A figura do feminino na tapeçaria do Apocalipse de Angers

August 17, 2017 | Autor: Florence Dravet | Categoria: Femininity, Visual Arts, Comparative mythology, Catastrophism
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A figura do feminino: um dos monstros catastróficos - reflexões a partir da tapeçaria do Apocalipse de Angers Florence Dravet1

A dor que atraímos transforma-se em alegria Vem, tristeza, aos nossos braços - somos nós o elixir dos sofrimentos. (Rumi, séc. XIII)

O presente artigo parte do tema provocativo da Catástrofe e faz uma reflexão em saltos a partir de uma tapeçaria medieval, do século XIV, que pode ser vista no castelo do rei René, na cidade de Angers, na França. A obra traz a narrativa bíblica do Apocalipse, revelado ao apóstolo São João. Centramos nosso estudo sobre "a figura do feminino como um dos monstros catastróficos", abordagem relacionada a pesquisas atualmente desenvolvidas no contexto de um projeto interessado em indagar a presença e o lugar do feminino na cultura e na sociedade, na arte, na mídia e na religião2. Iniciar uma reflexão a partir de uma tapeçaria faz imediatamente pensar na importância teórico-metodológica da ideia de tecer. Para dar conta da realidade complexa da vida - complexus: o que é tecido em conjunto - é preciso atentar ao múltiplo, os múltiplos fios, as múltiplas cores que, tecidos juntos, resultam em uma realidade de significação e de-significação a um só tempo. Não é portanto anódino o fato de tomarmos como objeto uma tapeçaria e de nela buscar traços de significação que também nos remetem a uma boa dose de mistérios. Nessa reflexão, procedemos por um método que viemos qualificando de poético, ou seja, um método subjetivo que abandona a lógica logocêntrica linear e atua por saltos, associações, aproximações e conduções, aqui, imagéticas. Em trabalho anterior (DRAVET, 2014), explicamos longamente a lógica poética que pode mover o pesquisador no seu exercício de 1

Florence Dravet é doutora em Ciências da Linguagem pela Universidade de Paris 3 - Sorbonne Nouvelle e professora do Mestrado em Comunicação da Unversidade Católica de Brasília. [email protected] 2 Projeto "O feminino da tradição afrobrasileira à cultura brasileira– estudo da figura da Pomba Gira, suas imagens e imaginários mediáticos", apoiado pelo edital MCTI/CNPq/MEC/CAPES Nº 43/2013.

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investigação estética. Baseada no mito, essa lógica é propositiva e não injuntiva. Não é uma razão que busca comprovação através da argumentação lógica, e sim uma razão que parte de imagens (visuais, sonoras, mentais, etc) e oferece possibilidades para o pensamento. Ou seja, trata-se de uma lógica que possibilita àquele que dela participa um lugar no complexo de relações que são tecidas a todo momento, entre todos os entes do sistema cósmico. Nesse sentido, é uma razão aberta. No trato com as imagens, encontramos em Aby Warburg elementos metodológicos que enriqueceram nossa lógica poética com aquela da memória despertada pelas imagens visuais e da orientação como forma de conduzir a reflexão de um lugar de memória a outro, de um lugar de significação a outro. Warburg explora as relações possíveis entre imagens (cosmologia das imagens), que ele distingue das relações entre signos (cosmologia dos signos). Ou seja, as imagens não estão relacionadas entre si apenas por conexões sígnicas, mas também por conexões imagéticas (que habitam o imaginário), ligadas à memória coletiva e individual. As imagens são ligadas entre si por associação mnemônica. São como pontes, nexos, "feixes de conexão no espaço aberto" (HEIDEGGER, 1998). Ao conectarmos uma imagem a outra, através de algum tipo de orientação, construímos sentidos elaborados logicamente. Às vezes, porém, não há orientação previamente elaborada e esta acontece, criando espaços de pensamento, tensionando pólos: A criação consciente de uma distância entre si mesmo e o mundo exterior, isto é sem dúvida o que constitui o ato fundamental da civilização humana. Se o intervalo assim criado forma o substrato de uma criação artística, então as condições estão reunidas para que a consciência dessa distância invista uma função social durável, cuja oscilação rítmica entre imersão na matéria e retorno à sofrósina permite ver o movimento cíclico entre uma cosmologia da imagem e uma cosmologia do signo. Trata-se aqui de um instrumento de orientação espiritual cujo bom funcionamento ou falha não determinam nada menos que o destino de uma cultura humana. O homem artista, que oscila de tal forma entre uma concepção religiosa e uma concepção matemática do mundo, vê-se amparado pela memória - coletiva e individual - de uma maneira bem particular: não contente em criar um espaço de pensamento, ela reforça as duas tendências que constituem os pólos limites do comportamento psíquico: a contemplação calma por um lado, e o fervor orgiástico por outro. (WARBURG, 2012, p.54 )

Recorremos à experiência dessas conexões imagéticas para construir nossa reflexão a partir das imagens do Apocalipse. Num primeiro momento, a conexão se deu de forma não elaborada. A olhar uma imagem, fomos remetidas a outra. Num segundo 2

momento, seguimos uma orientação warburgueana para construir uma relação de significação entre imagens. É o que apresentaremos a seguir. 1. A tapeçaria do Apocalipse e a mulher O Apocalipse é o tema da tapeçaria medieval do século XIV, encomendada pelo rei da França Carlos Quinto e o poderoso Duque de Anjou (região da cidade de Angers) cuja finalidade política era de tratar da manutenção do papado em território francês, na cidade de Avignon e longe de Roma. Todavia, o contexto histórico que justifica a encomenda pouco nos interessa aqui. De fato, estamos mais preocupados em identificar traços culturais e simbólicos, recorrentes à ideia de catástrofe e saímos em busca desses traços nas imagens do Apocalipse. O termo, em seu significado original, não traz a ideia de catástrofe como fim de mundo, mas a ideia de revelação. De fato, a palavra apocalipsis em grego é formada por "apo" (tirado de) e "kalumna" (véu) e significa "revelação". Um apocalipse, na terminologia do judaísmo e do cristianismo, é a revelação

divina de

coisas,

que

até

então

permaneciam

secretas,

a

um profeta escolhido por Deus. Antes de mostrar algumas imagens da tapeçaria, é importante tratar de sua estrutura narrativa que se baseia no seguinte esquema: Uma imagem vertical apresentando um personagem alto numa guarita com a presença de um anjo, seguida de uma série de quatorze imagens dispostas horizontalmente em duas sequências de sete, sendo uma no nível superior e outra no nível inferior. A narrativa é composta de seis episódios, cujo início é sempre marcado pela presença da imagem vertical, remetendo à instância de narração: um leitor lendo os escritos de São João a quem o Anjo trouxe a revelação divina e encarregou de narrar o que viu. A ideia da narração/revelação é recorrente em quase todas as imagens das peças, uma vez que, em quase todas elas, figura à esquerda, a personagem de São João vendo as cenas da predição. Raras vezes, São João deixa a guarita e se aproxima da cena, deixando entrever a necessidade de ver mais de perto ou de examinar melhor alguns casos. A imagem que apresentamos abaixo refere-se à terceira peça entre seis, e foi escolhida por ser a mais completa uma vez que alguns fragmentos das outras peças desapareceram (dos 138 metros originais de comprimento da tapeçaria, sobraram 108 metros). Vejamos nela a estrutura acima referida: 3

Figura 1: Terceira peça da tapeçaria do apocalipse.

A fim de fornecer uma ideia melhor do tipo de imagem apresentadas na tapeçaria, reproduzimos abaixo algumas delas:

Figura 2: O dragão combatendo os servidores de Deus.

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Figura 3: Um segundo anjo anuncia a queda da Babilônia.

Figura 4: O verbo de Deus avança nas Bestas.

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Nos deparamos portanto com uma sucessão de imagens de guerras, batalhas, embates e destruições. Mas também com imagens de santos, anjos, deuses, monstros e homens. Vamos ao texto bíblico, às legendas de algumas imagens e entendemos que se trata de um combate entre o bem e o mal, ou da luta entre Deus e o diabo, luta na qual a humanidade está em jogo. A luta finda com a destruição da Babilônia para o advento da Jerusalém Celeste, ou seja com a vitória final de Cristo e de sua Igreja uma vez que a Babilônia representa a decadência e a perversão da civilização dos homens, enquanto que a Jerusalém Celeste é uma cidade ideal e divina onde reina o bem. Lembramo-nos então de que, para Vilém Flusser (apud BAITELLO, 2012), a segunda das três catástrofes da humanidade é justamente a da civilização, quando o homem já não anda mais de quatro mas se ergueu sobre seus pés, deixou de ser nômade para se sedentarizar e inicia o longo processo de civilização: com uma linguagem estruturada, uma organização social definida, etc. A civilização como processo cultural afasta o homem de seu pertencimento à natureza e faz dele um ser que se diferencia de todos os outros sobre a terra, que vive seguro em suas aldeias, cidades, casas, acumulando bens. Eis uma das maiores catástrofes. A segunda catástrofe denominada "civilização", modifica sua natureza de forma radical, inserindo-o fixamente na vida em aldeias, em torno das quais são domesticados e cultivados vegetais e animais. Surge aí o assentado (cujo verbo em alemão é, "sitzen", estar sentado) o possuidor e acumulador de bens (do verbo "besitzen", possuir). Flusser argumenta com a língua alemã, mas pode se confirmar o mesmo com a língua latina (e suas derivadas) na qual os verbos são igualmente irmãos: "sedere" e "possedere", sentar e possuir. (Idem, p. 27)

Em meio a essa profusão de imagens de destruição da Babilônia para a construção de algo "melhor": a Jerusalém Celeste, pensamos na noção de civilização como organização da humanidade em torno da ideia de civilidade, momento em que os sistemas de escrita e os sistemas matemáticos e numéricos permitiram o desenvolvimento técnico-científico e toda a racionalidade humana. É com essas ideias em mente e sob o impacto das imagens de destruição que nos voltamos para a tapeçaria e que nosso olhar se espanta ao demorar-se nesta imagem:

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Figura 5: A grande prostituta sobre as águas.

São João sai da sua guarita, guiado pelo Anjo, que lhe mostra de perto uma bela mulher sentada em uma ilha, penteando os cabelos e mirando-se num espelho que reflete um rosto feio. Embora estejamos envolvidos, com a tapeçaria, em um ambiente medieval europeu e bíblico, por algum efeito de condução que as imagens por vezes provocam em nosso imaginário, ao olhar para essa imagem, fomos imediatamente remetidos a Oxum, a deusa das águas doces, filha da grande mãe Iemanjá, às vezes sua irmã, que veio da África para o Brasil junto dos escravos e aqui tornou-se a deusa da beleza, da sedução, do amor e da geração - aquela que rege as emoções. Em poucos instantes, percorremos continentes e séculos. E o olhar voltou perplexo para a legenda da imagem em busca de explicação: "A grande prostituta sobre as águas". A mulher que o Anjo mostra a São João é a “grande prostituta”, símbolo dos vícios e das perversões da Babilônia. Sentada em um montículo de terra rodeado de águas abundantes, a criatura loira penteia sua opulenta cabeleira e se mira num espelho. Este não reflete seu belo rosto e sim uma horrenda caricatura - a imagem de sua alma impura? Vemos no fundo azul da cena, a letra Y, o yod, símbolo dual de vida e morte, de virtude e de vícios. Ainda na perspectiva do símbolo, lembramos, com Umberto Eco, a simbologia das cores no período medieval: A partir do século XII, o azul torna-se uma cor apreciada: basta pensar no valor místico e no esplendor estético do azul dos vitrais e rosáceas das catedrais, que domina sobre as outras cores e contribui para filtrar uma luz „celestial‟. (...) da mesma forma, um colete ou um xarel vermelhos exprimem coragem e nobreza, embora o vermelho seja também

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a cor dos carrascos e das prostitutas. O amarelo é considerado cor da covardia e é associado às pessoas marginalizadas e rejeitadas, aos loucos, aos muçulmanos e aos judeus; contudo, também é celebrado como a cor do ouro, entendido como o mais solar e precioso dos metais. (Eco, 2004, p. 123)

Figura 6: A grande prostituta sobre as águas.

Figura 7: Imagem de Oxum.

A semelhança, na forma e nos símbolos, entre a prostituta apocalíptica medieval e a Oxum afro-brasileira se verifica ao colocarmos lado a lado as duas figuras e foi certamente essa semelhança que conduziu nosso imaginário de um universo cultural a outro. A semelhança na presença das cores azul e amarelo, das águas, do ato de pentearse, da mirada no espelho que nos fala do ser e do parecer, daquilo que pensamos ser e daquilo que realmente somos, do reflexo revelador e transformador, lugar de passagem e de revelação. A presença das águas que falam tanto de fluidez e derramamento, inclusive de excessos e transbordamentos, quanto do aspecto dinâmico e flexível daquilo que conduz, a água fala de emoções e sentimentos enquanto a terra nos fala da solidez do mental, das certezas dos valores seguros. A presença do pente, instrumento da vaidade e da beleza aparente, mas também instrumento da renovação e da purificação daquilo que já não se quer. Vemos, portanto, que a riqueza de significados simbólicos possíveis pode dar margem a inúmeras interpretações discursivas que podem até se tornar dogmáticas.

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Pelas bolotas e o tipo de folha, podemos identificar na árvore da imagem apocalíptica feminina um carvalho: árvore mística e mágica do conhecimento apreendido pela natureza, morada das ninfas gregas, uma das sete árvores sagradas para os druidas, em baixo das quais se faziam rituais e em cujos troncos eram inscritas letras mágicas, também a árvore das bruxas dos ritos de sabá. Já, na imagem de Oxum, a vegetação parece não ter outro significado simbólico a não ser o de remeter à exuberância da natureza com a qual o ser feminino parece estar perfeitamente integrado.

2. Da Grande Prostituta às putas de todos os tempos Se os percursos temporais e geográficos (do castelo medieval europeu do século XIV às imagens africanas ancestrais, ao Brasil dos séculos XVIII, XIX, XX e XXI) não fazem sentido na linearidade de um raciocínio é que correspondem muito mais a uma concepção de rede formando textos de cultura, verdadeiros hipertextos cujas imagens podem facilmente ser consideradas os hiperlinks - como nomeamos hoje as conexões diversas entre várias partes de uma rede. Nesta perspectiva, resta-nos seguirmos os hiperlinks que as imagens realizam na rede transcultural da realidade e irmos ao atemporal, ao arquetípico, buscando, na terminologia de Warburg, o pathosformel3 que motiva a criação e atravessa essas imagens. Embora haja vários escritos teóricos sobre essa noção, compreendemos, a partir do texto introdutório do Atlas Mnémosyne, escrito por Roland Recht (In: WARBURG, 2012), que aquilo que Warburg chama de Pathosformel, pode ser explicado como as formas recorrentes de um mesmo pathos, uma mesma paixão, ou afeto, que agita o ser humano através dos tempos e das culturas de maneira não contínua e linear, não evolutiva, mas cujos movimentos podem ser reconhecidos nas formas e se apresentam de vez em quando como fórmulas nas imagens. Inicialmente, Warburg reconheceu algumas fórmulas de pathos da Antiguidade grega que se perpetuaram e ressurgiram durante o Renascimento florentino estudado por ele. Posteriormente, ele também não negou a presença dessas fórmulas durante o período medieval, apesar da característica bastante estática da iconografia da época.

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Embora relativamente próximas, as noções de arquétipo, para Jung, e de pathosformel, para Warburg, são distintas. Sobre tais aproximações e distinções, ver SCARSO, Davide. "Fórmulas e arquétipos, Aby Warburg e Carl Gustav Jung" Enciclopédia e hipertexto. Disponível em: http://www.educ.fc.ul.pt/hyper/resources/dscarso/ Acessado em: 23/06/2014.

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Percorrendo o trajeto warburgueano de Mnémosyne, atravessamos tempos, terras e mares, guiados - talvez - por aquilo que Rupert Sheldrake (1993) chamou de "ressonância entre campos mórficos", ou seja, o fato de que o conhecimento adquirido por um conjunto de indivíduos, quando se agrega ao patrimônio coletivo, provoca um acréscimo de consciência que passa a ser compartilhado por toda a espécie. E assim, montamos uma rede de imagens, indo e voltando no tempo, entre imagens míticas e midiáticas, em tempos e culturas distintas, seguindo, todavia, uma orientação precisa. FIGURA 8: A mulher e as águas (montagem 1)

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Na primeira montagem (A mulher e as águas, Figura 8), a primeira orientação para um trajeto de leitura possível é a que conduz de um extremo a outro: da Grande Prostituta medieval (A grande prostituta sobre as águas) à diva, na concepção contemporânea (Lady Gaga em seu videoclipe "Applause"), ou seja, a deusa Vênus e sua relação com as águas. Podemos também seguir uma orientação horizontal e linear. Na linha horizontal começando de cima, estão lado a lado, A grande prostituta sobre as águas, o Nascimento de Vênus de Boticelli e a imagem afrobrasileira de Oxum. Três versões de uma mesma mulher. Abaixo, várias Vênus nascidas das conchas em diversos tempos (na antiguidade, uma Vênus da região sul da Itália, datada de 220 a 180 a. C.; Marilyn Monroe fotografada para o filme de Billy Wilder The Seven Year Itch, em 1955 e o nascimento de Vênus revivido no palco por Kylie Minogue em seu show "Aphrodite" de 2011), mostrando a permanência e recorrência do tema no decorrer do tempo. Na linha abaixo, pinturas de Henri-Pierre Riou (1871), Alexandre Chabanel (1863) e Théodore Chasseriau (1819) retomam o tema romântico de uma Vênus cuja beleza agora é melancólica mas que é nascida do mesmo movimento das águas e do vento. Na linha horizontal de baixo, Lady Gaga figura sozinha como a representante do protagonismo da mulher agora estrela de seu próprio show, retomando o poder original de seu nascimento das águas, criando um novo discurso sobre sua relação ao masculino, uma vez que no clipe, ela dança ao centro, enquanto dois homens servem de eventuais amparos estáticos para seus movimentos frenéticos e livres.

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FIGURA 9 – A mulher e a noite (montagem 2)

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Vamos à trajetória a ser percorrida na segunda montagem "A mulher e a noite, figura 9". De um extremo a outro, começamos com O rapto de Proserpina pintado em 1650 por Simone Pignonet e terminamos com a figura da Pomba Gira brasileira. No segundo nível, damos lugar a imagens de mulheres cujos conhecimentos em ciências ocultas as tornaram grandes magas (La leçon avant le sabbat, Louis Maurice Boutet (1880), Assemblée de sorcières de Frans Francken II (1607) e um retrato anônimo de Catarina de Médici (séc. XV). Na linha de baixo: um retrato de histerismo do século XIX. A mulher desconhecida, nascida da noite: histérica? Reprimida? Negada? louca ou enlouquecida por séculos de devastação de sua libido? Abaixo, a capa de uma edição da Playboy de 2001, exibindo a Feiticeira (Joana Prado) nua - figura midiática brasileira dos anos 2000, ao lado de Madonna em uma de suas produções para o lançamento mundial do album Like a virgin, em 1984, e, por fim, a Pomba Gira brasileira, a um só tempo misteriosa e alegre. Temos, nas duas montagens, um feminino ora romantizado e idealizado, ora demonizado e temido, um feminino místico, belo, sedutor, encantador, mas também perigoso e assustador. São deusas, ninfas, divas e mulheres fatais, virgens ou santas, todas elas imagens de um mesmo pathosformel. São bruxas, feiticeiras, histéricas, putas e devassas, também elas imagens desse mesmo pathosformel. 3. A mulher e as catástrofes: apocalipse afrobrasileiro às avessas? Em busca de uma forma de identificar ou nomear o pathosformel motivador das imagens do feminino reunidas nas duas montagens acima, buscamos nas narrativas míticas das religiões afrobrasileiras alguma pista. E encontramos um Apocalipse às avessas, que conta o mito catastrófico de Iemanjá que, a seu tempo e em seu contexto, antes de tornar-se a corruptela de Nossa Senhora dos Navegantes no Brasil, era também esse ser dual, contraditório, a um só tempo mãe que nutre a todos os filhos da terra e mulher caprichosa, perigosa que, irada, destrói o mundo com suas águas. Iemanjá castiga seu filho Xangô Ao ouvidos de Iemanjá estavam chegando notícias de que seu filho Xangô andava pelo mundo queimando tudo e atemorizando as pessoas com o fogo que ele botava pela boca, olhos e ouvidos. Preocupada, Iemanjá procura o filho para repreendê-lo. 13

Xangô não gostou da atitude da mãe e, enfurecido, botou fogo pelo nariz, olhos e ouvidos, devolvendo com desaforos a reprimenda de Iemanjá. Ela, não aceitando a atitude do filho, girou sobre si mesma e fez brotar de suas saias imensas, ondas que derrubaram Xangô. As águas estavam tão enfurecidas quanto Iemanjá. Nesse momento, Xangô saiu gritando: "Me dás medo". Desde então, Xangô respeita todas as decisões de Iemanjá. (CABRERA, 2004, p. 41). Aqui, vemos também um homem amedrontado pelo poder da mulher. Porém, nesse Apocalipse às avessas, o homem não destrói a mulher, ao contrário, passa a respeitá-la para que ela não destrua o mundo. A grande prostituta sobre as águas aqui é Deusa. Na diferença, ambas - deusa e prostituta - são a mesma: "Me dás medo!" grita o homem, diante dela. Essa mulher africana de saias imensas e que gira sobre si mesma amedrontando os homens, tem outro nome no Brasil: ela é a Pomba Gira. É ela mesma, a Grande prostituta sobre as águas, aquela que destruirá o mundo com seus vícios e sua lascívia, o objeto do pathosformel dos artistas que, de tempos em tempos, retomam as formas de expressão dos medos coletivos. A mulher que amedronta o homem e que, ao longo dos tempos, foi tratada como: a bruxa pela inquisição cristã, a histérica pela medicina, a "puta" pela sociedade moralista bem pensante. Mas também como: a deusa pelos povos africanos, a musa pelos poetas antigos e modernos, a diva pela cultura de massa. Voltamos à tapeçaria de Angers, para dentro das fortificações do castelo medieval, voltamos ao tempo da visita e do turismo, ao tempo do Rei Carlos Quinto, ao tempo bíblico, aos tempos da Babilônia. Mas voltamos sobretudo fora do tempo e da História, para dentro do tempo mítico, arquetípico. Em todos os tempos e fora do tempo, milhares de homens - são homens e mulheres, mas aqui na tapeçaria, curiosamente, são apenas homens - milhares de homens são destruídos por monstros, forças naturais e sobrenaturais, enviados pelo demônio e pela civilização prostituída da Babilônia. E entre essas forças tão temidas, entre todos os homens, aparece uma mulher apenas, surgida das águas, mulher arquetípica cuja força tem o poder de tudo destruir - a grande prostituta sobre as águas. Indubitavelmente, essa mulher também é a mãe, aquela que menstrua, que gera, dá a luz, nutre e cuida. Na iconografia medieval europeia, essa mulher se divide em duas representações distintas e opostas. Por um lado, a mulher pecadora e causadora de todos os vícios: a grande prostituta sobre as águas, como já vimos, que terá, ao longo da história, outras 14

denominações e tomará outras formas. Por outro lado, a Virgem Maria, pura, que no Apocalipse é a "mulher revestida de sol", a cabeça cindida por uma coroa de doze estrelas e os pés apoiados sobre a lua. Na cena apocalíptica, perseguida pelo dragão de Satã que quer lhe roubar o filho, Maria entrega-o ao Anjo salvador (FIGURA 10).

Figura 10: A mulher revestida de sol Na iconografia e nos discursos, essa Virgem Maria também tomará outras formas e será objeto de diversas versões de santidade, perfeição e bondade. Sobretudo, servirá de modelo moralizador para as mulheres destinadas a serem mães, a verem seus instintos sexuais podados pelas noções cristãs de virgindade e santidade, a dedicarem-se à educação dos filhos e à boa condução da economia do lar, etc. Todos valores cristãos que, ainda hoje, dominam a razão e a moral da sociedade patriarcal. Sobre as consequências e a manifestação dessa realidade no Brasil, Mary del Priore (2008) trata da santa-mãe como "um arquétipo para melhor submeter a mulher à vida doméstica" e defende a ideia de que, na realidade, "a maternidade foi o refúgio onde as mulheres se defenderam da exploração doméstica e sexual, do abandono e da solidão em que viveram nas duras condições materiais de vida dos tempos coloniais" (p.25) e que essa condição constituiu uma fenomenal possibilidade de revanche para as mulheres, que fundamentaram sua inclusão social e cultural no matrimônio. Já, na mitologia afrobrasileira, essas duas mulheres habitam uma só deusa, uma deusa dúbia, que se manifesta tanto em Iemanjá como em Oxum, respectivamente sincretizadas com Nossa Senhora dos Navegantes e Nossa Senhora da Conceição (há outras variantes na correspondência entre as deusas africanas e as santas católicas, 15

porém preferimos citar aqui essas duas como mais representativas da significação que ora estamos explorando através de ambas as deusas). É preciso dizer que com esse processo de sincretismo - que consideramos mais como uma estratégia de resistência das formas externas do que como uma assimilação efetiva pela cultura brasileira dos substratos fundamentais de cada sistema - a imagem dessas duas deusas foi, pouco a pouco, perdendo suas características negativas e se santificando no imaginário coletivo brasileiro. No entanto, tanto a primeira como a segunda, em sua versão genuína, obedecem intrinsecamente a dois padrões opostos, permanentemente tensionados: Oxum é a geradora, dona do ouro, das riquezas e do amor em sua polaridade positiva; é também a mulher que ama a todos sem se apegar a ninguém, a mulher livre capaz de brincar com os sentimentos alheios; uma espécie de "mulher de vida livre" como são chamadas as "putas" no linguajar popular brasileiro; uma mulher também capaz de vingança e de manifestações violentas de ciúme; Iemanjá, a grande Mãe que nutre e cuida é também a mulher lasciva, de forte conteúdo libidinal e, portanto, sexual, mulher cheia de vontades e desejos, capaz de seduzir o próprio filho e viver o incesto. Com o processo sincrético e a aproximação entre a imagem de Nossa Senhora e a de Iemanjá, nasce no Brasil, uma outra figura que assume o lado obscuro da feminidade da deusa. É a figura da Pomba Gira, conforme afirma Augras: A Umbanda, parece ter promovido, em torno da figura de Iemanjá, um esvaziamento quase total do conteúdo sexual. Tal sublimação (ou repressão?) deu ensejo ao surgimento de nova entidade, pura criação brasileira, a Pomba Gira, síntese dos aspectos mais escandalosos que pode expressar a livre expressão da sexualidade feminina, aos olhos de uma sociedade ainda dominada por valores patriarcais (AUGRAS In: MOURA, 1989, p.14)

Talvez esteja aí a chave para o pathosformel que buscamos nas imagens das mulheres: "Me dás medo!", grita Xangô. Tanto medo que é necessário criar infinitamente formas de expressar essa paixão. E aparece a Pomba Gira: puro movimento e "síntese dos aspectos mais escandalosos que pode expressar a livre expressão da sexualidade feminina". Este feminino livre já não surge das águas, mas da noite, dos domínios obscuros do desconhecido. Veste-se de vermelho e negro. Enquanto „mulher-sem-dono, amante, companheira de vários homens, ela representa exatamente o reverso das imagens virginais e maternas de caboclas e pretas-velhas. Mas evidentemente essas „qualidades‟ fazem de pomba-gira uma mulher extremamente

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perigosa, já que o desejo feminino não domesticado, não-voltado para a maternidade, contraria as necessidades da organização familiar patriarcal em que a mulher deve estar submetida à autoridade masculina” (MONTEIRO, 1985, p.215/216)

Podemos dizer que a Pomba Gira expressa o que chamaremos aqui do regime noturno das coisas em referência àquilo que Durand (2012) chamou de "regime noturno das imagens": a sexualidade feminina, interiorizada e profundamente misteriosa; a intuição feminina, em oposição à razão esclarecida pela luz do conhecimento; os domínios do silêncio e da magia; os domínios da morte; por demais obscuros para serem aceitos pelo homem dominador da civilização, em busca de uma razão esclarecida que o auxilie no domínio de suas paixões. Pois não era esse o intento do Apocalipse bíblico? Destruir a civilização viciada pelos pecados a fim de erguer uma cidade celeste, livre de todos eles? A Babilônia e suas prostitutas não foram aniquiladas, estas continuam supostamente desvirtuando os homens e sua civilização, e estes expressam seu medo, ora pelo pathosformel artístico, ora, como é visível no Brasil, chamando de "puta" a todas elas e, ainda, chamando uns aos outros de "filhos da puta", o mais ofensivo dos xingamentos que se pode pronunciar entre homens. 4. Do pathosformel à coincidência dos opostos Para concluir sobre a figura feminina na lógica catastrófica, diríamos que ela traz consigo um significado de ambivalência, ou de coincidência dos opostos. É na própria contradição que ambas - a figura feminina e a lógica da catástrofe em si- adquirem seu poder. No que concerne às catástrofes de fim de mundo, são da ordem do mito, não se concretizam, ou se acontecem, não as percebemos. Afinal, é possível dizer que a luta apocalíptica - narrada na Bíblia como luta da luz contra as trevas - nunca deixou de estar em curso e nunca teve fim; que o mundo é uma série de destruições e renovações, de fins e recomeços, de mortes e renascimentos, onde os modos infernais convivem com os idílicos, onde a Babilônia por vezes cede lugar à Jerusalém Celeste, e onde a grande tarefa de cada um em meio a tantos sofrimentos e alegrias parece ser a de saber conviver e compreender a coincidência dos opostos, e saber transformar sofrimentos em alegrias. Na mesma perspectiva, a figura do feminino ora dicotomizada em Virgem Santa e Grande Prostituta pela concepção cristã, ora coincidente nas deusas afrobrasileiras, alterna suas manifestações de santidade e pureza com as de devassidão e lascívia, sendo 17

fator, a um só tempo, de nascimento e de morte, de geração e de destruição, causando e experimentando ora sofrimentos ora alegrias. A esse respeito, a Pomba Gira é propriamente a expressão dessa coincidência dos opostos, pois a alegria que expressa ao chegar girando e gargalhando, dançando e cantando, só é possível porque todas as Pomba Giras se constroem com base em narrativas de sofrimentos extremos, geralmente relacionados a decepções amorosas, vinganças e finais trágicos que um longo percurso espiritual permitiu superar. Sendo assim, embora no imaginário popular elas sejam consideradas entidades perigosas, associadas à prática de feitiçaria, companheiras das prostitutas, as Pomba Giras conhecem tanto o aspecto trevoso da emoção amorosa quanto seu revés luminoso. Por isso mesmo, na Umbanda, são elas as detentoras do poder de transitar entre os dois aspectos. Nesse sentido, elas são sexual e emocionalmente consideradas livres. E a esse propósito, voltamos à poesia do incipit deste artigo, do poeta místico sufi Rumi, nascido na Pérsia do século XIII que, na primeira estrofe do poema intitulado "O que não somos", diz o seguinte: A dor que atraímos transforma-se em alegria Vem, tristeza, aos nossos braços - somos nós o elixir dos sofrimentos. Tal concepção corresponde perfeitamente ao papel que a Pomba Gira tem no culto afrobrasileiro: auxiliar as pessoas a transformarem suas dores em alegrias. Majoritariamente, a dor de ser mulher, gay ou travesti, em força feminina.

Índice de imagens Figura 1: Terceira peça da tapeçaria do Apocalipse Figura 2: O dragão combatendo os servidores de Deus Figura 3: Um segundo anjo anuncia a queda da Babilônia Figura 4: O verbo de Deus avança nas Bestas Figura 5: A grande prostituta sobre as águas Figura 6: A grande prostituta sobre as águas (detalhe) 18

Fonte: Delwasse, Liliane. La tenture de l'Apocalypse d'Angers. Editions du Patrimoine. Centre des monuments nationaux, 2007. Figura 7: Oxum; Fonte: http://paulodaiansa.zip.net/ Figura 8: A mulher e as águas (montagem a partir de imagens disponíveis na rede) Figura 9: A mulher e a noite (montagem a partir de imagens disponíveis na rede) Figura 10: A mulher revestida de sol Fonte: Delwasse, Liliane. op. cit.

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