à decisão. A primeira delas porque um julgamento com base em princípio não leva em conta os interesses coletivos de uma sociedade, mas os direitos subjetivos questionados em juízo. Por isso, o juiz é dotado de ilegitimidade para julgar o caso, muito pelo contrário, uma vez que ele não se encontra pressionado por demandas de natureza política para desconsiderar um direito subjetivo existente. A segunda crítica também não se sustenta, porque o direito afirmado pelo magistrado não é uma criação judicial, mas somente uma decorrência da interpretação da norma já existente, sem originalidade para a sua abstração. Em resumo, Dworkin defende que as decisões judiciais devem ser justificadas por argumentos de princípio, mesmo diante de casos difíceis, o que limitaria o ativismo judicial, retirando dos juízes o poder discricionário de criar novos direitos com base em argumentos de política quando há imprecisão ou indeterminação na lei.

4. Moralidade pessoal e a tese dos direitos Em que pese essa construção da teoria de Dworkin, há que

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se enfrentar o problema que os juristas são fortemente influenciados por tradições jurídicas que se combinam com a própria moralidade política do julgador, dando origem a decisões pessoais e originais. Nesse sentido, poderia haver um conflito entre a moralidade política do julgador e as tradições jurídicas. Segundo o próprio Dworkin, uma explicação insatisfatória seria a noção que o direito costumeiro limita o juiz, reduzindo o seu poder discricionário de julgar segundo a sua moralidade pessoal. Todavia, essa explicação desconsidera que as decisões passadas tiveram como base uma moralidade e separa artificialmente o processo de decisão judicial em duas etapas (avaliação dos limites das restrições institucionais e aplicação de sua própria moralidade pessoal), o que se mostra artificial. Uma explicação alternativa e satisfatória encontra-se centrada na tese dos direitos, que defende que não há tensão entre o procedente judicial e o senso de justiça do magistrado. Em realidade, as decisões judiciais tornam efetivos os direitos políticos existentes. Considera-se que a história institucional não seja uma restrição do juízo político dos magistrados, mas como um componente do processo de decisão. Arremata Dworkin: […] Os direitos políticos são criações tanto da história, quanto da moralidade: aquilo a que um indivíduo tem direito na sociedade civil, depende tanto da prática quanto da justiça de suas instituições políticas. Desse modo, desaparece a alegada tensão entre originalidade judicial e história institucional: os juízes devem fazer novos julgamentos sobre os direitos das partes que a eles se apresentam, mas esses direitos políticos antes refletem as decisões políticas tomadas no passado do que a elas se opõe. Quando um juiz opta entre a regra estabelecida por um precedente e uma nova regra que se considera mais justa, ele não está fazendo uma escolha entre história e justiça. Em vez disso, faz um julgamento que requer uma certa conciliação entre considerações que em geral se combinam em qualquer cálculo de direitos políticos, mas que aqui se competem uma com a outra.10

Verifica-se que a tese dos direitos oferece uma explicação saDWORKIN, Ronald. Casos Difíceis. In: DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Matins Fontes, 2002. Cap. 4. p. 136-137. 10

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tisfatória sobre como os juízes atuam nos casos difíceis, submetidos à responsabilidade política. Esse conceito implica a responsabilidade das autoridades políticas na tomada de decisões políticas. Tais decisões devem ser justificadas no âmbito da teoria política, evitando a adoção de decisões que possam parecer corretas isoladamente, mas não em conjunto. Para que uma decisão seja correta do ponto de vista da responsabilidade política, tendo em vista que decisões judiciais são decisões políticas, ela deve possuir uma consistência articulada. No caso de decisões com base em argumentos de política, essa consistência articulada se revela fraca, na medida em que uma política adotada para se atingir um objetivo coletivo não precisa tratar todos os indivíduos da mesma maneira. Por outro lado, as decisões com base em argumentos de política aplicam a consistência distributiva a todos os casos. Em apertada síntese, os argumentos de política não precisam tratar todos os indivíduos igualmente, ao passo que os argumentos de princípio sim. É por isso que a responsabilidade política está relacionada aos argumentos de princípio, uma vez que eles fornecem uma explicação para uma decisão particular quando mostra que o princípio é compatível com decisões anteriores e com decisões institucionais hipotéticas futuras. Ao fim de sua análise acerca dos casos difíceis, em que faz a distinção entre argumentos de princípio e argumentos de política, Dworkin aponta três problemas para a teoria dos direitos, sugerindo um desenvolvimento nessas direções. Em resumo, o primeiro problema consiste na necessidade de diferenciação entre direitos individuais e objetivos sociais, por meio da distinção entre direitos abstratos e concretos. O segundo problema é referente ao papel dos precedentes judiciais e da história institucional, que inclusive podem ser revelar injustos, e como avaliá-los na doutrina da consistência articulada, por meio dos direitos institucionais e dos direitos jurídicos como espécies de direitos institucionais. Já o terceiro problema é referente aos julgamentos de moralidade política para decidir os direitos jurídicos dos litigantes. Ao analisar tais problemas, Dworkin conclui que a moralidade pessoal é via de acesso à moralidade institucional. O erro judicial pode ocorrer, pois é difícil que um juiz semelhante ao idealizado Hércules tenha correspondência na realidade. Sendo os juízes falíveis, há duas opções: não se fazer uma tentativa para determinar

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os direitos institucionais das partes, decidindo os casos difíceis por político, ou simplesmente não os decidindo, ou se realizar uma tentativa de esforço para buscar os direitos institucionais e decidir segundo a melhor compreensão possível desses direitos. Sem dúvida, a segunda opção parece ser a mais adequada.

5 Responsabilidade moral Ronald Dworkin, em sua obra “Justice for Hedgehogs”, concebe que a integridade é a essência da responsabilidade, sendo que somente podemos alcançar a responsabilidade moral por meio da interpretação, que entrelaça e une os valores entre si. Dessa forma, as pessoas são moralmente responsáveis quando agem com base em uma convicção plena, de forma que as suas diversas interpretações concretas alcancem uma integridade geral, de tal modo que cada uma delas sustente as outras numa rede de valores autênticos. Dworkin, utlizando uma metáfora, entende que as convicções morais efetivas se fundem em um “filtro”, o que inclui a história pessoal de cada um, composta por emoções, gostos e preconceitos. A responsabilidade moral exige que submetamos outras influências que impactam nossas decisões por esse filtro, para que, assim como a luz passa por de um prisma, tais influências sejam filtradas e redesenhadas pelas convicções efetivas. As convicções francamente contraditórias ou incoerentes acabam por tornar esse filtro ineficaz. Dworkin descreve o filtro moral da seguinte maneira: We can summarize these various threats to responsibility in a metaphor. Imagine that your effective moral convictions convictions that exert some control over what you do - bind together as a filter surrounding your decision-making will. Insincere convictions and rationalizations are not effective convictions and so have no place in that filter, but abstract, contradictory, and compartmentalized convictions are and do. Your personal history explains, let us assume, which effective convictions are part of that filter: they explain why you have developed those convictions rather than the different convictions that other people with different personal histories have developed. Personal history also explains the

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great variety of other inclinations and attitudes you have emotions, preferences, tastes, and prejudices - that might also influence your decisions. Moral responsibility requires that these other influences pass through the filter of effective convictions so that they are censored and shaped by those convictions, as light passed through a filter is censored and shaped.11

Para que as pessoas ajam de acordo com a responsabilidade moral, é preciso que elas tentem transformar suas convicções em um filtro maximamente denso e eficaz. Por meio da interpretação, busca-se a coerência de valores das convicções pessoais, desafiando-as cada vez mais, até se ter um conjunto robusto e firme como base. Essa busca de densificação do filtro de convicções morais efetivas deve ser pautada pela dupla meta da integridade e da autenticidade. Desse modo, como a construção desse filtro é uma tarefa constante, que não atinge a sua realização plena, a responsabilidade moral exige que as pessoas se empenhem razoavelmente para a busca da integridade e da autenticidade moral. Para Dworkin, a relevância da responsabilidade moral reside no respeito por si próprio, já que, para não se cair na incoerência, não se pode considerar própria como importante objetivamente se não se aceitar que a vida de todos possui a mesma importância objetiva. Portanto, a teoria de Dworkin chega à conclusão que é preciso encontrar convicções em que se acredita e que se encaixem em um processo interpretativo que busca compreender da unidade de valor. Diante de uma investigação interpretativa, busca-se a verdade moral como algo disponível ao alcance das pessoas.

Conclusão À guisa de conclusão, observa-se que a construção teórica de Dworkin traz implicações para a reflexão sobre o papel do Poder Judiciário no processo interpretativo de jurisdição constitucional, em especial quando se trata de casos difíceis. A partir desse entendimento verifica-se que o autor restringe o ativismo judicial à arguDWORKIN, Ronald. Moral Responsability. In: DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. London: Harvard University Press, 2011. Cap. 6. p. 106-107. 11

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mentação fundada na afirmação dos direitos das partes envolvidas no litígio submetido à apreciação do Poder Judiciário. Dworkin refuta a construção positivista, que abre margem para a discricionariedade judicial diante da imprecisão ou indeterminação da lei. Em sua visão, devem ser diferenciados os argumentos de política e os argumentos de princípio. A fundamentação da decisão judicial deve pautar-se por argumentos de princípio. Ademais, a responsabilidade moral é outro ponto de convergência com o tema do ativismo judicial, na medida em que exige que as pessoas submetam as suas convicções pessoais a um filtro, formado pela história pessoal de cada um. A atuação de acordo com a responsabilidade moral exige que os indivíduos busquem a coerência de valores das convicções pessoais, desafiando-as cada vez mais, até se ter um conjunto robusto e firme como base. Aplicando-se essa compreensão à interpretação jurídica, exige-se dos magistrados que não decidam de acordo com as suas preferências pessoais, mas com base na responsabilidade moral densificada ao longo do processo constante de busca de coerência. Portanto, conclui-se que a teoria de Dworkin possibilita a justificação da limitação da atuação dos magistrados na jurisdição constitucional, por meio da utilização de argumentos de princípio e da responsabilidade moral para decidir as questões controversas.

Referências DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. London: Harvard University Press, 2011. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Matins Fontes, 2002. Cap. 2, p. 23-72., Cap. 4. p. 127-203. PEREZ, María Lourdes Santos. El pensamiento de Ronald Dworkin: balance y críticas. Anuario de filosofía del derecho, ISSN 0518-0872, nº 22, p. 319-332, 2005. LEITE, Taylisi de Souza Corrêa. O modelo de regras de Ronald Dworkin. Revista de Estudos Jurídicos UNESP, v. 15, n. 21, 2011. VIANNA, Luiz Werneck et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.

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STF E AS VIRTUDES PASSIVAS: EM BUSCA DE UM CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DIALÓGICO Carolina Alves das Chagas1 Introdução A expansão do Poder Judiciário no Brasil é um fenômeno observado há algum tempo, o qual, somado ao desenho institucional brasileiro, tende a apontar o Supremo Tribunal Federal como mais um ator com poder de veto, detentor de um poder de agenda,2 a ser desempenhado através de diversos instrumentos para controlar aquilo que deve ser destacado no cenário político e o que não deve, a depender do momento e das circunstâncias. Tal comportamento, no entanto, pode levar a um desequilíbrio institucional quando exacerbado, criando-se o risco de se ver o tribunal se transformar no xerife de suas próprias decisões.3 Na prática, evidencia-se que o STF tende a influenciar a política nacional não só com suas decisões, mas também com suas não-decisões - conhecidas como virtudes passivas. As práticas de virtudes passivas podem vir a possibilitar um diálogo institucional entre os poderes do Estado. A verdade é que decisões sobre direitos deveriam ser tomadas em conjunto, de forma que o diálogo entre poderes possa ser favorecido. 4 Assim, pretende-se estudar as formas em que o STF desempenha seu papel como ator com poder de veto através das não-decisões.

1. A expansão do Poder Judiciário e sua relação com os demais Poderes no Brasil Bacharel em Direito e Mestranda em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR – Brasil – e-mail: [email protected]. 2 George Tsebelis, Atores com poder de veto: como funcionam as instituições políticas, trad. Micheline Christophe (Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009), 17. 3 Oscar Vilhena Vieira, “Supremocracia”, Revista Direito GV (jul-dez 2008): 450. 4 Conrado Hübner.Mendes, Is it all about the last word? Deliberative Separation of Powers 1, acesso em Outubro 06, 2015, http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_ id=1911822, 41-42. 1

https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V01_A05

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Em um Estado Democrático de Direito, o cumprimento da separação dos poderes está vinculado à noção de equilíbrio no comando de um governo, derivando-se daí sua importância, a qual se encontra preservada na Constituição Federal sob o título de cláusula pétrea.5 Legislativo, Executivo e Judiciário devem trabalhar em conjunto, desempenhando cada um sua respectiva função, o que na prática nem sempre é fácil de se delimitar. A realidade atual, no entanto, é de uma forte politização da Justiça, que pode ser entendida como uma forma de expansão do Poder Judiciário, sobretudo do STF (no caso brasileiro), como centro do sistema político. Tal posicionamento tem sido cada vez mais amplificado sob a necessidade de guarda de uma Constituição extensa, que é a de 1988,6 uma vez que o Supremo passa não apenas a “exercer uma espécie de poder moderador, mas também de responsável por emitir a última palavra sobre inúmeras questões de natureza substantiva, ora validando e legitimando uma decisão dos órgãos representativos”, outras vezes substituindo-as.7 A apreensão constante de questões políticas pelo Judiciário acontece como consequência da premissa de que apenas ele seria o intérprete máximo da Constituição. Dentre as formas em que se é possível observar essa atuação das Cortes, tem-se a realização do ativismo judicial, que seria, na visão de Cass Sunstein, medido pela frequência com que os tribunais derrubam as ações dos outros poderes do Estado, especialmente do Congresso. Tais decisões tendem a precipitar o processo democrático, retirando as decisões das mãos dos eleitores, o que, no próprio entendimento desse autor, não possui de antemão valoração positiva ou negativa.8 No caso brasileiro, o STF tem passado a se autoconferir o papel de “poder constituinte reformador”, ainda que as mudanças não estejam de forma explícita na Constituição, ao instituir efeito legiferante a alguma de suas decisões, como com a criação de uma nova hipótese de perda de mandato parlamentar pela fidelidade partidária (MS 26.603/DF), ou ao garantir efeito vinculante e erga omnes a suas decisões proferidas em controle de constitucionalidade difuso, militando a desnecessidade de aplicação do art.52, X, da 5

Constituição Federal - art. 60, §4º, III.

Vieira, “Supremocracia”, 445. 7 Vieira, “Supremocracia”, 445. 8 Cass R. Sunstein, Radicals in Robes: why extreme right-wing courts are wrong for America (New York: Basic Books, 2005), 42-43. 6

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Constituição (Rcl 4.335/AC).9 Tal comportamento pode levar a um desiquilíbrio, uma vez que, na ausência de uma instância superior controladora, é atribuído ao STF autoridade para, em teoria, emitir a última palavra sobre temas constitucionais, diminuindo as chances de tal ideia seja rebatida pelo Congresso Nacional,10 ou mesmo pela própria reação popular. Cria-se, assim, o risco de se ver o tribunal se transformar no xerife de suas próprias decisões.11 Ademais, a presença do controle de constitucionalidade, nesse sentido, pode vir a significar também um aumento de poder dos magistrados, atribuído diretamente pela Constituição, os quais passam a possuir um raio maior de influência na sociedade, e, proporcionalmente, uma diminuição dos poderes do Executivo e Legislativo,12 mesmo porque ambos estão submetidos, em grande parte, ao controle dos tribunais, o que não deixa de ser alvo de discussão.13 Por mais indispensável que seja a proteção dos direitos fundamentais, a atuação do Judiciário, como já afirmado, continua devendo ser harmônica com os demais poderes. Isso significa que deve haver um equilíbrio, segundo Canotilho, entre um tribunal excessivamente jurisdicional e um tribunal excessivamente político.14 Aquele seria mais intransigente através de uma rígida interpretação das leis, enquanto este seria por demais maleável, passível de mudanças a partir da sensibilidade política da situação.15 Esta é, portanto, a realidade institucional na qual se encontra o Estado brasileiro, com a contínua expansão do Judiciário para questões políticas. No entanto, o que se deve procurar evitar são as decisões judiciais moldadas com um fim eminentemente político, com argumentos que transcendam a racionalidade jurídica e, por vezes, em desconformidade com o ordenamento jurídico vigente.16 Vieira, “Supremocracia”, 454-456. Vieira, “Supremocracia”, 447. 11 Vieira, “Supremocracia”, 450. 12 Otto Bachof, Jueces y Constitución, trad Rodrigo Bercovitz Rodríguez-Cano (Madrid: Editorial Civitas, 1985), 27. 9

10

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Bachof. Jueces y Constitución, 31/32.

J. J. Gomes Canotilho, “Jurisdição Constitucional e Intranquilidade Discursiva”, in: Perspectivas Constitucionais nos 20 anos da Constituição de 1976, vol 1, Jorge Miranda (Org.) (Coimbra: Coimbra Editora, 1996), 882. 15 Canotilho, “Jurisdição Constitucional e Intranquilidade Discursiva”, 883. 16 Anderson Vichinkeski Teixeira, “Ativismo Judicial: nos limites entre racionalida-

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É, pois, com esse espírito político ativista do STF que se pretende entender como suas não decisões influenciam no ordenamento jurídico nacional, bem como no desenho institucional da separação dos poderes.

2. O controle de constitucionalidade e as virtudes passivas O controle de constitucionalidade tem sido uma prática recorrente do Poder Judiciário brasileiro, o qual surge, de uma maneira geral, com o reconhecimento da supremacia da Constituição e de sua força vinculante em relação aos Poderes Públicos, como uma forma de defesa de seu texto.17 Isso ocorre, pois “a Constituição, como norma fundamental do sistema jurídico, regula o modo de produção das leis e demais atos normativo e impõem balizamentos a seu conteúdo”.18 No entanto, existem juristas que defendem, inclusive, que não se deveria ter um controle de constitucionalidade judicial. Segundo a teoria de Jeremy Waldron, o judicial review não seria uma prática propriamente democrática, a qual apresentaria problemas ao não possibilitar formas da sociedade focar nas reais questões que envolvem uma discussão sobre direitos. Ainda, ela seria politicamente ilegítima, haja vista que privilegia a decisão de uma maioria não-eleita e não detentora de accountability. Os tribunais tenderiam a se preocupar mais com legitimar suas decisões do que propriamente discutir seu mérito.19 Entretanto, essa prática não conseguiria ser afastada por completo do âmbito social sem que algumas condições institucionais e políticas estejam presentes.20 de juridical e decisão política”, Revista Direito GV (jan-jun 2012): 48. 17 Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco, Curso de Direito Constitucional, 6. ed. (São Paulo: Saraiva, 2011), 1059. 18 Luís Roberto Barroso, O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência, 6. ed. (São Paulo: Saraiva, 2012), 33. 19 Jeremy Waldron, The Core of the Case Against Judicial Review, acesso em Outubro 06, 2014, http://philosophyfaculty.ucsd.edu/ FACULTY/RARNESON/Courses/ Waldroncore.pdf, 1383. 20 Tais pressupostos seriam a presença (i) de instituições democráticas em bom funcionamento, incluindo um sistema representativo eleito com base no sufrágio universal; (ii) de um conjunto de instituições judiciais também em bom funcionamento, respeitando o Estado de Direito; (iii) do comprometimento da maioria da população com relação a ideia de direitos individuais e de direitos das minorias e

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Não obstante esses argumentos, o estudo sobre a relação entre os poderes, sobretudo quando se trata de controle de constitucionalidade, buscou ir além da mera sobreposição de um sobre o outro, pautando-se na possibilidade de instalação de um diálogo. Não se trata de afirmar que as questões seriam discutidas permanentemente, sem respostas, mas sim reconhecer a necessidade de se investigar além dessa última palavra, casos cuja natureza política e complexidade possibilitam revisão. Mesmo porque, há de se ter em mente que, por mais que muitas decisões possam estar sujeitas a futuras revisões, certas circunstâncias trazem altos custos políticos e podem se tornar irreversíveis.21 Dessa forma, busca-se manter as vantagens de ambos os poderes, minimizando as desvantagens, uma vez que se privilegia as potencialidades da dinâmica de interação entre eles.22 A verdade é que decisões sobre direitos devem ser tomadas em conjunto, de forma que o diálogo entre poderes tende a ser favorecido. Assim, tem-se que um dos desafios institucionais é conseguir manter um ponto de equilíbrio nesse relacionamento, entre alcançar determinada finalidade e manter a continuidade de seu debate.23 Trata-se de uma forma de reconhecer o papel político desempenhado pelo Poder Judiciário, sem que para isso ele tenha que se valer da prerrogativa dos demais agentes sociais – seja os demais poderes, seja a sociedade em si. Isso porque em certas circunstâncias não seria possível tomar uma decisão rígida, sem trazer resultados democráticos negativos, uma vez que não haveria amadurecimento dessas ideias na sociedade24 - mesmo porque, não é pelo fato dos tribunais decidirem que a população terá essa decisão como legítima, vide casos de backlash.25 Diante da necessidade de se agir com cautela, ao mesmo (iv) de persistentes e substanciais desentendimentos sobre direitos, dentre aqueles que são com eles comprometidos. Waldron, The Core of the Case Against Judicial Review, 1353 e 1360. 21 Mendes, Is it all about the last word?, 41 22 Mendes, Is it all about the last word?, 41. 23 Mendes, Is it all about the last word?, 42. 24 Conrado Hübner Mendes, Not the Last Word, But Dialogue: Deliberative Separation of Powers 2, acesso em Outubro 06, 2014, http://papers.ssrn.com/sol3/papers. cfm?abstract_id=1911835, 5. 25 Para mais sobre esse assunto, ver: Robert C. Post e Reva B. Siegel, Roe Rage: Democratic Constitucionalism and Backlash, acesso em Maio 19, 2014, http://digitalcommons.law. yale.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1168&context=fss_ papers.

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tempo que não se deixa de atuar em temas importantes, deve-se repensar nas atitudes demasiado ativistas desempenhadas pelos juízes, sobretudo os do STF. Há quem defenda que juízes não deveriam buscar tomar grandes decisões em casos constitucionais complexos (normalmente quando há divergência sobre princípios), como é o caso de Cass Sunstein, ao defender as virtudes de um juiz minimalista.26 Segundo o jurista, essa postura seria desejável, uma vez que juízes não são eleitos, possuindo certo déficit democrático. Soma-se a isso o fato de não serem capazes, por vezes, de prever as consequências de suas próprias decisões, motivo pelo qual não deveriam se posicionar a qualquer custo sobre questões políticas controversas.27 Ao não decidir todas as questões de maneira definitiva, não haveria grande diminuição no espaço para posteriores discussões, favorecendo novos debates e enriquecendo a democracia.28 O agir minimalista é favorecido por práticas de virtudes passivas – aquelas de não decisão, as quais tendem a possibilitar esse diálogo vertical e horizontal – entre os tribunais e entre tribunais e a população, haja vista que não estariam eles obrigados a simplesmente validar ou invalidar um ato normativo, podendo se abster em certos casos. Ademais, exige uma maior consciência do Judiciário de sua atuação, ao se conseguir estabelecer níveis de sua necessidade e intensidade.29 É possível concluir, nesse sentido, que a função desse poder não seria somente estabelecer decisões definitivas, mas também direcionar a sociedade para chegar a essa solução.30 Segundo Bacharach e Baratz, as relações de poder não se encontram presentes somente nas decisões dos agentes, mas também em suas não-decisões.31 Não se trata apenas de uma simples inércia, pois, nesses casos, não atuar denota a mobilização de certa tendência em determinado assunto.32 É dizer, ao não atuar o agente estaria, igualmente, posicionando-se quanto a determinado tema. Sunstein, Radicals in Robes, 27-28. Sunstein, Radicals in Robes, 35. 28 Mendes, Not the Last Word, But Dialogue, 8-9. 29 Mendes, Not the Last Word, But Dialogue, 6. 30 Mendes, Not the Last Word, But Dialogue, 8. 31 Peter Bacharach e Morton S. Baratz, Decisions and Nondecisions: An Analytical Framework, acesso em Março 13, 2015, http://www.jstor.org/discover/10.2307/1952568?uid=3737664&uid=2& uid=4&sid=21106504421223, 632. 32 Bacharach e Baratz, Decisions and Nondecisions, 641. 26 27

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Se o Poder Judiciário deveria ser o único a incitar o diálogo é uma assertiva que demanda críticas,33 contudo, importante aqui ressaltar é que ele já chega a se posicionar assim na prática, utilizando-se de estratégias diversas no momento de efetivar a adjudicação constitucional; “tanto mais capaz será a corte de exercer seu papel de guardião constitucional quanto mais bem jogar o jogo político”.34 Resta, no entanto, uma análise mais direta dessa atuação. No Brasil, o STF possui mecanismos próprios para desempenhar suas não-decisões. De uma maneira geral, é possível não decidir não possibilitando a entrada de um determinado processo no tribunal – que seria o caso através da Repercussão Geral-, ou, não decidir com o processo já em andamento, com a utilização de alguns instrumentos para tanto. Como o presente artigo pretende focar no controle de constitucionalidade concentrado, focar-se-á nessa última hipótese, mais especificamente na análise do pedido de vistas, das liminares em ações de controle de constitucionalidade e da montagem da pauta das sessões de julgamento. Os pedidos de vista, presentes nas ações de julgamento colegiado, estão previstos no regimento interno do STF (art. 134) e em resolução interna do tribunal (Resolução 278/2003). Trata-se de um mecanismo que visa evitar que algum juiz seja obrigado a julgar algum caso que não se sinta preparado. Isto é, quando um dos juízes acredita, em qualquer momento, que precisa estudar melhor o processo, analisá-lo com maior cuidado. Nesses casos, o julgamento será interrompido, sendo retomado quando esse juiz terminar seu estudo do caso e devolver o processo, acompanhado com seu voto.35 Na prática, no entanto, por mais que esse instrumento possua um prazo específico, não há sua observância, transformando-se em um mecanismo sem limitações. A Resolução 278/2003 do STF (art. 1º), ao regulamentar o Regimento Interno, previa prazo de 10 dias para o pedido de vistas, prorrogados automaticamente por mais 10 dias, e, em não se devolvendo o processo para julgaVer “Dialogue from without”, em: Conrado Hübner Mendes, Not the Last Word, But Dialogue. 34 Conrado Hübner Mendes, A ingovernabilidade do STF, acesso em Outubro 06, 2014, http://jota.info/materias19-a-ingovernabilidade-do-stf#.VBwzjTb8f4U.facebook. 35 Joaquim Falcão, Ivar A. Hartmann e Vitor P. Chaves, III Relatório Supremo em Números: o Supremo e o tempo (Rio de Janeiro: Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas, 2014), 89. 33

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mento, caberia ao Ministro Presidente requerer esses autos e reabrir o julgamento. Contudo, essa regra não chegou a ser efetivamente aplicada pelo tribunal, fazendo com que a redação dessa resolução fosse alterada pela Resolução 322/2006 do STF, a qual suprimiu a possibilidade de requisição do processo para julgamento.36 Tal abuso é possível de observar ao se analisar os pedidos de vista nas ações de controle concentrado de constitucionalidade. Entre 1988 e 2013, os pedidos de vista em ADI eram em média de 1,2 anos (429 dias) e aqueles que ainda estavam em aberto já duravam em média 3,7 anos (1.342 dias), sendo que ainda haviam 31 pedidos em aberto.37 Os pedidos de medida cautelar também são possíveis nas ações de controle de constitucionalidade a partir de dispositivo contido na Lei nº 9.868/99 (arts. 10 e 11). Desde de então é possível assegurar a suspensão da lei potencialmente inconstitucional diante da presença do fumus boni iuris e periculum in mora, enquanto não se chega à decisão final do processo. No entanto, na prática o que se observa é que o instrumento que deveria servir como uma garantia acaba oferecendo forte insegurança ao se prolongar durante longos períodos de vigência, o que pode tornar a decisão final de mérito prejudicada ou inútil. Nos casos de controle de constitucionalidade concentrado, ainda, a situação é agravada pelo fato da liminar não tocar somente uma situação jurídica intra-partes, mas sim o direito brasileiro como um todo, em sua forma abstrata.38 Nas ADIs a média de vigência da liminar é de 6,1 anos – caso se considere somente as liminares ainda vigentes no período da pesquisa, tem-se uma média de 13,5 anos.39 Ademais, vale ressaltar que dentre as liminares que tiveram maior duração no STF e as que ainda estavam vigentes com maior duração, a grande maioria estão ligadas a ADIs.40 Por fim, a última forma aqui destacada de não-decisão do STF é a prerrogativa de colocação em pauta do processo pelo relator. Trata-se de uma etapa cujo andamento do processo fica dependente inteiramente da responsabilidade desse relator.41 Falcão, Hartmann e Chaves, III Relatório Supremo em Números, 91. Falcão, Hartmann e Chaves, III Relatório Supremo em Números, 94. 38 Falcão, Hartmann e Chaves, III Relatório Supremo em Números, 29-30. 39 Falcão, Hartmann e Chaves, III Relatório Supremo em Números, 33 e 40-41. 40 Falcão, Hartmann e Chaves, III Relatório Supremo em Números, 50. 41 Falcão, Hartmann e Chaves, III Relatório Supremo em Números, 101/102. 36 37

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Nesses casos, também é possível observar uma tendência das ações de controle de constitucionalidade concentrado serem os processos com uma grande média de duração em situação de concluso ao relator. As ADIs ficam em média 150 dias aguardando resposta do relator, já as ADPFs 98 dias. Já nos casos extremos, é possível observar ações que já ultrapassaram 10 anos com os autos conclusos com seu relator.42 Verifica-se, portanto, que todos esses mecanismos citados do STF tem sido utilizados de forma, em muitas das vezes, de bloquear o andamento das ações de controle de constitucionalidade, podendo isso acontecer, inclusive, durante muitos anos. Assim, essas ações, nas quais os ministros deveriam desempenhar um interesse maior - uma vez que podem causar grande impacto social e podem corresponder a existência de uma lei inconstitucional no ordenamento jurídico nacional - acabam abandonadas por anos. Diante desse quadro, e visando dar prosseguimento a essas ações, foi criada a proposta de emenda constitucional (PEC 53/2015) que objetiva regular o uso, ao menos, de um desses instrumentos, que é o pedido de vistas. A ideia dessa PEC seria acrescer um inciso ao art. 93 da Constituição, o qual conteria a possibilidade de sobrestar processos pautados para julgamento do respectivo Colegiado (salvo Mandado de Segurança e Habeas Corpus), quando se esgotar o prazo do pedido, até que seja retomado o exame do processo suspenso por ele. Ao mesmo tempo, o CNJ regulamentou na Resolução nº 202/2015 os pedidos de vistas, prevendo que, caso o prazo para o pedido de vista expire e o autor ainda não se sinta habilitado a votar, o presidente do colegiado deve convocar substituto para proferir voto.43 Tratam-se somente de algumas possibilidades de se proporcionar limites aos instrumentos que tem sido utilizados de forma abusiva pelos ministros do STF. Frente a este cenário, não é impensável que muitos acreditem ser as virtudes passivas um distúrbio na adjudicação de uma Corte. Contudo, é possível se traçar outro panorama quanto a essa atuação.

3. Não-decisões: possibilidade de diálogo institucional? Falcão, Hartmann e Chaves, III Relatório Supremo em Números, 104 e 110. Conselho Nacional de Justiça, “Aprovada resolução que regulamenta pedido de vista no Judiciário”, acesso em Outubro 27, 2015, http://www.cnj.jus.br/noticias/ cnj/80781-aprovada-resolucao-que-regulamenta-pedido-de-vista-no-judiciario. 42 43

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As virtudes passivas, através das não-decisões, podem ser importantes para a realização do chamado controle de constitucionalidade dialógico, ou baseado em diálogos, o qual tende a rever o papel, muitas vezes, exacerbado desempenhado pelo Poder Judiciário, com vias de incluir uma maior participação do Poder Legislativo. Segundo Gargarella, seria uma forma de se repensar a organização institucional dos poderes, para além de sua origem clássica conflitiva.44 Sua ideia perpassa a noção de incentivar a interação entre os atores político-sociais acerca qual das possíveis interpretações rivais razoáveis sobre a Constituição estaria correta. Para tanto, seriam necessários mecanismos para que a insistência do Legislativo em sua própria interpretação razoável seja legalmente efetiva.45 Não se trataria de retirar todo poder e influência do Judiciário, uma vez que ele continua sendo reconhecido como local privilegiado para concentrar atenção em valores constitucionais conectados a problemas específicos, chamando a atenção do legislador sobre tais problemas, sem impedi-los de achar uma resposta na arena democrática.46 Trata-se, na verdade, de possibilitar o desenvolvimento de determinado assunto durante o tempo e entre os diversos atores sociais, de forma que as interpretações judiciais sejam mantidas, em última análise, porque os cidadãos estariam de acordo com elas.47 Como já visto, as não-decisões, poderiam ser parte de um agir minimalista e agregar na efetivação desse controle de constitucionalidade dialógico. As Cortes constitucionais não decidem em um vácuo político, de forma que elas devem ser perceptivas e reativas ao clima político que as rodeia.48 Reconhecer o papel político dessas Cortes é também reconhecer que elas possuem capacidade e devem utilizar as virtudes passivas. Elas também devem se aproRoberto Gargarella, “El Nuevo constitucionalismo dialógico frente al sistema de los frenos y contrapesos”, in Por una justicia dialógica: el Poder Judicial como promotor de la deliberación democrática, Roberto Gargarella (comp.) (Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2014), Kindle edition, Pos. 2382 e 2389. 45 Mark Tushnet, “Revisión judicial dialógica”, in Por una justicia dialógica: el Poder Judicial como promotor de la deliberación democrática, Roberto Gargarella (comp.) (Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2014), Kindle edition Pos. 2126 e 2134. 46 Tushnet, “Revisión judicial dialógica”, Pos. 2176 e 2180. 47 Tushnet, “Revisión judicial dialógica”, Pos. 2227. 48 Conrado Hübner Mendes, Constitutional Courts and Deliberative Democracy (Oxford: Oxford University Press, 2013), 196. 44

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priar de um agir estratégico e perceber quando seriam os melhores momentos para atuarem e quando deveriam permanecer inerte para que o assunto se desenvolva democraticamente.49 No caso brasileiro, o STF pode ter as prerrogativas de decidir não decidir, contudo, elas não são bem utilizadas, uma vez que são individualizadas, não correspondendo a um entendimento da Corte como instituição. Decisões importantes que necessitam de um posicionamento do Judiciário passam a ser decididas unilateralmente – em uma postura “supercontramajoritária”, retirando-se as vantagens que podem advir de uma deliberação coletiva interna,50 bem como, deslegitimando as respostas que podem ser alcançadas. Possuir instrumentos de não-decisão da mesma forma que pode acentuar o ativismo judicial exacerbado, pode garantir uma maior atuação estratégica de quando incidir o poder de veto nas questões relevantes. Nesse sentido, reestruturar a maneira como os instrumentos aqui citados são utilizados pode ser uma forma de arquitetar melhor sua utilização, com vias de garantir um verdadeiro controle de constitucionalidade dialogado (dentro e fora do tribunal), independente da supremacia judicial. No atual cenário institucional, observa-se a possibilidade de o STF também desempenhar atitudes políticas, juntamente com os demais poderes, fortalecendo a deliberação. No entanto, por mais que se vislumbre possibilidades de aumentar esse diálogo entre os poderes, resta ainda o obstáculo de se proporcionar e efetivar um diálogo dentro do próprio Judiciário.

Referências Bacharach, Peter Bacharach, e Morton S. Baratz. Decisions and Nondecisions: An Analytical Framework. Acesso em Março 13, 2015. http://www.jstor.org/discover/10.2307/1952568?uid=3737664&uid=2& uid=4&sid=21106504421223. Bachof, Otto. Jueces y Constitución. Traduzido por Rodrigo Bercovitz Rodríguez-Cano. Madrid: Editorial Civitas, 1985. Barroso, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência, 6. ed. São Mendes, Constitutional Courts and Deliberative Democracy, 200. Para ver mais sobre essas vantagens ler “Promises and Perils of political deliberation” em Mendes, Constitutional Courts and Deliberative Democracy, 22. 49 50

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A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E A NECESSIDADE DE COOPERAÇÃO INSTITUCIONAL Victor Ferreira1 Introdução Nos últimos anos, observa-se que o Supremo Tribunal Federal tem desempenhado papel marcante na vida institucional brasileira. A centralidade da Corte Constitucional, e indiretamente do judiciário como um todo, sobretudo na tomada de decisões predominantemente políticas gera aplausos e críticas, exigindo uma reflexão cuidadosa desse comportamento. O fenômeno de judicialização da política significa questões de maior repercussão social ou política sendo decididas por órgão do Poder Judiciário, em detrimento de instâncias políticas tradicionais como o Congresso Nacional e o próprio Poder Executivo. Dessa forma, infere-se que a judicialização transfere o poder para juízes e tribunais, alterando a forma de participação social. Outro fenômeno que será abordado no trabalho, visto que, é semelhante à judicialização é a ideia de ativismo judicial que está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais. O Ativismo, por sua vez, expressa uma postura do intérprete na forma de interpretar a Constituição, impulsionando o alcance e sentido de suas normas, trespassando o legislador ordinário. Basicamente, contorna o processo político majoritário quando este se demonstra inerte ou incapaz de produzir consenso. Ambos os fenômenos esbarram nos debates sobre legitimidade democrática, que se expande por meio das discussões envolvendo o minimalismo judicial, que tende a limitar a profundidade e pretensão teórica das decisões judiciais.

1. Supremacia do poder judiciário e interpretação constitucional Graduando em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - FND/UFRJ. Pesquisador do LETACI. Monitor de Teoria do Estado.E-mail: [email protected].

1

https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V01_A06

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1.1. Strong form, weak form e o judicial review Até o final do século XX, qualquer crítica ao judicial review tinha de conviver com uma constatação empírica difícil de ser refutada: cada vez mais países passaram a adotar alguma forma de fiscalização jurisdicional de constitucionalidade das leis e atos normativos. Mas foi justamente a partir de sua implementação em alguns países tradicionalmente ligados à “supremacia parlamentar” que a doutrina ganhou um novo suporte para embasar suas objeções. Mark Tushnet2, acompanhado de outros autores, começou a desenvolver um estudo sobre o modelo que parece capaz de apresentar uma resposta satisfatória para as discussões em torno do judicial review: o sistema de controle “fraco” de constitucionalidade. De acordo com Tushnet, na forma fraca, leia-se branda, o legislativo tem poder de repudiar a interpretação das cortes, enquanto a forma forte, leia-se rígida, caracteriza-se por interpretação constitucional judicial inderrogável, prevalecente sobre as legislaturas. Na “strong form”, a tensão gerada entre o judiciário e o legislativo é patente, já que único meio de modificar uma decisão é a introdução de emendas constitucionais ou promoção de alterações na composição das cortes. O modelo norte-americano, reitere-se, é exemplo paradigmático para a forma forte de controle de constitucionalidade. Paralelamente, identifica-se o weak-form judicial review no ordenamento jurídico do Canadá. O modelo dialógico, permite ao legislativo, por meio de maioria qualificada, determinar que uma lei opere ‘’não obstante’’3 interpretação judicial contrária (“notwithstanding clause” ou “la clause dérogatoire”). Ademais, não se olvida a possibilidade de consultas abstratas e prévias à corte,o que permite diálogo mais intenso e aberto entre as Cortes e os legisladores do que existe nos Estados Unidos, configurando-se uma alternativa a modelos extremos de supremacia legislativa ou judicial norte-ameTUSHNET, Mark. ‘’Weak Courts, Strong Rights. Judicial and Social Welfare Rights in Comparative Law’’. Princeton: Princeton University Press, 2008. 3 Peter Hogg apresenta uma análise positiva da experiência canadense; para ele, o sistema brando de fiscalização de constitucionalidade permite um maior diálogo entre as cortes e as legislaturas, já que nem sempre estas deverão observar obrigatoriamente o que aquelas determinam. HOGG, Peter W.; BUSHELL, Allison A. ‘’The Charter Dialogue Between Courts and Legislatures.’’ Osgoode Hall Law Journal, vol. 35, 1997. 2

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ricano4. Foi Alexander Bickel o primeiro a falar em dificuldade contramajoritária. Bickel enxerga um problema de ordem moral envolvendo o papel da Suprema Corte na democracia norte-americana: Por que um pequeno grupo não eleito de nove indivíduos tem o poder de decidir algumas das mais profundas questões morais de um país de modo que nenhum ator político tem o poder de afastar essas decisões5? A dificuldade contramajoritária se funda na contradição expressa no fato de juízes não eleitos poderem invalidar decisões do legislador republicano. Verifica-se, pois, uma divergência quanto à legitimidade democrática da jurisdição constitucional. Neste ponto, cabe analisar as razões técnicas que permitiram a ascensão do Poder Judiciário e apresentar propostas de racionalização da jurisdição constitucional, a partir de diálogos com as instâncias políticas.

1.2 Evolução da interpretação constitucional e a judicialização da política É importante associar a ascensão do Poder Judiciário à superação de um modelo de interpretação formalista e à adoção da perspectiva pós-positivista, permeada pela argumentação moral, que permite a discricionariedade judicial. O dispositivo constitucional nesse novo modelo é apenas um apriorístico; um ponto de partida do intérprete quando da aplicação do direito. Se, por um lado, o formalismo primava pela segurança jurídica, criando uma dicotomia entre direito e moral, por outro lado, a teoria dos princípios inaugura um novo modelo, permeável à argumentação moral. O pós-positivismo revela uma reaproximação entre direito e moral operada pela atribuição de força normativa aos princípios e sua valorização no processo de aplicação do direito. Com isso, verifica-se uma influência axiológica a partir da qual se manifesta a discricionariedade judicial6. ROACH, Kent. Dialogue or defiance: Legislative reversals of Supreme Court decisions in Canada and the United States. International Journal of Constitutional Law, v. 4, 2006. 5 BICKEL, Alexander M., The Least Dangerous Branch: the Supreme Court at the bar of politics.Yale.1962.p16-23. 6 “Para além de uma função puramente técnica de conhecimento, o intérprete judicial integra o ordenamento jurídico com suas próprias valorações, sempre acompanhadas do dever de justificação. Discricionariedade judicial, portanto, traduz o reconhecimento de que o juiz não é apenas a boca da lei, um mero exegeta que realiza operações formais. Existe dimensão subjetiva na sua atuação” BARROSO, Luís 4

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A indeterminação das normas constitucionais, associada ao movimento de atribuição de força normativa aos princípios, de fato, amplia a liberdade do intérprete7. A evolução da hermenêutica constitucional somada ao movimento global de expansão da jurisdição constitucional teve como resultado o fenômeno atual da judicialização da política. Em razão da maior discricionariedade judicial, constata-se a expansão dos papéis do Poder Judiciário na definição de questões predominantemente políticas, que deveriam ser tratadas por representantes eleitos. Diante desse fenômeno, questiona-se a legitimidade democrática da revisão judicial de constitucionalidade dada a tênue fronteira entre judicialização da política e ativismo judicial. Questiona-se, no Brasil, o real comportamento adotado pela Suprema Corte já que judicialização da política e o ativismo judicial se definem por comportamentos similares. Judicialização significa, no âmbito brasileiro, que questões predominantemente políticas são avocadas pelo poder Judiciário, em detrimento das instâncias políticas tradicionais. A judicialização envolve uma transição de poder para juízes e tribunais. Já o ativismo judicial está associado a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A diferença entre ambos é, basicamente de grau. Nos dois últimos anos, o STF decidiu acerca de uniões homoafetivas, interrupção da gestação de fetos anencéfalos e cotas raciais. Anteriormente decidira sobre pesquisas com células-tronco embrionárias e demarcação de terras indígenas. Percebe-se, portanto, transferência de poder decisional acerca de matérias politiRoberto. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília,v.5,Número Especial, 2015.p.23-50. 7 Segundo Kelsen, dentro de uma moldura de possibilidades hermenêuticas, o intérprete tem de fazer escolhas, o que torna a decisão uma escolha essencialmente política. Assim, a tarefa de aplicação do direito envolve atividade de criação do direito. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.p.260-263.

Segundo Hart, as normas jurídicas apresentam textura aberta, de modo que revelam uma zona de certeza e uma zona de penumbra. Nesta última, a aplicação da norma não é evidente de modo que a sua aplicação estará submetida a juízos de equidade emitidos pelo intérprete, o que revela sua liberdade de interpretação. HART, H.L.A. O Conceito de Direito. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.p.161-176.

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camente disruptivas das instâncias tradicionais, para juízes e tribunais.

2. O Supremo Tribunal Federal e sua autonoima contingenciada 2.1. A perspectiva majoritária Como já referido, a harmonização entre as instituições depende da observância de limites desenhados pelo Constitucionalismo. Contrapondo-se a Alexander Bickel, o cientista político Robert Dahl8 entende que a Suprema Corte não funciona historicamente como uma instituição contramajoritária, mas as visões políticas dominantes na Corte coincidem, via de regra, com aquelas dominantes entre as maiorias legislativas norte-americanas9. As teorias majoritárias defendem a tese de que, diante do conflito entre a Corte e instâncias políticas concernentes aos assuntos mais polêmicos, a Corte proferirá decisão que reflita o consenso. Dessa maneira, poder-se-ia dizer que a Suprema Corte é controlada; limitada por fatores de ordem política. As teorias majoritárias defendem, em geral,a tese de que as decisões da Suprema Corte refletem um cálculo de verificação das visões majoritárias. Esse entendimento fomenta o papel representativo exercido pelas cortes constitucionais, entretanto é imperativo estabelecermos mecanismos de constrangimento das Cortes para avaliarmos a extensão da limitação das decisões pelas pressões majoritárias e dessa maneira, a medida da autonomia desfrutada. Richard Pildes elencou três mecanismos10: (1) Opinião pública; a opinião pública é, no dizer dos teóricos majoritários, o principal mecanismo de constranger a Corte a refletir visões majoritárias; (2) Instituições políticas; a Suprema Corte é inevitavelmente parte de uma aliança política nacional dado seu processo de composição DAHL, Robert. Decision-Making in a Democracy: The Supreme Court as a National Policy-Maker, 6 J Pub L 279. 1957. 9 O objetivo de Robert Dahl ao situar a Suprema Corte num amplo contexto político é superar ideias românticas da Corte como uma instituição autônoma capaz de proteger os interesses das minorias diante das forças da democracia majoritária. O teórico admite que a maioria democrática não pode ser contida. 10 PILDES, Richard. Is the Supreme Court a “Majoritarian Institution”?. New York University Public Law & Legal Theory Working Papers, Nº 251, 2011. 8

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por indicação de instâncias políticas. O comprometimento da Corte com essa aliança, por si só, limita o seu âmbito decisório. Nesses casos, as instâncias políticas convidam a Corte a decidir; (3) Processo de indicação; os teóricos majoritários defendem o processo de indicação como o importante mecanismo para explicar como a Corte supostamente reflete as visões majoritárias da sociedade. Contudo, os órgãos políticos responsáveis pela indicação têm, às vezes, reduzida capacidade de influenciar a composição da Corte11. De fato, o comportamento das Cortes Constitucionais pode ser entendido, em geral, pela perspectiva representativa das visões majoritárias12. Entretanto, inegavelmente há exceções. Esta análise pode ser importada da teoria institucional norte-americana e aplicada à realidade brasileira. Defender-se-ia , dessa maneira, o papel representativo exercido, via de regra, pelo Supremo Tribunal Federal na democracia brasileira. Todavia, no julgamento da ADPF 132, o Supremo equiparou as uniões estáveis homoafetivas às heteroafetivas. Numa sociedade ainda conservadora, resistente ao reconhecimento dos direitos LGBT, a atuação da corte soa contramajoritária. Logo, se admitirmos a possibilidade de decisões contramajoritárias, temos, sob pena de incoerência, aceitar os mecanismos de constrangimento da Corte como defectivos. Diante do exposto, defende-se que o Supremo Tribunal Federal apresenta uma autonomia contingenciada, já que é constrangido por fatores de ordem A crítica que pode ser feita aqui é que os presidentes e sua coalizão não conseguem muitas vezes moldar a Corte. Por exemplo, Nixon, em um mandato, teve a oportunidade de indicar quatro justices ao passo que Clinton, em dois mandatos, indicou apenas dois. Dessa maneira, o poder de dar forma à Corte por meio do processo de indicação não se relaciona diretamente ao sucesso eleitoral. 12 “A decisão do Supremo Tribunal Federal na ADC nº 12, e a posterior edição da Súmula Vinculante nº 13, que chancelaram a proibição do nepotismo nos três poderes, representaram um claro alinhamento com as demandas da sociedade em termos de moralidade administrativa.(...)No tocante à fidelidade partidária, a posição do STF foi ainda mais arrojada, ao determinar a perda do mandato por parlamentar que trocasse de partido. Embora tenha sofrido crítica por excesso de ativismo, é fora de dúvida que a decisão atendeu a um anseio social que não obteve resposta do Congresso. Outro exemplo:no julgamento, ainda não concluído, no qual se discute a legitimidade ou não da participação de empresas privadas no financiamento eleitoral, o STF, claramente espelhando um sentimento majoritário, sinaliza com a diminuição do peso do dinheiro no processo eleitoral.”BARROSO, Luís Roberto. A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília,v.5,Número Especial, 2015.p.41-42. 11

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política, esses falíveis. A medida da autonomia do Supremo oscila de acordo com a capacidade de a opinião pública e as instituições políticas pressionarem a Corte a captar a vontade majoritária.

2.2 Democracia e interação dialógica A realidade brasileira, qualificada pelo caminhar da história, demonstra existir um déficit representativo combinado a uma ineficiência laboral que infirmam a capacidade de o Poder Legislativo nacional zelar pelos direitos fundamentais. Neste caso, sugere Tushnet13, o modelo brando de controle jurisdicional de constitucionalidade, que oferece uma alternativa para sistemas que se preocupam em alcançar um equilíbrio entre o papel do Legislativo e do Judiciário na implementação de um Estado Democrático de Direito, fugindo dos riscos de uma supremacia judicial ou de uma absoluta soberania parlamentar. No Canadá, o debate sobre as teorias dialógicas gira em torno da atuação de sua Suprema Corte e a efetivação dos direitos fundamentais da Carta Canadense. Rosalind Dixon14, preocupada com as relações entre o Judiciário e o Legislativo, elabora uma das teorias dos diálogos institucionais mais instigantes no qual ela formula um sistema de atuação que ao invés de contrariar e suprimir as deliberações do Legislativo, o Judiciário deveria permitir que este lançasse um “segundo olhar” sobre a questão. A partir de Dixon, é possível afirmar que a teoria canadense tem a preocupação de corrigir imperfeições no campo constitucional, mas fazê-lo sem grandes interferências em matérias reservadas a entes com papel próprio em uma estrutura com poderes distintos. A ideia do second look cases promovido pelo Legislativo, instituição que deliberou inicialmente a questão sub judice na Corte, caracteriza a teoria de Dixon como um padrão de comportamento institucional fundado no requerimento de autorreflexão sobre deliberações próprias. A teoria norte-americana, por outro lado, sob a perspectiva de Sunstein15, trata a questão diferentemente. O minimalismo judiTUSHNET, Mark. ‘’The Rise of a Weak-form of judicial review’’. Anu College of Law Seminars, 2010. 14 DIXON, Rosalind. The Supreme Court of Canada: Charter dialogue and deference. Chicago Public Law & Legal Theory Working Papers Series, Nº 284, 2009. 15 SUNSTEIN, Cass. One Case at a Time: judicial minimalism on the Supreme Court. Cambridge: Harvard University Press, 1999. 13

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cial seria uma teoria dialógica a partir do momento em que a Suprema Corte, nos momentos de promover a revisão judicial, considera suas capacidades institucionais e os efeitos sistêmicos advindos de suas deliberações.

3. Minimalismo judicial e democracia 3.1 Acordos de incompleta teorização e minimalismo judicial As sociedades contemporâneas são marcadas pela heterogeneidade. Verifica-se uma diversidade de valores que, aparentemente, ameaçam qualquer possibilidade de ordem constitucional e estabilidade social. A sugestão de Cass Sunstein é que as pessoas geralmente concordam com práticas e mesmo com direitos constitucionais embora não concordem com as teorias que fundamentam as disposições da Lei Maior. A proposta do autor é de que a ordem constitucional funciona por meio de acordos de incompleta teorização. Cuida-se de acordos fundamentados em princípios abstratos, que permitem a convergência de diferentes perspectivas morais16. O minimalismo judicial é, objetivamente, uma tendência de limitação da profundidade e pretensão teórica das decisões judiciais. Trata-se da expressão judicial dos acordos de incompleta teorização, invocados em juízo como uma resposta a problemas concretos quando a obtenção de consenso sobre a matéria é difícil em razão do pluralismo presente nas sociedades atuais. Certas questões17 podem suscitar interminável debate de ordem moral, filosófica de modo que os indivíduos não concordariam com as razões apresentadas se considerarmos a heterogeneidade social e a diversidade de perspectivas morais. A ideia do Minimalismo judicial é que, frequentemente, os juízes decidem pouco, deixando coisas abertas. Sobre os princípios abstratos , eles proferem decisões sem atribuir efetivamente um sentido; a abstração é favorável porque habilita uma decisão judicial argumentativamente superficial, de incompleta teorização. Dessa maneira, os juízes falam o mínimo necessário à justificação de um resultado. Um acordo entre particulares é de incompleta teorização no sentido de que os participantes concordam com a prática ou com o resultado sem concordar com a teoria geral que lhes dão fundamento. 17 Por exemplo, união estável homoafetiva, aborto, ações afirmativas etc. 16

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De fato, existe uma relação intrínseca entre minimalismo judicial e democracia. Decisões minimalistas ampliam o espaço de reflexão e debate nos Legislativos municipal, estadual e federal já que a disciplina a ser dada à matéria controvertida não foi determinada e esgotada em uma decisão judicial. Se partirmos da premissa de que a preservação das regras do jogo democrático é função indeclinável da jurisdição constitucional, a Corte deve estimular a deliberação, adotando postura minimalista e deixando, dessa maneira, espaço para o debate político.

3.2 Supremo Tribunal Federal: postura minimalista? O Supremo Tribunal Federal nos últimos anos pronunciou-se em relação a temas polêmicos e moralmente controvertidos, cabendo analisar não o fato de a Corte ter apreciado essas questões, mas como procedeu nessas apreciações. Dessa forma, deve-se atentar à maneira como se operou esses julgamentos para que se possa afirmar se o Tribunal foi ativista em relação a uma causa específica. Analisemos dois casos. Desde 1995, tramitava no Congresso Nacional um projeto de lei (PL1151/95) que pretendia disciplinar a união estável homoafetiva, estendendo a esta vários direitos assegurados às uniões heteroafetivas. Considerando que essa situação violava princípios constitucionais fundamentais, o Supremo Tribunal Federal, em 2011, deu provimento à ADPF 132, equiparando as uniões de pessoas do mesmo sexo às convencionais18. “PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA. O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica.(...)Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana”: direito a auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos da in18

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De fato, a inércia legislativa quanto ao reconhecimento dos direitos LGBT desde 1995 sugere um conservadorismo da sociedade brasileira que suscita o caráter contramajoritário da decisão. Em razão da natureza aparentemente contrarrepresentativa, a Corte foi acusada por muitos de ativista. Defende-se, aqui, a inconsistência da associação intrínseca entre natureza contramajoritária de uma decisão e comportamento ativista da Corte. A análise da ementa da decisão revela a invocação princípios abstratos que correspondem a acordos de incompleta teorização. A partir de valores contidos na tábua axiológica constitucional, promove-se o juízo de questões fáticas envoltas em controvérsias morais. Certamente, a questão homoafetiva é antes de tudo política, todavia o STF pronunciou-se de forma minimalista, permanecendo silente em relação a questões correlatas, como a possibilidade de adoção por homoafetivos, a questão previdenciária etc. A postura minimalista da Corte é evidente: a superficialidade teórica está posta com os princípios apresentados; se pensarmos no princípio da eudaimonia (ou da felicidade), deparar-nos-emos com uma diversidade de perspectivas morais que confluem para esse valor19. A Corte não adota especificamente uma teoria da felicidade, mas trabalha no plano abstrato de modo a evitar divergências. Outra questão que suscita acirrado debate moral é a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio. Recentemente, no julgamento do RE 63565920, três ministros já votaram pela inconstitucionalidade do artigo 28 da lei 11.343, de agosto de 2006. Analisando-se especificamente o voto do ministro Luís Roberto Barroso, pode-se constatar o ativismo judicial21. timidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea.”(grifos meus) 19 A felicidade é objeto de investigação filosófica desde Sócrates. Platão, Aristóteles, Epicuro, Kant, Nietzsche, Schopenhauer, entre outros, debruçaram-se sobre esse tema. A diversidade de teorias é, pois, evidente. 20 Condenado à prestação de serviços comunitários por portar o equivalente a dois cigarros de maconha, o mecânico Francisco Benedito de Souza é o protagonista do debate. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que levou o caso ao Supremo, argumenta que a condenação do mecânico fere os princípios constitucionais da intimidade e privacidade. 21 “Eu estou dando provimento ao RE e consequentemente eu estou absolvendo o recorrente. (...)A minha diferença em relação a posição dos ministros Gilmar e Fachin é que eu estou propondo uma quantidade de referência para distinguir consumo pessoal de tráfico em 25 gramas para viger até que o Congresso se manifeste a respeito pelo fundamento de que a lei já tem quase uma década e que muitos

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Em seu voto, o ministro Barroso fundamenta a inconstitucionalidade do artigo 28 da lei de drogas em basicamente quatro princípios: liberdade; autonomia pessoal; proporcionalidade em sentido estrito e lesividade. Até este ponto, adotou comportamento minimalista, fundado em abstrações de incompleta teorização. Contudo, ao propor um critério objetivo para diferenciação do consumo pessoal e tráfico (vinte e cinco gramas ou seis plantas fêmeas), o voto pode ser tido como exemplo do fenômeno do ativismo judicial. Como salientado, o silêncio é um importante instrumento disponível ao exercício da jurisdição constitucional. Sendo o tema abordado de fundo político e também moral, cabe aos ministros oferecer as mínimas justificações teóricas para a decisão e, sobretudo, posicionar-se somente em relação à questão controvertida. Não se pode negar a razão moralmente elevada que motivou essa proposta de critérios objetivos22, todavia esta não é a função da revisão judicial de constitucionalidade. Os parâmetros devem ser fornecidos pela atividade legislativa, que apresenta as capacidades institucionais para tal.

Conclusão A judicialização da política decorre do movimento de expansão global da jurisdição constitucional, da evolução hermenêutica trazida pelo pós-positivismo e do papel assumido pelo Poder Judiciário na concretização dos valores e direitos constitucionais. Trata-se de um fenômeno contemporâneo, produto da convergência desses fatores, com o qual os juristas terão de lidar. Defende-se a necessidade de observância de capacidades institucionais, adoção de comportamento minimalista e o estabelecimento de diálogos institucionais a fim de garantir a cooperação sistêmica e combater o ativismo judicial. Não resta dúvida que o constitucionalismo democrático visa a limitar o exercício do Poder Político. Com a judicialização da política, impõe-se ao Poder Judiciário o respeito aos limites insjovens são presos arbitrariamente pela ausência desta referência. E o legislativo, assim que atue, sua vontade política deve prevalecer nessa matéria; o mesmo raciocínio vale para as 6 plantas fêmeas -a planta fêmea é a que produz a resina psicoativa em quantidade suficiente para produzir a droga.”(grifos meus). 22 “a lei já tem quase uma década e que muitos jovens são presos arbitrariamente pela ausência desta referência”

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titucionais definidos pelo constitucionalismo, sob pena de produção de efeitos sistêmicos indesejados, como o vício da separação de poderes. As Cortes constitucionais desempenham, na maioria das vezes, papel representativo por refletir visões majoritárias presentes na sociedade, fenômeno aplaudido em virtude da crise global da representação política. Defende-se a autonomia contingenciada das Cortes dada a pressão exercida pela opinião pública e pelas instituições políticas para que os juízes captem deliberações que se estabelecem na sociedade. Propõe-se o estabelecimento de diálogos institucionais de maneira a erigir um projeto de cooperação sistêmica. O modelo canadense, em que se verifica o apelo ao legislador permitindo um second look ratifica a observância das capacidades institucionais e a adoção de comportamento minimalista. Com esse mecanismo, é possível corrigir imperfeições no campo constitucional, mas fazê-lo sem grandes interferências em matérias reservadas a entes políticos. Portanto, no Brasil, o Supremo Tribunal Federal, para afastar-se de comportamento ativista, deve observar seus limites institucionais por meio do minimalismo proposto por Sunstein e da interação com instâncias políticas, com o legislativo. Conclui-se que a democracia não é um fenômeno apenas de ordem constitucional, mas se resolve também no plano institucional, sendo inconsistente no atual estágio da hermenêutica constitucional desqualificar a jurisdição constitucional pelo seu afastamento do processo majoritário.

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DEMOCRATIZAÇÃO DO CONTROLE JURISDICIONAL DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO: A LEGITIMIDADE DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL POR MEIO DO MÉTODO DIFUSO José Nilton Nascimento Neves1

Introdução No Brasil, atualmente, há um discurso de legitimação do controle concentrado de constitucionalidade segundo o qual a Constituição de 1988 concebeu “[...] novas garantias de proteção da ordem constitucional objetivas e do sistema de direitos subjetivos, tornando o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade um dos mais intricados do mundo [...]”(MENDES 2010, 306). Afirma-se, em relação ao sistema concentrado, que se tem “[...] um sistema de defesa da Constituição tão completo e tão bem estruturado que, no particular, nada fica a dever aos mais avançados ordenamentos jurídicos da atualidade” (MENDES; COELHO e BRANCO 2009, 208). No entanto, as constatações empíricas da prática do controle de constitucionalidade no Brasil demonstram que no sistema concentrado, [...] o STF realiza basicamente um controle da própria estrutura do Estado [...], sendo que, [...] nas poucas decisões em que o STF anula normas com base na aplicação dos direitos fundamentais, existe uma preponderância de interesse corporativos (BENVINDO; COSTA 2014, 76). Assim, partindo desta explanação e considerando a discussão sobre a democratização do controle de constitucionalidade no Brasil, este trabalho levanta o seguinte problema: considerando o processo de verticalização do controle de constitucionalidade - tenPós-graduando em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Bacharel em direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia UESB. Advogado. Brasil. E-mail: [email protected]/josenilton101@ gmail.com.

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https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V01_A07

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dência de concentração a um único órgão, o Supremo Tribunal Federal, no caso brasileiro, como principal intérprete da Constituição no âmbito deste instituto -, sobretudo, a partir da Constituição de 1988, quando se observa o processo de expansão do método concentrado (ADI, ADO, ADPF, súmulas vinculantes etc.), bem como por um discurso de legitimação deste em razão do qual se constitui num meio mais hábil à defesa dos direitos fundamentais, de que forma o controle jurisdicional de constitucionalidade pelo método difuso contribui para o processo de democratização do instituto do controle de constitucionalidade no Brasil? Com base neste questionamento, o trabalho tem a hipótese segundo a qual o método difuso de defesa da Constituição é uma via que possui maior legitimidade porque baseado num processo subjetivo, pelo qual os integrantes do conflito de interesses participam de forma mais ativa através de um consenso fundado em argumentos, o que possibilita, reflexamente, a abertura para a interpretação constitucional, ao invés de se consolidar um processo de interpretação restrita e limitada, uma característica do controle concentrado. Como objetivo, o presente trabalho visa estudar, brevemente, o instituto do controle de constitucionalidade no Brasil, iniciando-se pela análise do seu desenvolvimento no direito comparado até a sua chegada e desenvolvimento no direito brasileiro, especialmente, na Constituição de 1988, ápice da expansão do modelo abstrato, e, a partir disso, contrapor tal expansão, mostrando-se que o modelo difuso não pode ser suprimido, conforme tendência do pensamento constitucional majoritário. Esta pesquisa se justifica pela importância que possui o sistema de controle de constitucionalidade difuso, que tem uma tradição secular, constituindo-se enquanto canal de participação cidadã e aberto, no sentido de permitir a todos os cidadãos a interpretação da Constituição, contribuindo para aquilo que se convencionou chamar de sociedade aberta dos intérpretes da Constituição (HÄRBELE 1997).

1. O sistema de controle jurisdicional de constitucionalidade do Brasil O controle jurisdicional2 de constitucionalidade no Brasil 2

No Brasil, há também a modelo político de controle de constitucionalidade exer-

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admite a coexistência dos modelos concentrado e o difuso. Neste qualquer juiz ou tribunal pode declarar a inconstitucionalidade de uma norma discutida no plano de um caso concreto. Naquele, o controle de constitucionalidade é exercido pelo Supremo Tribunal Federal, corte com competência específica para o exercício desse modelo. No âmbito da história constitucional brasileira, o primeiro modelo de controle judicial de constitucionalidade adotado foi o difuso (OLIVEIRA 2009, 233), com a Constituição de 1891 - na de 1824 não havia um sistema jurisdicional de controle das normas (ANDRADE e BONAVIDES 1991, 422) -, cuja influência foi o constitucionalismo estadunidense (BARBOSA 2003, 19). Já o método concentrado foi introduzido propriamente3 por ocasião da Emenda Constitucional n. 16, em 1965, consolidando-se o processo abstrato de garantia da Constituição (MENDES 2012, 35), sob o monopólio, em relação à propositura da representação perante o STF, do Procurador-Geral da República. A expansão do sistema concentrado consolidou-se com o advento da Constituição de 1988 e, sobretudo, a partir do conjunto de alterações legislativas que se viu elaborar (Emenda Constitucional n. 3, de 17.03.1993, Leis n. 9.868 e n. 9.882 dentre outras), fazendo do STF órgão central e preponderante no âmbito da Jurisdição Constitucional, transformando-o “num arremedo de Corte Constitucional europeia” (CATTONI DE OLIVEIRA 2001, 178). Ao longo da história constitucional do Brasil, portanto, é possível observar um declínio da importância do controle difuso, adotado desde a Constituição de 1891, paralelo ao processo de fortalecimento e expansão da jurisdição constitucional, mediante o controle concentrado, ao argumento deste ser mais adequado à defesa dos direitos, em especial dos fundamentais.

2. A fundamentação jusfilosófica e o discurso de legitimação do controle concentrado de constitucionalidade no contexto brasileiro No plano jusfilosófico, o debate sobre a prevalência, no âmbito da Jurisdição Constitucional, do modelo de controle abstrato/ cido tanto no âmbito do Poder Executivo como no do Poder Legislativo. No entanto, este modelo não interessa aos fins a que se destina o presente trabalho. 3 Cfe. Streck, Jurisdição Constitucional e Hemenêutica, op. cit., p. 347-348.

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concentrado possui fundamentação nas teses sustentadas por comunitaristas e positivistas4 - o Supremo Tribunal Federal tem a capacidade de vir a ser o único guardião dos valores constitucionais -, em contraposição à tese dos procedimentalistas5 - o controle difuso no Brasil já teria se tornado uma tradição entre as instituições republicanas de defesa da cidadania e dos direitos fundamentais. Segundo a concepção comunitarista/positivista, o controle de constitucionalidade das leis teria o “fim único de garantia da Constituição” (CRUZ 2004, 219), de modo que se deve privilegiar a instalação de Tribunais especiais - Cortes Constitucionais - que reconheçam tal questão - controle de constitucionalidade das normas - através de um procedimento específico, consubstanciado num processo objetivo - sem contenciosidade ou contraditório -, tendo em vista esta modalidade de jurisdição ser atividade específica de um Tribunal Constitucional, rejeitando implicitamente a possibilidade de sua extensão aos órgãos do Judiciário Ordinário e, por via reflexa, do controle difuso de constitucionalidade. Hans Kelsen, como idealizador do modelo concentrado, “(...) restringe, assim, a comunidade de intérpretes autorizados da Constituição aos órgãos jurídicos, não a estendendo a todo o público de cidadãos”(CATTONI DE OLIVEIRA 2000, 24). A partir dos paradigmas comunitarista e positivista, a Jurisdição Constitucional deve se concentrar num único órgão já que a interpretação constitucional é atividade impregnada de formalidade e deve ser obra essencialmente de jurisconsultos versados em Direito Constitucional (CRUZ 2004, 221). O discurso de legitimação do modelo abstrato/concentrado ocorre no sentido deste ser um instrumento adequado à defesa dos direitos e garantias fundamentais, constituindo-se num “sistema de defesa da Constituição tão completo e tão bem estruturado que, no particular, nada fica a dever aos mais avançados ordenamentos jurídicos da atualidade” (MENDES 2009, 208). A adoção do modelo concentrado seria um instrumento de correção do sistema incidente (difuso), principalmente a partir da ampliação dos legitimados para propositura da ação direta, em especial, pela possibilidade de Embora comunitarismo e positivismo constituam vertentes do pensamento jurídico distintas, neste trabalho será adotado o ponto em comum que possuem em relação ao instituto do controle de constitucionalidade. 5 Cfe. Sarmento; Souza Neto, Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho 4

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diferentes órgãos da sociedade (MENDES 2011, 626) figurar neste universo de atores (art. 103, CRFB/88). Esse discurso, por vezes, ganha força com a argumentação teórico-dogmática segundo a qual a supressão do monopólio conferido ao Procurador-Geral da República no âmbito do controle concentrado (MENDES e STRECK 2013, 1410) e, ampliando-se o rol de legitimados para a propositura das ações do sistema abstrato, a partir da Constituição de 1988, torna evidente a importância que este método passar a assumir no cenário brasileiro. A supremacia do modelo concentrado, ainda, encontra relevância na atual posição do STF no arranjo institucional do Poder Judiciário brasileiro em razão da sua crescente atuação e concentração de poderes, o que levou, em razão de tal constatação, à qualificação deste tribunal como sendo protagonista de um fenômeno chamado “supremocracia”, que identifica a situação na qual o STF assume papeis extraordinários, na medida em que extrapola os limites dos poderes, segundo aquela perspectiva clássica de freios e contrapesos (VIEIRA 2008, 445).

3. Descompasso entre teoria e prática do controle concentrado de constitucionalidade No âmbito prático, despeito do discurso téorico de legitimação do método concentrado, a maneira pela qual se exerce atualmente o controle de constitucionalidade concentrado no Brasil (em especial por meio da espécie ADIn) caracteriza uma utilização coorporativa do instituto. Embora esta modalidade “envolva uma análise em abstrato da norma impugnada, [...] este sistema somente pode ser movido quando há um interesse concreto dos agentes legitimados para invocar essa forma de controle” (BENVINDO e COSTA 2014, 18), de modo que ajuizar uma ação direta de inconstitucionalidade é uma opção, atualmente, estritamente política. Essa constatação é evidente, p. ex., em relação aos partidos políticos, os quais atuam “preponderantemente em função de seus interesses institucionais e de conveniências político-eleitorais” (BENVINDO e COSTA 2014, 75), o que subverte a justificativa de atribuição de legitimidade para tal ente, tendo em vista que esta condição é consequência da ideia de que os partidos poderiam atuar em defesa dos direitos das pessoas e interesses dos quais são

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representantes - os cidadãos, genericamente. Ademais, em alguns casos, a propositura da ação em sede de controle abstrato está muito mais relacionada a “uma estratégia para conferir visibilidade a pretensões de partidos pequenos da oposição [...] do que uma estratégia de anulação de atos fundados em uma argumentação jurídica sólida” (BENVINDO e COSTA 2014, 76). Relevante também, no que diz respeito à preponderância de interesses corporativos em detrimento da coletividade que representa, é o caso das entidades patronais. Em relação ao histórico de êxito em sede de ADIn, “a única decisão que estas entidades obtiveram com base na aplicação de direitos fundamentais foi na defesa dos benefícios fiscais das entidades” (BENVINDO e COSTA 2014, 77), ao invés de ter ocorrido no interesse dos próprios trabalhadores. Os fundamentos utilizados nas ações (ADIn) no método concentrado são variáveis, segundo seja o âmbito federal ou estadual. Neste, os principais fundamentos referem-se a inconstitucionalidade formal (55%), material (40%) e direitos fundamentais (apenas 4%!!!) (BENVINDO e COSTA 2014, 58). Do ponto de vista empírico, portanto, o método concentrado não tem representado o que parcela significativa da doutrina tem enfatizado, um instrumento de garantia dos direitos fundamentais. O que se observa, predominantemente, é um sistema que permite mais a garantia de interesses institucionais ou corporativos dos atores legitimados do que de proteção de direitos dos cidadãos (BENVINDO e COSTA 2014, 63) ou da garantia do interesse público. Os argumentos no sentido de que a ampliação do rol de legitimados (SANTOS 2013, 68) para propositura de ações pelo regime concentrado favoreceu a abertura democrática do acesso ao sistema, a partir da Constituição de 1988, não se sustenta em face da análise prática do instituto de controle de constitucionalidade concentrado, uma vez que, além de entre os legitimados não serem todos atuantes - em alguns casos não há sequer atuação como, v.g., a Mesa da Câmara dos Deputados -, (BENVINDO e COSTA 2014, 74) a ampliação se deu em benefício de entes que atuam no sentido de satisfazer interesses corporativos e sujeitos às influências de grupos de pressão (BENVINDO E COSTA 2014, 79), de modo que a via abstrata de controle de normas torna-se uma possibilidade de agir estratégico em proveito de interesses limitados, assim como tática de oposição (retardar, impedir, desmerecer ou declarar a oposição

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a determinadas leis) (ROS e TAYLOR 2008, 848). Na atuação concentrada, a atuação predominante do STF é voltada a questões relativas a competência (BENVINDO e COSTA 2014, 79) - controle da estrutura do Estado -, com ampla incidência sobre a delimitação do âmbito de atuação dos estados em face da União, demonstrando que, na prática, o que ocorre é uma supremacia deste ente em relação ao estados. Assim, o descompasso entre teoria e prática no controle concentrado/abstrato de constitucionalidade no Brasil é evidente. Os argumentos utilizados para a defesa desse método, tanto no plano teórico-dogmático, quanto no jusfilosófico - correntes positivistas e comunitaristas - não condizem com a prática constitucional brasileira, de forma que se torna necessário estudos mais aprofundados a respeito das especificidades da Jurisdição Constitucional no Brasil, tendo em vista os riscos que se pode cometer com a importação de teorias jurídicas sem o prudente compromisso de averiguar a possibilidade de sua implantação em condições diversas em relação àquelas que lhes deram origem.

4. A legitimidade da jurisdição constitucional pelo método difuso de controle de constitucionalidade A predominância do sistema concentrado de constitucionalidade em detrimento do difuso tende a criar um canal não democrático de proteção de direitos. Como já se disse, o método abstrato (concentrado), na realidade brasileira, satisfaz interesses institucionais ou corporativos dos legitimados, em face de um sistema essencialmente republicano (BENVINDO e COSTA 2014, 11), o difuso, tendo em vista ser possível a sua propositura por qualquer indivíduo. Afirma-se neste trabalho que a via difusa de controle de constitucionalidade possui maior legitimidade democrática porque realizado no âmbito de um processo subjetivo, diversamente do método concentrado (objetivo), no qual não se veicula pretensões resistidas, isto é, não há um conflito de interesses entre duas partes (autor e réu), permeado pelo contraditório. O método difuso permite, assim, o estabelecimento de um consenso fundado a partir de argumentos entre os interlocutores - partes processuais e juiz -, no sentido habermesiano (agir comunicativo).

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Essa constatação tem implicações no campo da teoria do direito, em especial no âmbito da metodologia da decisão jurídica. Na teoria do direito de Ronald Dworkin (DWORKIN 2007, 164), a solução de um conflito jurídico deve ser resultado de um esforço muito grande por parte juiz, que é, metaforicamente, adjetivado de Hércules, no sentido do empreendimento tortuoso em que consiste a atividade hemenêutica (SILVA 2004). Podemos [...] examinar de que modo um juiz filósofo poderia desenvolver, nos casos apropriados, teorias sobre aquilo que a intenção legislativa e os princípios jurídicos requerem. Descobriremos que ele formula essas teorias da mesma maneira que um árbitro filosófico construiria as características de um jogo. Para esse fim, eu inventei um jurista de capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade sobre-humanas, a quem chamarei de Hércules. (DWORKIN 2007, 164)

Pelo modelo teórico de Dworkin, a solução dos conflitos ocorre a partir de uma perspectiva fechada de interpretação, pois a resposta adequada ao problema é resultado de um esforço individual do intérprete - “perspectiva de um juiz que tem a pretensão de um privilégio cognitivo” (HABERMAS 1997, 276). No entanto, para Habermas, com fundamento na teoria do agir comunicativo - marco teórico do procedimentalismo -, Ronald Dworkin equivoca-se, pois o “juiz singular tem que conceber sua interpretação construtiva como empreendimento comum, sustentado pela comunicação pública dos cidadãos” (HABERMAS 1997, 278). Ou seja, a solução do conflito de interesses deve ser resultado de uma atuação plural, na qual a interpretação deve ser feita pelos participantes, argumentativamente, até que, então, se chegue a um consenso. Precisamente o ponto de vista da integridade teria que libertar Hércules da solidão de uma construção teórica empreendida monologicamente. Dowrkin [...] entende o direito como meio da integração social, mais precisamente, como um medium que permite manter a autocompreensão de uma comunidade solidária, numa forma por demais abstrata. [...] Entretanto, é possível ampliar as condições concretas de reconhecimento através do agir comu-

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nicativo, ou seja, através da prática de argumentação, que exige de todo o participante a assunção das perspectivas de todos os outros. (HABERMAS 1997, 277)

A prática dialógica, portanto, se impõe durante o processo interpretativo, o qual se torna mais legítimo - maior nível de aceitação por todos - a partir de uma pluralidade de intervenções. Assim, é que, para Peter Härbele (1997, 15), Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico.

Desse modo, a partir dessas considerações, o método difuso de defesa da Constituição, um meio pelo qual também se realiza a interpretação jurídica, é um instrumento mais hábil, no âmbito da Jurisdição Constitucional, a defender os direitos dos cidadãos (SILVA 2004). Na realidade brasileira do controle de constitucionalidade, já se demonstrou o descompasso entre o discurso de legitimação do sistema abstrato e o quão é sua efetividade no que diz respeito à proteção dos direitos fundamentais, na medida em que, predominantemente, figura muito mais como um instrumento de defesa de interesses corporativos e de ação estratégica dos atores legítimos, razão pela qual se torna necessária uma (re)discussão sobre o império do modelo concentrado. A Jurisdição Constitucional abstrata reduz significativamente o processo de abertura da Constituição aos cidadãos, restringindo, assim, o número de seus intérpretes. “Limitar a Hermenêutica constitucional aos intérpretes ‘corporativos’ ou autorizados jurídica ou funcionalmente pelo Estado significaria um empobrecimento ou um autoengodo” (HÄBERLE 1997, 34). O método difuso, ao contrário, representa a institucionalização de um canal para a participação cidadã e democrática no âmbito da interpretação da Constituição, implicando, consequentemente, numa jurisdição com maior legitimidade na sociedade. As inovações ocorridas no âmbito da Jurisdição Constitucional brasileira como, v.g, as súmulas vinculantes, engessam a possi-

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bilidade de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição, atribuindo ao Supremo Tribunal Federal um papel quase autocrático (CRUZ, MEYER e RODRIGUES 2012, 145) e, paralelamente, a um processo de abandono da via difusa de Jurisdição Constitucional, de tradição centenária, a qual permite a participação mais ativa dos cidadãos, na medida em que torna a sociedade co-intérprete da Constituição (CRUZ 2000, 17). O método difuso/incidental atua em contraposição ao modelo fechado de interpretação da Constituição. Além de ser um modelo de tradição secular (CARVALHO NETO 2003, 163) - a recepção do judicial review ocorreu com a Constituição de 1891 -, contribui para aquilo que Härbele (1997) chamou de sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, na medida em que se funda no pressuposto segundo o qual cada cidadão é intérprete da Constituição e deve contribuir com o processo hermenêutico-constitucional porque vive num contexto regulado por esta norma. Por isso, torna-se necessário a consciência da riqueza deste sistema, o difuso, para que se possamos preservá-lo e protegê-lo das constantes tentativas autoritárias representadas pelo fortalecimento do controle concentrado (MAGALHÃES 2001, 214), o que torna necessário a assunção de um papel menos funcionalista (CRUZ, MEYER e RODRIGUES 2012, 147) e mais cidadão, reconhecedor de que são todos (Advogados Públicos e Privados, Defensores Públicos, membros do Ministério Público e membros da Magistratura) responsáveis pela interpretação constitucional.

Conclusão Ao longo deste trabalho, buscou-se demonstrar que o controle jurisdicional de constitucionalidade difuso das normas no Brasil se constitui como condição de possibilidade para democratização do sistema de controle judicial das normas no Brasil, haja vista a sua legitimidade democrática, pois se realiza no âmbito de um processo subjetivo, permitindo, assim, o estabelecimento de um consenso fundado a partir de argumentos entre os interlocutores partes processuais e juiz -, ao invés de consolidar um processo de interpretação restrita e limitada a um órgão - no caso do Brasil, o STF. O presente trabalho apresenta limites e por se tratar de as-

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sunto relativamente pouco debatido, há que se realizar novos estudos a respeito da legitimidade democrática da jurisdicão constitucional, tema no qual insere-se a importância do método de controle de constitucionalidade difuso.

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CÍCERO E A CONVIVÊNCIA HARMÔNICA DOS PODERES: UM LEGADO PARA A MODERNIDADE Ana Guerra Ribeiro de Oliveira1 Igor Moraes Santos2 Introdução Os pilares clássicos da Filosofia Política representam ainda hoje contributos relevantes para a compreensão do presente, seja a partir da perspectiva histórica, seja a partir da perenidade de certos temas, sobre os quais a humanidade tem refletido ao longo de milhares de anos. Entre os nomes relevantes da Antiguidade que merecem destaque, Cícero irrompe como exemplo notável do espírito romano. Pai da advocacia, grande orador, magistrado e filósofo, foi capaz de conectar intimamente justiça e poder, deixando claro o papel central do direito na organização política e, assim, na garantia da igualdade e da liberdade. Com efeito, para Cícero, o governo, para ser perfeito, impende estar estruturado equilibradamente. Prerrogativas, deveres e atribuições têm de ser repartidos eficazmente entre os componentes sociais, segundo a natureza específica do poder que possuem. Ao povo (populus), Senado (senatus) e magistrados (magistratus) cabem funções específicas, ao que correspondem os poderes na forma de potestas, auctoritas e imperium. O Arpinata constata que o governo republicano de seu tempo era já degenerado e, então, debruça-se sobre um projeto de salvação da república, alicerçado nas teorias gregas acerca da constituição mista, atestadas pela história, ainda que esta história seja por vezes idealizada. Dessa maneira, nota-se que Cícero, no jogo entre teoria e história, por meio de sua república, delineia um quadro de separação de poderes, no seio de um regime misto, o que, em certo sentido, antecipa algumas das discussões da Modernidade sobre Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Brasil. E-mail: [email protected]. 1

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este tema. De fato, os escritos tulianos, a despeito da redescoberta de partes significativas apenas nos últimos séculos, influenciou numerosos pensadores, de Santo Agostinho a Maquiavel e Kant. Mais especificamente, o Barão de Montesquieu foi ávido apreciador da cultura romana, em meio a qual Cícero era um nome recorrente. Na juventude escreveu o breve ensaio Discours sur Cicerón (Discursos sobre Cícero), em que exalta os feitos e as obras do Arpinata, e, posteriormente, Considérations sur les causes de la grandeur des Romains et de leur décadence (Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e de sua decadência), ocasião em que Cícero é novamente lembrado, ainda que um tom mais maduro. Ademais, em sua principal obra, L’esprit des lois (O Espírito das Leis), Montesquieu menciona Cícero justamente no Livro XI, no qual discute de forma explícita acerca da necessidade de separação dos poderes. A experiência romana é objeto de interesse constante e fonte de inspiração. Dessa forma, considerando o papel primordial das obras ciceronianas para a formação cultural do Ocidente, servindo de verdadeiro referencial para o conhecimento do mundo antigo, cogita-se que a herança da constituição mista e da separação de poderes foi, em larga medida, proporcionada pela recuperação de Cícero. Apesar das discussões a respeito dos limites do clássico como referencial em face das novas criações, notadamente nos séculos XVIII e XIX, as contribuições da Antiguidade deixaram ampla marca na formação do Estado e do constitucionalismo modernos. Logo, o presente trabalho pretende analisar a concepção ciceroniana de constituição mista, em especial as relações de equilíbrio entre os poderes. Ao final, tentando identificar o seu legado para a Modernidade, particularmente para a Filosofia Política e como fundamento político-filosófico para as teorias sobre a separação dos poderes, buscar-se-á fazer uma conexão com o primeiro grande expoente moderno desta matéria, Montesquieu, por meio da identificação de possíveis influências recebidas por este da cultura romana e do pensamento tuliano.

1. Cícero e a harmonia dos três poderes Cícero, como homem público, lutou para preservar a república, pois acreditava que esta seria a forma mais estável de governo, capaz de conferir poder, equilíbrio e força para os crescentes

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domínios romanos. Buscou, igualmente, construir uma filosofia política que defendesse os pilares republicanos, exaltando sua racionalidade e solidez. Ao voltar os olhos para o passado, idealizava uma forma de governo perfeita, uma república ideal, pura, livre dos vícios e da corrupção da Roma de seu tempo. Embora consciente da decadência da república real contemporânea, lutou para preservar os ideais republicanos e salvar a civitas do domínio de homens ambiciosos. Em sua teoria, justiça e poder estão intrinsecamente conectados: o poder precisa ser organizado conforme o direito (justa imperium) e garantir institucionalmente a igualdade da justiça.3 Os exemplos históricos ensinam, segundo Cícero, que as formas de governo tradicionais, notadamente a monarquia, a aristocracia e a democracia, apresentam inconsistências que, cedo ou tarde, levarão a degenerações, de modo a não se sustentarem.4 Com efeito, toda forma política possui seus vícios e inconvenientes.5 A monarquia pode converter-se em despotismo, ficando à sorte de um governante virtuoso, a aristocracia restringe a liberdade a alguns somente e a democracia não era a melhor forma de governo em Cícero e tampouco o era para Aristóteles e Platão, pois o excesso de liberdade conduziria o povo à servidão.6 Nas palavras de Cícero: Mas, na monarquia, a generalidade dos cidadãos toma pouca parte no direito comum e nos negócios públicos; sob a dominação aristocrática, a multidão goza de muito pouca liberdade, pois está privada de participar nas deliberações e no poder; por último, quando o povo assume todo o poder, mesmo supondo-o sábio e moderado, a própria igualdade se torna injusta desigualdade, porque não há gradação que distinga o verdadeiro mérito.7

Como é possível perceber, Cícero se preocupava com o controle do exercício do poder, de modo a propiciar, simultaneamente, a liberdade dos cidadãos, na forma de participação política, e um tratamento que valorizasse o mérito de cada um, levando a refle3

Salgado, “O humanismo de Cícero,” 167. Cícero, De re publica, I, 26 e segs. Cf. Cícero, Da República (São Paulo: Abril Cultural, 1973), 155. 5 Salgado, “O humanismo de Cícero,” 167. 6 Cícero, De re publica, I, 26 e segs. Cf. Cícero, Da República, 160. 7 Cícero, De re publica, I, 27. Cf. Cícero, Da República, 155. 4

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xões sobre uma forma perfeita de governo. A constituição ideal deveria conjugar características da monarquia, da aristocracia e da democracia,8 eliminando os vícios de cada uma e, ao mesmo tempo, somando as suas virtudes.9 Um regime como este deveria ser um concerto igualitário entre os três poderes romanos tradicionais: magistratus, populus e Senatus.10 Para Cícero, tanto os magistrados devem ter suficiente poder, como os conselhos dos grandes ou o Senado, devem ter suficiente autoridade, assim como o povo, deve ter suficiente liberdade.11 Os três atuariam harmonicamente: “o magistratus nos vários cargos exerce a auctoritas por representação; o Senatus, ordem, reúne os magistrados e possui a autoridade (auctoritas) criadora do ius; e o populus que possui o poder (potestas) criador da lex, mais tarde, no Império, por representação.”12 Ademais, Cícero percebeu que a composição equilibrada garante uma constituição estável, avessa a mudanças bruscas e, por conseguinte, capaz de assegurar a todos a vida boa, em que os cidadãos são livres e o bem comum é concretizado. Em suma, “a República é coisa do povo” (res publica res populi), que tem fundamento no consentimento jurídico (iuris consensu) e na utilidade comum (utilitatis communione sociatus),13 a partir da harmonia entre “qualidade” (os melhores no Senado) e “quantidade” (o povo nos comícios) na organização do poder. Descreve Salgado: Há um concerto dos três pilares da República: o populus (potestas), o senatus (auctoritas) e o magistratus (imperium), que exercem o poder. A República é, desse modo, coisa do povo no sentido próprio da palavra, e o povo não é simplesmente um aglomerado, mas uma sociedade de pessoas ligadas pelo direito por meio do consenso, e que partilham o bem comum. O consenso em torno da lei ou direito que lhe dá unidade é o que constitui a civitas na forma da República e não de um reino despótico. Não apenas o que se põe diante da res privata (assuntos privados, particulares), mas além do patrimônio, 8

Amaral, História das Ideias Políticas, 140 e segs. Salgado, “O humanismo de Cícero,” 167. 10 Salgado, “O humanismo de Cícero,” 167, p. 167; Joaquim Carlos Salgado. A ideia de justiça no mundo contemporâneo; fundamentação e aplicação do direito como maximum ético (Belo Horizonte: Del Rey, 2006), 154. 11 Amaral, História das Ideias Políticas, p. 140 e segs. 12 Salgado, “O humanismo de Cícero,” 167. 13 Cícero, De re publica, I, 25. Cf. Cícero, Da República, 155. 9

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uma universitas civium, a sociedade organizada sob uma ordem jurídica por ela criada. Respublica opõe-se, portanto, verticalmente, a regime despótico ou autocrático.14

Nota-se, ainda, que esta constituição decorre da ação do povo na história e, por dele emanar, tem-se configurada a legitimidade do poder em Roma: Desde a origem, Roma se organiza sobre o poder do populus, conceito que se vai ampliando até abarcar patrícios e plebeus. O poder não vem da divindade, mas do povo e por um ato jurídico específico: a Lex Regia na Monarquia e a Lex de Imperio, no Império. Nesse sentido, o poder em Roma é juridicamente legítimo.15

Interessante ressaltar que a noção do regime misto como o melhor não é contribuição inédita de Cícero. Antes dele, mesmo sob pontos de vista um tanto diversos, trataram Platão, Aristóteles e, colocando em destaque o modelo romano, Políbio.16 Entretanto, o Arpinata, imbuído do espírito pragmático romano e do amplo conhecimento sobre o pensamento helênico, “introduz a história no conceito de Estado ou na ideia de Estado de Platão”, pois “não é um, ou não são alguns homens que escrevem ou elaboram a Constituição, mas o povo romano no seu tempo histórico.17 Outrossim, vale ressaltar que Cícero tem por esse modelo perfeito não a República romana de seu tempo, já degenerada e em declínio, mas aquela dos primeiros séculos, em seu auge, sob a liderança dos grandes optimates, ainda não tomada pela ambição militar e pecuniária desenfreada. A incógnita que se lança aos intérpretes contemporâneos da obra ciceroniana é se esta República um dia existiu na história romana ou se se trata de uma elucubração nostálgica germinada em uma fase de instabilidade e transição política.

2. A recepção de Cícero 14

Salgado, A ideia de justiça no mundo contemporâneo, 154. Salgado, A ideia de justiça no mundo contemporâneo, 156. 16 Cícero, Introducción a Las leyes, por Álvaro D’ors (Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1953), 26; Leo Strauss. Direito Natural e História. (São Paulo: Martins Fontes, 2014), 172. 17 Salgado, “O humanismo de Cícero,” 171. 15

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Logo após sua trágica morte,18 Cícero foi retomado por historiadores como Plutarco e pelo professor Quintiliano, que recuperou as teses retóricas e filosóficas de Cícero em seu Institutos de Oratoria (Institutio Oratoria). Outro de seus admiradores foi Santo Agostinho, que responsabilizou a obra Hortensius19 por sua definitiva conversão ao cristianismo. No Medievo tardio, João de Salisbury foi outro seguidor de Cícero, abordando em suas obras as teses ciceronianas do conhecimento, da simplicidade e da imortalidade da alma.20 Ao longo do Medievo, as obras de Cícero foram amplamente utilizadas pela Igreja no processo de educacional, servindo de textos-base para o aprendizado da língua latina. Precisamente pela escrita primorosa e domínio da retórica, foram amplamente estudadas nas primeiras universidades, em que esta arte figurava ao lado de outras artes liberais estudadas. Por isso, no Renascimento, foi notável o entusiasmo pela figura de Cícero e uma série de autores e obras dos séculos XV e XVI trataram de recuperá-lo, embora tenham inicialmente pouco se ocupado do ponto de vista do direito e da política, dedicando-se mais às influências do estilo estético retórico, como o famoso Diálogo Ciceroniano de Erasmo de Roterdã, e a aspectos filosóficos diversos.21 Na Modernidade, as ideias políticas de Cícero foram retomadas e autores como Hume e Montesquieu foram vorazes leitores de suas obras. Entretanto, muitas referências a Cícero foram feitas indiretamente ou sem conferir crédito ao filósofo romano, o que torna difícil perceber o real alcance de sua filosofia nas ideias do período.22 18

Com a irreversível decadência da República, a rápida ascensão e brusca queda de Júlio César, que teve por consequência a instabilidade política e as disputas pelo poder entre Marco Antônio, Lépido e Otávio, Cícero não previu os rumos que o flutuante jogo político tomaria. A aproximação temporária entre os então inimigos Marco Antônio e Otaviano, resultou em um acordo de concessões recíprocas, entre elas, a eliminação de desafetos, incluindo Cícero, que foi assassinado em 43 a.C. Plutarco, Vidas Paralelas, 168-174; Pietro Bonfante, História del Derecho Romano: Vol. 1 (Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1944), 401; Peixoto, Curso de Direito Romano, 78-80. 19 Karine Salgado. A filosofia da dignidade humana: a contribuição do alto medievo (Belo Horizonte: Mandamentos, 2009), 48. No texto, do qual restam apenas fragmentos, Cícero faz uma defesa da filosofia em contraposição à retórica sofistica como meio de alcançar a felicidade. 20 Christian F. P. Pérez,“Un análisis histórico del status filosófico de Cicerón,” Revista Légein 19 (2014), 64-66.

Pérez, “status filosófico de Cicerón,” 66; Emilio Costa, Cicerone Giureconsulto: vol. 1 (2. ed. Bolonha: Nicola Zanichelli Editore, 1927), 4-7. 21

Fox ressalta que, nos séculos XVIII e XIX, os estudos sobre Cícero entraram em declínio, tendo como principais motivos as releituras dos escritos platônicos a 22

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Para o tema aqui abordado, merece cuidadosa análise a influência de Cícero nas obras de Montesquieu, por ter sido ele o responsável pela construção e sistematização da teoria da separação dos poderes como concebemos hoje e por ter influenciado o pensamento europeu anterior à Revolução Francesa, em especial a partir da clássica obra L’esprit des lois (1748).

3. O princípio da Separação de Poderes em Montesquieu e a influência de Cícero Um dos mais destacados políticos e filósofos de seu tempo, Montesquieu (1689-1755) é confesso herdeiro do pensamento político ocidental desde a Antiguidade e, em seu livro L’esprit des lois (1748), realiza minuciosa análise e acurada compilação de exemplos de legislações de outros povos e civilizações. Ainda na juventude, Montesquieu escreveu o ensaio Discours sur Cicerón que, à época, não ficou conhecido e somente foi publicado postumamente em 1892.23 No pequeno texto, Montesquieu tece um longo elogio à Cícero e lamenta seu destino trágico e afirma que, de todos os antigos, foi ele quem teve o maior mérito pessoal. Mostra conhecer a biografia do político romano e enaltece sua vida pública, sua capacidade oratória e eloquência, bem como sua obra como tradutor e filósofo original. Foi, para Montesquieu, o grande protetor da República, o “libertador da pátria e o defensor da liberpartir do século XIX, a incompreensão do raciocínio tuliano calcado na influência cética acadêmica e a aversão iluminista aos resquícios de ecos do poder da Igreja, considerando o papel dos trabalhos sobreviventes como uma das principais fontes utilizadas para a formação educacional clássica. Matthew Fox. Cicero’s Philosophy of History (Oxford: Oxford University Press, 2007), 69-75. Para uma análise da recepção de Cícero, de sua avaliação negativa no fim da Modernidade a partir da leitura de Hegel, bem como de sua revalorização a partir da segunda metade do século XX, ver: Pérez, “status filosófico de Cicerón,” 68 e segs. 23 O próprio autor optou por não publicar a obra e considera que poderia ter sido um bom texto se lhe retirasse o caráter elogioso. Além disso, afirma que seria necessário analisar as outras obras de Cícero, sobretudo as cartas e aprofundar as causas da ruína da República, assim como o caráter de César, Pompeu e Antônio. Charles Montesquieu, preface to Montesquieu’s “Discourse on Cicero”, por David Fott. Political Theory 30/5, (Out. 2002): 728, acessado em Novembro 11, 2015. http://www. jstor.org/stable/3072500. Charles Montesquieu, “Discurso sobre Cicerón”, Praxis Filosófica 39 (dez. 2014), acessado em Novembro 04, 2015. http://www.scielo.org. co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0120-46882014000200010&lng=en&nrm=iso.

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dade”.24 Neste pequeno ensaio já se destaca o republicanismo de Montesquieu, que, desde a juventude, deixa claro seu desejo de que Roma tivesse sido capaz de preservar o modelo republicano, tal como quis Cícero.25 Assim como para Cícero, a história desempenha importante papel no caminhar filosófico de Montesquieu. Na obra Considérations sur les causes de la grandeur des Romains et de leur décadence (1734), o pensador francês procura captar as razões tanto da ascensão quanto da decadência de Roma. Quer compreender como um povo, um dia temido e admirado, poderia ter se esfacelado em migalhas no curso da história e a resposta não é dada de maneira simplória, mas globalizante, procura absorver o todo e dimensionar o valor real dos eventos e personagens históricos no caminho percorrido por Roma.26 A grandeza romana é explicada por seu espírito belicoso e conquistador, ambição ilimitada, capaz de enfrentar todos os obstáculos sem desistir diante de alguma derrota. Além disso, o modelo republicano inspirou nos cidadãos o amor pela liberdade e os conflitos internos entre patrícios plebeus não prejudicavam a república, pois matinha uma saudável agitação interna.27 O fracasso, por sua vez, ocorreu pela razão de que Roma, embora tivesse vocação para conquistar, não era capaz de sustentar e governar seus extensos domínios. A decadência provocou o fim da liberdade e a instauração do governo imperial. Na leitura de Montesquieu, a distribuição do poder da república que havia garantido o sucesso de Roma, e a concentração posterior do poder tornou possível as tiranias do período imperial.28 Além desta referência direta a Cícero e à história romana, Montesquieu revela que concebeu o trabalho Traité des devoirs, escrito provavelmente em 1725 e hoje perdido, após a leitura do De Officiis, e que o filósofo da Roma antiga também o influenciou a estudar os estoicos.29 Contudo, é particularmente em sua famosa obra Montesquieu, “Discurso sobre Cicerón”. Montesquieu, preface to Montesquieu’s “Discourse on Cicero”, 729. 26 Renato Moscateli, “Política e História no pensamento de Montesquieu”, Mediações, Revista de Ciências Sociais, 9/1 (2004): 147-148. 27 Moscateli, “Política e História no pensamento de Montesquieu”, 148-151. 28 Moscateli, “Política e História no pensamento de Montesquieu”, 151-152. 29 Montesquieu, preface to Montesquieu’s “Discourse on Cicero”, 730. 24 25

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L’esprit des lois (1748) que encontramos uma retomada da ideia de convivência harmônica dos poderes concebida por Cícero. A França de Montesquieu vivenciava a preocupação com o poder absoluto do monarca e o filósofo, encontrando inspiração no modelo inglês, que já então continha medidas para enfrentar o poder desenfreado do rei, afirma que todo o homem que detém o poder tende a abusar do mesmo, de modo a ser necessário impor limites para deter abusos.30 Montesquieu entende a liberdade como a possibilidade de fazer tudo o que as leis permitem. A certeza de que ordenamento jurídico será cumprido é essencial para o crítico da decadente monarquia francesa, pois sem tal certeza não há liberdade política dos indivíduos. Este sentimento de segurança, segundo o autor, desaparece quando todos os poderes, ou mesmo dois deles, estão sobre o comando de uma só pessoa, pois há o medo do exercício tirânico do poder e consequente dano à liberdade dos homens. Para conter abusos, Montesquieu defende a separação dos poderes e um sistema em que o próprio poder de uma das esferas (legislativo, executivo ou judiciário) limita o poder de uma das outras esferas. Se o poder legislativo e o poder executivo estivessem unidos na figura de uma só pessoa ou em uma mesma instituição, não haveria liberdade, tudo estaria perdido, pois leis tirânicas poderiam ser promulgadas para serem cumpridas tiranicamente. Igualmente, se unidos o poder judiciário e legislativo, isto é, se o juiz pudesse ao mesmo tempo legislar e julgar, o poder sobre a vida e liberdade dos cidadãos estaria comprometido. Por sua vez, se judiciário e executivo fossem compostos por uma mesma pessoa, o juiz teria a mesma força de um opressor.31 Para equilibrar a liberdade política dos cidadãos e o exercício do poder é necessário a instituição do modelo de separação de poderes, capaz de garantir o exercício moderado e o controle de cada esfera de poder, vez que diferentes órgãos (ou pessoas) são responsáveis, separadamente, pela formulação das leis, por sua execução e pelo julgamento dos casos concretos. Defende então que o legislativo tenha a faculdade de examinar como são cumpridas as leis que promulgou e que o executivo, por sua vez, possa frear, impedir, as aspirações do legislativo. As 30 31

Charles Montesquieu, Del espíritu de las leyes (Buenos Aires: Libertador, 2004), 131. Montesquieu, Del espíritu de las leyes, 132.

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sentenças formuladas pelo judiciário devem corresponder ao texto expresso da lei, e não podem, de maneira alguma, corresponder à opinião pessoal de um juiz, pois assim se viveria em uma sociedade insegura, sem a certeza da lei. No entanto, o legislativo, em alguns casos, pode intervir no julgamento dos casos concretos, para moderar a lei em favor da própria lei e para assegurar seu cumprimento quando os juízes deixem de cumpri-la.32 É inegável a influência do pensamento ciceroniano, que Montesquieu cita justamente neste capítulo em que trata da limitação e separação dos poderes.33 Em Cícero, um regime político deveria ser um concerto igualitário entre os três poderes tradicionais, a convivência harmônica entre magistratus, Senatus e populus, conjugando poder, autoridade e liberdade, que conferiria estabilidade ao governo. Em Montesquieu, além da convivência harmônica dos poderes aparece a ideia de limitação de um poder pelo outro: “para que não se possa abusar do poder é preciso que, por disposição das coisas, o poder freie o poder”.34 É claro que Montesquieu, ao determinar as funções específicas de cada esfera de poder, espelhando-se no modelo inglês, aprofundou a base teórica dada por Cícero, mas a influência do filósofo de Roma permanece visível, muito embora não tenha tido conhecimento integral das obras de Cícero sobre a convivênia hamônica de poderes, que apenas foram retomadas em sua completude no século XIX. Sobretudo nesta obra, o filosofar de Montesquieu é um conjunto arquitetônico rebuscado, esforço monumental que busca nos exemplos da história as lições para o futuro. Roma não escapa ao seu olhar aguçado e a própria ideia de freio dos poderes é proveniente do “direito de anular uma resolução tomada por outro” inspirada nos tribunos romanos, que Montesquieu denomina faculdade de impedir.35 O filósofo da Modernidade analisa ainda a função 32

Montesquieu, Del espíritu de las leyes, 134-140. Montesquieu não cita Cícero para falar de sua teoria da constituição mista, mas sim para retomar uma das concepções da liberdade desenvolvida historicamente que é a liberdade como “o privilégio de não ser governado por outro que não um homem de sua própria nação ou por suas próprias leis.” Cita Cícero novamente para informar sobre a forma de escolha dos juízes em Roma e para se referir a um episódio sobre a história das instituições romanas. Montesquieu, Del espíritu de las leyes, 130, 150 e 153. 34 Montesquieu, Del espíritu de las leyes, 131. 35 Montesquieu, Del espíritu de las leyes, 135. 33

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dos poderes legislativo, executivo e judicial na República romana36 e critica a forma como o poder era constituído nas províncias, nas mãos de magistrados despóticos que exerciam ao mesmo tempo os três poderes.37 Por outro lado, confessa admirar as instituições romanas que abarcavam formas de regulação, distribuição e limitação dos poderes, embora critique o excesso de liberdade do cidadão:38 Em Roma, o povo tinha a maior parte do poder legislativo, parte do poder executivo e parte do poder judiciário; era necessário equilibrar um grande poder com outro. O Senado tinha certamente uma parte do poder executivo e alguma rama do poder legislativo, mas isto não bastava para contrabalancear ao povo. Era preciso que participasse no poder judiciário, e participava efetivamente quando escolhiam-se os juízes entre os senadores. Quando os Gracos privaram os senadores do poder de julgar, o Senado já não pode resistir ao povo. Assim, pois, danaram a liberdade da constituição para favorecer a liberdade do cidadão, mas esta se perdeu com aquela.39

Montesquieu busca encontrar um modelo de distribuição dos poderes que funcione de maneira harmônica assim como almejava Cícero. Tinha também consciência de que o ente abstrato Estado depende da conduta humana, que são as condutas dos homens que garantem uma república virtuosa e que “sem a ‘mola’ da virtude política, a máquina republicana permaneceria imóvel e em pouco tempo seu peso a faria ruir sob si mesma”, como deixou claro o exemplo romano.40

Conclusão A irresistível decadência de Roma fez com que Cícero se voltasse ao passado, para os primeiros anos da República, e formulasse uma ideia de constituição mista, que conjugasse características da monarquia, da aristocracia e da democracia, eliminando os vícios e somando as virtudes de cada uma das formas de governo. A harmonia entre os poderes do magistratus, populus e Senatus era 36

Montesquieu, Del espíritu de las leyes, 148-155. Montesquieu, Del espíritu de las leyes, 155-156. 38 Montesquieu, Del espíritu de las leyes, 148-149. 39 Montesquieu, Del espíritu de las leyes,. 153. 40 Moscateli, “Política e História no pensamento de Montesquieu,”157-158. 37

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essencial para o modelo formulado por Cícero. Montesquieu, ao enfrentar o problema do excesso de poder do monarca francês, encontra, na República romana e no Parlamento inglês, modelos para criar uma forma racional de governo, equilibrada e não suscetível a tiranias recorrentes. Neste caminhar, tantos as formulações teóricas de Cícero como o exemplo histórico de Roma foram retomados na elaboração e desenvolvimento de seu princípio da separação dos poderes, essencial às democracias contemporâneas. A ideia de distribuição e pulverização dos poderes nas mãos de diversas pessoas foi exercida na República romana através de diversas instituições que fragmentaram o poder inicial da Realeza. Esse modelo foi enaltecido e idealizado por Cícero que, ao voltar os olhos para o passado romano, enxergava na República dos primeiros anos o auge do domínio de Roma e a melhor forma de governo. Montesquieu, que também acreditava que a separação de poderes conferiria estabilidade aos governos, evitando a tirania e os males dela decorrentes, admirou este espírito republicano de Cícero e utilizou os pilares de sua teoria para formular a base do instituto da separação de poderes, tão caro à contemporaneidade. Assim como o filosófo da Roma antiga, Montesquieu almeijava forjar um modelo de distribuição dos poderes que funcionasse harmônicamente através de um equilíbrio perfeito, em que cada esfera possua uma parcela adequada de direitos e deveres, funções e responsabilidades

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UMA REFLEXÃO SOBRE AS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS A PARTIR DO TRIBUNATO DELLA PLEBE Amanda Cataldo de Souza Tilio dos Santos1 Introdução O tribunato della plebe foi um modelo de magistratura presente na Roma Antiga, cuja estrutura plebeia não admitia a presença dos patrícios. Os tribunos atuavam junto ao Senado visando a defesa dos interesses e direitos da plebe romana. O modelo de tribuno foi criado após a rebelião da plebe (a primeira secessio plebis), datada de 494 a.C, conhecida como Revolta do Monte Sagrado. Neste episódio, a plebe realizou reivindicações políticas e econômicas, demonstrando revolta com a falta de acesso à magistratura e com o arbítrio dos magistrados patrícios. Os revoltosos, que haviam saído de Roma, objetivavam fundar no Monte Sacro uma nova cidade, concorrente da própria Roma (MENEZES, 2012). Diante dessa situação, os patrícios negociaram a volta da plebe consentindo com a instituição dos tribuni della plebe. Inicialmente foram constituídos dois tribunos mas, com o passar do tempo, atingiram o número de dez. Sua estrutura contava com representantes da plebe, muito poderosos, eleitos pela assembleia plebeia (Concilia plebis). De modo geral, era facultado aos tribunos os seguintes poderes: proteger um plebeu das decisões dos demais magistrados (ius auxilii); conclamar e dirigir o concilium plebis no exercício de suas atribuições legais; convocar e discursar em contiones (reuniões públicas, onde eram discutidas propostas legislativas); convocar o Senado; obnuntiatio (direito do magistrado observar os céus e pronunciar maus augúrios, o que poderia impedir a sessão legislativa); e o poder de vetar a ação dos magistrados e do Senado (intercessio) (MENEZES, 2012). As virtudes dos tribunati della plebe foram reavivadas na Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Teoria do Estado e Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); Bolsista CAPES. Brasil. E-mail: [email protected]. 1

https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V01_A09

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obra de Machiavelli intitulada Discorsi Sopra la Prima Deca di Tito Livio, Libro Primo, que data do século XVI. Em sua concepção político-moderna, o autor defende que a superioridade do modelo romano emergiria do contraste permanente entre a plebe e o patriciado, concebendo os tribunos como uma institucionalização da potência dos plebeus. Nesse sentido, a dinâmica do dissenso político seria o sustentáculo necessário à República e à liberdade. Para ele, do “tumulto”, considerado danoso por muitos, nasceriam as boas leis, das quais derivaria a boa educação e, por conseguinte, da boa educação surgiriam os bons exemplos. Assim, conclui que a desunião entre o povo e o Senado (ou seja, uma verdadeira “luta de classes”) teria propiciado a liberdade romana. O autor defende que como o povo seria mais sábio e constante do que o príncipe, portanto, sua participação efetiva na vida política se faria necessária à estabilidade da República. Para isso, toda cidade deveria ter um meio para canalizar as paixões da República, não no sentido de suprimir os tumultos, mas através de leis e instituições tais como os tribunos. Na estrutura institucional ideal de Machiavelli devem-se fazer presentes mecanismos públicos de denúncias, o poder de propor leis e de veto (tal como o intercessio) (MCCORMICK, 2011). Assim, o embate político entre os seguimentos que detêm interesses opostos deveria ocorrer na arena pública, através de mecanismos institucionais caracterizados por transparência e publicidade, garantindo a constituição das boas leis e da liberdade, assim como ocorria na República Romana. Ademais, para o autor florentino, ao passo que os nobres desejariam dominar os que não seriam aristocratas, os plebeus possuiriam o interesse de não serem dominados, uma vontade maior de viver livres. Para ele, quanto maior for o poder de um indivíduo, mais fácil será para que provoque uma desordem e, a solução diante desta constatação seria “sempre confiar um depósito a quem tem por ele menos avidez” (MAQUIAVEL, 1994, p.33). Diante dessa perspectiva, Machiavelli defende que o povo é menos propenso a tentativas de usurpação dos poderes e, por isso, infere-se que uma parcela do poder deva ser confiada a ele. No século XVIII, Rousseau rememorou o instituto dos tribunos através de um exame histórico. Na obra Du Contrat Social refere-se ao tribunat como uma magistratura particular, um verdadeiro conservador das leis e do poder legislativo. O tribuno, em sua concepção, seria um defensor da vontade geral dos cidadãos, tendo não somente uma função ju-

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risdicional, mas também política (CATALANO, 1971b). C o m fulcro na terminologia de Rousseau, pode-se falar em um direito negativo (droit négatif) dos tribunats (ne pouvant rien faire il peut tout empêcher), que seria semelhante ao poder de intercessio dos tribunos romanos. Isto porque os tribunos romanos, através do veto, poderiam impedir a ação dos magistrados e do Senado. O teórico Pietro Bonfante, com base na obra de Rousseau e Fichte, realizou uma distinção da soberania popular em seu “aspecto negativo” e em seu “aspecto positivo”. Os tribunos, através de seu poder impeditivo de veto (intercessio) exerceriam o “aspecto negativo” da soberania. A partir desta distinção, Catalano pôde conceber a divisão entre poder negativo direto e poder negativo indireto. O poder negativo direto seria aquele exercitado diretamente pelos cidadãos (por exemplo, o poder de greve geral e a secessão). Já o poder negativo indireto seria aquele exercido indiretamente, através de um instrumento designado de forma genérica, como um tribuno (CATALANO, 1973). Com a constituição do Estado liberal houve uma rejeição quanto à institucionalização do poder negativo indireto nos moldes tribunícios, primando-se pela organização estatal assentada nos princípios da representação e da divisão dos poderes. O direito de resistência, como forma de poder negativo direto, foi incorporado ao projeto jurídico das democracias liberais, estando sempre subordinado ao exercício na forma da lei. Já a instituição impeditiva, que era encontrada no poder de veto dos tribunos, passou a ser representada pelo mecanismo de controle de constitucionalidade, complementar à divisão dos poderes. Deste modo, as doutrinas políticas e jurídicas passaram a renegar toda a memória histórica de uma ideia de poder negativo indireto, conforme encontrado tribunos romanos ou tribunats rousseaunianos (CATALANO, 1980).

1. A constituição do Estado Liberal: a Teoria da Separação do Poderes e a Democracia Representativa Conforme exposto, a partir da constituição do Estado liberal as teorias sobre o poder negativo indireto, presente nos tribunos do povo, foram rechaçadas. Em contrapartida, o estado de direito burguês encontrou na teoria de Montesquieu sobre a separação dos poderes a melhor forma de superar os perigos da tirania, conside-

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rada a maior ameaça à democracia liberal e à liberdade individual. Na obra L’esprit des lois, de 1748, o barão considerou as três funções estatais distintas já identificadas por Aristóteles (editar normas, aplicar as normas e dirimir os conflitos), mas inovou ao defender que tais funções estariam intimamente ligadas a três órgãos diferentes, autônomos e independentes entre si. Assim, cada função corresponderia a um órgão, não mais se concentrando nas mãos de um soberano, como ocorria no estado absolutista que precedeu às revoluções burguesas. Tal modelo criaria um equilíbrio e garantiria um governo estável (MONTESQUIEU, 2010). No século XVIII, a tese do barão serviu como alicerce da Constituição dos Estados Unidos (de 1787). Nos Artigos Federalistas, elaborados por Jay, Hamilton e Madison podemos encontrar as bases do pensamento liberal, tal como a preocupação em conter as paixões dos homens individualmente e do povo. O modelo de freios e contrapesos complementar à Teoria da Separação dos Poderes, poderia conter as paixões humanas e os abusos inerentes à própria natureza do poder (JAY, HAMILTON, MADISON, 1993). Neste sentido, diferentemente de Machiavelli que prima pelo dissenso, pelo tumulto, com vistas ao surgimento de boas leis; o projeto liberal federalista teme a multidão, relacionando-a com o facciosismo. No âmbito do estado moderno, calcado na separação dos três poderes, a democracia é exercida pela via representativa. Os defensores da democracia representativa, modelo desenvolvido nos séculos XVIII e XIX, mas firmado no século XX, argumentavam que não existiriam mais estados suficientemente pequenos para que uma democracia direta nos moldes antigos fosse concretizada (BOBBIO, 2006). Com vistas a legitimar a democracia representativa, defendiam que essa não enfraqueceria o princípio do governo popular, preocupação que se fazia presente nos textos constitucionais que dispunham que o poder do Estado emana do povo e que os magistrados têm responsabilidades perante a população. A antítese entre o liberalismo (do Barão de Montesquieu) e a democracia (com assento rousseauniano) pode ser identificada na contraposição desenvolvida por Benjamin Constant sobre a liberdade através dos tempos. Sua teoria foi enunciada em 1819 no discurso De la liberté des anciens comparée à celle des modernes. Na concepção de Benjamin Constant, haveria uma distinção entre a liberdade dos antigos e dos modernos (CATALANO, 1971a). Para os antigos, a liberdade representava o poder que possuíam poucos

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cidadãos de decidir sobre assuntos políticos que diziam respeito a eles mesmos e aos muitos não-cidadãos (liberdade ativa). Já a liberdade dos modernos, no âmbito da democracia representativa, é verificada no poder de muitos cidadãos escolherem os poucos representantes que decidiriam em seu nome sobre os assuntos públicos (liberdade negativa). Isto porque em uma sociedade complexa, os cidadãos precisariam se ocupar de seus negócios privados e, por isso, a participação direta no governo não seria uma demanda. Ansiavam, portanto, por uma liberdade negativa propiciada pela democracia representativa, exercida indiretamente pelos cidadãos. Os defensores da democracia representativa argumentam, ainda, que os representantes do povo seriam pessoas melhor capacitadas, ou seja, teriam um conhecimento técnico mais elevado, o que proporcionaria uma maximização de resultados com vistas ao bem comum. Tem-se o evidente, portanto, o caráter pró-oligárquico e contra-majoritário desse projeto de democracia representativa. Quanto ao poder negativo direto (o direito de resistência verificado na obra de contratualista de Rousseau), o Estado liberal optou por incluí-lo no ordenamento constitucional, porém, sempre condicionando seu emprego ao disposto em lei, enquadrando-o, por exemplo, nos moldes da desobediência civil. Do mesmo modo, as constituições liberais tenderam a reconhecer o poder negativo impeditivo na forma de controle de constitucionalidade. O tribunat, uma instituição política de natureza impeditiva e via da soberania popular, travestiu-se na forma de controle de constitucionalidade, sem base popular, mas servindo de modo complementar ao mecanismo da separação dos poderes. Por esse motivo, muitos estudiosos modernos não foram capazes de distinguir os tribunos de Rousseau das instituições encarregadas do controle de constitucionalidade (CATALANO, 1980).

2. A crise do sistema democrático representativo No início do século XX, quando o temor do absolutismo já não mais existia e o Estado liberal demonstrava sua fraqueza, os valores clássicos do liberalismo passaram a ser contestados de forma mais ampla. As crises econômicas que assolaram o século fizeram com que o papel do Estado mínimo fosse aumentando, passando este a intervir de forma mais incisiva na vida dos particulares, ado-

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tando uma postura mais legislativa e interventora. Abriu-se espaço para o Estado social e o aumento do poder de regulação do Estado sobre a sociedade civil. Contudo, o paradigma de democracia ancorada na representatividade e na teoria da separação dos poderes continuou se mostrando insuficiente para garantir a plenitude dos direitos sociais e das necessidades imediatas dos cidadãos. Conforme Bobbio anota, pode-se dizer que a democracia representativa dos dias atuais está em crise por algumas razões, dentre essas: a participação popular restringe-se à formação da vontade da maioria parlamentar; o voto popular nas eleições se limita a legitimar uma classe política oligárquica que visa se auto conservar; e, por fim, a participação popular é viciada e manipulada pela propaganda daqueles grupos detentores de maior poder econômico, tais como poderosas organizações partidárias, televisivas, etc (BOBBIO, 2004). Giddens (1995), por sua vez, verifica que a democracia representativa tem por significado o governo daqueles grupos distantes do eleitor ordinário, frequentemente influenciado por questões de política partidária que são insignificantes ao debate público. Nesse sentido, a política atual seria permeada por formas de clientelismo e corrupção. Na concepção do autor, nas democracias liberais pode-se verificar uma alienação dos cidadãos em grande escala, assim como uma indiferença no que concerne às instituições políticas. Isto porque cidadão ordinário considera os acontecimentos da vida política partidária distanciados dos seus problemas cotidianos ou das oportunidades de suas vidas. Já o professor Boaventura de Sousa Santos (2007) traz um dado estarrecedor sobre a exclusão social no seio dos regimes democráticos latino-americanos. De acordo com o autor, pesquisas realizadas à época da publicação da obra relatam que em determinados países da região a maioria da população optaria por viver em um regime ditatorial caso lhes fosse oferecido um melhor padrão de vida. Por mais absurdo que seja, diante da sensação de falta de representação em um regime democrático, estes cidadãos já não acreditam nos valores e liberdades democráticos. Boaventura sustenta que os cidadãos se sentem cada vez menos representados pelos políticos e partidos eleitos. A corrupção endêmica os leva a conclusão de que os governantes legitimamente eleitos por sufrágio utilizam o mandato para enriquecer às custas

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dos cidadãos e dos contribuintes. Diante do desrespeito flagrante dos partidos aos programas eleitorais, os cidadãos passam a conceber que as decisões mais importantes do governo escapam à participação do povo (BOAVENTURA, 2007). No caso brasileiro, Benevides (1994) verifica que não há uma cidadania democrática de fato. A representação política no país resultaria em um Estado patrimonialista, onde ainda preponderariam as práticas do coronelismo e do clientelismo. Segundo a autora, as pesquisas de opinião que apontam uma descrença nos valores da democracia seriam um reflexo da debilidade ideológica e programática dos partidos políticos, que não demonstram responsabilidade diante do povo que representam. Para a professora brasileira, a representação em nosso país permaneceria “uma representação no sentido teatral: a representação do poder diante do povo e não a representação do povo diante do poder”. Portanto, a concepção de democracia se afastaria da soberania popular. Diante da ausência de mecanismos de controle sobre o representante – como veremos mais adiante, o recall e o veto popular – a autora indaga como se poderia resolver a questão da crise de representação no país. A democracia participativa teria o viés de proporcionar uma forma alternativa de gestão pública, podendo amplificar a voz dos grupos marginalizados que lutam por melhores condições de vida e reconhecimento social e político. Na concepção de Benevides, a participação política por meio de canais institucionais, no sentido mais abrangente, se daria através do referendo, do plebiscito e da iniciativa popular. Tais mecanismos de participação direta poderiam funcionar como uma “escola de cidadania”, pois a institucionalização de práticas participativas faria com que o cidadão comum passasse a se interessar mais diretamente pelos assuntos que lhe dissessem respeito, mantendo-se informado sobre os acontecimentos de interesse nacional, superando o sintoma de “apatia” política verificado no modelo representativo puro (BENEVIDES, 1994).

3. Os mecanismos de participação popular no ordenamento jurídico nacional A Constituição Federal de 1988 assimilou mecanismos de participação popular no poder com vistas ao exercício de uma de-

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mocracia participativa ou semidireta. Tais instrumentos são o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular e o ajuizamento da ação popular. Contudo, outros institutos como o recall (um mecanismo originado nos EUA através do qual poderia haver uma revogação popular do mandato eletivo em razão do não cumprimento das promessas de campanha) e o veto popular (através do qual o povo poderia vetar projetos de lei, arquivá-los mesmo contra a vontade do Parlamento), instrumentos de poder negativo e tribunício, não foram acolhidos pela Assembleia Constituinte de 1988 (PILATTI, 2010). O plebiscito e referendo são mecanismos de consulta ao povo importantes no âmbito da democracia semidireta. Contudo, tornam-se instrumentos limitados devido a competência exclusiva do Congresso Nacional para sua convocação. Neste caso, a ideia de soberania popular é subvertida, pois o Legislativo decide quando e em quais temas seria pertinente “ouvir” as massas. Quanto à iniciativa popular, pode-se realizar uma crítica acerca do seu requisito numérico. De acordo com o artigo 61, parágrafo 2º da CRFB/1988, a iniciativa popular, em âmbito federal, consiste na apresentação de projeto de lei à Câmara dos Deputados, subscrito por no mínimo 1% do eleitorado nacional, distribuído por, pelo menos, cinco Estados, com não menos de 0,3% dos eleitores de cada um. Ora, tal requisito numérico de 1% do eleitorado nacional é um grande dificultador para a efetivação da iniciativa popular. Em um país cujo eleitorado, de acordo com estimativas recentes, gira em torno de 141 milhões de pessoas2, 1% seria um número extremamente alto para ser alcançado. A Ação Popular, um instrumento que já era previsto na Constituição de 1934 (MANCUSO, 1982), encontra-se disposta no artigo 5º, LXXIII da CRFB/1988, prevendo que qualquer cidadão é parte legítima para propô-la visando anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. Há uma limitação neste instrumento em relação ao autor, que deverá ser cidadão, considerado brasileiro nato ou naturalizado em gozo de direitos políticos e, ademais, em relação ao objeto que é a defesa do patrimônio público ou de entidade da qual o Estado participe. Além destas limitações, uma observação pode ser realizada 2

Dados do TSE sobre o eleitorado brasileiro em 2014.

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em relação a falta de conhecimento técnico-jurídico da população em geral (que amplamente desconhece essa possibilidade de ação e seu procedimento), o que limita seu uso de forma mais ampla. Durante a fase intermediária da Constituinte de 1988, a proposta de instituição do “Defensoria do Povo” que não foi acolhida. No anteprojeto de Constituição que a comissão presidida pelo professor Afonso Arinos apresentou em 1986 constava a criação do “Defensor do Povo”, incumbido de zelar pelo efetivo respeito dos poderes do Estado aos direitos previstos na Constituição, apurando, inclusive os abusos e omissões das autoridades (FILHO, 1987). A ideia do defensor do povo foi abandonada e funções similares foram agregadas às atribuições institucionais do Ministério Público, tais como “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços sociais”, “promover o inquérito civil e ação civil para proteção do patrimônio público e social, dos interesses difusos e coletivos”, dentre outras atribuições. Contudo, conforme anota Carlos Bruno Ferreira da Silva (2005) no tocante ao Ministério Público estadual, este não possui a cultura de acesso dos desvalidos, o que não poderia qualifica-lo como uma instituição em defesa dos excluídos. Apesar do comentário supracitado, deve-se ter em mente que o tribuno atuava no interesse do povo de modo geral, da plebe. Ademais, o poder de veto que o tribuno exercia era um instrumento de controle político em questões de interesse geral da plebe, na defesa de interesses difusos ou coletivos. O Ministério Público, por sua vez, não possui um mecanismo de controle político tal qual o veto, considerando-se a ação civil pública um instrumento muito limitado em relação ao poder de intercessio dos tribunos. Ademais, deve-se ter em mente que não há participação popular na escolha de seus membros, mas é efetuado um concurso público de provas e títulos para ingresso na carreira. Assim, não se garante uma verdadeira representatividade popular. Pelos mesmos motivos, a Defensoria Pública não seria um “defensor do povo” nos moldes tribunícios. Por mais que suas prerrogativas funcionais visem à proteção mínima indispensável ao excluído, oprimido pelo Estado; na prática, estas ainda se demonstram ineficientes em determinadas situações e locais, considerando-se que a instituição é relativamente recente e que ainda está em processo de consolidação em alguns Estados brasileiros.

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Conclusão: a inspiração romana para as instituições democráticas Diante de todo o exposto, podemos concluir que o modelo atual de representação política não vem amparado por um efetivo exercício da cidadania. Mesmo os mecanismos adotados pelo ordenamento jurídico brasileiro de participação popular não têm assegurado o amplo debate público sobre questões essenciais à democracia e, desse modo, não tem contribuído como uma efetiva “escola da cidadania”, conforme concebido por Benevides. Tais mecanismos, como demonstrado, possuem diversas limitações em termos de acesso ao cidadão comum e formação de uma deliberação não viciada pelos discursos hegemônicos. A cidadania plena, por sua vez, pressupõe a existência de instituições por meio das quais a vontade do povo possa ser exarada por via direta. Através de mecanismos institucionais verdadeiramente democráticos, aquela cidadania passiva, outorgada pelo Estado, seria superada por uma cidadania ativa no âmbito dos espaços de participação política. Shapiro verifica que a democracia precisa se preocupar em diminuir o exercício arbitrário da dominação e amenizar as assimetrias de poder (SHAPIRO Apud MCCORMICK, 2011). O exercício injusto do poder por elites políticas e sociais deve ser controlado pelas massas, por meio de sua desconfiança, suspeição e ressentimento relacionados às classes hegemônicas. Em uma perspectiva maquiaveliana, o autor defende que a democracia, para que seja sustentável, deve resguardar hábitos de interação e reduzir as injustiças das instituições comuns. Portanto, o autor prima pelas interações e reduções verificadas através do dissenso, e não necessariamente através do consenso. Nesse sentido, Shapiro defende a criação de procedimentos democráticos extra eleitorais, que seriam capazes de lidar com questões sociais muitas vezes relegadas à esfera privada, tais como educação infantil, relações de gênero, mercado de trabalho, etc. Em sua concepção, dando-se acesso à esfera política, tais questões não seriam mais de livre domínio de elites quase autônomas. Como alternativa ao modelo de democracia representativa deficitário, Catalano rememora o modelo democrático do pacto social, da soberania do povo, da liberdade dos cidadãos efetivada através da participação no poder, dos direitos negativos de

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resistência à opressão e do tribunat idealizado por Rousseau. Como Shapiro, abre caminho para se repensar o dissenso de Machiavelli como originador de boas leis em detrimento do “falso consenso” liberal. Tem-se, portanto, a necessidade de uma arena onde possa ocorrer a luta de classes nos moldes do Estado capitalista. John McCormick, por sua vez, propõe que se realize um “exercício mental” de recriação dos tribunos da plebe. Para o autor, essa “nova casa política” coexistiria com as instituições já existentes e contrabalancearia o sistema atual garantindo uma maior força política ao povo. Em sua concepção, os membros desta casa seriam selecionados por sorteio. Isto porque, ele expõe que grande parte das casas políticas é formada por homens brancos, notando-se a ausência de grupos marginalizados socialmente, tais como índios, afrodescendentes e mulheres, além de outros grupos inferiorizados devido à condição econômica. Nesse sentido, o tribuno composto por pessoas sorteadas do povo acabaria com a questão dos problemas de representação das minorias e grupos marginalizados. Ademais, como não haveria campanha política, a questão do poder monetário não seria decisiva no processo. O autor vislumbra um constante conflito entre os tribunos e os políticos profissionais e, por meio deste, o povo conseguiria conter as elites e salvaguardar sua liberdade. Em uma perspectiva maquiaveliana, a plebe e os seus tribunos seriam os guardiões da liberdade e dos interesses genuínos do povo (MCCORMICK, 2011). Conforme exposto, perante a falta de formas institucionais efetivas por meio das quais o povo pudesse expressar sua vontade genuína através do dissenso, da discussão, tendo o poder de defender seus interesses diretamente, muitos autores passaram a rememorar os tribunos que tornaram a República romana mais perfeita, segundo Machiavelli. Sob a ótica maquiaveliana, Roma objetivou em suas instituições acolher a imperfeição e a contingência, ao invés de negá-las; e, assim, os tumultos entre os nobres e a plebe foram a causa da liberdade romana. A criação do tribunato ocorreu após a revolta popular em relação ao poder do patriciado, culminando em um Estado popular em que a autoridade não estava dada nem a poucos poderosos nem a um só (MAQUIAVEL, 1994). Nesse sentido, os tribunos contribuíram para que a estabilidade entre os poderes da época. Após a criação dos tribunos, gradativamente, vários direitos foram concebidos

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ao povo, tais como a possibilidade de casamentos entre plebeus e patrícios, o fim da escravidão por dívidas, etc. Reconhece-se assim direitos conquistados pelo povo através de sua própria ação, sua própria defesa, e não outorgados pelo Estado aos “eleitores clientes”. Eis a verdadeiro exercício do poder democrático pela plebe, consciente de sua potência e não ofuscada pelas assimetrias de poder refletidas no plano institucional do Estado liberal.

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LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL E MECANISMOS DE FEEDBACK ABRINDO OS CAMINHOS PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA CONSTITUIÇÃO DIFUSA NO BRASIL Gabriel Cruz Introdução Segundo a Constituição do Brasil de 1988, compete, precipuamente, ao Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário, a guarda da Constituição, de modo que numa acepção estritamente normativa a palavra sobre o estabelecimento do significado do texto constitucional estaria a cargo dele e, portanto, restrito à uma elite profissional. No entanto, ao lado – e em conjunto – com a constituição escrita há uma constituição criada a partir da interpretação que os cidadãos concedem a ela. Essa interpretação é um meio de se aferir a legitimidade do sistema constitucional que, para além das Cortes, está difundida pela sociedade e que funciona como mecanismo de feedback do próprio sistema, criando-se a “Constituição Difusa”, essencial à cultura democrática que, no Brasil, é observado com mais vigor após a promulgação da Constituição de 1988. Diante disso, afirmo a existência da constituição do povo no Brasil, a partir dos mecanismos de retroalimentação, a fim de criticar a alocação interpretativa única no âmbito do STF. Para tanto, abordo na primeira seção os caminhos para se constatar a Constituição Difusa. Para segunda seção fica a aplicação desse modelo ao Brasil o que, para tanto, exige crítica aos discursos oficiais de transição política, pelo que concluo, a partir do patriotismo constitucional levado à efeito pela Constituição de 1988, que os caminhos estão descobertos, exigindo-se disposição do STF para tal reconhecimento e internalização aos processos decisórios, com vistas a superar o vão entre a sua interpretação e a interpretação dada pelos cidadãos.

1 Caminhos para a constituição difusa: pela fé e esperança no projeto constitucional e os mecanismos de feedback https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V01_A10

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Há muito se propaga a ideia de que a Constituição é aquilo o que as Cortes entendem o que ela é. O significado de uma Constituição estaria confinado ao que uma elite determina. No entanto, isso não é mais incontroverso, eis que, considerando a existência de um texto promulgado e acessível ao público, existe um desafio permanente para alterar essa compreensão (Balkin 2011). A acessibilidade do público ao texto constitucional coloca os membros daquela comunidade, sociedade ou estado - que são constituídas por uma Constituição - como competentes para interpretar o texto, atribuindo significados outros do que aqueles estabelecidos pela elite. Assim, conforme afirmado por Jack Balkin (2011), o texto constitucional é o primeiro passo para os cidadãos (people) se identifiquem com o texto e o defendam. Diante disso, tem-se que os processos de identificação dos membros de uma comunidade com a Constituição e o seu texto faz com que soerga a exigência de atualização normativa da Constituição. Essa atualização está para além da alteração formal do texto por meio de emendas constitucionais. A Constituição é um “alvo-em-movimento”, cuja movimentação ou vida se dá por meio das práticas jurídicas, sociais e políticas (Balkin 2011). Ao lado das elites, o povo (people) também é intérprete e, pois, principal fomentador da alteração e dos avanços constitucionais, mas, para tanto, é preciso que se tenha fé no projeto constitucional e esperança que esse projeto – contínuo – sempre poderá ser melhorado com o tempo. Existiria, assim, ao lado da Constituição das elites, uma Constituição do povo. Para Jack Balkin (2011), a legitimidade do sistema constitucional dependeria da interrelação entre essas duas interpretações, de modo que já passa da hora de se refletir sobre o papel das instituições formais, principalmente das Cortes ou, conforme afirma Barry Friedman (2005), é preciso que se reconheça que o isolamento das Cortes e a segmentação da sua atuação a somente aquilo que seria direito e não política, esconde ou não compreende de forma adequada todas as interações e influências que um Tribunal está sujeito dentro da prática constitucional, que é exercida dentro de um cenário político. Para se encontrar o caminho para a Constituição difusa é preciso que se supere – e que se leve para além – as questões sobre quem tem a última palavra sobre o significado da Constituição. Ao revés, é preciso que se reconheça o papel de outros atores que, se

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identificando com a Constituição (Balkin 2011), detêm legitimidade para interpretar ela. Conquanto reconhecer isso seja a premissa inicial para se aferir a legitimidade do sistema, é preciso que os cidadãos admitam a Constituição como deles, o que nos indica como pressuposto para a Constituição difusa a participação de movimentos políticos e sociais que atuam, segundo Jack Balkin (2011) como “mecanismos de feedback”. Ademais, não se pretende rechaçar ou acabar com as Cortes e com a revisão judicial. Os Tribunais e juízes têm papel importante, eis que são atores importantes no reconhecimento e no cumprimento de direitos, tendo respeito dos cidadãos diante do papel que essas instituições exercem limitador aos poderes públicos e de proteção de valores sociais. Os cidadãos que concedem legitimidade às decisões a partir da sua confiança na autoridade judicial (Post and Siegel 2007). Em razão desse fato, pode-se observar – no âmbito dos Estados Unidos – que a opinião pública e a Suprema Corte estão sintonizados, a instituição é independente, porém, está atenta à interpretação dos cidadãos que são expressadas por meio da opinião pública (Friedman 2009). Isso não significa uma submissão dela à vontade do povo (the will of the people), principalmente diante do ponto aqui defendido de superação da dicotomia entre a interpretação das instituições e do povo de modo isolado. No entanto, sempre que a Suprema Corte se distanciou da opinião pública a decisão sofreu objeções populares, e os cidadãos irão buscar formas de comunicar isso a ela e resistirão à autoridade decisória (Friedman 2009) (Post and Siegel 2007). Para a legitimidade do sistema – e das decisões judiciais – é preciso que se leve a discussão para além dessa dicotomia, sendo o primeiro passo o reconhecimento da Constituição como nossa. De igual modo, é preciso que não se atribua à Constituição e ao texto todas os problemas do sistema. Diante desse cenário até agora abordado, vê-se que é preciso compreender e cotejar com as interpretações estatais, as interpretações oferecidas por outros agentes. A legitimidade é aferida a partir da mitigação desse vão. Assim, as considerações de Jack Balkin, principalmente aquelas do livro Constitutional Redemption: political faith in an unjust world, são as mais adequadas para os propósitos do artigo ao focar na questão dos movimentos sociais no estabelecimento do significado da Constituição dos Estados Unidos o que,

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aqui, será chamado de Constituição Difusa. Segundo Jack Balkin (2011), o problema da legitimidade do sistema constitucional e a pretensa falta de efetividade das normas constitucionais não está assentada no texto constitucional por si só. Compreende uma relação dialética mais complexa, cuja atuação de movimentos sociais e agitação de partidos políticos somadas com novas práticas jurídicas enseja uma análise para além do texto. Para desenvolver sua tese para a legitimidade do sistema constitucional, Balkin (2011), se assenta na ideia de fé na história e nos compromissos que foram adotados quando da Declaração de independência dos EUA e do Preâmbulo da Constituição. As promessas adotadas na Declaração apresentam um reconhecimento da identidade coletiva, cuja conformação pelo texto constitucional assegura ao povo o poder de se valer contra as condições sociais/políticas atuais ou o que os juízes e políticos estão fazendo, porquanto seja possível que a interpretação e aplicação oficial da Constituição possa ensejar no desvio do texto e dos princípios adotados nela (Balkin 2011). A proposta, então, apresentada por Jack Balkin (2011) advém de uma compreensão adequada do discurso histórico acerca do texto e dos princípios adotados pela Constituição, em conjunto com a participação do cidadão como essencial ao resgate (redenção) dela. A legitimidade da Constituição, ou das práticas do sistema constitucional estaria, para o autor, para além das práticas oficiais institucionais, mormente pelas Cortes. Sendo assim, para a legitimidade do sistema é preciso que o povo tenha fé na Constituição, no seu texto e nos princípios adotados. Mas não só. O povo há que ter esperança nesse projeto como um processo contínuo de conquistas graduais. A legitimidade está muito além de aspectos imediatos ou meramente normativos, ao revés, são melhorias graduais nas condições sociais. Está ela fundamentada: i) na fé sobre o futuro, assim como na crença sobre o conteúdo atual do sistema e no seu desenvolvimento ao reconhecer novas práticas e novos direitos; ii) na identificação do povo como parte do projeto político ao longo do tempo e sua identificação com participantes anteriores e; iii) a legitimidade não pode se assentar em julgamentos sobre o conteúdo atual, eis que o futuro é incerto e sistema está contínua mudança (Balkin 2011). Diante disso, com mais razão ainda para não se confinar o

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significado da Constituição naquilo que as instituições oficiais entendem o que ela é. Há que se ampliar os processos interpretativos, porque cada membro da comunidade política está legitimado a decidir sobre o que a Constituição é para si próprio Portanto, o modelo ideal de legitimidade é aquele que compreende que a Constituição está difundida pelos membros da comunidade política que, longe de ensejar anarquia constitucional, acaba por promover e garantir a cooperação. Garante-se a dialeticidade que deve existir entre as interpretações estatais e do povo, o que o autor chama de “protestantismo constitucional” (Balkin 2011). Assim, o que garante a legitimidade constitucional é o fato de que pessoas diferentes têm interpretações diferentes sobre a Constituição no âmbito das atuais condições. O reconhecimento de uma constituição difusa a partir das diferentes interpretações, permite que o povo leia o texto constitucional e determinadas práticas tendendo a aspectos de imparcialidade (fairness), democracia e justiça, ainda que existam práticas contrárias. Compreendem que essas práticas poderão ser corrigidas ou melhoradas. Esse modelo se situa no meio de uma tensão entre a fé no futuro e na identificação com o passado (Balkin 2011). Essa identificação com o passado é uma narrativa sobre os sujeitos coletivos; de um povo que se considera membro de uma comunidade política que envolve diferentes gerações que lutaram para criar uma cultura democrática, uma cultura em que todos tiveram participação e em que privilégios sociais injustos precisam ser retirados. Assim, na construção dessa identidade, a identificação com o passado também oferece e exige, quando necessário, o processo de des-identificação (dis-identification), de modo que precisamos reconhecer que determinados atos não pertencem ao povo, e, portanto, de algo que devemos sentir responsáveis. É preciso não reconhecer aquilo que não é parte de nós, que está “off-the-wall”. Há que se reconhecer que o sistema e a tradição constitucional são sempre propensas a erros, imperfeitas e precisam ser resgatadas (Balkin 2011). Assim, o constitucionalismo protestante reconhece a dinâmica social e apresenta um caminho viável para legitimidade do sistema. O modelo respeita o dissenso e as “razoabilidades” distribuídas pela sociedade. Assim, segundo Jack Balkin (2011) o modelo atua como um mecanismo de feedback e faz com que a mudança constitucional seja sensível à opinião popular.

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O processo deliberativo democrático é o ponto fulcral daquilo aqui defendido, cuja operacionalização ocorrerá por meio dos i) sistema político-partidário e dos; ii) movimentos sociais. Enquanto a atuação político-partidária atua na criação de legislações aprovação de nomes para a Suprema Corte, os movimentos sociais atuam a partir de dissidências sociais de minorias que tentam mudar as atitudes – e interpretação – das elites, o que influencia nas decisões judiciais. (Balkin 2011). A partir desse cenário apresentado, as Cortes são conformadas pela opinião pública. Extraído da Constituição promulgada vige, com força normativa igual, uma Constituição viva formada para diversas interpretações dos cidadãos. A Constituição que está dentro do povo e traz dentro dela o povo; que identifica coletivamente uma comunidade: a Constituição Difusa que influencia diretamente as decisões, eis que atua como um mecanismo de retroalimentação do sistema. Às Cortes, cabe apenas disposição em seu reconhecimento como forma de oferecer e garantir a legitimidade ao sistema e, portanto, à própria decisão.

2 Caminhos abertos: por que não uma constituição difusa no Brasil? A defesa do resgate da Constituição norte-americana a partir dos processos de identificação das atuais gerações com as conquistas das gerações passadas pode, segundo Jack Balkin (2011), ser aplicado ao modelo estadunidense, porquanto durante a promulgação da Constituição e os processos prévios referentes à Declaração de Independência sempre houve ampla participação do povo, elemento essencial para a cultura democrática. Assim, afirma não saber se o modelo - conforme acima apresentado - poderia ser aplicado em outras sociedades. Este artigo pretende demonstrar a existência do que acima foi conceituado como constituição difusa e que existe cultura democrática no Brasil, mas, para tanto, é preciso que se reconheça que a mudança oferecida pela transição política de 1987/88 se dá em forma de permanência, superando-se os discursos oficiais de ruptura. Toda essa discussão teórica pode ser universalizada, mas para a aplicação há que se especificar. Em crítica a esses discursos oficiais do processo constituinte que deu ensejo à promulgação da Constituição brasileira de 1988 e

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propondo a tese da democracia sem espera, Marcelo de Andrade Cattoni (2011), afirma que é preciso reconhecer que o poder constituinte não deve ser visto como uma simples ruptura como o regime antigo e implementação do novo. Há que se levar a discussão para além desses discursos (oficiais), com vistas a compreender o fenômeno como poder comunicativo que se desdobra ao longo do tempo e cujo duro processo de aprendizado nos ensinou que polos antagônicos são, na verdade, uma complexa relação de contradição e complementariedade (Carvalho Netto and Paixão 2011). A partir disso, o poder constituinte é concebido como um processo de mudança em forma de permanência, um processo de contínuo aprendizado histórico não linear, cujo processo permite a construção de uma identidade constitucional (Cattoni de Oliveira 2011). Nos chamados discursos oficiais, considerando que a Assembleia Nacional Constituinte fora criada por meio de um Emenda Constitucional – EC n. 26/1985 – seria ela decorrência da constituição passada e, portanto, padeceria de legitimidade democráticas. Ao fim e ao cabo, as instituições formais, inclusive formada por membros não eleitos pelo povo – os chamados “Senadores Biônicos” – é que ditariam a ruptura jurídico-política. No entanto, conforme afirma Daniel Sarmento (2010), a Emenda Constitucional n. 26 de 1985 apenas veiculou agitação social e política já observada desde a rejeição da Proposta de Emenda Constitucional n. XXX – “Emenda Dante de Oliveira” - que tentou implementar sob à égide da Constituição de 1965/67 as eleições diretas. Assim, vê-se que os discursos oficiais reduzem a discussão do processo constituinte à ruptura que se encerrara com a promulgação da Carta de 1988. (Cattoni de Oliveira 2011) Para que seja possível a existência de uma Constituição Difusa, há que se superar esse discurso oficial, levando-se a reflexão para a constituição de uma memória coletiva, fruto de um aprendizado histórico, não linear e descontínuo e em permanente construção. Isso permite que o povo se veja identificado na Constituição de 1988 e leve a discussão para além do aspecto normativo positivado e dentro de uma estrutura aberta (Rosenfeld 2003); é preciso que reconheçamos as conquistas que são trazidas pela Constituição; precisamos reconhecer ela como “nossa lei”. Vê-se que não há impossibilidade de aplicação do modelo interpretativo desenvolvido por Jack Balkin (2011) ao Brasil. A busca

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pela redenção constitucional a partir da fé no projeto e na esperança contínua, a partir, precipuamente, da atuação de mecanismos de feedback como os movimentos sociais, é plenamente possível. Ocorre que, para uma crítica aos discursos oficiais que deram ensejo à Constituição do Brasil de 1988 há que se reconhecer esse constante processo de aprendizado a partir das conquistas auferidas pelas gerações passadas e que reconhecem a diversidade interpretativa que ela resulta, decorrentes do patriotismo constitucional. (Cattoni de Oliveira 2006) (Meyer 2012) A Constituição é da cidadania, como projeto aberto e permanente de construção de uma sociedade de cidadãos solidários, livres e iguais; se não, não é Constituição. Nesse sentido, levar a sério a Constituição brasileira de 1988 e sua legitimidade, vinte anos depois, sobre o pano de fundo do constitucionalismo democrático moderno, coloca perante os cidadãos brasileiros, aqui e agora, o desafio diário e permanente de fazer do Estado Democrático de Direito uma conquista cidadã, num processo de aprendizado social com o Direito, em nossa própria história. (Cattoni de Oliveira 2011, 223)

A partir dessas considerações vê-se que desde a Constituição de 1988 para além de expressar um poder político dominante cujo processo se encerrou com a promulgação em 05 de outubro de 1988; é, na verdade, fruto de processos deliberativos abertos e participativos, em que o procedimento foi, inclusive, atropelado pela força popular. Assim, em que pese o cenário, resultara em um texto mais progressista da história constitucional brasileira, um texto aberto ao futuro (Carvalho Netto and Paixão 2011). A Constituição de 1988, portanto, representa algo muito além do texto progressista promulgado. Ela é resultado de conquistas de uma geração que expressa princípios de autonomia e emancipação da sociedade civil. Princípios estes que, segundo Marcelo Cattoni (2011), já estavam expressos nas grandes revoluções do Século XVIII - principalmente a americana - e que os processos constituintes de 1987/88 resgataram. Ao passo que se promulgou o novo texto em 1988, nascia em conjunto com ele a Constituição Difusa, cuja relação entre “ambas” as Constituições é o meio de aferir a legitimidade do sistema. Ela é marcada pela atuação de movimentos sociais, trazendo à luz nova

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cultura pluralista resultando de um aprendizado social permanente. Os passos para trilhar os caminhos da Constituição Difusa, portanto, exige o reconhecimento do texto como nosso, em constantes processos de identificação com as conquistas passadas pelas gerações atuais e vindouras, em contínuo desenvolvimento, com esperança de que ao longo do tempo eventuais erros serão corrigidos por esse processo de aprendizado. Assim, a Constituição presente é fruto de compromissos passados. A legitimidade advém dessas conquistas, travadas em cenários de contradição, de modo que o consenso pelo dissenso (Morin 2005) resulta no texto constitucional com normas pouco densificadas, deixando espaço de conformação para as gerações futuras (Meyer 2012), sempre sujeito a tropeços, mas mas com capacidade de corrigir a si mesmo (Cattoni de Oliveira 2006), por constantes processos de identificação e des-identificação com as gerações passadas (Balkin 2011). Esse espaço de conformação é aquilo que Jack Balkin (2011) chama de “alvo-em-movimento”, típico das construções constitucionais como reflexo das práticas constitucionais, cujas conquistas, plasmadas no documento, estabelecem condições de possibilidade para a cultura democrática (Meyer 2012). Esse olhar para o passado deve, portanto, ser um reconhecimento com as gerações passadas – que convivem com as gerações presentes -, a partir de uma ideal de identidade coletiva que perpassa pelas diferentes gerações. É dizer, nós nos vemos como parte deles e eles como parte de nós. Deve-se criar “um ‘nós’ transtemporal” (Balkin 2011, 54). A partir dessa crítica aos discursos oficiais da transição política ocorrida em 1987/88, tem-se a compreensão da Constituição como um projeto aberto, permanente, em constantes desenvolvimento e que possibilita novas concepções de viver, essenciais às práticas constitucionais e democráticas (Meyer 2012). Esse patriotismo constitucional exige uma constante construção de uma cidadania emancipatória no intuito de abrir os processos interpretativos, protestando contra a interpretação das elites em constantes lutas por reconhecimento de direitos e de atores, porque “[...] só se garantem condições para o exercício da liberdade, em liberdade.” (Cattoni de Oliveira 2006, 57)

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Conclusão A partir das críticas aos discursos oficiais da Constituinte de 1987/88, observou-se que reduzir ele à simples ruptura política e com o esquecimento absoluto do passado - como se uma nova forma vida fosse implementada sem a observância das conquistas passadas - é inadequado para a compreensão da legitimidade do sistema que, conforme aqui abordado, leva em consideração os processos deliberativos apresentados pela sociedade civil organizada em movimentos sociais e que lutam por reconhecimento de direitos e de atores, e atuam como instrumentos de retroalimentação do sistema. Longe de se defender algo categórico, a pretensão era do sentido de aplicar o modelo de resgate constitucional apresentado por Jack Balkin, constatando a atuação dos movimentos sociais da sociedade civil, principalmente após a promulgação da Constituição de 1988, o que se constatou que os caminhos estão abertos para a Constituição difusa. O caminho está descoberto, é preciso que se queira trilhar. É preciso que o Supremo Tribunal Federal esteja disposto a seguir o caminho não linear e, quase sempre, vacilante do projeto constitucional, porquanto a constituição está sempre em movimento e permite o reconhecimento de direitos sempre. Engana-se a Corte ao supor que está isolada de aspectos externos ao processo decisório. Ao revés, está ela inserida num meio político que exige reflexão sobre o seu real papel, bem como da afirmação de que cabe a uma elite dizer o que é a constituição. A constituição não é das Cortes, ela é nossa; é preciso que nos identifiquemos com ela. O caminho está aberto.

Referências Balkin, Jack M. 2011. Constitutional Redemption: political faith in an unjust world. Harvard University Press. Cattoni de Oliveira, Marcelo A. 2006. Poder Constituinte e patriotismo constitucional: O projeto constituinte do Estado Democrático de Direito na Teoria Discursiva de Jürgen Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006.

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Cattoni de Oliveira, Marcelo A. 2011. “Democracia sem espera e processo de constitucionalização: uma crítica aos discursos oficiais sobre a chamada ‘transição política brasileira’”. In: Constitucionalismo e história do Direito, edited by Marcelo A. Cattoni de Oliveira, 207-247. Belo Horizonte: Pergamum. Carvalho Netto, Menelick and Paixão, Cristiano. 2011. “Entre permanência e mudança: reflexões sobre o conceito de constituição”. http://www. tex.pro.br/home/artigos/168-artigos-fev-2013/4801-a-adequada-tecnica-processual-e-duracao-razoavel-do-processo-no-sistema-ingles-e-brasileiro-7421. Friedman, Barry. 2009. The Will of the People: how public opinion has influenced the Supreme Court and Shaped the Meaning of the Constitution. Farrar, Straus and Giroux, (eBook) Friedman, Barry. 2005. The politics of judicial review. Texas Law Review, Vol. 84, pp. 257-337. http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_ id=877328. Kramer, Larry. 2004. The people themselves – popular constitutionalism and judicial review. Oxford University Press. Mendes, Conrado H. 2011. Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação. São Paulo: Saraiva. Meyer, Emílio Peluso N. 2012. Ditadura e responsabilização: elementos para uma justiça de transição no Brasil. Belo Horizonte: Arraes Editores. Morin, Edgar. 2005. Ciência com consciência. Tradução por Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. Post, Robert and Siegel, Reva. 2007. Roe Rage: Democratic Constitutionalism and Backlash. Yale Law School Faculty Scholarship. Faculty Scholarship Series. Paper 169. http://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/169 Sarmento, Daniel. 2010. Por um constitucionalismo inclusivo: história constitucional brasileira, teoria da constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris. Tushnet, Mark. 1999. Taking the Constitution away from the courts. Princeton University Press.

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ATIVISMO JUDICIAL E O CONFLITO ENTRE DEMOCRACIA E CONSTITUCIONALISMO Flavio Baumgarten Baiao Introdução Desde suas primeiras aparições após a criação do Controle de Constitucionalidade americano no século XX1, diversos autores desenvolvem múltiplas críticas, tanto a favor, quanto contra, um fenômeno chamado: Ativismo Judicial. Esse fenômeno não é algo recente na história, nem muito menos é um fenômeno restrito à realidade brasileira, porém antes de explicá-lo é necessária uma adaptação histórica. As duas grandes correntes de pensamento jurídico, antes da corrente atual (chamada de Pós-Positivismo), são o Jusnaturalismo e o Positivismo Jurídico, este primeiro, na sua ultima ‘versão’, esteve em vigor do séc. XVI ao XVIII e o segundo sendo utilizado por grande parte dos sistemas jurídicos ocidentais do século XIX e XX. A seguir será apresentada uma breve contextualização histórica e evolução dogmática do Jusnaturalismo e do Positivismo Jurídico, a fim de melhor demonstrar as razões pelas quais os sistemas jurídicos, de grande parte dos Estados Ocidentais, são, hoje em dia, da maneira que são. A fim de demonstrar que suas estruturas básicas, suas formas normativas e, acima de tudo, sua, de modo geral, grande adequação aos princípios da Dignidade da Pessoa Humana e da Limitação do Poder Estatal.

1. Do Jusnaturalismo ao Positivismo A cultura positivista é de certo modo uma evolução do Jusnaturalismo. O Jusnaturalismo moderno (período entre o séc. XVI até XVIII), também recebe o nome de Jusnaturalismo Racionalista, Luís Roberto Barroso, Constituição, Democracia e Supremacia Judicial, , p.9. E em presente referência nesta página (nota de rodapé 22): “A locução, ‘ativismo judicial’ foi utilizada, pela primeira vez, em artigo de um historiador sobre a Suprema Corte americana no período do New Deal[...]”.

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https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V01_A11

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pois esse movimento enfrenta duas grandes mudanças de paradigma. Tanto a primeira ideia quanto para a segunda o Direito era algo que advinha de valores metafísicos, primeiramente era emanada por Deus, e em um segundo momento era a razão humana. Libertando assim o Direito de uma visão teológica e o permitindo de se adaptar às revoluções liberais que se aproximavam, sendo essa “racionalização da vida” um dos mais potentes combustíveis que guiaram as revoluções vindouras, como a revolução Francesa e a Revolução Gloriosa. Nesse contexto pós-revolucionário começa uma fase de codificação na qual todos os Estados da família romano-germânica começam a escrever o Direito em códigos para não mais ficar a mercê da vontade do soberano, e unificar o Direito através de todo o território, e para tanto, promover o máximo de segurança-jurídica possível. E assim, com esse apreço cada vez maior pelos direito escrito/positivado, é que se da inicio ao chamado “Positivismo Jurídico”. Como bem analisa o professor Luís Roberto Barroso: O advento do Estado Liberal, a consolidação dos ideais constitucionais em textos escritos e o êxito do movimento de codificação simbolizaram a vitória do direito natural, seu apogeu. Paradoxalmente, representaram, também, a sua superação histórica. No início do século XIX, os direitos naturais, cultivados e desenvolvidos ao longo de mais de dois milênios haviam se incorporado de forma generalizada aos ordenamentos positivos. Já não traziam a revolução, mas a conservação. Considerado metafísico e anticientífico, o direito natural é empurrado para a margem da história pela onipotência positivista do século XIX.2

2. O Positivismo e suas Deficiências “Note-se bem que ‘escola histórica’ e ‘positivismo jurídico’ não são a mesma coisa; contudo, a primeira preparou o segundo através de sua crítica radical do direito natural”3

O Positivismo Jurídico foi o último grande movimento jurídico que entrou em vigor antes do modelo atual e pode-se dizer Luís Roberto Barroso, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, 2013, p. 260. 3 Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico, 1995, p. 45. 2

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que começou a funcionar com a ascensão dos códigos escritos ao final das revoluções liberais no fim do século XVIII, mas ele ganhou força de movimento jurídico de fato ao começo do século XIX com características que serão analisadas mais a frente. A começar pela lógica revolucionária de representação e de criação das leis. Após a Revolução Francesa o povo foi colocado como fonte de toda soberania de modo a ter uma participação mais presente dentro da organização do Estado, mas como, por motivos óbvios, não seria sempre possível perguntar a cada francês sua opinião para cada assunto de cunho estatal, foi criado o sistema de representação, o qual funcionava da seguinte maneira: A soberania (antes limitada à personalidade do Rei) era emanada do povo, o povo através do voto transferiria essa soberania para um numero limitado de Legisladores, os quais dentro do Parlamento criariam as leis e essas leis por sua vez conduziriam o funcionamento do Estado. “O princípio da vida política está na autoridade soberana.”4 Parece essa uma lógica muito simples e eficaz de condução da maquina estatal, porém esse ciclo tinha um problema. Mas onde? Se todo homem através do voto elege representantes para discutir e criar as leis que iriam reger a sociedade para esses mesmo homens, o que poderia dar errado? O problema se encontra precisamente na questão da representação, pois o que o ciclo não mostra é que todo homem era tão somente aquele do sexo masculino, e como se não bastasse não era somente necessário ser do sexo masculino para poder votar, além disso, ainda era necessário que esse homem fosse branco, e por fim alfabetizado. Assim verifica-se que quem conseguia realmente votar eram poucos, e esses poucos com seu voto teriam a força de representação de uma nação inteira. Basicamente quem conseguia votar eram burgueses, e os representantes eleitos por estes, naturalmente se preocupariam em defender os interesses da classe que os colocou no poder. Nessa lógica, em todos, ou quase todos, os Estados da família romano-germânica foram criando cada vez mais um apreço pela figura do Legislador, pois ele era o único que poderia criar, alterar ou revogar leis. Jean-Jacques Rousseau – séc. XVIII - comparava os poderes Executivo e Legislativo como, respectivamente, o cérebro e o coração de um corpo vivo, pois morrendo-se o cérebro não morrer-se-ia o corpo, ficar-se-ia débil mais vivo; mas ao 4

Jean-Jacques Rousseau, Do Contrato Social. 1762. P. 98.

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parar o coração morre-se o corpo.5 De acordo com o autor as leis são a forma de agir do soberano - povo - e este não teria outra força senão o poder Legislativo, as leis seriam os atos mais autênticos da vontade geral, portanto, o soberano só pode agir quando o povo reunido está.6 Rousseau dizia que: lei é a vontade geral sobre um ponto de vista; não se têm vontade geral num ponto particular, pois essa é a visão de um indivíduo e não do povo como um todo; uma vontade estranha não é geral, pois se a fosse não seria mais esta estranha; quando todo povo estatui para todo o povo, o povo considera o melhor para o todo, assim não se tem mais uma visão particular, mas a soma de todas elas formando a vontade geral, o ponto de vista do todo; a matéria estatuída, portanto, é/deve ser igual a essa vontade geral.7 As leis não são propriamente senão as condições de associação civil. O povo submetido às leis deve ser o autor das mesmas, pois somente aos associados compete regulamentar as condições da sociedade. [...] A vontade geral é reta, porém o juízo que a guia nem sempre é claro. Necessário é fazer ver ao povo os objetos tais como eles são, e algumas vezes, como lhes devem aparecer: ensinar-lhe o bom caminho que procura, preservá-lo da sedução das vontades particulares, relacionar ante os seus olhos os lugares e os tempos, contrabalançar o atrativo das vantagens presentes e sensíveis com o perigo dos males ocultos e longínquos.8

Portanto o legislador deveria ser um ser centrado e inteligente, que tomasse conhecimento dos vícios da natureza humana e do povo ao qual ele representa, mas não se deixasse levar por nenhum deles e que fosse capaz de perceber essas paixões passageiras que estivessem queimando nos corações do povo, capturando e legislando assim, somente, a verdadeira vontade soberana.9 “Seriam precisos Deuses para legislar aos homens.” 10 Aquele que ousa intentar a instituição de um povo, deve senJean-Jacques Rousseau, Do Contrato Social. 1762. P. 98. Jean-Jacques Rousseau, Do Contrato Social. 1762. P. 99. 7 Jean-Jacques Rousseau, Do Contrato Social. 1762. P. 51. 8 Jean-Jacques Rousseau, Do Contrato Social. 1762. P. 52-53. 9 Jean-Jacques Rousseau, Do Contrato Social. 1762. P. 53. 10 Jean-Jacques Rousseau, Do Contrato Social. 1762. P. 53. 5 6

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tir-se capaz de modificar, por assim dizer, a natureza humana, de transformar a cada indivíduo que, por si mesmo, é um todo perfeito e solidário, uma parte de um todo maior [...] Aquele que redige as leis não tem, pois, nem pode ter direito algum legislativo, e o próprio povo, quando quiser, não pode despojar-se deste direito intransferível, porque, segundo o pacto fundamental, somente a vontade geral obriga aos particulares e não é possível ter certeza de que uma vontade particular está de acordo com a geral senão depois de tê-la submetido aos sufrágios livres do povo.11

A partir desse momento a ciência ia cada vez mais ganhando espaço de um modo que nunca havia chegado perto de conseguir, para o homem tudo era ciência e dela era gerado. O Direito não poderia ser diferente, para tanto a lei virou a única fonte válida do Direito. Qualquer tipo de norma ou fonte normativa que tivesse uma origem considerada metafísica, anticientífica ou divina, era considerada inválida para gerar efeito jurídico, pois a única fonte que poderia gerar uma norma era a ciência, a razão lógico-dedutiva. A ciência exclui do próprio âmbito os juízos de valor, porque ela deseja ser um conhecimento puramente objetivo da realidade, enquanto os juízos em questão são sempre subjetivos (ou pessoais) e consequentemente contrários à exigência de objetividade.12

No pensamento Positivista o único quesito de validade da norma é seguir a lógica formal de codificação, não se levando em conta o conteúdo da mesma, a lógica positivista não tem o menor compromisso com a Moral ou a Ética, e é aí que surge a “Teoria dos Círculos Independentes” de Kelsen, a qual ele diz que, entre o Direito e a Moral não são necessários qualquer ponto de intersecção, o Direito é aquilo que está normatizado e a Moral é criada de acordo com os princípios Éticos e que por mais que alguns princípios morais estejam normatizados, Direito é Direito e Moral é Moral. “É nosso sentimento, é nossa vontade e não nossa razão, é o elemento emocional e não o racional de nossa atividade consciente que soluciona o conflito.”13 Jean-Jacques Rousseau, Do Contrato Social. 1762. P. 54-55. Norberto Bobbio, Positivismo Jurídico, 1995, p. 135. 13 Hans Kelsen, O que é justiça?, 1997, p. 05. 11 12

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Porém essa lógica positivista traz um grande problema, pois limita completamente a atuação do juiz e por vezes cria um ordenamento que está desconectado da realidade social. A lógica de resolução de casos no Positivismo era filtrar todos os problemas por uma simples fórmula de Subsunção, que consiste em enquadrar a Norma jurídica no Caso concreto, não se exige que se tenha uma compreensão do Fato, simplesmente o isola e enquadra em uma Norma que já estaria feita previamente pelo legislador. Apesar de tudo, esse método de solução de conflitos é muito eficaz para solucionar situações onde a resposta poderia já estar pré-pronta no Direito Positivo, esses casos, onde a resposta pode ser achada com precisão no enunciado normativo, são os chamados casos fáceis, e como existem os casos fáceis naturalmente existem os casos difíceis, que são aqueles e que o Direito não conseguiu criar uma resposta já pronta para a solução do conflito. De acordo com Luís Roberto Barroso14 são três as fontes geradoras de casos difíceis: a) Ambiguidade da Linguagem/Cláusulas Abertas, que são aquelas em que o sentido da Norma não está claro no Enunciado Normativo, pela utilização de termos que comportam numerosos significados; b) Desacordos Morais Razoáveis, que diz respeito à variação de pensamento das pessoas sobre o mesmo aspecto, exemplo disso é que tanto quem defende quanto quem é contra o aborto usa o princípio da Dignidade da Pessoa Humana para embasar sua argumentação; e, c) Colisões de Normas Constitucionais ou Direitos Fundamentais, que é quando objetos da tutela constitucional entram em conflito entre si e por se tratarem de normas de mesma hierarquia, cronologia e especialização não possuem uma forma precisa de resolução de conflitos. Para tanto o Fato não é mais só o fornecedor de elementos aonde vai se incidir a norma e o Interprete não é mais só “a boca que pronuncia as palavras das leis” 15, nos casos difíceis a Norma nem sempre tem a resposta completa do problema, ela leva o Interprete por um caminho que deve guia-lo, mas não mostrando-lhe o final dessa estrada, o Fato agora passa a fornecer ao Interprete elementos para a produção de Direito naquele caso em específico e o Interprete também vira coparticipante na criação do Direito fazendo valorações de clausulas abertas e em situações onde mais de uma escolha possa ser retiraLuís Roberto Barroso, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, 2013, p. 335-336. 15 Montesquieu, O Espírito das Leis, 1993, p. 171. 14

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da do texto, deve ele escolher qual mais se enquadra na vontade Constitucional, através da ajuda do princípio da Unidade Constitucional. Porém essa lógica dos casos difíceis não era aprovada pela lógica positivista, pois dar liberdade de criação para os juízes era considerado anticientífico e fugia do modelo representativista, pois juízes não eram eleitos e por tanto como poderiam eles atuar diferentemente da vontade dos “verdadeiros representantes do povo e da vontade geral”? Para os Positivistas o Juiz em qualquer caso, independente da situação deveria enquadrar o problema do caso em alguma norma jurídica com o mínimo de interferência possível de sua parte, o trabalho do Interprete era puramente tecnicista. Pegando o caso concreto, identificando uma norma que combinasse com tal situação e a partir de então enquadrar o Fato na Vontade do legislador. O positivismo pretendeu ser uma teoria do Direito, na qual o estudioso assumisse uma atitude cognoscitiva (de conhecimento), fundada em juízos de fato. Mas acabou se convertendo em uma ideologia, movida por juízos de valor, por ter-se tornado tão apenas um modo de entender o Direito, mas também de querer o Direito. Em diferentes partes do mundo, o fetiche da lei e o legalismo acrítico, subprodutos do positivismo jurídico, serviram de disfarce para autoritarismos de matrizes variados. A ideia de que o debate acerca da justiça se encerrava quando da positivação da norma tinha um caráter legitimador da ordem estabelecida. Qualquer ordem.16

O Positivismo teve seu fim bem delimitado com a queda do regime fascista na Itália e nazista na Alemanha17, mas por que o movimento acabou com o fim desses regimes totalitários? Pelo fato de que a legitimação de tais regimes só foi possível pelo fato de ambos os Estados estarem vinculados ao Positivismo e com ele terem, através do processo formal de criação de leis, permitido toda a barbárie realizada em tal período. Os direitos do homem estão acima dos direitos do Estado. Se, porém, na luta pelos direitos do homem, uma raça é subjugada, significa isso que ela pesou muito pouco na balança Luís Roberto Barroso, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, 2013, p. 263. 17 George Marmelstein, Curso de Direito Fundamentais, 2009, p. 10. 16

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do destino para ter a felicidade de continuar a existir neste mundo terrestre, pois quem não é capaz de lutar pela vida tem o fim decretado pela providência. O mundo não foi feito para os covardes.18

Na teoria dos círculos de Kelsen fica mais clara tal afirmação, pois afinal o direito não teria que ter nenhum compromisso com a moral, ou seja, seu conteúdo material era simplesmente uma opção, ou não, de capricho do Legislador, a lei precisaria apenas ser formalmente integrada ao texto, ou seja: um dos Legisladores devidamente eleito pelo voto, sendo assim o representante do povo, e que durante seu mandato propusesse um novo projeto de lei, que fosse aprovado pelos demais representantes eleitos, e assim finalmente, a nova lei entraria em vigor. Com os projetos de leis somente precisando ser aprovados pelo Congresso, e com a influencia que (no caso) Hitler tinha sobre as casas parlamentares, fica fácil de deduzir que não se encontrariam longos obstáculos em seu caminho para a concretização de seus ideais, e mais que isso, em 1933, no mesmo ano de assumir o poder, foi aprovado um projeto chamado “Ato de Habilitação”, que dava ao gabinete do ditador o poder de editar quaisquer normas, até mesmo as do texto da Constituição. O alicerce normativo do direito alemão, durante o nazismo, era a vontade do líder(‘Princípio do Führer’). O que Hitler ordenava era lei e, portanto, deveria ser obedecido. Logo, todos que estavam abaixo de Hitler nada mais estavam fazendo do que cumprir ordens. 19

Após a terrível experiência que foi o Nazismo e o Fascismo, foi possível observar o quão perigoso era o Positivismo Jurídico se posto em mão erradas, como bem destaca o autor Herbert Hart: Enquanto os seres humanos puderem obter cooperação suficiente de alguns para lhes permitir dominar outros homens, usarão as formas do direito como um de seus instrumentos. Homens maus criarão normas perversas, que outros farão cumprir.20 Adolf Hitler, Mein Kampf (Minha Luta), 1925, p. 93. George Marmelstein, Curso de Direitos Fundamentais, 2009, p. 06. 20 Herbert Hart, O Conceito de Direito, 1961, p. 271. 18 19

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E então se caminhou para o movimento jurídico atual do mundo Ocidental, o Pós-Positivismo, marcado principalmente pela volta da relação do Direito e da Moral, as garantias dos Direito Fundamentais como princípio maior da Constituição, também é dada à Constituição fundamentos éticos, jurídicos e sociais21 além da sua supremacia que a deixou como sendo o centro de todo o ordenamento jurídico, a conjugação de todos esses fatores, veio dizer-se que o modelo constitucional do século XXI se tornou uma “conquista da humanidade”.22

3. Judicialização vs. ativismo judicial Para poder falar de Ativismo Judicial, antes é necessário fazer-se uma distinção entre Ativismo Judicial e Judicialização. O Professor Luís Roberto Barroso faz uma analogia muito precisa entre ambos os fatos, os caracterizando como primos, ou seja, eles seriam muito próximos, frequentariam os mesmos lugares, mas não teriam as mesmas origens23. Essa analogia é de muita ajuda para compreender a diferença entre os dois e acima de tudo, ter a certeza de que são coisas diferentes. A começar pela Judicialização, esse movimento consiste basicamente em tratar de matérias que antes, ou até geralmente, estariam presentes predominantemente na vida social, privada e no processo político democrático, exercido pelo Executivo e Legislativo, no âmbito do Judiciário, a Inalienabilidade dos Direitos Fundamentais que leva com que os particulares, mesmo que entre si e por escolha própria, não possam abrir mão completamente destes direitos24, é um exemplo de algo que a princípio estaria restrito à vida privada e que é levado à incumbência do Judiciário. Porém esse fenômeno não é algo que se faz por opção dos membros do Poder Judiciário, ou de qualquer outro setor, a Judicialização é uma consequência do modelo constitucional vigente, ele não é uma opção ideológica dos Ministros do STF, por exemplo, basta que os quesitos para determinadas decisões sejam cumpridos que os membros do judiciário não teriam outra escolha senão tomar a atitude desejada pelo constituinte originário. Dalmo de Abreu Dallari, A Constituição na Vida dos Povos, 2013, p. 309. Dalmo de Abreu Dallari, A Constituição na Vida dos Povos, 2013, p. 347. 23 Luis Roberto Barroso, Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática, p. 06. 24 CF/88 art. 5, XXXV. 21 22

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Como dito a Judicializção é nada mais que um reflexo do modelo constitucional vigente, uma atitude tomada pelo juiz em decorrência da vontade da Constituição, e as causas desse reflexo são três: a) Controle de Constitucionalidade; b) Redemocratização; e c) o movimento de Constitucionalização.25 A começar pelo Controle de Constitucionalidade, o juiz tem a guarda da constituição devendo sempre que uma lei ou ato normativo vir a ofendê-la entrar em ação para proteger os interesses da constituição, no Brasil temos uma mistura dos dois modelos de controle que são o Concentrado e o Difuso, porém de modo geral nós fazemos um controle repressivo de constitucionalidade, ou seja, após a entrada da lei em vigor, por via de regra através de Ação Direta de Inconstitucionalidade, porém também é possível no Brasil um juiz diante de um processo não aplicar determinada lei ou ato normativo por considerá-lo inconstitucional. Seguindo para a Redemocratização após o Regime Militar e 1964-1985, assim como o fim do Nazismo e do Fascismo terem sido os propulsores das convenções internacionais que geraram os tratados de Direitos Humanos26, o regime militar brasileiro de 1964-1985 foi responsável por muitas decisões do constituinte originário durante o processo de criação do texto constitucional de 1988. Durante a fase do regime militar, muitos magistrados haviam perdido muitas garantias referentes à sua posição, tanto de benefícios próprios como também de espaço para sua atuação, como por exemplo, o Art. 11 do ato Institucional de n° 5 que impedia que o judiciário fizesse apreciações sobre os atos tomados pelo governo nem sobre seus respectivos efeitos,27 tendo assim os militares, carta branca para perpetuarem todas as suas barbáries. Por isso hoje já se tem a consciência da importância da necessária atividade judicial para a efetivação dos Direitos Fundamentais, como exemplo o art. 8 da Declaração Universal dos Direitos Humanos que tem o seguinte texto: Toda a pessoa tem direito a recurso efectivo para as jurisdições nacionais competentes contra os actos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela Luis Roberto Barroso, Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática, p. 03-04. 26 Louis Henkin, International Law: cases and materials, 1993, p. 375-376 27 George Marmelstein, Curso de Direitos Fundamentais, 2009, p. 292. 25

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lei.28

A redemocratização após o fim do regime militar teve então como uma das maiores preocupações uma maior acessibilidade e área de atuação do poder judiciário. Por último temos também a Constitucionalização. A constituição já foi um documento puramente político, seria apenas um convite para atuação do governo e do congresso nacional, porém hoje é um documento dotado de força normativa, portanto suas normas passam a ser de interesse também do judiciário na medida em que elas adquiriram status de norma jurídica. A CF/88 é uma constituição analítica e para tanto traz e regula em seu texto todos os assuntos que entenda relevantes para a formação e funcionamento do Estado e da vida privada, atraindo, portanto, varias matérias que antes eram reguladas somente pelos poderes políticos ou somente pelos costumes, e trouxeram para a sua área de atuação. Não se pode imputar aos Ministros do STF a ambição ou a pretensão, em face dos precedentes referidos, de criar um movimento juriscêntrico, de hegemonia judicial. A judicialização, que de fato existe, não decorreu de uma opção ideológica, filosófica ou metodológica da Corte(STF). Limitou-se ela a cumprir, de modo estrito, o seu papel constitucional, em conformidade com o desenho institucional vigente. Pessoalmente, acho que o modelo tem nos servido bem.29

A Judicialização faz parte da chamada “limitação da soberania interna”30, ou seja, a diminuição da liberdade para o pleno exercício da soberania, pelo soberano, no âmbito do Direito interno ao Estado. A Soberania, no conceito utilizado por Luigi Ferrajoli, é uma suprema potestas superiorem non recognoscens (poder supremo que não reconhece outro acima de si)31. Essa limitação também é decorrente de fatores histórico-sociais, afinal a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 - e posteriormente a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 - além da separação Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948, art. 8. Luis Roberto Barroso, Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimação Democrática, p. 05-06. 30 Luigi Ferrajoli, Soberania no Mundo Moderno. 2002. P. 27 31 Luigi Ferrajoli, Soberania no Mundo Moderno. 2002. P. 01. 28 29

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dos poderes, do princípio da legalidade e do devido respeito aos direitos fundamentais são limitações à soberania32, seja do Estado ou do povo, no sentido de suprema potestas superiorem non recognoscens. Afinal todos esses princípios impedem atos que os atinjam. Portanto, o modelo de Estado de Direito em que vivemos, para Ferrajoli, é no fim uma “negação da soberania interna”33 Sob esse aspecto, o modelo do estado de Direito, por força do qual todos os poderes ficam subordinados à lei, equivale à negação da soberania interna, de forma que dele resultam excluídos os sujeitos ou poderes legibum soluti (livre das leis); assim como a doutrina liberal do estado de Direito e dos limites de sua atividade equivale a uma doutrina de negação da soberania.34

E nesse contexto nem o Legislador se salva, pois sua liberdade de criação das leis, mesmo que acompanhando a vontade geral, está submetida à rigidez das atuais constituições modernas e mais que isso: ao dever de respeito, proteção e promoção35 dos direitos fundamentais.36 Desaba, assim, o postulado – jupositivistae, ao mesmo tempo, “democrático” – da onipotência do legislador e da soberania do parlamento. Com a subordinação do próprio poder legislativo de maioria à lei constitucional e aos direitos fundamentais nela estabelecidos, o modelos do estado de Direito aperfeiçoa-se e completa-se no modelo de estado constitucional de direito, e a soberania interna como potestas absoluta (poder absoluto), já não existindo nenhum poder absoluto, mas sendo todos os poderes subordinados ao direito, se dissolve definitivamente.37

Finalmente discutindo o Ativismo Judicial em si, ele é um fenômeno que decorre de uma atitude de juízes; baseia-se em uma forma de tentar extrair o máximo possível de eficácia de um prinLuigi Ferrajoli, Soberania no Mundo Moderno. 2002. P. 28 Luigi Ferrajoli, Soberania no Mundo Moderno. 2002. P. 28. 34 Luigi Ferrajoli, Soberania no Mundo Moderno. 2002. P. 28. 35 George Marmelstein, Curso de Direitos Fundamentais, 2009, p. 286. 36 Luigi Ferrajoli, Soberania no Mundo Moderno. 2002. P. 32-33. 37 Luigi Ferrajoli, Soberania no Mundo Moderno. 2002. P. 33. 32 33

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cípio ou de uma norma constitucional através de uma leitura mais abrangente de seu texto, tendo como base os Princípios da Fundamentalidade,38 Maximização39 e Abertura (inexauribilidade) constitucional40. Porém existe também o contrario do Ativismo Judicial, chamado: Autocontenção Judicial que consiste em o judiciário interferir o mínimo possível nos demais poderes da república, cumprindo estritamente as funções atribuídas exclusivamente a ele. Esta é uma forma covarde de fazer justiça pelo fato de querer eximir-se de atitudes que não estão expressas no texto constitucional, mas que fazem parte sim da atividade judiciária, jogando essas responsabilidades para os demais poderes, sufocando a máquina pública ou permitindo que a mesma seja mal utilizada pelo governo ou pelo congresso nacional. Ambos têm três características principais, referente ao Ativismo Judicial são41: • Aplicar critérios não rígidos durante uma ação direta de inconstitucionalidade, de leis já aprovadas e postas em vigor pelo Congresso Federal; • Fazer com que as normas constitucionais atuem em situações concretas que não estejam expressas no texto da Constituição sem qualquer manifestação do poder legislativo ou até mesmo contra a vontade do mesmo; e • Criar imposições ao Poder Público para tomar ou deixar de tomar atitudes em matérias do governo. Já referente à Autocontenção Judicial suas três características são: • Utilizar critérios muito rígidos para a declaração de inconstitucionalidade de uma lei ou ato norWalter Claudius Rothenburg, Direitos Fundamentais e suas Características, Revista dos Tribunais Caderno de Direito Constitucional e Ciência Política nº29, 1999, p. 55. 39 Walter Claudius Rothenburg, Direitos Fundamentais e suas Características, Revista dos Tribunais Caderno de Direito Constitucional e Ciência Política nº29, 1999, p. 64. 40 Walter Claudius Rothenburg, Direitos Fundamentais e suas Características, Revista dos Tribunais Caderno de Direito Constitucional e Ciência Política nº29, 1999, p. 59. 41 Luis Roberto Barroso, Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática, p. 06. 38

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mativo do Legislador; Sempre esperar manifestação direta do Legislador para aplicar a constituição em situações não expressas em seu texto; e Deixar de interferir nas atitudes dos demais poderes da república seja lá qual for a situação ou o caso concreto.42

O judiciário brasileiro vem tomando em várias decisões atitudes bem ativistas, com o intuito de atender melhor as necessidades da sociedade, pois em vários momentos o contato entre poder público e a população fica distante, sendo necessária uma atitude por meio do judiciário para regular a situação, quando um cidadão, por exemplo, não consegue ter acesso a algum direito fundamental pelas formas disponibilizadas pelo Estado e só através da martelada de um juiz o indivíduo consegue ter acesso às medidas necessárias para seu caso em especial, que vão concretizar seu direito. Em deveras ocasiões inclusive, a atitude ativista sequer gera conflito entre os poderes, servindo para preencher espaços que o próprio legislador deixa vazio esperando que o judiciário tome atitude cabível. [...] um exemplo que se tornou corriqueiro é a condenação do Estado ao fornecimento de medicamentos ou aparelhos terapêuticos, ainda quando não estejam incluídos nas listagens do Sistema Único de Saúde. [...] Em decisão de 2010, o STF confirmou a orientação a todos os entes federativos a responsabilidade solidária pelo fornecimento de medicamentos e terapias de eficácia reconhecida no país.43

3.1 Críticas ao Ativismo Pois bem, agora já tendo demonstrado a situação atual do sistema jurídico e as causas para tal, em seguida tendo sido explicitadas as principais diferenças entre Ativismo Judicial e Judicialização que servirão de base para o desenvolvimento do presente trabalho, encontra-se conveniente para o momento apresentar os Luis Roberto Barroso, Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática, p. 07. 43 Luis Roberto Barroso, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, 2013, p. 307-308. 42

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principais argumentos que a doutrina anti-ativista defende para atacar e deslegitimar o movimento.

3.1.1 Politização do Judiciário O fenômeno da politização do judiciário é realmente um fenômeno perigoso, pois no caso de juízes decidirem questões de Direito baseado em princípios políticos, proporcionaria uma descaracterização do Direito, afastando de si o caráter de justiça e abrindo um espaço cada vez maior para as decisões de caráter partidário e de influências. O poder judiciário é por natureza um poder não-politico, pois, para que ele exerça sua atividade da maneira mais desejada, é necessário que atue de forma mais neutra possível para que não haja favorecimentos durante as decisões jurídicas. Com efeito, não mais basta para o indivíduo, ou para o próprio governante, cumprir a lei, mas fica também sujeito a princípios, cuja concentração enseja opções subjetivas por parte do magistrado. Abre-se assim espaço para a judicialização da política em geral e, sobretudo, das políticas públicas em particular. O magistrado nisto se confunde com o administrador, como o juiz constitucional- já se apontou- com o legislador. De tudo isso, decorre o perigo de que a judicialização resvale para uma politização a justiça, com tudo o que de negativo possa daí resultar.44

Os poderes políticos são muito mais ligados ao caráter democrático do Estado, pois neles deve prevalecer a vontade popular, enquanto o poder judiciário está muito mais ligado ao caráter constitucionalista do Estado, por ser o órgão responsável pela tutela às garantias constitucionais através da técnica de limitação do poder estatal.45 O professor Daniel Sarmento faz uma consideração a essa potencial tensão entre constitucionalismo e democracia: A convivência entre constitucionalismo e democracia não é Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Princípios Fundamentais do Direito Constitucional, 2009, p. 301. 45 Joaquim José Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2003, p. 51. 44

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isenta de tensões. Isto porque, de forma bem esquemática, a democracia postula o governo do povo, através do predomínio da vontade da maioria, enquanto que o constitucionalismo, como doutrina que preconiza a limitação jurídica do exercício do poder, estabelece freios e barreiras para o exercício da soberania popular.(...)46 Embora na visão contemporânea do Estado Democrático de Direito, democracia e constitucionalismo sejam vistos como valores complementares, interdependentes e até sinérgicos, a correta dosagem dos ingredientes desta fórmula é essencial para o seu sucesso. Por um lado, constitucionalismo e limitações ao poder em demasia podem sufocar a vontade popular e frustrar a autonomia política do cidadão, como co-autor do seu destino coletivo. Por outro, uma “democracia” sem limites tenderia a pôr em sério risco os direitos fundamentais das minorias, bem como outros valores essenciais, que são condições para a manutenção ao longo do tempo da própria empreitada democrática.47

Ocorre, no entanto que ao levar à apreciação do judiciário questões de natureza política - fenômeno conhecido como judicialização da política - dá-se ao judiciário uma dimensão política e cria-se em contrapartida a politização da justiça. Dentro do poder judiciário deve-se fazer Direito e não política, questões políticas são dotadas de decisões partidárias, pois os agentes do poder público tem que ser filiados a algum partido político, e as vontades dos membros do partido devem ser levadas em consideração pelos detentores do poder, são dotadas de decisões populistas, já que seus mandatos são temporários e em um determinado período de tempo os membros do poder legislativo e do poder executivo são postos novamente ao “batismo da vontade popular”48, e sendo de seus interesses permanecer exercendo o cargo que estão ou conquistar a eleição para outro cargo mais elevado, a forma com que o povo iria encarar suas decisões interfere na escolha que os membros da política geralmente fazem, os membros do poder público por deverem seus cargos à representatividade da vontade popular é compreensível que tomem atitudes pensando na forma que a população, o povo que o elegeu, Daniel Sarmento, Ubiquidade Constitucional: Os Dois Lados da Moeda, p. 15. Daniel Sarmento, Ubiquidade Constitucional: Os Dois Lados da Moeda, p. 16. 48 Luis Roberto Barroso, Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática, p. 10 46 47

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gostaria que fosse feito. E por fim as decisões políticas são dotadas de decisões de mais influências além de somente influência popular, mas também influência parlamentar ou administrativa, isso se deve à troca de interesses para proporcionar um fortalecimento das relações entre políticos ou partidos a fim de consolidar suas carreiras ou seu número de membros de cada partido em cada órgão. As decisões judiciais devem ser dotadas de imparcialidade e legalidade, os juízes não devem se deixar levar pelas vontades passageiras da população, claro seu papel, como todo papel desempenhado pelo Estado, é representativo, porém o juiz deve se livrar de pressões populares que vão contra a lei para garantir a decisão mais justa e imparcial e deve também proteger suas decisões de vontades passageiras da população, usando como exemplo a expressão popular “fogo de palha” que representa uma vontade que vem forte e expressiva, porém não dura o suficiente para valer de base para uma decisão judicial. Sem embargo de desempenhar um poder político, o Judiciário tem características diversas das dos outros Poderes. É que seus membros não são investidos por critérios eletivos nem por processos majoritários. E é bom que seja assim. A maior parte dos países do mundo reserva uma parcela de poder para que seja desempenhado por agentes públicos selecionados com base no mérito e no conhecimento específico. Idealmente preservado das paixões políticas, ao juiz cabe decidir com imparcialidade, baseado na Constituição e nas leis. Mas o poder de juízes e tribunais, como todo poder em um Estado democrático, é representativo. Vale dizer: é exercido em nome do povo e deve contas à sociedade.49

3.1.2 Falta de legitimidade democrática Pois bem, outro ponto que a doutrina anti-ativista defende é a falta de legitimidade democrática dos magistrados em proferir decisões que vão contra a vontade do legislador e/ou do administrador sob dois aspectos, o primeiro a quebra da separação dos poderes e segundo a dificuldade contramajoritária50. Luis Roberto Barroso, Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito, p. 19. 50 Alexander Bickel, The least dangerous branch, 1986, p. 16. 49

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A começar pela quebra da separação dos poderes, o Brasil sendo um país constitucionalista tem como um de seus principais fundamentos a separação dos poderes51 baseado principalmente na teoria de Montesquieu de freios e contrapesos, que consiste em dividir as principais funções do Estado em três grandes órgãos independentes entre si que seria um responsável por uma tarefa específica, são eles o Executivo, Legislativo e Judiciário. A ‘Separação de Poderes’, como se indicou acima, pressupõe a tripartição das funções do Estado, ou seja, a distinção das funções legislativa, administrativa (ou executiva) e jurisdicional. Essa classificação que é devida a Montesquieu encontra, porém, antecedentes na obra de Aristóteles e Locke.52

Vale complementar que, inclusive, esses órgãos se organizam em um número impar para garantir que nenhum deles ultrapasse suas barreiras institucionais; caso um dos órgãos esteja abusando de suas funções estatais, haveria dois outros órgãos para conter tais abusos, ou no caso de um tentar se sobrepor a outro haveria o terceiro que deveria impedir essa sobreposição. A ideia de dividir em cada órgão uma atividade específica, que não poderia ser compartilhada pelos demais, é a de que todo homem que concentra deveras competências fica propenso a agir de forma tirânica e, portanto é necessário que as três funções estatais sejam divididas igualmente e que elas tenham independência e harmonia entre si, para garantir o bom funcionamento da máquina estatal. Nesse sentido Montesquieu disserta: Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura, o Poder Legislativo está reunido ao Poder Executivo, não existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo Senado criem leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do Poder Legislativo e do Executivo. Se estivesse unido ao Poder Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria o legislador. E se estiver ligado ao Poder Executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo então estaria perdido 51 52

Elival da Silva Ramos, Ativismo Judicial, 2013, p. 111. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Curso de Direito Constitucional, 2007, p. 135.

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se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de criar leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes e as querelas dos particulares.53

Portanto o judiciário não teria legitimidade para editar leis criadas pelo legislativo, por exemplo, pois esta seria uma atividade fora de sua área de atuação, e sendo assim se o órgão que tem o poder de julgar os litígios baseado nas leis puder também edita-las cria-se uma circunstância de predomínio do poder judiciário por acúmulo de funções institucionais, pois ele iria julgar baseado em suas próprias leis. Além disso, usurpar a função institucional de outro órgão/Poder seria inconstitucional por violar a própria lógica de separação dos poderes, o qual é um dos princípios mais importantes de um Estado constitucional. Para ilustrar, o artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão diz o seguinte: “Toda sociedade a qual não esteja assegurada a garantia dos direitos do homem nem determinada a separação dos poderes não possui constituição.” 54, ou seja, a separação dos poderes é um pré-requisito para o Estado constitucional de direito. Concomitantemente a ameaça à separação dos poderes institucionais também há o problema da dificuldade contramajoritária que também diz respeito à falta de legitimidade democrática da prática ativista. A atividade contramajoritaria do judiciário existe no sentido positivo e negativo, positivo quando os juízes criam novas interpretações às normas, diferente da interpretação dada pelo legislador ordinário e sem o seu parecer, porém seguindo o espaço e a liberdade da leitura gramatical do texto, e negativo quando invalida as leis ou atos normativos do legislativo ou do executivo.55 A ideia é a de que os juízes não são eleitos pelo povo, seu ingresso na magistratura vem através de aprovação em concurso público de provas e títulos que avalia apenas critérios técnicos56, e ainda mais, seus cargos são dotados de vitaliciedade e inamovibiMontesquieu, O Espírito das Leis, 1993, p. 171. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1789, art. 16. 55 Vicente Paulo de Almeida, Ativismo Judicial, “Surge, então, o denominado contramajoritarismo, que é a atuação do poder judiciário atuando ora como legislador negativo, ao invalidar atos e leis dos poderes legislativos ou executivos democraticamente eleitos, ora como legislador positivo – ao interpretar as normas e princípios e lhes atribuírem juízo de valor. 56 CF/88 art. 93, I. 53 54

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lidade57, ou seja, permanecem exercendo seu cargo até a aposentadoria e só podem ser afastados através de votos de membros do próprio poder judiciário então nunca estarão em disposição para avaliação da vontade popular, eles são livres da vontade da maioria e não precisam receber aprovação ou serem eleitos pelo povo portanto não teriam legitimidade democrática para invalidar leis ou atos normativos originários do poder legislativo ou do executivo pois, esses sim foram eleitos através de eleição direta58 e por voto popular, respeitando a lógica representativa e portanto seriam os legítimos representantes do povo. Esse fenômeno entra em colisão direta com o princípio da soberania popular, princípio esse consagrado em grande parte as constituições modernas, como a Constituição espanhola de 1978 “La soberanía nacional reside en el pueblo español, del que emanan los poderes del Estado.”59, Constituição francesa de 1958 “Le peuple français proclame solennellement son attachement aux Droits de l’homme et aux principes de la souveraineté nationale tels qu’ils ont été définis par la Déclaration de 1789, [...]”60 e “La souveraineté nationale appartient au peuple qui l’exerce par ses représentants et par la voie du référendum. ”61 e por fim a nossa Constituição da República Federativa do Brasil “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos[...]”62 Então nesse caso o judiciário também não teria legitimidade para fazer uma edição em normas aprovadas pelo Presidente da República ou pelo Congresso Nacional, pois tais edições seriam a vontade de um pequeno grupo de juízes que estaria tentando se sobrepor à vontade da maioria da população representada pela figura do legislador ou do administrador e isso entraria em confronto com a lógica representativista e com os princípios da democracia e no poder fundado na vontade da maioria.

3.1.3 Limitação de Competência Institucional O ultimo argumento que a doutrina anti-ativista utiliza para CF/88 art. 95, I, II. CF/88 art. 1º, Parágrafo único, art. 14 caput. 59 Constituición espanhola, 1978, articulo 1.2. 60 La Constituition du 4 octubre 1958, Préambule 61 La Constituition du 4 octubre 1958, article 3 62 CF/88 art. 1º, Parágrafo único 57 58

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desferir seus golpes ao movimento ativista se refere à falta de competência de juízes, e também de outros membros do poder judiciário, para entender e regular da forma necessária a respeito de questões que não são familiares ou que não fazem parte da atividade típica da magistratura. Luis Roberto Barroso faz referência a duas formas de limites da capacidade institucional do judiciário63 são elas a Capacidade Institucional e o risco de Efeitos Sistêmicos. A primeira, como dito acima, diz respeito à falta de capacidade do poder judiciário de dissertar sobre determinadas questões as quais a magistratura e seus membros não seriam os melhores avaliadores de tais questões. Um juiz de direito, ou um desembargador, que seja, não parecem ser os melhores profissionais para avaliar a saúde mental de um réu cujas capacidades de discernimento são relevantes para a continuidade do processo, outro exemplo dessa vez ligado às medidas públicas, questões como nomeação de Ministros de Estado, decretação de estado de sítio ou as relações que o Brasil tem com outros Estados, tem maior competência para tratar o Executivo que o Judiciário, cabe ao juiz averiguar se a nomeação de um ministro do Tribunal de Contas da União, por exemplo, feita pelo Presidente está de acordo com o previsto na CF/88, mas não compete a ele questionar ou interferir na escolha do Presidente atendidas as necessidades previstas no texto constitucional. Também não se faz de competência do judiciário questionar sobre limites do território nacional, planos e arrecadação tributária ou autorização do Presidente da República para declarar guerra, são essas atribuições exclusivas do Legislativo, cabe ao judiciário avaliar se a cobrança de impostos está devidamente dentro do que se estipula na lei, por exemplo, mas não a forma de cobrança. Já o risco de efeitos sistêmicos alerta sobre a falta de competência do poder judiciário de medir o peso de certas decisões na esfera nacional ou até internacional, pois nem sempre o juiz tem a capacidade valorativa de enxergar o resultado de seu julgamento em determinado caso para além do específico que tem em mãos. Nesse sentido Barroso bem disserta: O juiz, por vocação e treinamento, normalmente estará preparado para realizar a justiça no caso concreto, a microjustiça. Ele nem sempre dispõe das informações, do tempo e mesmo Luis Roberto Barroso, Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática, p. 16. 63

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do conhecimento para avaliar o impacto de determinadas decisões, proferidas em processos individuais, sobre a realidade de um segmento econômico ou sobre a prestação de um serviço público.64

Como forma de encerrar este tópico um trecho de José Gomes Canotilho faz-se valioso para exemplificar esse contexto: [...] a cada órgão de soberania, dotado de determinadas características, é atribuída a função que ele pode desempenhar de uma forma mais adequada (ou da única forma adequada) da que seria se ela fosse atribuída a outro órgão.65

3.2 Contra críticas ao ativismo Após dissertar a respeito das críticas de maior peso na doutrina contra-ativista chega o momento de apresentar os motivos pelos quais o ativismo mostra-se um movimento muito mais benéfico para o ordenamento jurídico brasileiro, e as razões de porque ele é antes uma ferramenta de consolidação e aplicação da democracia do que um meio de usurpar seus princípios mais importantes.

3.2.1 Politização do Judiciário A ideia de se separar Direito e Política vêm principalmente da noção de que o Direito deveria ser uma instituição fruto da lógica, o Direito deveria fazer parte das ciências exatas, o homem não cria o Direito, nem no Jusnaturalismo nem no Positivismo Jurídico o direito era criação do homem, em ambos os modelos jurídicos o Direito era algo que deveria ser descoberto, primeiro a partir das leis naturais, de Deus, o direito já existia e estava presente na natureza, cabia aos homens percebê-lo e segui-lo, depois, com o avanço da racionalização, momento pelo qual o homem foi passando a se guiar menos por Deus e mais pela sua racionalidade, o Direito foi sendo jogado para a área das ciências exatas, sendo fruto de um processo lógico e que para ser posto em vigor deveria apenas pasLuiz Roberto Barroso, Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimação Democrática, p. 16 65 José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2003, p.552. 64

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sar por um processo formal de criação de leis. Nesse momento o papel do juiz era apenas de técnico da lei, seu ofício consistia apenas em aplicar a lei e a vontade do legislador nos casos concretos que o fossem apresentados, portanto, os juízes devem agir para defender a constituição e as leis, não em favor de seus interesses políticos particulares ou de grupos os quais ele simpatize. Esse de fato é a situação ideal e desejável para o poder judiciário, os juízes realmente devem fazer julgamentos imparciais e sempre baseados nas leis e nas demais fontes do Direito, nunca em suas opiniões próprias ou vontades políticas. Contudo a base de atuação do poder judiciário é a constituição e a dos demais poderes públicos é principalmente a vontade majoritária, porém a própria constituição é fruto da vontade política majoritária representada pelo poder constituinte que transforma essa vontade em poder constituído66, a constituição, portanto, é a maior fonte e base da vontade popular, isso serve para ilustrar como a linha divisória entre Direito e política tem um aspecto fluido, não fixo67, pois o Direito é fruto da vontade das maiorias, portanto, do processo político. Como diz o próprio preâmbulo da CF/88: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte, para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.68

Além do mais, faz parte das atividades típicas do judiciário a guarda da constituição, portanto, em assuntos que envolvem normas constitucionais o judiciário tem a legitimidade e o dever de dar a palavra final para cumprir com sua tarefa de proteger os interesses da constituição. Luis Roberto Barroso, Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, 2013, p. 419. 67 Luis Roberto Barroso, Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática, p.02. 68 CF/88, Preâmbulo. 66

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Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal(...)69

Sobre o tema, houve um célebre debate entre Hans Kelsen e Carl Schimitt, no início do século XX, sobre quem deveria ser o guardião da constituição e assim tendo o poder de dar a palavra final sobre questões envolvendo normas constitucionais. Schimitt entendia que pelo fato de a Constituição ser um documento fruto das vontades majoritárias se trataria de um documento eminentemente político e, portanto, seu controle não estaria submetido ao poder judiciário, mas sim ao presidente do Reich,70 ele tinha medo que se a ultima palavra sobre questões constitucionais fosse dada pelo judiciário a justiça seria politizada71, mas para Hans Kelsen a defesa da constituição deveria ser feita por Tribunais Constitucionais, pois o controle da constitucionalidade não pode ser feito por órgãos que serão controlados por esse poder. Para Kelsen, dizer que o governo seria o ‘guardião da constituição’ é encobrir o real caráter de sua função. Dizer que o monarca é uma terceira instancia, acima do antagonismo entre Parlamento e governo e detentor de um poder neutro é uma ‘ficção de notável audácia’. Como poderia o monarca, detentor de grande parcela do poder do Estado ser neutro em relação ao exercício de tal poder e controlar sua constitucionalidade? 72

Esse modelo proposto por Kelsen, cujos litígios constitucionais são decididos por órgãos de cúpula do poder judiciário interno é conhecido como modelo concentrado de controle de constitucionalidade, e é o modelo adotado por grande parte dos países atuais cujo sistema jurídico é baseado no modelo romano-germânico. Porém 69 70

.

CF/88, Art. 102. Carl Schmitt, A Revolução Legal Mundial: Superlegalidade e Política 1997, p. 102

Carl Schmitt, La Defesa de La Constituicíon, 1998, p. 57. Paula Véspoli Godoy, em artigo publicado para Mestrado em Direito Constitucional da PUC-SP, 2010, p. 41-42. 71 72

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faz-se adendo de que os juízes mesmo tendo legitimidade para alterar ou anular leis ou atos normativos do legislativo não significa que sempre o deva fazer, muito menos que o possam fazer por interesse próprio, sua atuação deve sempre ser imparcial, mas nunca será neutra, neutralidade é a relação interna do juiz e indica que nenhuma das ideias, conceitos, sentimentos e vontades do juiz estão presentes no julgamento, essa era a intenção do juspositivismo. O problema é que os “juízes não são seres sem memória e sem desejo, libertos do próprio inconsciente e de qualquer ideologia(...)”73. Já a imparcialidade é a relação do juiz entre as partes, quer dizer que o juiz não toma partido nem favorece mais um lado, ele coloca a justiça acima de seus interesses particulares, indica que apesar de ter suas concepções internas ele evita deixar que elas atrapalhem o julgamento fazendo que ele penda para o lado que acha certo mesmo sendo contra a vontade constitucional. Ainda sobre os juízes, suas decisões devem sempre ser feitas com a intenção de preservar a constituição e a vontade do constituinte originário e de modo geral devem agir com deferência em relação aos atos emanados dos demais poderes federativos, somente devendo agir quando houver qualquer violação, material ou formal, de princípios, garantias, regras, ou qualquer outro tipo de normas constitucionais. (...) Com isso, deve ser dito que a representação do povo pelo tribunal constitucional tem um caráter mais idealístico de que aquela pelo parlamento. O cotidiano da exploração parlamentar contém o perigo que maiorias imponham-se desconsideradamente, emoções determinem o ocorrer, dinheiro e relações de poder dominem e simplesmente sejam cometidos erros graves. Um tribunal constitucional que se dirige contra tal não se dirige contra o povo, mas, em nome do povo, contra seus representantes políticos.74

3.2.2 Falta de Legitimidade Democrática A suposta falta de legitimidade democrática das práticas ativistas pelo judiciário são sem sombra de dúvidas a maior fonte Luis Roberto Barroso, Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimação Democrática, p. 13. 74 Robert Alexy, Constitucionalismo Discursivo, 2008, p. 53-54. 73

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de críticas e argumentos dos anti-ativistas, a aparente quebra do princípio democrático, que faz parte do sistema político nacional, com certeza assusta e causa espanto no primeiro momento, mas como se comprovará a seguir, as práticas ativistas, desde que bem utilizadas e usadas para a defesa da constituição, trabalham muito mais a favor da democracia que contra ela. Encontra-se nesse ponto também a principal fonte de conflito entre o Constitucionalismo e a Democracia. A começar pela questão da quebra da separação dos poderes, quando se fala no judiciário criando novas interpretações para leis votadas e aprovadas pelo poder legislativo cria-se a ideia de que os juízes estariam acumulando funções institucionais, não típicas, que foram designadas a outros poderes, como no caso de declarar uma medida de lei do congresso nacional como inconstitucional, retirando toda a sua validade, na verdade o juiz não está invadindo o espaço de atuação do poder legislativo, nem seria o caso de dizer que está acumulando sua função institucional típica. A tais dificuldades alia-se a rígida doutrina da separação dos Poderes, como se estes não fossem, afinal, simples prolongamentos do poder do Estado. Mas o Judiciário, no desempenho de sua missão moderna, pode praticar atos que vão desde a sentença clássica (individual) até atos propriamente legislativos, no seguinte escalonamento: sentença clássica, precedente, sentença normativa, jurisprudência vinculante, atos quase-legislativos e atos plenamente legislativos.75

O juiz no caso está cumprindo com o seu dever constitucional de preservar a constituição e a vontade do poder originário, como foi dito à cima entre o debate que durou anos entre Kelsen e Schmitt ficou-se estabelecido que o guardião da constituição seria o judiciário, e assim sendo ele não só pode, mas também deve agir ativamente em situações as quais o legislativo, assim como o executivo, tomam atitudes que prejudicam direitos fundamentais de um grupo ou até de um único indivíduo. A interferência de um poder sobre o outro é apenas admissível para garantir direitos fundamentais, impedindo abusos e atentados contra a própria constituição, caso contrario 75

Evandro Gueiros Leite, Ativismo Judicial, 2011, p. 13.

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nada adiantará a constitucionalização do princípio, por que ele existirá, apenas, nominalmente, sem qualquer relevância prática.76

Se um juiz avista uma situação onde se identifica uma inconstitucionalidade, tanto por ação ou por omissão do poder público, e deixa de tomar medida necessária correspondente ao fato por mera falta de parecer legislativo, por exemplo, ou por uma suposta atitude de preservar o sistema democrático e a separação dos poderes, esse sim é o maior responsável pelo dano causado, justamente pelo fato do judiciário ser o guardião supremo da constituição e também por isso ele quem detém a palavra final em questões que envolvam normas constitucionais. A respeito do modelo de separação dos poderes de Montesquieu, o Ministro Cézar Peluso, em julgamento de Ação direta de Inconstitucionalidade disserta, citando Tércio Sampaio Ferraz: Montesquieu, na verdade, via na divisão de poderes muito mais um preceito de arte política do que um princípio jurídico. Ou seja, não se tratava de um princípio para a organização do sistema estatal e de distribuição de competências, mas um meio de se evitar o despotismo real. ‘(...) Nesse sentido, o princípio não era de separação de poderes, mas de inibição de um pelo outro de forma recíproca.’77, (...)A matriz histórica da separação dos poderes há de ser, pois, reconduzida, no contexto da causa, ao alcance de instrumento político que lhe emprestava o autor que a consagrou como teoria: conter o poder, para garantir a liberdade. É esta a razão por que, em coerência com seus pressupostos teóricos e objetivos práticos, MONTESQUIEU jamais defendeu a ideia de uma separação absoluta e rígida entre os órgãos incumbidos de cada uma das funções estatais.78

Um caso clássico de ativismo judicial em relação ao poder executivo é a ocasião em que um indivíduo precisa de um tratamento especial de saúde ou precisa fazer o uso constante de um Uadi Lammêgo Bulos, Constituição Federal Anotada, 2012, p. 67. Tércio Sampaio Ferraz Jr. O Judiciário frente à divisão dos poderes: um princípio em decadência? , 1994, p. 14. 78 Ministro Cezar Peluso, ADI 3367, 2005, p. 215, disponível em http://redir.stf.jus. br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=363371. 76 77

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medicamento e em ambos os casos o SUS não disponibiliza os serviços necessários ou não tem o medicamento específico da sua lista de contribuições e esse indivíduo por conta própria ou representado por sua família, entra na justiça para tentar conseguir fazer esse tratamento ou conseguir o fornecimento de tal medicamento durante o período necessário, e então o judiciário obriga a União, o Estado ou o Município a fornecerem referente tratamento ou medicamento. Essa situação ativista, se bem avaliados os aspectos fáticos do caso e respeitando o princípio da proporcionalidade/razoabilidade, é totalmente possível, coerente e correta da parte do poder judiciário. Posteriormente , quando se falar novamente da questão da competência do judiciário, será apresentado um exemplo fático, ocorrido em Fortaleza (CE) que melhor ilustrará o caso e o porquê de esta ser a atitude mais correta da parte do poder judiciário. Em questão do princípio da Dificuldade Contramajoritária, os juízes não são eleitos pela população e nem precisam de sua aprovação para exercer seus cargos os quais, são, pois, vitalícios, porém a esse fato existe um motivo de extrema importância para um bom funcionamento da justiça e como a democracia como um todo. Para um bom sistema democrático é importante sim que os poderes públicos sejam representantes do povo e que sejam assim escolhidos por ele, porém a democracia não se sustenta apenas por voto majoritário, pela vontade da maioria, os juízes precisam de tal estabilidade profissional para poder exercer seus cargos da forma mais imparcial possível. Os poderes políticos que devem seus cargos à vontade da maioria, por esta mesma causa, são muito mais suscetíveis a cederem às pressões populares, majoritárias ou partidárias como uma forma de garantir ao máximo possível sua reeleição, ou um cargo de maior prestígio nas próximas eleições. Portanto em inúmeros casos o poder público deixa de se pronunciar por livre e espontânea vontade, já esperando uma atuação ativista do judiciário para que eles não precisem se expor no determinado caso. Um papel ativista por parte do judiciário é necessário para a perpetuação da democracia e de seus valores, democracia significa o “governo do povo” e o povo não se resume a maioria da população, muito menos a democracia o faz. E, além disso, em um Estado Democrático de Direito a vontade da maioria é só mais um dos princípios que guiam as atitudes dos governantes, outro princípio fundamental para um Estado democrático e constitucionalista, além da limitação do poder estatal, é o respeito aos Direitos Fundamen-

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tais de cada cidadão, e isso se encontra presente na Constituição de 1988, portanto a maioria só por estar em maior número não está legitimada para tomar atitudes que violem Direitos Fundamentais de outrem alegando estarmos em um país democrático e, portanto “a maioria vence”. Considero ímpia e detestável a máxima de que, em matéria de governo, a maioria de um povo tem o direito de fazer tudo, e no entanto, atribuo às vontades da maioria a origem de todos os poderes. Estarei em contradição comigo mesmo? Existe uma lei geral que foi feita, ou ao menos adotada não somente pela maioria deste ou daquele povo, mas pela maioria de todos os homens. Esta lei é a justiça. A justiça forma, então o limite do direito de cada povo(...)79

Para tanto, para garantir que todos, mesmo que em menor número, possam ter o máximo de acesso possível de seus Direitos Fundamentais, é necessário que pelo menos um dos poderes institucionais seja livre de certas pressões populares quando se tratar de proteger Direitos Fundamentais. Não significa isto que o Judiciário deva sempre correr contra a vontade majoritária, a atividade do judiciário deve ser a favor do povo e não contra ele, então de modo geral ele deve, da mesma forma com os demais poderes institucionais, agir a favor da vontade popular, mas ele também deve ter o poder de, nos casos os quais sejam necessários, agir contramajoritariamente para proteger direitos que estariam sendo esquecidos pela vontade majoritária ou desprotegidos pelos legisladores ou administradores. A independência do Judiciário é um dos dogmas das democracias contemporâneas. Em todos os países que emergiram de regimes autoritários, um dos tópicos essenciais do receituário para a reconstrução do Estado de direito é a organização de um Judiciário que esteja protegido de pressões políticas e que possa interpretar e aplicar a lei com isenção, baseado em técnicas e princípios aceitos pela comunidade jurídica. Independência e imparcialidade como condições para um governo de leis, e não de homens. De leis, e não de juízes, fique bem entendido. 80 79 80

Alexis de Tocqueville, A Democracia na América, 2005, p. 294. Luis Roberto Barroso, Constituição, Democracia e Supremacia Judicial: Direito e

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Algumas frases e ideias de Rousseau já colocadas acima se fazem interessantes para analise novamente aqui. Dentre elas, a mais necessária é a ideia seguinte: A vontade geral é reta, porém o juízo que a guia nem sempre é claro. Necessários é fazer ver ao povo os objetos tais como eles são, e algumas vezes, como lhes devem parecer: ensinar-lhe o bom caminho que procura, preservá-lo da sedução das vontades particulares, relacionar ante os seus olhos os lugares e os tempos, contrabalançar os atrativos das vantagens presentes e sensíveis com o perigo dos males ocultos e longínquos.81

Como se vê é claro já para o tempo de Rousseau – que apesar de ter escrito seu principal trabalho sobre a democracia no séc. XVIII este se mostra cada vez mais atual e mantem-se sendo citado em trabalhos do tipo até hoje – que nem sempre o povo teria plena noção de sua vontade assim como nem sempre teria feito o balanceamento das devidas vantagens presentes com os riscos vindouros. E o legislador apesar de ter o dever de descobrir todas as paixões humanas82 pois ao fim, ele ainda é um homem e faz parte do povo, além seu futuro depender da aprovação popular. Durante a própria Revolução Francesa, houveram debates principalmente entre o ministro da justiça e um dos líderes jacobinos George Jacques Danton e o inglês Thomas Paine sobre o futuro dos juízes, o primeiro, tomado pelo impulso de tudo deixar para a vontade popular defendia que os juízes deveriam também ser eleitos, posição contrariada por Paine que defendia os juízes de carreira e independentes83, posição está que melhor garante a possibilidade de proteger direitos fundamentais de serem desproporcionalmente violados por vontades majoritárias. Em sendo assim, os Direitos Fundamentais, e seu conteúdo essencial – que apesar do termo não necessariamente se tratando da teoria absoluta do conteúdo essencial84 - como barreira intransponível para a vontade majoritária, são um bom parâmetro para o pleno exercício da Democracia, e criando Política no Brasil Contemporâneo, 2012, p. 19-20. 81 Jean-Jacques Rousseau, Do Contrato Social. 1762. P. 53. 82 Jean-Jacques Rousseau, Do Contrato Social. 1762. P. 53. 83 Os Direitos do Homem, Christopher Hitchens. 2007. P. 64. 84 Virgílio Afonso da Silva, Direitos Fundamentais. 2014. P. 27.

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um balanceamento importante entre ela e o Constitucionalismo. Aí está a legitimidade democrática do ativismo judicial. O Judiciário então, como guardião da constituição85, por força do art. 102, caput, tem o dever de sempre preservar a vontade da constituição, sempre respeitando o princípio da proporcionalidade/ razoabilidade, tem ele o dever de fortalecer a democracia cuidando para que o processo democrático não se perca em casos concretos, como um agente para a contenção das paixões passageiras do povo86, ou nos casos onde haja uma supressão de Direitos Fundamentais de cidadãos por conta do processo majoritário, contendo assim que haja uma “Onipotência da maioria” 87.

3.2.3 Limitação de Competência Institucional Para finalizar tem-se a questão da falta de competência por parte do judiciário para tratar de certos casos por não ser o poder institucional mais habilitado para a situação e também o risco de serem mal avaliadas as consequências de impacto de sua decisão no cenário nacional ou internacional. Nesse aspecto sim, o juiz nem sempre será o melhor arbitro para determinada questão e nem sempre terá a capacidade de medir os efeitos de sua decisão num cenário nacional e internacional. O modelo de separação dos poderes, o qual o Brasil e tantos outros países adotam, tem como uma das metas atribuir cada atividade para o órgão cujas atribuições são as mais eficazes para solucionar a questão, portanto nem sempre o juiz de direito será a pessoa melhor preparada para solucionar uma questão, que envolva o uso das forças armadas por exemplo. Do mesmo modo, muitas questões estão fora do raio de compreensão do magistrado no que diz respeito às consequências de certas decisões provenientes dele. Assim, por exemplo, na esfera federal, no que diz respeito à condição da política macroeconômica, é impossível ao Poder Judiciário afirmar, com razoável grau de certeza, qual a Pedro da Silva Moreira, O Supremo Tribunal Federal Entre Schmitt e Kelsen:O Guardião da Constituição no Julgamento da ‘Ficha Limpa’,p. 37. 86 Luis Roberto Barroso, Constituição, Democracia e Supremacia Judicial: Direito e Política no Brasil Contemporâneo, 2012, p. 41. 87 Alexis Tocqueville, A Democracia na América, 2005, p. 293. 85

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melhor política para o desenvolvimento econômico do país: se a economia de recursos com fins de gerar um superávit primário capaz de diminuir o endividamento do país ou o endividamento com vistas à implementação de obras de infraestrutura..88

Para tanto é muito importante que sempre que aparecer um caso concreto que envolva uma postura ativista do magistrado e questões chave desse processo envolverem conhecimentos que não se limitam à atividade judicial ou, mais ainda, não faça parte do conhecimento convencional de um juiz, o magistrado deve sempre agir com cuidado e precaução, nada o impede de convocar serviços de profissionais de diversas outras áreas profissionais para completar informações cruciais para o julgamento, aumentando, pois, as chances da decisão estar mais próxima da realidade e ser mais viável de ser realizada. Voltando à questão clássica a respeito dessa relação de competência institucional, no caso de um individuo entrar com um pedido na justiça para que o Estado pague um tratamento de saúde ou um medicamento indispensável para sua vida. Dependendo dos aspectos fáticos do caso concreto o judiciário tem não só o poder, mas o dever de impor ao governo que pague o tratamento ou o medicamento, porém nem sempre é o caso e o judiciário deve deixar o poder público fazer os balanços necessários para a decisão final. Em 2004 houve um caso em Fortaleza (CE) de um menino de 2 anos de idade chamado Arthur Nogueira Santos que desde seu primeiro mês de vida foi diagnosticado com uma doença rara chamada Maple Syrup Urine Disease, MSUD, que é uma disfunção metabólica de três aminoácidos no organismo(Valina, Leucina e Isoleucina), os sintomas incluem odor de xarope na urina, retardo mental, e recusa alimentar, entre outro. Para mantê-lo vivo Arthur tem que fazer o uso de um medicamento, fornecido mediante decisão judicial, chamado MSUD Maxamaid produzido apenas na Europa e encontrado no Brasil por, na época, R$ 985,20 e cada lata deste medicamento durava por três dias, dando um gasto de aproximadamente R$ 120.000,00/ano para os cofres públicos do município de Fortaleza. A MSUD até pouco tempo antes era uma doença que não se tinha cura, porém foi-se descoberto que havia uma forma de Nagibe de Melo Jorge Neto, O Controle Jurisdicional das Políticas Públicas, 2008, p. 144. 88

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curar definitivamente as crianças portadoras da doença mediante transplante especial de fígado. No momento tal cirurgia era apenas feitas em Pittsburgh, Pensilvânia, USA; e de acordo com informações de médicos da área quanto mais cedo fosse feito o tratamento, maiores as chances de uma vida melhor para o paciente. Porém os custos do tratamento podem chegar a US$ 200.000,00 incluindo todas as despesas, mas esta era a única chance de Arthur poder crescer com uma vida normal e sem condições de pagar um advogado a família entra em contato com o Ministério Público Federal que entra com uma ação civil pública querendo obrigar a União, o Estado e o Município a investirem no tratamento para salvar a vida do menino e mais que isso proporcionar-lhe uma vida digna. A União recusou tal pedido alegando que seu papel no SUS seria apenas administrativo e de fiscalizar a utilização de verbas aplicadas na saúde, o Estado do Ceará alegou que tal pedido seria uma afronta à separação dos poderes e que cabe apenas ao Executivo e às regras aprovadas pelo Legislativo avaliar a forma usar os recursos públicos destinados à saúde e ainda que se fosse o caso haveria escassez de verbas posteriormente para demais tratamentos já programados pelo SUS, e por fim o Município de Fortaleza alegou que a cirurgia seria meramente experimental, portanto não valeria a pena, que o Estado já paga o medicamento para estabilizar os danos à saúde de Arthur e por isso já cumpre com sua obrigação e ainda que seria possível fazer o tratamento no Brasil então não se faria necessário leva-lo para o exterior. O Conselho Federal de Medicina se pronunciou e disse que o tratamento de transplante era a melhor opção para o caso com apenas os riscos normais de uma cirurgia, disse também que seria possível sim fazer o tratamento em solo nacional, mas que no final das contas daria no mesmo, pois seria necessário fazer a compra de equipamentos importados muito caros, enviar um cirurgião brasileiro da área para o exterior para aprender os procedimentos além do fato de ter que transportar o menino para Porto Alegre (RS), pois era o único local apropriado pra tal cirurgia. Nesse caso é necessário fazer um balanço das contas públicas, caso o judiciário resolver manter a ação civil pública imposta pelo MPF poderia haver, como argumentado pelo Estado do Ceará, falta de recursos para os demais tratamentos já programados pelo

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SUS, alega-se também lesão à ordem pública89 e à saúde pública90. Porém em julgamento, levou-se em conta os argumentos do MPF que se baseavam nos Princípios da Dignidade da Pessoa Humana, do direito à vida e do direito à saúde, e também foi-se constatado pelo juiz que não haveria lesão à ordem pública, pois mostrou-se evidente que a cirurgia no Brasil seria arriscada e de mais difícil realização, ressaltou o dever do poder público de assegurar a saúde de todos por força do art. 196 da CF e que colocar em risco a vida do menor que colocaria em risco a ordem pública por violação de cláusula pétrea. Constatou-se ainda que não haveria também lesão à saúde pública, pois a sugestão de realizar a cirurgia no Brasil, além de mais arriscada, teria gastos semelhantes ou até superiores aos do tratamento no exterior, de modo que não haveria, assim, prejuízo aos cofres públicos e que seria bem o contrario, que em médio prazo a conta se pagaria pela não mais necessidade de comprar os medicamentos para o menino. O juiz deu ganho de causa para o MPF91. Pois fazendo então o levantamento dos autos, e respeitando o principio da proporcionalidade, averiguou-se que no caso concreto não deveria haver “A lesão à ordem pública na vertente da ordem administrativa, se afigura com a indevida ingerência do Poder Judiciário no exercício das funções da Administração Pública, a quem compete, com exclusividade, a fixação e autorização dos tratamentos médicos a serem prestados por meio do Sistema Único de Saúde, segundo critérios médico-científicos e visando à consecução da política nacional de saúde.” Julgamento do STF, Ministro Nelsom Jobim, 21/09/2005, p. 08, Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDecisao.asp?numDj=186&dataPublicacao=27/09/2005&incidente=2301430&capitulo=6&codigoMateria=7&numeroMateria=142&texto=1789714. 90 “Também a saúde pública mostra-se atingida pela sentença. Por mais sensível que seja a situação vivenciada pelo paciente, sabe-se que, lamentavelmente, não se trata de um caso isolado, considerando-se as diversas mazelas que fatalmente acometem ou podem acometer a população. Contudo, a responsabilidade da UNIÃO, de acordo com a norma programática contida no artigo 196 da Constituição da República, conforme salientado alhures, não implica a distinção de recursos públicos a situações isoladas, e sim mediante políticas públicas que visem à sociedade indistintamente.” Julgamento do STF, Ministro Nelsom Jobim, 21/09/2005, p. 10, Disponível em: http://www.stf. jus.br/portal/diarioJustica/verDecisao.asp?numDj=186&dataPublicacao=27/09/2005&incidente=2301430&capitulo=6&codigoMateria=7&numeroMateria=142&texto=1789714. 91 “Ante o exposto, indefiro o pedido de suspensão.”, Julgamento do STF, Ministro Nelsom Jobim, 21/09/2005, p. 14, Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/diarioJustica/verDecisao.asp?numDj=186&dataPublicacao=27/09/2005&incidente=2301430&capitulo=6&codigoMateria=7&numeroMateria=142&texto=1789714. 89

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deferência ao pedido da União de eximir-se dos gastos da cirurgia de Arthur, pois não poderia haver a quebra do direito fundamental por ele intitulado. Fazendo assim uma decisão que respeitou a vontade da constituição. Além do mais, a clausula da reserva do possível, usada em diversas vezes pelo Estado com o intuito de se eximir do cumprimento de prestação geralmente relacionada com direitos sociais, não pode ser invocada pelo governo quando dessa exoneração resultar a perda ou a não concessão de Direito Fundamental, garantido pela constituição. Esse já era o entendimento do STF desde 2004 quando o Ministro Celso de Mello expõe no seu voto, como relator da ADPF nº 45 o seguinte: Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.92

Conclusão Quando se fala de Ativismo Judicial, brotam-se demasiadas críticas, tais críticas, como demonstrado, não se baseiam em fatos irrelevantes, nem se pode dizer que suas preocupações não são legítimas, pois, o ativismo judicial, se não usado de forma correta, pode trazer muitos riscos para as instituições nacionais e para a própria democracia. É preciso sempre lembrar que não se quer criar um sistema de hegemonia do poder Judiciário, tão poucos se quer deslegitimar o processo de representatividade. O Ativismo é uma forma de tentar extrair o máximo possível de eficácia de um princípio ou de uma norma constitucional através de uma leitura mais abrangente de seu texto, tendo como base o Princípio da Maximização ou efetividade e Abertura e inexauribilidade constitucional. Ele se instala em situações onde uma decisão do poder público não esteja andando de acordo com a realidade Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, Ministro Celso de Mello, 29/04/2004, Disponível em: http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/343_204%20ADPF%202045.pdf. 92

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social da população, de uma violação dos Direitos Fundamentais ou até mesmo por um simples recuo voluntário do Legislativo ou Executivo a fim de pouparem sua imagem. Os magistrados gozam de diversas garantias institucionais com o intuito de garantir o máximo possível sua imparcialidade, juízes não precisam ser eleitos nem reeleitos, juízes não precisam do apoio da maioria, juízes tem o privilégio de poder tomar decisões contramajoritárias, porém suas decisões somente serão legítimas se estiverem indo com o intuído de proteger o processo democrático e a própria democracia ou Direitos Fundamentais postos em risco. Vimos que o Judiciário é um poder de Direito guiado principalmente na vontade constitucional, a qual é ele o guardião e, portanto detém o poder de dar a palavra final em questões constitucionais, já o Legislativo e o Executivo são poderes políticos, guiados pela vontade da maioria e pelos princípios democráticos. Democracia e Constitucionalismo, vontade da maioria e Direito, são propensos a se colidirem em deveras ocasiões e um mau balanço da situação pode trazer drásticos resultados, pois se pendermos sempre pela democracia cria-se um sistema que propicia uma ditadura majoritária sobre a minoritária, mas se os princípios democráticos forem limitados demais perante as regras e princípios constitucionais frustra-se a vontade popular, a autonomia política e deixa a sociedade atual completamente refém das ideias e do modo de vida da sociedade da época em que a Constituição Federal de 1988 foi escrita. Portanto, para uma democracia saudável e bem executada é necessário que se faça um balanço de ambos as fontes que guiam a Democracia e o Constitucionalismo, vale dizer: ambos são princípios que fazem parte do universo político, social e do sistema jurídico do Brasil, tendo previsão expressa na Constituição e possuem o mesmo valor hierárquico. Talvez a grande vantagem do ativismo seja fazer esse equilíbrio entre a vontade da maioria e a vontade da constituição, como visto nos tópicos referentes à competência institucional do judiciário as práticas ativistas devem ser utilizadas com muita cautela, não significa, pois que não as devam usar, quer dizer que elas não devem ser usadas por puro capricho do juiz ou tanto por opiniões ou ideologias internas do magistrado. De modo geral as decisões do poder judiciário devem estar acompanhadas da vontade popular, pois apesar de ser um poder de Direito e não Político, sempre

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será um poder do povo e, portanto deve satisfação para com a população. As situações onde o ativismo se enquadra bem requisitado são principalmente aquelas onde há algum Direito Fundamental em risco, quando há uma omissão ou descuido por parte do Poder Público, quando uma medida não se enquadra no princípio da proporcionalidade, ou até mesmo quando por prudência pessoal os poderes Executivos ou Legislativos recuam de suas obrigações propositadamente já esperando uma atitude dos Tribunais Superiores, deixando assim voluntariamente a matéria nos cuidados do Judiciário. Uma prática ativista bem usada tem muito mais a acrescentar que a prejudicar ao princípio democrático, quando houver uma prática oriunda dos poderes públicos que atinja um Direito Fundamental de forma arbitraria e não proporcional, ou seja, por atitudes positivas como decretos de lei ou de forma negativa como deixar de criar uma medida normativa o judiciário como guardião da vontade constitucional deve agir para defender os interesses da constituição. Afinal de contas, se eu e mais dois companheiros estamos em alto-mar guiando um bote e é atribuída uma tarefa específica a cada um, de acordo com aquele que melhor se caracteriza para efetuá-la com eficiência, e em um dado momento eu avisto um de meus colegas deixando de praticar sua tarefa - e aqui não se faz diferente se por vontade própria ou por outro motivo qualquer - devo eu assumir seu posto concomitantemente com o meu até que ele volte ao seu exercício correto, ou me manter em inércia em relação a isso e continuar exercendo meu ofício, pelo fato dessa atitude ir contra a distribuição previamente feita, deixando que assim o bote afundasse? Vale dizer: o Ativismo Judicial é um excelente remédio para curar possíveis deficiências que um Estado Democrático é passível de apresentar, principalmente quando se leva a vontade majoritária ao nível de oprimir minorias. O ativismo, então, tem o dever de proteger a Constituição e principalmente os Direitos Fundamentais, previstos em seu texto. Mas como todo bom remédio deve ser usado com cautela para não piorar o problema, sua bula manda ser ele utilizado em situações excepcionalíssimas e sempre pautado pela regra da proporcionalidade. Estados hipocondríacos também são doentes!

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A FIGURA DO “AMICUS CURIAE” COMO UM INSTRUMENTO DE PARTICIPAÇÃO DE MINORIAS NA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL BRASILEIRA Alexandre Melo Franco Bahia1 Amanda Melillo de Matos2

Introdução Este trabalho visa apresentar propostas institucionais para a discussão de questões que envolvam direitos de minorias a partir da concepção deliberativa de democracia defendida por Roberto Gargarella3, e realizar críticas com base na pesquisa empírica feita a partir da coleta de dados em ações julgadas em controle abstrato de norma que envolveram direitos de grupos minoritários. A coleta de dados realizada se deu com o objetivo de se comparar, numericamente, a participação de representantes de grupos minoritários com a de majoritários no instituto “amici curiae” e em Audiências Públicas. Os referidos dados foram obtidos, em cada uma das ações analisadas, a partir da contagem daqueles órgãos e entidades que ingressaram como “amicus curiae” e que participaram em Audiências Públicas. Posteriormente, então, eles foram classificados de acordo com o grupo social que representam ou com os interesses Mestre e Doutor em Direito Constitucional (UFMG). Professor Adjunto na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e no Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC-BH) – Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto. Pesquisadora do programa institucional de iniciação científica voluntária sob orientação do Professor Doutor Alexandre Melo Franco Bahia – Brasil. E-mail:amandamelma@gmail. com 3 Ver Roberto Gargarella, “La Justicia Frente al Gobierno: Sobre el carácter contramayoritario del poder judicial,” Corte Constitucional del Ecuador para el Período de Transición (2012): 297. Roberto Gargarella “El Nuevo Constitucionalismo Dialógico Frente al Sistema de Frenos y Contrapesos,” Revista Argentina de Teoria Jurídica (2013): 32. Acessado em 15 de Dezembro de 2015. http://www.derecho. uba.ar/academica/posgrados/2014-roberto-gargarella.pdf 1

https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V01_A12

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que defendem em “Representantes da Minoria”, “Representantes da Maioria (Fundamentalistas)” e “Outros”. Em relação a estes últimos, correspondem a órgãos e entidades que não representam diretamente nenhum desses dois grupos. A partir destes dados, então, foram feitas análises críticas sobre como tem se dado a relação entre democracia deliberativa e participação de grupos minoritários nestes institutos de participação popular, nas ações analisadas, e foram apontadas as deficiências democráticas que estes apresentam.

1. Amicus curiae e audiências públicas As Audiências Públicas e o “amicus curiae” representam no Direito brasileiro espaços de participação pública nos quais diversos grupos sociais podem influenciar direta ou indiretamente na definição de direitos perante a jurisdição constitucional e através do qual estes podem se expressar nos processos de tomada de decisão que lhes envolvam.

1.1 Amicus curiaes Apesar de só o art. 23, § 1º, da Resolução n. 390/2004 do Conselho de Justiça Federal fazer referência expressa ao amicus curiae, na Lei n. 9.868/1999, que regula o procedimento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade há previsão ampla o suficiente para albergar a atuação do amicus curiae no direito brasileiro4, já que ela prevê que o Relator poderá requisitar informações dos órgãos dos quais adveio a lei (art. 6º), que o Relator, “em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos”, poderá solicitar “informações adicionais”, pareceres, “depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria” e “informações dos Tribunais Superiores, Federais e Estaduais” sobre como têm eles aplicado a norma impugnada (art. 9º, §§1º, 2º e 3º); e ainda que o Relator poderá também receber inforCassio Bueno, “QUATRO PERGUNTAS E QUATRO RESPOSTAS SOBRE O AMICUS CURIAE, Revista Nacional da Magistratura” Ano II, n. 5. Brasília: Escola Nacional da Magistratura/Associação dos Magistrados Brasileiros, maio de 2008, páginas 132-138.

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mações de outros órgãos ou entidades, caso considere conveniente em vista da “relevância da matéria e a representatividade dos postulantes” (art. 7°, §2º)5. As primeiras manifestações de terceiros com funções semelhantes ao do Amicus Curiae se deram, no Brasil, através da CVM (Comissão de Valores Mobiliários) que oferecia pareceres ou prestava esclarecimentos em processos individuais, dada sua função fiscalizadora no mercado de valores mobiliários. Posteriormente, o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), com a Lei 8.884/94, passou a intervir em processos sem a necessidade de demonstrar o seu interesse específico6. Excluindo-se as hipóteses acima, uma das primeiras admissões do amicus curiae, antes mesma da legislação em vigor, se deu no voto do então Ministro Celso de Melo no AgRg da ADI 748, que admitiu memorial de um terceiro como um colaborador informal7. Entretanto, o instituto ganhou maior importância no Ordenamento Jurídico com as Leis 9.868/1999 e 9.882/1999, que procuraram regulamentar as ações de controle concentrado no STF – ADIn, ADInO, ADC e ADPF8.

1.2. Audiências públicas As audiências públicas no Poder Judiciário foram previstas, inicialmente, pelas Leis 9.868/99 e 9.882/99, que disciplinam processo e julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade, ações declaratórias de constitucionalidade e arguições de descumprimento de preceito fundamental.9 Alexandre Bahia “Repercussão geral em recurso extraordinário e papel do “amicus curiae””. Revistas de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (2013): 169-177. 6 Clederson Cruz, “Participação do amicus curiae: uma análise sob a ótica da processualidade democrática,” http://ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12513&revista_caderno=21> . Acesso em 11 de março 2015. 7 Idem 8 Alexandre Bahia “Repercussão geral em recurso extraordinário e papel do “amicus curiae””. Revistas de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (2013): 169-177. 9 “Audiências Públicas – Informações,” Supremo Tribunal Federal, acesso em 15 de Dezembro de 2015. http://www.stf.jus.br/portal/audienciaPublica/audienciaPublicaPrincipal.asp 5

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No âmbito do Supremo Tribunal Federal, as audiências públicas foram regulamentadas pela Emenda Regimental 29/2009, que atribuiu competência ao Presidente ou ao Relator, nos termos dos arts. 13, XVII, e 21, XVII, do Regimento Interno, para “convocar audiência pública para ouvir o depoimento de pessoas com experiência e autoridade em determinada matéria, sempre que entender necessário o esclarecimento de questões ou circunstâncias de fato, com repercussão geral e de interesse público relevante” debatidas no Tribunal. O procedimento a ser observado consta do art. 154, parágrafo único, do Regimento Interno.10 A primeira audiência pública realizada pelo Tribunal foi convocada pelo Min. Ayres Britto, Relator da ADI 3510, que impugnava dispositivos da Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005), e ocorreu no dia 20 de abril de 2007.11 Estes institutos correspondem, então, a intermediadores entre a sociedade e o Judiciário, o que é de suma importância para a efetivação de jurisdição constitucional democrática e para que nenhuma decisão seja tomada com a exclusão de algum plano de vida individual ou de forma parcial, sem considerar as preferências de todos os envolvidos. Com isto, pode-se afirmar que a importância deles se dá por idealmente promoverem a democracia discursiva de Jürgen Habermas12 e a sociedade aberta de intérpretes de Peter Härberle.13

2 Democracia deliberativa e participação de grupos minoritários Em uma sociedade cada vez mais heterogênea e complexa em que diferentes grupos possuem diversas e inúmeras demandas, deve-se ter instituições que arquem com o ônus democrático, isto é, que não anulem nenhum projeto de vida e nem progridam em direção contrária à de tais demandas. Neste contexto, a concepção deliberativa da democracia defendida por Roberto Gargarella se faz necessária para que, a partir de discussões públicas, decisões sejam Idem Idem 12 Jurgën Habermas, “Direito e democracia: entre facticidade e validade,” v.II. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. 13 Peter Härbele, “Hermenêutica Constitucional – a Sociedade Aberta deIntérpretes da Constituição: Constituição para e Procedimental da Constituição”, Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1997. 10 11

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construídas imparcialmente, ou seja, que não se estabeleçam de forma tendenciosa em benefício de alguma pessoa ou grupo, mas sim que tratem a todos com igual consideração14. Em defesa da discussão pública, apresentando suas virtudes, Gargarella afirma que (i) na deliberação apresentamos nossas convicções a outros que passam a atuar como um filtro externo a respeito do que dizemos. Eles poderiam nos ajudar a refletir mostrando que nossos juízos têm consequências que não estaríamos dispostos a defender, ou que se contradizem com outros juízos que nós mesmos aceitamos, ou que implicam em contradições lógicas, etc; (ii) A deliberação facilita o enriquecimento de nossos juízos provendo-nos de informações e ajudando-nos a ampliar o panorama de nossas possibilidades; (iii) A discussão também pode nos ajudar a eliminar prejuízos, ou mal entendidos, ou erros de interpretação capazes de afetar o valor de nossas decisões; (iv) A discussão pode forçar cada pessoa a tornar seus argumentos aceitáveis ante os demais, motivando os indivíduos a deixarem de lado argumentos baseados em seus próprios interesses; (vi) Mediante a discussão as pessoas trocam argumentos, escutam razões de outros, modificam alguns de seus pontos de vista, e, deste modo, encontram uma oportunidade para se educarem, melhorando sua habilidade para racionalizar e sua capacidade para viver em comunidade com outras pessoas15. Questionando se seria aceitável que a maioria forçasse a minoria a adotar uma concepção particular do modo como se deve viver, Gargarella defende que uma das principais razões para valorar a democracia é a de que esta contribua para que as decisões políticas tomem devidamente em conta os interesses de cada um16. Segundo o autor: La democracia es vista, así, como una forma de extender al ámbito de la comunidad el ideal de autogobierno que tendemos a defender a nivel individual. Así como, en principio, parece deseable que cada persona determine por sí misma cuál es el plan de vida que prefiere desarrollar, también, en principio, parece deseable que cada comunidad se autodetermine, y tome sus decisiones colectivas, solo después de haber Gargarella, La justicia frente al gobierno, 177-178 Gargarella, La justicia frente al gobierno, 178-181 16 Gargarella, La justicia frente al gobierno, 184 14 15

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consultado a cada una de sus partes integrantes.17

O autor segue, então, propondo uma distinção que se torna fundamental para se pensar em uma solução para a problemática: moral privada x moral pública.18 A moral privada seria aquela sobre a qual autoridades políticas e juízes não devem ter poder de interferência, podendo estes últimos ter a tarefa de manter a integridade da autonomia dos indivíduos, mas não de decidir sobre um plano de vida individual. Isto porque, nestas questões privadas, o único soberano seria o diretamente envolvido nelas, correspondendo, então, a uma questão de como cada pessoa prefere viver sua própria vida.19 A moral pública, por sua vez, diria respeito à coletividade, sendo valioso que todos os agente envolvidos em uma questão que lhe diga respeito estabeleçam como resolvê-la . Se não se escutar a todos os envolvidos, a imparcialidade da decisão estaria comprometida, já que se tomaria uma decisão acreditando que se estaria devidamente levando em conta as preferências de um certo grupo, quando, na verdade, se está mal interpretando as preferências que estão em jogo.20 Assim, para se diferenciar as duas, pode-se confrontar o dano que se produz a terceiros a partir de uma ação privada e a importância desta para o plano de vida escolhido pelo agente. Gargarella utiliza como um exemplo a isto, o modo de vida homossexual, que corresponde a uma ação privada que pode influenciar, de algum modo, na vida dos demais – pois alguém pode alegar que isto afeta sua religião. Neste caso, então, o dano a terceiros seria insignificante em relação à importância desta ação para o plano de vida escolhido pelo indivíduo em questão.21 Contrapondo algumas das afirmações dos padres fundadores do constitucionalismo norte-americano sobre a situação de grupos minoritários no controle de constitucionalidade, Gargarella afirma que falar de grupos internamente homogêneos como faziam (maioria e minoria) não parece mais ser razoável, pois não basta mais conhecer o interesse de um indivíduo de uma dado grupo Gargarella, La justicia frente al gobierno, 185 Gargarella, La justicia frente al gobierno, 186 19 Gargarella, La justicia frente al gobierno, 187-190 20 Gargarella, La justicia frente al gobierno, 186-187 21 Gargarella, La justicia frente al gobierno, 188 17 18

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pode conhecer o deste. Assim, a noção de minorias hoje seria muito mais ampla e variável do que a que se considerou apropriada durante os debates constitucionais norteamericanos. Considerando, então, a pluralidade de interesses, mais ou menos opostos, existentes no interior de grupos minoritários o autor afirma que ter em uma Corte Constitucional um juiz de algum destes grupos não garantiria a defesa de seus interesses, dada essa heterogeneidade. Como uma solução alternativa para a garantia dos interesses destes grupos, Gargarella propõe a existência, na Corte Constitucional, de um corpo orientado para a proteção de minorias que requeira ou receba informações de diversas entidades ou pessoas representantes das mesmas: Por ejemplo, y como un simple ejercicio de imaginación, podría pensarse en la siguiente posibilidad: al presentarse un caso en el que se encuentren implicados derechos de las minorías, la justicia podría (por propia iniciativa, o a petición de los interesados) trasladar el estudio de la mencionada situación a un cuerpo especialmente orientado a la protección de los derechos de las minorías. Dicho cuerpo podría requerir y recibir informes de diversas entidades o personas representativas del grupo en cuestión, y elevar a la justicia su dictamen al respecto (de hecho, de un modo más informal, existen ya algunas prácticas orientadas, al menos, en la misma dirección, como la de los amicus curiae en Estados Unidos, práctica a la que hice referencia más atrás).22

Como destacado acima, Gargarella cita o “amicus curiae” como uma prática orientada na mesma direção deste corpo que propôs anteriormente, qual seja a de levar opiniões de grupos minoritários à Corte. O autor também cita o “amicus curiae” quando trata de soluções intermediárias para o problema de controle de leis como um método muito benéfico de respaldo a uma certa causa e como um meio de participação de grupos de pressão capacitados para atuar em favor dos mais necessitados.23

3 Participação de grupos minoritários no controle abstrato de normas brasileiro 22 23

Gargarella, La justicia frente al gobierno, Grifo nosso. Gargarella, La justicia frente al gobierno

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Desde a primeira participação de “amicus curiae” e da realização de Audiências Públicas em controle abstrato de norma, diferentes grupos sociais têm levado ao STF argumentos constituídos de opiniões, pareceres e diversas concepções morais e jurídicas sobre a procedência ou não de uma ação e sobre o tema que a envolve. A importância supracitada de tais institutos é imprescindível para que se inicie a construção de um modelo deliberativo democrático nas instituições de tomada de decisão e para que a palavra final se afaste do poder discricionário de uma Corte que, pela ausência de representes eleitos pelo povo, pode incorrer em decisões elitistas. No que tange aos grupos minoritários, é fundamental que a participação deles se dê com a devida representação para que a imparcialidade da decisão não fique comprometida, para projetos de vida de uma dada coletividade de indivíduos não sejam desconsiderados24 e para que uma decisão que lhes afetará diretamente não seja tomada de forma indevida e contraditória. A pesquisa empírica desenvolvida se deu com base em ações impetradas em controle concentrado de norma que contaram com a realização de audiências públicas e/ou com a participação de “amicus curiae” e envolveram interesses de grupos minoritários. O levantamento de dados feito se deu em relação ao número de participantes nestes dois institutos que correspondiam a representantes do grupo minoritário afetado, da maioria que se utiliza de argumentos fundamentalistas para impor seu projeto de vida aos demais e dos demais (“outros”) que fornecem parecer técnico, representam instituições públicas ou órgãos e entidades que não representam diretamente os outros grupos citados anteriormente. A coleta de dados da tabela abaixo foi realizada a partir do acompanhamento processual tanto de ações já julgadas pelo STF, quanto daquelas que ainda não foram julgadas. Estas ações são: ADPF e Re 597.285 (Cotas) – Julgamento Final em 26/04/2011; ADPF 54 (Interrupção de Gestação de Feto Anencefálico) – Julgamento Final em 12/04/2012; ADPF 132 e ADI 4277 (União Homoafetiva) – Julgamento Final em 05/05/2011; ADI 4439 (Ensino Religioso em Escolas Públicas); ADO 26 (Criminalização da Homofobia):

3.1 Tabela 1. Participação de grupos sociais Audiências Públicas perante ações de controle concentrado de norma. 24

Gargarella, La justicia frente al gobierno, 186-187

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A partir destes dados, pode-se observar que somente na ADPF 186 houve participação superior dos grupos minoritários afetados em relação aos majoritários (fundamentalistas). Analisando-se especificamente a ADPF 186, identificamos ampla participação de diversos órgãos e entidades representantes

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dos interesses das minorias afetadas, sendo estes: Fundação Nacional do Índio (FUNAI); Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (EDUCAFRO); Sociedade Afro-Brasileira de Desenvolvimento Sócio Cultural (AFROBRAS); Secretaria Especial de Políticas de Promoção de Igualdade Racial (SEPPIR); Fundação Cultural Palmares; Coordenação Nacional de Entidades Negras (CONEN); Geledés Instituto da Mulher Negra de São Paulo; Movimento Negro Socialista; Associação Nacional dos Advogados Afrodescendentes (ANAAD); Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo; Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro (MPMB) e Associação dos Caboclos e Ribeirinhos da Amazônia (ACRA); Movimento Negro Unificado (MNU); Instituto de Advocacia Racial e Ambiental. Esta diversidade presente demonstra a heterogeneidade existente no interior de uma determinada minoria – como a população negra. Isto é, mesmo que uma ação envolva diretamente uma minoria específica, em seu interior há outros grupos minoritários com interesses, concepções e anseios diversos e que, então, necessitam participar da deliberação com a devida representatividade para que a imparcialidade da decisão não seja comprometida.25 Nesta ação, então, pode-se afirmar que a imparcialidade da decisão foi garantida no que tange à devida participação dos afetados para levar suas opiniões, concepções e preferências à Corte. No que diz respeito à efetiva consideração das preferências dos envolvidos, isto é, se de fato eles contribuíram para que se estabelecesse uma solução para a questão lhes envolveu, deve-se analisar os votos dos Ministros do STF. O pesquisador Miguel Godoy26 constatou que, neste caso, apenas um ministro fez referência expressa aos argumentos apresentados e que oito utilizaram argumentos iguais aos apresentados, mas sem referências a eles: A análise da comparação feita no caso das Cotas (ADPF 186) mostra que [...]o ministro relator não fez referência expressa às razões e aos argumentos apresentados em audiência pública e nem pelos amici curiae. [...] Apenas dois ministros Gargarella, La justicia frente al gobierno, 186-187 Miguel Godoy, “AS AUDIÊNCIAS PÚBLICAS E OS AMICI CURIAE INFLUENCIAM AS DECISÕES DOS MINISTROS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL? E POR QUE ISSO DEVE(RIA) IMPORTAR?,” Revista da Faculdade de Direito UFPR (2015): 137-159, acesso em 19/12/2015, DOI 10.5380/rfdufpr.v60i3.42513. 25 26

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fizeram referência expressa às razões e aos argumentos apresentados em audiência pública, mas apenas um deles fez referência expressa às razões e aos argumentos apresentados pelos amici curiae. Ou seja, apenas um ministro fez referência expressa às razões e aos argumentos apresentados pelos amici curiae. No entanto, dos dez ministros que julgaram o feito, oito valeram-se de razões e argumentos iguais ou semelhantes àqueles apresentados na audiência pública e pelos amici curiae, ainda que sem referência expressa a eles [...]27

Com isto, pode-se concluir que houve uma deficiência na efetiva consideração das preferências das minorias envolvidas, na decisão final, quando se estabeleceu, de fato, a solução para a questão lhes envolvia. A consideração dos argumentos e razões deveria se dar de forma expressa para que se estabelecesse um real diálogo e deveria ser feita por todos os ministros e, principalmente, pelo relator. Na ADPF 54, por sua vez, houve uma participação de representantes da maioria superior ao dobro da de representantes da minoria. Esta disparidade se deu em um julgamento que envolvia questões de gênero e direitos de uma minoria específica (mulheres). Os órgãos representantes dela foram a Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, o Conselho Nacional de Direitos da Mulher e o Conselho Federal de Direitos da Mulher. Neste caso, então, pode-se afirmar que a imparcialidade da decisão foi comprometida pela ausência de participação de todos os envolvidos e por uma inferioridade da representatividade das minorias afetadas, na discussão. Além disso, a decisão de abortar (tanto no caso de fetos anencefálicos, quanto nos demais) pode ser considerada como relativa à autonomia individual, como uma escolha inerente ao indivíduo que não causará danos significativos a terceiros, a uma coletividade. Neste caso, caberia ao STF proteger a autonomia do indivíduo e não interferir na mesma. De acordo com Miguel Godoy28, neste caso, dentre os 10 ministros que participaram do julgamento, todos se valeram, de forma expressa ou tácita, dos argumentos 27 28

Godoy, Audiências Públicas e os Amici Curiae, 149 Godoy, Audiências Públicas e os Amici Curiae, 147

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apresentados nas Audiências Públicas: [...] nove fizeram referências expressas às razões e aos argumentos apresentados em audiência pública [...] o único ministro que não fez referência expressa às razões e argumentos apresentados em audiência pública, no entanto, valeu-se delas, ainda que de forma tácita [...]

Isso demonstra que os argumentos fundamentalistas expostos pelos grupos majoritários foram utilizados em uma questão sobre autonomia privada, o que demonstra que a distinção entre moral pública e privada não tem sido elevada a este âmbito e também que as audiências não têm sido um efetivo instrumento de defesa de interesses e direitos de minorias. A terceira audiência analisada é a que se deu no caso do Ensino Religioso em Escolas Públicas. Nesta, a imparcialidade da decisão também ficou prejudicada e a discussão pública se deu de forma indevida. Isto porque houve ampla participação do grupo religioso majoritário (cristão) e os demais grupos de diversas matrizes religiosas, cada qual, contou com apenas um representante. Na tabela abaixo, a coleta de dados se deu em relação à participação de grupos sociais como “amicus curiae”:

3.2 Tabela 2. Participação de grupos sociais como “amicus curiae” em ações de controle concentrado de norma.

A partir destes dados, pode-se observar que das ações analisadas: Duas tiveram uma participação superior de representantes

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da minoria afetada (ADPF 186 e ADO 26); Uma contou com participação igual entre minoria e a maioria (ADPF 132); Uma contou com participação inferior das minorias (ADI 4.439). Na ADPF 186, assim como nas Audiências Públicas, diversos representantes das minorias afetadas ingressaram como “amicus curiae”, havendo a devida representação de diversos grupos minoritários. Na ADPF 132 também houve ampla participação de diversas entidades que representam e defendem direitos das minorias afetadas, sendo elas: Grupo Arco-Iris de Conscientização Homossexual; Associação Brasileira de Gays Lésbicas Bissexuais Travestis e Transexuais – ABGLT; Centro de Luta pela Livre Orientação; Centro de Referência de Gays Lésbicas Bissexuais Travestis Transexuais e Transgêneros do Estado de Minas Gerais - Centro de Referência GLBTTT; Sexual-CELLOS e Associação de Travestis e Transexuais de Minas Gerais-ASSTRAV. Na ADO 26, na qual ainda não ocorreu julgamento, há uma ampla e superior participação de entidades que representam os grupos minoritários envolvidos. São elas: Associação Brasileira de Gays Lésbicas Bissexuais Travestis e Transexuais – ABGLT; Grupo Gay da Bahia; Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual – GADVS; Grupo Dignidade – Pela Cidadania de Gays, Lésbicas e Transgêneros. Na ADI 4.439, entretanto, os grupos minoritários religiosos não tiveram a devida participação, pois cada um contou com um representante, enquanto a religião católica contou com cinco. Então, neste caso, enquanto ateus e agnósticos representados pela Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos tiveram 15 minutos para expor suas preferências, de acordo do Regimento Interno do STF, católicos tiveram 1hra e 15 minutos. Esta disparidade prejudica a imparcialidade da decisão, a discussão pública e, principalmente, afasta do “amicus curiae” a proteção a grupos minoritários.

Conclusão A partir da análise destas ações e dos resultados obtidos pode-se afirmar que no instituto “amicus curiae” tem ocorrido maior participação de grupos minoritários do que nas Audiências Públicas, nas questões que lhes envolvem. Além disso, a presença supe-

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rior de representantes de grupos majoritários fundamentalistas foi maior, dentre os casos analisados, em Audiências do que em “amici”. Uma observação importante diante da pesquisa empírica realizada é a da existência de ampla participação de entidades religiosas cristãs em “amicus curiae” e Audiências Públicas em 4 das 5 ações analisadas. Não se pretende defender, com isso, a ausência de participação de grupos cristãos, pois ela também deve se dar em uma sociedade aberta de intérpretes29, desde que a decisão não envolva questões de moral privada. O que se questiona é a ampla participação de tais grupos frente ao Princípio da Laicidade, consagrado no art. 19, inciso I da CR/88, dado que muitas vezes são convocados pelo próprio relator, como constado em análise feita nesta pesquisa. Destarte, a existência de um instituto através do qual diversos órgãos e entidades que representem grupos minoritários possam participar para levar suas opiniões, concepções e preferências à Corte em questões que envolvam direitos de minorias, se aproxima do “amicus curiae”. Entretanto, para uma correspondência efetiva, a partir da atual realidade deste instituto e da concepção deliberativa de democracia, seria necessária uma reformulação institucional não só dele, mas do próprio modelo atual de tomada de decisões do STF.

Referências Bahia, Alexandre. “Repercussão geral em recurso extraordinário e papel do “amicus curiae””. Revistas de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (2013): 169-177. Bueno, Cassio “QUATRO PERGUNTAS E QUATRO RESPOSTAS SOBRE O AMICUS CURIAE, Revista Nacional da Magistratura” Ano II, n. 5. Brasília: Escola Nacional da Magistratura/Associação dos Magistrados Brasileiros, (2008): 132-138. Cruz, Clederson “Participação do amicus curiae: uma análise sob a ótica da processualidade democrática,” Âmbito Jurídico (2012), http://ambito-juridico. com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12513&revista_caderno=21>. Acesso em 11 de março 2015. 29

Härbele, “Hermenêutica Constitucional.”

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Gargarella, Roberto “El Nuevo Constitucionalismo Dialógico Frente al Sistema de Frenos y Contrapesos,” Revista Argentina de Teoria Jurídica (2013): 32. Acessado em 15 de Dezembro de 2015. http://www.derecho.uba.ar/academica/posgrados/2014-roberto-gargarella.pdf Gargarella, Roberto. La Justicia Frente al Gobierno: Sobre el carácter contramayoritario del poder judicial, Corte Constitucional del Ecuador para el Período de Transición (2012): 297 Godoy, Miguel “AS AUDIÊNCIAS PÚBLICAS E OS AMICI CURIAE INFLUENCIAM AS DECISÕES DOS MINISTROS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL? E POR QUE ISSO DEVE(RIA) IMPORTAR?,” Revista da Faculdade de Direito UFPR (2015): 137-159, acesso em 19/12/2015, DOI 10.5380/rfdufpr.v60i3.42513. Habermas, Jurgën. Direito e democracia: entre facticidade e validade, v.II. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro (1997). Härbele, Peter, Hermenêutica Constitucional – a Sociedade Aberta deIntérpretes da Constituição: Constituição para e Procedimental da Constituição, Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor (1997): 55.

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A AUDIÊNCIA PÚBLICA NA ADPF 186 E SUAS REPERCUSSÕES Amanda Lima Sousa1 Priscila da Silva Barros2 É perceptível, nos últimos anos, uma possível expansão da atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) quando provocado a decidir questões que, a priori, deveriam ser objeto de debate e deliberação por parte dos políticos. Percebe-se a ocorrência de situações em que as Casas de representação popular tradicionais, diante de uma polêmica de cunho nacional, abstêm-se de enfrentar o ônus de um posicionamento. Logo, como corolário desse quadro, ter-se-ia o surgimento do fenômeno da Judicialização da Política, que poderia ser definido como a resolução de questões morais, políticas e sociais pelo Poder Judiciário. Todavia, os tribunais, que não possuem a legitimidade política atribuída aos representantes eleitos por voto, precisam de meios pelos quais possam legitimar suas decisões junto à sociedade. Destarte, é com essa finalidade que surgem os institutos do amicus curiae e das audiências públicas que, apesar das diferenças, em regra, permitem a manifestação de setores importantes da sociedade antes do julgamento ser realizado, aproximando o Judiciário da sociedade. No que tange ao objeto deste trabalho, audiência pública, tem-se que o instituto foi consagrado pela Lei 9.868/99, nos artigos 9º, § 2º; e 20, §1º. Ademais, também está presente nos artigos 154 e 155 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF) e no artigo 6º, §1º, da Lei nº 9.882/99. A despeito de estar em vigor desde 1999, a audiência pública foi utilizada pela primeira vez apenas em 2006, a pedido do ministro-relator Carlos Ayres Britto, dada a complexidade do tema e a controvérsia de opiniões que se apresentava na Ação Direta de Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) – Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) – Brasil. E-mail: [email protected]. 1

https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V01_A13

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Inconstitucionalidade (ADI) 3510 sobre a Lei de Biossegurança. Observa-se que, até o final de 2014 foram realizadas 17 audiências públicas, sendo sete delas realizadas no ano de 2013, abordando temas que envolvem diversas questões, como a saúde, os direitos autorais, o uso de substâncias tóxicas, políticas de reserva de vagas, dentre outras. Em virtude da frequência com que as audiências públicas têm sido convocadas pelos Ministros do STF, é necessário apurar sua efetividade no cumprimento da atribuição que lhe foi designada. Para tanto, foi selecionado um caso de notável repercussão nacional, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 186 (ADPF 186), relativa à política de cotas nas Universidades Brasileiras. Em razão do conteúdo polêmico, indubitavelmente divisor de opiniões na sociedade brasileira, tem-se, na ADPF 186, um ambiente propício à análise da incidência do instituto e suas implicações práticas. A proposta deste trabalho versa sobre a utilização da audiência pública como possível ferramenta auxiliar na fundamentação dos votos dos Ministros do STF. Através do inteiro teor do acórdão e das notas taquigráficas referentes à audiência pública da ADPF 186, procurar-se-á identificar no discurso dos expositores os argumentos favoráveis e contrários de maior relevância e, posteriormente, o efetivo aproveitamento da contribuição do conhecimento técnico e específico no espectro da decisão judicial. Convém ressaltar preliminarmente a postura otimista dos expositores que consideraram o instituto como meio pelo qual se promoveria o diálogo da sociedade com a Suprema Corte. Todavia, várias críticas podem ser tecidas à sua condução na ADPF 186, a saber, o fato de a audiência pública ter sido apreciada na data de sua ocorrência somente por alguns ministros - o relator Ricardo Lewandowiski, o então ministro Joaquim Barbosa e a ministra Carmem Lúcia. Outro ponto questionado é o lapso de tempo de dois anos entre a audiência e o julgamento. Contudo, é perceptível, apesar destes empecilhos, que há conexão entre os argumentos utilizados nos votos da maior parte dos ministros com aqueles que foram levantados nas audiências públicas como os mais relevantes. Muitos dos ministros, inclusive, utilizaram textos de obras de alguns dos expositores como fundamentação teórica de seus votos. O tema ora apresentado mostra sua relevância e atualida-

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de tendo em vista o fato de a audiência pública paulatinamente se consagrar como forma de ampliação do diálogo social com a Suprema Corte, que impreterivelmente tem tomado decisões importantes que alcançam toda sociedade. Em face dos dados apresentados, tem-se que, a audiência pública é um meio de diálogo social, afinal, especialistas e parcelas da sociedade contribuem para que um mesmo ponto de controvérsia constitucional possa ser observado sobre o prisma de diferentes conhecimentos, permitindo que futuras decisões sejam investidas de alguma legitimação democrática. Todavia, seu formato deve ser aprimorado, potencializado, para que alcance seu escopo social-dialógico almejado.

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AUDIÊNCIAS PÚBLICAS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: DISCURSO DEMOCRÁTICO E PRÁTICA TECNOCRÁTICA Mário Cesar da Silva Andrade1 Introdução A jurisdição constitucional brasileira tem se valido, recorrentemente, da realização de audiências públicas no processo decisório de questões consideradas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como cultural e/ou cientificamente controversas. Ainda que já existentes em outros contextos institucionais, as audiências públicas foram introduzidas no controle de constitucionalidade brasileiro pelas Leis nº 9.868 (BRASIL, 1999a) e nº 9.882 (BRASIL, 1999b), sendo listadas entre os instrumentos de informação disponibilizados ao STF na busca por subsídios para a melhor avaliação e decisão de controversas postas sob seu juízo. Em princípio, as audiências públicas permitem que especialistas e parcelas da sociedade civil tragam ao juízo de constitucionalidade novos elementos, informações, esclarecimentos e visões de mundo sobre o tema objeto de uma dada ação de constitucionalidade. A positivação desse instituto jurídico foi celebrada por parte da doutrina nacional como o estabelecimento de um mecanismo de abertura da jurisdição constitucional à participação social. As audiências foram consideradas vias procedimentais para a participação de especialistas e parcelas da sociedade civil na formação da decisão dos Ministros do STF. Assim, as audiências seriam vias de pluralização e democratização do processo decisório do STF, que, assim subsidiado, promoveria o incremento na racionalidade e na legitimidade democrática de suas decisões. Contudo, resta analisar se sua pretensão democrática e participativa tem se concretizado na forma como são realizadas as audiências públicas pelo STF. Para essa análise, é necessário conMestre em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF; Doutorando em Teorias Jurídicas Contemporâneas na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ; Brasil; E-mail: [email protected]

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https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V01_A14

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frontar o discurso democrático que tem envolvido a defesa desse instituto com a sua aplicação pelo Tribunal em sede de controle de constitucionalidade. Nesse sentido, pretendeu-se analisar se a prática institucional do STF na realização das audiências públicas tem sido compatível com o discurso democrático e pluralizador que as tem envolvido. O alto número de especialistas técnico-científicos oferece um indício de que as audiências têm sido utilizadas eminentemente para a colheita de informações especializadas, mais precisamente de caráter técnico ou científico, relegando a papel subsidiário seu potencial democrático-discursivo. Apesar do discurso democratizante, as audiências estariam sendo utilizadas pelo STF, essencialmente, como mero instrumento de colheita de informações técnicas, o que diminui ou mesmo inviabiliza a consumação da abertura democrática do Tribunal à participação social. Adotou-se o conceito ampliado de racionalidade, a racionalidade comunicativa e discursiva de Jürgen Habermas, como subsídio teórico apto a colaborar na identificação de eventual cooptação das audiências públicas, enquanto espaço de participação e diálogo social, pela racionalidade instrumental dos experts. Adotou-se a análise de conteúdo aberta como via metodológica, haja vista a pretensão de analisar as falas dos Ministros do STF nas audiências públicas e nos julgamentos por elas subsidiados, bem como a lista de expositores admitidos a participarem das audiências. A pesquisa selecionou as cinco primeiras audiências, a saber, as referentes à Ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 3510, sobre pesquisas com células-tronco embrionárias, à Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 101, sobre a importação de pneus usados, à ADPF 54, sobre a interrupção da gestação de fetos anencéfalos, ao Agravo Regimental na suspensão de tutela antecipada (STA AgR) 175, sobre a judicialização do direito à saúde, e à ADPF 186, sobre políticas afirmativas de acesso ao ensino superior. A análise dessas cinco audiências pode fornecer o perfil da prática institucional do STF na condução, pelo menos, dessa primeira geração de audiências públicas.

1 Audiências públicas e discurso democrático

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Nos diversos âmbitos de decisão estatal, as audiências públicas surgiram como forma de reestruturação e abertura institucional para a consecução do projeto constitucional de superação de uma democracia exclusivamente representativa. As audiências passaram a integrar procedimentos nos três Poderes da República, figurando na elaboração de leis, na atuação administrativa e na prestação jurisdicional (RAIS, 2012). Elas tornaram-se um dos principais instrumentos legais de publicidade e controle popular da formação da vontade estatal, sendo destaque, por exemplo, no processo administrativo contemporâneo. No âmbito do Poder Judiciário, as audiências também foram consideradas como vias institucionais de participação da sociedade civil no processo decisório estatal, significando maior abertura da jurisdição constitucional à participação popular, principalmente, nas discussões sobre temas controversos e de significativa repercussão na sociedade e na vida institucional do Estado Democrático de Direito brasileiro. A previsão legal da possibilidade de realização de audiências públicas no âmbito do Supremo Tribunal Federal é o exemplo máximo dessa pretensão de abertura democrática do Judiciário brasileiro. Desde a realização da primeira audiência pública no STF, em 2007, até dezembro de 2015, foram realizadas 18 (dezoito) audiências públicas, numa média de cerca de duas por ano (BRASIL, 2015a). A abertura do processo interpretativo e decisório da jurisdição constitucional relaciona-se com a superação da visão dos destinatários das decisões do Tribunal constitucional como sujeitos meramente passivos. Enquanto pessoas racionais e sujeitos de direitos, esses destinatários devem poder, em alguma medida, participar do processo decisório do juízo de constitucionalidade. Nesse sentido, Jürgen Habermas ressalta a necessidade de superação do paradigma da filosofia da consciência, com sua racionalidade autocentrada e instrumental, em que o agente racional assume a perspectiva de observador, divisando tuto o que o cerca, incluindo os demais sujeitos, como entidades absolutamente externas e reificadas. Essa racionalidade instrumental objetiviza tudo a que se dirige, pois considera tudo o que lhe é externo como coisas a serem manipuladas visando ao êxito egocêntrico (HABERMAS, 1990, p. 277-278).

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Na racionalidade instrumental, o sujeito divisa o objeto a partir da perspectiva cognitiva do conhecer ou da técnico-prática do produzir. Assim, o conhecimento e a produção seriam atividades instrumentais, em que o sujeito busca dominar o objeto, controlar o mundo que lhe está oposto (McCARTHY, 2002, p. 89). Para HABERMAS (2002, p. 102) uma pessoa é racional quando pode explicar seu posicionamento diante das pretensões de validade. Mais do que agir guiando-se por pretensões de validade, uma pessoa é racional ao ser capaz de explicar suas decisões diante de tais pretensões, bem como de, reflexiva e argumentativamente, ser capaz de avaliar as pretensões alheias, ultrapassando a perspectiva autocentrado de um eu egocêntrico. Habermas defende um conceito ampliado de racionalidade, que vai além da razão meramente instrumental. Seu conceito de racionalidade comunicativa é caracterizado pela busca discursiva pela construção de entendimento intersubjetivo. Essa racionalidade é essencialmente intersubjetiva, argumentativamente mediada e capaz de, discursivamente, avaliar o exercício conjunto de juízos instrumentais, prático-morais e estéticos. Sob a práxis da argumentação, as diferentes racionalidades podem ser integradas, complementando-se (HABERMAS, 2002, p. 103). Nessa linha, a utilização das audiências públicas pelo STF como via de abertura do processo decisório da jurisdição constitucional à participação e diálogo sociais poderia promover tanto um incremento da racionalidade quanto da legitimidade democrática das decisões de controle de constitucionalidade. A participação discursiva de representantes de segmentos da sociedade civil nessas audiências pode alimentar o juízo de constitucionalidade com plurais visões de mundo, aumentando o intercâmbio de argumentos e contra-argumentos, e testando mais eficazmente, sob o debate público, as pretensões de validade envolvidas nas controvérsias constitucionais. Para o STF, as audiências públicas estariam promovendo a democratização e a pluralização da interpretação constitucional ao permitir a participação de representantes de segmentos sociais na formação do entendimento dos ministros. Esse discurso democrático fica evidente nas falas dos ministros. Exemplificativamente, na primeira audiência, o Min. Relator Ayres Britto afirmou estar “homenageando o pluralismo, um dos conteúdos mais importantes da democracia; pluralismo que, no

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nosso caso, muito concorrerá para legitimar a decisão que o Supremo Tribunal Federal proferirá” (BRASIL, 2007a, p. 57-58), e o Min. Gilmar Mendes, ao proferir o último voto, asseverou que: “Não há como negar, portanto, a legitimidade democrática da decisão que aqui tomamos hoje.” (BRASIL, 2008a, p. 467). Porém, resta aferir se esse discurso democrático foi transformado em prática na condução das audiências públicas pelos ministros do STF.

2 Audiências públicas e prática tecnocrática O regime jurídico das audiências públicas no âmbito do STF é constituído pelas Leis nº 9.868/99 (BRASIL, 1999a) e 9.882/99 (BRASIL, 1999b) e pelo Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF), alterado pela da Emenda Regimental (ER) nº 29, em 18 de fevereiro de 2009 (BRASIL, 2014a). Segundo esse regime jurídico, a finalidade dessas audiências é possibilitar a colheita de informações úteis à adequada decisão sobre determinada causa. As referidas leis preveem as audiências públicas como instrumento de informação do STF, como instrumento de colheita de informações técnicas, que instruem os ministros com o conhecimento especializado necessário para a adequada avaliação e decisão sobre dado tema (SUPTITZ; LOPES, 2008). Esse objetivo é evidenciado, inclusive, pela limitação legal das pessoas a serem ouvidas àquelas com “experiência e autoridade na matéria” (BRASIL, 1999b). Pelo texto do art. 9º, § 1º, da Lei nº 9.868 (BRASIL, 1999a) pode-se aferir que a finalidade expressa da audiência pública no STF é esclarecer matéria ou circunstância de fato ou suprir notória insuficiência de informações existentes nos autos. As audiências públicas das Leis nº 9.868 e 9.882 distinguem-se daquelas ocorrentes nos outros Poderes, pois limitam a participação aos experts, restrição ausente em outras previsões legais, evidenciando que elas não objetivam a colheita de quaisquer informações, mas, antes, de dados técnicos (SUPTITZ; LOPES, 2008). Elas estão positivadas como uma espécie do gênero instrumentos de informação do Tribunal, ao lado da requisição de informações adicionais e da nomeação de peritos. Assim, o objetivo legal prescrito para as audiências públicas é colher informações técnicas junto a um público especializado

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sobre a matéria objeto do juízo de constitucionalidade, suprindo, assim, o desconhecimento técnico dos ministros (SUPTITZ, 2008). O objetivo legal dessas audiências parece ser possibilitar a superação da tradicional vedação à dilação probatória característica dos tribunais superiores. Portanto, considerando unicamente a disciplina legal das audiências públicas no âmbito do STF, sua finalidade é exclusivamente instrutória. Nesse sentido, o atualmente ministro, Gilmar Ferreira Mendes, que presidira as comissões que elaboraram os anteprojetos das citadas leis, expôs, doutrinariamente, que as audiências públicas, assim como os demais instrumentos de informação do Tribunal, têm como objetivo permitir um “mínimo de instrução probatória no contexto procedimental da ação direta” (MARTINS; MENDES, 2009, p. 288). Assim, as audiências públicas seriam somente mais uma forma de superação da proibição de dilação probatória tradicionalmente caraterística dos tribunais superiores, permitindo ao STF a aquisição de lastro probatório sobre determinada área especializada do conhecimento. Contudo, essa finalidade legal parece destoar do discurso democrático dos envolvidos nessas audiências. Afinal, a restrição das audiências à oitiva de especialistas não promove nenhum necessário ganho democrático, pelo contrário, tal prática pode conduzir a uma tecnocracia, com a cooptação da deliberação por experts, em detrimento dos demais segmentos sociais. Porém, por diversas vezes, os ministros do STF qualificaram as audiências públicas como instrumentos de pluralização do juízo de constitucionalidade e de legitimação democrática das decisões da jurisdição constitucional. Assim, cumpre analisar as audiências realizadas a fim de identificar qual tem sido a prática institucional do STF na condução desse instituto. Das falas dos ministros do STF nas audiências públicas analisadas, é possível aferir que os ministros parecem identificar a oitiva de especialistas como democratização da jurisdição constitucional. Nesse sentido, o Min. Ayres Britto (BRASIL, 2008a, p. 12-13) justificou a convocação da primeira audiência pública da história do STF, referente às pesquisas científicas com células-tronco embrionárias (ADI 3510), na relevância social da matéria sob julgamento, a qual seria de interesse não somente de toda a sociedade como de toda a humanidade. Ao escolher os participantes das audiências, o Min. Relator convidou “22 (vinte e duas) das mais acatadas autori-

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dades científicas brasileiras” (BRASIL, 2008a, p. 13). Percebe-se que, após identificar a audiência pública como instituto de democracia participativa, o Min. Ayres Britto restringiu a participação a 22 (vinte e duas) autoridades científicas. Aliás, já na abertura da primeira audiência pública, o Min. Relator havia entendido que a previsão legal das audiências, de forma “coerente com o espírito democrático da Constituição de 1988”, significa a “abertura do Supremo Tribunal Federal para a comunidade científica” (BRASIL, 2007a, p. 04). Em nenhum momento o Ministro visualizou qualquer contradição em uma abertura democrática restrita a autoridades científicas. No mesmo sentido, ao iniciar a segunda audiência pública, referente à importação de pneus usados (ADPF 101), e após destacar que “a Constituição brasileira determina a democratização não apenas dos processos políticos, mas dos processos judiciais” (BRASIL, 2012, 1:45-3:15), a Min. Relatora Cármen Lúcia entendeu a audiência como um convite à “sociedade, os especialistas, para trazer em informações, conhecimentos e argumentos que possam subsidiar os ministros do Supremo” (BRASIL, 2012, 1:45-3:15). Na fala da Ministra, o aposto especialista especifica o tipo de sociedade que ela entendeu apto a contribuir com argumentos ao STF. Porém, em nenhum outro momento essa prática institucional tenha ficado mais evidente do que na fala de encerramento à primeira audiência, quando o Min. Relator disse que o Supremo experimentava um mecanismo de “democracia participativa ou democracia direta, que é essa possibilidade de um segmento, muito bem organizado, científico, da população contribuir para a formatação de um julgado que lhe diz imediato respeito e repercute na vida de toda a população.” (destacou-se) (BRASIL, 2007b, p. 219). Resta claro que o Ministro restringe a abertura democrática proporcionada pela audiência pública à possibilidade de participação da comunidade científica, entendendo esta como o segmento organizado da população e, portanto, apto a contribuir com informações especializadas ao STF. Porém, não é possível afirmar que essa interpretação seja unânime entre os ministros, pelo menos não em termos de discurso. Com a terceira audiência pública, referente à interrupção da gestação de fetos anencéfalos (ADPF 54), o Min. Relator Marco Aurélio disse ter pretendido ouvir as “entidades representativas dos diversos segmentos sociais, religiosos e científicos” (BRASIL, 2012,

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p. 20). A fala do Ministro permite aferir que ele entendeu a comunidade científica como apenas um dos segmentos sociais a serem ouvidos, ao lado de outros, como o religioso. No julgamento da STA 175 AgR, subsidiado pela quarta audiência pública, o Min. Relator Gilmar Mendes (BRASIL, 2010, p. 22) manifestou-se semelhantemente ao Min. Marco Aurélio. Todavia, na prática, o foco dessa quarta audiência foi a oitiva, principalmente, dos segmentos médico e governamental. Dos 50 (cinquenta) expositores, somente 6 (seis)2 podem ser considerados representantes de entidades da sociedade civil, isto é, não representantes da Administração Pública Direta ou Indireta ou de entidades privadas de fins lucrativos, ou não especialistas técnicos ou científicos. Assim, apesar de o discurso do Min. Gilmar Mendes sustentar a pluralização da audiência com a participação de segmentos da sociedade civil, sua prática distanciou-se dessa proposta, valorizando a participação de agentes públicos e técnicos. Na verdade, essa prática parece mais concatenada com aquela a finalidade legal das audiências. Já na quinta audiência pública, referente às políticas afirmativas de acesso ao ensino superior (ADPF 186), o Min. Rel. Ricardo Lewandowski considerou as audiências públicas como uma “oportunidade que tem o Supremo Tribunal Federal de ouvir não apenas a sociedade civil de modo geral, mas os membros dos demais Poderes e também os especialistas nos assuntos.” (BRASIL, 2014b, p. 05). Percebe-se que o Min. Lewandowski distinguiu sociedade civil de comunidade científica, bem como dos representantes dos Poderes Públicos. Contudo, um pouco diversamente do acontecido na audiência anterior, essa distinção ficou evidenciada no corpo dos expositores. Dos 45 (quarenta e cinco) ouvidos, 15 (quinze) eram representantes de associações civis sem fins lucrativos (BRASIL, 2014b)3. Luiz Alberto Simões Volpi (Grupo Hipupiara Integração e Vida); Valderilio Feijó Azevedo (Associação Brasileira de Grupos de Pacientes Reumáticos); Heloisa Machado de Almeida (Conectas Direitos Humanos); Paulo Menezes (Associação Brasileira de Amigos e Familiares de Portadores de Hipertensão Arterial Pulmonar); Josué Félix de Araújo (Associação Brasileira de Mucopolissacaridoses); Sérgio Henrique Sampaio (Associação Brasileira de Assistência à Mucoviscidose) e Antonio Barbosa da Silva (Instituto de Defesa dos Usuários de Medicamentos). 3 Wanda Marisa G. Siqueira (Movimento Contra o Desvirtuamento do Espírito da Reserva de Quotas Sociais); Luiz Felipe de Alencastro (Fundação Cultural Palmares); Oscar Vilhena Vieira (Conectas Direitos Humanos); José Vicente (AFRO2

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Em suma, as cinco primeiras audiências públicas da história do STF foram utilizadas, predominantemente, como instrumento para a colheita de informações técnicas ou cientificamente especializadas. A suposta pretensão de abertura democrática da jurisdição constitucional ficou, basicamente, no discurso dos ministros. A práxis institucional do STF na condução dessas audiências pareceu identificar os experts como sábios imparciais, cujos juízos seriam isentos de valorações pessoais, políticas ou ideológicas, e superiores as possíveis contribuições da sociedade civil. Logo, suas contribuições seriam, a priori, substancialmente melhores, pois revestidas de autoridade científica. Comumente, a crítica democrática acusa o discurso tecnocrático de querer substituir os inevitáveis juízos de valor por aferições científicas, sob a alegação de que suas conclusões seriam absolutamente objetivas (PINZANI, 2013). Sob o pretenso álibi da objetividade, os juízos científicos estariam aptos a legitimar as decisões da Corte. Pela práxis institucional do STF identificada pela presente pesquisa, as audiências públicas objetivariam mais o ganho de legitimidade técnica do que democrática. Ainda que tais objetivos não sejam antagônicos, eles não devem ser confundidos. A democracia é caracterizada justamente pelo fato de a legitimidade não decorrer de um indivíduo ou grupo de indivíduos, mas da totalidade do povo. A legitimação democrática depende da garantia de influência efetiva do povo no exercício do poder do Estado. Evidentemente, ainda que a garantia da efetividade dessa influência democrática possa se dar de diferentes formas, a substituição da oitiva dos segmentos sociais diretamente interessados pela comunidade científica não é uma delas. A pretensão de suprir as naturais deficiências de conhecimento técnico-científico do Tribunal não serve de justificativa legítima para o reducionismo cientificista da audiência pública, BRAS); Fábio Konder Comparato (EDUCAFRO); Flávia Piovesan (Fundação Cultural Palmares); Denise Carreira (Ação Educativa); Marcos Antonio Cardoso (Coordenação Nacional de Entidades Negras); Sueli Carneiro (Geledés Instituto da Mulher Negra de São Paulo); Serge Goulart (Esquerda Marxista); José Carlos Miranda (Movimento Negro Socialista); Helderli F. C. de Sá Leão Alves (Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro e Associação dos Caboclos e Ribeirinhos da Amazônia); Augusto Canizella Chagas (UNE); Davi Cura Aminuzo (Estudante universitário contrário ao sistema de cotas); Moacir Carlos da Silva (Estudante universitário favorável ao sistema de cotas).

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negligenciando a oportunidade de acesso imediato às variadas interpretações socialmente existentes sobre a questão posta sob o juízo de constitucionalidade. Afinal, tais interpretações podem ser tão ou mais úteis e esclarecedoras do que as informações especializadas. Não é admissível que a potencialidade discursivamente pluralizadora e democrática das audiências públicas seja cooptada pela racionalidade dos experts, sob pena de o Tribunal ficar restrito ao reducionismo decisionista-instrumental e as audiências seguirem sendo âmbito para o discurso meramente teórico, em que se manifestam saberes cognitivo-instrumentais. Ademais, deve-se ressaltar o círculo vicioso que tende a ser gerado pela práxis institucional do STF que caracterizou essa primeira geração de audiências públicas, pois a redução das audiências aos experts desestimula ainda mais a sociedade a participar delas, por reconhecê-las como seara reservada aos técnicos e cientistas, prejudicando a pluralização e democratização da jurisdição constitucional.

Conclusão Ao longo da presente pesquisa, buscou-se analisar se o discurso democrático que cerca a realização de audiências públicas pelo STF tem se refletido na forma como o Tribunal conduz essas audiências. A despeito de as audiências públicas aparecem na doutrina como abertura democrática da jurisdição constitucional à participação social, identificou-se que a finalidade legalmente positivada das audiências é permitir a colheita de informações especializadas. Portanto, o objetivo legal das audiências é possibilitar ao Tribunal suprir as deficiências de conhecimento especializado envolvido nas questões sobre seu juízo. Porém, segundo o discurso democrático, as audiências têm como objetivo proporcionar a abertura da jurisdição constitucional à participação da sociedade civil. Apesar desse discurso democrático e pluralizador ter aparecido nas falas dos ministros do STF, a condução das cinco primeiras audiências públicas pelo STF evidenciou, antes, uma prática tecnocrática.

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Os ministros limitaram a abertura da jurisdição constitucional, basicamente, aos experts, aos especialistas técnicos e científicos. Assim, identificou-se certo paradoxo, pois, ainda que os ministros reconheçam às audiências finalidade mais ampla do que a legalmente prevista, a de aumentar a legitimação democrática das suas decisões, sua prática coaduna-se com a finalidade legal, pois enfoca na oitiva da comunidade científica, dos especialistas. Mais do que isso, a ênfase na finalidade meramente informativa acaba militando contra a pretensão democrática, pois a jurisdição constitucional não se abre à participação da sociedade, mas somente à oitiva de um reduzido e específico segmento, a comunidade científica, e com o intuito de colher juízos objetivos e imparciais. As interpretações e visões de mundo socialmente difundidas sobre o tema sob decisão continuam marginalizadas do processo decisório do STF. Diante do exposto, conclui-se que a pretensão democrática e pluralizadora atribuída pela doutrina jurídica às audiências públicas no STF, e alimentada pelos próprios ministros do Tribunal, não tem se concretizado na forma como essas audiências têm sido realizadas. As cinco primeiras audiências foram marcadas pela quase absoluta oitiva de técnicos e cientistas em detrimento dos demais segmentos sociais, logo, em prejuízo da democratização e pluralização da jurisdição constitucional brasileira.

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A PARTICIPAÇÃO SOCIAL NAS DELIBERAÇÕES JUDICIAIS, CONFORME O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Gresiéli Taíse Ficanha1 Viviane Lemes da Rosa2

Introdução O Poder Judiciário tem sido consideravelmente questionado no desenvolvimento de suas funções, notadamente em razão de sua postura ativa na definição e efetivação das normas jurídicas. Um dos fundamentos das críticas decorre de seu caráter supostamente antidemocrático, pois seus membros não passam por processos eleitorais que contem com participação popular e nem se submetem a avaliações periódicas. A ideia original de separação dos poderes atribuía ao Judiciário um “poder nulo”, que apenas poderia aplicar a lei elaborada pelo Legislativo nos casos concretos (Montesquieu 2000, 172). Por sua vez, o Legislativo e o Executivo possuem legitimidade democrática que decorre da forma como é definida sua composição – eleições – e de sua forma de atuação – representação de interesses (Peters 1997, 320). A partir disso, pretende-se abordar a importância das formas de participação no processo civil previstas na Lei nº 13.105/2015 (novo Código de Processo Civil - NCPC), que abrem maior espaço para influência social nas decisões do Judiciário. Para isso, o trabalho foi dividido em duas partes. Na primeira, serão verificadas algumas premissas que demonstram a necessidade da ampliação das formas de participação no processo, para além daquelas atualmente previstas – que, de regra, restringem-se à intervenção de terceiros e à necessidade de demonstração de interesse jurídico. Em um segundo momento, serão analisados os mecanismos e institutos previstos no NCPC e em que medida eles efetivamente proporcio1 2

Mestranda em Direito Processual Civil na UFPR, Brasil, [email protected]. Mestranda em Direito Processual Civil na UFPR, Brasil, [email protected]. https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V01_A15

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nam a ampliação necessária das informações que devem adentrar o debate jurisdicional.

1 A Necessidade do debate na aplicação das normas 1.1. O caráter aberto da linguagem A partir da perspectiva das teorias da linguagem e do pós-positivismo, compreende-se que mesmo as normas que parecem mais claras e inequívocas podem ter significados diferentes a depender do contexto em que se encontram e da interpretação que se faça de sua conformidade constitucional. O controle das expectativas e condutas na sociedade moderna é feito fundamentalmente pelas leis, que, em uma prática diária de aplicação, se submetem à interpretação dos indivíduos, servem de base para o controle estatal e fundamentam os reclamos individuais (Habermas 1996, 171-172). Assim, é evidente que o texto é um ponto de partida fundamental para a argumentação e restringe as possibilidades de julgamento, mas, ainda que se pretenda completo e unívoco, não permite compreender integralmente o sentido da norma, pois precisa ser complementado pelos princípios normativos, pela axiologia do ordenamento e por um substrato fático e social (Habermas 1996, 252-253). Seja em razão da existência de conceitos indeterminados, princípios gerais ou lacunas normativas, seja em função da necessidade de interpretação da Constituição e da conformidade dessas duas interpretações, existe sempre um sentido normativo que é disputável. Isso permite uma margem maior de escolhas para o Judiciário, que, através da interpretação e definição de posicionamentos, pauta o comportamento social e a atividade da administração pública e dos demais órgãos do mesmo Poder (MacCormick 2008, 99), buscando, com isso, segurança nas relações jurídicas, isonomia de tratamento aos jurisdicionados e integridade e unidade do direito aplicado. O Direito, como sistema linguístico, está sujeito a essas disputas interpretativas, mas também é uma ordem prática e busca resolver problemas concretos. Então, esse raciocínio interpretativo também deve ter em vista os aspectos práticos da norma e o sentido que ela adquire diante da situação fática, exigindo sensibilidade ao

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contexto em que é aplicada. Nesse momento, elementos objetivos e subjetivos de cada um dos afetados – que muitas vezes se chocam – são relevantes para a adequada compreensão do objeto em disputa. Existem muitas variáveis que influenciam a interpretação da norma em seu aspecto abstrato (enquanto norma e linguagem) e concreto (enquanto ordem social e prática). Logo, a forma de raciocínio jurídico, quando voltada para a solução do caso concreto, como ocorre no processo judicial, depende sempre da apresentação de argumentos para defesa de pontos de vista, com a pretensão de atuar como justificação racional para a tomada de decisão. Portanto, a interpretação normativa é fundamental para definir a solução de um conflito concreto e para demonstrar que o caráter argumentativo do Direito e do processo judicial exige consistência do resultado, escolhido dentre os juridicamente possíveis e com a consideração dos pontos de vista daqueles que são diretamente afetados pela decisão. Assim, a teoria da argumentação pode ser utilizada com relação ao Direito não apenas para analisar do ponto de vista interno uma decisão judicial – seus motivos, consistência e coerência (MacCormick 2008, 264) –, mas também do ponto de vista externo, para abarcar os momentos que antecedem e sucedem sua elaboração na perspectiva procedimental e substancial (Atienza 2005, 57). Além da importância do conteúdo do debate e da decisão judicial, cuja análise apenas pode ser feita diante de casos concretos, revela-se a importância primordial do processo deliberativo que antecedeu a tomada de decisão, pois informa o substrato fático e valorativo em que a questão se coloca. Isso demonstra a necessidade de uma teoria do discurso e da argumentação no processo civil, reiterada pela instituição do Estado Democrático de Direito no artigo 1º da Constituição Federal, que exige a implementação da democracia em todos os âmbitos possíveis.

1.2. O Estado Constitucional e a constitucionalização do processo civil No Estado Liberal, era plausível defender o papel do Judiciário como simples aplicador da lei, pois o Legislativo era representante da soberania popular e, consequentemente, a lei era justa e legítima por definição (Ferrarese 2011, 69-70), de modo que se de-

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fendia um aparato estatal mínimo que não interferisse na autonomia privada dos cidadãos. Com o Estado Social e Constitucional, todos os poderes estatais tiveram suas atribuições modificadas3. Os direitos assumem um aspecto positivo, exigem uma atuação estatal e são vistos também como princípios que não obedecem uma hierarquia. O Legislativo passa a discutir questões éticas e morais para estabelecer qual direito deve ser atendido em uma dada situação, o Executivo passa a priorizar determinados direitos de acordo com a ideologia e o plano de governo e o Judiciário passa a analisar a situação concreta e o contexto social subjacente para decidir, de forma interpretativa e argumentativa, qual direito deve ser implementado naquele caso (Habermas 1996, 245 e ss.), todos com a finalidade de efetivar os preceitos constitucionais. Assim, ao tempo em que o Estado Constitucional exige uma postura mais ativa por parte de todos os órgãos estatais para a implementação da Constituição, também exige que a democracia faça parte desse processo de efetivação. Isso porque a Constituição apenas mantém sua autoridade e normatividade na medida em que está em harmonia com os valores da sociedade. As práticas democráticas são uma importante fonte de manutenção dessa correspondência, pois a interpretação da norma deve ser feita através de discursos práticos de aplicação normativa, não podendo ser atribuída exclusivamente ao processo legislativo (Post e Siegel 2013, 52). Logo, a democracia está conectada a valores políticos substantivos que permitem identificar quais procedimentos concretos de tomada de decisão são realmente democráticos (Post 2014, 7172) – os quais podem assumir diferentes configurações a depender da instituição (Legislativo, Executivo, Judiciário ou agências reguladoras, por exemplo) ou do caso a ser analisado (ação de constitucionalidade, recurso repetitivo, ação coletiva ou individual, por exemplo). Assim, exige-se que os centros decisórios, notadamente os estatais, admitam a influência da opinião social. Como o processo civil é uma das formas de atuação do Judiciário e é influenciado pela perspectiva constitucionalista do Direito, deve permitir essa abertura para participação de todos que são afetados pela solução Identifica-se o Estado Constitucional como aquele surgido no Segundo Pós-Guerra, preocupado com a garantia de direitos de forma substantiva (Ferrarese 2011, 70).

3

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do conflito. Todavia, a exigência de participação deve ser combinada com os princípios da efetividade e celeridade da solução do litígio, que são princípios constitucionais igualmente relevantes. Se o excesso de atuação isolada e de inovação legislativa da Corte produz efeitos negativos em sua legitimidade e pode significar ativismo judicial, a abertura total a movimentos populares pode conduzir também a um populismo exacerbado (Post e Siegel 2013, 51). Desse modo, a adequada combinação e o nível possível/desejado de participação no processo não podem ser definidos de forma normativa, demandando sensibilidade ao caso e razoabilidade. Nesse contexto de ampliação da participação, a doutrina da democracia deliberativa e do constitucionalismo democrático apresenta grande relevância.

1.3. O constitucionalismo democrático e a democracia deliberativa Diante da existência de discussão a respeito do significado, conteúdo e alcance das normas e dos direitos, deve existir um procedimento que permita definir a forma da argumentação e que auxilie a escolha das possibilidades sustentáveis de decisão correspondente à melhor solução do conflito. A democracia deliberativa – em um sentido amplo de discussão entre cidadãos livres e, na medida do possível, iguais – propõe-se como um meio para o exercício da autonomia e do autogoverno e para a tomada de decisão legítima, a qual não pode ser simplesmente imposta à sociedade (Habermas 1996, 395). Assim, o contexto que deve ser considerado para a interpretação da ordem normativa é aquele informado pela comunicação social e opinião pública que emerge da sociedade civil por meio de processos democráticos. O debate que ocorre fora dos âmbitos institucionais é também expressão da democracia deliberativa e, para que as pessoas se sintam participantes de uma ordem normativa compartilhada, as decisões judiciais não podem ser elaboradas de uma forma técnica e isolada, mas devem abrir-se à sociedade e permitir a intervenção democrática. Assim como os demais poderes, as Cortes têm virtudes e vícios, mas todos exercem seus papéis na democracia – no caso do

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Judiciário, a interpretação e aplicação do ordenamento jurídico a casos concretos e a garantia de direitos. Através do processo judicial existe a possibilidade – ainda que limitada e disciplinada – de as pessoas interferirem, por si mesmas, na interpretação do Direito no momento de sua aplicação em um caso que as afeta diretamente, de forma que, neste âmbito, existem também canais de participação direta nas instituições decisórias, sem que estejam ligadas a visões e ideologias partidárias. Assim, a deliberação entre indivíduos que possuem posicionamentos diferentes é um procedimento democrático que contribui para a tomada de decisão, auxiliando o desenvolvimento intrínseco da deliberação – na medida em que os participantes testam seus argumentos, expondo racionalmente sua opinião (Alexy 2011, p. 26), e precisam ouvir os demais (Gargarella 2013, 5; Mendes 2013, 24-26) –, e fornecendo subsídios contextuais e fáticos para o julgamento. Nesse sentido, o constitucionalismo democrático propõe que as Cortes incorporem nas suas razões de decisão considerações a respeito da opinião pública, sendo a porosidade institucional fundamental para permitir uma decisão mais completa e legítima (Mendes 2013, 45) e preocupada com o sentimento de pertencimento dos cidadãos e com a ideia de autogoverno, sem imposição de significados normativos. O constitucionalismo democrático constitui-se, assim, como paradoxo de um texto que deve ter autoridade para regular o ordenamento jurídico e a sociedade, ao mesmo tempo em que se legitima através da sensibilidade democrática e adaptação de sentido (Post e Siegel 2013, 24). Então, é uma exigência da democracia deliberativa que as decisões em matéria constitucional estejam abertas a práticas sociais e considerem-nas como fonte de conhecimento, ainda que não estejam institucionalizadas e não sejam formalmente trazidas ao processo constitucional (Häberle 2002, 22 e 43), pois são necessários mecanismos diferentes e contínuos e intercâmbio de informações entre aqueles que decidem e aqueles que sofrerão os efeitos concretos da decisão (Post e Siegel 2013, 53). Sob a perspectiva da jurisdição constitucional, as formas de interpretação e inclusão das opiniões públicas no processo são mais maleáveis e o processo deliberativo e argumentativo pode ser feito de forma indireta: através de manifestações da sociedade e de seus representantes, de diversas formas e ainda que fora do processo (Mendes 2013, 179).

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Essa exigência de participação democrática na jurisdição não ocorre apenas em nível constitucional, no qual o aspecto político da decisão é mais evidente, mas é também imperiosa na jurisdição ordinária, de modo que o legislador, ao elaborar o NCPC, preocupou-se com o caráter democrático dos provimentos jurisdicionais.

2. A participação da sociedade nas deliberações jurídicas, conforme o novo Código de Processo Civil O legislador denotou grande preocupação com a segurança jurídica, a previsibilidade, unidade e coerência das decisões judiciais durante a formulação do novo Código de Processo Civil. Visando à definição de teses para questões de direito que são comumente alvo de ações judiciais, instaurou alguns institutos cuja decisão final apresenta efeitos vinculantes. E, diante da importância desses mecanismos para a jurisdição brasileira, inseriu dispositivos com o objetivo de expressamente instituir a participação social nesses julgamentos. Neste estudo, identificaram-se cinco hipóteses nesse sentido. Em primeiro lugar, o art. 138 do NCPC prevê a participação de amicus curiae no prazo de quinze dias de sua intimação. Apesar de não se tratar de instituto completamente novo no ordenamento, existindo hipóteses de atuação nos tribunais, não se admitia sua participação em demandas de primeira instância. Dependendo da relevância da matéria, da especificidade do tema e da repercussão geral da controvérsia, o magistrado poderá “solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada”, desde que haja representatividade adequada. Em segundo lugar, o art. 927, §2º, do NCPC estabelece que a alteração das teses jurídicas adotadas em enunciados de súmulas e no julgamento de casos repetitivos “poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese”. A participação da sociedade pode ser autorizada sempre que houver rediscussão de tese que fora adotada em súmula (vinculante ou não); no julgamento de demandas repetitivas (ou seja, na revisão da tese adotada em Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – IRDR) ou em Recursos Especiais ou Extraordinários Repetitivos. A deliberação social nesse ponto é muito importante, vez

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que a superação de entendimentos fixados em súmula e que apresenta efeito vinculante é figura extremamente relevante para o funcionamento do sistema de precedentes brasileiro. Como esses institutos fixam teses que impactam toda a sociedade e que só podem ser modificadas com um justo motivo – como, por exemplo, a alteração dos paradigmas/valores sociais, a evolução tecnológica, entre outras mudanças relevantes – a participação social se reveste de especial importância. Por sua vez, o art. 950, §§1º a 3º, do NCPC, traz várias possibilidades de participação social antes do julgamento do Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade. O parágrafo primeiro possibilita a manifestação das pessoas jurídicas de direito público responsáveis pela edição do ato questionado, desde que haja requerimento – em tese, um requisito –, observando-se os prazos e condições previstos no regimento interno do tribunal. O segundo parágrafo permite a intervenção dos legitimados para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade e de ação declaratória de constitucionalidade, previstos no art. 103 da Constituição Federal, os quais poderão manifestar-se, por escrito, durante o prazo previsto pelo regimento interno do tribunal, restando assegurado o direito de apresentação de memoriais e juntada de documentos. O terceiro parágrafo admite a participação de outros órgãos ou entidades, conforme a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, em decisão irrecorrível tomada pelo relator do incidente. O art. 983, caput e §1º, do NCPC, refere-se ao Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, dispondo que “o relator ouvirá as partes e os demais interessados, inclusive pessoas, órgãos ou entidades com interesse na controvérsia”, os quais poderão apresentar documentos e requerer diligências. O parágrafo primeiro prevê que o relator poderá designar audiência pública para ouvir depoimentos de pessoas com experiência e conhecimento na matéria, a fim de instruir o incidente. Por fim, o art. 1.038, I e II, do novo Código, possibilita que, no julgamento de Recursos Especial e Extraordinário Repetitivos, o relator solicite ou admita “manifestação de pessoas, órgãos ou entidades com interesse na controvérsia”, conforme a relevância da questão a ser julgada, bem como que designe audiência pública para oitiva de pessoas com experiência/conhecimento na matéria. Tais dispositivos demonstram a importância da participa-

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ção social nas deliberações judiciais. A cooperação da sociedade, de pessoas interessadas ou com conhecimento/experiência na matéria e de órgãos ou entidades representativas de grupos sociais traz legitimidade democrática aos julgamentos e propõe novas questões a serem pensadas, enriquecendo o debate e contribuindo para uma maior completude e adequação empírica da decisão judicial. Frise-se que essas previsões não configuram uma novidade absoluta no ordenamento brasileiro, pois os arts. 482, §§1º a 3º, 543-C, §4º, do CPC; os arts. 6º, 7º, §2º, 9º, §1º, 10, §2º, 12-E, §1º, 12-F, §3º, 20, §1º, da Lei nº 9.868/1999 e os arts. 5º, §2º, 6º, §§1º e 2º, da Lei nº 9.882/1999 já continham previsões bastante semelhantes. Logo, a novidade existente no NCPC consiste na extensão dessas previsões a outras figuras do direito processual civil. Tais dispositivos levantam questões a serem ponderadas. Prefacialmente, há que se destacar que, dentre os cinco dispositivos citados, apenas o art. 983 prevê que “o relator ouvirá”. Todos os demais utilizam a expressão “poderá”, sugerindo uma faculdade em fazê-lo. A bem da verdade, nem mesmo no IRDR consta expressamente que o relator possui o dever de possibilitar a deliberação, mas que apenas “ouvirá”, de modo que, nem mesmo neste ponto pode defender-se com certeza que se trata de um dever do relator, sob pena de incidência de alguma sanção, processual ou não. Acredita-se que o legislador propositadamente deixou de instituir a participação social como um dever, a fim de evitar que a sua ausência configurasse eventual nulidade da decisão proferida, o que certamente causaria insegurança jurídica. Todavia, devemos questionar essa escolha, não tanto com relação à participação do amicus curiae em primeira instância, mas principalmente quanto às demais hipóteses. Afinal, diante da importância das teses a serem definidas – pela relevância da matéria ou pelo efeito vinculante que possa advir dos julgados – tais decisões não deveriam ser precedidas pelo debate? Não se desconhece o risco à celeridade processual, mas acredita-se que existem casos em que outros valores – como o próprio caráter democrático da jurisdição e a legitimidade do Judiciário – devem ter prevalência. Uma segunda consideração refere-se ao fato de que todas as hipóteses envolvem conceitos juridicamente indeterminados, pois a legislação não fornece parâmetros para a sua definição ou aplicação: “representatividade adequada” (arts. 138 e 950, §3º, NCPC), “que possam contribuir para a rediscussão da tese” (art. 927, §2º),

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“relevância da matéria” (arts. 138, 950, §3º e 1.038, I), “especificidade do tema objeto da demanda” (art. 138), “repercussão geral da controvérsia” (art. 138), “interessados” (arts. 983), “com interesse na controvérsia” (arts. 983, caput, e 1.038, I) e “com experiência e conhecimento na matéria” (arts. 983, §2º, e 1.038, II). Quanto à representatividade adequada, poder-se-ia cogitar uma inspiração na adequacy of representantion, exigência imposta ao legitimado ativo das class action norte-americanas. Todavia, não há como utilizar aqui os requisitos que, naquele ordenamento, pautam referido conceito. É que no direito estadunidense a adequacy é considerada com bastante rigor, vez que apenas um indivíduo deverá representar adequadamente toda a coletividade de sujeitos conformados à decisão a ser proferida (Arenhart 2013, 85). Trata-se, portanto, do único legitimado a falar por todos. No presente caso, a oitiva de uma pessoa ou instituição não exclui a participação judicial das partes e do Ministério Público, assim como não afasta a deliberação com outras pessoas/órgãos/grupos. Logo, a representatividade não deve apresentar os requisitos rigorosos da class action, sendo mais adequado que se observem os apontamentos feitos pelos tribunais superiores para a escolha de amicus curiae – notadamente porque o texto do artigo 138 do NCPC assemelha-se muito ao art. 7º, §2º, da Lei nº 9.868/1999. As noções de “relevância da matéria”, “especificidade do tema” e “repercussão geral da controvérsia” também configuram conceitos jurídicos indeterminados e necessitam de interpretação judicial em conformidade com o caso concreto, acerca da presença de um dentre esses três requisitos alternativos. Frise-se que é imprescindível que os magistrados desenvolvam, no momento da análise do cabimento de todas as hipóteses de deliberação supramencionadas, uma interpretação acerca da definição e concretização dos conceitos indeterminados, visto que o art. 489, §1º, II, do NCPC, exige que sejam realizados raciocínios jurídicos expressos e devidamente fundamentados, sob pena de nulidade da decisão. O terceiro comentário a ser feito refere-se especificamente aos arts. 927, 983 e 1.038 do Código, que tratam da superação de teses, do IRDR e dos Recursos Especial e Extraordinário Repetitivos: somente tais artigos destacam a possibilidade de participação não apenas daqueles que sejam interessados na solução jurídica do caso, mas também dos que detenham conhecimento ou experiência

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na matéria e que possam contribuir para a discussão da controvérsia. Disto se extrai que a participação social é importante para a exposição de opiniões, fundamentos e posições de grupos da sociedade, mas é útil também para pautar a fundamentação de questões técnicas e que exijam conhecimentos específicos. Nesse sentido, é de se admitir que, em controvérsias que envolvam essas matérias, sejam ouvidos profissionais e membros da academia com notável experiência ou conhecimento, pois podem contribuir para o conteúdo da decisão4. O quarto ponto a ser analisado concerne à escolha dos interessados. Os artigos preveem a possibilidade de participação de pessoas naturais ou jurídicas, órgãos ou entidades especializados e/ou com interesse na controvérsia e pessoas com experiência e conhecimento na matéria. No entanto, quem são essas pessoas, órgãos ou entidades? O que é interesse e quando está presente? Como já mencionado, um ponto de partida pode consistir nas pontuações que vêm sendo feitas pelos tribunais superiores para a escolha de amicus curiae. Considerando a impossibilidade de oitiva de todos os possíveis interessados – vez que o processo precisa ser decidido em um prazo razoável – acredita-se que a atividade a ser desenvolvida no momento de escolha dos participantes exige a identificação da pertinência e importância da atividade desenvolvida pelo interessado em relação ao assunto sob debate e do conhecimento e/ou experiência que possua no ramo. De acordo com a relevância das questões e setores da sociedade afetados, deverão ser ponderados o tempo e espaço concedidos ao debate. Surgem ainda algumas questões: há um limite de pessoas, órgãos, entidades ou interessados a serem escolhidos? Como isso será determinado? Quem vai falar e por quanto tempo? Quem é responsável pela escolha dos participantes? Todas essas questões dependem de um raciocínio jurídico devidamente fundamentado e pautado pela razoabilidade. O terceiro questionamento depende também da previsão normativa, mas a atividade será normalmente realizada pelo relator do recurso/incidente ou pelo juiz responsável pelo julgamento do processo em primeira instância. O sexto ponto é mais uma constatação: algumas decisões Por exemplo, pode ser importante a participação de engenheiros, médicos, corretores, constitucionalistas, estudiosos do direito de família, psicólogos, entre outros.

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sobre a participação são irrecorríveis, como aquelas previstas nos arts. 138 e 950, §3º, do NCPC. Nos demais dispositivos não consta expressamente a irrecorribilidade da decisão, mas como os artigos sugerem um caráter facultativo da participação, não se acredita que seria cabível, por exemplo, mandado de segurança contra o ato decisório. Por outro lado, nada impede que o terceiro realize um pedido de reconsideração ou que, sendo contraditória, obscura ou omissa a decisão, as próprias partes ou o Ministério Público oponham embargos declaratórios. Por fim, não basta que as pessoas, órgãos e entidades sejam ouvidos, é preciso que as suas razões, argumentos e sugestões sejam efetivamente analisados e levados em consideração, que haja um contraditório efetivo e capaz de afetar o convencimento dos julgadores. Se as deliberações forem realizadas da forma como vêm sendo feitas as audiências públicas no Brasil, certamente não cumprirão o escopo de dar voz aos interessados.

Conclusão Conclui-se que, para além das dúvidas e ressalvas quanto aos termos vagos utilizados pelo legislador nos arts. 138, 927, §2º, 950, §§1º a 3º, 983, caput e §1º, e 1.038, I e II, do novo Código de Processo Civil, a intenção certamente foi ampliar a participação e o debate no âmbito judicial. Tais hipóteses auxiliam não apenas o caráter democrático dos julgamentos e, portanto, a legitimidade do Judiciário, mas também a qualidade, completude e coerência interna dos julgados. Com a certeza do caráter positivo das novidades previstas no Código, cabe aos intérpretes do direito buscarem as melhores formas de aplicação, de modo a possibilitar a maior participação possível da sociedade nas deliberações, visando uma consequente melhoria (intrínseca ao próprio debate) da qualidade e da legitimidade das decisões judiciais, tomando-se cuidado para não violar a duração razoável do processo.

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O PROCESSO DE NOMEAÇÃO DOS MINISTROS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL REVISITADO Gabriela Miranda Duarte1 Renato César Cardoso2

Introdução O presente artigo, a partir da análise de algumas propostas de emendas constitucionais existentes tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado, busca extrair as justificativas apontadas para a promoção de mudanças na forma de escolha dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). As soluções propostas são variadas: desde alternar entre o Presidente da República e o Congresso Nacional a escolha dos Ministros do STF, passando pela criação de um Conselho Eleitoral para escolha ou elaboração de uma lista sêxtupla, até a fixação de mandato, com vedação à recondução. Atualmente, mesmo diante do evidente protagonismo da Corte, a forma de escolha permanece sem mudanças. A Constituição Federal estabelece, no artigo 84, XIV, o poder do Presidente da República para, após aprovação pelo Senado Federal, nomear os Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Adiante, dispõe o artigo 101 que os onze ministros a comporem o STF “serão escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada”, Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Direito Ambiental e Políticas Públicas pela Universidade Federal do Amapá. Analista Judiciário no Tribunal de Justiça do Amapá. Brasil. Endereço eletrônico: [email protected]. 2 Professor Adjunto, em dedicação exclusiva, na Universidade Federal de Minas Gerais, nos cursos de graduação em Direito e Ciências do Estado, bem como no Programa de Pós-Graduação em Direito. Pós-Doutor em Filosofia pela Universidade de Barcelona (2013-2014), Doutor em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2008) e Mestre em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2004). Brasil. Endereço eletrônico: [email protected]. https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V01_A16 1

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os quais exercerão o cargo de forma vitalícia. Tem-se, portanto, um procedimento centralizado no Chefe do Executivo, sem qualquer possibilidade de participação dos outros poderes ou da sociedade civil organizada. O trabalho será desenvolvido com suporte em pesquisa bibliográfica e documental, notadamente as PECs mencionadas.

1. Razões para se alterar a forma de escolha dos ministros do STF: apresentando as propostas Nesse tópico, serão apresentadas algumas propostas de emenda constitucional que estão em trâmite no Congresso Nacional no que se refere à mudança no processo de escolha e nomeação dos ministros do Supremo Tribunal Federal para que delas se possam extrair as razões apresentadas para que tais mudanças sejam efetivadas. Consideradas as emendas originárias da Câmara dos Deputados, foram analisadas dez emendas, quais sejam: 473/01, 566/02, 484/05, 342/09, 393/09, 434/09, 441/209, 55/15, 90/15 e 95/15, sendo que todas foram apensadas à emenda 473 de 2001, proposta por Antônio Carlos Pannuzio e outros, para que os Ministros do STF sejam escolhidos de maneira alternativa pelo Presidente da República e pelo Congresso Nacional, sendo nesse último caso exigida a maioria absoluta de seus membros. Como justificativa, afirmou-se que a participação do Poder Legislativo no processo promoveria a sua democratização, uma vez que retira a exclusividade do Poder Executivo. A emenda 566 de 2002, de autoria de Alceu Collares e outros, propõe que a escolha e nomeação seja realizada pela composição plena do Supremo Tribunal Federal, mediante aprovação pela maioria absoluta do Senado Federal. A composição se dará por um terço dentre juízes dos Tribunais Regionais Federais e um terço dentre desembargadores dos Tribunais de Justiça, indicados em lista tríplice elaborada pelo próprio Tribunal e um terço, em partes iguais, dentre advogados e membros do Ministério Público Federal, Estadual, do Distrito Federal e dos Territórios, alternadamente, indicados na forma do art. 94. Para justificar a proposta, é invocada a mitigação da imparcialidade dos membros diante da indicação pelo Chefe do Executivo. Em outras palavras, se diz que a proposta visa

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inibir qualquer interferência do Poder Executivo na composição do STF. A emenda 434 de 2009, proposta por Vieira da Cunha e outros, aumenta a idade mínima para quarenta e cinco anos, exige que o candidato seja bacharel em direito, acrescenta o mínimo de vinte anos de atividade jurídica, estabelece a criação de lista sêxtupla pelo próprio tribunal, sendo que a aprovação se dará por três quintos do Senado. E, ainda, cria um período de quarentena de três anos para antes e depois do exercício do cargo. Todas essas mudanças estariam fundamentadas na necessidade de atenuar o componente político desse processo de escolha e, ao mesmo tempo, inserir a participação do Judiciário, uma vez que o atual modelo não condiz com a imparcialidade exigida dos membros da Corte. Flávio Dino e outros propuseram a emenda 342 de 2009 para que cinco ministros fossem escolhidos pelo Presidente da República, sendo que os outros seis seriam escolhidos, a cada dois, pela Câmara, pelo Senado e pelo próprio STF, mediante apresentação de listas tríplices e com fixação de mandato de onze anos, vedada a recondução. Para justificar a proposta, é salientado o caráter político da atuação da Corte, além da necessidade de garantir maior legitimidade à escolha dos ministros, mediante a participação de vários segmentos sociais no processo. Na proposta 441 de 2009, Camilo Cola e outros pretendem que a vaga de Ministro do STF seja ocupada pelo decano do Superior Tribunal de Justiça, sob fundamento de que a proposta garante que a vaga seja ocupada por pessoa com saber jurídico e reputação ilibada, além de evitar que os ocupantes do cargo estejam submetidos a injunções político-partidárias. Pela emenda 484 de 2005, de autoria de João Campos e outros, os ministros seriam escolhidos pelo Congresso Nacional, exigida votação por maioria absoluta nas duas casas, sendo estabelecida uma quarentena de quatro anos para antes e depois do exercício do cargo. As alterações seriam necessárias pelo fato de que a forma atual compromete a imparcialidade dos membros e contribui para politização do Judiciário. A escolha pelos representantes do povo e dos estados atenderia melhor o postulado da soberania popular. Julião Amin e outros, ao aventarem a emenda 393 em 2009, propõem a criação de um conselho eleitoral para escolha dos ministros, sendo que o candidato não pode ter sido eleito para mandato político-partidário nos últimos cinco anos. A proposição se justifica

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no fato de que a indicação pelo Chefe do Executivo afeta a imparcialidade e credibilidade dos escolhidos, pois sempre existirá o vínculo entre eles. Retirar o poder do Chefe do Executivo evita que se consolidem a politização e partidarização da Corte. Mais recentemente, a emenda 55 de 2015, de autoria de Pedro Cunha Lima, busca implementar o mandato de dez anos e a aprovação do nome por três quintos dos membros do Senado, sob a justificativa de que a contaminação político-partidária na composição e o engessamento jurídico da Corte não podem persistir. Já a emenda 90, de 2015 com autoria de Carlos Eduardo Cadoca e outros, pretende estabelecer o mandato de dez anos, com fixação de prazos para escolha e nomeação pelo Chefe do Poder Executivo, bem como para aprovação pela maioria absoluta pelo Senado Federal. Para seus autores, é preciso que seja respeitado um prazo razoável pelo Executivo e Legislativo nesse procedimento, além de criar uma alternância no exercício do poder judicante. Por último, a emenda 95, também de 2015, apresentada por Tadeu Alencar, prevê idade mínima de quarenta e cinco anos com mandato de doze anos, vedada a recondução, sendo que a escolha assim se daria; cinco pelo Presidente da República, dois pela Câmara dos Deputados, dois pelo Senado e dois pelo STF, com aprovação por três quintos do Senado Federal. Cria um período de quarentena, o qual seria de quatro anos antes do exercício do cargo e de três após o exercício do cargo, sendo que nesse último caso receberia durante o período uma remuneração compensatória. De acordo com seu autor, a mudança se mostra necessária para afastar a discricionariedade concedida ao Executivo, a influência política e a ausência de legitimidade popular no procedimento, promovendo uma democratização no modelo de indicação. No Senado Federal, outras proposições existem. Pela proposta 44 de 2012, de autoria de Cristovam Buarque, haveria composição de lista sêxtupla com indicação pelo Conselho Superior do Ministério Público Federal, Conselho Nacional de Justiça, Câmara dos Deputados e Ordem dos Advogados do Brasil. Após, o Presidente faria lista sêxtupla, sendo o nome escolhido pelo Senado Federal por maioria absoluta. Os indicados devem cumprir quarentena de quatro anos para indicação. Da leitura da justificação, depreende-se que a mudança estaria fundamentada nas distorções decorrentes de uma escolha unipessoal do Presidente da República. Seria uma alternativa para eliminar a contaminação política.

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De acordo com a proposta 03 de 2013, de Fernando Collor, haveria 15 ministros, cuja escolha se daria por lista quádrupla mediante indicação pelos Tribunais Superiores, Conselho Nacional de Justiça, Conselho Nacional do Ministério Público e Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. A nomeação seria pelo Presidente da República, para mandato de quinze anos, após aprovação por dois terços do Senado. Como justificativa, argumenta-se que o crescente protagonismo da Corte evidenciou deficiências que comprometem o perfil democrático do STF, sendo necessário repensar o modelo vigente de composição. Após uma análise de vários modelos estrangeiros, foram identificados pontos centrais que precisavam ser alterados. Pela proposta 50 de 2013, Antônio Carlos Rodrigues acrescenta a condicionante de 10 anos de exercício na área jurídica e propõe a elaboração de lista sêxtupla com indicação de cinco pelo Presidente, três pela Câmara e três pelo Senado. Para sustentar a necessidade de mudanças, é invocada a relevância política da Corte, bem como seu caráter técnico. Já na proposta 58, de 2012, Roberto Requião sugere mandato de oito anos, sem recondução, e aprovação por maioria absoluta do Senado Federal. Novamente o caráter político do órgão é evocado para justificar as mudanças. Ademais a fixação de mandato representa uma renovação periódica e equitativa da Corte. Por derradeiro, a proposta 17 de 2015, de autoria de Blario Maggi, não interessa ao objetivo aqui proposto, eis que se preocupa apenas em fixar prazos para coibir prolongamentos no processo de indicação e, consequentemente, no trâmite processual. De uma maneira geral, as propostas existentes apresentam como justificativa, ora o protagonismo da Corte, ora a necessidade de refrear a forte conotação política de uma indicação unipessoal pelo Presidente da República. Em artigo intitulado Supremocracia, Oscar Vilhena destaca a ascensão da Corte brasileira, a qual, além de intérprete da Constituição, vem exercendo o Poder Legislativo. Afirma o autor que ganância do texto constitucional, “somada à paulatina concentração de poderes na esfera de jurisdição do Supremo Tribunal Federal, ocorrida ao longo dos últimos vinte anos, aponta para uma mudança no equilíbrio do sistema de separação de poderes no Brasil” (VILHENA 2008, 445). A indicação pelo Presidente da República é constantemente alvo de críticas, uma vez que promoveria a partidarização do Tri-

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bunal, isto é, estaria o ministro com suas decisões submissas aos interesses do partido pelo qual pertence o Chefe do Executivo3. Outro ponto de crítica é o caráter meramente formal da sabatina realizada pelo Senado Federal, da qual não se tem notícia de recusa recente de qualquer indicação4.

2. Revisitando o procedimento de escolha e nomeação dos ministros De acordo com Moraes (2003), a participação popular no mecanismo de escolha dos membros de Tribunais ou Cortes Constitucionais é fato de legitimidade da jurisdição constitucional exercida. O autor enumera três características básicas para sua composição: pluralismo, representatividade e complementariedade. Pela primeira, deve o STF refletir a pluralidade da sociedade, representando, assim, todos os grupos sociais existentes. A representatividade indica que o escolhido deve ser submetido à aprovação por maioria qualificada do Parlamento, viabilizando o exercício do direito de veto das minorias parlamentares. Por derradeiro, a complementariedade significa que devem ser escolhidos indivíduos com experiência profissional anterior diversa (advogado, professor universitário, membros da magistratura e do Ministério Público), equilibrando o caráter técnico e político da atividade que será desempenhada. Considerando que atualmente existe um procedimento de escolha dos ministros centralizado no Chefe do Executivo, sem qualquer possibilidade de participação dos outros poderes ou da sociedade civil organizada. E, ao mesmo tempo, é cada vez mais recorrente a atuação decisiva desse tribunal em questões políticas, econômicas, sociais, ambientais, culturais e morais de grande repercussão social, as quais afetam de forma significativa a realidade soNesse tópico, ver Democratização do processo de nomeação dos ministros do Supremo Tribunal Federal de Tavares Filho. Até mesmo a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho já se indignou com a forma atual de nomeação, como se vê em: “Anamatra critica critérios de escolha para ministros do Supremo”. Da mesma forma, a mídia brasileira sempre resgata essa desconfiança de partidarização decorrente dessa sistemática atual. 4 Relevante ressaltar que a última sabatina, do ministro Luiz Edson Fachin, foi vista como longa e tensa, quando comparada às anteriores. Ver: “ Fachin enfrentou a sabatina mais longa e tensa dos últimos 20 anos”em . 3

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cial, fato que lhe dá uma força política semelhante ou maior do que a atribuída constitucionalmente aos demais poderes que têm legitimidade decorrente de escolha democrática, alguma modificação é exigida. Não se pode olvidar que o modelo brasileiro reflete o modelo americano, estando calcado na vitaliciedade nos ministros e na sua indicação pelo Executivo, mediante aprovação pelo Senado. As propostas de mudanças existentes nas PECs apresentadas são variadas, desde alternar entre o Presidente da República e o Congresso Nacional a escolha dos Ministros do STF, passando pela criação de um Conselho Eleitoral para escolha ou elaboração de uma lista sêxtupla, até a fixação de mandato, com vedação à recondução. Embora ausente daquelas advindas do Poder Legislativo, vale mencionar que há quem defenda até mesmo eleição. Nessa perspectiva, Silva (1998) sugere a eleição dos juízes pelo voto popular, uma vez que a própria Constituição determina que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente” (art. 1. º, p. único). Na verdade, em sua obra, o autor defende que para os juízes de primeiro grau não haveria eleição, permanecendo o sistema atual. Para os membros dos tribunais regionais, estaduais ou federais, metade das vagas seria preenchida por juízes de carreira e a outra metade pelo voto popular. Por fim, para os juízes de tribunais superiores haveria eleição. Caberia aos partidos políticos apresentarem a relação de candidatos aos cargos de juízes, cujos nomes seriam submetidos à vontade popular, considerando-se eleitos juntamente com o partido vitorioso na eleição. Não se defende aqui uma proposta tão radical, contudo alguma alteração na sistemática atual é bem-vinda. Uma análise comparada demonstra formas variadas de escolha e nomeação, 5 as quais podem ser utilizadas como parâmetros e alternativas para aperfeiçoamento do nosso sistema atual.

Conclusão

Desde sempre temos um modelo de nomeação semelhante Nesse ponto, ver: Justiça Constitucional – a morfologia subjetiva do Supremo Tribunal Federal, dissertação apresentada por Leonardo Scofano.

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ao americano marcado pela vitaliciedade dos ministros, pelo estabelecimento de requisitos vagos de qualificação e pela livre escolha pelo Presidente da República, com aprovação do Senado, esta última característica como uma tentativa de assegurar a legitimidade democrática. As maiores críticas estão direcionadas ao vínculo que pode existir entre o indicado e o Chefe do Executivo, comprometendo uma atuação imparcial e independente6. Entretanto, como se viu, nas propostas de emendas à Constituição, algumas críticas são apontadas, as quais poderiam ser, no mínimo, mitigadas com a implementação de algumas modificações por elas mesmo apresentadas. Os critérios exigidos para o desempenho do cargo, reputação ilibada e notável saber jurídico, poderiam ser melhor esclarecidos para que afastem essa atual definição aberta e indeterminada, reduzindo eventual discricionariedade na escolha do Chefe do Executivo. Por exemplo, seria viável que os candidatos fossem advindos de variadas categorias profissionais da área jurídica com comprovação mínima da prática profissional. Poderia se acrescentar aqui uma adaptação do requisito “ficha limpa” aos pretensos ministros para aferição de sua idoneidade, assim como o estabelecimento de uma quarentena anterior e posterior ao exercício do cargo. Outra modificação seria a ampliação dos participantes nesse processo de indicação, aí incluindo-se os poderes Legislativo e Judiciário, assim como outras instituições como Defensoria Pública, universidades, Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil. Ou mesmo, de maneira mais imediata, a imposição de quórum mais elevado para a aprovação pelo Senado Federal possibilitaria que a minoria exercesse um poder de veto ao indicado, fortalecendo o mecanismo da sabatina. Da mesma forma, a fixação de um mandato para o cargo, além de possibilitar a oxigenação do processo decisório, permitiria uma renovação periódica dos ministros, atenuando o suscitado vínculo entre nomeado e o Chefe do Executivo. Aqui vale citar que o ministro Luis Roberto Barroso defende o modelo atual de escolha, haja vista que, mesmo havendo uma conotação política na escolha, o critério é preponderantemente técnico. Ver: “Ministro Luís Roberto Barroso defende atual modelo de indicação para o STF” em

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Não se pode olvidar que o processo de nomeação dos ministros precisa harmonizar legitimidade, imparcialidade e independência dos seus membros. E, ainda, que atuação do Supremo Tribunal Federal exige decisões técnicas e algumas vezes, politicamente acertadas.

Referências BRASIL. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição n.º 473. Dá nova redação ao inciso XIV do art. 84 e ao parágrafo único do art. 101 da Constituição Federal. Disponível em: < http://imagem.camara. gov.br/Imagem/d/pdf/DCD23FEV2002.pdf#page=63>. Acesso em: 15 ago. 2015. BRASIL. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição n.º 566. Dá nova redação ao art. 101 da Constituição Federal. Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2015. BRASIL. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição n.º 484. Altera a redação dos arts. 101 e 84, modificando a sistemática de escolha dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=360886&filename=PEC+484/2005 >. Acesso em: 15 ago. 2015. BRASIL. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição n.º 342. Altera dispositivos constitucionais referentes à composição do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: < http://www2.camara. leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=641368&filename=PEC+342/2009>. Acesso em: 15 ago. 2015. BRASIL. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição n.º 393. Dá nova redação ao art. 101 da Constituição Federal. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=674370&filename=PEC+393/2009>. Acesso em: 15 ago. 2015. BRASIL. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição n.º 434. Dá nova redação ao art. 101 da Constituição Federal, para alterar a forma e requisitos pessoais de investidura no Supremo Tribunal Federal. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=713418&filename=PEC+434/2009 >. Acesso em: 15 ago. 2015.

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BRASIL. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição n.º 441. Dá nova redação ao art. 101 da Constituição Federal, para alterar o sistema de nomeação dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=717340&filename=PEC+441/2009 >. Acesso em: 15 ago. 2015. BRASIL. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição n.º 55. Altera o art. 101 da Constituição Federal para determinar um mandato de dez anos aos Ministros do Supremo Tribunal Federal e para modificar o quorum de aprovação no Senado Federal para três quintos dos membros. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/ prop_mostrarintegra?codteor=1340886&filename=PEC+55/2015 >. Acesso em: 15 ago. 2015. BRASIL. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição n.º 90. Altera os arts. 84 e 101 da Constituição Federal, fixando prazo para a indicação, aprovação do nome e a nomeação dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, instituindo mandato de dez anos para seus membros. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1360096&filename=PEC+90/2015 >. Acesso em: 15 ago. 2015. BRASIL. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição n.º 95. Altera o art. 101 da Constituição Federal, para estabelecer critérios de escolha dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: < http://www2.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1362192&filename=PEC+95/2015 >. Acesso em: 15 ago. 2015. BRASIL. Senado Federal. Proposta de Emenda à Constituição n.º 44. Altera o art. 101 da Constituição Federal para modificar o processo de escolha dos ministros do Supremo Tribunal Federal, por meio do envolvimento do Conselho Superior do Ministério Público Federal, do Conselho Nacional de Justiça, da Câmara dos Deputados, da Ordem dos Advogados do Brasil, da Presidência da República e do Senado Federal. Disponível em: < http://legis.senado.leg.br/mateweb/arquivos/mate-pdf/113335.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2015. BRASIL. Senado Federal. Proposta de Emenda à Constituição n.º 03. Altera a Constituição para determinar novo procedimento de composição do Supremo Tribunal Federal e alterar a idade de aposentadoria compulsória. Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2015.

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BRASIL. Senado Federal. Proposta de Emenda à Constituição n.º 50. Altera o art. 101 da Constituição Federal, para disciplinar o processo de escolha dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: < http:// www.senado.leg.br/atividade/rotinas/materia/getPDF.asp?t=137135&tp=1 >. Acesso em: 15 ago. 2015. BRASIL. Senado Federal. Proposta de Emenda à Constituição n.º 58. Altera o art. 101 da Constituição Federal, para estabelecer mandato para Ministro do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: < http://legis.senado. leg.br/mateweb/arquivos/mate-pdf/117114.pdf >. Acesso em: 15 ago. 2015. BRASIL. Senado Federal. Proposta de Emenda à Constituição n.º 17. Altera os arts. 94 e 101 da Constituição Federal para aprimorar o processo de escolha dos Magistrados e Ministros do Supremo Tribunal Federal, estabelecendo prazo para sua indicação pela Presidência da República. Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2015. MORAES, Alexandre de. “Legitimidade da justiça constitucional”. 2003. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. V. 98, 291-311. Disponível em: . Acesso em: 05 nov. 2015. SILVA, Antônio Álvares da. 1998. Eleição de Juízes pelo Voto Popular. 1. ed. São Paulo: LTr. VIEIRA, Oscar Vilhena. “Supremocracia”. 2008. Revista Direito GV. Vol. 8, 441-464. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2015.

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POR UMA CARTOGRAFIA CONSTITUCIONAL DOS NAUFRÁGIOS E DAS DESCOBERTAS: AS POTENCIALIDADES E LIMITES DOS DIÁLOGOS TRANSCONSTITUCIONAIS ENTRE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E AS CORTES CONSTITUCIONAIS DA HUNGRIA E DA COLÔMBIA. Daniel Capecchi Nunes1 Introdução: O Supremo Tribunal Federal e a proteção jurisdicional dos direitos fundamentais - declarações de direito e a casa de máquinas da Constituição. O processo de surgimento e consolidação das cortes constitucionais não é fácil. Por um lado, as cortes precisam ser instrumentos efetivos para a garantia dos direitos fundamentais das minorias e, por outro lado, nas democracias recém-consolidadas, os embates entre as cortes constitucionais e os poderes majoritários podem levar à derrocada política de tais órgãos2. O equilíbrio entre a proteção de direitos fundamentais e a autopreservação política não pode ser reduzido a uma simples equação e exige atenção a fatores, como a opinião pública3, a robustez das instituições democráticas e uma cultura de direitos4. Mestrando na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Direito, na linha de pesquisa Direito Público. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 2 GARDBAUM, Stephen. “Are Strong Constitutional Courts Always a Good Thing for New Democracies?”. UCLA School of Law Research Paper No. 15-02. Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2552816. Cf. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 5a ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2015. p. 429. 3 NOVELINO, Marcelo. “A Influência da Opinião Pública no Comportamento Judicial dos Membros do STF” In: In: FELLET, André. NOVELINO, Marcelo. Constitucionalismo e Democracia. Salvador: Editora Jus Podivm, 2013. pp. 265-328. FRIEDMAN, Barry. The Will of the People: how public opinion has influenced the Supreme Court and shaped the meaning of the Constitution. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2009. 4 SWEET, Alec Stone. “Constitutional Courts”. In: ROSENFELD, Michel; SAJÓ, András (ed.) The Oxford Handbook of Comparative Constitutional Law. Oxford: 1

https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V01_A17

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No caso brasileiro, a superação do regime militar e a promulgação da Constituição de 1988 foram acompanhados por uma ascensão da importância política do órgão de cúpula do Poder Judiciário nacional: o Supremo Tribunal Federal (STF). O STF tem alcançado uma posição de destaque na defesa dos direitos fundamentais, o que se pode afirmar pela análise de decisões recentes da corte, tais como: permissão dos estudos com células tronco embrionárias, proibição do nepotismo, autorização para o aborto de fetos anencefálicos e da união homoafetiva5. No entanto, alguns estudiosos têm se dedicado a destrinchar a atuação do STF, no intuito de aferir as proporções reais de sua atuação na defesa de direitos fundamentais, sobretudo no controle concentrado de constitucionalidade. Esses estudos revelam uma Corte menos dedicada nos julgamentos relacionados à proteção de direitos fundamentais e mais voltada às questões corporativas e de administração pública6, “desafiando-a somente quando seus próprios interesses estão em jogo ou em defesa de princípios claros e amplamente aceitos”7. O objeto central da investigação do presente trabalho, portanto, visa a considerar a experiência de Cortes Constitucionais de outros Estados na análise crítica dos instrumentos de acesso ao STF e o modo de funcionamento de seus procedimentos, no que tange às demandas por direitos fundamentais oriundas da sociedade civil. A escolha das Cortes Constitucionais da Colômbia e da Hungria considerou o contexto de universalizalização do acesso à Oxford University Press, 2012. p. 826: “[...] A conquista de um sistema de justiça constitucional estável depende intensamente dos mesmos fatores e processos relacionados à conquista de uma democracia estável e nós sabemos que a democracia é difícil de criar e de sustentar[...]”. 5 Ver BARROSO, Luís Roberto. O Novo Direito Constitucional Brasileiro. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013. pp. 331-445. 6 COSTA, Alexandre Araújo Costa; BENVINDO, Juliano Zaiden. “A Quem Interessa o Controle Concentrado de Constitucionalidade? O Descompasso entre Teoria e Prática na Defesa dos Direitos Fundamentais”. Disponível em: http://papers.ssrn. com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2509541 FALCÃO, Joaquim; CERDEIRA, Pablo de Camargo. ARGUELHES, Diego Werneck. “I Relatório Supremo em Número: O Múltiplo Supremo”. Disponível em: http://www.fgv.br/supremoemnumeros/ publicacoes.html, 7 BRINKS, Daniel M. “Faithful Servants of the Regime: The Brazilian Constitutional Court’s Role under the 1998 Constitution”. In: HELMKE, Gretchen; RÍOS-FIGUEROA, Julio. Courts in Latin America. Cambridge: Cambridge University Press, 2011. p. 145.

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sua jurisdição e de sua notoriedade na atividade de defesa dos direitos fundamentais.

1 A Corte Constitucional da Hungria: um naufrágio. A Corte Constitucional da Hungria deve ser vislumbrada por duas perspectivas, marcadas pelo recorte da promulgação da Constituição de 2011. Antes da ascensão ao poder do partido conservador - e da assembleia constituinte que enfraqueceu profundamente a Corte - podemos falar em um órgão de acesso universal e competências vastas em matéria de controle de constitucionalidade. Após essa reforma, o órgão foi objeto de um processo de empacotamento que levou ao seu declínio. As causas para esse ataque institucional ao órgão estão associadas a uma postura eativista, sem respaldo popular que pudesse garantir a sua posição no país8. Dentre os países do bloco comunista, a Hungria já se diferenciava da tradição autoritária dos países que compartilhavam da mesma ideologia política9. Já em 1983, o país mendou a Constituição de 1949, incluindo o Conselho para o Direito Constitucional sendo uma primeira tentativa de incluir o controle de constitucionalidade. 10

Em 1989, após o processo de transição democrática foi acompanhado por reformas constitucionais para transformar a Constituição de 1949 em um documento compatível com os parâmetros ocidentais de democracia e que incluía a existência de um modelo de controle judicial de constitucionalidade. A reforma resultou, em destaque no o poder de nulificar atos normativos contrários ao texto constitucional e na abertura de sua jurisdição para qualquer cidadão que tivesse seus direitos violados, individualmente.11 GARDBAUM, Stephen. “Are Strong Constitutional Courts Always a Good Thing for New Democracies”. UCLA School of Law Research Paper No. 15-02. pp. 291294 Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2552816.. 9 HALMAI, Gábor. “The Hungarian Approach to Constitutional Review: The End of Activism? The First Decade of the Hungarian Constitutional Court” In: SADURSKI, Wojciech (ed.). Constitutional Justice East and West: Democratic Legitimacy and Constitutional Courts in Post-Communist Europe in a Comparative Perspective. Londres: Kluwer Law International, 2003. p. 192. 10 DUPRÉ, Catherine. Importing the Law in Post-Communist Transitions: The Hungarian Constitutional Court and the Right to Human Dignity. Portland: Hart Publishing, 2003. pp. 5-7. 11 Ambas as atribuições gozavam de status constitucional, estando presentes 8

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Sob a perspectiva da legitimidade, o fato de tais poderes terem surgido a partir de uma reforma constitucional, feita por representantes legítimos do povo, corroborou intensamente para que a Corte tivesse maior legitimidade em sua atuação, algo que a diferenciava de outros países do pós-comunismo12. Esses fatores levaram à pronta edição do ato XXXII de 1989, lei promulgada pelo Parlamento no intuito de organizar o funcionamento e as competências do Tribunal13. A Corte, inclusive, já fora considerada a mais poderosa da região à luz de suas competências.14 1.1 Embates com os Poderes Políticos Lach e Sadurski15 já previam os questionamentos sociais que redundariam no ataque político sofrido pela Corte. Segundo eles, alguns elementos se congregavam para formar um backlash no cenário dos países pós-comunistas. Primeiro, era a superação da crença existente que as cortes constitucionais seriam órgãos politicamente neutros. Passou-se a avaliar mais abertamente o impacto de determinadas decisões na formação de políticas públicas. Segundo foi o aumento da pressão de órgãos majoritários sobre as cortes, sobretudo, em situações nas quais os tribunais fossem chamados a julgar questões políticas do dia-a-dia. Sob a perspectiva do desenho institucional, cita-se como ranos dois últimos parágrafos do artigo 32/A, acrescentados pela Emenda Constitucional de 1989. Disponível em: http://lapa.princeton.edu/hosteddocs/hungary/1989-90%20constitution_english.pdf.. 12 SADURSKI, Wojciech. “Postcommunist Constitutional Courts in Search of Political Legitimacy” Disponível em: https://law.wustl.edu/harris/conferences/constitutionalconf/Constitutional_Courts_Legitimacy.pdf. 13 BOND, Jonathan. “Concerning Constitutional Courts in Central and Eastern Europe”. International Public Policy Review, vol. 2, n. 2, (Novembro, 2006), p. 9. 14 DUPRÉ, Catherine. Importing the Law in Post-Communist Transitions: The Hungarian Constitutional Court and the Right to Human Dignity. Portland: Hart Publishing, 2003. p. 34: 15 LACH, Kasia; SADURSKI, Wojciech. “Constitutional Courts of Central and Eastern Europe: Between Adolescence and Maturity”. In: HARDING, Andrew; LEYLAND, Peter (ed.). Constitutional Courts: A Comparative Study. Londres: Wildy, Simmonds & Hill Publishing, 2009. p. 56

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zões do empacotamento da corte: o uso pela Corte da actio popularis, modalidade abstrata de controle de constitucionalidade, que a levou a tomar decisões sem ter noção precisa dos seus efeitos no plano prático16; e a tendência de que os cidadãos não se identificassem tão intensamente com os debates no âmbito da Corte17. Vale ressaltar que o uso de tal instrumento se dava em uma dimensão quantitativamente controlada. Em outras palavras, a Corte julgava bem menos ações do que recebia18. A postura combativa com relação aos poderes majoritários também contribuiu para sua derrocada19, o que, em teoria, não poderia ser sustentado por nenhum órgão judicial – sobretudo, em um Estado parlamentar20A gota d’água do desgaste foi a decisão que declarava a inconstitucionalidade de uma lei que pretendia criminalizar violações de direitos humanos perpetradas contra dissidentes no período comunista. Em 2010, o partido conservador deteve maioria para modificar a Constituição de 1949, utilizando-se de uma retórica anticomunista e de uma argumentação fundada em princípios de supremacia parlamentar. A Corte foi um alvo fácil para suas investidas21, a despeito de suas frágeis tentativas de resistência22. SAJOS, András. “Social Rights as Middle-Class Entitlements in Hungary: The Role of the Constitutional Court” In: GARGARELLA, Roberto; DOMINGO, Pilar; ROUX, Theunis. Courts and Social Transformation in New Democracies: An Institutional Voice for the Poor? Estados Unidos: Ashgate Publishing, 2006. p. 84. 17 Ibidem. pp. 96-98 18 Ibidem, pp. 36-37. 19 LEMBCKE, Oliver W.; BOULANGER, Christian. “Between Revolution and Constitution: The Roles of Hungarian Constitutional Court” In. TÓTH, G. A. (Ed.) Constitution for a Disunited Nation: On Hungary’s 2011 Fundamental Law. Budapest: Central European University Press, 2012. p. 276. 20 FRIEDMAN, Barry. “The Politics of Judicial Review” Texas Law Review, Vol. 84, p. 326. 21 SADURSKI, Wojciech. Rigths Before Courts: a study of constitutional courts in post-communist states of central and eastern europe. Dorderecht, Heidelberg, New York, London: Springer, 2014. pp. 10-13 22 LEMBCKE, Oliver W.; BOULANGER, Christian. “Between Revolution and Constitution: The Roles of Hungarian Constitutional Court” In. TÓTH, G. A. (Ed.) Constitution for a Disunited Nation: On Hungary’s 2011 Fundamental Law. Buda16

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Nesse contexto de ascensão conservadora e de enfraquecimento total da Corte, surge a Constituição de 2011, sinal claro do naufrágio do projeto constitucional de 1989 e da própria universalização da jurisdição constitucional.

1.2 A Derrota da Corte e a Constituição de 2011 A nova Constituição restringiu a jurisdição de dois modos23: proibição das revisões judiciais de leis que tenham impacto no orçamento, exceto se atingirem direitos fundamentais previamente listados e abolição da actio popularis.24. Do ponto de vista legislativo e constitucional, as competências e seus devidos legitimados foram profundamente alterados, mesmo nas hipóteses na quais um determinado modelo de competência foi resguardado. A primeira competência é a revisão ex ante - análise da constitucionalidade uma lei que já foi aprovada pelo Parlamento, mas ainda não foi promulgada25. Tal modelo é insuficiente para garantir a proteção efetiva dos direitos fundamentais dos cidadãos comuns. A segunda, revisão ex post26 - competência para controle repressivo, teve seu acesso restrito ao “Comissário para Direitos Fundamentais”, espécie de ombudsman eleito por uma maioria de 2/3 do Parlamento para um mandato de seis anos27, a 1/4 dos membros do parlamento e ao Governo. Desse modo, a Constituição de 2011 sepultou completamente a actio popularis, “o mais efetivo instrumento para provocar a Corte a fazer um escrutínio abstrato de normas inconstitucionais ao acesso dos cidadãos, das organizações não governamentais e de grupos de advocacia”28. O processo de controle repressivo se tornou, então, alheio pest: Central European University Press, 2012. pp. 286-289. 23 GARDBAUM, Stephen. “Are Strong Constitutional Courts Always a Good Thing for New Democracies”. UCLA School of Law Research Paper No. 15-02. Disponível em: http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2552816. 24

Idem

Sessão 23, parágrafo 1o, da Lei Orgânica da Corte Constitucional. 26 Sessão 23, parágrafo 1o, da Lei Orgânica da Corte Constitucional. 27 Artigo 30, parágrafo 3o, da Constituição de 2011.. : 28 SADURSKI, Wojciech. Rigths Before Courts: a study of constitutional courts in post-communist states of central and eastern europe. Dorderecht, Heidelberg, New York, London: Springer, 2014. p. 11. 25

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às minorias, porque a estrutura do controle de constitucionalidade abstrato ex post, foi limitada às instâncias majoritárias29. Foi criado um instrumento de controle de constitucionalidade concreto baseado na provocação da Corte por juízes de instâncias inferiores30, quando a aplicação de uma determinada lei ou regulação se revele contrária ao Texto Constitucional. Sob a perspectiva dos cidadãos atuando individualmente na provocação da Corte, manteve-se o instrumento da reclamação constitucional, ainda que ineficaz na realidade prática., O último e, talvez, mais poderoso ataque à Corte em matéria de sua abertura às demandas foi a Emenda Constitucional de 2013, que proibiu a utilização dos argumentos e das interpretações que tivessem sido utilizados em decisões da Corte anteriores à promulgação da Constituição de 2011 (art. 19 da quarta emenda). Essa foi a resposta definitiva dos poderes políticos à tentativa da Corte de se utilizar de sua antiga jurisprudência para dar significado aos novos dispositivos normativos31-32. A partir das mudanças apresentadas, por fim, é possível perceber que a reforma constitucional perpetrada pela coligação conservadora em 2011 teve por consequência transformar a Corte Constitucional em uma “pálida sombra de si própria”33.

2 A Corte Constitucional da Colômbia: uma descoberta. A criação da Corte se deu de maneira quase ocasional, por meio da Assembleia Constituinte ocorrida em 1991, resultando na promulgação da Constituição Política de 1991. No final dos anos 80, a Colômbia era um estado mergulhado na guerra civil e na criminalidade, com um sistema partidário que não representava a sociedade e de um Congresso enfraquecido diante do Executivo 29

Idem.

Artigo 24, parágrafo 2o, da Constituição de 2011 e sessão 25 da Lei Orgânica da Corte Constitucional. 31 SADURSKI, Wojciech. Rigths Before Courts: a study of constitutional courts in post-communist states of central and eastern europe. Dorderecht, Heidelberg, New York, London: Springer, 2014. p. 12 32 HALMAI, Gabor; SCHEPPELE, Kim Lane. “Amicus Brief for the Venice Comissiono n the Fourth Amendment to the Fundamental Law of Hungary” p. 79. Disponível em: http://halmaigabor.hu/dok/437_Amicus_Brief_on_the_Fourth_ Amendment4.pdf . Acessado em 25/10/15. 33 Idem. 30

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agigantado.34 A sugestão para que uma Corte fosse criada com o exclusivo propósito de tutelar a defesa dos direitos fundamentais foi uma proposta do então Presidente da República César Gaviria. Até aquele momento a jurisdição constitucional colombiana tinha como órgão de cúpula a Suprema Corte de Justiça, um tribunal com feições semelhantes ao STF e possuidor de vastas competências jurisdicionais35. O controle de constitucionalidade gozava de pouco destaque na história constitucional colombiana até 1991. A oposição pública e ativa da Suprema Corte de Justiça às inovações promovidas pela nova Carta também contribuiu para criação da Corte Constitucional 36 Para o debate da época, a criação da Corte encarnava a necessária efetividade do Texto Constitucional, representando toda uma série de “mudanças no sistema legal, incluindo o reconhecimento textual da Constituição, ao menos no papel, como lei fundamental e suprema que precisa ser protegida”.37

2.1 Uma corte voltada à defesa dos direitos fundamentais O propósito da Constituição de 1991 foi estabelecer uma Corte voltada à defesa dos direitos fundamentais do cidadão e, simultaneamente, munida com instrumentos para realizar tal fim de diversas maneiras38. A nova Carta representou uma modificação profunda na estrutura da jurisdição constitucional39. Houve uma expansão das hipóteses de revisão automática por parte da Corte; o funcionamento da chamada ação pública de inconstitucionalidade foi dilatado, incluindo mais objetos, além disso, foi estabelecido um prazo máxiLANDAU, David. “Instituciones Políticas y Función Judicial en Derecho Constitucional Comparado” Revista de Economía Institucional, vol. 13, n.o 24, primer semestre/2011, pp. 30-34. 35 CEPEDA-ESPINOSA, Miguel Luiz. “Judicial Activism in a Violent Context: The Origin, Role, and Impact of the Colombian Constitutional Court”, 3 Wash. U. Global Stud. L. Rev. 529 (2004). p 547. 34

36

Ibidem, p. 551.

NAGLE, Luz Estella. Evolution of Colombian Judiciary and The Constitutional Court. Indiana International and Comparative Law Review 6 (1995). p. 81. 38 CEPEDA-ESPINOSA, Miguel Luiz. “Judicial Activism in a Violent Context: The Origin, Role, and Impact of the Colombian Constitutional Court”, 3 Wash. U. Global Stud. L. Rev. 529 (2004). pp 546-547. 39 Ibidem pp. 552-556. 37

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mo de 60 dias para que a decisão da Corte seja proferida40. Por fim, houve uma preocupação do poder constituinte e dos legisladores de criar instrumentos como audiências públicas, assessorias técnicas e manifestações de outros Poderes, para que a ação pública de inconstitucionalidade não se tornasse um instrumento descontextualizado e para que os juízes tivessem maior consciência das consequências práticas de sua decisão.41 No âmbito do controle concentrado de constitucionalidade, o instrumento da acción de tutela foi criado para garantir uma forma de proteção no caso de violações concretas a direitos fundamentais. 42 . Dentro do escopo de tal ação, foram criadas outras espécies de proteção: a ação de cumprimento, cujo fim é obrigar autoridades administrativas a cumprir seus deveres; a ação popular, que consiste em instrumento para proteção de direitos coletivos e, por último, ação de grupo, que serve para proteger direitos de grupos sociais determinados.

2.2 A atuação da Corte Constitucional Colombiana: prudência e ativismo moderados. A criação e o aprimoramento das diversas modalidades de acesso à Corte Constitucional têm se relevado essenciais para as suas atividades . Se, anteriormente, a ação pública de inconstitucionalidade era um instrumento capturado por grupos de pressão, atualmente, a ação de tutela, em suas diversas modalidades tem servido como um dos mais importantes instrumentos para garantir os direitos dos cidadãos43. Não é possível afirmar que a Corte é um órgão marcado por uma postura imprudente ou agressiva para com os poderes políticos majoritários, tal como a Hungria. Um estudo empírico de Juan

Art. 242, parágrafo 4o, da Constituição Política de 1991. CEPEDA-ESPINOSA, Miguel Luiz. “Judicial Activism in a Violent Context: The Origin, Role, and Impact of the Colombian Constitutional Court”, 3 Wash. U. Global Stud. L. Rev. 529 (2004). pp. 556-557. 42 Art. 10 do Decreto 2.591 de 1991. 43 SOLER, Manuel Barreto; ANZOLA, Libardo Sarmiento. Constitución Política de Colombia Comentada por la Comisión de Juristas: Titulo II: De los Derechos Fundamentales, las Garantias y los Deberes. Bogotá: Comisión Colombiana de Juristas, 1997. p. 390. 40 41

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Carlos Rodríguez-Raga44 revela que, em matéria de controle abstrato de constitucionalidade, a Corte tende a ser deferente ao poder Executivo. No entanto, a ação pública de inconstitucionalidade tem sido um importante instrumento para a participação dos cidadãos na jurisdição constitucional. Grupos, tradicionalmente excluídos e movimentos sociais tem tido espaço para lutar por seus direitos. Mesmo quando não há uma vitória, por impossibilidade política, há a possibilidade “de defender seus direitos [...] não somente para desafiar uma lei, mas para ser ouvido e reconhecido”.45 Quanto à ação de tutela, a despeito da postura ativista progressiva e da proteção dos direitos fundamentais ensejadas pela atuação da Corte, houve certa cautela na concessão de tutelas, mas, conforme os cidadãos passaram a compreender o seu funcionamento, a Corte passou a ser cada vez mais deferente aos pedidos46. Atualmente, o instrumento tornou-se uma das mais importantes formas de lutar por direitos no contexto político colombiano. Podemos concluir que, em matéria de controle abstrato de constitucionalidade, a Corte tende a ser mais deferente às posições e decisões dos poderes políticos majoritários, fazendo um cálculo mais rigoroso do apoio da opinião pública e da posição dos outros poderes. Em matéria de controle concreto, no julgamento das ações de tutela, o Tribunal atua de maneira mais ativa e tende a tomar decisões que sejam mais intensas.

3 O Supremo Tribunal Federal na Constituição de 1988: um Tribunal impermeável. Análise comparativa. No Brasil, a estrutura do acesso ao STF e dos instrumentos à sua disposição para sanar violações a direitos fundamentais se conformam de maneira extremamente restritiva às discussões em torno de demandas por direitos fundamentais da sociedade civil. RODRÍGUEZ-RAGA, Juan Carlos. “Strategic Deference in Colombian Constitutional Court, 1992-2006”. In: HELMKE, Gretchen; RÍOS-FIGUEROA, Julio. Courts in Latin America.Cambrdige: Cambridge University Press, 2011. pp. 81-98. 45 ITURRALDE, Manuel. “Access to Constitutional Justice in Colombia: Opportunities and Challenges for Social and Political Change” In: MALDONADO, Daniel Bonilla (ed.) Constitutionalism of the Global South. Cambridge: Cambridge University Press, 2013. p. 384. 44

46

Idem. p. 380.

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Do ponto de vista quantitativo, em estudo da FGV47, a atuação do STF é dividida em em três diferentes cortes fundidas em uma única instituição: corte constitucional; corte recursal e corte ordinária (residual). Dentro do número total de processos que chegaram ao STF entre 1988 e 2009, os que dizem respeito a sua persona de corte constitucional perfazem a pequena quantia de 0,51% (6.199 processos). A maior parte dos processos movidos no STF tem origem na litigiosidade do Poder Público e não na luta por direitos da sociedade civil. Hoje, diversos argumentos são levantados para justificar a tímida atuação do STF na defesa dos direitos fundamentais. Primeiro, sob uma perspectiva processual, existem poucos instrumentos efetivos para alcançar diretamente o Tribunal em matérias que envolvam a proteção de direitos fundamentais – e não há nenhuma garantia que mesmo que se alcance a Corte, haverá uma efetiva tutela do direito em jogo.48 Ademais, o número gigantesco de processos na pauta da Corte leva a uma estrutura que não é capaz de filtrar eficientemente os processos envolvendo tais temas49. Segundo, não há estruturas de suporte efetivas para os grupos interessados em iniciar processos voltados à proteção de direitos fundamentais. Passamos à análise da Corte às experiências da Hungria e da Colômbia à luz dos problemas do STF. É possível afirmar que tanto o fracasso da Hungria quanto o sucesso da Colômbia revelam que não é possível pensar as partes do sistema de controle de constitucionalidade de um país de maneira estanque e que a aposta em um predomínio de uma ou de outra, deve ser acompanhado de uma reflexão profunda sobre os efeitos que uma mudança pode ter no sistema como um todo. FALCÃO, Joaquim; CERDEIRA, Pablo de Camargo. ARGUELHES, Diego Werneck. “I Relatório Supremo em Número: O Múltiplo Supremo”. Disponível em: http://www.fgv.br/supremoemnumeros/publicacoes.html. 48 DIANA, Kapiszewski. “Power Broker, Policy Maker, or Rights Protector?”. In: HELMKE, Gretchen; RÍOS-FIGUEROA, Julio. Courts in Latin America. Cambridge: Cambridge University Press, 2011. pp. 170-171. FREIRE, Alonso. Desbloqueando os Canais de Acesso á Jurisdição Constitucional do STF: por que não também aqui uma revolução de direitos?” In: SARMENTO, Daniel. (org.) Jurisdição Constitucional e Política. Rio de Janeiro: Forense, 2015. pp. 625-627. 49 Disponível em: http://www.scc-csc.gc.ca/case-dossier/stat/sum-som-eng.aspx. Acessado em 14.10.15. A Corte Constitucional da Alemanha recebeu 6.811 processos, tendo proferido 6.589 decisões. Dados disponíveis em: http://www.bundesverfassungsgericht.de/SharedDocs/Downloads/EN/Statistik/statistics_2014. pdf?__blob=publicationFile&v=3. 47

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Como exemplo disso, tem-se a criação da ação de tutela mencionada, voltada à tutela efetiva de direitos fundamentais, capaz de gerar uma cultura de direitos – respondendo à inefetividade do modelo abstrato de controle de constitucionalidade existente na Colômbia até 1991. Por outro lado, a extinção da actio popularis abstrata, na Hungria, e sua substituição por um modelo de reclamações constitucionais concretas teve o propósito de reduzir a força da Corte Constitucional húngara. A relação entre controle concreto e abstrato, portanto, é delicada e deve ser pensada sempre de maneira reflexiva. Em outras palavras, o sistema jamais pode ser problematizado em partes, visto que sua existência se dá como um todo. Assim, podemos afirmar que, via de regra, a tutela de direitos fundamentais precipuamente fundada no controle concentrando de constitucionalidade tende a variar entre dois extremos. Por um lado, nos cenários de uma corte constitucional pouco prudente, apresenta-se o risco de ser um incentivo institucional a combates constantes entre o tribunal e os poderes majoritários. Por outro lado, nos cenários de uma suprema corte com competências excessivas, pode gerar uma inefetividade da jurisdição constitucional, servindo apenas como uma resposta retórica a violação de direito fundamentais.

Conclusão De modo geral, o que se pretendeu demonstrar no caminho percorrido foi a necessidade de realizar estudos contextualizados, voltados a encontrar tendências sobre temas importantes no Direito Constitucional contemporâneo, tais como o grau de abertura da jurisdição constitucional e os instrumentos voltados para tanto. O intuito de tais estudos é realizar um diálogo entre diferentes realidades constitucionais que compartilhem de problemas comuns e que, por conseguinte, podem aprender profundamente umas com as outras, sem que com isso percam sua autonomia ou particularidade. O caminho para os diálogos transconstitucionais deve ser trilhado entre a fidelidade às próprias experiências nacionais e a curiosidade institucional com relação ao que se produz em outros lugares do mundo.

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PARTICIPAÇÃO E REPRESENTATIVIDADE: A DESVINCULAÇÃO ENTRE O DISCURSO DE CRISE E A AMPLIAÇÃO DOS INSTRUMENTOS DE DEMOCRACIA PARTICIPATIVA Desirée Cavalcante Ferreira1 Introdução Crise de representatividade tem sido uma expressão largamente utilizada para descrever o período de contestações por que tem passado as instituições políticas ocidentais. De fato, visualizam-se manifestações e protestos em várias partes do mundo, bem como modificações constitucionais que buscam reestruturar as instituições políticas. Em meio à aparente apatia de grande parte dos eleitores, à desconfiança acerca da moralidade das instituições e da capacidade de elas atenderem às demandas de uma sociedade cada vez mais complexa, passou-se a clamar pela falência do sistema representativo e pela ascensão de um modelo de democracia que prestigie a participação direta dos cidadãos. Ao mesmo tempo, são rememoradas as dificuldades práticas de um modelo de democracia direta e visualizadas reações negativas à implementação de medidas que buscam ampliar os espaços de participação da sociedade na política estatal, chegando-se, muitas vezes, a tratar a democracia representativa e a democracia participativa como realidades incompatíveis ou opostas. Ademais, mesmo entre os defensores do modelo participativo de democracia, muitas vezes os discursos são trabalhados no sentido de apresentá-lo como uma superação da representatividade, o que norteado sob o discurso de crise. Ocorre que os instrumentos de democracia participativa não são servíveis apenas a realidades políticas em corrosão, ao contrário, experiências de países com acentuado nível de desenvolvimento humano e institucional apontam a ampliação da participaMestranda em Direito (Ordem Jurídica Constitucional) pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Brasil. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). [email protected].

1

https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V01_A18

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ção popular como estágio renovado da representatividade, no qual os cidadãos buscam maior identificação com as práticas da vida comum, indicando não uma superação do modelo representativo, mas uma renovação. Renovação, ressalte-se, que é inerente à própria democracia representativa e que ocorre independentemente de crise. Prova disso, no Brasil, a Constituição de 1988 previu que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”, dispondo, ainda, dos meios de participação popular, no contexto de redemocratização do Estado em que se enfatizava a importância de assegurar o caráter político representativo das instituições e, em especial, o sufrágio universal. Dividido em duas partes, o artigo visa demonstrar a desvinculação do discurso de crise de representatividade da defesa da ampliação dos espaços de democracia participativa. Na primeira parte, serão analisados os princípios da democracia representativa, analisando as transformações desse modelo político e a permanência dos seus pressupostos diante dos discursos que alegam a existência de uma crise; na segunda parte, será analisada a compatibilidade do modelo participativo com o modelo representativo brasileiro, em que se pretende demonstrar que não há indícios de sobreposição de um pelo outro.

1. A democracia representativa 1.1 Desenvolvimento A democracia representativa tem sua origem histórica relacionada ao surgimento de sociedades de massa e dos Estados modernos com grandes extensões territoriais, em que não se visualizava a possibilidade de exercício direto do poder pelo povo. Sieyès (2002) foi defensor do modelo representativo de governo, chegando a afirmar que ele seria não apenas o mais adequado para o modelo de sociedade comercial que se formava (societé commerçante), mas o mais desejável, na medida em que a divisão do trabalho e a ocupação com os afazeres privados fazia com que grande parte da população não tivesse tempo, conhecimento ou interesse no exercício da função política, que deveria, desse modo, ser profissionalizada.

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Pasquino (1987) dissertou sobre a influência que essa visão econômica da sociedade marcada pela divisão do trabalho descrita por Sieyès teve no pensamento de Benjamin Constant, para quem as sociedades modernas se afastam do quadro existente nas sociedades antigas, marcadas pelo exercício coletivo e direto da soberania, possibilitado pela pequena extensão territorial dos países e pelo consequente reduzido número de cidadãos; pela existência da escravidão; pelo caráter bélico; e pela ausência de um sentimento de independência individual. Nas sociedades modernas, entretanto, além da ampliação territorial e populacional, houve a universalização do trabalho decorrente do fim da escravidão. Tanto para Sieyès quanto para Constant, segundo Pasquino (1987), a ascensão da atividade comercial, que ao contrário da atividade militar não cessa e exige o permanente esforço de seus realizadores, também proporcionou o surgimento de um sentimento de independência individual. De tal modo, criaram-se as bases do modelo político no qual o povo se desencarrega das funções que não quer ou não pode ser realizadas por ele mesmo, autorizando que sejam concretizadas por meio de representantes. Pensamento semelhante foi elaborado, em data mais recente, por Weber (2011), para quem a marca do Estado moderno era a concentração dos meios políticos, oriunda do desejo dos governantes de expropriar os poderes privados independentes, em paralelo ao desenvolvimento do capitalismo. Para ele, ao longo do processo de expropriação do poder na formação do Estado moderno, surgiu a classe dos políticos profissionais, os quais, em um primeiro momento, buscavam apenas riqueza e prestígio ao trabalhar para o príncipe, tendo sido os responsáveis pelo desenvolvimento da noção de que o exercício da política é realizado de maneira ocasional (por meio do voto periódico). Para Weber (2011), para que se pudesse fazer da política um fim da vida do indivíduo, era necessária a comunhão de critérios plutocráticos: que o indivíduo fosse economicamente independente das vantagens que a atividade política pudesse lhe proporcionar e que fosse economicamente disponível, não tendo que voltar toda a sua capacidade de trabalho e pensamento à consecução da subsistência. Nesses termos, visualiza-se a formação de correntes de re-

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presentação marcadas pelo afastamento do cidadão da arena de disputas políticas, de tal forma que a ele caberia, primordialmente, o exercício do direito ao voto, visto como a principal forma de controle dos representantes, esses sim capacitados e experimentados para tratarem de políticas públicas. Pitkin apud Faria (2014) define como minimalista essa visão de representação que transforma o parlamentar em agente técnico, ao mesmo tempo em que toma a grande massa de cidadãos como ignorante e incapaz de participar das definições de políticas públicas. Para ela, a sociedade pode participar do processo político, pelo menos, de três formas: elegendo os representantes; acompanhando os seus trabalhos; e manifestando constantemente os seus interesses. Desse modo o modelo representativo marcadamente liberal é atacado por correntes participativas e deliberativas, que enfatizam, respectivamente, uma maior atuação dos indivíduos nos espaços políticos e a necessidade de ampliação dos debates públicos. Sob o discurso de que o Estado não consegue atender às demandas sociais e de que o jogo de interesses privados prevalece sobre o interesse público nos Parlamentos, há algumas décadas, fala-se em crise de representatividade, que seria suplantada por meio da instauração de instrumentos de maior participação popular na tomada de decisões do Estado. Manin (1995, 01) destaca que se tinha a noção de que a representatividade era fundamentada em uma “forte e estável relação de confiança entre o eleitorado e os partidos políticos; a grande maioria dos eleitores se identificava com um partido e a ele se mantinha fiel”. Quadro esse que não condiz com a realidade da maioria dos Estados ocidentais, em que grande parte dos eleitores muda o posicionamento acerca do voto de uma eleição para outra, ou em períodos de tempo ainda menores, revelando pouca identificação com partidos políticos específicos. A estratégia eleitoral da atualidade, para Marin (1995), é pautada na tentativa da construção de imagens de personalidades políticas com o uso de meios de comunicação de massa e não no suporte de correntes ideológicas específicas. Diagnóstico esse que se assemelha ao de Chauí (2007, 27-28) para quem se vivencia um período de esquecimento da política, norteado pela privatização do espaço público, que tem como um dos aspectos o surgimento do “marketing político”, caracterizado pela busca de se “vender a

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imagem do político e reduzir o cidadão à figura privada do consumidor”. Esses fatores seriam os responsáveis pela aparente apatia política de grande parte da sociedade, revelada, não apenas na falta de engajamento político-partidário, mas, também, nos índices de abstinência eleitoral ou mesmo nos votos em branco. Em linhas gerais, esses seriam os moldes da alegada crise de representatividade.

1.2 As modificações Ao mesmo tempo em que se intensificam as alegações de existência de uma suposta crise de representatividade, há quem, como Bobbio (2000), defenda a inexistência de crise, mas de problemas práticos que incitam o ajuste na forma de exercício da democracia. Isso porque a existência de uma crise sinalizaria a busca pela superação de um modelo, não pelo seu fortalecimento. A democracia representativa, na realidade, passou por importantes modificações ao longo do tempo. De acordo com Manin (1995), a mudança mais evidente se refere à expansão do direito ao sufrágio, que se desenvolveu em paralelo à emergência dos partidos de massa. O autor explica que o governo representativo moderno foi estruturado, inicialmente, sem a presença de partidos. Na verdade, a divisão política em facções era vista com suspeitas, chegando a ser considerada um risco para o desenvolvimento democrático que estava se estabelecendo. Somente a partir da segunda metade do século XIX, passou-se a sedimentar a presença de partidos políticos como intermediários da expressão da vontade dos eleitores e elemento central para a democracia. Com o desenvolvimento dos partidos, passou-se, então, a valorizar a instauração de programas políticos, que passaram a ser um dos principais instrumentos da competição eleitoral, na medida em que relacionava os eleitores a uma ideologia ou a um projeto de governo determinado. A vinculação a uma política partidária é que permitia aos eleitores manter alguma forma de controle dos representantes fora do período eleitoral. Curioso observar que, naquele período histórico, essa mudança na forma de organizar o governo representativo foi enfrentada por muitos analistas como uma crise da representação.

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O protótipo do governo representativo era, então, encontrado no “parlamentarismo” ou no “parlamentarismo liberal”, do qual o sistema inglês, na forma que assumiu até cerca de 1870, era tido como o exemplo mais acabado. No início do século XX, multiplicaram-se as análises sobre uma “crise do parlamentarismo”. Mas, com o tempo, tornou-se claro que, embora a emergência de partidos de massa tivesse ocasionado a falência do parlamentarismo, o governo representativo não estava agonizando. (Manin, 1995, 02).

Estruturada a organização política em forma de governos de partidos, admitiu-se a existência de uma modificação na relação de representação. Uma modificação, não uma superação. O modelo representativo, longe de ter ruído, absorveu as mudanças sociais, especialmente a alteração na extensão do direito ao voto, e se fortaleceu. O governo de partido se amparava na busca de maior identificação social e cultural entre os representantes e os representados, dando um aspecto maior de proximidade com o ideal de autogoverno do povo do que o modelo parlamentarista anterior. Notória, portanto, as semelhanças estabelecidas entre esse momento e os discursos de crise que são rotineiramente alardeados na atualidade. É destacável, portanto, que, naquele período, não havia uma crise do governo representativo, o qual, na realidade, se mantém firme, tendo, inclusive, passado por período de reforço no período pós-guerra, quando se expandiram as demandas por concretizações de direitos fundamentais, especialmente os de cunho social, cultural e econômico. Hoje a crise de representação é expressa por demandas de maior participação popular nas decisões sobre políticas públicas. Entretanto, essas demandas não apontam para um abandono de formas de representação. Tal qual ocorrido no século XIX, o que se denota é a modificação de um tipo específico de governo representativo, não uma crise da representatividade em si. Críticas à capacidade dos partidos políticos se manterem filiados aos representados por meio de ideais ou projetos são trabalhadas há muitos anos. Weber (2011) destaca que as lutas partidárias deixaram de se voltar para a consecução de metas objetivas e passaram a se destinar ao controle da distribuição de empregos. Para ele, a empresa política dirigida por partidos não passa, em ver-

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dade, de uma empresa de interesses. Percebe-se, portanto, que o discurso de crise que parece descrever uma situação muito recente, na verdade, trabalha um percalço do próprio modelo político adotado, o qual, por limitações inerentes a ele, sempre demanda alguma forma de aprimoramento. Tais aprimoramentos não representam, porém, formas de ruptura, mas de avanço. Manin (1995) destaca que os quatro princípios basilares da representatividade – eleição dos representantes pelos governados; independência parcial dos representantes em relação às preferências dos eleitores; manifestação da opinião pública sobre assuntos políticos independentemente do controle do governo; e as tomada de decisões políticas após debate - não foram afetados pela mudança do modelo representativo parlamentar para o partidário e tampouco têm sido abalados na mudança para o que denomina de uma “democracia de público”. Na realidade, tais princípios são reconhecidos como constantes na história do governo representativo, ainda que tenham tido variação de interpretação e implicação de acordo com o local e momento histórico. A identificação eleitoral que se distanciou da intermediação partidária e se atrela diretamente à imagem do candidato, o que justifica, em certa medida, a mudança no modo do voto de uma eleição para outra, e aparenta uma crise, vez que rompe com o que, até então, parecia ser a forma normal de se estabelecer o governo representativo, na realidade demonstra ser apenas o distanciamento de uma forma específica de representação (a democracia de partido). Não que se afirme que haverá, necessariamente, o fim dos partidos políticos, mas o papel deles tem sido sensivelmente alterado. Para Manin (1995), essa mudança se justifica por duas causas: a primeira, o fato de os canais de comunicação política permitirem que os representantes falem diretamente com os eleitores; e a segunda, as novas condições de exercício do poder, em que é dada ênfase na imagem individual dos políticos em detrimento de plataformas políticas, especialmente porque o âmbito das atividades do governo foi estendido consideravelmente, dificultando o detalhamento e o cumprimento de programas de governo. A imprevisibilidade do cumprimento da plataforma política deixa ainda mais revelado o aspecto da independência decisória dos governantes em relação aos seus eleitores. Tal independência,

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no entanto, não é confundida com irresponsabilidade, de modo que permanece o papel fundamental dos eleitores de destituir os representantes. Uma nova forma de manifestação política, que tem como polos o eleitor flutuante de um lado e o meios de comunicação de massa do outro é extremamente notável. A insistência na ideia de uma crise de representação se deve à visão de que o governo representativo vem se afastando da ideia de governo do povo pelo povo. No mesmo sentido, posiciona-se Urbinati (2005, 02) ao afirmar que “a democracia representativa não é nem aristocrática nem um substituto imperfeito para a democracia direta, mas um modo de a democracia recriar constantemente a si mesma e se aprimorar”. Para a autora, a representação é mais do que um contrato de delegação ou de nomeação, na medida em que é próprio de sua natureza ser “constantemente recriada e dinamicamente ligada à sociedade”. (Urbinati, 2005, 05). A representação, nesse sentido, não pode ser compreendida como um processo de confinamento de decisões no Parlamento, tendo de estar em constante interação com a sociedade, seja por meio da mídia, dos partidos políticos ou dos movimentos sociais. Por isso, uma teoria democrática da representação deve conseguir explicar, além dos seus elementos de continuidade, as mudanças. (Urbinati, 2005). Reforçando esse posicionamento, Lavalle et al. (2006, 67), defendem que “o decorrer do tempo tornou claro que os partidos de massas não ruíram o governo representativo, antes, acabaram nele incorporados alicerçando sua permanência sob novas condições históricas”. Isso quer dizer que os partidos de massa e as plataformas políticas, diferente do que se imagina, são apenas uma forma específica de representatividade. Mesmo diante do cenário descrito na atualidade, percebe-se que os princípios basilares da representatividade permanecem e se rearranjam de modo a fortificar a democracia.

2 A democracia participativa O pensamento de que a mudança nas formas de expressão do governo representativo são indicadores de crise levaria à inevi-

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tável constatação de que a democracia participativa é um tipo que se sobrepõe à representativa, atacando as suas bases estruturantes. Entretanto, o modelo participativo já normatizado no Brasil não aponta um ataque a essas estruturas, de todo ao contrário, foi pensado como um complemento a ela, com fins de fortalecê-la. Silva e Faria (2015), discorrendo sobre a relação entre participação e democracia no Brasil, destacam que o marco da discussão acerca da participação social se deu em concomitância com o da representação política, durante o período de lutas pela redemocratização a partir da década de 1970. A dizer, ao mesmo tempo em que se fortalecia a crença nas instâncias tradicionais de participação que se conciliavam com a representação, tais como o voto, as eleições diretas e os partidos políticos, iniciava-se um discurso acerca da necessidade de ampliação dos canais de participação que possibilitassem à sociedade exercer maior controle sobre as decisões coletivas. Prova disso, no próprio processo constituinte de 1987 houve significativa participação popular, que buscava consolidação e a alcançou em forma de princípio constitucional atrelado à representatividade. Silva e Faria (2015) identificam, pelo menos, três momentos diferentes no que se refere à relação da participação com a representação no Brasil: o primeiro, entre os anos de 1970 até 1988, caracterizado como uma oposição ao regime militar, marcado pela polarização com a representação, de modo que se buscavam meios de participação popular para ensejar o sistema representativo; o segundo, ao longo dos anos 90, em que se institucionalizaram os arranjos participativos, especialmente no que se refere à elaboração de políticas públicas; e o terceiro, a partir dos anos 2000, marcados pela autocrítica dos arranjos participativos, cuja expressão mais recente foi o decreto presidencial nº 8.243 de maio de 2014, que tratava da oficialização da Política Nacional da Participação Social (PNPS) e do Sistema Nacional de Participação Social (SNPS). O primeiro momento de desenvolvimento forte do ideal de participação no Brasil, portanto, estava atrelado a um movimento ligado à busca de autonomia e confronto aos abusos do governo militar. Buscava, essencialmente, a restauração das instâncias democráticas de representatividade. Nesse contexto, a participação era percebida como parte de um movimento espontaneísta, ligado à perspectiva de auto-

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nomia. As interpretações a seu respeito consideravam que a participação promoveria uma mudança na cultura política. E as críticas já presentes, indicavam que o caminho para a democracia no país não poderia se desvincular da perspectiva da representação para atingir seus objetivos. (Silva e Faria, 2015, 07)

O autogoverno direto no Brasil foi, portanto, estruturado com atrelamento às instâncias de representação, o que é notório ao se perceber que todos os instrumentos de participação previstos no artigo 14 da Constituição dependem da participação, autorização ou convocação das instâncias representativas. Talvez por isso, conforme Silva e Faria (2015) destacam, esses instrumentos de participação direta foram preteridos ao longo da história constitucional recente do Brasil, visto a sua pouca utilização em comparação a outras formas de participação, como a formação de Conselhos ou Conferências que versam sobre políticas públicas ou orçamento participativo. O momento de autocrítica dos movimentos participativos se refere à explicitação da discussão em torno da disputa sobre o significado da participação em projetos políticos rivais. Denunciam-se as concepções de participação e representação com projetos antagônicos e os discursos de que os espaços participativos têm a finalidade de suplantar os espaços de representação. Na realidade, com a maior participação popular se busca reoxigenar os processos decisórios ou se incorporar um maior número de pessoas no processo de elaboração de políticas públicas. De tal modo, são carentes de suportes legal e teórico as alegações de que as práticas de participação visam à instauração de uma democracia direta, com a derrocada das instâncias de representação. Ao mesmo tempo, esse processo de autocrítica revela os inúmeros desafios de alcance desses instrumentos de participação, inclusive, no que se refere às deficiências desses meios, que, tal qual o governo representativo, também deixam espaços para aprimoramentos e renovações. Assim, é possível perceber que os discursos que apontam crises – da democracia, da política, da representatividade ou dos partidos – na verdade se referem a manifestações de um processo natural de mudança no sistema representativo, que é contínuo e

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não ameaça a sua permanência. Alkmin (2013, 71), no entanto, em sentido exposto ao defendido no presente trabalho, considerando os paradoxos inerentes à representação política - desenvolvidos, sobretudo, a partir dos trabalhos de Hanna Pitkin - compreende ser impossível a coexistência harmônica entre representação e participação popular, na medida em que, considerando as experiências empíricas já realizadas, do ponto de vista político e social, sempre haverá a predominância de um sobre o outro. Na realidade, para o autor, “o aprofundamento da democracia direta, no contexto das democracias liberais parece levar, no seu limite, não a uma acomodação e equilíbrio mesmo que dinâmico do sistema político, mas ao esgarçamento do paradoxo lógico da representação”. Alkmin (2013, 68) resume o paradoxo da representação política por pontos como: a impossibilidade de sustentação da formulação lógica da representação política, pois a vontade não é representável; a não coincidência das identidades dos representados e dos representantes; a obscuridade do sufrágio universal secreto; a impossibilidade de pactos políticos terem valor para gerações futuras; a existência de centros de gravidade do poder; a atomização e a serialização do eleitorado que impede a formação de uma consciência coletiva. Assim, a discussão da relação entre representantes e representados é destacada pelo autor pela identificação das tentativas de se criar instrumentos de estreitamento dessa relação, no entanto, a seu ver, as práticas estabelecidas não se sustentam e confirmam, na verdade, a sobreposição da representação em relação à participação. Além disso, destaca o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa como um fator que torna ainda mais incipiente a participação política, na medida em que “a mídia se apresenta e representa, assumindo funções de intermediação de interesses, pressão”. (Alkmin, 2013, 71) Desse modo, para Alkmin (2013), não haveria como compatibilizar, na prática, participação e representação sem aprofundar os paradoxos mencionados. Ele menciona o caso dos Conselhos Municipais que, no Brasil, acabaram se tornando esferas burocráticas, sem capacidade de ação efetiva e, muitas vezes, controladas pelo Executivo Municipal. Considera-se, porém, o fato de, dentre os mecanismos que ampliam os espaços de expansão da participação popular, estarem

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sendo formados novos mediadores para exercer a função de representação política. Mudaram-se os espaços e ampliaram-se os atores coletivos, mas, de fato, continua-se a seguir uma lógica de representação. (Lavalle et al. (2006) Com maior precisão, a representação exercida por atores da sociedade civil é coletiva e ocorre através de um conglomerado heterogêneo de organizações civis que atuam em nome de subpúblicos e/ou minicomunidades, diferindo da representação de interesses pessoais ou de indivíduos, própria da democracia liberal, sem corresponder, no extremo oposto, com a representação do bem comum ou obediência sobre a população, se for preciso. Seus limites são outros, mas nesse aspecto, a representação coletiva é, no fundamental, pressão, controle, supervisão, intervenção, assédio e reclamo perante o poder em instâncias executivas de políticas e em espaços de interlocução. (Lavalle et al., 2006, 87).

Desse modo, o fato de os canais de participação não representarem um caminho em direção ao esgotamento das instâncias de representação apenas reforça a ideia ora defendida, segundo a qual a sua ampliação não depende da identificação de uma crise da representação política. A possibilidade prática de conciliação entre participação e representação, ainda que seja trabalhada por Alkmin (2013), hipoteticamente, como inconciliável, não foi empiricamente rechaçada. Na realidade, é notável que o modelo político brasileiro concilia formas de governo representativo e participativo. Na verdade, a democracia representativa pressupõe a capacidade de assimilação de novas formas de canalização das demandas sociais, permitindo-se uma constante modificação e evolução, o que passa, também, pela constante autocrítica das instituições e dos canais de participação política.

Conclusão O desenho institucional dos Estados contemporâneos aponta para a necessidade de serem ampliados os espaços de participação popular, não no sentido de substituir as instâncias representativas ou de colocar nas mãos da sociedade civil a decisão sobre toda

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e qualquer questão de interesse público, mas de modo a criar mecanismos de maior interação entre representantes e representados. Realidade essa que não é diferente no Brasil, onde a própria Constituição foi estruturada a no sentido permitir a conciliação de ambas as formas de exercício do poder político. A ampliação da participação popular, portanto, precisa ser trabalhada como uma forma de aprimoramento da democracia representativa, e não como o seu contraponto, mesmo porque sofre, igualmente, de limitações, muitas delas semelhantes às do modelo representativo, como a capacidade de conciliar interesses heterogêneos e de manipulação da expressão da vontade. Por outro lado, deve ser considerada como um meio de aprimoramento, decorrente de uma demanda de maior integração popular no exercício da política e de aprofundamento democrático do sistema representativo, não como um fator de usurpação de poder político concedido aos representantes eleitos. Assim sendo, não se visualizam sinais de crise de representação, pois não se busca a modificação nas estruturas basilares desse sistema, apenas a sua ampliação, com vias de fortalecimento.

Referências ALKMIN, Antonio Carlos. O paradoxo do conceito de representação política. In: Teoria & Pesquisa Revista de Ciência Política. Vol. 22, n. 1, p. 5671, jan./jun. 2013. Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2015. BOBBIO, Noberto. O futuro da democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. CHAUÍ, Marilena. O que é política? In: NOVAIS, Adauto. Org. O esquecimento da política. Rio de Janeiro: Agir, 2007. FARIA, Cristiano Ferri Soares. O Parlamento aberto na era da Internet: pode o povo colaborar com o Legislativo na elaboração de leis? 3. reimpr. Série temas de interesse do Legislativo. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2014. LAVALLE, Adrián Gurza. HOUTZAGER, Peter P. CASTELLO, Graziela. Democracia, pluralização da representação e sociedade civil. In: Lua

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Nova. São Paulo, 67: 49-103, 2006 MANIN, Bernard. As metamorfoses do governo representativo. 1995. Disponível em: . Acesso em: 06 jun. 2015. PASQUINO, Pasquale. Emmanuel Sieyes, Benjamin Constant et le . Contribuition à l’histoire du concept de représentation politique. In: Revue française de science politique, 37e année, nº 2, 1987, pp. 214-229. SIEYES, Emmanuel-Joseph. Qu’est-ce que le Tiers état? Éditions du Boucher. Paris, 2002. SILVA, Mayra Goulart. FARIA, Alessandra Maia Terra de. A ideia de participação no Brasil e na Venezuela: o espaço como dimensão necessária das dinâmicas de transformação do poder. 2015. II Encontro Internacional Participação, Democracia e Políticas Públicas. UNICAMP, Campinas/SP. Disponível em: . Acesso em: 02. jun. 2015. URBINATI, Nadia. O que torna a representação democrática? In: Lua Nova. São Paulo, n. 67, 2006. WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. 18. ed. São Paulo: Cultrix, 2011.

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A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SIMETRIA CONSTITUCIONAL: UMA ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A CONSTITUIÇÃO ESTADUAL DO MARANHÃO José Guimarães Mendes Neto1 1. O princípio da simetria constitucional segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal O artigo 25 da Constituição Federal Brasileira disciplina que os Estados podem organizar-se e reger-se por constituição e lei própria, desde que respeitados os princípios da Carta de 1988. No entanto, não explicita de quais princípios fala, abrindo margem para a sua definição no exercício da jurisdição constitucional. Nesse processo, observa o contínuo recurso ao princípio da simetria para segmentar o que deve e o que não necessita ser reproduzido nas constituições estaduais. Por tal razão, este capítulo propõe reconstruir o seu conceito a partir da jurisprudência constitucional. O principal objetivo de tal perquirição está na obtenção do posicionamento do referido órgão em relação ao princípio da simetria constitucional quando em confronto a reprodução de normas e a autonomia para legislar dos Estados. Com base na conceituação abstraída das decisões do STF, será possível saber se a Corte se posiciona: (1) no sentido da irrestrita reprodução do que dispõe a Carta Brasileira; ou se (2) no sentido do exercício da autonomia dos Estados Membros em detrimento da obrigatória reprodução de normas constitucionalmente pré-estabelecidas. O exame do conceito de simetria constitucional se deu em uma perspectiva, qual seja, a de avaliar qualitativamente os fundamentos utilizados pela Corte a fim de conceituá-lo. O estudo das decisões selecionadas se deu por meio de pesquisa no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal, utilizando-se os termos de pesquisa “princípio” e “simetria”, o que resultou num total de 115 (cento e quinze) decisões, sendo 1 (uma) delas considerada como “repercussão geral” pelo STF. Acadêmico do Curso de Graduação em Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco (UNDB-MA), Brasil. E-mail: [email protected]

1

https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V01_A19

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Assim sendo, consideradas as decisões filtradas e avaliando os fundamentos utilizados pelo STF quando este se ampara no princípio da simetria, percebe-se que a atuação do STF quanto ao tema vem acompanhada de um desejo de prudência, pois a Corte, ao preterir a autonomia dos Estados Membros em favor do princípio da simetria, parece pretender evitar que arranjos institucionais desprovidos de qualquer razoabilidade possam ser praticados por parte dos estados e municípios. Porém, o STF, ao agir assim, acaba por impedir que a forma federativa do Estado Brasileiro tenha garantido uma de suas funções primordiais, qual seja a de permitir que as experiências inovadoras venham a ser exercidas nos governos locais, bem como, se bem-sucedidas, passem a ser vistas como modelo a ser adotado pelas instituições nacionais (SOUSA NETO, SARMENTO, 2012, p. 334). A partir da pesquisa realizada pode-se afirmar que não há uma aplicação retilínea do princípio da simetria no STF. Neste sentido, também entende o professor Léo Ferreira Leoncy (2011, p. 149-150). Segundo ele, pode parecer ser uma tarefa impossível ou, no mínimo, desafiadora ter conhecimento, na prática, do que verdadeiramente motivou o STF a decidir desta ou daquela forma quando se trata de compreender suas decisões com fundamento no princípio da simetria. Contudo, é possível, desde a interpretação das decisões coletadas, construir um conceito de simetria constitucional conforme a Corte nas hipóteses de sua incidência, considerando as premissas recorrentes. Do voto proferido na ADI 2.872/PI pelo Ministro Menezes Direito, tem-se que adotar o princípio da simetria, limitando o exercício da autonomia dos Estados Membros, somente nas hipóteses em que as matérias veiculadas ataque algum princípio considerado sensível ou mesmo a organização do Estado nacional. Além do mais, a liberdade dos Estados Membros para com o exercício de sua autonomia deverá ser garantida, exceto nas hipóteses sobre as quais se configure uma violação ao direito público vinculado, principalmente a realização de algum ideal social, ou mesmo, a de uma organização estatal (BRASIL, 2011). Posteriormente, por ocasião do voto proferido pelo Ministro Mauricio Corrêa na ADI 738-6/GO, recorta-se que a observância pelos Estados Membros para com este princípio deve ser dada, sobretudo, quando o tema se referir a matérias que digam respeito a

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direitos e garantias individuais dos cidadãos (BRASIL, 2002). Por último, na ocasião da Medida Cautelar em ADI nº 4298/ TO, o Ministro Cezar Peluso destaca-se o princípio da simetria como uma “construção pretoriana tendente a garantir, quanto aos aspectos reputados substanciais, homogeneidade na disciplina normativa da separação, independência e harmonia dos poderes, nos três planos federativos” (BRASIL, 2009). Com base nisso, pôde-se concluir que o princípio da simetria deve ser adotado para limitar a autonomia dos Estados Membros, a fim de que estes últimos observem, no âmbito local, o que foi estabelecido para o âmbito federal, principalmente quando se quer garantir aspectos substanciais da República Federativa Brasileira, como, por exemplo, matérias referentes a direitos e garantias individuais dos cidadãos, ao princípio da separação, harmonização e independência dos poderes, bem como para o respeito de princípios sensíveis e da organização do Estado.

2. A autonomia dos estados membros como característica do federalismo, com ênfase ao poder de auto-organização dos entes federados O Estado Federal é apenas uma das formas de “distribuição geográfica de poder político” em razão de um determinado espaço territorial, uma vez que, além desta, ainda existem as formas unitárias, regionais e confederativas (FERNANDES, 2011, p. 586). O modelo federal passa a tomar fortes impulsos ao ponto de se sobrepor frente aos demais, e a razão para tanto estaria no enfraquecimento da lógica da Confederação, assim como a verificação da necessidade de uma descentralização do poder político frente à conjuntura dos demais entes que compusessem o Estado, desde que isso em nada comprometesse o conjunto e a união. O Estado Federal se caracteriza como a forma de Estado em que a repartição geográfica do poder político se dá entre um ente dotado de soberania e outros dotados de autonomia, ou seja, é o modelo que se ocupa em viabilizar as autonomias constitucional, legislativa, administrativa, democrática e judicial dos entes federados em maior proporção (BARACHO, 1986, p. 315). Deve-se prontificar esta autonomia dos Estados Membros como um elemento essencial para a configuração do Estado Federal, uma vez que nos outros modelos coisa igual não se é prevista

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(HORTA, 2010, p. 329). Na Confederação, por exemplo, não há o exercício da autonomia, mas sim da soberania propriamente dita. No Estado Unitário, existe a participação desvinculada do polo central emanador de normas, entretanto ela apenas se dá quanto ao aspecto das competências administrativas, excluindo-se as legislativas. Portanto, a dotação de autonomia aos Estados Membros, para que estes exerçam atividade participativa direta, acaba sendo uma peculiaridade não só própria, mas, principalmente, de importância para um Estado de forma federal. Lembra-se, porém, que a mesma, apesar de essência do federalismo, não lhe é privativa (ASSUMPÇÃO, 1963, p. 38). Assim sendo, a autonomia se revela como capacidade da qual determinados entes públicos são dotados para fins de expedição de normas que organizem, desenvolvam e preencham seu ordenamento jurídico próprio (HORTA, 2010, p. 332). Neste sentido, Antônio de Castro Assumpção (1963, p. 34) afirma que a autonomia deve ser considerada como uma “faculdade reconhecida a uma coletividade pública subordinada, de organizar, dentro de certos limites, o seu governo, para a administração do que respeite aos seus peculiares interesses”. O exercício desta autonomia, por sua vez, pressupõe o desenvolvimento de quatro diferentes capacidades, quais sejam a da auto-organização, a autolegislação, a autoadministração e o autogoverno (BULOS, 2014, p. 934). A capacidade de autogoverno é aquela que confere ao Estado Membro o poder de organizar o seu próprio governo por meio de eleição de seus correspondentes representantes, quer sejam eles do âmbito Executivo ou Legislativo. De outra sorte, a autoadministração se caracteriza como a capacidade de gerenciamento próprios dos negócios que a si digam respeito, ou seja, a capacidade de exercício de competências administrativas, legislativas e tributárias, consoante dispositivo legal da Constituição Federal de 1988. Por outro lado, a capacidade de autolegislação consiste na possibilidade que os Estados Membros possuem de criar as suas próprias leis a um âmbito territorial correspondente e delimitado. E, por último, a capacidade de auto-organização consiste no poder de o Estado Membro instituir sua própria Constituição (BULOS, 2014, p. 934). Apesar disso, o exercício da auto-organização e da autolegislação não se dá de maneira desregrada, tendo em vista que o artigo 25, §1º da Constituição Federal determina a observância

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dos princípios desta Constituição prefixados no âmbito federal. O dever de observância, contudo, não deve ser entendido como uma obrigação de cópia, ou reprodução do modelo federal pelo constituinte estadual (IVO, 1997, p. 141). Portanto, tem-se que o exercício do poder de organização dos Estados Membros não está alheio a limites, tendo em vista que a Constituição Federal de 1988 adota a natureza limitada e não soberana da competência autônoma, isto é, a mesma condiciona o livre exercício da autonomia dos Estados Membros aos seus princípios (HORTA, 2010, p. 298). Os Estados Membros são passiveis de limitações previstas no texto constitucional federal, pois a atribuição dada aos mesmos foi de autonomia, razão pela qual se pressupõe o estabelecimento de limites a fim de que não haja dissonância em face da organização federativa prevista constitucionalmente. Porém, as limitações impostas aos Estados Membros para o exercício de sua auto-organização podem reduzir desproporcionalmente a atuação daqueles, o que tende a fazer das Constituições Estaduais um simples texto normativo de reprodução do que já estabelece a Constituição Federal (ASSUMPÇÃO, 1963, p. 35). Por conta disso, deve-se cuidar para que os limites postos para evitar o comprometimento da unidade do Estado Federal no plano interno não acabem por esvaziar a autonomia dos entes estatais ferindo de vez a organização federativa estabelecida no Brasil (ALMEIDA, 1987, p. 176). A fixação de limites é legítima, ao contrario de o esvaziamento da autonomia que não é. A compreensão do poder de auto-organização dos Estados importa algumas considerações sobre o designado poder constituinte. O Poder constituinte é concebido decorrente quando se trata daquele conferido aos próprios Estados Membros para o exercício de sua auto-organização, ou seja, para a elaboração de sua Constituição, enquanto que se chama derivado aquele que diz com o poder de revisão constitucional ou de reforma, que se volta a assegurar a adaptação da Constituição a novas circunstâncias sociopolíticas (MELO, 2008, p. 32-3). Segundo Anna Cândida da Cunha Ferraz (1979, apud, ALMEIDA, 1987, p. 176), a este poder decorrente conferido aos Estados Membros não deve ser negado o caráter de constituinte, pois muito embora “seja um poder de direito posto pela Constituição Federal, sua função é de caráter nitidamente constituinte, partícipe

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que é da obra do Poder Constituinte originário que, sem a sua cooperação, não cumpriria o desígnio de instituir um Estado do tipo federal”. Além disso, deve-se admitir que a Constituição do Estado Membro editada pelo poder constituinte decorrente possui o caráter de inicialidade e supremacia, pois, quanto ao ordenamento jurídico referente ao âmbito interno do próprio Estado, também serve como fundamento de validade das leis e atos normativos estaduais (ALMEIDA, 1987, p. 176). Deve-se destacar que os limites à auto-organização e, consequentemente, ao exercício do poder constituinte decorrente se materializam nas denominadas normas de observância obrigatória. A Constituição Federal, por meio delas, delimita abstratamente como deve ser o exercício do poder constituinte estadual. Tais normas são consagradas de maneira expressa, implícita e por meio de um mandamento ou mesmo por uma vedação (LEONCY, 2007, p. 15). O conteúdo das normas de observância obrigatória pode ser agrupado em classificações distintas. José Afonso da Silva (2012, p. 611), por exemplo, diz que as normas limitadoras são aquelas que firmam os princípios constitucionais sensíveis e os princípios constitucionais estabelecidos. Por sua vez, Leoncy (2007, p. 14) distingue quatro tipos normativos, quais sejam: os princípios sensíveis, as normas de pré-ordenação institucional, os princípios estabelecidos e as normas extensíveis (LEONCY, 2007, p. 14). Segundo Léo Ferreira Leoncy (2007, p. 23-5), as normas ou princípios extensíveis são um conjunto de preceitos organizacionais da União constitucionalmente previstos, que teriam aplicação estendida aos Estados. Para José Afonso da Silva (2011, p. 611), estas normas se encontram praticamente eliminadas do atual ordenamento constitucional em vigência, uma vez que a Constituição atual buscou prestigiar bem mais o federalismo em sobreposição a regras que já viessem a ser aplicadas pelos Estados Membros. Todavia, mesmo com a sua escassez no corpo normativo atual, deve-se lembrar que muitos dispositivos da Constituição Federal, principalmente aqueles voltados para o âmbito organizacional da União, ainda são aplicáveis aos Estados Membros, muito embora não seja fácil a tarefa de indicação e descoberta (LEONCY, 2007, p. 24). Exatamente pela dificuldade de indicação destas normas que outro problema surge, qual seja a da real delineação do que de fato deve ser estendido aos Estados Membros sem que isso acabe por esvaziar o exercício de sua autonomia. Por conta disso, Marcelo

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Labanca Corrêa de Araújo (2010, p. 542) pontua que o princípio da simetria em nada tem relação com as normas de pré-ordenação, os princípios estabelecidos ou mesmo os princípios sensíveis. Ao contrário, dizem respeito àquelas normas que são extensamente interpretadas e aplicadas aos Estados Membros. Na Constituição Federal podem ser identificadas normas condicionantes do exercício da autonomia dos Estados Membro, como, por exemplo, aquelas que se encontram dispostas no Título I ou, como corriqueiramente são conhecidos, os princípios fundamentais (IVO, 1997, p. 148). As demais normas, que são prescritas na Constituição Federal Brasileira e, por sua vez, servem de limite para o poder constituinte estadual, se originam logicamente destes princípios fundamentais. As normas condicionadoras da autonomia legislativa estadual decorrem seja do princípio republicano ali disposto, seja do federalismo, da isonomia, da separação dos poderes, do Estado Democrático de Direito ou mesmo dos princípios fundamentais previstos no decorrer do artigo 3º da Constituição Federal. Assim, “todos os limites à competência criadora da Constituição Estadual brotam direta ou indiretamente dos princípios fundamentais prescritos no Título I da Constituição Federal, que terminam por desenhar a competência” (IVO, 1997, p. 160). Destaca-se ainda o fato de que ao poder constituinte decorrente, além das limitações materiais e especialmente no que se refere ao intuito de compatibilizar o arranjo institucional dos Estados Membros aos denominados princípios da União, também são direcionadas limitações formais, como a de ser criada, por exemplo, por autoridade competente mediante procedimento legislativo competente (MELO, 2008, p. 34). Assim sendo, a Constituição do Estado Membro deverá ser elaborada pela sua respectiva Assembleia Legislativa, cujos componentes foram eleitos para exercer mandato correspondente. Por fim, o quórum para a aprovação da respectiva Constituição Estadual deve ser especial, portanto diferente do quórum de aprovação de lei ordinária. A participação do Executivo está dispensada e na promulgação deve ser observado o prazo sobre o qual o artigo 11 do ADCT dispõe.

3. Análise comparativa da Constituição do Estado do Maranhão com a Constituição Federal: os dispositivos autônomos e a aplicação da simetria constitucional

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Segundo Marcelo Labanca Corrêa de Araújo (2009, p. 26), na realidade brasileira há uma exacerbada padronização dos textos constitucionais estaduais, tendo em vista o excessivo delineamento imposto pela Constituição Federal ao exercício da auto-organização dos Estados Membros. No mais, há quem conclua que poucas Constituições Estaduais de fato tratam sobre questões que lhe são tipicamente peculiares, excepcionando de tal afirmação àquelas matérias que guardam relação com o meio ambiente e a proteção do ecossistema (MARINS, 2009, p. 701). A Constituição do Estado do Maranhão é composta de 276 artigos em seu corpo e 53 artigos no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Para os fins deste estudo, tomou-se em conta o corpo da Constituição Estadual e desconsiderou-se o ADCT dado o seu caráter precário (BULOS, 2014, p. 1661-2). A comparação entre as Constituições Federal e Estadual resultou na criação de 8 (oito) categorias de normas, quais sejam: 1 - normas de remissão; 2 – normas que repetem integralmente com identidade redacional; 3 – normas que repetem integralmente sem identidade redacional; 4 – normas que adaptam ao cenário estadual sem alteração substancial; 5 – normas que adaptam ao cenário estadual alterando substancialmente o texto original por inclusão; 6 – normas que adaptam ao cenário estadual alterando substancialmente o texto original por supressão; 7 – normas que adaptam ao cenário estadual alterando substancialmente o texto original por mudança de termos; e 8 - normas sem correlação na Constituição Federal. Na categoria normas de remissão encontram-se somente aqueles dispositivos da Constituição do Estado do Maranhão que apenas remetem à disposição da Constituição Federal a respeito de determinado assunto. Por conseguinte, a categoria das normas que se repetem foi dividida em duas subespécies. Na primeira, figuram as normas que se repetem com identidade redacional, ou seja, aquelas em que o inteiro teor previsto no texto constitucional estadual não passa de cópia literal do que já dispõe a Constituição Federal a respeito do mesmo assunto. Na segunda, por sua vez, foram colocadas aquelas normas que se repetem sem identidade redacional, isto é, o conteúdo da norma estadual é a mesma da norma da Constituição Federal, apesar de literalmente não o ser. Outra categoria estabelecida foi a de normas que adaptam

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ao cenário estadual sem alteração substancial. Nesta categoria foram colocadas todas aquelas normas da Constituição do Estado do Maranhão que não realizam nenhuma alteração substancial frente ao que a Constituição Federal dispõe, mas apenas adaptam a mesma para a respectiva realidade local. No mais, estabeleceu-se ainda a categoria das normas que adaptam ao cenário estadual alterando substancialmente o texto original seja por inclusão, supressão ou por mudança de termos. Necessita-se esclarecer que se utilizou o termo “substancialmente” nestas últimas quatro categorias, mas isso em nada tem correlação com a necessidade da existência de um significativo impacto social decorrente da mudança no conteúdo da norma. Trata-se, exclusivamente, de uma mudança no conteúdo da norma, independentemente de sua extensão e efeitos. Por fim, tem-se a categoria das normas sem correlação na Constituição Federal. Nessa categoria, estão alocadas todas aquelas normas da Constituição do Estado que não possuem qualquer correlação normativa no âmbito federal. Observou-se, por conseguinte, que uma categoria prevalece em detrimento da outra. No Título I e II da Constituição do Estado do Maranhão, isto é, aqueles que respectivamente dizem respeito às “disposições preliminares” e aos “direitos e garantias fundamentais”, percebe-se uma predominância da categoria das normas que adaptam ao cenário estadual alterando substancialmente o texto original por inclusão. De outra sorte, no Título III, denominado “Da Organização do Estado”, percebe-se uma predominância de normas da Constituição do Estado que se alinham à categoria das normas que adaptam ao cenário estadual sem alteração substancial. Igual predominância há no Título IV denominado “Dos Poderes do Estado”. Já na parte da Constituição do Estado que trata sobre a tributação e o orçamento, Título VI, se percebe a predominância de normas que repetem integralmente com identidade redacional, uma vez que o Título, em si, não passa, em grande parte, de uma transcrição dos dispositivos da Constituição Federal (IVO, 1997, p. 214). Porém, a categoria de normas que predomina internamente nos Títulos da Constituição do Maranhão é a categoria das normas sem correlação na Constituição Federal, as quais são encontradas

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nos Títulos V, VII, VIII e IX que, respectivamente, dizem respeito à defesa do estado, à organização municipal, à ordem econômica e social e às disposições gerais e finais. Enquanto as normas sem correlação na Constituição Federal são as que predominam na Constituição do Estado do Maranhão, se levado em conta os seus Títulos individualmente analisados, a categoria que, por sua vez, é predominante ao se analisar todo o texto constitucional estadual é a das normas que adaptam ao cenário estadual sem alteração substancial. Feita essa análise, cabe, então, sinalizar, dentre as categorias instituídas, aquelas que demonstram o exercício da autonomia por parte do Estado Membro e aquelas que podem atestar o não exercício da autonomia. Para tanto, considerou-se que as normas inseridas nas seguintes categorias: 1 - normas de remissão; 2 - normas que repetem integralmente com identidade redacional; 3 – normas que repetem integralmente sem identidade redacional; e 4 - normas que adaptam ao cenário estadual sem alteração substancial são exemplos de normas, previstas no texto constitucional do Estado do Maranhão, que podem significar uma não concretização da premissa da autonomia. Diz-se que se trata de uma possibilidade, pois é preciso lembrar que o que caracteriza o esvaziamento da autonomia é a supressão da faculdade de editar normas de outras categorias. Assim, a existência, por si só, de normas dos tipos 1 a 4, é apenas um indício do dever de reprodução, mas não necessariamente a sua concretização. Por outro lado, há também as: 5 - normas que adaptam ao cenário estadual alterando substancialmente o texto original por inclusão; 6 – normas que adaptam ao cenário estadual alterando substancialmente o texto original por supressão; 7 – normas que adaptam ao cenário estadual alterando substancialmente o texto original por mudança de termos; e as 8 – normas sem correlação na Constituição Federal, nestas últimas, observa-se que há a presença do exercício da autonomia do Estado.

Conclusão Conforme se vê, a Constituição do Maranhão é composta por uma maioria de dispositivos de caráter tendencialmente não autônomos. No mais, cumpre destacar que os temas que obrigam a simetria pelo Supremo Tribunal Federal são os que, no caso da

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Constituição Estadual do Maranhão, se encaixam como normas que tendencialmente não respeitam a auto-organização, razão pela qual se consubstancia mais ainda a ideia de que a Constituição do Estado do Maranhão não pode ser considerada como um modelo exímio da prática da autonomia. Observa-se, desta maneira, que as normas centrais da Carta Federal acabam afetando a liberdade de criação e de exercício do poder constituinte decorrente, para além do condicionamento que é a premissa da autonomia, provocando, com isso, uma simplificação da atividade do constituinte estadual, que se torna mero exercício de transporte de normas da Constituição Federal para as Constituições dos Estados Membros (HORTA, 1988, p. 6). No sentir de Horta, costuma haver uma prevalência das normas de reprodução em detrimento das normas de imitação. A principal diferença e reflexo disso na autonomia dos Estados Membros está no fato de que as primeiras têm caráter obrigatório, levando, portanto, o constituinte estadual a adotar compulsoriamente o modelo da norma constitucional federal, enquanto que a norma de imitação traduz a adesão por vontade própria do constituinte do Estado Membro a uma determinada disposição do texto federal (HORTA, 1988, p. 6). A reversão desse cenário passa por uma interpretação restritiva, especialmente quanto aos princípios federais extensíveis para o fim de que seja garantido o exercício da autonomia das unidades federadas. Com isso, fortalece-se a tese de que é necessário que os Estados Membros adotem padrões normativos próprios, voltados para a defesa de suas características culturais e socioeconômicas, solidificando ainda uma das virtudes pilares do federalismo, qual seja a de permitir uma diversificação na organização dos entes estaduais (ALMEIDA, 1987, p. 179-80).

Referências ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. A constituição do estado federal e das unidades federadas. 1987. Disponível em: http://www2.senado.leg. br/bdsf/bitstream/ handle/id/181809/000433660.pdf?sequence=1. Acesso em: 02 de fevereiro de 2015. ARAÚJO, Marcelo Labanca Corrêa de. Jurisdição constitucional e federação: o princípio da simetria na jurisprudência do STF. Rio de Janeiro:

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lizada por Juliana Campos Horta. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. IVO, Gabriel. Constituição estadual: competência para elaboração da Constituição do Estado-Membro. Max Limonad, 1997. LEONCY, Léo Ferreira. “Princípio da simetria” e argumento analógico: o uso da analogia na resolução de questões federativas sem solução constitucional evidente. 2011. 182 f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo. 2011. LEONCY, Léo Ferreira. Controle de constitucionalidade estadual: as normas de observância obrigatória e a defesa abstrata da Constituição do Estado-Membro. São Paulo: Saraiva, 2007. MARANHÃO. Constituição do Estado do Maranhão. Disponível em: http://legislacao.al.ma.leg.br:8080/ged/cestadual.xhtml. Acesso em 09 de janeiro de 2014. MARINS, Leonardo. Limites ao princípio da simetria. In: SOUSA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo (Org.). Vinte anos da Constituição Federal de 1988. Livraria e Editora Lumen Juris, 2009. MELO, Adriana Zawada. A limitação material do poder constituinte derivado. 2008. Disponível em: http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/ ZawadaM.pdf. Acesso em 02 de fevereiro de 2015. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 6ª edição. Revisada e Atualizada. São Paulo: Saraiva, 2011. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 34ª edição. São Paulo: Malheiros, 2011. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 35ª edição. São Paulo: Malheiros, 2012.

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VOTAÇÃO DA PEC DA REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL ARTIFÍCIO OU FORMALIDADE REGIMENTAL? Maria Clara Barros Mota1 Matheus Cazeca Oliveira Ferreira2

Introdução O processo legislativo é, em linhas gerais, o processo de elaboração das leis (FERREIRA FILHO, 2012) e se forma por diversas fases e instrumentos, que não se esgotam na regulamentação constitucional. É composto do conjunto de atos preordenados realizados pelos órgãos legislativos, visando à formação dos instrumentos normativos, tais como a iniciativa, emenda, votação, sanção e veto (SILVA, 2014). O detalhamento do processo legislativo está disposto pelos regimentos internos das casas legislativas (Regimento Interno da Câmara dos Deputados e Regimento Interno do Senado Federal), além do Regimento Comum do Congresso Nacional. Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco, a esse respeito, ensinam: A edição de atos normativos primários, que instituem direitos e criam obrigações, é função típica do Poder Legislativo. O art. 59 da Constituição Federal lista os instrumentos normativos compreendidos na regulação que o constituinte desenvolve nos dispositivos seguintes. [...] O conjunto de atos que uma proposição normativa deve cumprir para se tornar uma norma de direito forma o processo legislativo, que é objeto de regulação na Constituição e por atos internos no âmbito do Congresso Nacional. [...] O processo legislativo tem início quando alguém ou algum ente toma a iniciativa de apresentar uma proposta de criação 1 Brasil. Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). [email protected] 2 Brasil. Graduando em Direito Pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). [email protected] https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V01_A20

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de novo direito. O projeto de lei deve ter início na Câmara dos Deputados, se não resulta de iniciativa de senador ou de comissão do Senado. (MENDES; BRANCO, 2015)

Considerando os regimentos internos como importantes instrumentos de regulação do processo legislativo, o presente trabalho se propõe a analisar os aspectos formais, tanto constitucionais quanto regimentais, da votação da Proposta de Emenda à Constituição 171/93, que altera a redação do artigo 228 da Constituição Federal (imputabilidade penal do maior de dezesseis anos), não se fazendo qualquer análise quanto ao mérito da questão. Dispõe o artigo 228 da Constituição da República: Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.

A proposta original da Proposta de Emenda à Constituição 171/93, do Deputado Federal Benedito Domingos, alterava a redação do artigo, substituindo “dezoito” por “dezesseis”. Desse modo, passaria a vigorar o artigo da seguinte forma: “São penalmente inimputáveis os menores de dezesseis anos, sujeitos às normas da legislação especial.” Para fins de contextualização, a justificativa apresentada pelo autor da proposta, o então Deputado Federal Benedito Domingos, teve por argumentos principais, sendo a grande parte foi reproduzido durante as discussões da proposta na Câmara dos Deputados, inclusive utilizando-se de argumentos religiosos: O objetivo desta proposta é atribuir responsabilidade criminal ao jovem maior de dezesseis anos. A conceituação da inimputabilidade penal, no direito brasileiro, tem como fundamento básico a presunção legal de menoridade, e seus efeitos, na fixação da capacidade para entendimento do ato delituoso. Por isso, o critério adotado para essa avaliação atualmente é o biológico. Ao aferir-se esse grau de entendimento do menor, tem-se como valor maior a sua idade, pouco importando o seu desenvolvimento mental. Observadas através dos tempos, resta evidente que a idade cronológica não corresponde à idade mental. O menor de dezoito anos, considerado irresponsável e, consequentemente,

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inimputável, sob o prisma do ordenamento penal brasileiro vigente desde 1940, quando foi editado o Estatuto Criminal, possuía um desenvolvimento mental inferior aos jovens de hoje da mesma idade. Com efeito, concentrando as atenções no Brasil e nos jovens de hoje, por exemplo, é notório, até ao menos atento observador, que o acesso destes à informação - nem sempre de boa qualidade - é infinitamente superior àqueles de 1940, fonte inspiradora natural dos legisladores para a fixação penal em dezoito anos. (...) Se há algum tempo atrás se entendia que a capacidade de discernimento tomava vulto a partir dos 18 anos, hoje, de maneira límpida e cristalina, o mesmo ocorre quando nos deparamos com os adolescentes com mais de 16. Assim, pela legislação penal brasileira, o menor de dezoito anos não está sujeito a qualquer sanção de ordem punitiva, mas tão somente às medidas denominadas sócio-educativas, que, em síntese, são: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação. (...) A tal ponto isto foi percebido por nós que ao analisarmos o potencial dos moços com 16 anos percebemos que poderiam escolher os seus governantes e para isso conseguiram o direito de votar. (...) O noticiário da imprensa diariamente publica que a maioria dos crimes de assalto, de roubo, de estupro, de assassinato e de latrocínio, são praticados por menores de 18 anos, quase sempre, aliciados por adultos. (...) Com isto, o que está ocorrendo é o aumento considerável da criminalidade por parte de menores de dezoito anos de idade que delinqúem e que, carentes de institutos adequados ao seu recolhimento para reeducação ou correção de comportamento, após curto afastamento do meio social em estabelecimentos reformatórios voltam inevitavelmente às práticas criminosas (...) A presente Proposta de Emenda à Constituição tem por finalidade dar ao adolescente consciência de sua participação social, da importância e da necessidade mesmo do cumpri-

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mento da lei, desde cedo, como forma de obter a cidadania, começando pelo respeito à ordem jurídica, enfim, o que se pretende com a redução da idade penalmente imputável para os menores de 16 anos é dar-lhes direitos e consequentemente responsabilidade, e não puni-los ou mandá-los para a cadeia. O moço hoje entende perfeitamente o que faz e sabe o caminho que escolhe. Deve ser, portanto, responsabilizado por suas opções. (...) A uma certa altura, no Velho Testamento, o profeta Ezequiel nos dá a perfeita dimensão do que seja a responsabilidade penal. Não se cogita nem sequer de idade. “A alma que pecar, essa morrerá” (Ez. 18). A partir da capacidade de cometer o erro, de violar a lei surge a implicação: pode também receber a admoestação proporcional ao delito - o castigo. (...) Ainda referindo-nos a informações bíblicas, Davi, jovem modesto pastor de ovelhas acusa um potencial admirável com o eu estro de poeta e cantor dedilhando a sua harpa mas, ao mesmo tempo, responsável suficientemente para atacar o inimigo pelo gigante Golias, comparou-o ao urso e ao leão que matara com suas mãos. (...)

Primeiramente, em 30/06/2015, foi votado o substitutivo, que será mais a frente explicado, aprovado pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados destinada a elaborar parecer sobre a proposta. O substitutivo aprovado alterava o artigo 228 da Constituição da República da seguinte forma: Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial, ressalvados os maiores de dezesseis anos nos casos de: I – crimes previstos no art. 5º, inciso XLIII; II – homicídio doloso; III – lesão corporal grave; IV – lesão corporal seguida de morte; V – roubo com causa de aumento de pena. Parágrafo único. Os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos cumprirão a pena em estabelecimento separado dos maiores de dezoito anos e dos menores inimputáveis.

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Porém, tal proposta não foi aprovada, tendo recebido 303 votos favoráveis e 184 contrários, sendo que seriam necessários 308 votos (3/5 do total de membros da Câmara dos Deputados) para a aprovação. Por tratar de tema de grande relevância social, tal PEC recebeu especial atenção da população, tendo a votação grande repercussão, já que, após a rejeição do substitutivo em 30/06/2015, muitos entenderam que a redução da maioridade penal havia sido rejeitada. No dia seguinte, para a surpresa destes, uma medida parecida foi aprovada. A proposta aprovada, por 323 votos, se tratava de uma Emenda Aglutinativa (nº 16). Ela alteraria o artigo 228 para a seguinte forma: Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial, ressalvados os maiores de dezesseis anos , observando se o cumprimento da pena em estabelecimento separado dos maiores de dezoito anos e dos menores inimputáveis, em casos de crimes hediondos, homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte.

Houve uma sutil alteração no texto, para que se pudesse aprová-lo. Explicar-se-á, mais a frente, o processo regimental pelo qual foi possível a apresentação deste novo texto e, consequentemente, a aprovação da proposta. É possível evidenciar, nesse quadro, críticas de juristas à previsão regimental da possibilidade de apresentação de Emendas Aglutinativas após iniciados os trabalho de votação, como é o caso do Professor Thomas da Rosa de Bustamante e de Evanilda Nascimento. Nesse sentido, o objetivo do presente trabalho é esclarecer o procedimento ocorrido, tendo em vista a previsão regimental.

1. Das emendas às proposições Para o caso em tela, é importante compreender um instrumento do processo legislativo previsto no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD): a emenda a proposições, que é, se-

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gundo a definição regimental, uma proposição apresentada como acessória de outra. Extremamente importante notar, conforme já destacado, que todos os tipos de emendas, que estão elencados no art. 118 RICD são acessório a uma proposição principal, que pode ser uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), um Projeto de Lei Ordinária/Complementar, um Decreto Legislativo ou uma Resolução. Como accessorium sequitur principale, a emenda segue o projeto ao qual é vinculada, isto é: eventual rejeição da emenda não prejudica o projeto principal; a aprovação da emenda, por outro turno, faz com que o projeto principal seja rejeitado. Os tipos de emenda existentes, de acordo com o RICD, são: supressiva, aglutinativa, substitutiva, modificativa e aditiva.

2. Das emendas destaques no caso em tela 2.1 Da emenda substitutiva Em relação ao processo de votação da PEC 171/93, houve a apresentação de diversas emendas. Em 30/07/2015, foi rejeitada uma emenda substitutiva. Esse tipo de emenda é também conhecida por “substitutivo”; ela altera substancialmente ou formalmente a proposição inicial. Importante destacar que só algumas partes da proposição inicial podem sofrer modificação; isto é, não se pode, por meio de uma emenda substitutiva, modificar completamente o projeto inicial, sob pena de não ser o mesmo projeto, mas somente o mesmo assunto. Neste sentido, o substitutivo pode manter a redação original de alguns artigos e alterar outros, sendo que as alterações possíveis, como destacado, são de cunho formal e de conteúdo. De acordo com o art. 191, II, RICD, quando é apresentado por uma comissão, o substitutivo é votado antes do projeto original, in verbis: Art. 191. Além das regras contidas nos arts. 159 e 163, serão obedecidas ainda na votação as seguintes normas de precedência ou preferência e prejudicialidade: II - o substitutivo de Comissão tem preferência na votação sobre o projeto.

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No caso em estudo, o substitutivo foi apresentado pela Comissão Especial de Proposta de Emenda à Constituição nº 171. Se fosse aprovado, prejudicaria a proposição inicial, substituindo-a. Como foi rejeitado, a proposição inicial (a PEC), deverá ser votada por último, após as demais emendas. O prejuízo do substitutivo não prejudica a PEC, uma vez que esse é acessório a ela. Dada a rejeição do Substitutivo adotado pela Comissão3, prosseguiu-se com o processo de votação. Incube-nos esclarecer que emenda substitutiva aprovada substitui a parte do projeto a que se referir e que a rejeição do projeto prejudica as emendas a ele oferecidas (art. 191, VI). Por sua vez, substitutivo aprovado prejudica o projeto e as emendas a este oferecidas (art. 191, IV). (CARNEIRO; SANTOS; NETTO; 2014)

2.2 Da emenda aglutinativa Na sessão seguinte, foram apresentadas diversas emendas, entre elas, as aglutinativas, “que resultam da fusão de outras emendas, ou destas com o texto, por transação tendente à aproximação dos respectivos objetos”. (CARNEIRO; SANTOS; NETTO, 2014). Comuns em matérias polêmicas, são usadas para englobar várias sugestões de alteração da proposição principal. Quando os autores das emendas objeto de fusão apresentam a emenda aglutinativa, retira-se as emendas das quais a aglutinativa resulta. Previstas no art. 122 do RICD, as aglutinativas possuem um regime sui generis, por serem a única espécie de emenda à proposição que: pode ser apresentada durante a votação; não pode ser apresentada por comissão; pode, caso a Mesa considere pertinente, implicar no adiamento da votação da matéria por uma sessão. Em relação à votação deste tipo de emenda, interessante salientar que, mesmo em caso de PECs, que são votadas em dois turnos, a votação da aglutinativa ocorre em um turno (turno único). Ademais, na votação de emendas uma a uma, a emenda aglutinativa só é preterida pela emenda supressiva, que a antecede em razão da ordem imposta pelo Regimento (art. 118, §1º, c/c arts. 189, §2º, e 191, VIII). (CARNEIRO; SANTOS; NETTO, 2014). 3

Votos: Sim - 303; Não - 184.

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Uma das emendas apresentadas foi a Emenda Aglutinativa nº 16. Objeto da fusão das PECs 386/1996, 399/2009, 288/2012, 438/2014, das emendas 2 e 3 apresentadas à PEC 171/1993, foi aprovada4. Tendo a emenda sido aprovada, deu-se o prejuízo das demais emendas, bem como do projeto original. Em 19/08/2015, houve, em segundo turno, a aprovação da PEC 171/93 na Câmara dos Deputados. A matéria, em seguida, foi encaminhada ao Senado, onde aguarda pela apreciação. O principal objetivo, ao nosso ver, da possibilidade de as Emendas Aglutinativas poderem ser apresentadas após o início dos trabalhos de votação se liga ao Princípio da Economia Processual. Vejamos: se há pequenos pontos em que grupos políticos divergem, é melhor fazer uso deste instrumento do que rejeitar por completo o projeto, que já passou por diversas etapas na tramitação legislativa. No caso em tela, se não houvesse a possibilidade de apresentação desse tipo de emenda durante a votação, certamente algum parlamentar apresentaria uma nova Proposta de Emenda à Constituição, reduzindo o alcance do projeto anterior, o que não é vedado pelo art. 60, § 5º, da Constituição.

3. Da constitucionalidade A análise formal aqui proposta não pode deixa de tocar no âmbito Constitucional. Os regimentos cuidam do processo legislativo de forma mais detalhada, em conformidade com a constituição. A PEC em estudo não desrespeitou o regime constitucional previsto no art. 60 CR/88. Um dos dispositivos mais questionados foi o §5º, in verbis: Art. 60, § 5º A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa.

Diversos juristas afirmaram que a votação ocorrida no dia 01/07/2015 era inconstitucional, já que, no dia anterior, a PEC havia sido rejeitada. Esta interpretação desconsidera toda a disposição regimental, que prevê emendas à proposições iniciais. No dia 30/06/2015 não houve rejeição da PEC, mas sim do substitutivo, que 4

Votos: Sim - 323; Não - 155; Abstenção - 2

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é um acessório e, como tal, não prejudica o principal quando rejeitado. Cabe destacar que a rejeição de qualquer um dos tipos de emendas previstas no art. 118 do RICD não prejudica o projeto inicial, visto que emendas são acessórias a ele. Neste sentido, diferente do que muitos invocaram no debate sobre a legitimidade da votação, a rejeição do substitutivo não implica em prejuízo à PEC. E, assim, não houve violação ao art. 60, §5º da CR/88, já que o Processo Legislativo ainda se encontrava em curso. A não violação à Constituição fica ainda mais clara a partir da análise do art. 191, V, do RICD, segundo o qual, uma vez rejeitado o substitutivo, segue-se a votação das demais emendas e, por último, caso as emendas também sejam rejeitadas, vota-se o projeto inicial, no caso, a PEC. O substitutivo é uma parte da votação do projeto e, como tal, não prejudica sua totalidade ao ser rejeitado.

Conclusão Em relação ao substitutivo, por fim, conclui-se que sua rejeição, enquanto acessório, não prejudica a PEC. Neste sentido, não é interrompido o processo legislativo após a rejeição do substitutivo não fere o art. 60, §5º da CR/88, uma vez que não houve prejuízo ao projeto principal (PEC). Em relação à Emenda Aglutinativa, mister destacar que o procedimento estabelecido para apresentação e para votação foram respeitados, já que esta é a única espécie de emenda que pode ser apresentada durante a Plenária. O prazo também foi respeitado, haja vista que o adiamento da sessão é facultativo. Importante frisar que situação semelhante ocorreu na década de 90 durante a primeira Reforma da Previdência, sendo o então presidente da Câmara dos Deputados, o atual Vice-presidente da República, Michel Temer. O Supremo Tribunal Federal, à época, não se manifestou pela ilegalidade do ato; declarou se tratar de matéria interna corporis. Em resumo, destaca-se que votação da PEC 171/93 ocorreu conforme a previsão regimental e, mais que isso, em conformidade com a Constituição. Não houve golpe, não houve artifício; houve a aplicação do devido processo legislativo.

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Referências AZEVEDO, Márcia Maria Corrêa de. Prática do Processo Legislativo. São Paulo: Atlas, 2001. BRANCO, Paulo Gustavo G.; MENDES, Gilmar F. Curso de direito constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. BRASIL. Constituição Federal. 1998. BRASIL. Regimento Comum do Congresso Nacional. BRASIL. Regimento Interno da Câmara dos Deputados. BRASIL. Sistema de Informações Legislativas da Câmara dos Deputados. CARNEIRO, André; SANTOS, Luiz; NETTO, Miguel. Curso de Regimento Interno. Brasília: Câmara dos Deputados, 2014. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 7ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2012.

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REPRESENTATIVIDADE DEMOCRÁTICA E OS PODERES DA REPÚBLICA: STF ENQUANTO GUARDIÃO DA CONSTITUIÇÃO E ASSEGURADOR DE DIREITOS LGBTT João Felipe Zini Cavalcante de Oliveira1 Mateus Oliveira Barros2

Introdução As responsabilidades de cada um dos Poderes da República, quais sejam, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, estão definidas no maior dispositivo normativo do ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988. Podemos iniciar pelo próprio artigo 2º, no qual está posto que: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”3. Ademais, por interpretação doutrinária, percebemos que a separação dos três poderes e a sua consequente harmonia é merecedora de análise detalhada, evitando assim, que algum deles se sobrepusesse ao outro. A Teoria dos Freios e Contrapesos trata desta divisão e regulação de forma mais específica, tendo surgido em situações de iminente desarmonia entre os poderes. Nesta teoria, há a compreensão de que, para um poder não se sobressair ou subjugar o outro, mantendo assim uma relação de não hierarquia entre si, eles devem aos mesmo tempo estar restritos a funções específicas e a outras que possibilitem a regulação e a fiscalização dos outros. As competências do Poder Judiciário que o permitem atuar na defesa e na garantia dos direitos fundamentais, especificamente os relacionados à comunidade LGBTT4, são uma garantia legalmen1

Graduando de Direito pela UFMG. Brasil. [email protected] Graduando de Direito pela UFMG. Brasil. [email protected] 3 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Congresso Nacional, 1988. 4 Lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. 2

https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V01_A21

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te instituída. Citamos, entre os mais importantes meios de atuação direta, as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC’s), Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI’s), exercendo controle direto sobre instrumentos normativos. Tais atribuições, como se pode perceber, são interferências do Poder Judiciário no Poder Legislativo, como forma de manter o equilíbrio e a justiça no Estado Brasileiro, baseando-se na premissa de manutenção e defesa do dispositivo constitucional. Ressaltamos, portanto, que o Judiciário não ultrapassa sua competência legal, necessária para a manutenção da harmonia entre os Três Poderes. Pelas recentes decisões dos mais elevados tribunais do país na legitimação da comunidade LGBTT, têm-se demonstrada a necessidade de garantir direitos a uma comunidade pouco visibilizada e não representada, direitos esses que há muito são assegurados à maioria política, como o direito ao casamento e à família.

1. O ativismo judicial como reforço do princípio democrático A responsabilidade de garantir direitos à população cabe ao Estado, representado por seus órgãos institucionais. O STF, como órgão máximo do Poder Judiciário nacional, tem em suas mãos a necessidade de cumprir a missão de justiça que lhe é atribuída, sanando possíveis lacunas dos outros poderes e respondendo ao apelo popular. Vê-se, entretanto, que as decisões do STF acerca do assunto só se dão em casos apresentados ao dito tribunal, tratando de assuntos que lhe chegaram por vias originárias ou recursais. Para os fins deste artigo, analisaremos as medidas concentradas de controle de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, cujas ações vêm sendo criticadas por parte da doutrina que as considera afrontadoras à devida separação dos poderes. Temos que o controle de constitucionalidade não prejudica a democracia brasileira, pelo contrário, a fortalece na medida em que interpreta o maior instrumento normativo sem amarrações de ordem política5. Nesse sentido, Habermas, em resposta às críticas de Michelman, nos diz que as gerações vindouras possuem a tarefa de reinterpretar e reafirmar a Constituição, atualizando a substância Ely, John Hart. Democracy and distrust: A theory of judicial review. Harvard University Press, 1980.

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normativa do sistema de direitos para avanços sociais. Tal atividade hermenêutica, deve sempre pautar-se na defesa de direitos fundamentais, tendo em mente que o evento fundador da Constituição não esgota sua interpretação à literalidade. É verdade que essa continuação falível do evento fundador só pode escapar do círculo da autoconstituição discursiva de uma comunidade se esse processo, que não é imune a interrupções e recaídas históricas, puder ser interpretado, a longo prazo, como um processo de aprendizagem que se corrige a si mesmo6. (grifo nosso).

Vale ressaltar as contribuições de Dworkin para os fins aqui defendidos, especialmente em sua obra “Direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana”. O filósofo defende que o controle de constitucionalidade não viola a atividade democrática, mas a aprimora, reforçando nosso ponto. As Constituições atuais - e a brasileira não foge ao destacado - são marcadas por um nível elevado de abstração, com princípios e conceitos amplos como a dignidade da pessoa humana, entre outros. Em razão disso, Dworkin aponta uma demanda da atividade interpretativa que deve, necessariamente, levar em conta as concepções morais de cada um. Entretanto, como a moralidade política é incerta e controversa, nem sempre representando aquilo que é justo, cabe a uma determinada autoridade o papel de indicar a melhor interpretação do texto constitucional7. Essa tese é alvo de inúmeras críticas, principalmente no sentido de que os magistrados imporiam à sociedade aquilo que a eles, pessoalmente, é moralmente adequado. De fato essa discricionariedade pode existir, mas apenas quando o juiz não se atém aquilo que lhe deveria ser natural: o respeito à ordem constitucional. “Dworkin é claro ao afirmar que a história e a integridade são os limites marcantes para a leitura moral da Constituição, impedindo uma discricionariedade que seria imposta à sociedade pelos juizes”8. Habermas, Jürgen, and William Rehg. “Constitutional democracy: a paradoxical union of contradictory principles?.” Political theory (2001): p. 768. 7 Dworkin, Ronald. Direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. Tradução: Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 8 Ferreira, Emanuel de Melo. A legitimidade democrática do controle de constitucionalidade à luz de Ronald Dworkin e Jeremy Waldron. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=2723d092b63885e0. Acesso em: 6

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O filósofo defende que pensar na democracia demanda o entendimento de que esta não reflete necessariamente a vontade da maioria, concepção denominada pelo autor de separada ou procedimental. Contrapondo-se a essa concepção separada, Dworkin aponta uma concepção dependente, sendo tal dependência relacionada com os resultados e não com o procedimento9. A concepção dependente de democracia, ou a democracia constitucional, não se contenta com a regra majoritária principalmente pela possibilidade que tal procedimento decisório tem de oprimir as minorias e as opções morais destas10.

Na mesma esteira de raciocínio, John Hart Ely aponta que as decisões ativistas do Poder Judiciário em defesa de minorias fundamentam-se no princípio da isonomia, para garantir que os direitos que a maioria se concede sejam também exercidos pela minoria. Referida atividade do Judiciário seria legítima por defender o processo democrático e as minorias das violações a que estão sujeitas, reforçando em vez de violar o princípio democrático11.

2. Legitimidade de atuação do STF para garantia dos direitos LGBTT O Supremo Tribunal Federal, conforme dito, é o órgão que guarda, interpreta e garante a correta análise da Constituição, maior e mais importante instrumento normativo no ordenamento jurídico brasileiro, o qual permite a segurança jurídica e a garantia do Estado Democrático de Direito. Desse modo, como bem expõe Hamilton: A Constituição deve prevalecer sobre a lei ordinária, a lei do povo sobre a de seus agentes. Todavia, esta conclusão não deve significar uma superioridade do Judiciário sobre o Legislativo. Somente supõe que o poder do povo é superior a ambos; e que, sempre que a vontade do Legislativo, traduzida em suas leis, se opuser a do povo, declarada na Constitui10/12/2015. 9 Dworkin, Ronald. A virtude soberana – a teoria e a prática da igualdade. Tradução de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p, 255-261. 10 Ferreira, Emanuel de Melo. op cit. 11 Ely, John Hart. Democracy and Distrust. Cambridge and London: Harvard Universit Press, 1980.

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ção, os juízes devem obedecer a esta, não àquela, pautando suas decisões pela lei básica, não pelas ordinárias12.

O STF, enquanto guardião e intérprete da Constituição, deve possibilitar a melhor compreensão possível do texto constitucional, mantendo a justiça social, bem como promovendo a equidade democraticamente. Cabe ponderar que, em alguns casos, a delimitação da interpretação do texto Constitucional, afeta outras normas, infraconstitucionais, que podem ter sua inconstitucionalidade decidida pelo Supremo. Seria afirmar que o STF baliza a validade de determinados instrumentos normativos infraconstitucionais sob a ótica do constitucionalmente posto. Para justificar o ativismo judicial, o agora Ministro Luis Roberto Barroso, fundamentou-se, em artigo publicado em 2009, argumenta que a Constituição desempenha dois grandes papéis: um é estabelecer as regras do jogo democrático e o outro é proteger valores e direitos fundamentais, mesmo que contra a vontade circunstancial de quem tem mais votos13. Como o intérprete final da Constituição é o Supremo Tribunal Federal, seu papel é velar pelas regras do jogo democrático e pelos direitos fundamentais. Portanto, de acordo com o Ministro do STF, a jurisdição constitucional é mais uma garantia para a democracia do que um risco, uma vez que busca garantir a perpetuidade da Constituição e de seus princípios em face de possíveis mudanças na esfera política que poderiam fazer de refém o disposto na Lei Maior14. Há, no entanto, o dever de o STF ser deferente e excepcional para com as deliberações do Congresso. Com exceção do que seja essencial para preservar a democracia e os direitos fundamentais, em relação a tudo mais, os protagonistas da vida política devem ser os que têm votos15. Apontamos a legitimidade do Judiciário quando este julgou Hamilton, Alexander. Federalista. In: HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. O federalista. 2.ed. Campinas: Russel Editores, 2005. 13 Barroso, Luis Roberto. Judicialização, ativismo e legitimidade democrática. Atualidades Jurídicas, n 4. 2009. Disponível em: http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf. Acesso em 12/12/2015. 14 Idem. 15 Idem. 12

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casos relacionados aos direitos da comunidade LGBTT, como o reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo gênero e a possibilidade de adoção por casais homossexuais. O reconhecimento desses direitos e garantias é o cumprimento do já previsto no texto Constitucional, no seu Título II, no qual são estabelecidos que os direitos e garantias fundamentais são reconhecidos a todos, sem distinção de qualquer natureza. Atualmente, o Judiciário tem sido o arauto para o fim do obscurecimento da comunidade LGBTT, até então vivenciado em termos normativos. Ao analisar e julgar casos em que é notória a desvalorização de direitos das pessoas dessa comunidade, nada mais faz do que o cumprimento de um dever Constitucional, qual seja, o de sanar tais falhas e reconhecer, juridicamente, os direitos e garantias fundamentais de todos.

3. LGBTT A marginalização e a desvalorização da comunidade LGBTT são frutos de uma sociedade instaurada sobre preceitos patriarcais16 e heteronormativos17, que abominam a diversidade apresentada na mencionada comunidade. As construções valorativas sociais, as quais, na cultural ocidental, têm viés cristão, são a maior fonte da opressão às minorias de gênero e sexualidade. É notório o repúdio religioso pelas práticas ditas “hereges” de LGBTT’s. As teorias de gênero propõem a ressignificação dos valores ligados às identidades das pessoas, seja com base no sujeito autodeterminante, seja pelo ser performático18. Judith Butler, Joan Scott, Patriarcado é o sistema social baseado no controle dos machos sobre as fêmeas, em que estes ocupam uma posição central. O sistema patriarcal enquanto instituição é uma constante social tão profundamente radicada que domina todas as outras formas políticas, sociais ou econômicas, gerando um estado de exclusão e discriminação social da mulher pautado na crença de uma superioridade masculina. 17 Heteronormatividade é o termo usado para descrever situações nas quais orientações sexuais diferentes da heterossexual são marginalizadas, ignoradas ou perseguidas por práticas sociais, crenças ou políticas. 18 Veja-se a teoria Queer: Teoria Queer é a perspectiva que entende as performatividades de gênero e sexualidade como uma construção social, adotando a ideia de papéis sexuais e de gênero. Desse modo, foge ao entendimento comum da sociedade ocidental que considera o gênero como uma categoria binária, de homem 16

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Simone de Beauvoir e Nancy Fraser19 são algumas das teóricas que marcam os estudos de gênero e sexualidade no mundo contemporâneo, contribuindo para as análises sociais e jurídicas da temática. A comunidade LGBTT possui significativas diferenças entre os seus membros, seja por questões de realidades diversas e panoramas sociais próprios, seja pelas condições socialmente perceptíveis. As pessoas trans, por exemplo, têm pautas muito diferentes das pessoas cis20 que compõem o grupo. Questões LGBTT não versam somente sobre sexualidade, mas também acerca de identidades e performatividades. Pautas como direito ao casamento e possibilidade de adoção são pautas concernentes, principalmente, ao mundo cis da comunidade, qual seja, os LGB’s da sigla (lésbicas, gays e bissexuais). Outras, como acesso a banheiros públicos ou retificação de registro civil são pautas relacionadas às pessoas trans. Nota-se a diferença entre o reconhecimento da sexualidade do primeiro (LGB) e o de identidade do segundo (TT). Os membros da comunidade, como aduzimos, necessitam de atenção dos mecanismos estatais para que seus direitos possam estar em patamar de igualdade com os demais cidadãos. Entretanto, a discussão dessa temática suscita debates políticos acalorados e enfrenta forte resistência da camada conservadora do Congresso e, em razão disso, são poucos aqueles que se levantam em prol da causa. Há que observarmos a crueldade em dispensar a comunidade LGBTT à própria sorte, uma vez que seus direitos poucas vezes são respeitados e sequer discutidos. Assim, evitando que essa população fique refém de eventual cenário político, a atuação das instâncias superiores judiciárias se faz necessária para consolidar os preceitos basilares da Constituição Brasileira, reforçando o vere mulher, compreendendo uma escala infinita de variações entre e além dessas identidades. 19 Judith Butler é uma filósofa pós-estruturalista estadunidense que contribui para os estudos de gênero e das performatividades humanas, notadamente na Teoria Queer. Joan Scott é uma historiadora norte-americana que se dedica ao estudo da história das mulheres sob a perspectiva do gênero. Nancy Fraser é uma filósofa estadunidense que estuda o feminismo e teoriza sobre o assunto, principalmente numa análise do conceito de justiça. 20 Chamamos de cisgênero, ou de “cis”, as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído quando ao nascimento em razão da genitália. Denominamos as pessoas trans, as que não se identificam com o gênero que lhes foi determinado.

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dadeiro sentido da democracia constitucional.

3.1 O ritmo de decisões favoráveis no Supremo Tribunal Federal Já é merecedor de destaque o julgamento do STF, em 2011, da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, que reconheceu o direito de homossexuais constituírem união estável, sem haver distinção entre famílias homoafetivas e heteroafetivas. Na linha da decisão supracitada, o CNJ, na resolução nº 175 de 2013, vedou às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento para pessoas homossexuais. Em Recurso Extraordinário 846.102, considerando a decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu a união homoafetiva como um núcleo familiar como qualquer outro, a ministra do STF Cármen Lúcia, em março deste ano (2015), manteve decisão que autorizou um casal gay a adotar uma criança, independentemente da idade. Ainda em relação à temática, no dia 19 de novembro do presente ano (2015), deu-se início ao julgamento do RE 845.779 (repercussão geral) que trata do direito de pessoas trans utilizarem banheiros conforme sua identidade de gênero. Em seu voto, o Ministro Relator, sustentou que é papel do Estado, da sociedade e de um tribunal constitucional, em nome do princípio da igualdade, “restabelecer ou proporcionar na maior extensão possível a igualdade dessas pessoas, atribuindo o mesmo valor intrínseco que todos temos dentro da sociedade”. Segundo o relator, é necessário o reconhecimento do direito fundamental dos transexuais de serem tratados “como pessoa com respeito à sua identidade”. No sentido do voto do relator, o Ministro Edson Fachin corroborou a necessidade de respeito à identidade de gênero, modificando o valor da indenização de 15 mil para 50 mil reais. O julgamento foi suspenso em razão do pedido de vista do Ministro Luiz Fux, justificando que, na análise de temas com “desacordo moral tão expressivo21” que dividem a sociedade, é preciso Com apresso à honestidade intelectual, interpretamos o uso do termo “desacordo” na fala do ministro no sentido de que a sociedade ainda não acorda, moralmente, a respeito do assunto em debate no Supremo. 21

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mais tempo para uma decisão definitiva do Supremo. Percebe-se, então, certa diferença de tratamento entre as causas que pautam identidade de gênero e as que versam sobre sexualidade. Aquela ainda é forte tabu do campo da moralidade, enquanto esta já se encontra, pelo menos frente à Corte, pacificada. Apesar do saudoso início do julgamento, não se sabe, ainda, exatamente o que esperar dos demais ministros que compõem o tribunal que aqui apresentamos como um dos mais expressivos defensores de direitos LGBTT.

4. Estatuto da Família: um possível problema futuro? O Poder Legislativo, que tem como competência principal regulamentar a vida social, se omite em garantir direitos universais às mais diversas expressões identitárias da humanidade, mantendo um caráter conservador baseado num padrão cis-hétero, tradicionalmente comum ao mundo Ocidental. Vê-se, entretanto, que a manutenção da organização social tradicional, cunhada há séculos num contexto medieval europeu, tem sido desconstruída em outros países. Na Argentina, a título de exemplo, a legislação é extremamente receptiva para a comunidade LGBTT, como se demonstra nas aprovações no Congresso sobre a Lei da Identidade de Gênero e a do Casamento Igualitário. No Brasil, o Projeto de Lei 6583/2013, denominado Estatuto da Família, proposto pelo deputado federal Anderson Ferreira, do PR/PE, diz, no seu artigo 2º: Art. 2º - Para os fins desta Lei, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

Como demonstrado, o dito Projeto prevê que há apenas uma forma de família a ser legalmente reconhecida, pouco importando outras constituições de núcleo familiar. Entendemos que a união entre um homem e uma mulher, ou seja, um casal heterossexual, é apenas uma das diversas formas de união, podendo todas as outras, receber a titulação de família, mediante o interesse dos partícipes. Uma união entre duas mulheres, dois homens, entre três pessoas

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diversas, todas essas são formas de família que devem ser, também, reconhecidas legalmente. Ressaltamos que o reconhecimento da entidade familiar pelo ordenamento jurídico brasileiro não implica, necessariamente, em intervenções imediatas em institutos como o casamento, cujo caráter contratual deve ser considerado antes de regulamentá-lo em formas inicialmente não previstas. Note-se, ainda, que esse caráter de reconhecimento é adotado pela Constituição quando em seu artigo 226, § 4º, prevê a família monoparental22. O Projeto que trata do Estatuto da Família tem grande número de apoiadores, havendo possibilidade de que seja aprovado no Congresso Nacional. Tal situação demonstra, ao mesmo tempo, um grande desapreço dos legisladores pelas decisões do Judiciário brasileiro e um desrespeito a uma população que existe e que exige seus direitos fundamentais, principalmente o direito à dignidade. Formar uma família é, para muitos, a maior satisfação que poderão ter em vida, sendo, portanto, dever do Estado garantir a todos, sem distinção de qualquer natureza, a possibilidade e o acesso ao casamento, bem como outros direitos análogos. As justificativas existentes em defesa do Projeto são de cunho meramente moral e conservador, pautado por teorias segregacionistas e preconceituosas que padecem de interpretação sistemática, reticular e conjunta da Constituição Federal. Nesse sentido, o ministro do STF, Luis Roberto Barroso, afirma que o ativismo judicial normalmente se manifesta em situações de retração do Poder Legislativo, advinda da falta de representatividade necessária entre a classe política e partes da sociedade civil, que impediria que algumas demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva23. Esse descolamento acarretaria “uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais24”. Cabe perceber que, a partir das recentes interpretações do STF a respeito do conceito de entidade familiar e do texto ConstituConstituída por apenas um dos genitores e sua prole. Pacheco, Pablo Viana; Viana, Tatiana Cardoso Teixeira. O ativismo tardio e a legitimidade democrática da defesa judicial das minorias e do processo democrático. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVII, n. 129, out 2014. Disponível em: http:// www.ambito-juridico.com.br/site/index.php/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=15314. Acesso em dez 2015. 24 Barroso, Luis Roberto. Op cit. 22 23

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cional que trata do assunto, o Estatuto da Família pouco possui de esperanças de efetividade no ordenamento jurídico, padecendo de constitucionalidade. É portanto, importante ressaltar que as decisões que o Judiciário vem tomando no reconhecimento dos direitos LGBTT são de extrema importância social, visto o caráter extremamente retrógrado e segregacionista do legislativo.

Conclusão De qualquer modo, a importância da regulamentação das matérias LGBTT no cenário do mundo normativo, mesmo que dentro do Judiciário, demonstram um apreço e maior visibilidade da comunidade LGBTT no Brasil. Gostariamos de ponderar, por fim, o uso da sigla LGBTT, ao invés da mais comum, LGBT. Consideramos que o duplo T possibilita maior visibilidade às pessoas trans e travestis, que no caso da sigla mais usual, são referidxs25 apenas por um T. A mudança ocorrida há alguns anos, que alterou a sigla de GLBT para LGBT, também é um símbolo da necessidade de visibilizar outros membros da comunidade senão os gays, no caso desta, as lésbicas receberam destaque. Consideramos que o tema LGBTT perpassa diferentes meios individualmente, e todos ao mesmo tempo, em determinada medida. Por isso acreditamos que, num debate que trata de Constitucionalismo e Filosofia Política, a temática tem extrema e urgente necessidade de ser posta, dado nosso cenário atual. Estamos sim, atentos ao Judiciário pelo que já tem sido feito, mas consideramos que as mudanças devem ser rápidas para que menos pessoas sofram com esse preconceito medieval e injusto, necessitando de uma atuação mais democrática do Legislativo. O projeto que dispõe sobre o Estatuto da Família é claramente inconstitucional, dadas as recentes decisões do STF sobre o tema. O que preocupa, no entanto, é que ele demonstra a inegável luta de conservadores ideológicos que buscam, por meio de uma lei, abafar as minorias mais uma vez. Situações desse tipo, em que maiorias políticas tentam segregar minorias do espaço público e, ainda, interferir-lhes na vida A opção pelo uso do X busca neutralizar o gênero da palavra, de modo que não seja atribuída nem ao feminino, nem ao masculino. 25

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privada, já ocorreram muitas vezes na história e hoje é normal retratar-se pelos erros dos antepassados. A atuação do Judiciário é significativa no momento em que o Legislativo se torna mais um órgão de repressão do que de representação.

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