A Figura do Filosofo - Ceticismo e Subjetividade em Montaigne

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Luiz Eva A figura do filósofo Ceticismo e subjetividade em Montaigne

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PREPARAÇÃO: Maurício B. Leal DIAGRAMAÇÃO: So Wai Tam REVISÃO: Denise Ceron

Edições Loyola Rua 1822 nº 347 — Ipiranga 04216-000 São Paulo, SP Caixa Postal 42.335 — 04218-970 — São Paulo, SP (11) 6914-1922 (11) 6163-4275 Home page e vendas: www.loyola.com.br Editorial: [email protected] Vendas: [email protected] Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora.

ISBN: 978-85-15-03265-5 © EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2007

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A meus pais

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Sumário

Apresentação ................................................................................

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Nota sobre as referências ao texto de Montaigne ........................

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Capítulo I – Filósofo de nova figura? ........................................... 1.1. A razão cética ..................................................................... 1.2. A epokhé posta em prática ................................................ 1.3. Um novo cético? ................................................................

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Capítulo II – A esgrima cética ..................................................... 2.1. Um fideísmo paradoxal...................................................... 2.2. A querela da fé e a auto-refutação cética ........................... 2.3. O ceticismo e o valor social da piedade ............................ 2.4. Doença racional e terapia cética ....................................... 2.5. Um problema vexatório .....................................................

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Capítulo III – O império do costume .......................................... 3.1. Um traiçoeiro mestre ......................................................... 3.2. Costume e dogmatismo ..................................................... 3.3. “Nós todos somos do vulgo” .............................................. 3.4. A opacidade dos fenômenos ..............................................

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Capítulo IV – Filosofia, literatura e paradoxo ............................. 4.1. Retórica do paradoxo ......................................................... 4.2. Um pirronismo lúdico? ......................................................

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Capítulo V – Filosofia como ensaio do juízo .............................. 5.1. O ceticismo como gênero filosófico .................................. 5.2. O ensaio como investigação cética.................................... 5.3. O filósofo e as abelhas ....................................................... 5.4. Exemplaridade, subjetividade e filosofia moderna ...........

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Capítulo VI – Ceticismo em movimento .................................... 6.1. A extremidade da dúvida sob exame ................................. 6.2. Um retrato mais fiel do juízo humano .............................. 6.2.1. Uma outra face da individualidade ......................... 6.2.2. A balança das crenças .............................................. 6.2.3. Uma doença natural do juízo? ................................ 6.2.4. O movimento natural das opiniões ......................... 6.3. Os cães de Esopo ............................................................... 6.4. A epokhé em movimento .................................................. 6.5. Uma atitude cética ............................................................

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Capítulo VII – O ensaio como fantasia ....................................... 7.1. Quimeras e monstros fantásticos ....................................... 7.2. Da fantasia dogmática à fantasia cética ............................. 7.3. Uma quimera que não cabe na imaginação .....................

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7.4. Uma imagem menos fantasiosa do homem ...................... 7.5. Imaginação, experiência e impremeditação .....................

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Conclusão – Ceticismo e subjetividade .......................................

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Bibliografia ................................................................................... 1. Edições das obras de Montaigne e instrumentos de análise utilizados .................................... 2. Outras fontes primárias ...................................................... 3. Fontes secundárias .............................................................

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Apresentação

O texto que aqui segue é a culminação de uma pesquisa sobre as implicações do ceticismo antigo nos Ensaios de Montaigne, iniciada há mais de quinze anos. Fui movido, no início, pela sedução de decifrar o significado filosófico das incontáveis alusões aos textos céticos de Sexto Empírico e Cícero ao longo da impressionante “Apologia de Raymond Sebond” (décimo segundo capítulo do segundo livro dos Ensaios). Tal foi o objeto da minha dissertação de mestrado, defendida em 1994, da qual resultou o livro Montaigne contra a vaidade (ver Bibliografia). Confirmaram-se e esclareceram-se então, a meu ver, diversos aspectos em que essa filosofia recém-redescoberta se faz presente nesse texto com rigor e profundidade normalmente despercebidos, o que sobretudo me conduziu a novas questões, que realimentaram meu interesse inicial. Dediquei meu doutoramento a examinar em que medida tais conclusões podem ser estendidas para o conjunto dos Ensaios. Cabe interpretá-los, de modo geral, como decorrentes do mesmo engajamento filosófico cético detectável naquele ensaio, embora seja ele o que melhor exibe um teor propriamente filosófico? E 11

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em que sentido? Uma eventual resposta afirmativa acenava de modo promissor com uma perspectiva renovada acerca desse momento aparentemente tão decisivo, no limiar do que veio a se chamar filosofia moderna, e tão carente de investigação, ao menos por esse vértice particular. Sendo assim, ademais, dada a proeminência que ganha, nos Ensaios, o projeto de um exame da condição humana e da produção de um retrato de si mesmo, não estaríamos diante de uma figura primordial ou embrionária, talvez, do vínculo teórico entre crítica epistemológica (cética) e tematização da subjetividade (temas freqüentes na posteridade filosófica e mesmo diretamente associados em diversos filósofos, como Descartes)? Não se ofereceria aqui um ponto de partida relevante para examinar criticamente aspectos da maneira com que esses temas eventualmente se vincularam? Ainda que restrita ao exame dos Ensaios, a tarefa se afigurou demasiado ampla para ser perseguida com o devido rigor no âmbito da pesquisa de doutoramento, de modo que fui obrigado a convertê-lo (Ceticismo e paradoxo nos Ensaios de Montaigne, defendido no início de 2000) em uma etapa desse trajeto. A ele correspondem, aproximadamente, em versão muito remanejada (tratando-se aqui não de uma tese, mas de um texto que se pretende destinar a um público mais amplo), os cinco primeiros capítulos deste livro. Posteriormente, a oportunidade de realizar, ao longo de 2003, um estágio de pós-doutoramento, no Departamento de Filosofia da Universidade de Nantes, permitiu-me desenvolver boa parte dos capítulos finais, concluídos após reelaborações. Embora o trajeto não culmine com uma análise do conteúdo particular do auto-retrato de Montaigne, penso que ele é bem-sucedido, ao menos, em exibir detalhadamente a continuidade existente entre o engajamento cético da Apologia, o viés subjetivista de que ele é solidário (em um sentido que será precisado ao longo da investigação) e os fundamentos filosóficos do projeto de se auto-retratar. O trajeto me parece delinear uma nova imagem do próprio ceticismo montaigniano: um ceticismo de linhagem “radical”, como se verá, embora possuidor de uma configuração conceitual própria; ao mesmo tempo, uma filosofia articulada com o pleno uso e desenvolvimento de todas as 12

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Apresentação

faculdades humanas, corporais e espirituais, na medida em que isso se faz ao nosso alcance; uma filosofia voltada ao mundo da vida e da ação, e ao contato do homem com sua efetiva condição. Torna-se assim possível recuperar os contornos próprios de um gênero filosófico que, em boa medida, foram apagados pela maneira como a posteridade acolheu o “ceticismo” em sua versão cartesiana. Concomitantemente, a compreensão dessa filosofia segundo sua coerência própria me permitiu reavaliar, em boa medida, o sentido de reações filosóficas ao ceticismo que pertenceram ao mesmo contexto histórico — em especial, a filosofia cartesiana. Dediquei-me a explorar, ao longo do trajeto, um contraponto com aspectos desta que contribui para mostrar, ao que nos parece, que sua dúvida filosófica (metodicamente desenvolvida na Primeira Meditação e normalmente tida como um modelo do “ceticismo” moderno) não apenas representa uma transformação da postura autenticamente cética que se pode reconhecer nos Ensaios, mas sobretudo parece voltada — de um modo mais profundo e minucioso do que até aqui se tem percebido — a responder aos desafios conceitualmente postos por essa versão particular de ceticismo, em sua tentativa de superá-lo. Serviu-me como fio condutor mais geral do percurso o exame da nova figura de filósofo que Montaigne alegou oferecer (no texto que situei, adiante, como epígrafe deste trabalho). Além de uma função decorativa, o texto da epígrafe possui uma importância decisiva para a totalidade do percurso. E um primeiro passo consiste em tentar situar adequadamente a problemática em vista da qual essa importância se revela — a saber, o conflito que parece haver entre a alegação de novidade expressa por essa passagem e as evidências que poderiam ser arroladas em favor de um engajamento filosófico de Montaigne a uma filosofia dada, o ceticismo. Esse engajamento possui uma precisão e uma complexidade que costumam ser subestimadas, em parte graças à leitura demasiado rápida de passagens como a que servirá de epígrafe, pois tais evidências se apresentam, como mostrarei, também no interior dessa passagem, de tal modo que lhe conferem um caráter paradoxal. Esse paradoxo não constitui um caso isolado: a busca de uma solução ao problema 13

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que ele instaura nos conduz à descoberta de uma estratégia recorrente, de uma peculiaridade argumentativa intimamente ligada à concepção filosófica do ceticismo que podemos encontrar nos Ensaios. E, ao ser aprofundado seu exame, descortinam-se, a bem dizer, sentidos diversos em que se articula a reflexão cética nos Ensaios. A observação do paradoxo em seu emprego retórico, num primeiro momento, ajuda a elucidar a dimensão cética da reflexão sobre a religião (examinada no capítulo II), bem como, mais amplamente, sobre os costumes, em suas dimensões epistemológica e política (tema do terceiro capítulo). Tal emprego retórico, contudo, apenas se elucida no capítulo IV, quando consideramos o texto de Montaigne à luz da tradição literária renascentista da declamatio: ele corresponde, ao menos em parte, a uma estratégia de adaptar a expressão de sua reflexão, por uma estratégia de ocultamento, em vista das restrições impostas pelos costumes. Ao mesmo tempo, criam-se assim condições para compreender de modo preciso um segundo sentido de seu emprego — este mais propriamente filosófico — como instrumento voltado a instaurar o “ensaio” do juízo e superar as deficiências que Montaigne encontra naquilo que se chama “filosofia” em seu tempo. Assim, a busca de sua novidade filosófica nos conduzirá a repetidamente reconhecer a fidelidade e o rigor interpretativo com que, retomando o ceticismo antigo, ele adentra em ambientes conceituais originalmente estranhos à problemática cética, valendo-se do paradoxo como instrumento de sua reflexão. Contudo, o fato de que a “formação do juízo” assuma um papel central no interior de sua filosofia conduz ao que parece ser um novo paradoxo — na medida, ao menos, em que estivermos diante de um filósofo cético, cuja prática necessariamente há de focalizar, de modo privilegiado, a “suspensão do juízo” (epokhé). Esse aparente paradoxo me conduziu, no sexto capítulo, a investigar detalhadamente como esses pontos se conciliam, na forma de uma interpretação original do ceticismo por parte de Montaigne. Emergirá, então, no centro de tal interpretação, um terceiro sentido em que a noção de paradoxo parece relevante em sua reflexão e pelo qual ele se converte numa forma de representação da epokhé, como signo da finitude dos poderes cognitivos de nosso juízo ou entendimento que é incompreensível com base 14

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Apresentação

neles próprios. Esse terceiro emprego do paradoxo revela, por sua vez, uma outra “novidade” com que se manifesta o ceticismo montaigniano, talvez não de todo consciente por parte do filósofo, embora nos pareça decisiva de um ponto de vista histórico — a saber, a articulação do diagnóstico cético de nossa incapacidade de conhecer a verdade em torno dos limites naturais de nossas faculdades cognitivas. A mesma constatação permitirá transitar, no capítulo VII, pelo exame das considerações de Montaigne sobre imaginação ou fantasia. O leitor verá que elas oferecem por si mesmas um derradeiro fio condutor capaz de abarcar a trajetória filosófica de Montaigne em sua inteireza, segundo seus contornos mais peculiares. Mais ainda, como se verá, a noção de fantasia é precisamente aquela que nos permite melhor compreender não apenas o significado biográfico de seu contato filosófico com o ceticismo, mas também a maneira como seu engajamento cético se articula coerentemente com um projeto de se auto-retratar e autoconhecer, no sentido maduro que ele adquire. O esforço de compreender a singularidade filosófica dos Ensaios acaba, assim, por imprimir ao percurso uma feição bastante sinuosa. Mas não se trata aqui de mimetizar o modo próprio com que avança em seu texto, aos “saltos e piruetas”, o filósofo de nova figura. Devo confessar — talvez sem poder contornar inteiramente um paradoxo — que esse me parece ter sido, involuntariamente, um preço a pagar pela busca de exibir com clareza uma figura filosófica que opera de modo mais rigoroso do que aquele que costuma transparecer na vagueza do ensaísmo: “É o leitor indiligente que perde meu objeto, não eu”.

*** Seria impossível mencionar aqui o nome de todos que deram sua colaboração para o livro que o leitor tem agora em mãos. Limitar-me-ei a registrar minha gratidão a Franklin Leopoldo e Silva, orientador de minha pesquisa de doutoramento; a Bento Prado Jr., Danilo Marcondes, Paulo Faria e Sérgio Cardoso, pelas argüições ao texto do doutoramento, que contribuíram para sua revisão; e aos demais professores, colegas e amigos com quem pude debater algumas das idéias aqui 15

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presentes, em especial Oswaldo Porchat Pereira, Roberto Bolzani Filho e Plínio Junqueira Smith. Desejo agradecer, por sua acolhida, a Pierre Magnard, orientador do estágio que realizei na Universidade de Paris IV (Paris-Sorbonne) durante meu doutoramento, em 1996, bem como aos demais pesquisadores franceses com que tive contato durante esse período, especialmente os participantes do grupo Montaigne (Cerphi-ENS), em particular a Sylvia Giocanti, Frédéric Brahami, e a Mitchiko IshigamiIagolnitzer (CNRS-IHRT). Gostaria também de agradecer aos colegas do Departamento de Filosofia da Universidade de Nantes — particularmente aos professores Jean-Michel Vienne, Michel Malherbe e Nelly Bruyère-Robinet — pela proveitosa experiência de trabalho durante minha estada. Agradeço também a Fernanda Magalhães pelo apoio na fase final do trabalho e pela revisão de uma versão prévia deste texto. Agradeço, finalmente, ao auxílio financeiro da Capes, na forma de uma bolsa de pós-doutoramento, e do CNPq, na forma de uma bolsa de doutoramento e um auxílio recém-doutor, determinantes para a boa consecução da pesquisa da qual este livro é um resultado. Curitiba, 6 de dezembro de 2005

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Nota sobre as referências ao texto de Montaigne

Malgrado os méritos diversos das traduções dos Ensaios disponíveis em português, a especificidade deste estudo filosófico exigiu que nos ativéssemos ao texto original francês, com base no qual se fizeram diretamente as citações nas versões anteriores desta pesquisa. A preocupação com a clareza ilustrativa das citações nos forçou a empreender uma tradução pessoal das passagens citadas, guiada pelo esforço em preservar a literalidade, tanto quanto possível. Procuramos sempre destacar o termo próprio empregado por Montaigne em francês quando isso nos pareceu relevante e mesmo reproduzir em seu todo, por vezes, algum período ou frase do texto original. Citamos os Ensaios com base naquela que ainda hoje é a edição de referência, de Pierre Villey (ver Bibliografia). As mudanças aportadas pelas novas edições disponíveis em francês (de André Tournon e de Jean Céard), a despeito de seu interesse, não nos pareceram relevantes, até onde pudemos constatar, no que tange aos resultados de nossa leitura. As citações dos Ensaios devem ser lidas da seguinte forma: o primeiro número (em algarismos romanos) indica o livro, o segundo in17

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dica o capítulo e o terceiro indica o número da página. Assim, II, 10, 418 indica, por exemplo, que o texto situa-se na página 418 do décimo capítulo do segundo livro, segundo a edição Villey-Saulnier. Convém alertar o leitor não-especialista para uma peculiaridade importante do processo de redação dos Ensaios. Como diz Montaigne, ninguém negaria que ele adotou uma via que o levaria tão longe quanto houvesse de papel e tinta no mundo (II, 9, 945B): a partir da edição inicial, de 1580, eles cresceram não apenas no número (posto que o terceiro livro aparece apenas em 1588), mas sobretudo pelas revisões do texto original. Contudo, respondendo ao seu propósito de não “corrigir” suas reflexões anteriores (III, 9, 963B), tais acréscimos limitam-se a “ajustálas”: eles vão se dando por meio dos célebres “alongamentos” — isto é, de notas marginais por ele mesmo acrescidas às suas reflexões anteriores, que são incorporadas, por sua própria decisão, ao corpo do texto original nas edições seguintes. Assim, não apenas o texto cresce nas edições sucessivas (conservando, de modo geral, o que estava presente anteriormente, e fundindo-o com esses novos desenvolvimentos), como possui um sentido cronologicamente dinâmico, se assim podemos dizer, uma vez que esses alongamentos são de teores muito diversos (podendo tanto confirmar como inverter o sentido da reflexão prévia). Assim, nas citações, as letras que as precedem entre colchetes indicam a edição original da qual elas provêm (A = 1580; B = 1588; C = acréscimos posteriores a 1588). Usaremos tanto “capítulos” como “ensaios” para designar as divisões da obra de Montaigne, embora a primeira opção corresponda atualmente à tendência mais difundida. As razões para tanto não nos parecem todavia suficientemente sólidas: o próprio Montaigne, é bem verdade, as denomina “capítulos” (ver II, 8, 386A), mas também parece empregar o termo “ensaio” no mesmo sentido (ver III, 5, 875B). Por sua freqüência, as referências ao capítulo intitulado “Apologia de Raymond Sebond” (II, 12) indicam apenas o número da página dos Ensaios.

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“[B] Eu aconselhei, na Itália, a alguém que estava com dificuldade de falar o italiano, e que não buscava mais do que se fazer entender, sem querer dominar o idioma, que apenas empregasse as primeiras palavras que lhe viessem à boca — latinas, francesas, espanholas ou gascãs — nelas adicionando uma terminação italiana. Desse modo, jamais deixaria de encontrar algum idioma do país, ou toscano, ou romano, ou piemontês, ou napolitano — e de se achar nalguma dentre tantas formas. Digo o mesmo da filosofia: ela tem tantas faces e variedades, e disse tanto, que todos os nossos sonhos e devaneios aí se encontram. A fantasia humana nada pode conceber, de bem ou de mal, que aí não esteja. [C] ‘Nihil tam absurde dici potest quod non dicatur ab aliquo philosophorum’ [‘Nada se pode dizer de tão absurdo que não tenha sido dito por algum filósofo’: Cícero, De divinatione, II, lviii)] [B] Deixo, assim, meus caprichos irem mais livremente a público, posto que, mesmo que tenham nascido em mim, sem patrão [sans patron], eu sei que eles encontraram sua relação com algum humor antigo, e não faltará quem diga: — Eis de onde ele os toma! [C] Meus modos [moeurs] são naturais, não invoquei para formálos o socorro de nenhuma disciplina. Mas, por mais irrefletidos que sejam, quando vontade me deu de recitá-los, e me vi no dever, para lhes fazer sair em público um pouco mais decentemente, de assisti-los de discursos e de exemplos, maravilhei-me de encontrá-los, de modo casual, conformes a tantos exemplos e discursos filosóficos. De qual regime era minha vida só o aprendi depois de a ter vivido e posto em prática. Nova figura: um filósofo impremeditado e fortuito!” Ensaios, II, 12, 546

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CAPÍTULO I

Filósofo de nova figura?

Desde sua publicação, os Ensaios e sua crítica têm transitado, com maior ou menor hesitação, entre as estantes de filosofia e de literatura, a despeito (ou talvez por causa) de Montaigne se apresentar como um “filósofo de nova figura”. A despeito ou por causa, pois nem o relato citado na epígrafe, em que ele reconhece, com aparente ironia, sua novidade como filósofo, nem, de modo geral, os textos em que alude à sua relação com a filosofia parecem contribuir, à primeira vista, para elucidar o caráter filosofante de sua obra. Que tipo de filósofo é esse, impremeditado e fortuito perante a dispersão das filosofias com as quais seus modos de agir (moeurs) se mostraram conformes? O presente estudo poderia ser visto em seu conjunto como um comentário dessa sua epígrafe — extraída do capítulo geralmente tido como o mais filosófico, votado ao exame do saber humano, a “Apologia de Raimond Sebond”1 — segundo a problemática precisada nas linhas seguintes. 1. Cf. 438-604; v. esp. 438a, em que se formula o objetivo do capítulo: avaliar se são verdadeiras as posições que atribuem à filosofia o poder de ser a mãe de toda a vir21

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Antes de mais, algumas precauções metodológicas. Ainda que nem todas as asserções dos Ensaios possam assim ser compreendidas, freqüentes são, como veremos, as passagens dessa obra que se apresentam sob formas paradoxais. Mas é particularmente importante evitar o enquadramento prematuro daquilo que se apresenta, à primeira vista, em forma de paradoxo como se fora uma pura e simples contradição. Não fizeram coisa diversa aqueles que descobriram a particularidade filosófica de Montaigne não apenas na desordem com que se sucederiam os temas, mas na suposta incongruência das opiniões que o autor não se furta em emitir livremente acerca dos mais diversos temas2. É certo que um traço importante da reflexão nos Ensaios reside em seu caráter assumidamente provisório, decorrente da liberdade que o autor encontra para voltar atrás em relação ao que dissera, mesmo ao preço de se contradizer. Afirma ele, por exemplo, que sua obra consiste do “registro de diversos e mutáveis acidentes e de imaginações irresolutas e, quando assim se dá, contrárias: seja que sou outro eu mesmo, seja que tomo os objetos por outras circunstâncias e considerações. Tanto disso ocorre que por vezes eu bem me contradigo, mas a verdade, como dizia Demades, não a contradigo jamais…” (III, 2, 805B, itálicos nossos). Contudo, enquanto Montaigne cuidadosamente diz “por vezes”, a precipitação em generalizar tal diagnóstico colabora para uma condenação inapelável, posto que a conseqüência natural de tal liberdade de ir e vir seria o caráter contraditório de suas opiniões filosóficas. Mas até que ponto é lícito esse julgamento? tude e de nos tornar sábios e contentes. Analisaremos a “Apologia” em seu conjunto mais cuidadosamente no próximo capítulo. 2. “[B] Nos meus próprios escritos eu nem sempre encontro o ar de minha primeira imaginação: não sei o que havia querido dizer e me exaspero freqüentemente em corrigir e dar-lhe um novo sentido por ter perdido o primeiro, que valia mais. Não faço senão ir e vir: meu juízo não avança sempre em frente, ele flutua e vaga…” (556). Diante de passagens como esta, J-Y Pouilloux entende que Montaigne é responsável por uma inovação filosófica “que lhe torna todos os assuntos possíveis, toda opinião sustentável, toda beleza reconhecível, porque ele se dá um objeto radicalmente diferente, porque os Ensaios acabam por deslocar toda questão, aí incluída a de seu fim…” (POUILLOUX, 1995, p. 55-56). Sem prejuízo de nossas afinidades com a leitura de Pouilloux, caberia indagar não apenas onde Montaigne reconhece expressamente uma novidade tal como essa, mas como ela poderia corroborar a idéia de que “toda opinião é sustentável”. 22

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Tomemos isoladamente a passagem de que partimos. Vemos ali que as razões dos antigos surgem, de saída, como paradigma da descoberta de sua identidade filosófica, pois é apenas graças ao apoio propiciado pela diversidade das filosofias que ele relata publicamente seus “modos” naturais. Mas ele se torna um filósofo de nova espécie apenas quando, afirmando-se em sua impremeditação, deixa de seguir, nalguma medida, preconizações filosóficas de seus predecessores (negandose a fundamentar sua atividade nalguma “doutrina”). Assim, tal reflexão exemplificaria essa atividade filosófica impremeditada e nova, que comportaria, até a liberdade de ser contraditório. Mas é de se perguntar quão longe se pode ir aí sem esmagar de saída toda a consistência possível de sua reflexão de filósofo. Como seria possível, com efeito, ler, ao lado de nossa epígrafe, esta outra passagem: “[C] … Eu não sou filósofo: os males me perturbam o quanto pesam, e pesam segundo a forma como segundo a matéria, e freqüentemente mais…” (III, 9, 950)? Não nos interessa aqui o sentido do não-filosofar alegado por Montaigne, mas o sentido da contradição que se cria entre essas duas passagens, em vista das quais seria preciso aceitar, como caso particular de sua contradição filosófica, que ele é e não é filósofo. Assim, o recurso a uma suposta falta de sistematicidade talvez não nos leve muito longe no esclarecimento da natureza de sua eventual filosofia, pois o caráter supostamente assistemático e fluido da filosofia montaigniana não pode ser dilatado a ponto de permitir, sem inconsistência, que ele seja e não seja filósofo graças à adoção dessa própria filosofia. De nada vale aqui o recurso à evolução cronológica, por mais que ele seja importante, como veremos, para compreender o percurso filosófico da obra em seu todo, uma vez que ambas as passagens citadas são posteriores a 1595, possivelmente contemporâneas. Nem mesmo podemos pensar que o problema se resolve se estamos diante de uma “oscilação de perspectivas”, segundo o sabor dos interesses momentâneos3. Não pretendemos, por certo, sugerir que Montaigne nunca se 3. HOLYOAKE (1989, p. 2, 13) propôs a hipótese de que a “inconsistência” do texto de Montaigne seria resultado de um processo inconsciente pelo qual ele é levado a desenvolver o tema segundo as contingências do momento. 23

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contradiga, nem mesmo que a aceitação de suas contradições não possa, para ele próprio, se articular com a aceitação de uma postura filosófica (e certamente há várias formas de assumir a própria incoerência…). Mas que filosofia, por mais impremeditada e fortuita que seja, pode acolher em si os predicados de ser e não ser filosofia, ao mesmo tempo e no mesmo sentido? Quão longe se pode ir nessa direção sem trivializar aquela que efetivamente se apresentaria nos Ensaios, caso filosofia efetivamente haja? Talvez não seja efetivamente possível, em última instância, conciliar essas afirmações aparentemente contraditórias a respeito de sua filosofia; talvez não o devêssemos levar a sério quando se refere contraditoriamente à sua filosofia. Mas essa atitude traz consigo uma conseqüência metodológica importante: identificar a particularidade de sua filosofia, mediante uma generalização descuidada, com a contradição pode nos cegar de saída para a eventual coerência filosófica que, caso exista, está a movimentar esse pensamento, mesmo (e talvez particularmente) em suas contradições, aparentes ou efetivas. E é essa decisão prévia que transforma freqüentemente, em nosso entender, a imagem da filosofia fluida num reflexo de nossa incapacidade de observar a possibilidade de as eventuais oscilações opinativas corresponderem, a despeito das aparências mais imediatas, a uma filosofia mais consistente. Eis por que vamos nos dirigir numa direção diversa e apostar que essa aparente incongruência, cuidadosamente examinada, pode nos revelar algum fio condutor que a explique, sem dissolver a sinuosidade própria com que os textos se oferecem, eventualmente harmonizada com a admissão de alguma identidade filosófica que os mesmos textos perfilem de maneira mais clara. E partindo daí talvez possamos, inversamente, compreender melhor os conflitos análogos que emergem noutros conjuntos de passagens (como aquelas em que ele alterna, por exemplo, o elogio e o escárnio da “filosofia”)4. Talvez possamos, igualmente, encontrar uma forma de interpretar as passagens em que Mon4. Em certos momentos, a “philosophie” é enaltecida, por exemplo, por seu poder de tornar a alma e o corpo igualmente sadios (v. I, 26, 161A). Noutros, ela é condenada como palco de um conflito de razões, merecedor de desconfiança, como veremos a seguir. 24

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taigne se refere à maneira casual com que trata dos mais diversos temas sem abortar a possibilidade de lê-lo como um filósofo mais coerente — e mais interessante aos olhos dos filósofos que o lêem, nem sempre com a devida paciência diante do percurso singularmente sinuoso de seus textos. Não se trata, contudo, de aplicar um “princípio de caridade” hermenêutico como norma interpretativa exterior e auto-evidente. Trata-se apenas de tentar ler um filósofo seguindo mais fielmente suas preconizações — valorizando o alerta desta passagem de “Da vaidade”: “É o leitor indiligente que perde o meu objeto, não eu…” (III, 9, 994C). Um segundo problema metodológico relevante diz respeito não tanto à coerência filosófica de sua “nova espécie” de filósofo, mas ao sentido em que sua filosofia se diria “nova”. Sem dúvida, a novidade deve forçosamente se dizer “nova” em face de algum panorama da “tradição” (continuamente mobilizada nos Ensaios, por inúmeras alusões, especialmente aos “antigos”, mas também aos filósofos tal como os encontra existentes). Não é todavia incomum a adoção precipitada de um axioma interpretativo tácito pelo qual se exige de Montaigne (inimigo declarado de tantas nouvelletez) a exibição de alguma “novidade filosófica”, e que acaba por desencorajar uma apreciação mais cuidadosa do rigor filosófico próprio com que a “tradição” é eventualmente retratada em seu texto5. Quão mais impaciente o comentador nessa investigação prévia, tanto maior a chance de que a “novidade” encontrada não seja mais do que a projeção de um panorama que, de certo modo, ele já tem diante dos olhos — como fazem aqueles que 5. A crítica literária tem debatido sobre o modelo estilístico do qual se originaram os Ensaios: a glosa jurídica (v. TOURNON, 1983), as leçons ou florilégios morais (v. VILLEY, 1933; BEAUJOUR, 1980), ou as hypomnemata antigas (v. GARAVINI, 1993, esp. cap. I). Freqüentemente, essa via conduz o intérprete a situar o papel do “discurso filosófico” como gênero particular no interior de um gênero mais amplo, ao qual ele se subordinaria. Entretanto, na crítica filosófica é também comum encontrarmos interpretações que a situam segundo balizas supostamente “inevitáveis” para o filósofo do século XVI. Tais críticas, enfatizando certas passagens fora de seu contexto, ou mesmo limitando-se a apontar a presença de certas expressões na obra, acabam por desfocar a relação de Montaigne com a tradição filosófica, tal como se projeta na escolha explícita das fontes que ele direta e deliberadamente discute. Um exemplo parece-nos ser a obra de COMPAGNON (1980), que busca compreender os Ensaios no contexto dos debates me25

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Montaigne critica em seu capítulo “Dos canibais” (I, 31), incapazes de considerar os povos recém-descobertos à luz da razão. E talvez a rota dessa França Antártida não nos deva afinal conduzir, ao menos de saída, tão longe das mais tradicionais, se considerarmos o peso das evidências com que algumas filosofias comprovadamente estudadas por Montaigne se apresentam nos Ensaios. Cabe nos precavermos aqui contra alguns preconceitos. Consideremos, por exemplo, a maneira pela qual se interpreta a questão de seu “ceticismo” — um “operador costumeiro da crítica”, para mencionar uma expressão de sabor igualmente costumeiro. A partir de Villey, tornou-se usual o reconhecimento de que, por volta de 1576, Montaigne leu uma recente tradução latina das Hipotiposes de Sexto Empírico6 (fonte fundamental da Apologia), bem como, a partir dessa época, diversas obras atinentes ao ceticismo, fossem antigas (como as Vidas dos filósofos ilustres, de Diógenes Laércio, o opúsculo de Plutarco “Contra Colotes”, ou ainda os diálogos Acadêmicos e Da natureza dos deuses, de Cícero, cuja data de leitura é relativamente incerta), fossem contemporâneas (como o Da incerteza e vaidade das ciências, de HenriCorneille Agrippa, de 1537, e possivelmente o Que nada se sabe, de Francisco Sanches, publicado, primeiramente, em Lyon, no ano de 1581). No entender de Villey, tais leituras — das quais a que deixa traços mais numerosos e mais evidentes no texto é a de Sexto, mesmo que Montaigne jamais cite seu nome — marcam uma “crise cética”7, que outros dados extratextuais viriam corroborar. À mesma época, Montaigne faz forjar uma medalha de bronze com a efígie da balança dievais lógicos e metafísicos que opõem realistas e nominalistas, a despeito das insistentes críticas de Montaigne aos “ergotismos” da filosofia de seu tempo. 6. Trata-se ou bem da edição de Henri ESTIENNE, publicada em 1562: Sexti Philosophi Pyrrhoniarum hypotyposeon libri III… Interprete Henricus Stephano (cf VILLEY, Les Essais, p. lix.), ou bem da edição de Gentian HERVET, de 1569, que inclui também os Adversus Mathematicos. Restringiremos nossas análises às aproximações possíveis com o texto das Hipotiposes, valendo-nos eventualmente das edições renascentistas, embora tenhamos em vista para as nossas análises principalmente as edições modernas de Bury e de Annas e Barnes. 7. Cf. VILLEY, 1933, I, p. 243. 26

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equilibrada, símbolo da suspensão de juízo dos pirrônicos (à qual alude pela mesma metáfora nos Ensaios), inscrevendo, nas vigas de sua biblioteca, dentre outras, algumas frases extraídas de Sexto — como esta, que exprime a mesma idéia representada metaforicamente na medalha: “a todo argumento se opõe outro de igual força”8. Eis um Montaigne escolar. Mas, diante dessas evidências, as escolas se portaram de muitos modos: situando o “ceticismo” como um traço permanente, e um tanto idiossincrático, do “temperamento” de Montaigne9; ou buscando decifrar, na linguagem dos Ensaios, uma forma literária de “ceticismo”, do qual os paradoxos e contradições seriam o instrumento10; ou ainda, modalidade mais popular, reconhecendo a presença filosófica do veio cético como um entre outros que alimentam a obra, para buscar noutra parte o essencial11. Pomos aqui lado a lado essas várias leituras — bastante diversas, a nosso ver, quanto a suas teses, sua pertinência e mesmo quanto ao que denominam “ceticismo” — porquanto nos parecem convergir em alguns pontos. Ad8. “pánti lógo lógos ísos antíkeitai”. V. Les Essais 436 e lxvii; Hipotiposes Pirronianas (HP I-12). 9. Parece-nos possível demarcar aqui uma certa tradição interpretativa na crítica anglo-americana, que remontaria, eventualmente, a R. W. Emerson. Craig Brush, por exemplo, põe-se de acordo com Donald Frame ao afirmar que há um componente cético permanente na personalidade de Montaigne, por vezes resumido na expressão “open mind” (cf. BRUSH, 1966, p. 37). Segue-se daí uma tendência a negar a idéia de uma “crise cética”, bem como, igualmente, a logo perder de vista o problema de estabelecer mais precisamente a relação conceitual desse “ceticismo” com aquele historicamente constituído como doutrina filosófica. 10. É o caso de André Tournon, para quem o paradoxo é o instrumento pelo qual Montaigne isenta suas afirmações de poder assertivo (v. TOURNON, 1983, p. 227, 246) Pouilloux julga que a novidade do “ceticismo” de Montaigne revela-se na maneira como sempre as teses são apresentadas de modo provisório, para serem seguidamente destruídas, num movimento pelo qual a sua “nova ciência … estabelece os limites nos quais nós devemos regular nossa prática intelectual” (POUILLOUX, 1995, p. 104-105). Ver também DEMURE, 1990. Retomaremos essas leituras no capítulo IV. 11. Para M. Merleau-Ponty, as considerações sobre um Montaigne cético “não vão longe” (1960, p. 302). Jean Starobinski, igualmente, entende que a identificação de ceticismo em Montaigne significa sempre reduzir a filosofia dos Ensaios a um esquematismo falseador (v. STAROBINSKI, 1993, p. 8). Ver, no mesmo sentido, COMTESPONVILLE, 1993. 27

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mitem, em geral, que o ceticismo dos Ensaios é recoberto de alguma novidade, mas não o fazem por meio de uma confrontação conceitual e argumentativa mais desenvolvida com o ceticismo antigo (por vezes denominado com expressões como “pirronismo escolar”, por oposição à exuberância ensaística12). No verso dessa admissão, sela-se a crença na inutilidade da aproximação. “Montaigne não é exatamente um pirrônico porque…” é o mote habitual de exposições em dois ou três passos, que jamais se estendem na direção de um projeto de investigação mais amplo. O “pirronismo”, já suficientemente trabalhado na “escola”, quase nunca é retomado, na literatura crítica sobre a filosofia dos Ensaios, com base nos problemas interpretativos postos pela exegese mais recente. Ensina-se um Montaigne que, cético ou não, é sempre possuidor de uma compreensão igualmente clara do ceticismo que aceita ou rejeita, apesar do que ele diz em meio a sua exposição dos conceitos principais dessa filosofia: “[C] Eu exprimo essa concepção [fantasie] o tanto que posso, porquanto vários a acham difícil de conceber, e os autores mesmos a representam um pouco diversamente e obscuramente…” (505). Deixemos provisoriamente à parte o problema de saber se o modo como Montaigne interpreta suas fontes céticas tem especial relevância à luz das questões interpretativas próprias do ceticismo. É preciso antes considerar que, de modo geral, a leitura do “que sais-je?” como prova de ceticismo não é, historicamente falando, a tendência mais difundida. Mais comumente, a crítica dos Ensaios optou por negar, restringir ou qualificar a possibilidade de lê-los como autenticamente céticos, sem examinar devidamente a viabilidade desse juízo categórico de um de seus patronos, Pascal, que, como outros contemporâneos, considerou Montaigne um “puro pirrônico”: “É sobre esse princípio que se desenvolvem todos os seus raciocínios e ensaios…”13. Devemos, portanto, retomar o problema daqui: quão longe, afinal, deve a exegese comparativa dos textos de Montaigne e Sexto Empírico nos levar desse juízo pascaliano? É o ceticismo, para Montaigne, uma filosofia “a ser 12. Ver FARQUHAR, 1991, p. 25. 13. PASCAL, Entretien avec M. de Sacy, I, 160. 28

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rejeitada como as outras”? Uma prática argumentativa e filosófica guiada por conceitos diversos daqueles que pautam o andamento dos Ensaios, ou incompatíveis com eles, sejam quais forem? Uma postura doutrinal que não pode corresponder adequadamente à sua “liberdade e [seu] ecletismo”?14 Importa, assim, tentarmos levar às últimas conseqüências a possibilidade de descortinar a coerência de um engajamento filosófico ad mentem auctoris, observando como ele opera com suas fontes céticas nos capítulos em que elas são mais evidentes (como em “Apologia”). Já seria bastante se o único resultado fosse o de vislumbrarmos com mais clareza sua distância do ceticismo para melhor lastrear nosso juízo sobre a novidade e o interesse de seu propósito. Veremos porém que, ao contrário, as fontes céticas permitem conferir um sentido filosófico preciso a diversos elementos de suas reflexões que, delas apartados, poderiam ganhar a vaga aparência de uma novidade filosófica tão impremeditada quanto inconsistente15. 1.1. A razão cética

Há uma única passagem nos Ensaios, salvo engano, em que Montaigne se detém em definir e discutir uma tipologia das filosofias existentes, separando-as em três gêneros, correspondentes às diferentes posturas em que elas necessariamente se situam relativamente à posse da verdade (v. 502). Os dogmáticos (Montaigne menciona explicitamente os estóicos, os epicuristas e os peripatéticos) julgam, cada qual à sua moda, conhecer a verdade. Os acadêmicos (entre os quais Clitômaco e Carnéades), por oposição, compreendem que os meios humanos não podem obtê-la. Os pirrônicos ou “Skeptiques” permanecem na busca, pois, embora não a possam reconhecer, dizem eles, em nenhuma das diversas formulações, entre si conflitantes, que as filosofias dogmáticas apresentam, julgam ainda temerária a dúvida acadêmica: “[A] Pois isso de estabelecer a medida do nosso poder de conhecer e julgar 14. Cf., por exemplo, VILLEY, 1933, II, p. 142, 201. 15. Para um exame mais sistemático da argumentação cética nesse capítulo, ver EVA, 2003. Retomaremos alguns pontos desse texto em perspectiva diversa. 29

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a dificuldade das coisas é uma grande e extrema ciência [science], da qual duvidam que o homem seja capaz…” (ibid.; cf. HP I, 226). Como já se notou amplamente, Montaigne não faz mais do que reproduzir, de modo quase literal, o início das Hipotiposes, de Sexto. Mais exatamente, ele assume, em seu próprio nome (posto que ele não a refere diretamente a uma filosofia particular), uma distinção acerca dos gêneros filosóficos que é proveniente de um texto pirrônico e tem grande relevância, como veremos, para a caracterização dessa filosofia. Mas, se a mera adoção desse esquema (que norteará, na verdade, o exame das filosofias em geral que ali se inicia) nada diz, por si só, acerca do posicionamento de Montaigne quanto ao conteúdo dessa distinção, a ela corresponderão indícios mais explícitos de um juízo favorável a uma orientação filosófica cética, em mais de um texto contemporâneo da primeira versão da “Apologia”. Por exemplo, na introdução de “Que nosso desejo cresce pela dificuldade”, Montaigne traduz o lema cético inscrito nas vigas de sua biblioteca, supracitado, e a ele acrescenta este eloqüente comentário pessoal: “[A] Não há razão que não tenha uma razão contrária dela, diz o mais sábio partido dos filósofos…” (II, 15, 612; itálicos nossos). Se o cético (usemos provisoriamente esse termo sem distinguir pirrônicos de acadêmicos) não reconhece a verdade nas filosofias (que ele denominará dogmáticas, em vista da pretensão de oferecerem verdades), é por ter constatado que cada uma delas pode individualmente se mostrar sustentável por uma demonstração racional, à primeira vista persuasiva e bem fundamentada, muito embora esteja, ao mesmo tempo, em oposição às demais. Essa constatação norteia o princípio pirrônico fundamental, segundo Sexto: criar antinomias, opondo razões contrárias, para renovar o estado de epokhé ou suspensão do juízo decorrente dessa impossibilidade de reconhecer a verdade nas filosofias conflitantes (cf. HP I, 12). É a tal princípio cético — inscrito, como vimos, nas vigas de sua biblioteca — que Montaigne claramente alude na afirmação citada. Na “Apologia”, o mesmo juízo sobre a superioridade da posição dos céticos se apresenta com mais detalhes, ainda que de forma indireta. A exposição dos conceitos principais do ceticismo, que ocupa as páginas centrais desse capítulo, é delimitada por dois juízos relaciona30

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dos ao exame da busca humana da verdade ora ensejado. Ao introduzila, Montaigne avisa que vai se restringir, a partir daquele ponto, a considerar o desempenho das faculdades intelectuais humanas no que considera ser o seu “mais alto assento” (v. 501A). Poder-se-ia supor que se tratasse apenas de uma alusão genérica ao exame da filosofia que se seguiria daí, ou mesmo de um elogio à perspicácia dos “filósofos” (apesar de os ter, há pouco, escarnecido por meio de uma irônica comparação com o vulgo e de um elogio da simplicidade humana). Porém, o segundo juízo, que encerra essa exposição, mostra indiretamente que as filosofias não se encontram, para Montaigne, todas situadas num mesmo plano. Percebemos que qualquer ambigüidade relativa à primeira indicação, isoladamente considerada, dissolve-se quando nos deparamos, ao final da exposição do ceticismo (aí incluídos, sem uma delimitação clara entre ambos, o pirronismo e a filosofia acadêmica), com o seguinte comentário sobre o desenvolvimento precedente: “[A] Não há nada na invenção humana em que haja tanto de verossimilhança e de utilidade…” (506). Ora, essa exposição e o comentário que a encerra se situam, por sua vez, antes da exposição e da análise das filosofias dogmáticas, que vêm a seguir. Eis como a ambigüidade se resolve, indiretamente: a porção de texto compreendida entre o exame que se anuncia, acerca do entendimento humano em seu mais alto assento, e o elogio daquilo que se examinou, como a invenção humana mais útil e verossímil, é precisamente aquela em que se expõe o ceticismo, “o mais sábio partido dos filósofos”. Mas se essa invenção, em sua superioridade, é apenas a mais verossimilhante, não se projeta implicitamente sobre o restante da produção filosófica humana o mesmo juízo cético sobre a incapacidade de reconhecer a verdade? Dissemos há pouco que nos valemos do termo “cético” sem nos ocupar, por ora, do problema da distinção entre pirrônicos e acadêmicos. Mas os textos que acabamos de mencionar já suscitariam indagações a esse respeito. Montaigne segue uma divisão tripartite da filosofia que é de origem pirrônica, mas a porção de texto que compreende a exposição do ceticismo se vale igualmente de passagens pirrônicas e acadêmicas, e o juízo conclusivo mobiliza um conceito (o “verossímil”) que poderia nos remeter à Nova Academia. A qual filosofia exa31

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tamente ele alude quando se refere ao mais sábio “partido”? Adiante, teremos melhores condições de examinar o significado filosófico do uso dessas fontes, que ele mesmo reconhece como distintas, e de mais essa aparente ambigüidade. Importa, antes disso, sublinhar que sua preocupação central nessa discussão é expor o ceticismo filosófico em suas articulações conceituais principais do modo mais coerente de que se julga capaz: “eu exprimo essa concepção o tanto que posso, pois muitos a acham difícil de conceber e os próprios autores a representam um pouco obscuramente, e diversamente” (505). A despeito da eventual obscuridade que os textos lhe pareçam ter, trata-se de observar a discrepância das fontes disponíveis, discernindo as que a apresentam de modo caricatural, com base nas críticas clássicas que lhe são historicamente dirigidas pelos filósofos rivais, naquelas que se ocupam em harmonizar conceitualmente uma dimensão teórica dubitativa e uma dimensão prática, conjugando à suspensão do juízo a adesão ao phainómenon, no caso dos pirrônicos (ou, alternativamente, ao probabilis ou veri similis, no caso dos acadêmicos), como critério para a condução das ações da vida (cf. 505A). Nesse esforço exegético, embora os textos pirrônicos sejam o principal fio condutor, Montaigne se vale também de fontes acadêmicas desde a primeira versão da “Apologia”. Diríamos, desde já, que a tendência mais geral de suas considerações nos parece ser tratá-las antes como versões diversas de uma mesma orientação filosófica básica do que como filosofias radicalmente opostas (sem prejuízo das comparações mais pontuais que examinaremos adiante)16. Se considerarmos a “Apologia” em sua versão de 1580, sabemos que a apresentação do ceticismo se faz quase exclusivamente com base em elementos pirrônicos. Ausentes os textos citados dos Acadêmicos de Cícero, as demais referências a essa filosofia provêm sobretudo de Plutarco e Diógenes Laércio. Nessa apresentação são expostas e comentadas as principais noções do ceticismo, como a suspensão do juízo 16. Diz Montaigne, ao concluir sua exposição dos conceitos principais do ceticismo: “Eis como, das três seitas gerais da filosofia, duas fazem expressa profissão de dúvida e de ignorância…” (506A). 32

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(epokhé), a que nos referimos; a adesão ao phainómenon, ao aparecer das coisas tal como naturalmente se manifestam como critério para a ação; a precipitação (propéteia) dos filósofos dogmáticos em asseverar a verdade; e a imperturbabilidade (ataraxía) à qual é conduzido o cético em suspensão17. Detenhamo-nos um momento no exame da epokhé. Segundo Sexto, a experiência da impossibilidade de assentir a algum dos diversos discursos filosóficos dogmáticos conduziu o cético a um estado de suspensão do juízo (epokhé) acerca da verdade ou da falsidade dos objetos dessas filosofias em que ele buscará reiterar, como vimos, pela oposição de argumentos de igual força (v. HP I, 8-12, 26). Montaigne assim nos apresenta essa noção: [A] Quando eles dizem que o pesado vai para cima, ficarão bem descontentes se a eles se der crédito; eles buscam ser contraditados, para poderem engendrar a dúvida e a suspensão do juízo, que é seu fim. Eles não avançam suas proposições senão para combater aquelas que pensam que temos em nossa crença… (502-503). Adiante, reconhecendo ser essa a noção fundamental do ceticismo e frisando que os pirrônicos sustentam uma epokhé extrema (v. 505A), ele busca, no entanto, precisar seu sentido com auxílio de outra fonte não-pirrônica, já nos textos da edição de 1580. Trata-se do opúsculo “Contra Colotes”, de Plutarco18. Prestemos atenção ao modo como ele permite a Montaigne oferecer uma precisão relativamente aos limites da suspensão, para descartar uma leitura errônea, porém freqüente, da filosofia cética que a ele se atribui. 17. Ver p. 502-506. Todos esses, salvo o último, são conceitos pirrônicos dos quais se poderá encontrar análogos no ceticismo acadêmico, como devidamente o ilustrará Montaigne nos alongamentos do texto, a partir de 1588. Quanto à ataraxía como noção exclusiva do pirronismo, ver ANNAS, 1988, p. 107. 18. Montaigne travou contato com Plutarco por meio da tradução francesa de Jacques Amyot que, segundo Villey, ele passou a ler por volta de 1573-1574 — período próximo ao da leitura das obras de Sexto. Os juízos de Montaigne acerca das moralia de Plutarco, fonte de numerosas citações em várias épocas da composição dos Ensaios, são normalmente elogiosos (v. VILLEY, 1933, t. I, p. 219-221). No opúsculo “Contra Colotes” encontra-se uma apresentação e defesa da filosofia acadêmica contra a interpretação do epicurista Colotes (v. OM, 597E). 33

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Aludindo à filosofia acadêmica de Arcésilas, Plutarco esclarece que a suspensão (retention) cética obsta apenas a ação do assentimento (consentante, expressão empregada na tradução de Amyot e preservada por Montaigne), nada obstando quanto à ação das demais faculdades da alma e especialmente quanto à capacidade de pensar e raciocinar19. Embora a suspensão deva resultar da constatação de uma incapacidade racional em estabelecer a verdade (isto é, em estabelecer uma conclusão em favor da veracidade de algum dos discursos filosóficos que podem ser opostos uns aos outros), isso não significa, segundo os próprios céticos, como bem percebe Montaigne, a impossibilidade de uma investigação racional: “[A] Eles se servem de sua razão para investigar e para debater, mas não para sentenciar [arrester] e escolher…” (505). O ceticismo, portanto, não é sinônimo de irracionalismo. Tal emprego da razão, ademais, é tido por Montaigne como totalmente conforme à fruição adequada daquilo que a natureza pode oferecer para a vida humana em sua prática normal, por oposição ao modo pelo qual os dogmáticos pretenderiam imaginariamente produzir suas verdades racionais. Depois de apresentar os quatro aspectos do “phainómenon” que, segundo Sexto, o cético observa como critério de ação20, Montaigne frisa que o cético conduz sua vida prática “da maneira comum”, 19. Ver ibid.; a mesma idéia é desenvolvida por Sexto em HP II, 10. Em OM, 596 D-E, Plutarco identifica três movimentos na alma: o imaginativo, o apetitivo e o assentimento, ressaltando que “aqueles que se retêm e duvidam de todas as coisas não o suprimem, mas se servem da apetência ou do instinto, naturalmente conduzindo cada um ao que lhe é próprio…” (OM, 596 D-E). Essa parece ser a fonte de Montaigne, quando afirma: “[A] Das três ações da alma, a imaginativa, a apetitiva e a do assentimento [consentante], eles acolhem as duas primeiras; a última, eles a suspendem e a mantêm ambígua, sem inclinação nem aprovação de uma parte ou de outra, por mais ligeira que seja…” (503). 20. Cf. 505; HP I, 24: “Aderindo, assim, ao aparecer das coisas [phainómena], nós vivemos de acordo com as regras normais da vida, de modo não dogmático, vendo que não podemos permanecer inativos. E parece-nos que essa regulação da vida possui quatro aspectos… O guia da natureza é aquele pelo qual somos naturalmente capazes de sensação e pensamento; a exigência das paixões é aquela pela qual a fome nos leva a comer e a sede, a beber; a tradição dos costumes e das leis, aquela pela qual nós consideramos a piedade nas ações da vida um bem, e a impiedade um mal; e a instrução das artes aquela pela qual não somos inativos nas artes [téchnai] que empreendemos…”. 34

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segundo esses aspectos, e descarta as interpretações opostas, segundo as quais esse filósofo seria coerentemente levado à inação ou, pelo menos, a uma conduta estranha e anti-social: [A] … [O cético] não quis se fazer pedra nem tronco. Ele quis se fazer homem vivo, pensante e raciocinante [discourant et raisonnant], fruindo de todos os seus prazeres corporais e espirituais [C] em ordem e com retidão [en regle et droicture] [A] Os privilégios fantásticos, imaginários e falsos que o homem se usurpou, de reger, ordenar e estabelecer a verdade, ele os há de boa-fé abandonado, deles há renunciado… (ibid.). Essa importante passagem, que retomaremos adiante, oferece uma interpretação precisa acerca do modo de ação do cético na vida prática. Nas Hipotiposes, apesar do laconismo com que a adesão do cético ao phainómenon é tratada, Sexto esclarece que o cético em suspensão segue o “guia da Natureza”, em virtude do qual “nós somos naturalmente capazes de sensação e pensamento” (HP I, 12) Tenha ou não Montaigne, nesse texto particular, ainda em vista Plutarco, ele claramente enfatiza — como exemplo das ações lícitas ao cético, como homem vivo que frui livremente suas capacidades naturais, corporais ou espirituais — a ação “pensante e raciocinante”21. Como o faz com freqüência nos Ensaios, Montaigne emprega aqui dois sinônimos para enfatizar uma só idéia: a posição cética é inteiramente conforme ao emprego da razão22. Assim, à precisão efetuada relativamente à suspensão corresponde uma interpretação particular do critério cético para a vida prática 21. Plutarco afirma, em OM, 596 D-E: “O que é, então, que [os céticos] evitam? É o ‘opinar’, o aplicar e prestar seu assentimento, no qual, apenas, reside a mentira e o engano, que é um ceder pela fraqueza às aparências, sem nenhuma verdadeira utilidade. Pois a ação tem necessidade de duas coisas, da apreensão ou da imaginação das coisas que lhes são próprias e do instinto e apetência das coisas que lhes são próprias, nenhum dos quais se opõem à suspensão. Pois tal raciocínio nos subtrai o ‘opinar’, e não a apetência nem a imaginação…”. 22. Como bem sublinha DEMURE, 1988, p. 992, 1002. Quanto ao termo discours, notemos que ele é freqüentemente empregado nos Ensaios como sinônimo de razão, seja designando o que denominaríamos a faculdade discursiva de raciocínio (v., p. ex., 439A), seja designando as razões que são a expressão lingüística dessa faculdade (v., p. ex., I, 26, 161-163A). 35

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que com ela se harmoniza: a posição cética seria não apenas a mais racional ao reconhecer, nos esforços empreendidos pela filosofia dogmática, a incapacidade da razão em matéria demonstrativa, mas também uma filosofia de cuja prática resultaria um uso pleno e livre de nossas faculdades racionais, tal como nos são naturalmente dadas. Levando o uso da razão às últimas conseqüências, os filósofos mais sábios, segundo Montaigne, constataram a ausência de fundamentos da razão, isto é, sua incapacidade para obter verdades (v. 526). Embora essa formulação beire o paradoxo, afirmar que a razão é uma faculdade de produzir argumentos de igual força, em favor e contra as mais diversas teses que a ela se ofereçam, não significa declarar que podemos ou desejamos aboli-la ou negá-la como faculdade humana que naturalmente nos é dada. Pelo que vimos, a constatação da fraqueza da razão conduz à suspeita acerca da ação de arrester em uma acepção precisa, isto é, de sentenciar acerca do que é verdadeiro ou falso. Em que consiste exatamente essa ação e como é exatamente posta em prática a suspensão cética? A que corresponderia, além dessa suspensão, o uso cético da razão? Por ora, o que importa sublinhar é que essa precisão, embora sutil, é essencial para que não tomemos precipitadamente tal posição filosófica — pela qual se afirma a incapacidade de reconhecer racionalmente a verdade como a postura mais racional e inteiramente conforme ao uso adequado da razão — como uma postura contraditória. Ademais, importa salientar o cuidado exegético de Montaigne no exame das diversas interpretações disponíveis, normalmente despercebido pelos comentadores. Graças ao modo como acompanha os textos de Sexto e Plutarco, ele recusa a crítica tradicional sobre a impraticabilidade da posição cética, tal como a encontra nas obras de Diógenes Laércio, Luciano e Aulo-Gélio, ou na posição expressa pelo epicurista Colotes, tal como apresentada por Plutarco. Tais descrições caricaturais do cético se resumem, segundo Montaigne, a um “desdenhar de sua filosofia” (v. 505A). Mesmo se aceitarmos que Montaigne freqüentemente adapta os argumentos que toma, de toda parte, aos interesses de sua discussão23, nesse caso ele está visivelmente interessado em rea23. Cf. POUILLOUX, 1995, p. 21; FARQUHAR, 1991, p. 20 ss. 36

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presentar, tão fielmente quanto possível, tal filosofia segundo a coerência própria com que se constituiu como uma doutrina posta em prática pelos antigos. Outro aspecto pelo qual se deixaria notar o privilégio do ceticismo aos olhos de Montaigne se apresenta na relação que ele estabelece entre o ceticismo e as demais filosofias, que ele enfeixa, segundo a mesma classificação cética, na categoria do “dogmatismo”. Para o exame dessas filosofias (v. 506A ss.) ele permanece se apoiando no mesmo juízo sobre a superioridade das filosofias da dúvida. Se os dogmáticos tripudiam do cético, Montaigne, por sua vez, indaga por que, sábios como eram, teriam incorrido em suas “cadências dogmáticas” diante do evidente poder dos argumentos céticos em revelar a precariedade com que nos arrogamos possuidores da verdade (v. 506-513). A essa questão geral ele sugere diversas respostas particulares em vista de possibilidades diversas de interpretação dos filósofos considerados. A filosofia de Aristóteles, por exemplo, seria “um Pirronismo sob forma resolutiva”, porque freqüentemente a inextricável obscuridade de seus textos não nos permite saber nem mesmo qual é sua opinião24 . Se, nesse caso, a interpretação conduz inapelavelmente à ironia, Montaigne parece acenar com a possibilidade de compreender seriamente outros filósofos dogmáticos, como Platão e Sócrates, por um prisma cético25. São variantes, como dissemos, de um mesmo mote interpretativo: em vez de dogmáticos, cabe ver, na medida em que são sábios 24. Ver 507A, 511A. 25. No caso de Platão, pode-se observar como a ironia, ao lado da menção às controvérsias interpretativas quanto à natureza de sua filosofia, vai dando gradativamente lugar, nas edições posteriores, a um juízo mais favorável à leitura ceticizante: “[C] Na minha opinião, nunca uma instrução foi titubeante e não-asseverante se a sua não o é…” (509). O caso da leitura de Sócrates mostra exemplarmente que muito do que se poderia encontrar nos Ensaios, posteriormente a 1580, como aparente sinal da presença de uma filosofia não-cética é, na verdade, resultado de uma apropriação cética: “[C] O condutor de seus diálogos, Sócrates, vai sempre inquirindo e movendo a disputa, nunca sentenciando, nunca satisfazendo, e diz não ter outra ciência [science] do que aquela de opor…” (ibid.). Sobre a interpretação montaigniana de Sócrates, ver MACGOWAN, 1974, cap. 8. Para uma análise da presença de elementos céticos na filosofia platônica e das interpretações ceticizantes de Platão e Sócrates, ver ANNAS, 1988 e 1992. 37

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filósofos, se não são, na verdade, céticos “disfarçados” que, embora não tenham seriamente admitido que poderiam dispor de uma verdade filosófica, avançaram seus dogmas por algum outro motivo. As filosofias são, de modo geral, examinadas, seriamente ou com ironia, pelo valor de suas eventuais justificativas à luz do diagnóstico cético da fraqueza da razão. Se assim é, cabe indagar que sentido poderia haver, afinal, nas interpretações segundo as quais, rejeitando todas as filosofias, Montaigne rejeita também o ceticismo26. Ainda que fizesse sentido aceitar, por parte de Montaigne, algum afastamento do ceticismo, como admitir que se trataria da mesma atitude para com essa filosofia e para com os dogmatismos, se o próprio ceticismo é a caução filosófica da crítica de Montaigne a todas as demais filosofias? E a mesma questão certamente se põe diante de comentadores que, apesar de afirmarem que Montaigne assume uma postura “cética”, julgam que o texto dos Ensaios nunca deixe transparecer nenhuma marca de “coerência ideológica”27. Que ceticismo afinal seria esse, que não pode se assumir como um posicionamento consistente? Não parece ser o que corresponde aos esforços filosóficos de Montaigne.

26. Como, por exemplo, COMTE-SPONVILLE, 1993, p. 22; STEVENS, 1965, p. 151; e FRIEDRICH, 1968, p. 69. Em oposição, sobre esse ponto, ver CONCHE, 1987, p. 27. 27. Cf. POUILLOUX, 1995, p. 54, 57 ss., 97. Para esse intérprete, de fato, a novidade filosófica de Montaigne residiria na estrutura deliberadamente contraditória do ensaio, admissão essa que parece dispensá-lo ou impedi-lo de examinar como o discurso dos Ensaios poderia ser conseqüência de uma rearticulação do ceticismo considerado como doutrina filosófica. TOURNON (1989) entende, por sua vez, que o caráter “fragmentário e inacabado” do filosofar montaigniano deixa entrever “uma filosofia em fragmentos [une philosophie en miettes]…” (p. 68). DEMURE, embora enfatize corretamente, a nosso ver, a necessidade de observar reconstituir a coerência filosófica de Montaigne com base em suas aparentes contradições, bem como que a única doutrina compatível com a prática filosófica de Montaigne é o ceticismo (1988, p. 992-993, 1003; 1990, p. 98 passim), toma a questão da coerência filosófica desse autor como resolvida pelas leituras de Tournon e Pouilloux. Não escapa, assim, de algumas simplificações excessivas (cf., p. ex., 1990, p. 99), em vez de se dirigir a uma exegese do ceticismo com base em suas fontes. 38

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1.2. A epokhé posta em prática

Nem o interesse de Montaigne em restaurar a coerência interna da filosofia cética em sua relação entre teoria e prática, nem seu elogio ao ceticismo, contudo, excluiriam a possibilidade de que ele próprio pensasse filosoficamente de outro modo. Mas é possível dar um passo além relativamente ao que vimos no item anterior. Pois não se trata apenas, no caso de Montaigne, de retomar distanciadamente a posição dos “mais sábios” entre os antigos acerca da verdade filosófica, mas sim de reformulá-la e reapresentá-la várias vezes28, empregando conceitos céticos e adaptando as argumentações dubitativas ao contexto das questões que ele próprio discute. Em harmonia com seu juízo sobre o ceticismo, trata-se não só de procurar examinar a lógica própria dessa filosofia, tal como disponível nos textos, mas também de procurar desenvolver uma prática filosófica dela conseqüente. Alguns intérpretes sustentaram, porém, que a prova de seu distanciamento do pirronismo proviria do fato de que ele sempre se refere à seita dos céticos em terceira pessoa, nunca se apresentando explicitamente como um cético (em vez disso, como vimos, ele se diz um “filósofo de novo tipo”). Parece-nos, contudo, que um exame do modo como Montaigne retoma inúmeros desenvolvimentos argumentativos das Hipotiposes em seu texto — ainda que, curiosamente, jamais indique a fonte da qual os toma29 — permite ver por que esse não é um bom argumento. Nesse caso, ao menos, a retomada de passagens provenientes dos antigos não é meramente fragmentária, apenas pretexto casual para considerações diversas (ainda que isso efetivamente ocorra noutras ocasiões). Embora o ceticismo surja na Apologia como uma secte, em terceira pessoa, o fato é que os textos céticos são clandestinamente retomados nesse capítulo, de uma forma sistemática e organizada, mediante longos desenvolvimentos argumentativos — coisa bastante rara, aliás, nos Ensaios, o que nos parece tornar esse fato ainda mais 28. Ver, por exemplo, 441, 510, 535, 541, 557, 569-570. 29. Muitos deles foram identificados por VILLEY (v. Les Essais, p. 1282 ss.), que contudo opina que Montaigne, ao transcrever Sexto, não se julga plenamente pirrônico (cf. 1933, II, p. 196). Ver também, na mesma direção, MICHA, 1964, p. 30. 39

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relevante filosoficamente. Se há aqui uma excepcionalidade, não pode, por certo, ser alegada, sem falácia, como uma razão que por si só desqualificaria o sentido do que é dito nessas páginas. Talvez ela seja o indício, em vez disso, de que a relação de Montaigne com essa filosofia particular, o ceticismo, ao menos a partir de 1576, é também bastante excepcional30. Tal como ocorre com a divisão pirrônica dos gêneros filosóficos, as argumentações provenientes dos antigos céticos são normalmente integradas nos desenvolvimentos próprios de Montaigne e, embora complementadas por ilustrações e considerações pessoais, guardam bastante fidelidade ao sentido que possuem em sua fonte. Comecemos com exemplos das argumentações que seguem mais evidentemente as prescrições de Sexto, segundo os exemplos particulares que ele próprio emprega. É o que ocorre na crítica dos sentidos como instrumento de conhecimento, a partir de 585A. Essa discussão é introduzida por meio de um exemplo do desacordo (diaphonía) entre os filósofos acerca do poder que os sentidos teriam de nos representar as coisas tais como são. Não se trata apenas de um esquema argumentativo central da argumentação cética antiga31, mas também de um tema que é abordado, no mesmo sentido e com os mesmos exemplos, por Sexto32. Devidamente considerada, tal discussão é por si só um importante obstáculo à co30. Um fenômeno análogo parece ocorrer na retomada dos textos estóicos de Sêneca em ensaios formulados anteriormente a 1576, segundo a cronologia de VILLEY (v., p. ex., Les Essais, p. 1232). 31. Um dos cinco Tropos de Agripa, pelos quais o cético suspende o juízo, corresponde a um tópico a que já aludimos: a diaphonía entre as opiniões diversas que os diferentes filósofos, com igual poder de persuasão, sustentam acerca dos diversos temas de suas doutrinas (v. HP I, 165, 172, 175-177). Em muitas passagens das Hipotiposes, Sexto alude ao conflito em geral das filosofias (p. ex., I, 26, 88, 185 etc.) ou se vale do tropo argumentativo apontando a controvérsia dos filósofos acerca de pontos precisos (sobre a verdade, II, 85; sobre a alma, II, 31-2; sobre a natureza I, 98 etc.). 32. Ver 585A, 587A; cf. HP I, 210-211, 218: Montaigne contrapõe, de uma parte, Pitágoras e Heráclito (para quem a contrariedade das percepções sensíveis residiria nas próprias coisas) e, de outra, Demócrito (segundo quem essa diversidade se restringiria às percepções), valendo-se das passagens em que Sexto apresenta e critica tais doutrinas com base em sua diferença relativamente à posição cética. Em seguida, ele expõe a posição dos pirrônicos como a de permanecer em suspensão acerca de ser ou não o mel 40

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mum identificação de Montaigne como uma espécie de filósofo heraclitiano, por vincular seus ensaios a uma representação do devir33. Trata-se aqui, porém, apenas do primeiro entre os muitos argumentos céticos utilizados neste exame, que Montaigne efetua a título de “prova maior” da ignorância humana da verdade, concluindo o crescendo de sua crítica do saber (science) desenvolvida na “Apologia”34. Ao longo desse exame, Montaigne assume, em seu discurso, os quatro primeiros Tropos (ou Modos) argumentativos de Enesidemo, conferindo-lhes um sentido argumentativo muito difícil de distinguir daquele que possuem em sua fonte (mesmo se Montaigne os ilustra com exemplos pessoais). Por intermédio deles, Montaigne busca mostrar que aquilo que supostamente apreendemos como as coisas é apenas o seu aparecer, relativo aos horizontes limitados de nossa experiênem si mesmo doce e amargo (segundo a diversidade da percepção dos sãos ou dos doentes), pelo que eles se situam sempre no “mais alto ponto da dúvida”. 33. “[B] Eu não pinto o ser. Eu pinto a passagem. Não a passagem de uma época a outra, ou, como diz o povo, de sete em sete anos, mas de dia a dia, de minuto a minuto…” (III, 2, 805). A partir de textos como esse, difundiu-se tal interpretação, especialmente usada para explicar o engajamento filosófico de Montaigne nos capítulos tardios, como o faz, por exemplo, SCREECH, quando o opõe a uma suposta concepção platônica sobre a verdade (cf. 1992, p. 109). Mas pretenderia aí Montaigne simplesmente descrever o modo como as coisas nos aparecem diversamente (no caso, temporalmente) ou afirmar uma tese sobre a identificação entre as coisas e o devir? Essa última opção nos parece inaceitável, posto que o próprio Montaigne opõe “o ser” e “a passagem”, e que é apenas esta que ele pretende “pintar”. Ora, já Enesidemo, segundo Sexto, observava que o ceticismo era vulgarmente tido como uma via para a filosofia de Heráclito, uma vez que a idéia segundo a qual os contrários parecem pertencer a uma mesma coisa conduz à idéia de que os contrários pertencem efetivamente a essa coisa (v. HP I, 210). Mas Sexto, seguindo Enesidemo, recusa essa alegação de afinidade, pois não apenas os céticos se abstêm de fazer asserções acerca das coisas em si, mas também a percepção da contradição das coisas constitui uma experiência comum aos demais filósofos, bem como ao homem comum. Trata-se aí não de uma tese heraclitiana, mas de um “material comum” da experiência (ibid., 211). Montaigne, de sua parte, condena como contraditória a posição segundo a qual se pretenderia dizer que o ser é sujeito de predicados contraditórios, por meio de uma reductio ad absurdum: “[A] … tudo está em todas as coisas, e por conseguinte nada em nenhuma, pois nada está onde tudo está…” (585). 34. Ver 587 ss. Cf. VILLEY, 1933, p. 158; Les Essais, p. 1294-1296; e especialmente POPKIN, 1979, p. 50-54. Analisamos essa argumentação em detalhe em EVA, 2003, capítulo segundo. 41

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cia. Tal aparecer, em vez de plenamente coerente nas diversas ocasiões em que se dá a percepção das coisas, é potencialmente conflitante segundo as diferenças entre os animais, entre os homens, entre os diversos órgãos sensíveis e entre as diversas circunstâncias perceptivas. Se levarmos em conta essas diferenças, segundo a argumentação cética, poderemos apenas dizer como se dá o aparecer das coisas, a cada vez, relativamente à condição em que ele se manifesta, mas deveremos suspender o assentimento a toda interpretação dogmática desse aparecer das coisas — que pretende fazer dele um índice de como elas seriam (ou deixariam de ser) de fato35. Percebendo uma maçã, por exemplo, segundo a limitação de nossos cinco sentidos, não podemos dizer, argumenta Montaigne (retomando um exemplo que Sexto emprega no Terceiro Tropo de Enesidemo, concernente à diversidade dos sentidos), se isso corresponde a uma apreensão exata do objeto tal como ele é, posto que eventualmente estariam nela presentes outras qualidades, que apenas seriam ocultas para nós e apreensíveis por outros sentidos que não possuímos (v. 590A, cf. HP I, 95 ss.). Para sustentar a mesma conclusão, Sexto compara a situação humana e a do cego de nascença, que não conhece os objetos segundo seu aspecto visível (v. ibid.); Montaigne, por sua vez, oferece uma anedota a respeito de um cego dele conhecido, que empregava correntemente o vocabulário da visão pensando saber plenamente o que dizia, para interrogar: “[C]… Quem sabe se o gênero humano não faz uma tolice semelhante, à falta de algum sentido, e que por essa 35. No que tange à consideração da discrepância perceptiva entre o homem e os outros animais como indício de que nossa percepção não corresponda às coisas, ver 596598AB, cf. HP I, 44-59; quanto à diferença entre as percepções humanas, considerada no mesmo sentido, ver 598-599A, cf. HP I, 79 ss., esp. 87-88; quanto aos conflitos das percepções entre os diversos sentidos humanos e as diversas circunstâncias pelas quais apreendemos os objetos de modos conflitantes (saúde/doença, sonho/vigília etc.), ver 599-600ABC; cf. HP I, 99 ss., esp. 112-113. Muitos comentadores que reconheceram a natureza cética da reflexão de Montaigne não parecem ter considerado devidamente a fidelidade e a precisão com que sua argumentação segue textualmente suas fontes. CONCHE, por exemplo, aventura-se a julgar que Montaigne seria mais fiel do que o próprio Sexto ao ceticismo autêntico de Pirro, filósofo do qual, contudo, não nos restou nenhum escrito (v. 1987, p. 29 ss.) 42

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falta a maior parte do aspecto das coisas nos seja oculta?” (589). Esse mesmo episódio oferece a Montaigne a oportunidade de considerar que o próprio homem poderia ser a causa da diversidade que ele percebe — possibilidade adiante desenvolvida argumentativamente, pela consideração de que o múltiplo sensível poderia ser um produto dos sentidos humanos e não um efeito de qualidades do próprio objeto, tal como ocorre com o ar na trombeta que, sendo sempre o mesmo ar, produz uma variedade de sons —, usando assim mais um exemplo proveniente de Sexto (v. 599AB; cf. HP I, 95). Em seu conjunto, afinal, os argumentos aí propostos por Montaigne parecem retomar a dúvida pirrônica de Sexto em seu sentido preciso: não sabemos se o múltiplo sensível percebido é causado pelo recorte de nossos sentidos ou pela natureza do objeto; não sabemos, portanto, se este é em si mesmo idêntico ou dessemelhante ao modo como o percebemos (possuindo qualidades diversas ou iguais às percebidas). Não podemos, portanto, de modo mais geral, tomar nossas percepções como índices de como são os objetos tais como seriam neles mesmos, mas apenas como percepções relativas a uma situação determinada, segundo as diversas dimensões em que se apresenta uma potencial incongruência com outras percepções do mesmo objeto, e que todavia teriam, não obstante, a mesma prerrogativa epistêmica para representar as coisas. Mas por que não podemos determinar qual dessas representações conflitantes seria correta? Montaigne permanece seguindo Sexto quando argumenta para mostrar a dificuldade radical de encontrarmos um critério que permita escolher alguma instância perceptiva como a representação mais adequada dos objetos em si mesmos. O julgamento dessa diversidade conduziria necessariamente a uma petição de princípio, uma vez que o juiz estará sempre situado numa circunstância particular, que, como as demais, está sub judice36. Além disso, a tentativa de resolver o conflito conduz sempre a uma falácia formal: ou bem a uma circularidade (pois o julgamento da diversidade exige um critério, que não pode ser aceito sem prova, a qual exige, por sua vez, um critério para ser julgada aceitável), ou bem a uma regressão ao infinito 36. Cf. HP I, 112-113, 600A. 43

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(pois o julgamento da veracidade da percepção exige uma razão, que, de sua parte, invoca outra razão que prove sua adequação, e assim sucessivamente)37. No entanto, se essas passagens, entre várias outras que poderíamos aqui lembrar, decalcam a argumentação sextiana em seus próprios termos, há também outras discussões que parecem revelar maior liberdade na prática da argumentação visando a epokhé, sem com isso perder de vista o rigor filosófico e a fidelidade interpretativa, nem o modo como essa noção central se articula com outras igualmente importantes do ceticismo antigo. Pensamos aqui, especialmente, no emprego de argumentos dialéticos — que constituem uma categoria de argumentos particularmente decisivos quando se trata de focalizar corretamente o sentido da eventual originalidade filosófica de Montaigne. Em face deles, com efeito, é fácil nos enganarmos com uma aparência de “novidade” em ocasiões que podem, ao contrário, atestar o rigor com que ele argumenta segundo as preconizações céticas. Como sabemos, pirrônicos e acadêmicos argumentaram dialeticamente, no sentido clássico do termo — isto é, partindo daquilo que o interlocutor pretenderia aceitar como verdadeiro para mostrar como ele acaba por se enredar em contradição38. Ainda que sua argumentação não se restrinja ao emprego dessa estratégia, nos revela que, quando o cético alveja o filosofar dogmático, posto que esse filosofar é representado pelas figuras particulares que se apresentam historicamente a 37. Ver 600-601A, cf. HP I, 117, 169-170 ss., II, 74-75. 38. Para uma definição de argumento dialético, ver, por exemplo, ARISTÓTELES, Dos argumentos sofísticos, II, 165b. Tal procedimento é empregado por Sexto contra as filosofias dogmáticas na assim chamada “parte específica” do ceticismo (cf. HP I, 5-6), tal como posta em prática nos livros segundo e terceiro das Hipotiposes (cf. HP II, 1213). Na introdução do livro II, por exemplo, Sexto menciona a objeção estóica ao ceticismo segundo a qual os céticos deveriam admitir que “apreendem” alguma verdade, na medida em que apreendem o sentido das teorias que pretendem objetar. Respondendo aos estóicos, ele afirma que, se “apreender” possui o sentido estóico de “representação apreensiva”, os próprios estóicos não poderiam argumentar contra seus oponentes epicuristas, pois, para tanto, deveriam reconhecer que apreendem as teses epicuristas como verdadeiras, o que os refutaria (HP II, 2 ss.). Para uma referência explícita ao modo dialético de argumentar no ceticismo acadêmico, ver, por exemplo, CÍCERO, Dnd, iii, IX, 21. 44

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ele como candidatas ao assentimento, não apenas podem, mas devem mesmo ocorrer “inovações” no plano argumentativo, em vista de sua eficácia diante das particularidades dessas novas filosofias dogmáticas. Ora, é fácil ver que essas “inovações”, como tais, não pretendem, portanto, inovar, reformar ou rejeitar a própria filosofia que lhes serve de base; muito pelo contrário, elas “inovam” exatamente para permitir uma observância rigorosa dessa filosofia tal como ela se conceberia em sua prática, posto que ela própria convida a essa argumentação ad hominem. Tais mutações trazem potencialmente consigo, portanto, um risco considerável de equívoco no que tange à avaliação do caráter propriamente filosófico da inovação que constituiriam, posto que podem abarcar eventuais traduções terminológicas, transformações de determinadas temáticas argumentativas ou adaptações de tropos presentes nos textos antigos, em vista de uma atualização do próprio trabalho filosófico em sua ação segundo as preconizações originais dos antigos. Lembremos aqui, em especial, a maneira pela qual Montaigne concebe sua argumentação contra a science, na “Apologia”, introduzida segundo o pretexto de refutar os objetores de Sebond: “[A] … estes querem ser chibatados às sua própria custa e não querem sofrer o combate de sua razão senão por ela mesma…” (449). Ao longo desse ensaio, não faltam exemplos de argumentações capazes de ilustrar essa prática dialética, pela qual as “razões” particulares dos dogmatismos em tela evocam outras razões que possam ser adequadamente a elas contrapostas39. É nesse sentido que Montaigne ataca a “vaidade” de diversas modalidades dos saberes humanos: a astrologia, a “ridícula busca da pedra filosofal” (que, no francês da época, é por vezes simplesmente designada pelo termo philosophie), as diversas cosmologias antropomórficas que examina (aludindo explicitamente a Platão, com vistas a vertentes do platonismo renascentista), os axiomas da física aristotélica, as figuras renascentistas da dignitas hominis e da miseria hominis medievais, que situam o homem essencialmente acima ou abaixo das demais criaturas, ou ainda as teorias sobre o homem que, valendo-se da 39. Para uma análise mais detalhada desse modo de argumentar cético na “Apologia”, ver ainda EVA, 1994. 45

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comparação entre o macrocosmo e o microcosmo, inventam engrenagens igualmente fantasiosas para explicá-lo40. Nesse ataque, Montaigne abarca também algumas das sciences que, em breve, viriam a fazer jus ao uso moderno da expressão, como a astronomia e a medicina. Sem a pretensão de resolvermos aqui o problema da relação entre o pensamento de Montaigne e os pressupostos dos métodos da ciência experimental moderna, é preciso tomar o cuidado, ao menos, de observar que o termo science é objeto de um tratamento filosófico particular em seu discurso. Comentando a introdução das Hipotiposes, acerca dos diversos gêneros da filosofia, a que nos referimos no início desta análise, Montaigne assim se refere aos dogmatistes: “[A] Estes estabeleceram os saberes [sciences] que nós possuímos e os trataram como considerações certas [notices certaines]…” (502). Embora science também possa ocorrer, nos Ensaios, como sinônimo de “saber” num sentido mais corriqueiro41, essa passagem oferece uma definição relevante para o sentido do termo no contexto dessa discussão: os dogmáticos são aqueles que tratam suas teorias como certezas, pretendendo que elas constituam não apenas conjecturas, mas verdades objetivas. Tal precisão confirma a natureza cética da crítica aos saberes contemporâneos e nos oferece, ao menos, uma oportunidade de rever algumas das razões comumente apresentadas para apartar Montaigne da Nova Ciência. De fato, o sentido moderno do termo “ciência” parece estar fora do horizonte semântico em que ele emprega o termo42. Montaigne não se encaminha à formulação de um projeto científico que almeje um controle experimental do mundo físico, tal como o encontraremos for40. Ver 449-486, 536 ss., 560A, 585A; II, 14, 611. Quanto ao sentido de “philosophie” atribuído a essa pesquisa, ver GREIMAS-KEANE, 1992, p. 474. Sobre as temáticas medievais da dignitas e da miseria hominis, ver FRIEDRICH, 1968, p. 131-134. 41. Ver, por exemplo, II, 10, 418A. 42. Nicolau Tartaglia parece ter sido o primeiro autor a utilizar a expressão “scienza nuova”, no século XVI, para designar sua aplicação do raciocínio matemático ao desenvolvimento dos projéteis (num contexto do qual as reflexões de Montaigne são bem distantes). Os Diálogos acerca dos dois sistemas de mundo, de Galileu, seriam publicados, por sua vez, apenas em 1632. Sobre a posição de Montaigne relativamente à ciência experimental, ver ainda FRIEDRICH, 1968, p. 153 ss. 46

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mulado por Bacon43, e menos ainda ao modelo de uma ciência da natureza escrita em caracteres matemáticos, tal como se apresenta nos escritos de Galileu. Todavia, Montaigne defende a idéia de uma uniformidade da natureza contra a vaidade daqueles que pretenderiam situar o homem essencialmente acima das demais criaturas, que inclui afirmações bastante incisivas quanto à admissão de um princípio de causalidade abarcando o conjunto dos fenômenos naturais (ainda que disso não se siga a admissão de uma capacidade humana de compreender plenamente suas leis próprias): “[C] É uma mesma natureza que segue o seu curso. Quem tivesse suficientemente julgado acerca do estado presente, poderia com segurança concluir acerca de todo o futuro e de todo o passado…” (467)44. Na mesma discussão, Montaigne opõe a astronomia copernicana à ptolomaica para mostrar a instabilidade de nosso pretenso conhecimento do mundo (v. 570-571) e, em seguida, desenvolvendo o tema do conflito entre a razão e a experiência sensível, relaciona explicitamente essa reflexão ao pirronismo: [A] … e os Pirrônicos não se servem de seus argumentos e de sua razão senão para arruinar a aparência de experiência, e é uma maravilha [ver] até onde a maleabilidade da nossa razão os acompanhou nesse desígnio de combater a evidência dos fatos [effects], pois eles provam [verifient] que não nos movemos, que não falamos, que não há pesado nem quente, com uma força de argumentação semelhante àquela com que provamos as coisas mais verossimilhantes. Ptolomeu, que foi um grande personagem, tinha estabelecido os limites de nosso mundo; todos os filósofos passados pensavam possuir sua dimensão, salvo algumas ilhas afastadas que podiam escapar de seu conhecimento: teria sido pirronizar, há mil anos, pôr em dúvida a ciência [science] da Cosmografia e as opiniões que eram por todos aceitas… (571-572). 43. Cf., por exemplo, F. BACON, Novum Organum, p. 15, 29. 44. PHOLIEN (1990), para quem Montaigne, possuidor de uma imagem da natureza na qual se enfatiza o caráter único dos eventos, não disporia do conceito de “lei natural”, não considera passagens como a que citamos. 47

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Tais considerações são diretamente apoiadas em reflexões de Sexto sobre o sentido em que o cético argumenta, por vezes, contra os fenômenos, não com o intuito de aboli-los, mas apenas de exibir a precipitação dos filósofos dogmáticos45. Assim, ao alvejar aqui exemplares da “ciência” que acabarão por ganhar um estatuto epistemológico privilegiado entre os modernos (como a astronomia de Copérnico), ele os toma como ocasiões de exibir a maleabilidade da razão: tal como ela pode se opor à evidência dos fatos mais elementares (e a uma “aparência de experiência”)46, pode igualmente se apropriar dessas evidências para a construção de teorias que, embora portadoras de poder de persuasão, revelam, em sua revisibilidade, que não oferecem propriamente conhecimento das coisas, como se poderia supor. Noutro momento do mesmo ensaio, Montaigne retoma, nestes termos, a epokhé cética, buscando desaprumar as armas da science: [A] Contra aqueles que combatem por pressuposições, é preciso pressupor, ao contrário, o mesmo axioma que se debate. Pois toda pressuposição humana e toda enunciação têm tanta autoridade quanto a outra, se a razão não faz sua diferença. Assim, é preciso pô-las todas na balança, e primeiramente as mais gerais e aquelas que nos tiranizam. [C] A impressão de certeza é um testemunho certo de loucura e de incerteza extrema… (540). O alvo principal da crítica é o modo como as opiniões filosóficas — especialmente as provenientes de Aristóteles — são aceitas com base na autoridade e sem reflexão (539A). Aqui, o fundamento cético da 45. Cf. HP I, 19-20: “Se propomos argumentos diretamente contra o fenômeno, fazemo-lo não para rejeitá-lo, mas para expor a precipitação dos dogmáticos; pois, se a razão é de tal modo enganadora que nos pode roubar o que nos aparece ante nossos próprios olhos, não deveremos tanto mais resguardarmo-nos quanto aos assuntos não evidentes, para evitarmos a precipitação ao segui-la?”. 46. Ver 570-572A. GREIMAS e KEANE (1992) dão para effect o sentido de “ação, ato, feito”, remontando a cartulários de 1272 (p. 220). Para o emprego de effectuel, no século XV, os autores dão como sinônimos “efetivo” e “real”. Notemos, porém, que Descartes e Pascal, leitores de Montaigne, empregarão effects, como vocabulário da física, para designar “fenômenos”. Cf. CARRAUD, 1992, p. 255. Parece-nos que, de modo geral, o termo effects pode, no texto de Montaigne, ser traduzido por “fatos” ou “fenômenos”, por oposição às ficções criadas dogmaticamente. 48

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crítica é o “Tropo da Hipótese”, pelo qual Sexto denuncia o procedimento falacioso das filosofias dogmáticas, construídas sobre pressupostos assumidos como verdadeiros sem justificativa e, por isso, racionalmente criticáveis47. Pressupor o axioma debatido significa partir da hipótese contrária àquela em que o interlocutor, em algum momento, se apóia injustificadamente, para mostrar como seria igualmente possível construir uma explicação verossímil com base noutro ponto de partida igualmente injustificado, e mostrar indiretamente, assim, que o axioma aceito também não produz conhecimento. Assim, se a science adota axiomas e pressupostos injustificados, e os desenvolve “à moda dos Geômetras”, conferindo-lhes a aparência de um saber sólido sobre as coisas48, acaba por falsear os fatos, incorporando-os em suas construções fantasiosas. E a argumentação antinômica dos céticos revelaria que as demonstrações praticadas pelas filosofias dogmáticas, quando observadas de um modo estritamente racional, não merecem crédito; tal argumentação poderia assim mediar a desobstrução do emprego da razão, dogmaticamente comprometida pela força da autoridade. Qual é, portanto, o alvo dessa argumentação? Para Montaigne, as explicações dessa science sobre a natureza humana estão em xeque, não por reconhecerem “movimentos”, “funções” e “faculdades” que sentimos em nós, mas sim na medida em que pretendem ir além disso, incorporando essas descrições comuns no contexto de explicações racionalmente construídas sobre “a natureza das ligações e costuras”, por exemplo, entre uma determinada impressão espiritual e o riso ou a 47. Cf. HP I, 168. Trata-se de criticar o procedimento dogmático de assumir um axioma demonstrativo para evitar a regressão ao infinito a que seria conduzido quando solicitado a justificar os pontos de partida de que necessariamente parte para estabelecer sua filosofia. Como diz Sexto, tal hipótese é injustificável, seja porque se poderia assumir, pelo mesmo procedimento, o próprio objeto da prova, o que tornaria a demonstração inútil e mostraria o absurdo da suposição, seja porque a hipótese assumida como verdadeira e não demonstrada é tão convincente quanto uma hipótese oposta que se pretenda assumir (v. tb. HP I, 173, 174, cf. 540-541AC). 48. Ver ibid. e 544-545A, em que, desenvolvendo a mesma crítica, Montaigne ataca, entre outros, Platão, o epicurismo (por meio de argumentos estóicos tomados do De Finibus, de Cícero, livro I) e o estoicismo (por meio de argumentos tomados do interlocutor acadêmico do De natura Deorum; cf. II, xxxvii, 93-94; III, ix, 22-24). 49

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palidez da face, por meio das quais pretendem afirmar o que as coisas são efetivamente, em sua estrutura interna (v. 538-539). É graças a esse sentido preciso de sua crítica que Montaigne, seguindo Sexto, prossegue afirmando, contra os peripatéticos, que os philosophes que evocam os fenômenos sensíveis como resposta àquele que os põe em dúvida são “mui indignos da profissão filosófica”: [A] Eles não precisam me dizer: é verdadeiro, pois vês e sentes assim; é preciso que me digam se o que eu penso sentir eu o sinto, portanto, de fato [en effect]; e, se eu o sinto, que eles me digam depois por que eu o sinto, e como, e o quê; que eles me digam o nome, a origem, os componentes e os produtos do calor, do frio, das qualidades daquele que age e daquele que padece; ou então que eles abandonem sua profissão, que é a de não receber nem aprovar nada senão pela via da razão: é a sua pedra de toque em toda a espécie de investigações [d’essais], mas certamente é uma pedra de toque plena de falsidade, de erro, de fraqueza e de falha… (541). Os filósofos indignos da filosofia são, como se vê, os dogmáticos, que filosofam segundo um uso indevido da razão. Fazendo dela uma pedra de toque para a obtenção de verdades demonstrativas, com base em evidências supostamente seguras, não nos deixam ir segundo “nossos apetites simples e regrados pela condição de nosso nascimento…” (ibid.). É, portanto, apenas esse contexto justificacionista, erigido pela pretensão de encontrar, na manifestação sensível das coisas, alguma science acerca do que elas são nelas mesmas (“de fato”), que acaba por exigir uma argumentação contra os effects segundo as prescrições de Sexto, já consideradas. Trata-se não de abolir nossa experiência perceptiva tal como se oferece naturalmente a nós, mas de mostrar a fraqueza da razão, em resposta aos dogmáticos que presumem que a razão seja capaz de oferecer conhecimento sobre as coisas (e mesmo capaz de garantir que nossos sentidos possam, eventualmente, ser aceitos como um critério para dizer o que as coisas sejam de fato). Como dissemos, Montaigne frisa, ao apresentar o ceticismo, que a suspensão “extrema” dos pirrônicos é compatível com um pleno engajamento nas ações comuns da vida, seguindo textualmente as Hipotiposes: 50

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[A] Quanto às ações da vida, eles estão nelas da maneira comum. Eles se apresentam e se acomodam às inclinações naturais, ao impulso e constrangimento das paixões, às constituições das leis e dos costumes e à tradição das artes… (505; cf. HP I, 21-24).

Ora, se a suspensão do juízo ante a science dogmática, na argumentação particular que acabamos de considerar, deve ser compreendida como a instanciação de uma argumentação cética, não será o caso de compreender os effects a que se refere constantemente Montaigne como uma expressão do mesmo conceito em seu vocabulário próprio? Em resposta ao físico que argumentava para demonstrar o desconhecimento dos antigos do movimento dos ventos, ele afirma, efetivamente, que “preferiria seguir os fatos [effects] à razão…” (571). Dizendo de outro modo, uma argumentação racionalmente persuasiva pode surgir como um exemplo da fraqueza da razão, em nome do qual não se deve abolir o phainómenon como um critério para a dimensão prática da vida. Não se trata de nenhum irracionalismo, mas de alegar que é razoável suspeitar do modo como racionalmente as filosofias constroem suas explicações com base nos fatos, especialmente se a experiência pode eventualmente desmenti-las. Mas, se assim fosse, uma construção racional que, em vez de pretender oferecer conhecimento, se apresentasse como mera conjectura provável acerca das regularidades naturais, em vista de sua utilidade prática, não poderia ser posta sob o alvo da crítica à science que aqui consideramos49. Seja como for, não devemos reconhecer, afinal, que uma inspeção mais cuidadosa do texto deve reverter o argumento referente à apresentação do ceticismo “em terceira pessoa” em favor da tese oposta que ele pretendia sustentar? Pois, se a prova do engajamento filosófico deve ser colhida naquilo que se manifesta “em primeira pessoa”, como não admitir que tais desenvolvimentos argumentativos, assumidos como opiniões pessoais do autor, possam atestar a existência, ao menos, de uma 49. Em 505-506C Montaigne emprega os textos acadêmicos relativos ao “provável” para justificar uma adesão conjectural, por parte dos céticos, à “ordem do mundo”, em vista da utilidade desse procedimento — tal como se observa, segundo ele, em diversas “artes”. 51

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prática cética — a despeito do fato (que, por si mesmo, nada prova a esse respeito) de se referir aos antigos céticos em terceira pessoa? 1.3. Um novo cético?

Permanece em aberto o problema de compreender as passagens em que Montaigne se refere à sua identidade filosófica — como a que citamos na epígrafe — sem fazer nenhuma referência explícita ao ceticismo e sugerindo, ao contrário, ao menos à primeira vista, a idéia de uma inovação filosófica. Tais passagens também merecem uma atenção maior que a usual. Comecemos considerando a declaração abaixo, em que Montaigne descreve o modo como procede ao discutir uma opinião: “[B] Nós outros, que privamos nosso juízo do direito de sentenciar [faire arrests], observamos brandamente [mollement] as opiniões diversas…” (III, 8, 923; itálicos nossos). Tendo em vista os termos precisos das discussões sobre a noção de epokhé, na “Apologia”, quem deveremos entender que designa essa primeira pessoa do plural — “nous autres”? Como vimos, ali também a suspensão é descrita como uma postura segundo a qual a razão é desautorizada a sentenciar e asseverar — mais literalmente, a estabelecer “arrests” para o juízo (cf. 505). Nessa mesma discussão, os céticos (em terceira pessoa) são apresentados como os que debatem “de uma forma bem branda [molle]”, por não se preocuparem em estabelecer a verdade (503A). Montaigne emprega, nos dois casos, as mesmas expressões para caracterizar o modo de argumentar dos céticos e o seu próprio. O que designa esse último adjetivo no contexto em que se emprega? Noutra passagem do terceiro livro dos Ensaios, Montaigne o retoma para explicar o modo como procura despir suas afirmações de peso assertivo: [B] Nós falamos de todas as coisas por preceito e resolução… Fazemme odiar as coisas verossimilhantes quando as plantam para mim como infalíveis. Eu aprecio essas palavras que abrandam [amolissent] e moderam a temeridade de nossas proposições: eventualmente, de algum modo, diz-se, eu penso e [outras palavras] semelhantes. E se 52

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eu tivesse tido que educar crianças, ter-lhes-ia posto na boca esta maneira de responder, [C] investigativa, não resolutiva: [B] O que isso quer dizer? Eu não entendo. Poderia ser. É verdade? Guardassem eles antes a forma de aprendizes aos sessenta anos do que representar doutores aos dez, como fazem. Quem quer curar da ignorância, deve confessá-la. [C] Íris é filha de Thaumatis. A admiração é o fundamento de toda filosofia, a inquisição o progresso, a ignorância o fim. [B] É claro que há uma certa ignorância forte e generosa, que nada deve em honra e coragem à ciência, [C] ignorância que para se conceber não se requer menos ciência do que para conceber a ciência… (III, 11, 1030).

Tal procedimento, novamente relacionado a uma filosofia dubitativa, aqui representada pela expressão “science de l’ignorance”, pode ser também mais estreitamente aproximado do que preconizam textos pirrônicos. Sexto explica, nas Hipotiposes, como o cético emprega expressões dessa mesma natureza para despir o seu próprio discurso de peso assertivo (v., p. ex., HP I, 194-195). São passagens que, como veremos, Montaigne discute diretamente na “Apologia”. O uso do verbo “amollir”, tendo em vista que os céticos debatem de uma “molle façon”, não parece ser, portanto, casual. Por seu intermédio, Montaigne demarca o sentido filosófico cético dessas outras expressões que empregará constantemente. Não se trata, por seu intermédio, de apenas modalizar as afirmações, mas sim de procurar isentá-las de assertividade50. Essa “science de l’ignorance” fornece a chave interpretativa para esse conceito no que se refere tanto à intenção de abrandar o teor assertivo das declarações como à prática argumentativa. Ciente das dificuldades interpostas para o reconhecimento da verdade, o cético busca se precaver das conseqüências assertivas indesejáveis que decorrem do uso da linguagem (tal como o mostram as diversas precisões de Sexto sobre as expressões céticas). Igualmente, ele pretende fruir de uma liberdade privilegiada do uso da razão, no nível de sua prática argumentativa, pois em vez de subordiná-la à demonstração das verdades que, de saída, seriam presumidas, ele a observa como uma faculdade dotada 50. Cf. ANNAS, 1988, p. 105; 1992, p. 66, 69; POUILLOUX, 1995, p. 134. 53

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de uma plasticidade maior do que se costuma reconhecer, ao conferir, em diferentes níveis e graus, sustentação às mais diversas opiniões, especialmente a opiniões contraditórias entre si (que não se tornam, portanto, necessariamente verdadeiras em virtude de sua sustentação racional). Não cabe aqui examinar mais detalhadamente essa concepção cética da argumentação, tal como Montaigne a tematiza e desenvolve51. Pretendemos apenas, por ora, sublinhar que tal noção de “abrandamento” discursivo estabelece um vínculo conceitual preciso entre a prática ensaística de Montaigne e o ceticismo antigo, tal como ele mesmo o descreve, no que tange a aspectos centrais dessa filosofia. Os dois textos mencionados distariam em talvez mais de dez anos na cronologia da composição da obra, o que nos oferece uma ocasião para introduzir o problema da perenidade da reflexão cética ao longo da obra. Uma vez que Montaigne pretende que os Ensaios sejam o registro do desenvolvimento de seus “humeurs” — aí compreendidas suas opiniões —, as passagens que correspondem a períodos diversos de composição reportam juízos diversos acerca de questões variadas — até mesmo no âmbito da filosofia, como teremos a oportunidade, adiante, de observar mais detalhadamente. Isso não impede, porém, que o modo preciso com que a terminologia empregada por Montaigne evoca suas fontes filosóficas ofereça mais um indício de que sua adesão ao ceticismo, em vez de ser uma espécie de “crise” passageira, corresponde à adesão refletida e consistente a uma doutrina filosófica (ainda que a especificidade dessa adesão careça ainda de esclarecimentos). Mais uma vez, a relação com o ceticismo exibe aqui uma singularidade: o próprio Montaigne afirmará que não compreende como seja possível aderir a qualquer filosofia que se pretenda capaz de formular a verdade tendo uma vez considerado as razões apresentadas pelo cético para desconfiar das filosofias dogmáticas52. 51. Ver “Da arte de conversar” (III, 8). 52. Cf. III, 9, 964. De modo geral, o desenvolvimento posterior de uma argumentação filosófica mais antiga, por meio de alongamentos ao texto original, não permite avaliar conclusivamente o juízo de Montaigne sobre o problema de seu engajamento filosófico atual (posto que isso também se verifica nos chamados ensaios estóicos). Mas 54

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Passemos a outro texto, redigido possivelmente à época da “Apologia”, e que parece deixar ainda menos dúvida sobre o sentido de um pronome igualmente lacônico: [A] Se filosofar é duvidar, como eles dizem, com mais razão ocuparse de ninharias e fantasiar [niaiser et fantastiquer], como eu faço, deve ser duvidar. Pois cabe aos aprendizes investigar e debater e ao catedrático resolver… (II, 3, 350). Pondo entre parênteses, por um momento, a distância entre philosopher e niaiser et fantastiquer, não exprime Montaigne aí, ao mesmo tempo, a proximidade entre o que “eles dizem” (os céticos, seguramente) e o que ele próprio faz? A despeito, porém, da intenção de identificar sua identidade dubitativa ao ceticismo, parece preciso reconhecer, não sem surpresa, que Montaigne o faz de um modo deliberadamente ambíguo. À primeira vista, o niaiser et fantastiquer e o philosopher são apresentados como coisas distintas, mas aproximados por uma curiosa dúvida escolar. Tal dúvida parece conferir, ao mesmo tempo, um conteúdo para essa distinção: a distância do “fantasiar” ao “filosofar” é inscrita no desnível que haveria do aprendiz ao mestre. A nota paradoxal soa quando nos voltamos para o modo como esse texto qualifica a atividade do aprendiz (que, justamente por isso, não faz parte da classe dos “catedráticos”): “investigar e debater”. O que os caracteriza, portanto, é exatamente o mesmo que caracteriza, como vimos, o uso cético da razão (posto que, segundo Montaigne, tais filósofos apenas se abstêm de “sentenciar” e “escolher”, mas não de “investigar” e “debater”). Assim, a linha divisória entre o philosopher cético e o fantastiquer montaigniano torna-se difusa, graças, exatamente, aos supostos indícios da diferença desse fantastiquer relativamente à prática dos “filósofos” que duvidam. Essa diferença determinaria a eventual natureza não-filosófica e nãocética de sua atitude de “aprendiz” num aspecto no qual, a bem observar, não parece possível encontrá-la, uma vez que ela residiria no caráo conjunto desses indícios mostra que esse não parece ser o caso, em particular, da relação de Montaigne com o ceticismo. 55

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ter “investigador” do suposto aprendiz que ainda não é filósofo, e que, na verdade, caracteriza a mesma postura filosófica cética. O leitor poderia aqui talvez reagir propondo uma leitura diversa: em vez de identificar o filosofar como a atividade do catedrático, Montaigne estaria simplesmente identificando a atividade do aluno e do mestre (e, por conseguinte, nalguma medida, o “filosofar” e o “fantasiar”) e opondo-as conjuntamente às “resoluções” do catedrático. Mas essa segunda leitura não apenas não explica a distinção entre o “filosofar” e o “fantasiar”, como se opõe ao movimento do texto, que introduz a segunda afirmação como uma suposta explicação da primeira (“pois cabe aos aprendizes…”). É apenas quando evocamos um outro elemento que não está aqui explícito — o reconhecimento de que a atividade filosófica dos que duvidam é exatamente a de investigar e debater, aparentemente oposto do que essa passagem sugere — que o texto revela, paradoxalmente, que a distinção entre o “filosofar” e o “fantasiar” não pode corresponder à distinção entre o “aprendiz” e o “catedrático”, ao mesmo tempo em que se enriquece de sentido. Percebemos, porém, no mesmo passo, que o texto não contém, como poderia parecer, um esclarecimento sobre a particularidade da filosofia de Montaigne por oposição ao ceticismo, mas bem o contrário, uma afirmação elíptica dessa identidade cética. Tratar-se-ia de uma ambigüidade fortuita? Ou haveria algum propósito deliberado de Montaigne em apresentar sua identidade cética de viés, a fim de despistar o leitor? Essa possibilidade interpretativa, a despeito de suas conseqüências incômodas, pareceria mais fantasiosa e artificial se não estivéssemos diante de um fenômeno recorrente — especialmente nas ocasiões em que, explicitamente tratando de seu engajamento filosófico pessoal, seria de esperar, ao contrário, algum indício mais substancial acerca de sua novidade filosófica relativamente ao ceticismo. Consideremos a passagem em que Montaigne formula o célebre mote “que sei eu?”, por vezes lida como estéril manifestação de um “ceticismo” que, mesmo existindo, nada significa quando se trata de compreender a peculiaridade filosófica dos Ensaios53. É tal leitura, ao contrário, que perde aí a oportunidade de perceber a peculiaridade mon53. Cf. MERLEAU-PONTY, 1960, p. 302. 56

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taigniana: seja porque, quando toma essa passagem como manifestação de ceticismo, ignora o modo como o autor aí parece se recusar, à primeira vista, a reconhecer-se cético; seja porque, se atinasse para esse ponto, talvez não visse que, num nível mais profundo, ao ser reaproximado das fontes que lhe servem de base, o texto de Montaigne revela uma expressão ainda mais forte de concordância com o ceticismo. Novamente, Montaigne não se restringe, nessa passagem, a apoiarse em fontes pirrônicas, mas se vale também de textos acadêmicos (aqui, mais uma vez, acomodados de modo aparentemente coeso). Para mostrar que a linguagem humana não apenas se equivoca inteiramente quando se volta à dimensão divina, mas dá mostras de sua precariedade já no âmbito do conhecimento das coisas naturais, Montaigne retoma, dos Academica, o “paradoxo do mentiroso” (v. 526-528). Emprega-o, seguindo Cícero, para minar a identificação entre a clareza do sentido e a veracidade das proposições (uma vez que “eu minto” possui um sentido tão claro quanto “chove”, mas gera um paradoxo) e pôr sob suspeita, de modo geral, o poder assertivo da linguagem54. Passando imediatamente, porém, à discussão dos textos pirrônicos sobre o emprego cético da linguagem (a que nos referíamos há pouco), Montaigne alega que o fato de a linguagem humana ser inteiramente constituída de proposições afirmativas impede que eles formulem de modo inteiramente adequado sua “concepção geral”: “[A] … ser-lhes-ia preciso uma nova linguagem…” (527). Na falta disso, eles se valem de um subterfúgio, sem o qual “sua disposição filosófica [humeur] seria inexplicável…”: quando eles declaram “eu duvido” ou “eu ignoro”, afirmam que essa proposição aplica-se a si mesma, deixando-se levar pela dúvida que ela própria instaura, como o ruibarbo é expelido juntamente com os humores nocivos55. Por sua vez, ele complementa essa explicação com este comentário pessoal, que alude claramente à represen54. Cf. 527B; Acad., II, 92-95. 55. Cf. HP I, 14-15, 187 ss. Sexto não parece entender que haja uma incompatibilidade entre a linguagem e a formulação da postura pirrônica, pois, na medida em que o cético admite os assim chamados “signos comemorativos”, a linguagem pode ser concebida como parte do phainómenon que, como vimos, o pirrônico adota como critério para a vida prática, e ser empregada como a expressão de uma perspectiva apenas pes57

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tação iconográfica de sua atitude suspensiva: “[B] Essa fantasia é mais seguramente concebida por interrogação — Que sei eu? — tal como a porto na divisa de uma balança…” (ibid). O leitor poderia ser levado a crer que a segurança dessa fórmula interrogativa expressasse antes um sinal de reserva ante o ceticismo56 ou mesmo que o caráter tardio desse acréscimo final revelasse alguma guinada teórica, talvez em favor da filosofia acadêmica57. No entanto, o fato é que Montaigne não inventou essa solução que adota pessoalmente. Ela corresponde a uma das possibilidades de expressão das concepções céticas, tal como didaticamente apresentadas por Sexto na mesma passagem que é fonte dessa discussão (v. HP I, 189). Portanto, a despeito de ser alegada como aquela que ele pessoalmente prefere (fazendoa mesmo figurar na divisa de seu emblema pessoal), essa solução não pode constituir um indício de afastamento do ceticismo em geral, ou do pirronismo em particular; ela mostra apenas que, mesmo quando, tardiamente, Montaigne se interessa mais pelos Academica, permanece atento à similaridade entre essa versão do ceticismo e o pirronismo, ora retomado. Mas não se trata aqui, enfim, de uma explicitação igualmente enviesada do ceticismo, que passa por uma recusa aparente da posição pirrônica, tal como vimos ocorrer no texto em que ele se declara um “aprendiz” cético? Qual é a peculiaridade desse filosofar cético? À falta de outra mais visível, a que emerge aqui diz respeito ao sentido paradoxal que tais passagens adquirem à luz das fontes céticas, das quais, à primeira vista, elas parecem anunciar uma distância. Retomemos agora o texto da epígrafe, no qual Montaigne se declara de uma “nova figura, um filósofo impremeditado e fortuito”, que descobriu casualmente a semelhança entre suas opiniões e aquelas soal, despida da pretensão de conhecimento acerca dos “objetos externos” (v. HP I, 15). 56. Ver, por exemplo, TOURNON, 1989, p. 87; 1991, p. 35. 57. Ver LIMBRICK, 1977, p. 68-69. No que tange à passagem em tela, Limbrick reconhece a presença, lado a lado, de elementos pirrônicos e acadêmicos e a toma como ilustração da similaridade entre pirronismo e filosofia acadêmica do ponto de vista epistemológico (ibid., p. 76), embora não a discuta mais diretamente e não leve em consideração o fato de que Montaigne alega, aparentemente, recusar a solução cética (pirrônica) ora apresentada para lidar com a precariedade da linguagem. 58

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sustentadas pelos filósofos que o antecederam. Como compreender o sentido dessa declaração de novidade? Poderíamos considerar, de saída, ao menos duas possibilidades. A primeira consistiria em supor que a novidade da “impremeditação” caracterizasse apenas o próprio modo imprevisto com que ele descobriu, diante das filosofias já existentes, a conformidade daquilo que pensava com aquilo que outros já teriam pensado (o que não excluiria, portanto, a possibilidade de adesão a uma dessas filosofias). Outra leitura encontraria no caráter impremeditado, em alguma medida, a natureza do próprio filosofar montaigniano, naquilo que ele possuiria de novo em relação ao filosofar tradicional (conferindo, assim, um significado positivo à própria declaração de novidade e de exterioridade relativamente às filosofias existentes, na qual se veria um reflexo de sua atividade de composição dos Ensaios). Antes de respondermos, levando em conta o que já observamos, procuremos aqui com mais cuidado pelos eventuais elementos céticos que, como nas outras passagens similares, poderiam estar ocultos. De fato, eles são vários. Antes de mais, notemos o contexto altamente irônico em que se insere a passagem: trata-se de justificar e distinguir o modo impremeditado e fortuito como filosofa daquele consignado aos philosophes dogmáticos, atacados, na página anterior, por filosofarem “fortuitamente”, mas num sentido bem diverso. Referindose à sua “impremeditação”, Montaigne narra como seus “modos” ou costumes, em vez de se constituírem com base no engajamento nalguma “disciplina” filosófica, conservaram sua naturalidade mesmo posteriormente ao exame das diversas argumentações com que pareceram acomodáveis. No caso desses outros philosophes, trata-se de denunciar o modo irrefletido como imergem na mesma diversidade opinativa que ele recusa — a tal ponto que se inclina a admitir: [A] … que eles trataram da “science” casualmente, assim como um brinquedo que passa em qualquer mão, e se bateram [uns aos outros] com a razão como se fora um instrumento vão e frívolo, avançando toda sorte de invenções e de fantasias, por vezes mais rigorosas, por vezes mais frouxas… Por essa variedade e instabilidade de opiniões, eles nos conduzem, como pela mão, tacitamente, a esta [nossa] resolução de sua irresolução… (545). 59

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Aqui a casualidade do filosofar significa displicência ou cegueira perante o modo como todas as filosofias almejam racionalmente a verdade por meio de similares “fantasias”, todas virtualmente equivalentes em seu poder demonstrativo. Eis mais uma variante do recorrente tropo cético da diaphonía, segundo o qual o conflito entre as filosofias dogmáticas surge como ocasião de duvidar de sua pretensão de verdade58. Montaigne pretende filosofar externamente a tal conflito de opiniões dogmáticas, e segue de perto, como vemos, as prescrições dos antigos céticos, que aludem a esse tema para mostrar como a filosofia é capaz, não apenas por sua simples diversidade, mas também pelas críticas que os filósofos dirigem uns aos outros, de nos ensinar acerca da precariedade da razão. Tal é, segundo ele mesmo, a utilidade do mostruário de opiniões filosóficas que constitui seu livro: [A] Vêem-se infinitos exemplos parecidos, não apenas de argumentos falsos, mas ineptos, que não se sustentam, e que acusam seus autores não tanto de ignorância quanto de imprudência, nas réplicas que os filósofos se fazem uns aos outros acerca dos dissensos em suas opiniões e seitas. [C] Quem arrumasse com capacidade [suffisance] um conjunto de asneiras da prudência humana, diria maravilhas… Eu algumas delas reúno, de bom grado, como uma mostra, por algum viés não menos útil de considerar. [A] Julguemos por aí o que não devemos estimar do homem, de seu senso e de sua razão, posto que nesses grandes personagens, que levaram tão alto a capacidade [suffisance] humana, encontram-se defeitos tão aparentes e tão grosseiros…” (ibid.). Desconhecedores do caráter instrutivo dessa contradição filosófica, ignorando o peso dessa evidência, os philosophes levianamente se precipitam em julgar que foram capazes de reconhecer a verdade — como diz Montaigne, “o favo no bolo” (v. 516). Não é outro o diagnóstico que os céticos antigos ofereceram do filosofar dogmático, um filosofar de homens acometidos pela precipitação (propéteia) no juízo da verdade, sem terem avaliado o problema de um modo plenamente racional, diante das inúmeras restrições que se pode oferecer a cada uma de suas tentativas (a começar pela constatação de que há inúmeras tematiza58. Ver nota 31; cf. 507-512. 60

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ções filosóficas igualmente defensáveis e, na mesma medida, inaceitáveis, acerca dos mesmos pontos)59. Diversamente do dogmático que, obstinado em defender a autenticidade da verdade presumida, perde a oportunidade de reconhecer o que, em sua própria posição, há de racionalmente injustificado, o cético pretende ser, segundo Montaigne, aquele que emprega com mais liberdade suas faculdades intelectuais na investigação filosófica, posto que não está comprometido com a defesa de uma posição que tome por verdadeira (v. 503B). Nestes termos, com auxílio dos Academica de Cícero, faz ele a defesa do direito cético de duvidar: [B] Por que não lhes será permitido, dizem eles, como o é aos dogmáticos a um dizer verde, a outro amarelo, a eles também duvidar? Existe alguma coisa que se possa propor, para ser advogada ou recusada, que não seja legítimo considerar como ambígua? E onde os outros são conduzidos, seja pelo costume do país, seja pela educação dos pais, seja pelo acaso, como por uma tempestade, sem juízo e sem escolha, e no mais das vezes antes da idade do discernimento, a tal ou tal opinião, à seita estóica ou epicurista, à qual se acham assim hipotecados, servilizados e colados como se fosse uma ponta no penhasco da qual não conseguem largar [C] — ad quamcunque disciplinam velut tempestate delati, ad eam tanquam ad saxum adhaerescunt — [B] por que a estes não será igualmente concedido manter sua liberdade e considerar as coisas sem obrigação e sem servilismo? — [C] Hoc liberiores et solutiores quod integra illis est judicandi potestas. [B] Não é melhor permanecer em suspensão do que se enfronhar em tantos erros que a fantasia humana produziu? Não vale mais suspender sua persuasão do que se imiscuir nessas divisões querelantes e sediciosas? [C] Que irei eu escolher? O que nos agradar, posto que escolheis. Eis uma tola resposta, à qual entretanto parece que todo o dogmatismo chega, posto que não nos permite ignorar o que ignoramos… (503-504)60. 59. Ver especialmente HP III, 280-1, mas também HP I, 20, 177, 186, 205, 212 e 237. Os filósofos da Nova Academia fazem, como veremos, objeções bastante similares à filosofia dogmática. 60. As citações latinas provêm dos Academica: “Eles se agarram a qualquer doutrina como o fariam a uma rocha, extenuados pela tempestade…” (II, iii, 8); “Esses são mais 61

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Não será essa situação de liberdade igualmente oposta ao modo pelo qual os dogmáticos se aprisionam a suas doutrinas e próxima daquela pela qual Montaigne permanece numa situação de exterioridade com relação às diversas filosofias examinadas? O “instrutivo espetáculo” da contradição filosófica que, segundo Montaigne, seu livro comporta parece retomar uma lição oriunda de sua experiência pessoal: depois de tentar acomodar seu agir natural aos diversos discursos filosóficos, reconheceu a plausibilidade com que vários deles pareciam a ele acomodar, em meio a uma diversidade que pode abarcar toda e qualquer loucura, para finalmente descobrir, mantendose numa situação de exterioridade a todos, o “regime filosófico de sua vida”: “… eu não o descobri senão depois que ela foi explorada e posta em prática…”. Essa descrição convida a uma nova aproximação com o pirronismo. Sexto apresenta o cético como aquele que, inicialmente movido pela intenção de encontrar a verdade ante a diversidade das filosofias em conflito, para obter a tranqüilidade, teve a experiência de constatar, caso a caso, serem elas igualmente inaceitáveis (v. HP I, 26). Sua experiência acabou por conduzi-lo a abandonar a expectativa inicial de encontrar a verdade, não por ter ele concluído pela impossibilidade absoluta de encontrá-la, mas pelo modo como sua experiência intelectual o foi convencendo sobre a maior plausibilidade de que se deveria repetir, indefinidamente, o mesmo espetáculo da falibilidade da razão em seu uso demonstrativo. Não será, assim, cabível admitir que, a partir do momento em que se constitui como uma “doutrina” filosófica, a perspectiva cética se reconheça como um resultado “impremeditado” da investigação, ao menos se confrontada com a expectativa inicial do candidato a filósofo, em busca de sanar sua perturbação intelectual? Trata-se de um aspecto explicitamente mencionado por Sexto, ao explicar que ao cético pirrônico, suspendendo o juízo nos assuntos opinativos, adveio “fortuitamente” (tukikós) a ataraxía, antes buscada na posse da verdade (cf. HP I, 27). Para explicar como isso ocorreu, ele se vale de uma anedota acerca do pintor Apeles, segundo a qual, desesperado de representar adequadamente a espuma na boca do cavalo que ele pintava, tal pintor lançou uma esponja sobre o quadro e acabou por obter, casualmente, o efeito desejado (ibid., 27-28). 62

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Eis como ganha uma dimensão filosófica relevante para o cético a natureza fortuita e impremeditada da experiência intelectual efetivamente vivida na busca da verdade, por oposição ao papel secundário que tende a assumir nas filosofias para as quais o essencial reside na verdade supostamente descoberta, que se trata de explicitar. Pois o cético não oferece — nem poderia pretendê-lo, sob pena de se contradizer — uma demonstração da impossibilidade de reconhecer a verdade, e tampouco de que a suspensão conduza à tranqüilidade: trata-se apenas de relatar o encadeamento das etapas do itinerário biográfico como meio de exibir o modo como seu engajamento lhe pareceu coerente. Na mesma medida, o panorama intelectual que sua experiência lhe revela é intrinsecamente provisório. Como diz Sexto, o cético é aquele que permanece na investigação (zétesis): se esta o conduziu a tal resultado, não seria impossível que conduzisse a resultado diverso (apesar de não se oferecer ao cético, mediante sua experiência intelectual, nenhuma evidência satisfatória em favor dessa possibilidade, que o leve a abolir a investigação). Na passagem citada como epígrafe, Montaigne informa que seu filosofar “impremeditado” é diretamente dependente de sua experiência biográfica ante as filosofias que examinou e culmina com a descoberta de sua identidade filosófica. Para além da semelhança que acabamos de apontar, notemos que o momento em que ele “impremeditadamente” tomou consciência do regime filosófico de sua vida pode bem corresponder, no plano da cronologia biográfica, ao período em que teve contato com a filosofia cética de Sexto. Pois, embora essa adição seja tardia, descreve a posteriori o reconhecimento dessa identidade filosófica (da qual ela se pretende uma continuidade); de outra parte, é seguro que tal reconhecimento se deu posteriormente ao início da redação dos Ensaios (que pode corresponder à sua decisão de recitar seus moeurs, à luz de seu eventual acordo com as filosofias antigas). Não deveria a culminação desse processo — isto é, a “descoberta” do regimento filosófico de sua vida — corresponder ao contato com a obra de Sexto, a partir do qual ele adotaria uma posição cética, afastando-se da orientação estóica que preside capítulos do livro primeiro como 19, 20, 39 e 40? Assim, a instância fundadora do regime propriamente fi63

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losófico dessa impremeditação, pela qual os modos naturais se conservam, seria a mesma pela qual Montaigne teria abandonado o lema estóico de I, 20 — “filosofar é aprender a morrer” — para aderir à concepção segundo a qual “filosofar é duvidar”: a saber, o contato com os textos céticos. Talvez devêssemos aqui ver confirmada, ao menos em parte, a interpretação de Z. Schiffman sobre o contato de Montaigne com o ceticismo: ele teria conferido cidadania filosófica a uma postura pessoal dubitativa, resultante da educação humanista que recebera no College de Guyenne (inspirada no método argumentativo cético “in utramque partem”), mas até então vista como mera idiossincrasia, a ser superada61. Uma aproximação final com o ceticismo deixa-se ainda entrever na afirmação de que, seja qual for, essa identidade filosófica se harmoniza com a reintegração dos “modos naturais”, como previamente já se apresentavam. Que “naturalidade” é essa? Como vimos, Sexto explica que, a despeito de suspender o juízo, o cético adere ao phainómenon, procedendo, nas ações da vida, “da maneira comum”, acomodando-se às suas inclinações naturais. Além da adoção do “guia da Natureza” — a naturalis instructio, nos termos da tradução latina lida por Montaigne —, a adesão ao phainómenon abarca os valores e regras de conduta pelos quais nós habitualmente nos conduzimos e que nos fazem, por exemplo, julgar que a piedade é um bem e a impiedade um mal, como vimos62. Por mais que o relato de Montaigne acentue a naturalidade de suas disposições pessoais, o resíduo da experiência filosófica do cético, impossibilitado de escolher entre as diversas filosofias à disposição, é igualmente, segundo Sexto, a admissão daquilo que naturalmente se oferece a nós, em nossa experiência pré-filosófica. Noutros textos em que aparentemente descreve o mesmo percurso pessoal, Montaigne explicita que a autoridade dos antigos “com os quais seu juízo se enlivres e desembaraçados, porque sua capacidade de julgar permanece intacta…” (ibid.) — mais precisamente, da defesa ciceroniana da ratio academica contra os ataques dos dogmáticos, em conformidade ao sentido do texto montaigniano. Considerações análogas às que Montaigne desenvolve nessa passagem sobre as razões que conduzem os dogmáticos a aderir às suas doutrinas encontram-se em ibid., 7-8. 61. Ver SCHIFFMAN, 1984. 62. Ver HP I, 24; nota 20. 64

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controu em conformidade” lhe permitiu não apenas reconhecer a dimensão filosófica de sua experiência natural, mas também estabelecêla e fortificá-la63. O reconhecimento da diaphonía filosófica como uma amostra da precipitação com que os diversos filósofos nela se engajam dogmaticamente (isto é, pretendendo formular a verdade contra os demais); por oposição, um engajamento filosófico mediado pela experiência pessoal concretamente vivida, externamente às filosofias existentes, cujo resultado é a impossibilidade de adesão a essas filosofias e a aceitação, alternativamente, como critério, daquilo que naturalmente se oferece a nós, a despeito das filosofias: é todo um conjunto de elementos pirrônicos que parece ecoar nessa alusão montaigniana à sua identidade intelectual, na forma de uma narrativa biográfica que parece ademais exemplificar o próprio itinerário descrito pelo pirrônico na formulação de sua filosofia. O que isso nos permite afirmar relativamente à alternativa de interpretação para a impremeditação filosófica de Montaigne que consideramos anteriormente? Trata-se da descrição da descoberta impremeditada de sua identidade filosófica ou de uma descrição da natureza desse filosofar? Pondo esse texto ao lado dos demais indícios de filiação de Montaigne ao ceticismo, bem como dos demais textos céticos que acabamos de mencionar, podemos ver que se trata de uma falsa alternativa. Montaigne narra um episódio pelo qual casualmente reconheceu a natureza filosófica de sua experiência segundo um conjunto de elementos que caracteriza, de modo claro e exaustivo, uma filosofia existente, que similarmente se instaura, segundo sua ordem de razões, de forma essencialmente biográfica: o ceticismo pirrônico, nos termos precisos que o expõe Sexto. Mas isso não exclui que a própria “impremeditação”, retratada nessa descoberta, possa qualificar a própria atividade filosófica que se pretende levar a cabo, na medida em que se filosofa, como os céticos, sem a obrigação de sustentar verdades predeterminadas, e no plano da experiência biográfica que, de direito, preserva o mesmo caráter fortuito que presidiu a instauração dessa filosofia. De fato, são os próprios textos pirrônicos que propõem uma articulação 63. Ver II, 17, 658; III, 2, 812. 65

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entre a descrição biográfica do modo como o cético se engaja impremeditadamente em sua postura filosófica e a afirmação da mesma condição investigativa que conduziu a esse resultado como marca distintiva desse filosofar, desde que ele se assume como tal. É a mesma articulação que se deixa entrever, como tentamos mostrar, no caráter “impremeditado e fortuito” da nova figura filosófica de Montaigne. Contudo, os termos em que a passagem circunscreve, de modo geral, a relação do autor com as filosofias passadas parecem nos conduzir, mais uma vez, a uma situação paradoxal. Não apenas porque a proximidade com o ceticismo, a despeito de todos esses indícios, é inteiramente invisível de saída, mas, sobretudo, porque a passagem parece explicitamente repelir o leitor que, como nós, sonda tais evidências como ocasião para descobrir um episódio de engajamento doutrinal. Montaigne o diz com todas as letras, opondo-se de antemão ao sentido das evidências que estivemos aqui coletando e relativamente às quais não nos parece plausível afirmar que ele as desconheceria, em face dos demais indícios apresentados: “[B] Deixo, assim, meus caprichos irem mais livremente a público, posto que, mesmo que tenham nascido em mim e sem patrão [sans patron], eu sei que eles encontraram sua relação com algum humor antigo, e não faltará quem diga: — eis de onde ele os toma!”. Ora, ainda que a sua “impremeditação” corresponda precisamente aos diversos aspectos examinados da postura cética, não é o ceticismo um posicionamento filosófico antigo dentre outros? Não estaríamos assim falseando sua declaração de impremeditação exatamente como ele prevê que farão os que ele abertamente ironiza e repudia por dizerem: “eis de onde ele os toma”? Entretanto, é claro que isso não basta para dissolver a ampla evidência das fontes que examinamos ao longo de todo este capítulo; muito ao contrário, parece mesmo nos oferecer um atestado de que estamos aqui também reconhecendo adequadamente um mesmo fenômeno paradoxal e recorrente nas demais passagens em que Montaigne trata de seu engajamento filosófico pessoal. Agora o paradoxo consiste no modo como a admissão de que esse relato descreveria, segundo as evidências arroladas, uma espécie de engajamento numa filosofia dada — o ceticismo — entra em conflito com o 66

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modo como ele afirma, ao menos aparentemente, uma posição de exterioridade a toda e qualquer filosofia. Não nos precipitemos, porém, diante dos paradoxos. Por ora, limitemo-nos a constatar que, em resposta à nossa interrogação sobre o sentido do engajamento cético de Montaigne, o texto nos devolve a transformação do problema de que partirmos. Em lugar da perplexidade diante dos textos que vagamente se opunham acerca da identidade filosófica de Montaigne (nos quais a “nova figura” de filósofo podia se confundir com a de um filósofo contraditório ou incompreensível), temos a oportunidade de tentar elucidar o sentido dessa estratégia aparentemente deliberada, por meio da qual ele sistematicamente se recusa, nas declarações em que trata de sua filosofia, a consolidar sua identidade cética, a despeito de todos os indícios nessa direção que oferece nas entrelinhas das passagens nas quais ela parece ser recusada. E talvez dessa transformação do problema, para além de um esclarecimento do ceticismo de Montaigne ou de seus eventuais limites, possa advir uma melhor compreensão de aspectos conceituais próprios da reflexão cética, que se põem em evidência sob um ângulo inusitado por meio desse paradoxo. Pensamos aqui, em particular, na retórica própria do pirronismo, em sua versão sextiana; mais precisamente, no papel da exemplaridade do discurso sobre a impossibilidade de reconhecimento da verdade que o cético narra, por força da lógica interna de sua filosofia, em primeira pessoa. Onde Sexto Empírico narra, em nome do ceticismo, o modo como o cético descobre, em seu percurso biográfico, a descoberta impremeditada de uma filosofia que ali se constitui originalmente como doutrina, por seu intermédio, Montaigne parece narrar a descoberta, igualmente impremeditada, de uma filosofia já existente, o ceticismo antigo, capaz de iluminar intelectualmente o sentido de sua experiência passada, bem como da natureza filosófica de sua postura de exterioridade relativamente a toda a filosofia dogmática. Mas em que sentido exatamente a adesão ao ceticismo que estaria virtualmente compreendida nesse segundo relato difere daquela apresentada pelo primeiro? Perderia esse segundo episódio de engajamento algo de sua “impremeditação”, uma vez que é um engajamento filosófico a uma doutrina preexistente? Inversamente, perde67

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ria algo de seu eventual poder de persuasão o relato em que Sexto narra a experiência original dos primeiros “homens de talento, perturbados pelas anomalias das coisas e desconcertados quanto a saber quais delas deveriam escolher” (HP I, 12), se ele correspondesse a um relato meramente ficcional, jamais efetivamente vivido por um filósofo existente, mas destinado a reorganizar idealmente as etapas lógicas do engajamento do cético em sua perspectiva filosófica?64 Não faltam razões, portanto, para instruir nossa desconfiança das aparências de novidade filosófica, ainda que disponhamos agora, um tanto inesperadamente, de uma nova pista. Para aprofundar a discussão desse ponto, parece-nos porém conveniente examinar, antes de mais, o sentido em que Montaigne poderia se pensar historicamente um novo filósofo, relativamente aos antigos, num terreno mais recentemente explorado pelos intérpretes de seu ceticismo. Trataremos agora de seu fideísmo.

64. Discutimos em detalhe esse tema, ao qual retornaremos ainda adiante, em EVA, 2005. 68

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CAPÍTULO II

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Seja qual for a razão dos paradoxos observados no capítulo anterior, bem como suas eventuais conseqüências para a compreensão da “figura” de filósofo que Montaigne entenderia constituir, articula-se nos Ensaios, como vimos, um ceticismo portador de um rigor filosófico maior do que usualmente é reconhecido. Vimos, mais ainda, que a essa reconstrução do ceticismo antigo parece corresponder uma forma de engajamento pessoal, da qual emergiria um Montaigne cético. Mas talvez haja outros motivos para suspeitar dessa conclusão, formulada assim cruamente. O leitor pode bem se perguntar em que medida seria possível compreender precisamente uma caracterização como essa, se se trata de pretender reviver nesse autor uma filosofia antiga cerca de quinze séculos mais tarde. Não seria evidente, por exemplo, que tal filosofia devesse sofrer uma transformação conceitual, uma vez transplantada para a França cristã em guerras de religião? Vimos também, em contrapartida, ao considerar o emprego de estratégias argumentativas dialéticas pelos céticos, que a pressa em descobrir a “novidade histórica” dessa filosofia facilmente pode conduzir 69

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a equívocos. Convém agora nos precavermos contra outros preconceitos metodológicos que, em nosso entender, podem igualmente criar abusos interpretativos. É o que ocorre, por exemplo, quando a constatação de que os conceitos possuem historicidade se converte numa regra de interpretação pela qual se decide que todos os conceitos filosóficos devem ter seu sentido possível delimitado a priori pelo fato de pertencerem a determinado momento histórico. Não há dúvida de que seja importante prestar atenção aos significados próprios que determinados termos possuem em dado período. Mas com freqüência não se percebe que esses termos, ao pertencerem a um texto filosófico, participam de uma rede semântica que lhes confere autonomamente um sentido próprio — em conformidade ou à revelia de qual sentido seja usual ou se pretenda alegar como usual naquele período (com base, afinal, nos próprios textos filosóficos desse período). Corre-se assim o risco de projetar, sobre a minúcia própria do texto, uma filosofia fictícia, resultante de uma generalização indevida ou mesmo de um procedimento circular (pelo qual os próprios problemas interpretativos gerados por essa postulação acabam por se tornar, nos casos extremos, uma razão para concluir que tal autor é testemunha de uma forma de pensar que está inevitavelmente perdida para nós). Imaginemos, por exemplo, que um filósofo entenda ter formulado uma constatação da incapacidade humana de conhecer a verdade no domínio da metafísica. Por mais que o sentido da metafísica seja historicamente mutável, como seria possível salvaguardar o significado propriamente filosófico desse diagnóstico se supomos que ele está formulando uma tese que só faz sentido em seu contexto histórico? O resultado é que essa tese se tornaria incompreensível para os seus contemporâneos. Sem considerarmos aqui sua veracidade intrínseca, essa tese interpretativa possui o inconveniente de distorcer ou mesmo destruir o sentido possível da filosofia que ela pretenderia interpretar. Isso porque, sem que se perceba, se assume implicitamente, como tese interpretativa, uma tese que já é filosoficamente determinada (no caso, sobre a filosofia da história) e incompatível com a própria filosofia sustentada pelo autor que se pretenderia, antes de mais, compreender. Diríamos que se trataria aqui de uma variante dos mesmos defeitos interpretativos ordinários denuncia70

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dos por Goldschmidt1 relativamente à pretensão do intérprete em ser melhor conhecedor da filosofia interpretada do que o próprio filósofo. Pois tanto erra o intérprete quando, ao pretender interpretar, acaba lhe imputando uma filosofia diversa (e normalmente menos coerente do que a original, uma vez que sua lógica própria é fragilizada pela admissão tácita de uma tese incompatível com sua filosofia) como quando, em nome de uma suposta cautela interpretativa, empresta ao filósofo uma incompreensibilidade que igualmente deriva de uma tese filosófica que é apenas sua e que acaba projetando no texto do filósofo uma impossibilidade de leitura que reflete apenas a sua incapacidade particular de compreensão. Retomamos aqui esses caminhos bem batidos para alertar acerca de problemas importantes que entram em jogo quando se quer delimitar um âmbito próprio da novidade filosófica no transcurso da história. É bem verdade que se corre o risco de cometer igualmente o erro oposto, de projetar no texto uma coerência fictícia. Mas tendo em vista que os problemas a que aludimos no capítulo anterior, relativos à possibilidade de ler os Ensaios como texto filosófico, normalmente se aprofundam ao se pretender situá-los historicamente, parece-nos importante privilegiar o próprio texto, não apenas segundo sua possível coerência, mas também segundo o modo particular pelo qual ele inscreve a história de sua problemática filosófica. Feitas essas considerações, examinemos aquela que recentemente tem surgido como a pista mais evidente para a determinação da particularidade do ceticismo de Montaigne, segundo as implicações de sua situação histórica particular. Richard Popkin, investigando o modo como o pirronismo antigo foi retomado no Renascimento, no contexto particular dos debates entre católicos e protestantes sobre os critérios de interpretação da Verdade Revelada, é um dos principais responsáveis pelo ressurgimento de um interesse pelo exame do ceticismo de Montaigne. Não obstante a brevidade da interpretação que nos oferece em sua História do ceticismo, ele considera a “Apologia” um texto histori1. Ver GOLDSCHMIDT, 1970. 71

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camente decisivo, pelo modo como ali o pirronismo (até então subordinado à teologia, como antídoto católico às teologias protestantes que procuraram fazer da razão individual o critério da “lei da fé”, em lugar do critério tradicional, que conferia à antiguidade da Igreja autoridade interpretativa) adquiriu uma dimensão autônoma, graças à qual se formulam primeiramente as questões fundamentais da epistemologia moderna. Montaigne pôde assim ser redescoberto como referência cética importante para uma tradição filosófica posterior que esteve às voltas com os mesmos problemas, na qual se incluem, entre outros, Charron, La Mothe le Vayer, Gassendi, Bayle, Descartes e Pascal. Eis uma interpretação inovadora e instigante acerca do papel histórico decisivo da filosofia de Montaigne, cujo alcance ainda não foi, a nosso ver, inteiramente reconhecido e explorado2. Igualmente, Popkin observa que o pirronismo ressurge em Montaigne com “vestes fideístas”, sob a forma do “fideísmo cético” do Renascimento (no qual, em linhas gerais, a postura teológica que elege a fé como um fundamento não-racional da religião alia-se a uma postura filosófica cética acerca dos poderes da razão de conhecer verdades)3. De fato, não apenas os argumentos céticos de Montaigne são ladeados por afirmações sobre a dependência da Revelação cristã a um abraço sobrenatural da fé, mas também, como noutras versões da defesa fideísta cética do catolicismo, parecem conduzir, em conformidade com as preconizações sextianas, a uma espécie de aceitação filosófica da tradição e dos costumes — na forma, por exemplo, do reconhecimento da “majestade plena de autoridade e comando” da crença tradicional contra os “ateístas”, que ousam desafiá-la com as armas da razão, cuja precariedade desconhecem (v. 440-448A). Parece-nos, contudo, que aqui é 2. Ver POPKIN, 1979, cap. 1 a 3, esp. p. 54. Diversas leituras recentes do ceticismo de Montaigne não observam devidamente o modo como ele constitui uma reconstrução filosófica consistente e argumentada do ceticismo antigo, por contraposição a outros “céticos” renascentistas pré-montaignianos (como, p. ex., VINCENT, 1998, p. 7). 3. Ver, além de Popkin, especialmente PENELHUM, 1983, que discute a viabilidade de um fideísmo cético como forma autêntica de pensamento religioso; ver também FRIEDRICH, 1968, p. 117 ss., e BRAHAMI, 1996, p. 29 ss., para uma confrontação entre os fideísmos de Pomponazzi e de Huet. 72

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especialmente importante não perder de vista este aviso de Montaigne: “… todos os julgamentos genéricos [en gros] são frouxos e imperfeitos…” (III, 8, 943B). Popkin, é bem verdade, ressalva, ante o teor dos debates sobre a religião de Montaigne4, que esse esquema fideísta parece compatível com interpretações antagônicas de seu sentido propriamente religioso. No que tange ao problema que viemos até aqui discutindo, afirmar ou não a existência de um autêntico fideísmo pode conduzir ao reconhecimento de uma resposta determinada sobre a “novidade” filosófica em questão. Se o ceticismo pode se acomodar ao assentimento a verdades por meio da fé, torna-se eventualmente admissível que essa fé, compreendida como uma instância extranatural e extra-racional, constitua uma determinação histórica graças à qual a postura de Montaigne ante o problema do conhecimento da verdade deva se reconhecer forçosamente nova relativamente ao ceticismo antigo — seja em vista do advento histórico da Revelação, seja em vista de uma natureza epistemológica própria da fé, tal como adentra no esquema conceitual desse ceticismo. Tentaremos contudo mostrar que, mais uma vez aqui, a situação não parece ser diversa do que vimos ocorrer com a crítica cética de Montaigne à science. Ressalvado o próprio advento de uma Revelação, as diversas possibilidades consideradas de interpretar o sentido da Verdade Revelada parecem ser, de modo geral, tratadas como novas versões de dogmatismos e, portanto, como objeto de suspensão cética. Assim, a argumentação filosófica (cética) de Montaigne parece neutralizar qualquer dimensão propriamente teológica em sua reflexão, convertendo a admissão de um eventual “abraço sobrenatural da fé” (única instância que, em princípio, seria capaz, segundo ele, de nos propiciar o acesso à Verdade) não em uma mera “possibilidade teórica” que nunca se atualiza5, mas em algo radicalmente incompreensível e irreconhecível de um ponto de vista humano. Os mesmos elementos argumenta4. Para um sumário das principais posições, que abrangem, num amplo e diversificado leque, desde os que o viram como um fiel ardoroso até os que o tomaram por ateu e destruidor dissimulado da religião, ver AULOTTE, 1979, p. 110 ss. 5. É o que opina FRIEDRICH, 1968, p. 118. 73

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tivos céticos proíbem o leitor, como veremos, de extrair do texto qualquer conhecimento efetivo de uma verdade extrafilosófica dependente da intervenção privilegiada da Revelação6. Ademais a argumentação de Montaigne parece não oferecer elementos suficientes para que possamos responder claramente à questão sobre a sua religiosidade, aspecto este pelo qual o leitor poderá mais uma vez descobrir a inesperada proximidade desse autor a clássicos textos céticos. Parece-nos possível mostrar que essa questão, que foi objeto de acalorados debates, constitui uma espécie de armadilha interpretativa. A situação é diversa, em nosso entender, se nos atemos ao propósito de esclarecer as relações entre argumentação cética, conhecimento teológico e defesa da religião tradicional na “Apologia”. Para tanto, examinaremos diversos aspectos pelos quais, no âmbito dessa temática, sua posição cética se manifesta: na neutralização argumentativa da possibilidade de reconhecimento de uma verdade (ainda que de natureza religiosa); na recusa em adentrar no debate sobre o critério de interpretação da verdade revelada, ante o qual seus Ensaios historicamente se situam (debate que será visto como portador de um cunho dogmático, a despeito das aparências em contrário); no modo como responde retoricamente, por meio de sua “Apologia” de Sebond, a dois representantes paradigmáticos dessa disputa religiosa (mediante um curioso golpe de esgrima cético pelo qual é preciso alvejar-se com as próprias armas para suplantar o adversário); e, ainda, no modo pelo qual, diante das limitações da razão humana, Montaigne valoriza a observação do poder com que o costume, especialmente no que concerne às instituições religiosas, cimenta a ordem pública tal como estabelecida na França do século XVI. Todo esse percurso se enfeixa segundo a coerência de uma única perspectiva filosófica precisa, a do reconhecimento cético da incapacidade da razão humana de estabelecer demonstrativamente a verdade e da necessidade de aceitar, em decorrência disso, os effects como critério para ação.

6. Retomamos, para esclarecer esse ponto, alguns argumentos que já apresentamos noutra parte em defesa de leitura substancialmente análoga, em nosso artigo de 1992. 74

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A esgrima cética

2.1. Um fideísmo paradoxal

Se há grande controvérsia entre os comentadores acerca do sentido da defesa da religião proposta por Montaigne, isso se deve, ao menos em parte, ao tratamento tortuoso que ele dá ao problema da conciliação entre fé e razão em sua “Apologia”. Suas considerações acerca desse tema são pontuadas pelo emprego de conceitos-chave que são objeto de definição e ressurgem permanentemente ao longo da discussão — como os conceitos de “pura fé” e de “razão”. Não é, todavia, de modo algum facilmente compreensível sua posição sobre como esses termos se conciliariam. Isso não decorre da inexistência de posicionamentos pessoais de Montaigne sobre esse tema — seja mais diretamente, seja por meio dos comentários sobre a obra de Sebond e sobre as objeções que lhe são dirigidas. O problema resulta da trama intricada e paradoxal que esses julgamentos, devidamente considerados, adquirem. Assim, talvez não seja impertinente dizer que a própria posição de Montaigne sobre a conciliação entre fé e razão oferece-se ao leitor na forma de um problema a ser resolvido, seja isso feito ou não de modo deliberado. Pensamos, contudo, que o modo como a apresentação de novos elementos no texto, em vez de aportar esclarecimentos, contribui para aprofundar a perplexidade (tal como veremos a seguir) pode servir de argumento em favor da primeira possibilidade — tanto mais se levamos em conta que também aqui nos deparamos com procedimentos paradoxais, como os observados no capítulo anterior. Quiçá teremos aqui, assim, uma pista para o esclarecimento de tais paradoxos. Quais seriam os elementos disponíveis para reconhecermos, nos Ensaios, a presença de uma harmonização fideísta entre a filosofia cética (isto é, a constatação filosófica cética da precariedade da razão em obter a verdade) e a fé cristã (como instância autônoma para fundamentação de sua Revelação)? Antes de considerarmos a enigmática introdução da Apologia, detenhamo-nos no modo pelo qual Montaigne apresenta os termos dessa conciliação por meio da própria figura do filosofo cético. Depois de expor e examinar o ceticismo, ele nos oferece o seguinte juízo acerca da “verossimilhança e utilidade” dessa filosofia. Salvo engano, esta é também a passagem mais explícita da obra sobre a conciliação entre essas duas instâncias: 75

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[A] Não há, na invenção humana, nada que possua tanta verossimilhança e utilidade. Este [o cético] apresenta o homem nu e vazio, reconhecendo sua fraqueza natural, próprio para receber do alto alguma força estrangeira, desguarnecido do humano saber [science], e tanto mais apto para alojar em si o divino, reduzindo a nada o seu juízo para dar mais lugar à fé; [C] nem descrente, [A] nem estabelecendo nenhum dogma contra as observâncias comuns; humilde, obediente, disciplinável, estudioso; inimigo jurado da heresia, e se isentando, por conseguinte, das vãs e irreligiosas opiniões introduzidas pelas falsas seitas. [B] É uma folha em branco preparada para receber do dedo de Deus as formas tais que lhe aprouver aí grafar… (506).

Inegavelmente essa passagem responde ao intuito de mostrar que a “utilidade” da filosofia cética se vincula ao fato de que tal filósofo não é um inimigo da Igreja tradicional, e o faz explicando quais seriam, a seu ver, as linhas gerais da acomodação conceitual entre religião e ceticismo. Se os céticos adotam os “costumes” como critério para a ação na vida comum (v. 505A), esse aspecto, por si só, pareceria conduzir a uma espécie de adesão à religião costumeira (tal como propuseram outros “fideístas céticos” no Renascimento). Mas isso é ainda insatisfatório para caracterizar, por assim dizer, a conversão cética. Nas palavras de Montaigne, mediante sua recusa em estabelecer dogmas, esses filósofos se tornam uma “página em branco” sobre a qual pode haver uma intervenção sobrenatural (em deferência, talvez, ao menos num primeiro momento, à aceitação dos elementos próprios dessa tradição religiosa). Como compreender esse passo? A suspensão parece surgir como uma circunstância propícia para que, admitida a nossa “fraqueza natural” em reconhecer a verdade e aceitar a religião costumeira, possa a verdade se instalar em nós por uma instância sobrenatural. Tal circunstância abriria um espaço a ser ocupado pela fé e pela intervenção sobrenatural de Deus (aqui figurada pela ação especial da mão divina, gravando, na alma do cético, a compreensão das verdades que lhe aprouverem). A verdade revela-se ao cético, por meio da fé, como um advento que se sobrepõe à situação natural de incapacidade de reconhecer a verdade, por meios humanos, por intermédio dessa intervenção suple76

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mentar e extraordinária, impondo-se como um acréscimo histórico providencial da religião cristã, para além daquilo que exige a lógica interna de seu ceticismo pirrônico (pois essa filosofia poderia igualmente conduzir, como sabemos e como historicamente o fez, à aceitação de costumes e práticas religiosas diversas, num sentido meramente relativo). Importa sublinhar que o advento da fé pura surgiria aqui necessariamente como o intermediário para o reconhecimento da verdade, para além daquilo que, de um ponto de vista meramente filosófico, o cético se veria conduzido a aceitar, do ponto de vista do emprego natural de sua razão. Se eventualmente “somos cristãos como somos perigordianos ou alemães” (445A), como diz Montaigne na célebre passagem da “Apologia” (em que critica, a propósito, o vínculo usual dos cristãos com sua religião), essa relativização seria superável por tal abraço da fé revelador do sentido da verdade contida nos ensinamentos religiosos cristãos, capaz de tornar o cético um cristão em sentido próprio, conhecedor da verdadeira religião, que só a fé verdadeira pode aportar. No entanto, esse esquema parece aludir apenas a uma possibilidade da intervenção providencial sobre-humana, exclusivamente dependente da Graça divina, e apenas posterior à aceitação da religião costumeira (que, de saída, se faria no mesmo sentido meramente relativo com que qualquer outro costume poderia ser ceticamente aceito como critério para a ação). Para além dessa aceitação “fenomênica” do catolicismo, quais seriam as conseqüências conceituais da atualização dessa possibilidade sobrenatural diante da filosofia cética, caso ela ocorresse, segundo Montaigne? Deveria o cético, em seu entender, abrir mão de sua suspensão do juízo, ao reconhecer essa verdade? Ou a epokhé poderia vigorar ainda plenamente, uma vez admitida a revelação providencial da verdade pela fé, tratando-se aí de alguma verdade de natureza especial, diversa daquela diante da qual se poderia instaurar a suspensão? Sobre isso, nada se diz no texto citado. Em vez disso, a postura religiosa de tal cético é descrita em termos eminentemente negativos, enfatizados pelo acréscimo posterior a 1588. Montaigne limita-se a dizer que o pirrônico não é herético, porque, não aceitando nenhuma opinião, não aceita nenhuma heresia. Ele é um “não-descrente” (“ny mescroyant”). Significa isso que o cético necessariamente 77

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crê nalgum dogma? Assim como o termo “atheíste”, para um autor francês do século XVI, não significa imediatamente “ateu”, mas sim, literalmente, o “inimigo da religião cristã”, o termo “mescreant” significa, similarmente, “[aquele] que não crê na religião cristã”7. O não“mescreant”, desse modo, pode simplesmente ser aquele que não se opõe às crenças da religião cristã, assim como o não-“atheíste” é apenas aquele que não é inimigo do cristianismo (sem que com isso o estejamos caracterizando positivamente, com base naquilo em que crê). Embora a relevância dessa precisão vá se tornar mais clara adiante, podemos aqui assinalar que ela contribui para que essa passagem, como se vê por outros indícios, mantenha-se neutra quanto ao conteúdo das eventuais crenças que tal cético admitiria. Suspendendo seu juízo, ele deixa mais lugar para a fé. Mas em que consiste exatamente a natureza da fé que ele pode aceitar e o espaço por ela ocupado? No caso em que essa fé se diferencie das demais crenças humanas, graças ao modo como formula a verdade, quais os critérios para seu reconhecimento e sua aceitação que aqui se anunciam? Essa passagem não faz mais do que recusar os dogmas eventualmente opostos às observâncias comuns (que podem bem ser admitidas num sentido apenas relativo, em vista da adoção de um critério prático) e harmonizar a defesa da religião com a idéia da suspensão do juízo, ao menos na medida em que se pode atacar o dogmatismo dos que a combatem, sem se posicionar sobre o modo pelo qual positivamente um eventual aspecto proveniente da fé — que, não fosse ela, seria recusado pelo cético como uma impostura dogmática acerca da verdade (como será o caso na crítica das religiões antigas) — se sobreporia, a posteriori, à suspensão. O cético é aqui caracterizado como um advogado da religião cristã, graças à circunstância pela qual sua suspensão o predispõe para a fé, mas sem que se ofereça qualquer detalhe sobre como seu ceticismo se articulará com a admissão de crenças, e a metáfora de que Montaigne se vale (a mão 7. Ver GREIMAS, KEANE, 1992, p. 42, 411. A referência para “atheíste” provém de DU BELLAY, Défense et illustration de la langue française (1549), obra citada por Montaigne. Veremos, porém, que o próprio texto dos Ensaios parece acomodar-se bem à compreensão do termo nesse sentido. 78

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de Deus desenhando na página em branco), em vez de contribuir para elucidar o ponto, apenas traz novos problemas, como veremos melhor adiante8. Assim, a simples afirmação de uma postura “cristã”, não-ateísta, do cético, a despeito de ser oferecida por um esquema geral sobre o modo como esse cristianismo se sobreporia ao ceticismo, não conduz, à primeira vista, à compreensão da natureza filosófico-teológica dessa acomodação entre ceticismo e religião. Mas como pode esse esquema conceitual contribuir para a compreensão da posição do próprio Montaigne sobre a relação entre a fraqueza da razão e o poder da fé em propiciar verdades? O fato é que, para além das semelhanças que as posições que Montaigne enuncia em seu nome efetivamente guardam, como veremos, relativamente a esse esquema por ele atribuído aos céticos, o problema de compreender a atualização da fé, em seu caso, vai adquirir uma feição particularmente sinuosa e paradoxal.

*** Em certa medida, tal sinuosidade parece decorrer da maneira como, na introdução do ensaio, Montaigne enuncia dois propósitos distintos de que se ocupará e que, ao menos à primeira vista, não parecem ter maior relação entre si. O primeiro se apresenta em suas linhas iniciais: [A] É, na verdade, partido bem útil e grande, a “science”. Aqueles que a desprezam testemunham bastante de sua burrice. Nem por isso eu estimo seu valor nessa medida extrema que alguns lhe atribuem, como o filósofo Herilus, que situava nela o soberano bem e sustentava que ela nos podia fazer sábios e contentes, coisa em que não creio, e nem no que outros disseram, que a ciência é a mãe de toda virtude e todo vício é produzido pela ignorância. Se isso é verdade, eis o objeto de uma longa investigação [interpretation]… (438). Porém, em vez de se dirigir diretamente ao exame do valor da science, Montaigne passa a narrar as circunstâncias particulares em 8. Ver item 2.2, a seguir. 79

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que seu pai tomou contato com os homens de letras que freqüentavam seu castelo e, por seu intermédio, com a Teologia Natural do teólogo catalão Raymond Sebond, que ele traduzira a seu pedido. Justificando a importância dessa obra por meio de razões diversas — sua utilidade como meio de defesa da religião tradicional ante as novidades de Lutero e a popularidade pelo livro auferida, notadamente entre as damas — ele descreve o objetivo dessa obra e passa a defendê-la de duas espécies de objeções. São essas respostas que ele oferece a tais objeções (articuladas à intenção de oferecer uma defesa da religião tradicional) que, formalmente, definirão a estrutura argumentativa do ensaio — sobrepondo-se, desse modo, sem maiores explicações, ao objetivo de saída apresentado (objetivo que, embora não seja mais retomado de modo explícito, voltará indiretamente à discussão e se tornará o tema principal, enquanto Sebond, por sua vez, acabará por ser aparentemente relegado ao esquecimento à medida que o texto progride). Trata-se apenas da primeira curiosidade desse paradoxal labirinto que é a “Apologia”. Segundo Montaigne, Sebond, em sua obra, “[A] … empenhou-se em estabelecer e verificar, por razões humanas e naturais, contra os ateístas, todos os artigos da religião cristã…” (440). A primeira objeção de que pretende defendê-la é a de que os cristãos se enganam ao querer apoiar sua religião em razões humanas, posto que ela só se concebe pela intervenção da fé e pela graça divina (v. ibid.) Essa objeção é respondida ao longo das oito páginas seguintes, de modo relativamente rápido, portanto, em comparação com as cento e sessenta páginas restantes do capítulo em que Montaigne formalmente se ocupa em oferecer uma resposta à segunda objeção. Esta, por sua vez, consiste em alegar que os argumentos de Sebond são “fracos e ineptos para verificar o que ele quer”, razão pela qual seus objetores se põem prontamente a atacá-lo (v. 448A). E o que justifica o longo ataque à vaidade do homem, da science e da razão que será desenvolvido no ensaio, como parte dessa resposta, parece depender das exigências impostas pela natureza desse segundo grupo de objetores: na medida em que apenas aceitam, segundo Montaigne, digladiar na arena da razão humana, Montaigne se propõe mostrar, contra eles, que a razão humana 80

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é inteiramente cega, para minar a presunção racionalista com que pretendem encontrar razões melhores que as de Sebond (v. ibid., 447450A). É desse modo, portanto, que Montaigne se reconduz ao objetivo inicialmente formulado, aparentemente perdendo de vista o propósito explícito de dialogar com tais objetores, que não serão, de todo modo, referidos por meio de outras caracterizações além das apresentadas no início. Em princípio, os dois objetivos enunciados não parecem ser por si mesmos incompatíveis, e essa é uma das razões (entre outras que se oferecerão ao longo desta análise) pela qual essa duplicidade nos parece instaurar, de modo implícito e eventualmente deliberado, o problema interpretativo central que o ensaio oferece ao seu leitor: o de saber exatamente como se conciliam esses dois propósitos — avaliar a science e defender Sebond. Resolvê-lo é, a um só tempo, esclarecer o julgamento de Montaigne acerca do valor apenas relativo da science e o sentido em que propriamente a “Apologia de Raymond Sebond” deve ser vista como uma apologia. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que a abordagem desse problema tem conexão direta com o problema de saber como o próprio Montaigne pretenderia relacionar sua avaliação do alcance de nossas faculdades cognitivas e de sua eventual conciliação com a aceitação das verdades da fé. Mas por que, antes disso, cabe esclarecer qual o sentido dessa apologia — se é que estamos diante de uma verdadeira apologia? As razões que o exigem começam a se apresentar quando consideramos o juízo que Montaigne oferece, em seu nome, sobre a relação entre fé e razão, quando introduz sua resposta à primeira objeção que acabamos de expor: [A] … Nesta [primeira] objeção parece que há algum zelo de piedade, e por causa disso precisamos tanto mais tentar proceder com respeito e suavidade para satisfazer àqueles que a avançam. Isso seria antes tarefa para um homem versado em Teologia, do que para mim, que nada sei desse assunto. Todavia, assim julgo eu: que, para uma coisa tão divina e alta, e ultrapassando tanto a inteligência humana, como é o caso dessa verdade que aprouve a Deus nos esclarecer, é ainda necessário que ele nos empreste seu socorro de um favor ex81

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traordinário e privilegiado para que a possamos conceber e alojar em nós. Não creio que os meios humanos o sejam de modo algum capazes. Se o fossem, tantas almas raras e tão abundantemente guarnecidas de forças naturais nos séculos antigos não teriam falhado, com sua razão [discours], em chegar a esse conhecimento. É exclusivamente a fé que abraça vivamente e certeiramente os altos mistérios de nossa Religião… (440-441).

É claramente visível nessa passagem que o posicionamento de Montaigne sobre o tema, como dissemos, evoca o mesmo esquema geral fideísta apresentado em nome dos céticos. Por meio desse juízo, retomado ao final da “Apologia”9, Montaigne não apenas assevera a incapacidade das faculdades humanas de sustentadas por si mesmas as verdades da fé, mas também argumenta em favor dessa tese ao afirmar que, se os meios humanos fossem capazes de encontrar tal verdade, os antigos a teriam alcançado. A bem dizer, antecipa-se aqui um primeiro juízo de concordância com a posição dos céticos, que será posteriormente explicitada ao longo do ensaio, como vimos no capítulo anterior. Mais ainda, se assim for, ele contribui para conferir um significado histórico mais preciso ao diagnóstico sobre a precariedade da razão no âmbito de nossa condição natural, tal como se apresenta no esquema pelo qual Montaigne concebe a cristianização do pirrônico: sua validade é situada na Antiguidade em que se formulou, e só se suprime ou se limita (ainda que o faça de modo apenas condicional e hipotético) ante a possibilidade de um “favor extraordinário e privilegiado” pelo qual a verdade se revela, não por meios puramente humanos (cujo emprego pelos antigos Montaigne normalmente vê como excelente e incomparável), mas pela fé cristã. Essa pura fé milagrosa, única mediadora da obtenção e da compreensão humana da verdade, em confrontação com a conclusão cética, depende, por sua vez, exclusivamente da intervenção especial divina para que se consume tal acesso à verdade. 9. Cf. 603-604AC. Montaigne enfatizará que essa mesma instância da fé, almejando uma “divina e milagrosa metamorfose”, inteiramente dependente de um abraço extraordinário de Deus, é a condição exclusiva de transcendermos a situação humana de “impossibilidade de comunicação com o ser”, dado o fato de estarmos inteiramente submetidos ao devir. 82

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Embora Montaigne tenha apresentado tal juízo por meio de uma preterição — afirmando precisamente que nada sabe de teologia, a despeito de estar emitindo tal opinião — poder-se-ia ter a impressão de que o esquema cético-fideísta, apresentado de modo abstrato e genérico em nome dos céticos, ganharia aqui algum conteúdo teológico mais substantivo, na medida em que se acompanha de juízos sobre o “zelo de piedade” que ele enxerga dos primeiros objetores e sobre o “desígnio pleno de piedade” de Sebond que justifica sua defesa, por objeção ao “ateísmo” dos segundos objetores (v. 440A). Porém, quando tentamos aprofundar essa consideração, adentramos num outro nível de problemas. Pois, se é essa a posição de Montaigne, ela parece não apenas se confrontar diretamente com a posição do teólogo que ele alega estar defendendo (o qual, lembremos, pretende provar todos os artigos da religião cristã por meio de razões humanas e naturais), mas também se identificar antes com a posição dos objetores que ele alega refutar. Não é sem surpresa que o leitor há de constatar, com efeito, que a posição dos primeiros objetores com relação aos papéis da fé e da razão parece ser inteiramente análoga ao juízo que o próprio Montaigne apresenta sobre esse tema: a razão por si só nunca pode aceder às verdades da fé. Se essa concordância por si só já justifica uma certa surpresa — por que objetar uma posição com a qual se está de acordo? —, convém sublinhar suas eventuais conseqüências. Se a crítica de Montaigne freqüentemente se ocupa de examinar seu suposto fideísmo, normalmente não tem o cuidado de observar que, se Montaigne for um fideísta, se identificará à mesma posição teológica que pretende objetar e que, segundo os traços sucintos com que é resumida, não há por que não ser considerada como fideísta (na medida em que é explicitamente assumida como uma posição religiosa sobre esse problema) (cf. 440-441). Como proceder diante desse impasse? Devemos entender que Montaigne, na verdade, não pretende recusar a objeção e que se trata, por conseguinte, de uma falsa apologia? Ou devemos compreender que, a despeito dessa aparente semelhança, cumpre demarcar alguma diferença entre a posição de Montaigne e a dos objetores? Também essa peripécia, em vez de criar uma inconsistência lógica no texto, pode ser vista como mais um desdobramento do mesmo expediente: não 83

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somos, por seu intermédio, forçosamente conduzidos a uma questão interpretativa intimamente ligada à discussão dos problemas teóricos já considerados? Ela se desdobra em outras: devemos entender que Montaigne e esses objetores admitem no mesmo sentido a tese de que nossas faculdades são incapazes de sustentar os artigos de religião? Se assim for, como compreender a distância que a relação de objeção estabelece entre ele e tais objetores? Qual é, alternativamente, o sentido exato em que Montaigne a compreende, por oposição àquele que atribui a tais objetores? Talvez a elucidação do posicionamento de Montaigne dependa de sermos capazes, alternativamente, de minimizar ou reinterpretar essa oposição de Montaigne e de Sebond acerca do poder da razão e assumirmos que há uma concordância entre ambos, com base no fato de que Montaigne não apenas lhe dedica uma apologia, mas alega expressamente que a fé, vindo “tingir e ilustrar” seus argumentos, torna-os “firmes e sólidos…” (447A). Contudo, aqui a primeira impressão desconcertante apenas se agrava e evoca agora uma estranheza análoga à que constatamos nas passagens nas quais Montaigne apresenta sua identidade filosófica. Mais uma vez seu texto passa a exibir uma torção de seu sentido superficial quando considerado à luz das fontes a que se refere (não, nesse caso, os textos céticos de Sexto, mas a própria Teologia de Sebond). Não se trata, a bem dizer, de uma novidade, pois já foi amplamente observado que, embora Montaigne ataque, de modo explícito e veemente (a partir de 448A e ao longo de todo o seu ataque à “vaidade do homem” em julgar-se centro do universo e superior dos animais), as “razões” que atribui aos segundos objetores, ele também ataca, no mesmo passo, ainda que o faça de um modo clandestino e sistemático, as próprias razões de Sebond10. 10. Ver especialmente TOURNON, 1983, p. 230 ss.; VILLEY, Les Essais, p. 436, 1277, 1278, 1281; BRAHAMI, 1996, p. 29 ss. Seria ocioso retomar os diversos e eloqüentes exemplos com que tais comentadores recusam a hipótese de que haveria uma oposição meramente casual ou fortuita entre Montaigne e Sebond (v., p. ex., AULOTTE, 1979). Outro argumento decisivo contra essa hipótese é oferecidos por GRAY, 1964: Montaigne possivelmente reviu sua própria tradução no momento em que escreveu a “Apologia”, da qual publicou uma reedição corrigida em 1581. 84

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Somos assim reconduzidos à descoberta de uma aparente concordância de Montaigne com os objetores de Sebond (ainda que, no caso desses segundos objetores, se trate de uma concordância velada): julgando as razões do teólogo “tão sólidas e tão firmes quanto quaisquer outras da mesma condição que se lhes possa opor” (448A; itálicos nossos), Montaigne, na verdade, parece implicitamente julgá-las, do mesmo modo que tais objetores, incapazes de demonstrar o que pretendem11. Se é assim, que sentido pode ter, nesse caso, o reconhecimento da fé que solidifica essas razões (tal como ele alega, como vimos, no âmbito da resposta aos primeiros objetores), se agora ele mesmo, alegando responder aos segundos objetores, destrói as mesmas razões de Sebond com as próprias mãos? Qual é aqui exatamente a distância que o aparta desses outros objetores, caso devamos reconhecer essa concordância? O que permanece justificando essa apologia, pela qual Montaigne sucessivamente alega rebater objeções com as quais parece nalguma medida se pôr de acordo? Segundo Tournon, tais manobras desconcertantes nos poriam diante de um “paradoxo cético”: Montaigne, simultaneamente pró-Sebond, ao alegar defendê-lo, e contra Sebond, destruindo seus argumentos, pretenderia engendrar uma “suspensão” acerca do sentido do título de seu capítulo12. Assim procedendo, agrupando as razões a favor e as razões contrárias em bloco, para opô-las, a leitura de Tournon tende a fazer do paradoxo um meio de conduzir o entendimento ao colapso e a convertê-lo aqui numa espécie de contradição. Mas, assim procedendo, essa leitura também condena a priori, talvez precipitadamente, a possibilidade de achar uma saída do labirinto — isto é, de compreender como, apesar dessas manobras, ou mesmo por seu intermédio, Montaigne eventualmente empreenderia uma refutação dos objetores e uma defesa de Sebond e da religião, em conformidade com o que afirma o título de seu capítulo. Caminharemos na direção de uma possibilidade de interpretação diversa, que admite, ao menos como condição para 11. Ver TOURNON, 1983, p. 243-244. 12. Ver TOURNON, 1983, p. 238 ss.; TOURNON, 1989, p. 87. Para uma discussão mais detida de sua tese, ver EVA, 2004, cap. I. 85

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restabelecer a eventual coerência do texto, que o paradoxo criado no conjunto dessas objeções e respostas seja visto, antes de mais, como a explicitação dos problemas interpretativos rigorosos para os quais o próprio autor exige resposta em troca de ser compreendido. Nossa hipótese de leitura é a de que tais paradoxos podem ser vistos como o meio pelo qual Montaigne precisa, de modo indireto, o sentido em que efetivamente empreende uma apologia, ainda que esta possua um sentido diverso do que parece possuir à primeira vista. Talvez tenhamos aqui condições de compreender mais claramente aquilo que o próprio filósofo afirma sobre o modo como os títulos dos capítulos de sua obra acompanham o que neles ocorre13. Igualmente, talvez estejamos em maior conformidade com o modo pelo qual ele explica desenvolver os temas que aborda: [B] … Eu me extravio, mas é antes por licença que por descuido. Minhas fantasias se seguem, mas por vezes é de longe, e se observam, mas de uma vista oblíqua… [C] É o indiligente leitor que perde meu assunto, não eu; encontrar-se-á sempre num canto alguma palavra que não deixará de ser bastante, ainda que seja concisa [serré]… (III, 9, 994). Teríamos, em suma, tão pouco direito de escamotear, em benefício da coerência, qualquer elemento desse conjunto enigmático e paradoxal (aí compreendido não apenas o título, mas também as passagens de cunho “metodológico” como essa) quanto de desconfiar da própria coerência que o autor pretendeu imprimir à obra (como quiseram alguns, que a consideraram o resultado de uma tentativa malfadada do autor de harmonizar textos fragmentários produzidos com propósitos diversos)14. Seriam, contudo, as opções a que ficaríamos reduzidos, se não nos restasse modo mais satisfatório de compreender esse conjunto. 13. “[B] Os nomes dos meus capítulos nem sempre abraçam a matéria; freqüentemente eles a denotam apenas por alguma marca, como estes outros [C] títulos: o Ândrio, o Eunuco, ou esses outros [B] nomes: Sila, Cícero, Torquato. Eu amo a progressão poética, em saltos e cambalhotas. [C] É uma arte, como dizia Platão, leve, volúvel, demoníaca…” (III, 9, 994). 14. Ver FRAME, 1947. 86

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2.2. A querela da fé e a auto-refutação cética

Passemos agora a um exame mais detalhado da posição de Montaigne relativamente à relação entre fé e razão. Como vimos, respondendo aos primeiros objetores, ele formula em seu nome uma posição de aparência cético-fideísta, em modo hipotético: se pudermos conhecer a verdade, inalcançável de um ponto de vista meramente humano, em conformidade ao diagnóstico filosófico dos céticos, isso não se dará pela nossa razão, mas apenas por uma eventual intervenção milagrosa e extraordinária da Revelação. Mas qual o sentido preciso que essa posição adquire em seu próprio caso? Deveria ser ela vista como a expressão de uma plena concordância com os céticos? Ou ainda com os objetores de Sebond (e, nesse caso, especialmente com os primeiros objetores)? Nesse caso, por que lhes dirige uma objeção e alega defender o teólogo? Para esclarecer esse ponto, importa prestarmos atenção ao tratamento a que Montaigne submete — de modo implícito, por meio do desenvolvimento da “Apologia”, na resposta aos segundos objetores — essa hipótese de intervenção divina destinada a atualizar o conhecimento da verdade a que o cético se predisporia. Qual o sentido em que se poderia compreender, segundo Montaigne, essa possibilidade? Embora alguns comentadores entendam que o contexto religioso em que ele se encontra atesta por si só uma tomada de posição fideísta efetiva, parece-nos possível assinalar que sua posição particular é tanto menos assimilável a um fideísmo efetivo, segundo as exigências que ele mesmo estipula, quanto mais estreitamente nos atemos ao panorama da religiosidade que é descrito em seu texto. Ainda que Montaigne alegue reconhecer a presença solidificadora da fé nos argumentos de Sebond (num sentido até aqui enigmático, posto que ele mesmo argumenta contra as razões desse teólogo), tal ocorrência deveria, de todo modo, ser vista como bastante excepcional: não apenas em vista do sentido preciso que ele parece reservar para a noção de fé, naquilo que ela seria filosoficamente relevante (um abraço sobrenatural responsável pela revelação da verdade), mas sobretudo em face do que demonstra a situação empírica da cristandade de seu 87

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tempo, tal como ele a vê. A resposta à primeira objeção é repleta de fórmulas condicionais enfáticas — como: “… se o raio da divindade nos tocasse de algum modo, ele apareceria por toda parte…” ou “… se tivéssemos uma única gota de fé…” (442A) —, fórmulas que, de modo geral, anunciam hipóteses que são abertamente negadas pelo comportamento dos cristãos, ligados à sua “verdade” por um vínculo menos sólido do que aquele pelo qual muitos outros não-cristãos se ligariam às suas crenças meramente humanas. A mesma ausência do vínculo (e, por conseguinte, da posse da verdade no sentido próprio que fora filosoficamente estipulado de saída) se deixaria ver no espetáculo da profunda divergência entre os cristãos franceses acerca da interpretação do sentido da verdade revelada: “[A] … que tiram, como da cera, tantas figuras contrárias de uma regra tão reta e tão firme…” (443), Seu único acordo, nas palavras de Montaigne, é o de conduzir a religião segundo mãos humanas — segundo mãos que tornam relativo tudo em que tocam, na falta do “abraço sobrenatural” da fé. Assim, a querela sobre o sentido da verdade revelada — fulcro dessa divergência cristã, nesse panorama histórico particular, da qual as objeções a Sebond consideradas ofereceriam dois casos exemplares — surge no texto como um signo da ausência da “fé pura” capaz de nos pôr efetivamente diante da verdade. Pois a essência da verdade revelada pela fé, segundo Montaigne, consiste em ser ela “uniforme e constante”, manifestando-se na forma de uma clareza consensual — situação essa que será diversas vezes, ao longo do capítulo, contraposta ao desacordo que a desmente15. Em particular, os próprios textos bíblicos, base inevitável da discussão sobre a Revelação, surgirão como um exemplo especialmente eloqüente de como o espírito humano encontra os sentidos mais controversos nos textos que se põe a folhear16. É significativo 15. Ver 553A; 562-563AB. 16. Ver 585-586A; em III, 13, 1065, Montaigne menciona os debates religiosos sobre os textos bíblicos como exemplo da irredutível diversidade das opiniões humanas, e observa que a citação desses textos em tais debates constitui uma tentativa inútil para minorá-los ou estancá-los. Isso atesta, ademais, que o emprego de passagens das Escrituras por Montaigne não é feito segundo essa mesma pretensão de estabelecer a verdade. Elas são principalmente mencionadas no contexto dialético erigido pela polêmica 88

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que, seguindo o quarto tropo argumentativo cético de Enesidemo, ao argumentar pela impossibilidade de reconhecer a verdade, ante a impossibilidade de encontrar uma posição isenta para julgar o conflito entre as apreensões que temos das coisas segundo a diversidade das circunstâncias, Montaigne ofereça o seguinte exemplo: “[A] … Assim como dizemos, nos debates da religião, que precisamos de um juiz que não esteja engajado nem num nem noutro partido, isento de escolha e de afeição, coisa que não pode haver entre os cristãos, ocorre o mesmo aqui…” (600; itálicos nossos). Tal constatação, por certo, não exclui, pura e simplesmente, a possibilidade da ocorrência da “pura fé” que condiciona a posse da verdade. Mas essa passagem indica, ao menos, que nenhuma das posições teológicas em conflito sobre o critério de interpretação da verdade revelada a suplantar a diaphonía cética está autorizada a vindicar uma prerrogativa sobre as demais (possuindo, por força da ocorrência desse abraço sobrenatural, a interpretação adequada que só a “pura fé” pode propiciar). Ao contrário, Montaigne observa o próprio debate contemporâneo sobre o sentido da verdade revelada — ao menos, nos termos em que concretamente se apresenta — como um exemplo, entre outros, da disputa dogmática sobre a verdade (e, portanto, como testemunho de que a verdade não se reconheça em nenhuma das partes litigantes) (v. 527A). É mesmo verossímil que as objeções a Sebond consideradas representem, nalguma medida, posições teológicas realmente sustentadas nessas controvérsias: de uma parte, uma objeção fideísta, que se aproxima bastante de uma defesa da religião de tipo erasmiano; de outra, uma objeção “ateísta”, em cujo perfil se deixam ver os traços característicos das posições dos calvinistas — que só aceitam ser refutados “pelas armas da razão” (uma vez que elegem a razão individual como critério para a interpretação da verdade revelada) e que, por meio dessas armas humanas, cuja precariedade desconhecem, se dão a liberdade de se confrontar com com objetores que, combatendo na arena da pura razão humana, não admitiriam a alegação da pura fé como um pressuposto que “solidificaria” a veracidade dessas passagens (cf. 447-449A). 89

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o que afirma “nossa religião”, isto é, com aquilo que aceitamos por sua “majestade plena de autoridade”17. Mas se esse embate acerca da interpretação da verdade, em que se opõem os diversos “partidos” interpretativos considerados, surge, aos olhos de Montaigne, como exemplo de uma controvérsia dogmática (que comporta uma tentativa de estabelecer não apenas uma verdade interpretativa, mas um critério de verdade), não deveríamos também esperar que, de um ponto de vista cético, fosse essa uma ocasião propícia para a suspensão do juízo? Eis, justamente, o que preconiza Montaigne: “[C] … Na opinião de Sócrates, e também na minha, o juízo mais sensato acerca do céu é não julgar…” (535; itálicos nossos). Mas se cabe suspender o juízo ante as alternativas em conflito, e se a primeira objeção a Sebond formula uma posição fideísta (Montaigne oferece, efetivamente, argumentos contra essa objeção, mesmo que se detenha especialmente em rebater a segunda), como atribuir ao próprio Montaigne uma posição “fideísta”? Não seria isso inseri-lo no próprio debate do qual ele pretenderia manter exterioridade mediante sua posição suspensiva (analogamente, talvez, ao modo como seu filosofar fortuito se pretenderia das diversas “seitas” filosóficas por ele inspecionadas, como vimos no capítulo anterior)? Assim, a despeito do que sua alegação poderia sugerir, quanto à semelhança com a posição dos primeiros objetores, Montaigne, não pretendendo tomar parte nesse debate, não pretenderia tampouco, portanto, defender uma posição fideísta. É plausível reconhecer como fideísta uma posição que se abstém explicitamente de representar um “partido” determinado no embate teológico 17. Seria eventualmente possível encontrar uma imagem histórica real dessa oposição entre dois tipos de objetores na controvérsia entre os seguidores de Lutero e o fideísmo de Erasmo, analisada em POPKIN, 1979, esp. cap. 1. Segundo GRAY (1964), quando Montaigne alega defender a princesa católica Marguerite do veneno insidioso dos “nouveaux docteurs” que pretenderiam brilhar “a expensas de sua salvação”, refere-se precisamente aos protestantes da corte do rei de Navarra (que tal comentador identifica erroneamente, em nosso entender, com “céticos”). Não nos parece seguro, porém, que Montaigne esteja aludindo, por meio dessas objeções “principais”, a personagens precisos que ele se recuse a nomear, nem que isso seja necessário para compreender o sentido geral de sua estratégia argumentativa. 90

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a que Montaigne se refere (e que seria, ademais, figurado pelas posições dos adversários de Sebond, que ele alega recusar)? Talvez se pudesse objetar que, ainda que nenhuma das versões atualmente disponíveis da alegação da fé como manifestação da verdade pudesse ser aceita como tal, isso não excluiria a aceitação, por parte de Montaigne, de uma possibilidade futura dessa manifestação — tal como alegada na resposta à primeira objeção e que se faria supostamente presente, por exemplo, nas razões de Sebond ou nos textos bíblicos. Na admissão dessa possibilidade estaria o contorno preciso do fideísmo montaigniano: uma espécie de “fideísmo em potência”, por assim dizer, de acordo com o qual se creria com a crença meramente humana, esperando humanamente que ela mesma viesse a se transformar na pura fé graças ao insondável favor divino. Contudo, parece-nos que as reflexões céticas que seu texto desenvolve posteriormente impõem sérias dificuldades para a compreensão do sentido em que se poderia admitir essa possibilidade. Retomemos aqui suas críticas céticas à dimensão assertiva de nossa linguagem (v. 527A), que constituem um momento culminante de sua condenação do antropomorfismo em assuntos religiosos, desenvolvida em termos particularmente severos e irrestritos (mesmo que explicitamente aludindo apenas a pagãos e maometanos)18. A solução pirrônica de que, como vimos, Montaigne se vale para a expressão da impossibilidade de formulação da verdade, já no uso natural da linguagem (“que sei eu?”), é parte de uma crítica às tentativas de apreender Deus segundo esse mesmo instrumento de conhecimento meramente humano; tentativas de transpor um abismo que se revela, portanto, infinitamente mais profundo quando a obtenção dessa verdade compreenderia a ultrapassagem da esfera humana. Montaigne se vale de argumentos céticos para concluir que, quando se refere a assuntos divinos, a linguagem se torna inteiramente ininteligível para nós, pelo simples fato de ser vazada em termos humanos (v. 528A). 18. Tal crítica se desenvolve em grande medida na esteira dos argumentos estóicos contra o epicurismo ventilados por Cícero no De Natura Deorum e se detém particularmente no emprego de termos que tomam de empréstimo descrições relativas ao homem para se referir à dimensão divina. Ver especialmente 514 a 523. 91

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No capítulo anterior, observamos que a solução de Montaigne, à primeira vista, poderia sugerir uma espécie de ressalva ante a posição dos pirrônicos, ao admitir que o caráter afirmativo da linguagem lhes seria problemático e, graças a isso, eles seriam forçados a buscar subterfúgios para poder contornar esse problema e exprimir sua concepção suspensiva. Porém, como vimos, aquela aparente recusa não apenas dá lugar a uma fórmula igualmente pirrônica sustentada pelo próprio Montaigne (o próprio “que sei eu?”), mas também surge como uma etapa da apresentação de um problema cético ainda mais radical: dizer que a dimensão afirmativa da linguagem é problemática já no âmbito humano e natural destina-se a sublinhar, comparativamente, que essa dimensão afirmativa é infinitamente mais problemática quando a linguagem humana pretende dizer algo sobre aquilo que transcende nossa dimensão. Seriam essas considerações irrelevantes para o uso que o próprio Montaigne faz da linguagem quando formula sua hipótese fideísta? De que verdade poder-se-ia tratar, segundo um eventual fideísmo hipotético, se o simples caráter afirmativo da linguagem em que essa própria hipótese fideísta se formula (isto é, o caráter afirmativo da linguagem empregada pelo próprio Montaigne) seria, segundo ele mesmo, ainda menos aceitável para a formulação de uma verdade do que ele o seria para os céticos (caso para eles fosse efetivamente inaceitável)? Ou devemos, também aqui, admitir que Montaigne argumenta, distraidamente, contra as próprias posições que apresenta, tal como alvejaria casualmente as posições de Sebond? Talvez se pudesse novamente objetar, alegando agora que estamos desprezando as ressalvas de Montaigne, ao final do capítulo, sobre a possibilidade de uma “divina e miraculosa metamorfose” — de tal ordem que, embora inteiramente inconcebível diante das dificuldades lógicolingüísticas ora consideradas, viesse justamente revogá-las e garantir a compreensão dos textos em que essa verdade poderia de algum modo se manifestar. E, vistos em detalhe, os termos nos quais ele formula seu critério “fideísta”, na resposta à primeira objeção, parecem se adequar a essa possibilidade interpretativa19. Tal critério comportaria, assim, dois 19. “[A] … assim julgo eu: que, para uma coisa tão divina e alta, e ultrapassando tanto a inteligência humana, como é o caso desta verdade que aprouve a Deus nos 92

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momentos distintos: (i) a revelação como ação da Graça divina, propiciadora da verdade inalcançável pelo homem (por intermédio do texto bíblico, por exemplo, embora numa linguagem pela qual não a podemos atualmente compreender); e (ii) uma ação suplementar da Graça que criaria as condições para podermos ter acesso a essa verdade. Podemos tentar ainda, para levar às últimas conseqüências essa hipótese, supor que, embora Montaigne não o afirme, essa ação suplementar da Graça se manifeste para a compreensão do próprio sentido do critério de acesso à verdade revelada, ainda que seja ele formulado na linguagem humana dos Ensaios, tornando compreensível o sentido da própria “hipótese fideísta”, em sua formulação condicional, por meio desta sentença: “se a pura fé se manifestar, então veremos a verdade”. Ascendemos aqui, porém, apenas a um novo degrau das dificuldades céticas: tal suposição mostra que as conseqüências da argumentação de Montaigne contra o critério de verdade, nesse caso particular, são ainda mais drásticas e, ao mesmo tempo, permitem aproximá-las mais, de modo mais preciso, dos argumentos do ceticismo antigo, mesmo que por um viés novamente inesperado. Consideremos os argumentos de Montaigne contra as interpretações da Providência Divina, pelos quais ele ataca concepções estóicas e epicuristas que julga compartilhadas por “alguns cristãos” (v. 528A), e que complementam a mesma discussão sobre a distância intransponível entre o homem e Deus. Em síntese, não temos, ante a mesma limitação de nossas medidas humanas, como discernir a presença de uma ação direta da Providência (ou um “abraço extraordinário” de Deus) do idêntico acaso com que todos os eventos parecem se apresentar de um ponto de vista humano: [C] Como se fosse a ele menos ou mais remover um império ou a folha de uma árvore, e a sua providência se exercesse de modo outro inclinando os eventos de uma batalha e o salto de uma pulga! A mão de seu governo se presta a todas as coisas com igual firmeza, mesma força e mesma ordem. Nosso interesse aí nada conta, nossos movimentos e nossa medida não o tocam… (529). esclarecer, é ainda necessário que ele nos empreste seu socorro de um favor extraordinário e privilegiado para que a possamos conceber e alojar em nós…” (441; itálicos nossos). 93

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Não estaria aqui igualmente comprometida a possibilidade de reconhecer um segundo abraço sobrenatural, que garantiria, segundo a hipótese interpretativa considerada, o acesso à verdade supostamente oferecido pelo primeiro? Alguns comentadores opinaram que o fideísmo de Montaigne deve ser compreendido como uma postura teológica próxima da que encontramos em Agostinho20, que distingue a Graça no sentido próprio, como dom sobrenatural de Deus, e a Graça compreendida como concurso divino para a totalidade das coisas na sua existência21. Enquanto a Graça ordinária é admitida num sentido trans-histórico, em conformidade com a admissão de que o ser de todas as coisas existentes provém da onipotência e da bondade do Ser supremo que é sua causa, a Graça no sentido próprio concerniria especialmente à história pós-lapsária, em que o homem, devido ao pecado original, teria deixado de gozar do contato imediato com Deus que caracterizaria sua situação primeira. Nesse sentido, a Graça seria entendida como uma intervenção divina particular que, sem interferir no livre-arbítrio humano, ofereceria aos eleitos uma espécie de chamado para a fé, encaminhando-os a uma superação da condição pecaminosa do homem como seu destino supraterreno. Não poderia Montaigne, ao formular sua hipótese acerca de um segundo abraço sobrenatural, aludir à Graça nesse segundo sentido, ao passo que se valeria da Graça ordinária para aludir ao modo como a mão divina se prestaria igualmente a todas as coisas? Parece-nos que não. No âmbito da teologia agostiniana, o sentido que ganha essa distinção entre a Graça ordinária e a Graça especial depende inteiramente de outros aspectos doutrinais, ausentes dos Ensaios: em parte alguma, nesse ou noutro capítulo, Montaigne faz qualquer referência a uma duplicidade da natureza humana de índole religiosa, nem à doutrina cristã da queda, nem mesmo à figura do Cristo como redentora da condição de pecado. Ao contrário, quando comenta, por exemplo, os temas relativos à tradição cristã da miseria e da dignitas hominis, discutindo a posição dos homens relativamente às 20. Ver LIMBRICK, 1995, p. 81. 21. Seguimos aqui GILSON, 1987, esp. p. 197-198. 94

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demais criaturas, temas que são usuais na literatura teológica do período, ele recusa a hierarquia tão essencial à perspectiva agostiniana do reconhecimento de uma ordenação divina no mundo, afirmando, em seu lugar, a uniformidade da natureza: [A] Eu disse tudo isso [sobre os animais] para sustentar a semelhança que aí há com as coisas humanas, e para nos reconduzir e juntar ao seu número. Nós não estamos nem acima nem abaixo do resto: tudo o que está sob o Céu, diz o sábio, corre sob uma lei e fortuna semelhante… Há alguma diferença, há ordens e graus, mas é sempre sob a face de uma mesma natureza… É preciso constranger o homem e situá-lo nas barreiras dessa ordem [police]. O miserável não cuidou de não pular, de fato, além daí; [mas] ele está submetido e engajado, ele está sujeito à mesma obrigação que as outras criaturas de sua ordem, e é de uma condição bem mediana, sem nenhuma prerrogativa e precedência verdadeira e essencial… (459)22. A própria citação bíblica (situada no regime da resposta à segunda objeção e, portanto, no mesmo nível “meramente humano” de todas as demais razões) é aqui empregada para corroborar a idéia de que nossa situação não nos confere nenhuma prerrogativa ou privilégio excepcional — ou, nos termos da discussão sobre a providência, não nos revela a presença de nenhuma ação especial da Providência que nos elevaria para além desse âmbito geral em que se encadeiam naturalmente os fatos. Assim, a exigência, explicitamente formulada, de uma ação especial da Graça como condição de acesso à verdade, em vez de resolver o problema, apenas contribui para impedir que a primeira suposição (de uma intervenção geral de Deus no mundo que estaria além de nossa compreensão) possa ter, ela mesma, qualquer conteúdo preciso — que conduza, por exemplo, a tomar a gradação dos seres naturais 22. Nessa passagem, Montaigne pretende apresentar um critério para considerar o estatuto humano na criação alternativo ao determinado pelo embate tradicional entre as defesas da miseria e da dignitas hominis. Só é possível, assim, tomar Montaigne e seu ceticismo como representantes da miseria hominis, como o faz Pascal, contra sua intenção explícita (v. Pensées, § 109, 131, 430, 577; cf. CARRAUD, 1992, p. 81 ss.) Ver ainda, a esse respeito, a crítica de Montaigne acerca do modo pelo qual a religião pode induzir o homem a ignorar sua própria natureza, em III, 13, 1115. 95

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como sinal de uma intervenção particular de Deus na criação. Se a Graça especial é condição de acesso e compreensão da verdade, e se, em sua ausência, não temos acesso atual a essa verdade (pois tal é a condição natural com base na qual nos situamos para considerar essa possibilidade), isso significa que não podemos conferir à Graça ordinária qualquer sentido pelo qual ela se distinga, seja em que sentido for, da mera manifestação do phainómenon — pela qual o cético reconhece a diversidade da ordem e os graus com que a natureza se oferece relativamente à experiência humana, bem como o modo aparentemente casual com que os eventos se sucedem (mesmo sem poder identificar essa percepção do “acaso” percebido como uma explicação última da natureza das coisas). A essa dificuldade somam-se outras que já anunciamos: se os sentidos contidos na linguagem humana a tornam radicalmente incapaz de dizer compreensivelmente algo sobre os assuntos divinos, como poderemos conferir um sentido humanamente compreensível à sua própria descrição dessa intervenção constante da “mão de Deus”, que se prestaria ao salto da pulga e ao resultado da batalha com igual firmeza, ou ainda à hipótese de um “abraço” sobrenatural da fé, bem como à caligrafia da mesma “mão divina” na página em branco das crenças céticas não-ateístas? Se Montaigne afirma ser necessário ir além de Agostinho e, para refutar os “ateístas”, mostrar a completa cegueira da razão, tal desenvolvimento acaba finalmente por se incompatibilizar, ao que parece, com um esquema teológico de natureza agostiniana. Assim, os argumentos que precisam as condições de acesso do homem à dimensão divina, no âmbito da resposta à segunda objeção, em nada auxiliam para que o suposto fideísmo de Montaigne possa ter seu sentido teológico delineado. Muito ao contrário, eles parecem comprometer radicalmente a própria compreensibilidade de sua hipótese fideísta e a tentativa de determinar sua perspectiva teológica própria, e que poderia eventualmente ser distinta daquela que ele atribui aos primeiros objetores de Sebond. E o problema se torna ainda maior se lembramos que a doutrina agostiniana da Graça serviu como fonte de inspiração teológica às diversas versões reformistas do critério de interpretação das Escrituras. Depois de ter afirmado que é igualmente 96

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impossível, ante os debates teológicos dos cristãos e ante as circunstâncias de apreensão conflitantes, encontrar um “juiz isento” que pudesse abolir a suspensão do juízo cética, Montaigne conclui sua apresentação dos tropos de Enesidemo desenvolvendo-os, na pista de Sexto, segundo os problemas lógicos que evocam: [A] … Para julgar as aparências que recebemos dos objetos, precisaríamos de um instrumento judicatório; para verificar esse instrumento, precisamos de uma demonstração; para verificar a demonstração, um instrumento: andamos em círculo. Posto que os sentidos não podem decidir essa disputa, estando eles mesmos plenos de incerteza, é preciso que seja a razão; nenhuma razão se estabelecerá, porém, sem outra razão: eis que recuamos até o infinito… (600-601)23. Como determinar a ocorrência de um segundo “abraço sobrenatural”, condição de compreensão adequada da verdade que apenas o primeiro ato da revelação poderia ter mostrado, se observamos o problema por essas lentes céticas? Não recaímos igualmente no dilema aí exposto? Ou bem precisaríamos de um terceiro “abraço” sobrenatural, como garantia de que o segundo que pretendêssemos alegar fosse verdadeiramente divino e efetivamente garantisse a compreensão da verdade oferecida pelo primeiro, e assim por diante, numa regressão ao infinito. Ou então se tratar de circularidade, pois afirmar que ocorre um segundo “abraço sobrenatural”, necessariamente distinto do primeiro (posto que seria uma garantia de que compreendemos a veracidade deste), é pressupor exatamente o que necessita de prova, isto é, que ocorre alguma determinada ação particular e privilegiada de Deus para com o homem. Afirmar que a verdade já se encontra revelada no texto das Escrituras, como vimos, não resolve o problema, que é o de decidir qual de suas diversas interpretações possíveis representa a verdade. Nossa incapacidade de reconhecê-la é testemunhada pela própria existência do conflito interpretativo (ressalvando-se, é claro, uma intervenção privilegiada de Deus como critério de verdade que fosse capaz de suprimir as causas dessa divergência). 23. Ver HP I, 169. Montaigne emprega aí os tropos da regressão ao infinito e da circularidade, que Sexto atribui a Agripa. 97

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Assim, quando atinamos com os problemas implicitamente instaurados por essa argumentação cética, pomo-nos diante de uma perplexidade culminante, se assim podemos dizer, das demais reviravoltas argumentativas que já observamos nessa tortuosa “Apologia”. Em vez de uma acomodação entre ceticismo e fideísmo, o que observamos é que Montaigne efetivamente parece argumentar, de forma indireta porém sistemática, não apenas contra Sebond, mas também contra as próprias posições teológicas que aparenta assumir (em aparente acordo com os objetores de Sebond que alega refutar). Seria tão inverossímil admitir que isso se faz de modo casual, quanto o seria admitir que ele se opõe despercebidamente às posições desse teólogo. Ainda mais porque esse estranho procedimento parece ser confirmado por esta outra passagem intrigante, que versa, precisamente, sobre os perigos do método ora empregado na defesa de Sebond: [A] … pois este último golpe de esgrima aqui [usado] não deve ser empregado senão como um remédio extremo. É um golpe desesperado, este pelo qual é preciso abandonar as próprias armas para fazer com que vosso adversário perca as dele, e um golpe secreto, do qual é preciso se servir raramente e reservadamente. É uma grande temeridade de perder-vos a vós mesmos para derrotar um outros… (558; itálicos nossos) Não é, portanto, apenas contra os objetores que se argumenta explicitamente, ou contra Sebond, implicitamente, mas o próprio Montaigne é trespassado pela mesma espada cética que emprega. Tratar-seia de um ferimento acidental? A solução proposta pelos calvinistas para garantir a razão individual como critério de interpretação da verdade é, precisamente, a suposição de que Deus elege particularmente alguns fiéis como aqueles cuja persuasão racional acerca da verdade, dentre outras possíveis, é a verdadeira. Tal critério, de inspiração agostiniana, que igualmente pressupõe uma dupla intervenção divina, foi ceticamente criticado, pela circularidade que instaura, nos próprios debates religiosos contemporâneos da “Apologia”24. Seria inverossímil supor, igualmente por razões históricas e filosóficas, que Montaigne não tives24. Ver CURLEY, 1975, p. 11; POPKIN, 1979, p. 10. 98

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se ciência dessa crítica ao calvinismo. Mais fácil, ante tal panorama, é admitir que ele não se vale explicitamente desse mote comum quando alveja os segundos objetores de Sebond — a despeito de mobilizar, como vimos, vasta argumentação cética — porque reservou para ele um fim mais “secreto e raro”, como diz: o de empregá-lo para destruir indiretamente a própria posição “fideísta” que implicitamente parecia ter esposado (levando indiretamente, de roldão, a posição efetivamente fideísta dos primeiros objetores), assim como destrói, de vários modos e segundo graus diversos de explicitação, a posição dos reformistas e os argumentos de Sebond. Teríamos aqui não apenas uma argumentação cética generalizada contra as diversas posições apresentadas, mas também um exemplo prático da argumentação cética em sua dimensão auto-refutatória, tal como o próprio Montaigne a caracterizaria em ensaios mais tardios25. A que viria essa surpreendente e, de certo modo, confessada “autodestruição” cética, no contexto preciso da “Apologia”? Pensamos que ela pode ser compreendida como um expediente para diferenciar indiretamente sua posição (cética) daquela que ele mesmo apresenta como a posição (teológica) dos primeiros objetores criticados. Havíamos visto que o fato de ele alvejar (embora clandestinamente) razões análogas às de Sebond, ao longo da resposta à segunda objeção, mostra que seu juízo sobre seu poder probatório não parece ser tão diverso do juízo que fazem, acerca de sua solidez, esses objetores, que as refutam abertamente. Isso não significa que Montaigne não veja motivos para refutar esses mesmos objetores — em vista da arrogância, por exemplo, com que pretendem ser capazes de conhecer racionalmente a verdade acerca dos assuntos celestes — e para defender Sebond contra essa atitude refutatória, ainda que não seja pela solidez demonstrativa de sua teologia. Mas se, ao responder aos primeiros objetores, ele assume, em aparente concordância com eles, uma tese ambígua — “se tivermos acesso à verdade, isso não se dará por nossos meios humanos” —, que pode tanto ser tomada como uma posição teológica quanto corresponder às suas posi25. Ver, por exemplo, III, 8, 929. 99

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ções céticas sobre o alcance da razão, o que Montaigne estaria destruindo indiretamente, por meio de seu ceticismo, é justamente a possibilidade de interpretarmos sua hipótese, segundo seu próprio texto, como uma adesão a alguma versão da “lei de fé” e como inserção no debate dogmático que ele pretende recusar. Sua estratégia seria, por assim dizer, a de inocular um critério de verdade reconhecidamente precário (o “duplo abraço”, que poderia passar, à primeira vista, como sua posição nesse debate, mas foi proposto, como sabemos, por reformistas que estariam antes alinhados com os objetores a ser refutados) em sua defesa de Sebond, cujas razões seriam igualmente destruídas de modo indireto. Feito o saldo da batalha, nenhum dos contendores, nem Montaigne, poderia ter qualquer das razões propostas aceitas como critério de verdade ante a dúvida cética26. Tenha o sentido que tiver, assim, a fórmula de Montaigne sobre a possibilidade de acesso à verdade, podemos ver que ela não pode se confundir com um testemunho pessoal de adesão a um fideísmo que conduzisse a uma verdade limitadora das conclusões céticas (nem mesmo a compreensibilidade de sua simples hipótese). Levando adiante a mesma metáfora médica, pode-se dizer que se trata, por meio do paradoxo, de vacinar o próprio texto contra a “doença” que, a seu ver, assola a cristandade, degenerando-se em “ateísmo”, isto é, em destruição da ordem institucional político-religiosa vigente, por meio das guerras civis (v. 439). Que doença é essa? Os mesmos textos céticos nos permitem aqui diagnosticá-la como a própria controvérsia sobre o sentido da verdade revelada, resultante da “doença natural do homem” em julgar-se capaz de conhecer a verdade. Segundo Montaigne, como veremos melhor adiante, há um vínculo entre essa pretensão de redefinir os critérios de interpretação da Verdade Revelada — a “caixa de Pandora” aberta, segundo Popkin, pelos reformistas — e tais conseqüências políticas e sociais especialmente indesejáveis. 26. Torna-se assim igualmente compreensível por que Montaigne enfatiza de modo hiperbólico (e mesmo caricatural) a maneira como os filósofos céticos estariam totalmente desincumbidos de defender qualquer tese, nestes termos precisos: “[A] Eles se propiciaram uma maravilhosa vantagem no combate, estando desincumbidos do cuidado de se manter em guarda. Não lhes importa ser atingidos, desde que também atinjam; e valem-se de tudo para suas necessidades…” (504). 100

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Notemos, finalmente, que essa postura argumentativa é coerente com a recusa de um determinado uso da razão, diretamente ligado à pretensão de estabelecer a verdade, mas não conduz a nenhum irracionalismo. Desse uso dogmático, as posições de Sebond, dos reformistas e mesmo a própria posição fideísta seriam apenas versões diferentes, nenhuma das quais capaz de suplantar o diagnóstico dos céticos acerca do desconhecimento humano da verdade. Para nos valermos ainda de outra metáfora pirrônica que o próprio Montaigne emprega, temos aqui um exemplo peculiar da purgação pela qual esses filósofos caracterizam o sentido de sua argumentação, dizendo que suas proposições se expelem juntamente com as proposições dogmáticas a que se contrapõem, assim como os laxantes se expelem com os humores nocivos27. Mas, se algo é tragado por esse paradoxo cético, trata-se da possibilidade de ler Montaigne como um fideísta, identificando-o com a posição dos primeiros objetores, e não, como pensou Tournon, do sentido de sua “Apologia” — que permanece, portanto, potencialmente compreensível como uma verdadeira apologia, ainda que seu sentido seja carente de esclarecimento, uma vez que não pode residir numa defesa da obra em vista de seu poder de demonstrar as verdades da fé por meios puramente humanos e naturais. 2.3. O ceticismo e o valor social da piedade

Examinemos agora se o ceticismo antigo não permite igualmente iluminar o eventual aspecto apologético do texto de Montaigne. Os mesmos textos céticos que viemos examinando parecem oferecer pelo menos duas pistas para a compreensão das motivações e da natureza da defesa de Sebond, que iremos considerar, respectivamente, nos dois próximos itens deste capítulo. De início, é preciso destacar o comentário de Montaigne ao diagnóstico da “doença” reformista, que atribui a Pierre Buñel (embora o endosse pessoalmente), por meio do qual ele nos oferece importantes 27. Ver 527A, em que o próprio Montaigne explica a metáfora pirrônica, tomada de Sexto (HP I, 46), que retomaremos adiante. 101

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elementos para a compreensão da utilidade particular que enxerga na Teologia Natural de Sebond. Tendo presenteado o pai de Montaigne com um exemplar dessa obra, [A] … [Buñel] recomendou-o a ele como livro muito útil e apropriado aos tempos em que lho dava: era quando as novidades de Lutero começavam a ganhar crédito e abalar, em muitos lugares, a nossa antiga crença. Nisso ele teve grande clarividência, prevendo bem, pelo discurso da razão, que esse começo de doença facilmente se agravaria num execrável ateísmo, pois o vulgo é desprovido da faculdade de julgar as coisas por si mesmas, deixando-se levar pelo acaso e pelas aparências: bastou deixar ao seu alcance a ousadia de desprezar e administrar as opiniões que recebera até então em extrema reverência, como são aquelas que tocam sua salvação, e pôr alguns artigos de sua religião em dúvida e na balança, para que tão logo ele facilmente jogasse na mesma incerteza todas as outras partes de sua crença, que não tinham para ele mais autoridade ou fundamento que aquelas que foram abaladas. E ele sacode, como um jugo tirânico, todas as idéias que admitia pela autoridade das leis ou por reverência do antigo costume, [B] Nam cupide concultatur nimis ante metutum; [A] dispondo-se doravante a não admitir nada a que não interpôs seu veredicto e deu particular consentimento (439). Eis aqui um cético que não se furta a admitir que alguns raciocínios podem ser melhores do que outros para avaliar o encadeamento dos eventos históricos. Ainda num outro sentido, porém, tais considerações de Montaigne não são inteiramente originais. Situando-se numa espécie de prólogo do ensaio, elas possuem analogias com o que se encontra no preâmbulo do diálogo Da natureza dos deuses, de Cícero, no qual as argumentações céticas desse ensaio freqüentemente se modelam. Ali, Cícero explica que irá examinar o controvertido problema da providência divina, segundo as diversas posições defendidas pelas filosofias dogmáticas (v. Dnd, I, 1-4). Embora se detenha, ao longo de todo o diálogo, num minucioso exame dos principais discursos filosóficos disponíveis sobre o tema (as teologias dos epicuristas e dos estóicos), à espera de que a verdade possa se impor com evidência, ele antecipa sua concordância com a suspensão do cético acadêmico Car102

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néades ante a questão e afirma crer que tal exposição deixará antes claro para o leitor que se deva constatar a impossibilidade de reconhecer a verdade (Dnd, I, 13-16). Isso não o impede, contudo, de oferecer a seguinte ponderação acerca dos problemas atinentes a esse tema: Mas se, ao contrário, os deuses não possuem nem o poder nem a vontade de nos ajudar, se eles não velam por nós nem se apercebem de nossas ações, se eles não podem exercer nenhuma influência possível na vida dos homens, que fundamento nós temos para prestar qualquer espécie de culto, honra ou prece aos deuses imortais? A piedade, como todas as demais virtudes, não pode existir como mera simulação; sem a piedade, a reverência e a religião necessariamente desaparecem. Estas, quando se vão, deixam a vida em desordem e confusão; com toda a probabilidade, o desaparecimento da piedade para com os deuses irá gerar o desaparecimento da lealdade e da união social entre os homens, bem como da própria justiça, a rainha das virtudes (Dnd, I, 5; itálicos nossos). Essa passagem mostra que, aos olhos de um cético acadêmico, a idéia de uma adesão sincera a valores, religiosos ou não, não deve se opor à suspensão do juízo. Embora admita que tais crenças não correspondem ao conhecimento de verdades, ele pode, ainda assim, reconhecer que são indispensáveis para a manutenção da sociedade e para a boa consecução da vida prática, havendo assim uma razão de ordem pragmática que torna justificada ou mesmo necessária a adoção de tais crenças. A despeito das diferentes interpretações a que pode se prestar esta reflexão, desejamos chamar a atenção para o fato de que, tanto em Cícero como em Montaigne (como também se pode verificar noutros textos de proveniência neo-acadêmica28), o valor da crença na intervenção dos deuses no mundo é diretamente vinculado à regulação das relações sociais entre os homens — mais precisamente, à manutenção da própria sociedade. Há conveniência em preservar a crença na intervenção dos deuses no mundo porque a dúvida acerca desse ponto é potencialmente problemática para a maneira como a religião contribui para a coesão social. Parece-nos igualmente possível, contudo, assina28. Ver PLUTARCO, “Contre Colotes”, in Oeuvres Morales, 598 C-D. 103

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lar uma diferença no modo como essa mesma consideração é desenvolvida nos dois autores, e que, embora discreta, não nos parece desprovida de conseqüências. Cícero se detém numa reflexão de caráter mais geral e conceitual sobre a inconsistência que haveria numa piedade não dissimulada, como nas demais virtudes. Montaigne, de sua parte, focaliza um caso particular: para o vulgo cristão a reverência à autoridade civil é diretamente identificada à crença na autoridade religiosa tradicional. Não é possível, por ora, saber como se generalizaria tal juízo, nem mesmo saber como isso poderia eventualmente justificar uma adesão pessoal a crenças cuja veracidade não pode ser atestada. De todo modo, essa aproximação ajuda a compreender por que, já na “Apologia”, as metáforas militares ganham um papel de destaque para aludir à argumentação cética, que ainda se deixará ver em textos tardios. Por seu intermédio, Montaigne efetivamente alude àquela que, segundo esse texto, seria a motivação central de sua defesa de Sebond e da religião: a Reforma é um “princípio de doença”, não apenas na medida em que traz consigo a presunção dogmática, mas sobretudo na medida em que conduz à destruição da religião — uma vez que é movida pela presunção de abalar as antigas crenças em nome da pretensão de dispor de outras racionalmente mais sólidas — e, por extensão, à desagregação social. Eis, assim, como o ceticismo provê Montaigne de um esquema conceitual para refletir sobre as guerras de religião. Se a presunção dogmática, de um ponto de vista cético, é de modo geral nociva, agrava-se perante a incapacidade de “julgar as coisas por si mesmas” do vulgo, incapaz de discernir a autoridade religiosa da autoridade política. A Reforma torna-se, assim, um objeto de preocupação central nos Ensaios (em contraposição ao problema estrito da capacidade da pura fé de propiciar uma verdade, que apenas é diretamente considerado na “Apologia”), em vista, sobretudo, do modo como a atitude reformista constitui um motor das guerras de religião que, uma vez em marcha, leva além da dimensão propriamente teológica do problema29. Isso nos 29. Isso não significa que os argumentos montaignianos relativos ao problema do conhecimento de Deus, ainda que formulados com base nas religiões antigas e na dos 104

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permite compreender melhor as motivações do assim denominado “conservadorismo” montaigniano (termo que, em vista disso, só caberia empregar num sentido qualificado), pelo qual se exige que a religião seja considerada “em bloco”30. Se, mesmo mediante um exame mais refinado, o vínculo “teórico” entre os elementos que integram o conjunto de crenças constituintes da religião pode se revelar incompreensível, não se tornam essas mesmas dificuldades tanto mais graves quando consideradas do ponto de vista daqueles que são simplesmente incapazes de bem julgar, e aceitam indistintamente a autoridade política e religiosa? Compreende-se por que Montaigne alude freqüentemente ao party católico ou protestante para designar a própria religião, sem dissociá-lo de suas dimensões políticas31. Veremos adiante por que a adesão cética de Montaigne ao catolicismo “em bloco” não equivale — nem poderia equivaler — a uma adesão irrestrita, de sua parte, a toda e qualquer forma de autoridade da religião tradicional. Por ora, importa destacar que suas reflexões se pautam pela consideração, nas questões atinentes aos critérios de ação política, da maneira pela qual os homens empiricamente assentem à autoridade. Trata-se de um aspecto essencial que deve nortear o juízo sobre a utilidade ou risco de questionar as opiniões em voga, bem como sobre o valor dos argumentos disponíveis. Como diz ele, em vista de sua própria experiência: “[A] Eu sei de um homem de autoridade, educado nas letras, que me confessou ter se recuperado dos erros da descrença maometanos, não sejam desprovidos de implicações filosófico-religiosas. Segundo Curley, eles contribuíram, possivelmente, para Descartes abandonar a Teoria das Verdades Eternas, tal como formuladas nas Regulae, em virtude de uma “crise cética” que teria tido lugar por volta de 1628, bem como da necessidade cartesiana de questionamento das “certezas naturais”, tal como formuladas nas Meditações por meio do argumento do gênio maligno. Ver CURLEY, 1978, cap. 2, p. 35 ss., esp. p. 38. 30. Ver I, 27, 181-182A ss. 31. Esse termo, no moyen français, possui um leque semântico amplo e fluido, podendo significar “parte” (de um todo), “partido” (tomada de posição numa disputa, política ou não), “partida” (de um jogo) ou simplesmente “qualidade”. (v. GREIMAS, KEANE, 1992, p. 460). Sobre o vínculo indissociável entre autoridade política e religiosa nas guerras de religião francesas, ver FRIEDRICH, 1968, p. 125-129. Sobre o conservadorismo montaigneano, ver, além da referência anterior, STAROBINSKI, 1993, p. 246; FARQUHAR, 1991, p. 27; CARDOSO, 1996, p. 190; SMITH, 1996. 105

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por intermédio dos argumentos de Sebond…” (448). Se tal é seu poder mesmo em face de um homem letrado, seria o vulgaire, diante de uma obra particularmente popular, menos predisposto à aceitação dos argumentos que Sebond oferece em defesa da religião tradicional?32 Embora nossa referência aqui seja a uma fonte acadêmica, esta parece ser vista por Montaigne, mais uma vez, como harmônica com o pirronismo, no que tange a seu tratamento filosófico da religião. Pirronicamente, a adesão aos costumes como critério para a vida prática pode se articular a um “fideísmo” genérico, que, apresentado de modo distanciado e neutro quando se refere ao cético em terceira pessoa, lhe serve também para uma primeira exposição de sua posição (para ser submetido ao tratamento suspensivo analisado no item anterior). Academicamente, a suspensão, ao se conciliar com a aceitação da autoridade religiosa, permite sublinhar a importância das crenças costumeiras para a organização da vida comum. Esse segundo vetor cético conduz a discussão montaigniana dos problemas político-religiosos a uma diversificação do critério para a apreciação das razões em pauta: não se trata apenas de observá-las do ponto de vista da “verdade” teológica que permitiriam formular (posto que todas as razões em conflito acerca desse ponto se situariam no mesmo nível quanto a seu poder de estabelecêla), mas também segundo sua “utilidade” (v. 512C)33. A crítica à Refor32. Desse ponto de vista, tornam-se relevantes as circunstâncias em que Montaigne apresenta a Teologia de Sebond ao leitor: a obra provém, segundo sua descrição, de um “passado” algo nebuloso, o que favorece sua leitura como uma espécie de quintessência proveniente das versões teológicas mais ortodoxas, oriundas de Santo Tomás (juízo este que o próprio Montaigne apresenta como uma conjectura duvidosa, ainda que fundamentada na autoridade erudita de Turnèbe). Importa-lhe igualmente justificar a defesa de Sebond pelo fato de que sua tradução tenha, segundo ele mesmo, se alçado a certa popularidade (especialmente entre as damas) (v. 440A). Por certo há alguma dimensão retórica nessa menção, como também ocorre no modo como ele associa, por sua credulidade, o vulgo, as crianças e as damas (v. I, 27, 178A). 33. Entre outros textos que poderíamos mencionar aqui, lembremos este comentário, na “Apologia”, sobre a proibição da poesia nas Leis de Platão: “[C] Ele diz abertamente na sua República que, para o proveito dos homens, é por vezes necessário enganálos. É fácil distinguir as seitas que seguiram mais a verdade daquelas que seguiram a utilidade, pelo que ganharam crédito. É a miséria de nossa condição: freqüentemente o que se apresenta à nossa imaginação como mais verdadeiro não se apresenta como 106

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ma e o elogio da religião tradicional não se situam, portanto, apenas no plano de uma avaliação abstrata de sua coerência teológica — ainda que nunca se dissocie inteiramente desse ponto. O party das novidades luteranas não preocupa Montaigne apenas por seu dogmatismo considerado numa dimensão teórica, mas também pela maneira como induz a uma terapia inadequada dos males político-religiosos, tal como o filósofo os diagnostica: [B] Ocorre com ela o mesmo que com as outras medicações fracas e mal empregadas: os humores que ela queria purgar em nós, ela apenas os inflamou, exasperou e agravou pelo conflito, e assim permaneceram no corpo. Ela não soube nos purgar pela sua fraqueza, e no entanto nos enfraqueceu, de modo que não mais a podemos esvaziar, recebendo de sua operação apenas dores prolongadas e intestinas…” (ibid.). Segundo Montaigne, as guerras civis revelam uma espécie de crise da autoridade política no Estado francês, e a saúde da disciplina de um Estado “[B] pressupõe um corpo que se apóia nos seus principais membros e funções, e um consentimento comum à sua observância e obediência…” (I, 23, 122). Por conseguinte, uma terapia que pretenda impor as razões que entende (equivocadamente) ser as melhores, por julgá-las capazes de formular a verdade, sem atinar, ademais, com o modo como as poderão julgar aqueles a quem se dirigem (e, portanto, com suas conseqüências relativas à sustentação da autoridade pública), não haverá de chegar a bom termo. 2.4. Doença racional e terapia cética

Prossigamos examinando a defesa montaigniana de Sebond mediante uma segunda aproximação possível com textos céticos, pela qual pirrônicos e acadêmicos permaneceriam aparentemente solidários aos olhos de Montaigne. Se a “doença” reformista que assola o Estado decorre, segundo ele, da presunção de abalar a solidez das crenças tradicionais em nome das instáveis e conflitantes razões de cada um, não deixemos mais útil para a nossa vida. As seitas mais ousadas, a Epicurista, a Pirrônica e a da Nova Academia são, ainda elas, constrangidas a se dobrar à lei civil, no fim das contas…” (512). 107

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de notar que essa metáfora médica é a mesma pela qual Sexto caracteriza a prática argumentativa pirrônica. Na conclusão das Hipotiposes, ele assim explica como os céticos escolhem argumentos adequados para terapeuticamente se contrapor à arrogância dos filósofos dogmáticos: O cético é um amigo da humanidade [philántropos] que deseja curar pelo discurso [lógos], na medida em que puder, a precipitação [propéteia] e a presunção [oíesis] dos dogmáticos. Assim como os médicos que curam doenças do corpo têm remédios que diferem em força e aplicam os mais fortes aos pacientes mais severamente adoecidos e os mais brandos aos mais brandamente afetados, o cético propõe razões [lógoi] que diferem em força: empregam argumentos pesados, capazes de vigorosamente purgar o mal do dogmático da presunção, contra aqueles que se encontram atingidos por uma forte precipitação, enquanto emprega argumentos mais brandos contra aqueles atingidos por uma presunção mais superficial e de mais fácil cura, dos quais é possível restituir a saúde por meios mais brandos de persuasão. Por isso, aqueles que argumentam ceticamente não hesitam em propor, às vezes, argumentos que são de maior persuasividade e, outras vezes, argumentos que parecem menos persuasivos; eles o fazem deliberadamente, posto que freqüentemente um argumento mais fraco é suficiente para que ele atinja seu propósito (HP III, 280). Já vimos, no capítulo anterior, como Montaigne contrapõe à propéteia dogmática sua impremeditação filosófica. Se os céticos pirrônicos se vêem como philántropoi, por meio de sua prática argumentativa, é no mesmo passo que vêem os dogmáticos como philautói, amantes de si mesmos, apegados a seus pré-julgamentos, cuja veracidade não se sustentaria se pudessem avaliá-los mais cuidadosamente de um ponto de vista racional, com a ajuda dos argumentos suspensivos (v. ibid., I, 90). Esse tema cético encontra-se em circulação durante o Renascimento ao menos a partir de Erasmo, que igualmente critica a philautía dos filósofos (dogmáticos) e dos teólogos reformistas, aludindo diretamente aos filósofos Acadêmicos34. Na “Apologia”, não apenas algumas 34. Para o tema da philautía, ver, por exemplo, Elogio da Loucura, LI, 114-115; prefácio, 4-7. Para a referência aos Acadêmicos, “os menos insolentes dentre os filóso108

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argumentações modelam-se no Elogio da Loucura, mas a própria crítica à “vaidade” dos objetores de Sebond (que se desdobra, como dissemos, numa ampla crítica à vaidade do homem, da science e da razão) parece mirar-se nesse conceito da vaidade dogmática35. Por ora, lembremos apenas que Montaigne caracteriza os céticos como aqueles que argumentam totalmente desprovidos da “vaidade [jalousie] pela sua disciplina” (v. 503A). Essa temática cética parece ser especialmente valorizada por Montaigne. A passagem de Sexto que acabamos de citar confirma, de um ponto de vista diverso, a idéia de que o ceticismo não abole o uso da razão, mas confere-lhe um sentido particular. Embora não julgue ser possível atingir demonstrativamente a verdade, o cético não apenas é capaz de reconhecer que as razões filosóficas têm forças diversas, como as emprega seletivamente, em vista de seu interlocutor. Nesse sentido, poderíamos dizer que a prática filosófica cética se pensa também numa dimensão retórica36. O que compreende Sexto, nessa passagem, como a “força” diversa das razões a que alude, se nenhuma delas pode ser tomada como capaz de oferecer conhecimento verdadeiro? Parece ser preciso compreender essa diversidade não no plano de seu poder demonstrativo em sentido estrito, mas no que tange ao modo como pode ser persuasiva segundo a diversidade dos interlocutores, em virtude de uma estimativa, por parte do cético, acerca do que lhe parece ser o poder persuasivo desses argumentos e a eventual receptividade dos interlocutores a eles37. Porém, ao mesmo tempo, é preciso notar que essa fos”, segundo Erasmo, em virtude de sua exibição da obscuridade e diversidade das coisas humanas, ver ibid., XLV, 94-95. 35. Para uma aproximação mais detalhada entre a Apologia e o Elogio da Loucura, ver EVA, 2003, cap. 3, item 6. Para um exame do modo como Montaigne recupera o ceticismo em sua crítica à vaidade, ver EVA, 1994a; 1994b. 36. “Retórica” se compreende aqui em sentido próximo ao proposto por Perelman, isto é, designando toda a dimensão persuasiva de uma argumentação que não é estritamente redutível a um raciocínio demonstrativo dedutivamente válido. Perelman, contudo, restringe o termo “racional”, diversamente do que pretendemos fazer aqui, àquilo que corresponderia ao uso de argumentos demonstrativos (cf. PERELMAN, 1997, p. 57, 59-61). 37. Como diz Oswaldo Porchat sobre a consciência que o cético possui do poder apenas relativo da argumentação filosófica: “A argumentação dogmática se atribui uma 109

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avaliação diz respeito à capacidade que tais interlocutores teriam de racionalmente avaliar os argumentos propostos, uma vez que a diferença estabelecida entre eles diz unicamente respeito, segundo essa passagem, ao modo como o “mal dogmático” neles se mostra enraizado. O que esse texto assim denomina parece corresponder a um distúrbio de tal ordem que torna certos interlocutores apenas capazes de ser persuadidos por argumentos tais que a maioria das pessoas não tenderia a julgar persuasivos — ou, pelo menos, por argumentos que o próprio cético não julgaria de modo algum persuasivos — graças ao modo irracional como se agarram às teses que admitem como racionalmente irrefutáveis. Seria em vista do fato de que a doença dogmática poderia se converter, em graus diversos, numa doença da própria razão filosófica, por assim dizer, que o cético pretenderia conscientemente se valer de sua argumentação com o propósito de obter o fim desejado (a despeito do juízo acerca da força própria dessas razões segundo a estimativa do próprio cético). Mas, se a suspensão não inviabiliza o emprego de razões consideradas quanto ao seu poder diverso de persuasão, não seria justamente algo dessa ordem a que Montaigne alude quando define o termo “razão”? [A] Eu chamo sempre de razão essa aparência de discurso que cada um forja em si: essa razão, de cuja condição pode haver cem contrários acerca de um mesmo tema, é um instrumento de chumbo e cera, alongável, dobrável e acomodável a todos os vieses e todas as medidas; não nos sobra senão a capacidade de saber torneá-la [sçavoir contourner]… (565). Ademais, num texto bastante posterior à primeira redação da “Apologia”, Montaigne esclarece que ele mesmo empregou nos Ensaios força de persuasão absoluta, o dogmático deveria reconhecer o caráter eminentemente relativo de seus argumentos, que persuadem tão-somente alguns auditórios particulares…” (1993, p. 226). Para uma análise da compatibilidade entre a admissão de que as razões possuem uma “força” persuasiva diversa e a noção de “isosthéneia” (da admissão de uma eqüipolência das razões), ver VOELKE (op. cit.). Segundo esse comentador, o emprego pirrônico do “lógos” corresponde a uma “monstração” relativa ao que lhe aparece, cuja “justificação” poderia ser inteiramente atrelada à sua dimensão propriamente terapêutica (isto é, ao fato de que a opinião é reconhecida como fonte de sofrimento). 110

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argumentos de força diversa, preservando alguns que julga refutáveis apenas por causa de sua “utilidade”: [C] Vede como os autores, mesmo os mais concisos e sábios, semeiam, em torno de um bom argumento, outros mais leves e, para quem observa de perto, desprovidos de consistência. São apenas argúcias verbais, que nos enganam. Mas desde que isso se faça utilmente, não os quero despelar. Há, aqui dentro [nos Ensaios], diversos dessa condição em vários lugares, ou por empréstimo, ou por imitação… (III, 12, 1040). Diante desses elementos, cabe talvez esperar que o ceticismo tenha conduzido Montaigne a um especial cuidado de argumentar segundo aquilo que possa presumir como adequado segundo a diversidade de seus interlocutores, especialmente se eles puderem ser identificados de um modo mais preciso com base em suas crenças particulares. Não se deixaria entrever tal uso da razão, atinente a uma capacidade da ordem do “sçavoir contourner”, segundo a maleabilidade com que ela se pode adaptar a diversos vieses e medidas, no modo como Montaigne avia seus argumentos também para os objetores de Sebond a que trata de responder, segundo a eventual “utilidade” das razões a ser consideradas em cada caso38? É fácil ver como Montaigne adapta seu discurso às razões que ele mesmo alega que os segundos objetores se disporiam a aceitar. Atacando diretamente a vaidade com que estes, confiantes no poder da razão, desafiam a religião tradicional, Montaigne calibra sua refutação pela exigência de que a razão só seja combatida pela própria razão39. Ao 38. REGOSIN (1977, p. 51) reconhece que a argumentação de Montaigne é modelada em vista das demandas do interlocutor, mas, não tendo compreendido a fonte cética desse procedimento, reduziu suas referências ao ceticismo a um efeito meramente retórico. TOURNON (1989, p. 71), além disso, associa esse uso retórico do argumento a uma “farmacopéia” destinada a produzir efeitos particulares segundo os leitores, mas não desenvolve essa metáfora num sentido mais preciso — que permita compreender o procedimento argumentativo de Montaigne referente a Sebond. 39. Ver 448-449ABC. Quanto à arrogância dogmática, Popkin descreve o modo como Calvino e seus seguidores, seguros de que apenas suas opiniões religiosas estavam corretas, condenaram à morte Servet, que propunha sua doutrina antitrinitarista com base num critério muito semelhante ao dos calvinistas, a convicção racional interna. Contra 111

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mesmo tempo, essa consideração instaura no ensaio o espaço argumentativo em que será possível fazer o exame propriamente racional de todos os temas considerados (mostrando a inteira cegueira da razão no reconhecimento de verdades). Mas isso não impede Montaigne, nessa extensa crítica à vaidade que lhes é nominalmente endereçada, de empregar diversas vezes argumentações de natureza dialética40. O orgulho com que se julgam capazes de encontrar razões mais sólidas que as de Sebond, a despeito de serem elas, segundo Montaigne, “tão sólidas e tão firmes quanto quaisquer outras que se lhes queiram opor…” (448A), é o mesmo pelo qual ousam desafiar a religião tradicional com as armas de sua razão. Há, assim, uma clara identificação entre a “doença” dogmática desses objetores (uma espécie de racionalismo imaturo que, por não ir às últimas conseqüências, confia demasiadamente em seu poder) e a “doença” institucional para a qual colaboram, pois a atitude precipitada com que buscam abertamente refutar Sebond revela-se exemplar da mesma atitude geral com que se põem a questionar inconsideradamente os diversos aspectos teológicos da religião. À razão individual conferem o poder de deliberar sobre tal ponto, sem atinar com suas conseqüências politicamente desastrosas (ao menos, na medida em que fomentam a desagregação social e a guerra civil). Como diz Montaigne, mais abertamente, no ensaio sobre os Costumes, acerca da atitude dos reformistas: [B] … parece-me, para dizer francamente, que há grande amor de si e presunção em estimar as suas próprias opiniões a tal ponto que, para estabelecê-las, seja preciso reverter uma paz pública e introdua condenação de Servet, a estratégia de seu defensor reformista Sebastian Castellio foi precisamente procurar criticar a crença calvinista na segurança da verdade de suas posições religiosas (v. POPKIN, 1979, p. 10). 40. Especialmente no percurso que vai de 449 até 501A, em que ele sugere retrospectivamente que, até aquele momento, considerara os argumentos segundo o número dos que os aceitavam, e não segundo o seu peso próprio. Para uma análise detalhada da dimensão dialética dessa argumentação, ver EVA, 2003, cap. 1, e 1994a. Limitemo-nos aqui a notar que Montaigne informa que os argumentos selecionados nessa discussão (sobretudo composta de exemplos provenientes de Plutarco e Plínio) buscam, ao menos em parte, atender ao modo como seus leitores os apreciarão, em virtude de seu caráter aparentemente incomum (v. 467A). 112

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zir tantos males inevitáveis e uma tão horrível corrupção dos costumes que as guerras civis e as mutações do estado aportam, em coisa de tal peso e no seu próprio país… (I, 23, 120).

Eis por que eles oferecem a Montaigne a ocasião de um ataque frontal e direto, que condena, num só golpe, as pretensões gerais da razão em obter uma verdade qualquer e as daqueles que, desconhecendo esse fato, se tornam, mesmo sem ter plena consciência disso, “inimigos da religião” que, por isso, podem ser tratados um pouco mais rudemente: “… eles são mais perigosos e mais maliciosos do que os primeiros…” (448A). Não se trata, contudo, de uma avaliação moral, e sim de uma crítica à terapia a que pretenderiam submeter a religião e as instituições políticas (v. I, 31, 121). Diversamente destes, os primeiros objetores merecem um tratamento mais brando, na medida em que sua objeção é movida por “zelo de piedade”. Não deveria essa duplicidade dos vieses argumentativos, cuja diferença respeita a rudeza ou a suavidade, ser vista como ilustração da natureza cética dessa terapia? Tal diferenciação pode ser igualmente aproximada das preconizações ciceronianas no preâmbulo do De natura Deorum. Em sua defesa da posição suspensiva de Carnéades, que ele julga ser inteiramente compatível com a ratio moral, cabe considerar, diz Cícero, seus adversários dogmáticos segundo a particularidade com que argumentam: “… a hesitação amigável deverá ser respondida pela explicação e os ataques hostis pela refutação” (Dnd, I, 6). É possível que, no caso de Montaigne, a diferenciação das atitudes argumentativas diante dos objetores de Sebond obedeça ainda a outras particularidades. Mas por que deixaria a resposta à primeira objeção de obedecer ao mesmo princípio retórico cético que vale para a segunda? Como vimos, os primeiros objetores tomam parte num debate dogmático sobre o critério de interpretação da verdade revelada ao alegar que apenas a fé, e não a razão, pode fazê-lo (por oposição ao modo como os céticos argumentariam inteiramente desprovidos de vaidade, estando desobrigados da defesa de qualquer posição). Assim, embora Montaigne apenas formule o objetivo de destruir a vaidade ao anunciar a resposta à segunda objeção, esse paralelo nos convida a admitir que, também aqui, por maior que seja seu “zelo de piedade” ou sua “bran113

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dura”, o motor da objeção não é de natureza moral, mas atinente à terapia de uma “vaidade dogmática” que, também aqui, nalguma medida já se faz presente. Em que poderia consistir a “vaidade” dos primeiros objetores? Essa questão nos conduz àquele que talvez seja o laço mais interessante das peripécias dessa apologia, eventual fonte de outras reviravoltas aqui observadas. Analogamente ao que se passa no caso dos segundos objetores, tal “vaidade” haveria aqui de residir naquilo em nome de que tais objetores recusam a obra de Sebond — a saber, suas posições teológicas. Nessa medida, cabe ver que eles necessariamente se apóiam numa “razão” para condenar a empreitada de Sebond, sintetizada na tese segundo a qual apenas a fé, e não a razão, abraça os altos mistérios da religião. A despeito, portanto, da própria opinião que possuem acerca da fraqueza da razão, eles próprios não deixam de oferecer implicitamente razões teológicas contra o projeto de Sebond, passíveis de ser opostas a outras num debate que, como vimos, exemplifica, para Montaigne, uma controvérsia dogmática. Mas, se a situação é essa, a crítica que ele dirige a esses objetores parece ser constrangida, em virtude do conflito entre o conteúdo da tese que eles sustentam e seu significado efetivo no debate em que se inserem, a beirar o paradoxo: trata-se afinal de argumentar ceticamente contra uma razão que afirma, ao menos nos assuntos concernentes aos “altos mistérios”, a total fraqueza da razão. Levando em conta que a atitude refutatória dos primeiros objetores deve ser igualmente compreendida como uma atividade argumentativa, alicerçada nas razões teológicas que a motivam, parece-nos cabível indagar sobre o sentido em que eles próprios deveriam compreender o significado da tese que sustentam acerca do poder da razão. Como vimos, quanto ao seu conteúdo, a tese sustentada pelos objetores parece ser, à primeira vista, idêntica ao que afirma o filósofo cético e o próprio Montaigne. Mas, se nossa sugestão de leitura está correta, essa identidade não pode ser senão aparente: num caso, a “fraqueza da razão” é apenas mais uma das diversas razões humanas que demandam, a despeito de seu conteúdo, uma objeção cética, na medida em que veiculam uma posição dogmática; noutro caso, ela é a descrição da atividade argumentativa destinada a examinar como cada razão que 114

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pretende sustentar alguma verdade pode se mostrar insatisfatória. Assim, na mesma medida em que o cético tem uma compreensão diversa acerca da racionalidade de sua postura, por oposição à do filósofo dogmático, por sob uma mesma alegação da “fraqueza da razão” ocultamse duas concepções diversas do que seja a própria razão e sua fraqueza. Isso parece confirmar-se quando observamos o sentido geral da resposta de Montaigne aos primeiros objetores. Em linhas gerais, ela consiste em alegar que, a despeito da postura teológica que adotam (e com a qual ele exprime, num primeiro momento, uma ambígua concordância), é preciso especial cuidado quando se pretende transformá-la num crivo para o julgamento de Sebond. A despeito, assim, de louvar a humildade desses primeiros objetores na avaliação dos poderes da razão, ele insiste na possibilidade de haver outros meios pelos quais cabe aos instrumentos humanos socorrer a religião, sem perder de vista seu alcance próprio: [A] “É preciso … acompanhar nossa fé com toda a razão que está em nós, mas sempre com essa reserva, de não estimar que seja de nós que ela depende…” (441). É preciso considerar, sugere ele, a despeito do posicionamento teológico adotado, que razões como as de Sebond podem, ainda que seja a razão inteiramente cega, ter valor para a defesa da religião. O próprio Montaigne oferece implicitamente uma dupla valoração dessas razões, dirigindo-se a esses objetores. Primeiramente, um valor claramente retórico, evidenciado pelo modo como homens instruídos nelas reencontraram o caminho da Igreja Católica tradicional (como vimos, Montaigne menciona o exemplo de um homem letrado que se persuadiu com tais argumentos). Em segundo lugar, um valor derivado do modo como, indo tão longe quanto a razão humana pode alcançar, tais razões se tornam “firmes e sólidas” ao ser “ilustradas e tingidas” pela fé — ainda que, em poucas páginas, a partir de 448A, não apenas passem a ser tratadas como “fantasias puramente humanas”, mas também sejam indiretamente refutadas pelo próprio Montaigne. Essa alegação de uma fé solidificadora, como já vimos, não pode ter o efeito, para Montaigne, de transformá-las propriamente em verdades. Qual é, então, o sentido dessa alegação da intervenção da fé (tanto mais estranha na medida em que corresponde a uma proposição de natureza teológica, que destoa claramente das 115

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demais restrições céticas que Montaigne aplica ao alcance de seu discurso, no que tange à avaliação das coisas divinas)? O efeito mais claro que ela agora parece possuir, bem considerados os elementos aqui dispostos, é o de voltar contra os primeiros objetores o próprio critério de aceitação de verdades em nome do qual pretenderiam refutar Sebond. Isso porque o critério teológico admitido por esses objetores é, justamente, a pura fé, independente da razão, como meio de aceder à verdade revelada. Mas esse critério assim formulado — e, como vimos, Montaigne parece ter plena consciência desse ponto, recorrente nas discussões céticas do Renascimento — reinstaura o problema cético. Qual é o critério, afinal, para alegar a presença da verdadeira fé? Basta alegar que as razões de Sebond são iluminadas pela fé para que esse mesmo critério sirva, em princípio, para a validação da obra de Sebond e todo o seu otimismo racionalista. Noutras palavras, essa alegação mostra implicitamente que, pelo mesmo critério, se pode “demonstrar” quase qualquer coisa, e particularmente o contrário do que eles pretenderiam. É justamente a precariedade desse critério, uma vez entendido como critério teológico, que explica por que, finalmente, esses objetores menos maliciosos podem ser respondidos em poucas páginas, enquanto a resposta aos segundos objetores suscitará um longo exame da science e da razão. Mas Montaigne certamente não pretende incorrer no mesmo erro que enxerga na posição desses objetores, que se valem de sua tese como razão para objetar a Sebond, especialmente se o que está em causa é o virtual agravamento da diaphonía interpretativa das verdades da fé, que ganha corpo na forma de uma crise institucional. Assim como ele não refuta abertamente as razões de Sebond (embora concorde com o juízo dos objetores, de modo geral, acerca de sua fraqueza demonstrativa), não procederá diversamente com os primeiros objetores, se não por outro motivo, decerto por uma análoga preocupação com a “utilidade” das razões em jogo. Diríamos, em suma, que sua resposta contém a delicadeza de ser apenas perceptível, em seu teor lógico, àqueles entre os primeiros objetores que são detentores de suficiente “malícia” no uso da razão para perceber, por si mesmos, a fraqueza da objeção que pretendem avançar. Mas o cristão empírico não se confunde com 116

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o filósofo ideal, e certamente Montaigne não se imagina detentor do poder de transformar, por meio da simples resposta que lhes dirige, a ingenuidade argumentativa desses objetores (e dos leitores que eles eventualmente representam) numa compreensão da falibilidade da razão compatível com a que foi desenvolvida pelos filósofos que mais amplamente estenderam, a seu ver, a investigação sobre o alcance das faculdades humanas de conhecimento. Essa não é, contudo, uma razão para que Montaigne abdique de sua perspectiva terapêutica cética. Ela é apenas adaptada aos pressupostos desses objetores nos quais convém se apoiar. Torna-se igualmente compreensível a relevância, para Montaigne, de apresentar inicialmente sua concordância “potencial” com a tese teológica “fideísta” desses primeiros objetores, para depois conduzi-los, com base em seus pressupostos, a aceitar a “utilidade” das razões de Sebond, com a qual não atinam, em vista do modo como se aferram à própria posição. Assim, o emprego da mesma terapêutica argumentativa cética deve agora, posto que são objetores movidos por um “zelo de piedade”, partir da admissão da superioridade da fé cristã, como instância capaz de revelar a verdade e, nessa medida, distinta das crenças meramente humanas. Que conseqüências extrai Montaigne desse pressuposto? Afora o que vimos sobre seu tratamento implícito da “possibilidade” fideísta ao longo da resposta à segunda objeção, notemos que aqui se opera uma nova manobra argumentativa, pela qual a aparente superioridade conferida por esse pressuposto é convertida num problema: a situação real da cristandade (que, como vimos, antes testemunharia, segundo o mesmo pressuposto, da ausência da verdadeira fé) acaba por se revelar uma desvantagem e uma vergonha em face das seitas pagãs ou dos maometanos, que aderem a suas crenças meramente humanas de modo mais efetivo do que aqueles que supostamente possuem a fé verdadeira (v. 442A), encaminhando Montaigne a este diagnóstico da situação atual da cristandade, ao qual já aludimos: “[B] Nós somos Cristãos pelo mesmo título com que somos Perigordianos ou Alemães…” (445). Notemos que, curiosamente, essa única formulação também pode ser observada de dois modos diversos, em vista dos pressupostos de quem a lê, e que nos parecem ambos esclarecedores: ou bem como a cons117

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tatação pelo autor da relatividade das crenças religiosas diversas (que apenas poderia ser revogada por uma possibilidade estritamente inconcebível, tal como deixará clara a resposta à segunda objeção, que marca sobretudo a relatividade dessa apreensão do phainómenon cultural); ou bem, à luz dos pressupostos dos objetores particulares a que essa resposta se dirige, como a descrição de uma situação cuja precariedade haveria de ser tanto mais angustiante quanto mais tais objetores se aferrassem a uma compreensão estrita de seu critério teológico e deixassem exclusivamente ao encargo de uma fé sobrenatural o poder de transformar esse panorama. Mas o que fazer se a cristandade, de modo geral, desconhecendo os sinais dessa pura fé, deixa-se, em vez disso, abalar “à mercê de um novo argumento e pela persuasão…” (441A)? Não será o caso de reconhecer, nesse estado de coisas, algum mérito, mesmo que provisório, dos recursos persuasivos à disposição para, do ponto de vista da crença exclusivamente humana, reconduzir os cristãos à religião tradicional? [A] A fé, vindo tingir e ilustrar os argumentos de Sebond, torna-os firmes e sólidos: eles são capazes de servir de encaminhamento e primeiro guia a um aprendiz para pô-lo na via desse conhecimento; eles o conformam de algum modo e o tornam capaz da graça de Deus, por meio da qual ele se forma e se aperfeiçoa segundo a nossa crença… (447; itálicos nossos). Diante disso, talvez tais cristãos piedosos possam reconhecer que os argumentos de Sebond sejam aceitáveis segundo o poder sobre a simples crença humana, se também lhes for aceitável que, em conformidade com outro pressuposto teológico agostiniano igualmente em voga, a admissão voluntária do cristão à religião é um primeiro passo da conversão que favorece a possibilidade de sua consumação posterior, pela intervenção da Graça em sentido especial. É importante sublinhar, todavia, que tanto a admissão do poder dos argumentos de Sebond como a admissão do poder da fé em aperfeiçoar esse primeiro engajamento na religião são enfeixadas na argumentação apenas “segundo a nossa crença”, isto é, segundo os pressupostos do objetor cristão, que o próprio Montaigne descreve empregando a terminologia que ele mesmo reservou para o vínculo puramente humano com a 118

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religião: trata-se de crença puramente humana, e não de fé, no sentido preciso que essa oposição vai ganhar segundo os mesmos pressupostos e os termos de sua hipótese fideísta. Se assim não fosse, nem mesmo a diatribe montaigniana, conclamando os objetores a empregar os “meios humanos” a nosso serviço, poderia fazer sentido, uma vez que vigora um acordo entre Montaigne e os objetores a que se dirige sobre o fato de que o abraço da pura fé dependeria estritamente de uma deliberação divina, imponderável ao homem. Qual é, portanto, o valor das razões de Sebond? Como diz ele aos segundos objetores, elas são “tão sólidas e tão firmes” quanto quaisquer outras que se lhes possam opor: não apenas são tão incapazes de sustentar demonstrativamente qualquer verdade (como quaisquer outras razões que versem especulativamente sobre o mesmo assunto), como podem ser virtualmente tão persuasivas quanto outras da mesma espécie. Seu valor é, além disso, exemplar: elas permitem a Montaigne explicitar o sentido de sua desconfiança cética ante os poderes demonstrativos da razão e, igualmente, segundo o que ele mesmo afirma, mostrar como se pode “tornear” [contourner] a razão respeitando sua maleabilidade própria e tendo em vista as exigências circunstancialmente impostas, relativas à ordem da “utilidade”. Se não convém “despelar” abertamente argumentos inválidos embora úteis, especialmente quando está em jogo a paz pública41, isso parece se reportar, em última instância, àquilo que Montaigne vai denominar o “fundamento místico” das leis: a vida em sociedade se rege por uma diversidade de “pressupostos” aceitos por força do costume e, a rigor, racionalmente injustificados (ao menos, não demonstrados como verdades absolutas) num grau muito maior do que os homens estão comumente dispostos a reconhecer, como veremos em seguida. Por fim, o tratamento que Montaigne dá a Sebond é revelador de um sentido peculiar em que a Apologia se torna uma ilustração do lema cético segundo o qual é sempre possível argumentar pelos dois lados — contra Sebond, em vista do valor demonstrativo de suas razões, mas pró-Sebond, em vista do valor retórico de suas razões e do 41. Cf., por exemplo, 511-512A. 119

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contexto mais amplo em que elas são publicamente refutadas. Pode parecer estranho que esse filósofo cético faça a Apologia de um autor que sustenta teses evidentemente dogmáticas e incompatíveis com uma postura cética. Mas, para além da adoção doutrinal às fórmulas céticas sobre nossa incapacidade de reconhecer a verdade, o ceticismo parece converter-se aqui numa condição privilegiada de observação da experiência concreta segundo a qual os homens empregam sua razão. Ele faz de seu ceticismo, a um só tempo, uma postura argumentativa antidogmática e suspensiva, mas também um instrumento para examinar criticamente o cotidiano da França em guerra. Embora deixe indiretamente claro qual é seu juízo sobre a efetiva solidez demonstrativa de todas as razões consideradas nesse debate, ele também compreende que incorreria na mesma presunção irrefletida que sua filosofia condena se supusesse que basta expor claramente todos os aspectos de seus juízos para mostrar a seus interlocutores que, bem compreendida, a suspensão cética deveria nos conduzir a uma forma não-dogmática de religiosidade. A reflexão cética, portanto, não apenas exibe a precariedade dos possíveis critérios de verdade alegados, mas se volta para o modo como os diversos interlocutores considerados são capazes de empregar a razão. O cético é aquele que, ao argumentar, pretende medir o alcance de suas razões em vista da situação e não admite, sem mais, que seus argumentos sejam dotados de um poder mágico de produzir no vulgo ou nos objetores diversos de Sebond a compreensão imediata de todas conseqüências que o próprio filósofo entende decorrerem de sua reflexão cética. Por oposição ao modo como os dogmáticos argumentam sob o encantamento da verdade que pretendem possuir, o cético pretende ser aquele que considera mais judiciosamente os limites da razão mediante seu exercício prático. 2.5. Um problema vexatório

Não precisaremos nos estender sobre as interpretações que usam a resposta da primeira objeção para sustentar que Montaigne é efetivamente um autor fideísta. Mas o que decorreria dessa análise, de modo mais geral, relativamente ao vexatório problema, como diz Popkin, das 120

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intenções propriamente religiosas desse autor? Talvez, para além daquilo que Guiton havia muito já concluíra — que estamos diante de um debate fadado a jamais terminar42 — possamos dizer que isso ocorre porque tal debate se pauta por uma questão insolúvel em vista dos elementos oferecidos pelo texto montaigniano. Naturalmente, é a questão que espontaneamente a curiosidade de seus leitores insiste em repropor, ainda que, assim formulada, o autor pareça recusar-se a respondê-la com a devida clareza, antes denunciando e ironizando a tendência pela qual “[C] acomoda-se de bom grado o sentido dos escritos de outrem em favor das opiniões que se tem preconcebidas por si…” (448)43. Importa contudo distinguir a questão sobre sua religiosidade pessoal daquela de saber se seu ceticismo o conduz ou não a uma defesa autêntica da religião. Quanto a esse segundo ponto, uma vez qualificados seu sentido e sua motivação, não deve haver dúvida de que há efetivamente uma defesa da religião, tal como aceita tradicional e popularmente, mesmo que seu valor seja relativo e contingente. Mas as causas dessa defesa não parecem ter nenhuma relação identificável com motivações estritamente dependentes da sua religiosidade pessoal, e o próprio sentido das críticas à vaidade aponta na direção oposta, da necessidade de compreender que uma coisa deve ser desvinculada de outra quando estão em jogo os problemas que são centrais aqui para Montaigne. Certamente seu juízo sobre a religião que defende não corresponde àquela que seria sua religiosidade (que, repitamos, tampouco há de se traduzir necessariamente numa forma de fideísmo, com base na passagem que o define na “Apologia”). Não nos parece, quanto a esse segundo problema, que seu texto ofereça qualquer elemento decisivo. As diversas tentativas de encontrar projetadas em seu texto formas especificamente 42. Ver GUITON, 1944. 43. Embora Montaigne aplique diretamente essa afirmação aos “ateístas”, que “infectam de seu próprio veneno a matéria inocente“ (ibid.), não há por que supor que tal crítica se restrinja a eles. Não consideraria ele que os primeiros objetores fariam o mesmo com as razões de Sebond? Essa passagem talvez deva ser lida como uma ironia antecipada para com os leitores que pretenderão encontrar nos expedientes tortuosos dos Ensaios seja uma opinião anti-religiosa, seja uma manifestação autêntica de fé pessoal. 121

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religiosas de cristianismo nos parecem sempre dar um passo interpretativo, maior ou menor, além do que o texto rigorosamente permite44. O recurso às fontes talvez ajude aqui, mais uma vez, a situar a impertinência dessa questão, pois tais comentadores parecem assumir diante do texto de Montaigne a atitude que Cícero desaconselha aos leitores de um autor cético (em especial, aos que busca desvelar seu juízo pessoal sobre a providência divina) — numa passagem, aliás, citada por Montaigne em sua irônica discussão das filosofias dogmáticas: Aqueles que desejam saber o que nós pensamos pessoalmente sobre cada matéria levam longe demais sua curiosidade. Esse princípio filosófico de discutir sobre tudo sem nada decidir, estabelecido por Sócrates, retomado por Arcesilau, fortalecido por Carnéades, floresce ainda em nossa época. Nós somos da escola que diz que o falso está em toda parte mesclado ao verdadeiro e tanto se assemelha a ele que nenhum critério permite julgar e discernir com certeza…45. Enquanto Cícero se faz representar no diálogo por um porta-voz cético (Cotta), Montaigne, por sua vez, emprega essa passagem para explicar como os dogmáticos, escondendo suas supostas opiniões pirrô44. E isso mesmo no caso de intérpretes cuidadosos como Hugo FRIEDRICH: embora ele nos ofereça uma análise da relação de Montaigne com a religião, a nosso ver, bastante adequada, em seu sentido mais geral, ele identifica a religiosidade pessoal de Montaigne a uma “vaga forma de piedade filosófica”, sem objeto preciso (por vezes Deus, por vezes la Nature), como uma modalidade religiosa compatível com o ceticismo filosófico em sua versão pirrônica (1968; cf. p. 118-125). Na “Apologia”, Montaigne apresenta como a mais verossimilhante opinião dos antigos sobre a religião aquela que concebe Deus “ [A] como uma potência incompreensível, geradora e conservadora de todas as coisas, toda bondade, toda perfeição, recebendo e tomando em boa parte a honra e a referência que os humanos lhe rendem sob qualquer face, sob qualquer nome e matéria que possa ter…” (513). Nada nos autoriza, porém, a tomar essa opinião — que será, posteriormente, considerada ímpia por A. de Laval (1623) e Boucher (1628); cf. Essais, p. 1163 — como representante da crença pessoal do autor, pelo simples fato de que ele declara, como vimos, sua adesão em bloco ao party catholique, segundo toda a sua tradição. Em seu comentário a Des Prières, em que encontramos declarações de Montaigne sobre suas rezas, Villey entende exprimir-se aí uma forma de religiosidade segundo a concepção de Pirro, conciliando crítica da razão e adesão à tradição, de um modo que o alinha imediatamente aos católicos, ainda que em conformidade a certas tendências “agnósticas” que foram provisoriamente aceitas em Roma (Les Essais, p. 317). 45. CÍCERO, Dnd, I, v, citado por Montaigne em 507C. 122

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nicas sob a obscuridade com que se exprimem, podem eventualmente se valer de formulações mais assertivas, devido à utilidade que certos dogmas possuem para a manutenção da ordem pública46. Seria possível, porém, acomodar uma postura estritamente católica aos elementos céticos que constituem a visão pessoal de Montaigne, tendo em vista o fato de que ele neutraliza aquela que pareceria, como vimos, ser a via teológica que oferecera em seu nome para uma eventual compreensão dessa acomodação? Salvo engano, não nos parece possível encontrar, nos textos de Montaigne, uma resposta para essa questão que não seja, em última análise, simples especulação. Tudo o que podemos dizer é que, seja qual for a forma pela qual se daria essa eventual acomodação, não estaríamos diante de um problema substancialmente diverso daquele que se poria quanto à religiosidade do cético antigo, no que tange à aceitação pirrônica, não-dogmática, da existência dos deuses e de sua ação providencial no mundo47; ou à aceitação, por parte do filósofo acadêmico, da autoridade dos demais pontífices religiosos, em contraposição aos estóicos e epicuristas48. Mesmo que a religião cristã, diversamente da religião grega, pareça exigir do fiel uma espécie de engajamento dogmático e interior (além de uma adesão centrada no culto que talvez lhe 46. Ver 511-512. 47. Em HP III, 2 ss., Sexto Empírico investiga ceticamente as concepções dogmáticas acerca de Deus como causa eficiente, ressalvando inicialmente: “… seguindo a vida comum sem sustentar opiniões, afirmamos que os Deuses existem, reverenciamos os Deuses e dizemos que eles são providentes, muito embora, contra a presunção dos dogmáticos, argumentemos como se segue…”. Acerca desse tema ver, por exemplo, BARNES, 1982, p. 14-15. 48. Cotta afirma, introduzindo sua réplica a Balbo, interlocutor estóico do De natura Deorum: “… Antes que nós tratemos do que está em questão, falarei um pouco de mim. Sou consideravelmente influenciado por sua autoridade, Balbo, e, pela conclusão do seu discurso, você exortou-me a lembrar que sou tanto um Cotta e um pontífice. Isso significa, sem dúvida, que devo sustentar as crenças sobre os deuses imortais que provêm de nossos ancestrais, bem como os ritos, cerimônias e deveres da religião. Da minha parte, sempre o farei e sempre o fiz, e nenhuma eloqüência, seja do douto ou do inculto, irá me dissuadir da crença ou do culto dos deuses imortais que herdamos de nossos predecessores. Mas, quando se trata de religião, sou guiado pelos altos pontífices, Titus Coruncanius, Publius Scipio e Publius Scaevola, e não por Zenão, Cleantes ou 123

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facultasse abdicar desse aspecto), não há, salvo engano, quaisquer elementos no texto de Montaigne que possam ser arrolados como decisivos acerca de sua compreensão pessoal sobre a distância que haveria entre a adesão ao culto e a dimensão interior da religião: tudo se passa como se estivéssemos diante de uma questão privada que o autor se recusa a responder abertamente49. Por mais que os Ensaios se convertam num auto-retrato, como veremos adiante, Montaigne não parece considerar que a questão sobre sua religiosidade, mesmo que inevitável, possa vir à tona sem comprometer o aspecto da religião que, por razões de ordem pública, lhe interessa enfatizar. Destaquemos, finalmente, que o fato de Montaigne filosofar num ambiente cristão e fideísta não basta para que encontremos uma diferença filosófica relevante na posição de Montaigne relativamente ao ceticismo antigo, por força de sua situação histórica. Em vez de o ceticismo ser submetido a uma transformação conceitual, é a religião que invariavelmente recebe, em seu texto, um tratamento cético segundo as exigências conceituais e argumentativas dessa filosofia, tal como por ele retomada, seja quanto à recusa dos poderes da razão em encontrar Crisipo, e por Gaius Laelius, que é tanto áugure quanto é filósofo, cujo famoso discurso sobre a religião prefiro ouvir do que a qualquer líder dos estóicos…” (Dnd, III, ii, 5). O final dessa passagem é citado por Montaigne em I, 23, 121C, e acompanhado pelo elogio “Cotta protesta bem oportunamente”: naquele contexto preciso, trata-se igualmente de defender a religião tradicional para se contrapor à desordem política causada pela Reforma. 49. Há, com efeito, passagens bastante comentadas em que Montaigne oferece descrições substanciais de uma prática religiosa, como suas narrativas sobre as missas assistidas na Itália, em seu Journal de Voyage, ou suas descrições sobre suas práticas de oração, em “Das rezas” (I, 56; v. esp. 319-320A). Mas elas versam sobre uma adesão ritualística: nada aí desmente a natureza cética na adesão; nada se esclarece sobre a natureza da crença “interior” de Montaigne. Ainda que se referindo a um autor antigo, e num contexto não-religioso, os termos com que Montaigne o apresenta parecem mostrar que, a seu ver, são coisas em princípio distintas a adoção de condutas e opiniões piedosas: “[C] E Epicuro, do qual os dogmas são irreligiosos e delicados, porta-se em sua vida de modo mui devoto e laborioso…” (II, 11, 428). Tal acréscimo comenta, por sua vez, uma passagem auto-retratista anterior: “[B] … Direi uma monstruosidade, mas direi assim mesmo: encontro … em muitas ocasiões, muito mais de decisão e regra em meus costumes [moeurs] do que em minha opinião, e minha concupiscência mais licenciosa que minha razão…” (ibid.). 124

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a verdade, seja quanto ao reconhecimento de seu poder em defesa dos costumes religiosos. Não nos parece, assim, possível admitir que haja alguma transformação conceitual no ceticismo de Montaigne meramente em virtude de o conceito de crença ter supostamente adquirido, ao longo dos séculos medievais, um “valor epistemológico” diverso do que possuía entre os antigos50. Não nos parece seguro que isso tenha de fato ocorrido, nem que se possa alegá-lo sem submeter o texto a pressupostos que lhe são estranhos. O próprio Montaigne, de todo modo, ao recusar a identificação imediata das “crenças meramente humanas” com a fé — crenças às quais se vinculam os pagãos e maometanos mais intensamente que os cristãos —, nos desautoriza a compreendê-las com base em um referencial filosófico exclusivamente cristão. Em vez disso, suas considerações sobre o “poder” dos argumentos de Sebond (no sentido examinado) convidam antes a admitir que a crença, sobre a qual tais argumentos agiriam, não seria essencialmente diversa daquela que estaria implicitamente contemplada em suas reflexões sobre a maneira cética de propor argumentos. Ademais, o modo como Montaigne distingue crença de fé nos impede de conferir ao primeiro conceito, sem mais, qualquer determinante religioso capaz de explicar a especificidade de sua filosofia (que seria, tanto mais, desconhecida pelo próprio filósofo que a propõe). Seria igualmente um abuso supor que o mero uso dos termos que trazem a particularidade histórica ou religiosa para a filosofia — fé, crença, milagre ou vaidade — revelaria a impossibilidade de permanecermos no registro conceitual próprio do ceticismo antigo, se Montaigne emprega, como elemento de sua estratégia, o mesmo argumento preciso com que os céticos antigos neutralizam o poder da linguagem para caracterizar seu texto51. 50. Como propõe BRAHAMI, 1996; ver p. 29 ss., 36, 55, 71. 51. Afora o que já vimos no capítulo I, é importante observar que a terminologia religiosa é geralmente empregada por Montaigne de modo bastante fluido e em contextos inteiramente laicos. O termo “miracle”, por exemplo, sofre uma “naturalização”, na medida em que tem seu significado atrelado ao modo como as coisas nos surgem em vista de nos referirmos ao natural de forma sempre relativa (cf. III, 13, 1081B; II, 37, 763A e, especialmente, 526AC). 125

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Seja, porém, qual for a resposta a dar sobre a questão da religiosidade pessoal de Montaigne, seus Ensaios são deliberadamente situados num registro estritamente humano e relativo, sem que neles interfira qualquer alegação de uma verdade capaz de limitar uma perspectiva genuinamente cética. É particularmente relevante aqui esta advertência com que Montaigne inicia o capítulo no qual narra sua adesão ao cristianismo, esclarecendo o bastante acerca não apenas do estatuto geral das considerações presentes nos Ensaios, mas também do teor filosófico dessa adesão: [A] Eu proponho considerações [fantasies] disformes e irresolutas, como fazem aqueles que publicam questões duvidosas, para debater nas escolas: não para estabelecer a verdade, mas para procurá-la… [C] … Eu as proponho [como] considerações humanas e minhas, simplesmente como humanas considerações, não como decididas e regradas pelas ordenações celestes, isentas de dúvidas e altercações: matéria de opinião, não matéria de fé, o que eu discorro [discours] segundo eu mesmo, não o que creio segundo Deus, [mas o faço] assim como as crianças fazem suas lições [essais]: instruíveis, não instrutoras, de matéria leiga, não clerical, mas sempre mui-religiosa… (I, 56, 317, 323; itálicos nossos). Se a distância que Montaigne vê entre seu filosofar dubitativo e aquele praticado pelos céticos cabe na distância entre o philosopher dos mestres e o fantastiquer do aprendiz, vemos que todas as suas fantasias são por ele expressamente inscritas num registro puramente humano, inteiramente dissociadas de quaisquer “ordenações celestes”. E constatamos, no mesmo passo, que a resposta da investigação em que nos engajamos neste capítulo é puramente negativa. Seja qual for a explicação a dar acerca da originalidade filosófica de Montaigne, não podemos dizer que ela deriva de um engajamento de natureza religiosa numa forma de crer incompatível ou diversa do que preconizam os textos céticos antigos que ele tem em vista (a menos que cometamos o contra-senso de atribuir ao filósofo uma crença derivada de uma análise filosófica externa e incompatível com o que ele próprio diz acerca do significado de suas crenças), nem mesmo da adoção pessoal de um fideísmo filosófico ou religioso. 126

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CAPÍTULO III

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Vimos, no capítulo anterior, que a defesa cética da religião tradicional empreendida por Montaigne envolve o uso de uma perigosa estratégia pela qual é preciso, ao atacar os objetores de Sebond, trespassar-se também a si mesmo — neutralizando o dogmatismo com que ele provisoriamente se compromete. Tal estratégia desvela igualmente as justificativas mais urgentes da “Apologia” de Sebond e da religião tradicional, decorrentes da desagregação do Estado em meio às guerras de religião. Por oposição à terapia política dos reformistas, que apenas agrava os males, trata-se de proceder a uma terapia cética, que compreende tanto o engajamento explícito em uma argumentação destruidora de índole cética, contra o orgulho desenfreado daqueles que se contrapõem à autoridade religiosa estabelecida sem medir as conseqüências dessa atitude, como um uso mais reservado e indireto da mesma argumentação nos casos em que as condições particulares dos crentes tornariam imprópria e temerária uma denúncia de seu dogmatismo. Pois o vulgo, como diz Montaigne, é incapaz de julgar as coisas, confundindo a autoridade civil e a autoridade religiosa. Tra127

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ta-se, assim, de uma argumentação forjada segundo a medida da crença contingente e costumeira dos homens (pela qual indiretamente se evidencia a necessidade de considerar tal dimensão contingente das crenças quando se trata não apenas de conhecer a verdade, mas sobretudo de agir). Se esse ceticismo pode parecer paradoxal, na medida em que conduz a uma espécie de defesa de uma forma de crença assumidamente dogmática, vimos, ainda, que tal defesa, bem compreendida, não corresponde, em absoluto, a uma tomada de posição dogmática por parte de Montaigne. Porém, essa hipótese não deixa de suscitar algumas indagações acerca da natureza desse ceticismo. Se a defesa da religião não parece impor nenhuma limitação conceitual ao ceticismo de Montaigne pelas razões observadas, caberia indagar até que ponto poderia ela ser efetivamente compreendida segundo o que os antigos céticos preconizaram como critério para a condução na vida prática. A explicação sucinta de Sexto acerca da adesão cética ao phainómenon, em vista da qual o cético não permanece inativo em sua vida, nas suas Hipotiposes, pode por certo dar lugar a questões sobre o estatuto nãodogmático com que leis e costumes (mesmo os religiosos) são adotados. Montaigne, como vimos, interpreta tal adesão como algo que conduz tal filósofo não apenas a se portar da “maneira comum”, mas também a agir plenamente como um homem vivo, que frui de todas as suas faculdades intelectuais e corporais. Porém, ao mesmo tempo, há outras passagens de Montaigne que parecem sugerir que o ceticismo conduziria a um modo específico de adesão às formas de agir do homem comum, diverso daquele pelo qual esse mesmo homem comum se deixaria levar por suas próprias crenças: Essas considerações [sobre o poder do costume] não desviam, entretanto, um homem de entendimento de seguir o estilo comum; antes, pelo contrário, parece-me que todas as maneiras [façons] dele afastadas e particulares antes partem de loucura ou de afetação ambiciosa que de verdadeira razão; e que o sábio deve interiormente retirar sua alma da massa, e mantê-la em liberdade e poder de julgar livremente as coisas; mas, quanto ao exterior, que ele deve seguir inteiramente as maneiras e formas recebidas… (I, 23, 118; itálicos nossos). 128

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Esta passagem parece evocar o critério cético para a ação. Refletindo sobre a multiplicidade contraditória dos costumes, o cético suspende seu juízo e adere não-dogmaticamente aos costumes. Não é disso que se trata quando Montaigne alega, após uma longa enumeração da diversidade dos costumes, como a que precede a esse texto, que o sábio, em face de sua relatividade, deve adotar “inteiramente as maneiras e formas recebidas”, ainda que de um modo puramente “exterior”? Mas o que significa essa integralidade dos costumes se ela é apenas externa? Se esse texto, assim, corresponde a uma instanciação do critério cético, tal como Montaigne o compreendeu, torna-se importante saber o que significa exatamente essa oposição entre “interioridade” e “exterioridade” para avançar na compreensão desse ceticismo. Entretanto, se tal critério conduz a uma forma de admissão de crenças dogmáticas, pode ser ele efetivamente visto como compatível com a epokhé pela qual os céticos, segundo Sexto, crêem “cessar plenamente de dogmatizar” (HP I, 12)? Para enfrentar essas questões, procederemos a uma análise da noção montaigniana de costume, orientando-nos sobretudo pelo ensaio “Do costume e de não mudar à toa uma lei em vigor” (I, 23), ao qual pertence a passagem citada. Num primeiro momento (3.1), analisaremos as reflexões epistemológicas sobre o poder do costume, que correspondem à primeira parte do ensaio e se orientam em boa medida pelo Décimo Tropo de Enesidemo. Procuraremos mostrar como o papel atribuído ao costume na reflexão de Montaigne — uma instância dogmatizante que nos oculta os próprios critérios de percepção de sua intervenção — parece conferir a seu ceticismo um perfil peculiar, pelo qual, em particular, todo e qualquer juízo acerca do que é natural ou conforme a razão se tornaria um candidato potencial à suspensão. Contudo, o aprofundamento do exame desse ponto permitirá ver (3.2) que, mesmo no que possui de aparentemente inovador, o ceticismo de Montaigne é inteiramente compatível com os textos antigos que o alimentam. Em seguida, essas considerações epistemológicas preparam e dão lugar, no próprio ensaio, a ponderações sobre como agir diante da fragilidade da ordem legal. Acompanhando esse movimento, examinaremos (3.3) como essa discussão se articula com as oposições interioridade/exterioridade e privado/público, na forma de uma interpretação 129

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do critério cético de ação. Confirmando os resultados do capítulo anterior, essa análise permite ver como o critério cético de ação transforma-se, no âmbito das discussões políticas, no embrião de uma espécie de “razão prática”, em vista da qual o ceticismo deságua numa política de tolerância. Isso nos permitirá finalmente observar (3.4) que a interpretação do critério cético subjacente a essas reflexões articula-se com uma interpretação particular da noção de phainómenon, que acentua a distinção entre a pretensão de obter conhecimento das coisas, em sentido estrito, e uma adesão meramente concernente ao uso das coisas tal como se apresentam a nós — graças à qual se pode, ao mesmo tempo, constatar a dimensão que tal noção implicitamente assume nos Ensaios, por meio de conceitos próprios que a ela correspondem. 3.1. Um traiçoeiro mestre

Se um dos aspectos do phainómenon é, segundo Sexto, a “tradição das leis e dos costumes”, em vista da qual o cético considera, por exemplo, “uma conduta piedosa na vida um bem, e uma conduta impiedosa, um mal” (HP I, 24), ele assim procede, segundo o julgamento de Montaigne, de modo distanciado, não-dogmático: “[A] … Eles deixam suas ações comuns guiarem-se por essas coisas, sem ser opinativos e sem julgamento…” (505). Tal adesão conjuga-se a um estado de epokhé que abrange, entre as diversas facetas com que o dogmatismo pode se manifestar, também aquelas atinentes ao âmbito da moral. O Décimo Tropo de Enesidemo, tal como Sexto o apresenta, parte da evidenciação da diversidade contraditória, entre os diversos homens e povos, de regras de conduta, hábitos, leis, crenças míticas e demais crenças dogmáticas concernentes a esse tema (cf. HP I, 145 ss.) Após uma exemplificação de como todos esses aspectos da moral podem ser, de várias maneiras, opostos entre si, segundo as opções particulares de cada povo, filósofo etc., Sexto explica que o cético não pode, tampouco aqui, encontrar um critério racionalmente aceitável para julgar esse conflito. O cético também aqui suspende seu juízo sobre a essência real daquilo que se representa segundo tal diversidade, posto que não pode estabelecer, entre os valores que implicitamente regem essas formas de agir 130

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em conflito, e que estipulam diversamente o que é bom ou mal, o que é verdadeiro (e intrinsecamente superior aos demais) (cf. HP I, 63). Em vez disso, ele apenas reconhece que cada forma de agir é relativa a um valor determinado e, sem pretender demonstrar racionalmente sua superioridade aos demais, segue, de modo “não-dogmático”, como parte do phainómenon, os costumes e leis em vigência no ambiente cultural, segundo suas características próprias, em que o filósofo se insere ou segundo os quais foi formado. Segue os valores que lhe parecem corretos, sem presumir que eles possam ser provados intrinsecamente verdadeiros, mediante uma demonstração racional definitiva, por oposição aos seus rivais. Os Ensaios oferecem inúmeros exemplos de enumerações de costumes, comportamentos e concepções dogmáticas morais em conflito que claramente correspondem a instanciações desse tropo cético. Na “Apologia”, particularmente, não são poucas as vezes que Montaigne se ocupa de listar exemplos provenientes de Plínio e Plutarco sobre os comportamentos dos povos diversos, ou de relatos dos viajantes sobre os habitantes do Novo Mundo recém-descoberto, para exibir não apenas a diversidade dos valores, mas também sua relatividade, no sentido exato proposto pela argumentação sextiana1. O mesmo ocorre no capítulo “Dos costumes”, que tem por um de seus eixos principais uma argumentação moldada pelo mesmo tropo cético. Assim introduz ele uma das recorrentes enumerações a que nos referimos: [B] Estimo que não apareça na imaginação humana nenhuma fantasia tão delirante que não encontre um exemplo nalguma usança pública e, por conseguinte, que nossa razão [discours] não sustente e fundamente. Há povos onde se voltam as costas para quem o cumprimenta e não se olha nunca para aquele a quem se quer honrar. Há lugar onde, quando o rei cospe, a mais favorita das damas da corte estende a mão. E noutras nações os mais fenomenais em torno dele se abaixam ao solo para colher num lenço a sua sujeira (etc.) (I, 23, 111 ss.). 1. Ver também II, 12, 573, 576-584, em que Montaigne expõe e comenta as controvérsias filosóficas acerca da noção de bem e a impossibilidade de obtermos uma lei natural. 131

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Enfatizando a variedade potencial dos costumes, Montaigne a equipara ao conjunto das fantasias humanas, aí compreendidas mesmo as mais “delirantes”, para, em seguida, observar que a razão pode “sustentar e fundamentar” cada um desses comportamentos. Em que sentido isso seria possível? Consideremos, por exemplo, o costume de comer o cadáver dos pais mortos, mencionado por Montaigne na “Apologia”. Se tal costume é para nós completamente abominável, ele pode contudo ser justificado, pelos que o praticam, como um testemunho de piedade, posto que não concebem para eles nenhuma sepultura mais honrada que o seu corpo2. Mas isso não significa, é claro, que a razão “fundamente” tal costume a fim de provar que ele seja verdadeiro, em detrimento dos demais. Isso parece significar, ao contrário, que só podemos confundir essa razoabilidade com uma demonstração de sua verdade enquanto não levamos ainda além o exercício da razão e percebemos que também os costumes opostos podem ser objeto de uma justificação racional de força comparável. Percebê-lo conduziria a compreender que, no mesmo passo que a razão pode sustentar essa diversidade inabarcável de comportamentos, acaba por se identificar à diversidade das “fantasias” potencialmente produzidas pela imaginação humana. Mas, assim como ocorre no tropo pirrônico, essa experiência racional deve levar a uma reavaliação não apenas do efetivo poder demonstrativo da razão nessa esfera temática, mas também do estatuto dos costumes que permanecem orientando nossa prática. De saída, identificando o costumeiro como o que é conforme à razão (isto é, observando aquilo que é costumeiramente aceito segundo o viés pelo qual a razão o pode justificar, um dentre os múltiplos vieses, potencialmente contrários entre si, que a razão poderia adotar acerca do mesmo tema), pensamos dispor de uma imagem das coisas como são por si mesmas, em sua natureza, por oposição ao que nos parece desnaturado ou bárbaro. Uma observação adequada, porém, da diversidade dos costumes, segundo sua razoabilidade própria, deve nos mostrar que 2. Ver 581A; III, 9, 985B. 132

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essa primeira identificação entre o costumeiro e o razoável produz uma imagem muito simplista das coisas: “As coisas possuem diversos lumes e [possibilidades de] consideração: é daí que se engendra principalmente a diversidade de opiniões. Uma nação observa uma coisa por um aspecto, e se detém nele; outra, por um outro…” (581A). Isso não significa que devamos simplesmente abandonar nossa forma habitual de agir; devemos, todavia, compreender que ela corresponde a apenas um viés relativo e parcial de um aspecto entre os múltiplos a que a razão pode contraditoriamente sustentar sobre as mesmas coisas e que não se pode, portanto, confundir com uma apreensão verdadeira de como elas são. No argumento que acabamos de considerar, Montaigne se apóia em valores que aceitamos implicitamente como base de nossos juízos (por exemplo, a admissão de que um ente querido deva ter uma sepultura digna), para deles extrair conseqüências inesperadas e contrárias aos comportamentos deles inferidos. Tal oposição parece enquadrar-se bem nas combinatórias previstas pelo tropo cético, segundo Sexto (em particular, a oposição de um costume a outro que lhe é contrário). Mas, se a conclusão visa mostrar que a razão pode sustentar costumes contraditórios, não seria o caso de admitir que os valores implicitamente aceitos representem alguma verdade, em detrimento dos demais? Outros textos indicam a dificuldade que, segundo Montaigne, se oferece para obtermos um critério isento, que possibilite bem julgar a diversidade cultural, dada a maneira pela qual os critérios normalmente se produzem no interior de cada cultura. Avaliando os relatos acerca dos povos tupinambás que reexpõe ao leitor, ele assim se pronuncia: [A] Ora, eu acho … que não há nada de bárbaro e selvagem nessa nação, pelo que me reportaram, senão que cada um chama de bárbaro o que não é de seu uso — como, em verdade, não parece que tenhamos outra mira da verdade e da razão que o exemplo e a idéia das opiniões e usanças do país de onde somos… (I, 31, 205). Essa passagem mostra bem que está em jogo, mais amplamente, a percepção da situação relativa na qual inevitavelmente nos situamos para julgar uma cultura diversa (em decorrência, por certo, da incapacidade de reconhecer um critério isento que possa dirimir as oposi133

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ções). Foi sobretudo graças a seu fundamento cético que o ensaio “Dos canibais” (I, 31) — no qual Montaigne pretende pôr em questão a maneira pela qual os leitores (tacitamente os europeus) se outorgam uma superioridade injustificada com relação aos tupinambás — se tornou um marco do relativismo antropológico moderno. Opondo-se, ademais, à tendência de desqualificarmos como “bárbaros” os costumes diversos dos que praticamos, Montaigne afirma que assim proceder é pôr-se numa situação “própria do vulgo”, isto é, daquele que considera as coisas pela voz comum, e não pela via da razão (v. I, 31, 202A). Como dissemos, Montaigne soube ver que o ceticismo não é um irracionalismo, ainda que o reconhecimento desse fato conduza a afirmações que beiram o paradoxo. Na citação anterior, a superação racional da atitude do vulgo (que condena como bárbaro o que é contrário ao seu costume) parece levar ao reconhecimento de que nosso critério de “razão e verdade” situa-se apenas no próprio costume, isto é, no “exemplo e na idéia das opiniões e usanças do país de onde somos”. Porém, prestemos atenção ao modo como o juízo de Montaigne que introduz esse ponto é modalizado: “não parece que tenhamos outra mira de razão e verdade”. O que significa isso? Por mais que nossos valores possam limitar nosso acesso ao que nos é inabitual, talvez essa formulação procure capturar a perspectiva daquele que se situa segundo aquilo que lhe parece verdadeiro e razoável (por oposição ao “bárbaro”), antes de ter devidamente avaliado o modo como a razão pode igualmente secundar costumes diversos e, assim, reconhecer que tal mira originária “da razão e da verdade” precisa ser corrigida. Não fosse assim, como compreender o sentido da crítica que o próprio ensaio desenvolve, em busca de relativizar o juízo de seu leitor acerca do que é natural (e do que é, por oposição, bárbaro), no que tange aos povos do Novo Mundo? Essa crítica cética destina-se, afinal, a neutralizar a primeira avaliação que tendemos a fazer, quando imersos em nossos costumes, do que poderia parecer, a um só tempo, racional e verdadeiro, desse ponto de vista. Contudo, o modo como razão e costume tendem a se relacionar paradoxalmente — ora a razão podendo se confundir com o costume, ora podendo, graças a um aprofundamento de sua ação, dele recuar e 134

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perceber-se distinta — é portador de um significado relevante para a compreensão do ceticismo de Montaigne. Esse significado torna-se mais claro quando se considera mais de perto suas reflexões epistemológicas sobre o costume no ensaio I, 23. A primeira parte desse ensaio, como antecipamos, constitui-se de uma ampla e diversificada exposição do “império do costume”, isto é, do poder enorme porém normalmente despercebido com que ele age, intervindo mesmo em nossas percepções, fazendo-nos aceitar como naturais as coisas que são por ele produzidas3. Tal exame o conduz à seguinte conclusão: “[A] … na minha opinião [fantasie], não há nada que [o costume] não faça ou não possa…” (I, 23, 115). Esse violento e traiçoeiro mestre, diz ele, dobra, de todos os modos, as “regras da natureza” e nos impede de reconhecer a dimensão em que o próprio costume se apresenta naquilo que pensamos reconhecer como natural: [A] Parece-me ter muito bem concebido a força do costume aquele que primeiro forjou este conto: que uma camponesa, tendo aprendido a acariciar e carregar entre seus braços um novilho desde seu nascimento, e sempre continuando a fazê-lo, ganhou isto do costume: boi grande ele já era e ela o carregava ainda. Pois, na verdade, o costume é um violento e traiçoeiro professor. Ele estabelece em nós, pouco a pouco, às ocultas, o pé de sua autoridade; mas por esse suave e humilde começo, tendo-o assentado e firmado com a ajuda do tempo, ele nos mostra tão logo uma face furiosa e tirânica, contra a qual não temos mais a liberdade de levantar sequer os olhos. Vemolo forçar de todo modo as regras da natureza: “Usus efficacissimus rerum omnium magister” (O costume é o mais poderoso mestre de todas as coisas) (I, 23, 109). A essa particularidade soma-se outra. O costume age tanto sobre nosso corpo — modelando nossas capacidades físicas, nossa alimentação e mesmo nossa percepção sensível — como sobre nossa alma, que se deixa arrastar em suas crenças, seus juízos e mesmo no que Montaigne diz serem nossas “leis de consciência”, que também admitimos, 3. Referimo-nos aqui a uma primeira parte do texto, que corresponderia às p. 108116 da edição Villey. 135

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equivocadamente, serem leis supostamente naturais4. Agindo sobre nossa alma, na qual encontraria “menos resistência”, segundo Montaigne, ele teria um poder irrestrito sobre nossos juízos e crenças, podendo corroborar toda e qualquer opinião, por mais bizarra que fosse, ao convertê-la em lei nalguma determinada região (v. I, 23, 111) — e, mais do que isso, intercedendo para admitirmos como “natural” ou “racional” aquilo que assim se afigurasse a nós graças à sua ação: [A] Posto que nós o sorvemos com o leite de nosso nascimento, e que o mundo se apresenta nesse estado em nosso primeiro olhar, parece que nascemos sob a condição de seguir sempre esse andamento. E as opiniões [imaginations] comuns, que encontramos em crédito em torno de nós, e infundidas em nossa alma pela semente de nossos pais, parecem-nos ser gerais e naturais. [C] Donde advém que aquilo que está fora do costume, crê-se fora da razão: Deus sabe o quanto isso se faz de modo desarrazoado, no mais das vezes… (I, 23, 115-116). Assim, costume e natureza constituiriam, ao menos em princípio, instâncias distintas, se não opostas. Porém, uma vez em ação, o costume dobra as leis da natureza e se sobrepõe a elas, apresentando-nos como “natural” ou “racional” o que ele produz como uma simples aparência de natureza, e como portador de uma racionalidade que, à luz da crítica cética, se revela insuficiente. Além disso, o costume, assim agindo, de modo gradual e por vezes imperceptível, possui essa curiosa mas fundamental peculiaridade de nos impedir de “levantar os olhos”, como diz Montaigne, para observar exatamente a medida em que ele age. Ao travestir-se de “natureza” ou “razão”, o costume, nessa mesma medida, esconde-se. Não devemos minimizar aquele que, nas palavras de Montaigne, é o principal efeito do costume: [A] Mas o principal efeito de sua potência é o de nos tomar e nos dobrar de tal forma que quase não está em nós o poder de nos reavermos de suas presas e de voltarmos a nós, para refletir e raciocinar acerca de suas ordens. Em verdade, posto que nós o sorvemos com o 4. Ver I, 23, 115C. Com “leis de consciência” Montaigne parece aludir aos valores que pautam nossa conduta moral. 136

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leite de nosso nascimento, e que o mundo se apresenta nesse estado em nosso primeiro olhar, parece que nascemos sob a condição de seguir sempre esse andamento… (I, 23, 115).

Noutros termos, o próprio costume, através de sua ação, priva-nos dos critérios pelos quais ele poderia ser reconhecido enquanto tal; sua presença tende, assim, a ser sempre maior ou mais efetiva do que estamos aptos a perceber. Eis por que Montaigne ocupa-se não apenas de mostrar como ele nos oculta a verdadeira face das coisas, mas também como ele intervém em diversos aspectos de nossa vida. Mas demarcar as linhas gerais desta sua forma traiçoeira de agir não é ainda apontar, em cada caso particular, onde e como ele age: a reflexão aqui se limita a alertar para o fato de que, quando, em geral, julgamos algo como razoável, podemos estar apenas equivocadamente identificando razão e costume. Se a ação do costume priva-nos do critério que nos permitiria reconhecer o modo pelo qual ele se disfarça de “natureza” ou de “razão”, a cada vez que julgamos ser algo conforme à natureza e à razão parece haver, ao menos em princípio, uma possibilidade de estarmos nos equivocando nessa identificação. Tal reflexão cética sobre o costume tem, portanto, esta conseqüência capital: nosso juízo acerca do que é natural ou racional pode ser sempre presa de algum adormecimento produzido por essa forma de agir do costume. [C] Os milagres ocorrem segundo a ignorância em que nos encontramos da natureza, não segundo o verdadeiro ser da natureza. O habituar-se [l’assuefaction] adormece a vista de nosso juízo. Os bárbaros não são em nada mais maravilhosos para nós do que nós o somos para eles, nem com mais ocasião, como cada um confessaria se soubesse, depois de ter passeado por esses novos exemplos, considerar os seus próprios e compará-los sensatamente [sainement]. A razão humana é uma tintura infusa com aproximadamente a mesma carga em todas as nossas opiniões e costumes [moeurs], tenham a forma que tiverem: infinita em matéria, infinita em diversidade… (I, 23, 112). Sendo a reflexão cética o meio pelo qual a “vista de nosso juízo” pode nalguma medida despertar, cabe bem aqui a expressão “sono dogmático”, que Kant tornou célebre, para designar a ação do costume. Por seu intermédio se produz uma imagem determinada da natureza, 137

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ocultando, seja qual for ele, o “ser da natureza”, que sob esse viés não pode ser apontado senão como diverso e oposto do que percebemos como natural, isto é, como “milagre”; sua causa é uma paralisia, nalgum grau, de nossa capacidade de refletir e raciocinar, de julgar adequadamente as coisas e de reconhecer enfim que nosso juízo não age de modo plenamente racional. Mas até onde pode a reflexão avançar nessa tarefa reanimadora? A julgar por algumas passagens, ela pode conduzir a paisagens bastante imprevistas: [A] Ir segundo a natureza, para nós, não é senão ir segundo nossa inteligência, à medida que ela avança e o tanto que aí vemos. O que fica além é monstruoso e desordenado. Ora, a essa conta, para os mais sábios e capazes tudo será, portanto, monstruoso, pois a esses a razão humana bem persuadiu que não possui nenhum pé ou fundamento… (II, 12, 526). Deveríamos tomar ao pé da letra essa última afirmação? É possível que, nas duas últimas passagens citadas, opere algum exagero retórico, pois é certo que não se trata de proceder a uma crítica do sábio cético como alguém que seria conduzido a uma doutrina impraticável: tais passagens se harmonizam com o sentido geral da análise cética do costume. Elas parecem, contudo, orientar o ceticismo aí implícito num sentido particularmente radical, ao identificar estreitamente aquilo que nos surge como natural ou compreensível — de modo bastante amplo: “ir segundo nossa inteligência” — e um possível falseamento dogmático, eventualmente relacionado à ação do costume, cuja descoberta deriva da compreensão de que a “razão humana … não possui nenhum pé ou fundamento”. A julgar por esse texto, tudo se passa como se, a cada vez que nos deparamos com alguma impressão de certeza, propiciada por nosso entendimento particular das coisas, pomo-nos ipso facto diante de um potencial candidato à suspensão, que convidaria a reflexão cética a prosseguir ainda além. Nunca poderíamos dispor de uma garantia absoluta de que, ao julgarmos acerca do que seria natural ou racional, não seríamos enganados pelo costume. Por onde se deve concluir que tais juízos são sempre relativos — em especial, à nossa capacidade individual de empreender tal reflexão cética, que, por si 138

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mesma, não tem o poder de produzir uma versão última e absoluta do que devemos racionalmente aceitar. 3.2. Costume e dogmatismo

A concepção montaigniana do poder do costume e de suas conseqüências dogmáticas, tal como aqui considerada, articula-se a uma compreensão particular da idéia da adesão cética ao phainómenon como critério prático, como veremos neste capítulo, bem como a uma interpretação própria da relação entre essa adesão e a epokhé, como veremos mais adiante, no capítulo VI. Antes, porém, importa examinarmos em que medida essa discussão sobre o costume poderia ser aproximada das fontes do ceticismo antigo. Graças ao tratamento que dá a essa temática, Montaigne se candidata a ser o primeiro autor de orientação cética no qual, a exemplo do que ocorrerá posteriormente com Hume, a reflexão epistemológica sobre o poder do costume como elemento organizador da experiência ganha um papel central. Mas em que medida a noção montaigniana de costume corresponderia àquela que se faria presente em Sexto ou Cícero? À primeira vista, tem-se a impressão de que há uma amplificação no escopo desse conceito, pois tanto os costumes abarcados pelo escopo do Décimo Tropo de Enesidemo, em sua ação relativizadora, como aqueles a que Sexto se refere como constituintes de um aspecto do phainómenon, que o cético adota como critério de ação, parecem dizer respeito, nos textos antigos, apenas à esfera da moral, da admissão de valores e regras de conduta. Não é o que observamos nas passagens de Montaigne que acabamos de analisar: seu ceticismo questiona, mais amplamente, o modo pelo qual o costume encobre a natureza, mesmo na esfera de nossa percepção sensível, comprometendo nosso entendimento das coisas. Em virtude desse aporte epistemológico, afinal, é que ele passa a ser encarado como causa potencial de uma apreensão dogmática de como as coisas são em sua natureza. Podemos encontrar algo de análogo no pirronismo antigo? Embora não seja diretamente concernente ao éthos, termo usado para Sexto para designar uma maneira comum de agir, respaldada ou 139

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não por uma lei5, o Nono Tropo de Enesidemo, tal como o apresenta esse autor, destina-se a estabelecer a suspensão com base no modo diverso com que as coisas nos impressionam, relativamente à sua raridade ou à freqüência com que ocorrem (cf. HP I, 141-144). Em geral, diz Sexto, aquilo que é raro, único, ou que vemos pela primeira vez, surpreende-nos mais que aquilo a que estamos habituados. Embora o sol seja mais impressionante (ekpléktikos) que um cometa, o segundo nos impressiona mais devido à sua raridade; muito mais impressionante ainda seria o sol, argumenta ele, se apenas raramente iluminasse as coisas com seu brilho costumeiro (HP I, 141). Por conseguinte, não podemos dizer como é o objeto externo em si mesmo — impressionante, valioso, ou o oposto disso —, mas apenas relatar o modo como ele nos aparece em virtude dessa circunstância. Como compreender o sentido da suspensão aí proposta? Trata-se de mostrar que as coisas nos parecem “impressionantes” (expressão esta que ganha, portanto, um sentido bastante difuso, posto que os exemplos abarcam o valor que atribuímos ao ouro por sua raridade6, a surpresa que temos diante da primeira visão do mar ou ainda a impressão sensível causada pela luminosidade do sol) de um modo sempre relativo à nossa experiência, embora tendamos a atribuir esses valores e impressões integralmente às próprias coisas. Mas isso não significa, tampouco, que se possa determinar que tal impressão seja meramente ocasionada por nossa reação subjetiva, como mostra o experimento mental proposto pela comparação entre o sol e o cometa (segundo o qual se infere que o sol pareceria mais “surpreendente” que o cometa se a freqüência de aparição daquele pudesse à deste ser equiparada). Sobrepõem-se aqui uma eventual diferença objetiva das coisas e uma diferença ligada ao modo como subjetivamente as coisas nos aparecem submetidas a alguma freqüência ou raridade particular segundo nossa experiência; não podemos, porém, observar as coisas de modo inteiramente isento, sem estarmos situados nalguma experiência particular 5. Ver, por exemplo, HP I, 146. 6. Ver HP I, 143. 140

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que relativize, desse ponto de vista, o modo como as apreendemos7. Cabe concluir que, desde que algo seja objeto de alguma experiência, as impressões que nos causa serão relativas a esse seu modo de aparecer (mais ou menos freqüente), sem que possamos exatamente dizer como ele seria em si mesmo, independentemente dessa situação, no que tange à sua “natureza impressionante”, isto é, seu valor intrínseco ou sua capacidade de nos causar a impressão que nos causa. Montaigne considerou esse tropo cético em suas reflexões sobre o tema em pauta. No ensaio 27 do livro primeiro ele retoma os exemplos com que Sexto o ilustra — “[A] Aquele que jamais tinha visto um rio, ao encontrar o primeiro pensou que fosse o oceano…” (I, 27, 179) — para criticar os que confundem o verossímil com o verdadeiro, incapazes de reconhecer que a própria natureza está sempre além de nossa apreensão, meramente relativa, do que é natural: [A] Se chamamos de monstros ou milagres aquilo aonde nossa razão não chega, quantos deles não se apresentam continuamente aos nossos olhos? Consideremos através de quantas névoas, e o modo tateante pelo qual nos encaminhamos ao conhecimento das coisas que temos entre as mãos: certamente reconheceremos que é antes o costume que o saber [science] que nos tira sua estranheza … e que tais coisas, se nos fossem apresentadas pela primeira vez, nós as tomaríamos como tão ou mais incríveis que quaisquer outras… (I, 27, 179). Tal como preconiza o Nono Tropo, Montaigne alude aqui ao modo como a familiaridade ou falta de familiaridade com as coisas interfere em como as julgamos. Tal como faz Sexto, trata-se aqui de sublinhar que a apreensão dos objetos é relativa à nossa experiência particular, embora a confundamos com um conhecimento da própria natureza das coisas. Mas é sobretudo relevante assinalar que, nesse ensaio, o mesmo termo “costume” que noutras passagens serve para designar os modos de agir aos quais somos habituados é usado para designar o efeito pelo qual a familiaridade de nossa experiência interfere em nossa 7. Sexto inclui esse Tropo na classe daqueles que se referem à relação entre sujeito e objeto (enquanto, diversamente, o Décimo Modo corresponderia apenas à relação objetiva entre as coisas); cf. HP I, 38-39. 141

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apreensão das coisas. Montaigne parece assim se valer de um único termo que, por sua capacidade semântica, pode designar instâncias que no ceticismo pirrônico são abordadas separadamente — aquilo a que implicitamente o Nono Tropo se refere como uma circunstância geral relativa à freqüência de nossas percepções e aquilo que, apenas no âmbito de nossos comportamentos, o Décimo Tropo focaliza como o resultado consolidado do habituar-se. Diríamos que tudo se passa como se o texto de Montaigne refletisse o esforço de considerar coerentemente os diversos aspectos em que uma mesma noção seria implicitamente tematizada em momentos diferentes da argumentação suspensiva pirrônica original. O mesmo costume que, de modo geral, atuasse sobre nossa experiência perceptiva seria aquele que se faria presente de modo particular nos comportamentos morais; num caso como noutro, estaríamos à mercê de seu poder distorcedor diante da efetiva relatividade com que nossa experiência se ofereceria, confundindo, em algum grau, aquilo que será seu produto com uma apreensão de como as coisas seriam em si mesmas. Em que medida, porém, isso constituiria uma inovação filosófica? Até que ponto essa liberdade reflexiva em face dos elementos céticos produziria um resultado conceitualmente fiel à reflexão dos antigos céticos? A partir de que ponto transcenderia as possibilidades teóricas do pirronismo antigo? Parece haver ocasião de apontar uma diferença pertinente ao ponto em questão. No Nono Tropo pirrônico, a freqüência e a raridade são opostas como circunstâncias perceptivas distintas que, por suscitarem avaliações diversas das coisas, não nos permitem dizer o que sejam em si mesmas; na reflexão de Montaigne, porém, é o próprio costume que parece adquirir, positivamente, o papel de distorcer a apreensão da natureza. Se há distorção, se deve aqui ao modo como ele nalgum grau se faz presente (de modo tal que, suprimida a máscara projetada pelo costume, as coisas poderiam talvez se mostrar como são em sua natureza própria). Não representaria isso uma transformação conceitual relevante? A concepção de que o costume é portador de um efeito falseador de nossa apreensão da natureza parece remeter às fontes acadêmicas que, também no âmbito dessa temática, são igualmente mobilizadas 142

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por Montaigne. Em I, 27, ele cita uma passagem do De natura Deorum para corroborar a mesma idéia de que a ação do costume tem por efeito adormecer nossa busca de conhecer as coisas: “[C] Pelo acostumar-se dos olhos familiarizam-se os espíritos; eles não mais se surpreendem com o que vêem sem cessar e não buscam mais as causas daquelas que sempre vêem” (I, 27, 180)8. E, no ensaio “Do costume…”, as reflexões céticas são ilustradas com outra passagem da mesma obra: “[C] E é muito justa esta antiga exclamação: É vergonhoso para um naturalista, isto é, para alguém que é observador e especulador da natureza, buscar nas almas imbuídas pelo costume o testemunho da verdade”9. Significaria isso, contudo, que a reflexão de Montaigne tomaria claramente partido dos acadêmicos, por oposição aos pirrônicos? Para evitar conclusões precipitadas, examinemos melhor como o costume pode desempenhar, segundo Montaigne, o papel de instituir dogmatismos. Consideremos esta outra alusão ao tema do Nono Tropo de Enesidemo, em que os efeitos da freqüência ou da raridade surgem como justificativa do método de argumentar empregado ao longo da discussão sobre a semelhança entre os homens e animais, na crítica à “vaidade do homem” presente na “Apologia”: [A] Nós admiramos e valorizamos mais as coisas incomuns [estrangeres] do que as ordinárias; e, não fosse isso, eu não teria me ocupado deste longo registro: pois, segundo minha opinião, quem vasculhar de perto aquilo que vemos ordinariamente nos animais que vivem 8. Dnd, II, xxxviii, 96. A citação provém da crítica estóica ao epicurismo e é empregada por Montaigne como premissa da defesa da adesão integral aos artigos de fé da religião cristã (contra aqueles que, confundindo o verossímil com o verdadeiro, pretendem eleger por si mesmos os artigos de fé aceitáveis). 9. Dnd, I, XXX, 81, citado em I, 23, 111C. No contexto original do qual é extraída, essa passagem constitui uma réplica que o cético Cotta, representante da Nova Academia, endereça ao antropomorfismo da teologia epicurista. Particularmente, trata-se de observar que, a despeito de todos os absurdos e incongruências gerados pela pressuposição de deuses de forma humana, se os epicuristas os aceitam, isso se deve ao fato de que os romanos, desde sua infância, foram postos em contato com deuses representados por essa forma. No ensaio de Montaigne, ela se insinua como “desculpa” das fantasias humanas que as religiões elaboraram sobre aquilo que desconhecemos, à falta da clareza da verdade revelada. 143

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entre nós encontrará fatos [effects] tão admiráveis quanto aqueles que se podem recolher nos países e séculos estrangeiros … Eu vi outrora entre nós homens trazidos pelo mar de país longínquo, dos quais não entendíamos nada de sua língua, cuja feição, em suma, e a postura, e as roupas eram totalmente distantes das nossas; quem de nós não os acharia selvagens e brutos? … Tudo o que nos parece estranho nós o condenamos, e também o que não entendemos, como ocorre no juízo que fazemos dos animais. Eles têm diversas condições que se reportam às nossas; dessas, por comparação, podemos tirar alguma conjectura; mas acerca do que eles têm de particular, o que nós sabemos?… (467).

Nesse trecho parecem articular-se as temáticas de pelo menos três Modos pirrônicos: o Nono, o Décimo e o Primeiro (em vista do qual devemos admitir o testemunho perceptivo dos animais, potencialmente diverso do nosso, como ocasião de constatar a relatividade da percepção humana). Exatamente como Sexto, ao apresentar o Nono Modo, Montaigne assinala que as coisas incomuns nos parecem mais valiosas e admiráveis, e tampouco se pretenderia aqui suprimir a própria experiência pela qual tais coisas são imediatamente percebidas como possuidoras desses valores. Se Montaigne explora retoricamente a admiração causada pelo inusitado, cuida também de assinalar que o valor que atribuímos às coisas raras é relativo — uma vez que os objetos da nossa experiência comum, por si mesmos, não lhes são intrinsecamente inferiores. O dogmatismo aqui alvejado parece residir, justamente, na crença de que os fatos (effects) com os quais estamos habituados possuam em si um valor diverso daqueles que nos causam admiração por serem de países e séculos longínquos. A despeito dessas similaridades, a argumentação de Montaigne ganha um viés inesperado. Montaigne prossegue afirmando que os mesmos exemplos inusitados (que pareçam, nessa medida, valiosos) são objeto de uma desvalorização, derivada, precisamente, do fato de escaparem de nosso hábito: “Tudo o que nos parece estranho nós condenamos, e também o que não entendemos, como ocorre no juízo que fazemos dos animais”. Assim, a estupidez que atribuímos aos animais é aqui associada à estranheza dos bárbaros: o inusitado e não-habitual, se suscita admiração, suscita igualmente 144

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condenação. Como compreender essa aparente reviravolta a que seria submetido o tropo cético aqui reinterpretado? Notemos primeiramente que essas duas valorações estão relacionadas a duas formas diversas pelas quais o costume se apresenta. No primeiro caso, o caráter “impressionante” está diretamente ligado à falta de regularidade com que o evento é percebido e, nessa medida, pode ser reconhecido, de alguma maneira, como relacionado ao costume (ou à sua ausência). O mesmo não parece ocorrer, à primeira vista, com a segunda valoração: na medida em que nos são estranhos, os animais e os outros povos nos surgem não mais como meramente incomuns ou inabituais, mas como racionalmente ou naturalmente inferiores. Essa segunda valoração, porém, corresponderia à esfera de valoração sobre a qual incidiria o Décimo Tropo de Enesidemo: se outros povos agem de um modo que, segundo nossos costumes, pode nos parecer estranho, cabe evocar a forma como a razão pode secundar esse modo de agir e suspender o juízo diante dessa diversidade, reconhecendo, por conseguinte, que nossa avaliação prévia sobre sua inferioridade é injustificada. Graças a essa atividade suspensiva a valoração inicial pode, nesse caso, revelar-se como mero efeito do costume, disfarçado pelo fato de termos antes conferido um poder desmesurado ao apoio racional que supúnhamos poder oferecer privilegiadamente ao que nos era familiar. Considerar que essas duas valorações podem ser diversamente relacionadas ao reconhecimento da presença do costume como causa nos permite ver que, embora pudéssemos supor que se trataria de extrair efeitos contraditórios da própria ação do costume, não é disso que se trata, pois, no segundo caso, o simples reconhecimento de que o costume é uma causa contribuiria para uma reavaliação. Isso significa que não se trata de pretender contradizer o sentido original do tropo pirrônico, uma vez que não se trata de se opor à constatação de que tendemos a emprestar ao inusitado uma valoração positiva (eventualmente injustificada, posto que, para aquele que vasculhar de perto, nossa experiência próxima oferece fatos igualmente surpreendentes). É, contudo, gratuita, essa aparente reversão de perspectivas, pela qual um tema cético é paradoxalmente desenvolvido no sentido oposto daquele que 145

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parece ser o seu originalmente, que emerge uma vez que trazemos o texto para perto de suas fontes pirrônicas (de modo análogo ao que vimos ocorrer noutras ocasiões)? Talvez essa peripécia nos dê ocasião de assinalar, em vez disso, que Montaigne pretende, a despeito da semelhança conceitual das discussões, assinalar a dificuldade da tarefa do efetivo reconhecimento da dimensão com que a ação do costume se apresenta. Pois afirmar que a segunda valoração (segundo a qual o inabitual é visto como estranho e inferior) não é diretamente relacionada à presença do costume não significa, como vimos, dizer que ela não seja causada por ele: ela é, com efeito, produto de um costume que se escondeu a si mesmo e não pode mais ser visto como mero costume por aquele que avalia desse modo (e pensa, afinal, estar simplesmente julgando conforme a razão). Assim, essa curiosa solda argumentativa entre as reflexões céticas que parecem ser tomadas dos Tropos Nono e Décimo, pelo elo conceitual do reconhecimento da ação do costume em ambos os casos, não apenas oferece uma exemplificação do movimento pelo qual o costume se esconde a si mesmo (e que pareceria, à primeira vista, ser inteiramente avulso em vista dos elementos céticos da reflexão), mas o faz coincidir com uma aparente inversão do sentido de sua ação. Em que medida, afinal, essa espécie de “dialética” montaigniana se afasta de um registro cético? Independentemente do sentido que ganha em face de fontes que Montaigne presumivelmente tem em vista, a passagem parece conter um comentário paradoxal sobre o costume: sua ação parece produzir ora uma espécie de desvalorização, ora uma espécie de valorização. Nos dois casos, porém, a avaliação é objeto de crítica: ela corresponderia a juízos dogmáticos, que falseiam nossa apreensão. Se assim é, esse expediente pelo qual Montaigne argumenta de ambos os lados (mostrando que dois efeitos opostos podem ser igualmente extraídos do modo como um único exemplo se subordina à nossa apreciação costumeira) assinala também o duplo sentido em que se manifesta seu efeito dogmatizante. Ao menos negativamente, seria preciso concluir que a identificação de sua presença não poderia se traduzir na identificação de uma espécie de lei pela qual o costume invariavelmente agiria (a que seríamos conduzidos, por exemplo, se nos ativés146

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semos apenas ao sentido de seu efeito tal como apontado pelo Nono Tropo). Mais precisamente, mesmo que seja possível, em determinado sentido preciso, reconhecer efeitos regulares da ação do costume (ao acostumarmo-nos com as coisas, passamos a julgá-las menos dignas de atenção e de curiosidade), isso não diz respeito exatamente às razões pelas quais ele poderia, segundo Montaigne, ocasionar uma apreensão dogmática das coisas. Alegar que ele pode ser causa tanto de uma valorização como de uma desvalorização da mesma coisa (ainda que sob vieses diferentes) talvez seja apenas uma forma diversa de sublinhar o caráter ardiloso e imprevisível de sua ação. Essa ilustração da ambigüidade do costume, assim, esclarece por que o costume se torna causa de dogmatismo na justa medida em que, como diz Montaigne, ele se “esconde a si mesmo”. E isso, a bem dizer, parece ser visível nos casos dos problemas considerados pelos dois Tropos (e refletidos na duplicidade dos efeitos), ainda que em graus e sentidos diferentes. Num primeiro momento, embora se trate de um efeito cuja relação com o costume é ainda imediatamente visível, o juízo dogmático decorre de não sermos capazes de ver que aquilo que tomamos como um valor da própria coisa é determinado nalgum grau pela ingerência de nos acostumarmos. Confundimos aquilo que é relativo ao costume com o que a coisa é, mesmo sendo capazes de reconhecer que o costume age no sentido de produzir uma valorização determinada das coisas. Trata-se, contudo, apenas de um primeiro grau de adormecimento de nosso juízo, que se aprofunda no momento em que nem mesmo a ação do costume pode mais ser percebida, como ocorre nos casos em que deixamos de reconhecer sua presença como algo que contribui para o juízo sobre a naturalidade ou a racionalidade do que percebemos. Assim, em suma, o costume se esconde a si mesmo, fomentando uma apreensão dogmática das coisas, sem ser o fundamento positivo desse dogmatismo. Seus efeitos dogmáticos decorrem não do fato de distorcer nossas percepções sempre num mesmo sentido, mas do modo como ele nos impede de julgar adequadamente as coisas, tanto as que valorizamos como as que desvalorizamos. Importa aqui lembrar que, embora a ação do costume possa ter essa conseqüência negativa do ponto de vista da pretensão de conhecer as coisas, sua ação não é tida por Montaigne como intrinsecamente má 147

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(pois a banalização da experiência trazida pelo costume pode também tornar suportáveis as experiências dos males, na falta de outros meios de enfrentá-las)10. Confrontada com as fontes céticas que implicitamente são aqui o pano de fundo, essa discussão teria talvez ainda o efeito indireto de refinar a interpretação do ceticismo que subjaz à discussão (o que ficará mais claro à luz do exame de outras passagens, que consideraremos no capítulo VI). Sugerimos que extrair do exemplo pirrônico, por meio da ambigüidade do costume, um efeito contrário (a valorização devida ao hábito) não é pretender refutar o pirronismo (como poderia parecer se não prestássemos atenção ao sentido preciso de sua argumentação), mas oferecer uma ilustração da possibilidade de “argumentar dos dois lados” (e exibir implicitamente a própria natureza ambígua do costume). É, ao mesmo tempo, sublinhar que as regularidades eventualmente observadas na forma como o costume positivamente se manifesta não tocam no que é relevante para o efeito relativizador da argumentação cética, com o qual os diversos aspectos dessa passagem montaigniana parecem estar perfeitamente em sintonia. Ao identificar a falta de costume como causa de uma valorização especial, ou de um rebaixamento que é fruto da vaidade dogmática alvejada na “Apologia”, em ambos os casos o dogmatismo está associado com a crença de que nossa avaliação das coisas — aquilo que nos parece verdadeiro (o que é verossímil para nós) — corresponderia a um conhecimento das próprias coisas. Não é outro o sentido da reflexão de Montaigne no ensaio I, 27, supraconsiderado. Por certo esse amálgama argumentativo — pelo qual Montaigne pretenderia coligir tais Tropos pirrônicos como elementos distintos e complementares de uma única reflexão coerente sobre a ação do costume — constitui uma apropriação surpreendente e inventiva de elementos céticos. O modo como ele focaliza a noção de costume não apenas lhe permite harmonizar e integrar, em sua reflexão, as diversas 10. Trata-se de um aspecto da reflexão moral tardia sobre o poder do costume nos Ensaios, cuja raiz pode aqui ser reconhecida. Ver, a esse respeito, II, 37, 759B; III, 13, 1092BC. 148

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fontes céticas consideradas (pirrônicas e acadêmicas), mas também identificar um ingrediente potencialmente onipresente em nossa experiência que, em virtude de nossa incapacidade de reconhecê-lo plenamente, possui um poder ilimitado de instaurar uma apreensão dogmática das coisas. Porém, parece-nos que, para sermos precisos, devemos reconhecer que, em vez de inovar filosoficamente relativamente às suas fontes céticas, também aqui se trata sobretudo de pretender reorganizar coerentemente os materiais antigos e deles extrair uma conclusão relativista análoga àquela que lhe parece legada nesses materiais — por mais que a idéia de costume adquira o papel expressivo e central que adquire em sua reflexão cética. Em vez de oferecer motivos para identificarmos seus desenvolvimentos como inovadores relativamente às suas fontes, o que vemos, ao contrário, é apenas o elogio de Montaigne à justeza da crítica dos antigos no âmbito dessa temática. Saber se tais conseqüências são exatamente idênticas às que os antigos pirrônicos extraíram de sua reflexão demanda uma exegese do ceticismo antigo que vai além de nosso propósito aqui; possivelmente o próprio Montaigne não presumiria que pudessem ser (por razões outras que serão adiante consideradas). Porém, mesmo sendo o resultado de um esforço de rearticular elementos céticos fielmente à coerência própria de suas versões antigas, isso não impede que se produza, desse modo, uma interpretação particularmente radical do sentido relativizador dessa reflexão. Tudo aquilo que nos surge como “natural” ou “racional” passa a ser, por força dos argumentos aqui examinados, potencial suspeito de ser produto da ação dogmatizante do costume, incógnita graças ao modo como este nos priva dos critérios pelos quais o reconhecemos. O fato de não podermos descartar a ação do costume quando nosso juízo se inclina em favor de algo que nos aparece como verossimilhante parece surgir como uma razão importante para que tal juízo, se não pode ser abandonado, não se possa tomar como conhecimento objetivo, isento de uma possível revisão posterior em face de um novo conjunto de fatos. À falta de podermos levar mais longe a reflexão, resta-nos apenas concluir que cada juízo é relativo à nossa incapacidade individual de determinar em que medida pode ele ser produto de uma intervenção do costume. 149

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Na medida em que a ação dogmática do costume limita nossa capacidade de reflexão, examinar seu poder consiste tanto em reconhecer o modo como ele institui coletivamente formas de agir quanto em reconhecer que a própria reflexão sobre sua ação pode estar comprometida por tal dogmatismo. O modo como o costume surge como um limite à capacidade de reflexão parece constituir um elemento crucial para compreendermos a articulação entre a crítica cética e as reflexões políticas de Montaigne no mesmo ensaio I, 23. É o que examinaremos a seguir. 3.3. “Nós todos somos do vulgo”

Vimos no capítulo anterior que, no cerne da discussão sobre os temas religiosos, está sempre implícita a consideração do modo pelo qual os homens em geral, e o “vulgo” em particular, se atêm à autoridade religiosa. Seja na crítica à Reforma, seja na crítica velada a Sebond e aos primeiros objetores, seja ainda na defesa da religião tradicional, Montaigne mede retoricamente o alcance de suas razões, buscando levar em conta tal dimensão. As análises precedentes sobre o poder do costume não apenas confirmam, mas permitem aprofundar essa análise. Como dissemos, as considerações epistemológicas de Montaigne sobre o poder do costume se particularizam, no capítulo 23 do livro primeiro, em um exame de suas conseqüências relativas à ordem pública. Esse exame recebe um substancial acréscimo tardio, no qual se retomam considerações políticas já presentes na “Apologia”, atacando agora, mais abertamente, a presunção do partido protestante (sem contudo se restringir, como veremos, a ele)11. Tais considerações constituem o objeto principal das discussões sobre o “conservadorismo” político de Montaigne, mas estas nem sempre se detêm no exame de 11. Referimo-nos agora a uma segunda parte do texto, que corresponderia às p. 116122, e poderia ser subdividida em dois momentos: uma consideração geral sobre a crítica precedente acerca do poder do costume em vista de suas conseqüências práticas (116-118), que em sua maior parte já está presente na edição de 1580, e uma análise de um caso particular (isto é, das novidades reformistas, 118-122), inteiramente composta, salvo pelo parágrafo final, de alongamentos posteriores a 1580. 150

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como essas reflexões se ligam às discussões epistemológicas que as preparam, e menos ainda no exame das raízes céticas que as sustentam. Sem pretender aqui propriamente retomar esse debate12, restringiremo-nos a tentar mostrar que a consideração desse ponto — e especialmente do movimento dogmático pelo qual o costume se esconde a si mesmo — não é irrelevante para o esclarecimento do sentido desse suposto “conservadorismo”. A tendência de leitura usual encontra aqui uma ocasião de alinhar Montaigne a um locus clássico da teoria política, pelo qual o costume surge como uma espécie de fundamento positivo não apenas dos modos de agir, mas também das leis aceitas. Por conseguinte, tratar-se-ia, na defesa montaigniana dos costumes, de uma espécie de posicionamento teórico acerca do fundamento último da ordem legal. Mas, a despeito de o costume efetivamente surgir, nessas reflexões, como portador de uma dimensão positiva, dispomos agora de elementos para ver que essa é apenas uma face da moeda — que pode, por isso mesmo, ser mal avaliada. A despeito das fórmulas excepcionalmente enfáticas que Montaigne emprega contra as inovações poderem sugerir algo diverso, parece-nos que ele não pretende estabelecer aí nenhuma teoria geral do Estado (semelhante às que encontraríamos em contemporâneos seus, como Bodin). A primeira lição que o ensaio pretende extrair sobre o modo como o costume se esconde a si mesmo, adormecendo nossa percepção das coisas, é a de que estamos, reféns de sua ação, menos aptos do que supomos para teorizar sobre os fundamentos da ordem pública — e, por conseguinte, ainda menos para intervir na ordem pública com base naquilo que nos parecem ser seus fundamentos (especialmente em face da circunstância peculiar que Montaigne visualiza). É uma lição de cunho claramente cético e seus efeitos se refletem na afirmação de que o costume seria um fundamento da ordem pública. Em vista do tratamento a que se submete esse conceito no ensaio, essa afirmação pode ser compreendida em pelo menos dois sentidos, que nos parecem, afinal, complementares. Primeiramente, ela significa que 12. Ver, por exemplo, FRIEDRICH, 1968, e STAROBINSKI, 1989. Da literatura em língua portuguesa sobre o tema, destacamos CARDOSO, 1996, e SMITH, 1996. 151

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a adesão costumeira ao ordenamento existente de valores ou leis é a razão que podemos identificar, pela experiência, da manutenção desse ordenamento. Mas dizer que o costume é o fundamento significa igualmente dizer que, quando pretendemos ir além e descobrir razões que o justifiquem, de um modo mais sólido e objetivo, somos incapazes de encontrá-las. É o que Montaigne exprime com clareza, por exemplo, em III, 9, 959 — “[B] A conservação dos Estados é coisa que verdadeiramente ultrapassa nossa inteligência…” —, fazendo eco a esta imagem, que comanda as considerações do presente ensaio: [B] Há grande dúvida se se pode encontrar um proveito tão evidente na mudança de uma lei aceita, seja qual for ela, quanto há de mal em removê-la; de tal modo que uma ordenação pública [police] é como uma construção de diversas peças ajuntadas por uma tal ligação que é impossível abalar uma sem que o corpo todo se ressinta… (I, 23, 119)13. O alerta para a importância do costume é, assim, prioritariamente uma recomendação de prudência derivada da constatação de nossa ignorância. Para sabermos como intervir com segurança na ordem estabelecida seria importante que dispuséssemos de um conhecimento que nos informasse qual o efeito particular da intervenção em cada uma das “peças” de observância pública, que se apresentassem, para nós, juntas de tal modo que não pudéssemos intervir numa sem abalar o todo. Por que isso ocorre? Porque tal ordenação, tal como a pensamos conhecer, é na verdade a lição de um “traiçoeiro mestre” que impõe paulatinamente sua autoridade, impedindo-nos, por fim, de observá-lo diretamente: o modo como ele costura tal ordem se escondendo a si mesmo pode nos conduzir erradamente a supor que podemos extirpar o mal sem afetar a saúde geral do doente, como diz ele no mesmo ensaio. Eis por que as tentativas radicais de remediar os males do Estado apenas contribuíram, segundo Montaigne, para agravá-los, tal como mostrava, em seu entender, a experiência recente dos franceses. 13. Cf. III, 9, 956-962. 152

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Ademais, se prestarmos atenção ao modo como Montaigne restringe suas considerações à “experiência recente” da França (ainda que ele se exprima, talvez em virtude da urgência do problema, de uma forma particularmente taxativa, incomum nos Ensaios14), veremos que a experiência não surge, nesse contexto, como fundamento teórico capaz de produzir alguma teoria geral sobre o poder do costume na constituição dos Estados. Mesmo que a experiência possa fornecer um critério de ação mais confiável do que a mera especulação e que as observações válidas em vista dessa experiência particular possam, com plausibilidade, ser estendidas para outros casos, a experiência não constitui, para Montaigne, uma instância imediatamente universalizável na forma de uma “ciência”15. Seria, aliás, uma conclusão igualmente “traiçoeira” aquela segundo a qual seguir o costume surgisse como algo intrinsecamente bom, em vista da fraqueza da razão: pois, se ele confere alguma coesão à ordem estabelecida, também parece agir alastrando as doenças que teriam se originado de seu questionamento, criando um hábito de convivência com a degradação social16. Eis aqui mais um aspecto em que se revela o sentido principal do alerta cético de Montaigne: os fundamentos da ordem dada são mais pantanosos do que nos presumimos capazes de conhecer. 14. Em III, 9, 957-958, Montaigne escreve: “Não por opinião, mas em verdade, a política excelente e melhor para cada nação é aquela sob a qual é mantida. Sua forma e comodidade essencial depende do uso… Nada pressiona mais um estado que a inovação; a mudança por si mesma dá forma à injustiça e à tirania…”. Em seguida, porém, essa afirmação geral é circunstanciada; trata-se de alvejar a precipitação daqueles que procuram extirpar os males sem refletir o suficiente sobre o que é melhor para o paciente: “[C] O fim do cirurgião não é o de fazer morrer a carne má, mas sim o de encaminhar a sua cura…” (v. ibid.). Sobre o caráter de urgência com que os problemas atinentes à guerra civil se afiguram para Montaigne, ver FRIEDRICH, 1985, p. 128-129. 15. Ver, por exemplo, III, 13, 1065: “[B] A razão tem tantas formas, que não sabemos a qual nos ater; a experiência não as tem menos. A conseqüência que nós pretendemos extrair da semelhança dos eventos é incerta, porquanto eles são sempre dessemelhantes: não existe nenhuma qualidade tão universal nesta imagem das coisas quanto a diversidade e a variedade…”. Ver também 1070B. 16. Ver os comentários de Montaigne sobre sua experiência do recrudescimento da guerra civil no Périgord, ao longo de 1585, em III, 12, 1041-1042. 153

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Mas qual será, então, o estatuto de suas reflexões? Se tal leitura é adequada, o posicionamento de Montaigne parece estar exposto à seguinte objeção: se a ação do costume compromete nossas pretensões de teorizar sobre o fundamento da ordem pública, em que medida não seria a própria reflexão montaigniana ainda um produto da mesma “precipitação teórica” que denuncia no caso dos protestantes? Para compreender melhor o que se passa, convém reexaminar como ele interpreta o esquema conceitual cético em que se apóiam essas considerações. Em primeiro lugar, notemos que ressoam, ao longo de toda a discussão, elogios à preconização filosófica — a precisão é de Montaigne — de “seguir as leis e os costumes aceitos”. Mas, pelo que vimos, podemos dizer que ele compreende serem coisas diversas, de uma parte, a maneira pela qual individualmente cada um adota as leis vigentes e pensa justificar sua validade e, de outra, o modo como o costume, por meio de sua ação, cria coletivamente um “fundamento” para tais leis (sem que com isso elas se revistam de alguma superioridade intrínseca em relação a outras, aceitas por povos diversos). Retomando uma metáfora já empregada na “Apologia”, Montaigne contrasta a fraqueza do fundamento das leis à força da autoridade costumeira17, numa oposição que exibe por si mesma a silhueta da ação do costume: o fato de que as leis aceitas possam parecer respeitáveis e dignas de ser obedecidas, em vez de fracas e equivalentes a quaisquer outras, corresponde, a bem dizer, a um ocultamento desses fundamentos para aqueles que a elas aderem. Sem o saber, aqueles que lhes obedecem, admitindo-as como racionalmente superiores ou como verdades naturais, conferem-lhes sua autoridade pela própria obediência num grau maior do que poderiam presumir. 17. Ver II, 12, 583: “[A] As leis ganham sua autoridade da posse e do uso; é perigoso remontar à sua nascente: elas crescem e se enobrecem correndo, como os nossos rios. Segui-os contra seu curso até sua origem: não é senão um pequeno fio d’água dificilmente reconhecível, que assim se torna mais imponente e se fortifica ao envelhecer. Vede as antigas considerações que deram o primeiro impulso a essa famosa torrente, plena de dignidade, de honra e de reverência: vós as achareis tão superficiais e tão delicadas, que essas gentes que pesam tudo e o remetem à razão, e nada recebem por autoridade e a crédito, não é de surpreender que tenham seus juízos tão afastados do uso comum…”. Cf. I, 23, 116-117. 154

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As guerras de religião certamente representam, para Montaigne, uma crise de estabilidade do ordenamento legal. A alternância com que o partido protestante fora acolhido primeiramente na ordem legal para depois ser banido seria um dos aspectos dessa crise, pela qual a autoridade anteriormente conferida às leis pelos próprios agentes sociais, especialmente pelo vulgo, tenderia a se abalar18. Em vista disso, parece criar-se a necessidade de que o conselho filosófico de “seguir as leis do país onde nos encontramos”, que conta, como vimos, com a simpatia de Montaigne, dê lugar a uma interpretação mais ampla, sensível à percepção de como a autoridade do costume confere um fundamento relativo à ordem social que resiste aos dissabores da “fortuna guerreira” — numa medida que, por força da natureza dessa própria autoridade, não pode ser plenamente conhecida19. Para Montaigne, ela se encontra claramente presente na “solidez da santa palavra” propiciada pela religião, especialmente na medida em que ela poderia contribuir para corroborar o fundamento “místico” da autoridade das leis aceitas20. Certamente Montaigne não está se referindo ao fato de que a ordem legal se sustente pela intervenção direta de Deus, mas aludindo ao modo como aqueles que aceitam tais leis conferem, graças à autoridade dos dogmas da fé por eles aceitos, uma interpretação aos fundamentos que efetivamente desconhecem. Por oposição à mutabilidade das leis, que conduz o vulgo a ter sua crença oscilando como um catavento, a Igreja tradicional conduz o fiel por caminhos “comuns” e “bem 18. Para um exame das mudanças radicais de postura quanto à legalidade do calvinismo ao longo do século, ver CARDOSO, 1996, p. 173-179. 19. “[A] Não há nada sujeito a agitação mais contínua que as leis. Desde que eu nasci, eu vi três e quatro vezes mudarem as leis dos ingleses, nossos vizinhos, não apenas em matéria política, que é aquela que se pode dispensar de constância, mas acerca do mais importante assunto que possa haver, a saber, a religião… O que nos dirá dessa necessidade a filosofia? Que sigamos as leis do nosso país? Quer dizer, esse mar ondulante de opiniões de um povo ou de um príncipe, que me pintarão a justiça com tantas cores e a reformarão com tantas faces quantas forem neles as mudanças de suas paixões? Não posso ter o julgamento tão flexível…” (579). 20. Ver III, 13, 1072: “[B] Ora, as leis se mantêm em crédito não porque são justas, mas porque são leis. É o fundamento místico de sua autoridade, e elas não têm outro…” (itálico nosso). 155

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batidos” impedindo-o de se perder — caminhos que Montaigne dissocia (embora sutilmente) da fé em sua dimensão de verdade revelada21. Em contrapartida, de um modo mais direto do que o faz na “Apologia”, Montaigne contesta os reformistas por serem portadores de “afecções ambiciosas” cujo ímpeto se enraíza na vaidade e na presunção de querer impor suas opiniões, em detrimento da paz pública. Eis uma nova instância do tema cético da propéteia — a precipitação vaidosa pela qual o dogmático se agarra cegamente às próprias razões, sem medir suas eventuais fraquezas: [B] Para dizer francamente, parece-me haver grande amor de si e presunção de estimar as próprias opiniões a esse ponto que, para estabelecê-las, seja preciso reverter uma paz pública e introduzir tantos males inevitáveis e uma tão horrível corrupção de costumes como a que a guerra civil aporta, e as mutações de estado, em coisa de tal peso; e introduzi-las em seu próprio país… (I, 23, 120). Nessa recuperação do tema cético reflete-se, contudo, a maneira particular com que Montaigne focaliza os efeitos dogmáticos do costume. Em primeiro lugar, critica-se o modo como os reformistas, avaliando mal o poder demonstrativo da razão, supõem-se capazes de interpretar a verdade revelada e reformar a religião tradicional. Mas essa mesma cegueira teórica impede-os ainda mais de ver quais podem ser as conseqüências particulares de sua conduta diante da opacidade com que o costume ordena a sociedade. E a situação torna-se tanto mais delicada quanto menos capaz se é de avaliar a fragilidade do ordenamento costumeiro das coisas: 21. Ver 520A: “[A] … [A razão humana] não faz senão se extraviar por toda parte, mas especialmente quando se mete em assuntos divinos. Quem o sente mais evidentemente que nós? Pois, ainda que nós lhes tenhamos dado princípios certos e infalíveis, ainda que nós esclareçamos seus passos com a santa lâmpada da verdade que aprouve a Deus nos comunicar, nós vemos contudo diariamente como, por pouco que ela se equivoque no caminho ordinário, e que ela se desvie ou se afaste da via traçada e batida pela Igreja, ela imediatamente se perde, se atrapalha e se entrava, volteando e flutuando neste vasto mar das opiniões humanas, sem rédeas e sem destino. Tão logo ela se perde desse grande e comum caminho, ela vai se dividindo e dissipando em mil rotas diversas…” (520; itálicos nossos). Cf., no mesmo sentido, 579C. 156

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[B] Deus bem sabe: quantos, na nossa presente disputa entre protestantes e católicos, onde há centenas de artigos a suprimir e restaurar, grandes e profundos artigos, serão os que possam se vangloriar de conhecer exatamente as razões e fundamentos de um e de outro partido? É um número, se for, que não tem muito com o que nos perturbar. Mas toda essa massa vai em que direção? (I, 23, 122).

O otimismo racionalista que se espelha na conduta dos reformistas corresponderia, assim, a um aprofundamento do mesmo sono dogmático que o ceticismo, num primeiro momento, denunciaria num sentido apenas teórico. Se conhecessem melhor a maleabilidade da razão, poderiam não apenas desconfiar do poder demonstrativo que ilusoriamente atribuem às suas, mas sobretudo compreender que, a despeito disso, seus efeitos práticos dependem sobretudo da forma pela qual seus interlocutores as avaliam. Eis por que, nesse caso, a cegueira dogmática reclama uma posição de cautela radical: [B] Eu desgosto da novidade, tenha ela a face que tiver, e tenho razão de fazê-lo, tendo visto seus efeitos mui-desastrosos. Aquela que nos oprime há tantos anos não realizou tudo, mas pode-se dizer, com plausibilidade [apparence], que, casualmente [par accident], ela tudo produziu e engendrou — a saber, os males e ruínas que se fazem a partir de então sem ela e contra ela … (I, 23, 119). Mas em que medida essas considerações permitem elucidar o problema de seu próprio estatuto? Isso fica mais claro se se observar como elas são retomadas noutra chave conceitual. Explicando por que aderiu, a despeito de seus defeitos, ao partido católico, Montaigne afirma: O outro partido [calvinista] é bem mais rude, pois se põe a escolher e mudar, usurpa a autoridade de julgar e se deve julgar muito capaz de julgar o erro que elimina e o bem que produz. [C] Esta vulgar consideração me afirmou em meu lugar … [e me conduziu] a não carregar em meu ombro esse tão pesado fardo, de responder por um conhecimento de tal importância e ousar nisso aquilo que em são juízo eu não ousaria … nas coisas em que a temeridade de julgar não traz nenhum prejuízo: pareceu-me muito iníquo querer submeter as constituições e observâncias públicas à instabilidade da fantasia privada — a razão privada só tem jurisdição privada — e submeter às 157

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leis divinas aquilo que nenhuma política poderia fazer com as leis civis, ainda que a razão humana tenha aqui muito mais comércio … A capacidade extrema serve para explicar e estender os usos recebidos, não para desviá-los e inová-los … (I, 23, 121; itálicos nossos).

Essa passagem mostra que a cegueira dogmática dos reformistas, em seus desdobramentos teóricos e práticos, é uma incapacidade de ver que a “razão privada” tem uma jurisdição apenas “privada”. O que significa isso? Que as razões dos calvinistas valem apenas para eles mesmos, assim como a crítica cética de Montaigne só vale para ele próprio? Não se trata de nenhum relativismo dessa natureza. A limitação da jurisdição dessa razão não é aqui uma limitação teórica, apenas relativa à sua incapacidade de provar demonstrativamente as verdades que pretenderiam provar. Sua incapacidade é a de compreender que suas razões, a despeito de seu mérito teórico particular (desnecessário repetir que, contudo, esse erro filosófico de avaliação está na raiz de sua atitude), podem conduzir, uma vez disseminadas publicamente, a conseqüências que ultrapassam essa esfera de considerações (como lhes teria mostrado, à saciedade, a experiência das guerras civis). Trata-se de uma incapacidade de perceber que, no espaço público, as razões ganham uma dimensão retórica (isto é, um valor determinado pela circunstância relativa em que poderão ser compreendidas) que ultrapassa o valor que possuiriam segundo seu peso demonstrativo. Se, contudo, isso não passa despercebido ao cético, é em decorrência de sua prática de opor razões permitir salientar essa dimensão que permanece em segundo plano, se não oculta, àqueles que pensam dispor de um critério capaz de estabelecer a verdade. Eis por que, ao mesmo tempo em que preconiza esse exercício antinômico da razão como meio de se desfazer do “violento prejuízo do costume” e situar o juízo numa posição mais segura (v. I, 23, 117), Montaigne interpreta o critério prático do ceticismo como um convite à adesão “exterior” aos costumes recebidos, por oposição ao espaço “interior” que se reserva para a livre ação do juízo: Essas considerações não desviam, entretanto, um homem de entendimento de seguir o estilo comum; antes, pelo contrário, parece-me que todas as maneiras [façons] dele afastadas e particulares antes 158

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partem de loucura ou de afetação ambiciosa que de verdadeira razão; e que o sábio deve interiormente retirar sua alma da massa, e mantê-la em liberdade e poder de julgar livremente as coisas; mas quanto ao exterior, que ele deve seguir inteiramente as maneiras e formas recebidas. A sociedade pública não tem o que fazer com nossos pensamentos; mas quanto ao resto, nossas ações, nosso trabalho, nossas fortunas e nossa própria vida, é preciso emprestar-lhe, dispondo-os a seu serviço, ao das opiniões comuns, como esse bom e grande Sócrates, que desistiu de salvar a sua vida desobedecendo ao magistrado, mesmo sendo um magistrado muito injusto e iníquo. Pois é a regra das regras e a lei geral das leis que cada um observe aquelas que vigem onde ele se encontra … (I, 23, 118; itálicos nossos).

De um ponto de vista “privado”, o cético Montaigne pode bem admitir que sua adesão aos costumes não corresponde a uma crença dogmática. Mas supor que uma adesão cética, meramente “exterior”, pudesse oferecer um critério universal de adesão religiosa seria agir segundo o mesmo otimismo cego dos reformistas. Enquanto eles se aferram à necessidade de provar as verdades que julgam ter encontrado, o cético pode manter plenamente sua liberdade de julgar (cf. II, 12, 503-504), ainda que num nível meramente interno, e deve fazê-lo desse modo, especialmente se tal liberdade o permite ver que suas reflexões produzem conclusões diversas daquelas instauradas pelo costume coletivo, e que a desagregação do Estado em guerra civil deriva, como mostra a experiência imediata, do esfacelamento da autoridade precariamente instituída. O bom cético aqui, em suma, é aquele que compreende a necessidade de discernir, especialmente nessa circunstância, entre o âmbito em que as razões podem ser livremente discutidas e consideradas segundo seu “peso”, do ponto de vista da “verdade”, ou “interiormente” (mesmo que a interioridade não seja apenas a de um foro íntimo individual, em sentido estrito, mas, de modo geral, a de um registro discursivo em que a crítica do costume só encontra limites de ordem teórica), e o âmbito em que os costumes aceitos determinam uma situação de fato, atinente à ordem da “utilidade”, segundo a configuração “pública” que ganham as crenças que ele forja e o sentido que ganham as razões que o sustentam por parte daqueles que as exami159

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nam. Dizendo que o “sábio” deve proceder ao questionamento do costume, Montaigne não está preconizando um questionamento público universal do costume, nem presumindo que todos os homens possam fazê-lo adequadamente; ele pode estar, muito ao contrário, sugerindo que apenas alguns serão capazes de fazê-lo. Cabe, afinal, ao “sábio” cético compreender que, em vista do efeito coletivo do costume numa sociedade em que a autoridade política e a religiosa, como vimos, não diferem, ele deve ser o primeiro a respeitar os limites impostos por essa situação de fato. Eis o significado da adesão “exterior” do sábio aos costumes: trata-se de aderir às formas recebidas de um modo consciente, segundo uma autolimitação das razões privadas, que o próprio filósofo não pretende que possam constituir um paradigma universal para os cristãos existentes. Mas a distinção entre a adesão “exterior” e a liberdade “interior” significa que não se trata, para o cético, de abrir mão do juízo pelo qual seu critério de adesão aos costumes seja teoricamente o mais coerente. Trata-se, ao contrário, de projetar a crítica cética ao valor irreal que os dogmáticos conferem à razão no panorama das contingências históricas peculiares que Montaigne tem em vista e de reconhecer que os costumes, nessas circunstâncias, instauram um denominador comum para a ordenação da sociedade que se situa, num sentido prático, além do poder individual de questionamento. Aparentemente adaptando um argumento especial que Sexto apresenta como recurso extremo de defesa da posição cética, Montaigne escreve: [A] Quando me apresentam um novo argumento, cabe a mim estimar que, se não puder satisfatoriamente rebatê-lo, um outro a ele responderá: pois crer em todas as aparências das quais não sabemos como nos desembaraçar é mostra de grande simplismo. Ocorreria, desse modo, que o vulgo — [C] e nós todos somos do vulgo — teria sua crença girando como um cata-vento: pois sua alma, sendo mole e sem resistência, seria obrigada sem cessar a aceitar as novas impressões, a última sempre desfazendo o traço da anterior … (II, 12, 570-571)22. 22. Cf. HP I, 34. 160

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O que significa esta afirmação tardia — e aparentemente oposta ao que assinalamos: “nós todos somos do vulgo”? Por certo, ela não deve ser compreendida literalmente, uma vez que indiretamente Montaigne alude aqui àquelas mesmas que noutro texto se refere como almas “moles e sem resistência”: [A] Não é, eventualmente, sem razão que nós atribuímos à simplicidade e à ignorância a facilidade de crer e de se deixar persuadir: pois penso ter outrora apreendido que a crença é como uma impressão que se faz em nossa alma; e, na medida em que ela se encontraria mais tenra e sem resistência, seria mais fácil imprimir-lhe algo. [C] Ut necesse est lancem in libra ponderibus impositis deprimi, sic animum perspicuis cedere. [A] Eis por que as crianças, o vulgo, a mulher e os doentes são mais sujeitos a ser conduzidos pela orelha … (I, 27, 178)23. Diríamos que essa passagem pretende mostrar, em tom de brincadeira, que a relação entre o vulgo e o filósofo cético, no que tange ao uso da razão, seria, ao menos idealmente, a de uma franca oposição: a credulidade do vulgo, incapaz de julgar as coisas de modo criterioso e apto a se deixar levar ingenuamente pelas aparências de verdade, é antípoda da prudência cética diante da maleabilidade da razão e da aparente persuasividade de cada novo argumento. Mais ainda, podemos novamente ver que a consideração do poder do costume conduz Montaigne a uma elaboração da noção de dogmatismo: uma vez que ao uso da razão pode corresponder uma prática habitual mais ou menos freqüente, o dogmatismo não se limita aqui à idéia de que a admissão de dogmas é uma limitação particular do emprego da razão, mas identifica-se a uma incapacidade, que se poderia manifestar em diversos graus, de empregar plenamente as faculdades racionais. Se o cético pode se opor, nalguma medida, ao jugo do costume, e surpreenderse ante o aparentemente razoável24, também compreende que o vulgo 23. A citação provém de Academica, II, xii: “Tal como o peso necessariamente faz pender o prato da balança, a evidência faz o espírito ceder”. 24. Seja ante o que aceitamos ordinariamente, como quando os pirrônicos, segundo Montaigne, se valem dos argumentos da razão para arruinar a “aparência de experiên161

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dorme um sono dogmático de tal modo profundo que as tentativas de acordá-lo podem ter o efeito inverso de levá-lo a desacreditar inteiramente da autoridade pública25. É justamente essa experiência que o leva a compreender que, como não é possível ter a crença girando como um cata-vento, especialmente quando estão em jogo crenças que correspondem à dimensão “pública” pelas quais o costume consolida, à sua maneira, a ordem vigente, é preciso tomar uma decisão prática de aderir “externamente” às observâncias religiosas e leis vigentes, tal como se oferecem articuladas pelo costume — isto é, de um modo tal que, graças à sua ação, essa articulação mesma escapa de nossa capacidade de compreensão, no que tange aos seus possíveis desdobramentos: [A] Ora, do conhecimento desta minha volubilidade eu engendrei, por acidente, uma certa constância de opiniões, e quase não alterei as minhas primeiras e naturais. Pois, tenha a aparência [de verdade] que tiver a novidade, eu não mudo facilmente, de medo que tenho de perder na troca. E, posto que não sou capaz de escolher, faço a escolha de outrem e mantenho-me no lugar em que Deus me pôs. Se não o fizesse, não saberia me abster de rolar sem cessar. Assim, com a graça de Deus, eu me conservei inteiro, sem agitação nem crise de consciência, nas antigas crenças da nossa religião, através de tantas seitas e divisões que nosso século produziu … (569). Eis, afinal, o sentido em que “somos todos do vulgo”: por maior que seja a diferença com que o homem do vulgo e o sábio podem exercer suas faculdades racionais e, conseqüentemente, lidar com as supostas certezas que se apresentam, a superioridade do sábio não o torna imune aos ardis do costume e ele se defronta com situações que escapam de uma justa avaliação dos limites de seu próprio juízo. Tal narrativa tem um efetivo aporte biográfico, uma vez que Montaigne cia” (cf. 571A), seja ante aquilo que, em vista do que admitimos ordinariamente, nos surge como espantoso, como ocorre com nossa surpresa diante dos bárbaros “[que] não são em nada mais maravilhosos para nós do que nós o somos para eles, nem com mais ocasião…” (I, 23, 112A). 25. Ver novamente 439AB. 162

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teria outrora simpatizado com o partido reformista26. Sua argumentação revela a avaliação de que tal debate poderia arrastar seus participantes em direções diversas, conduzindo cada qual a uma crescente liberdade para julgar cada item de observância religiosa, desconhecendo o modo como se articulam aos demais. Se ele mesmo testemunhou de sua incapacidade de fiar-se no próprio juízo para atravessar o vendaval das razões contrárias das guerras de religião — “eu não saberia me abster de rolar sem cessar” —, o que não pensar da situação do vulgo? É nessa medida que a cegueira gerada pelo costume, considerada em sua devida extensão, convida a uma adesão “inteira”, ou em bloco, à religião tradicional (ainda que ela se faça por razões radicalmente diversas no caso do vulgo e no do sábio)27. Contudo, Montaigne diz explicitamente que sua adesão ao partido que lhe parece o “menos doente” não é apaixonada28. Ele não se furtará a criticar os inconvenientes desse partido, mesmo que veladamente, no que tange à crueldade e à violência de que os defensores da religião tradicional deram testemunho em massacres como o da Noite de São Bartolomeu29, e tampouco os católicos que, segundo ele, compartilham com os protestantes a presunção de submeter as “observâncias públicas e imóveis” à “instabilidade da razão privada”30. Sua adesão ao partido tradicional — 26. Ver, entre outros, FRIEDRICH, 1968, p. 25. 27. Ver I, 27, 182A. 28. Ver III, 9, 993B, III, 1, 792B. 29. Em I, 19, 668, por exemplo, Montaigne estende sua crítica à presunção dos reformistas à maneira como os católicos por vezes são conduzidos a excessos por suas paixões. 30. No ensaio sobre o costume, a despeito de criticar a rudeza com que os protestantes usurpam a autoridade de julgar, faz uma rara alusão ao sacrifício de Cristo no contexto de uma crítica ao modo como a cegueira dos costumes aceitos pode fazer correr o sangue dos inocentes (v. 120-121AB). Sobre esse mesmo ponto, ver outros argumentos em SMITH, 1996. Parecem-nos justas, de modo geral, suas qualificações ao modo como se pretende atribuir um conservadorismo a Montaigne e situá-lo como um aliado da Contra-Reforma, ainda que não nos pareça correto afirmar que ele se oporia à Liga Católica ainda mais enfaticamente que o faz relativamente aos protestantes (cf. III, 9, 993-995). 163

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por ele descrita como “certa constância de opiniões” que engendrou “casualmente” — é o claro resultado da adoção do costume como critério prático, no sentido preciso que ele adquire nessa reflexão. Não se trata, com efeito, de um critério teórico do qual se pretenda inferir uma norma de ação, mas do resultado de uma reflexão autocrítica acerca dos limites de cada avaliação teórica ante a situação engendrada pelo costume, do exame das alternativas empiricamente disponíveis e, a partir daí, de uma ponderação diversa acerca dos elementos em jogo. Por oposição ao “racionalismo” precipitado e imaturo dos que permanecem presos a uma perspectiva exclusivamente teórica, solidária da projeção de um poder mágico à razão, essa ponderação corresponderia antes a um “realismo” cético, se assim podemos nos expressar, que decorre de um desencantamento diante dessa imagem da razão, e dá lugar a uma observação mais cuidadosa dos critérios de racionalidade vigentes nos diversos homens, particularmente nos diversos agentes publicamente relevantes. Essa distinção cética entre as dimensões “privada” e “pública” da razão conduz a compreender que a esfera determinada por essa última, na medida em que é impregnada pela ação do costume, é forçosamente ambígua e imprecisa, o que contribui para conferir particular importância no horizonte determinado pelos fatos — pelos homens e pelo modo como compreendem diversamente o que seja a razão — como um ponto de partida e um eventual denominador comum da esfera pública com base no qual se pode agir. Disso não se segue um abandono dos valores aceitos (mesmo que seja o caso de rever os fundamentos daqueles que se adotam) ou das perspectivas intelectuais que o cético se vê levado a adotar por sua reflexão (estando sempre apto a avaliar os novos argumentos que lhe sejam oferecidos, no nível de sua reflexão “privada”), mas sim o reconhecimento de que, embora o espaço público constituído por tais crenças costumeiras e dogmáticas não seja o ideal de um ponto de vista cético mais estrito, é o espaço público possível, que cabe razoavelmente defender ante o modo pelo qual o dogmatismo em suas versões mais agudas se institui como uma ameaça de desagregação do Estado. Esse reconhecimento, em vez de conduzir o cético à inação (como freqüentemente se imagina), conduz à compreensão de que a ação envolve, por vezes, a ad164

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missão “exterior” do dogmatismo de certas crenças como um elemento da esfera pública (da qual é possível recuar no espaço de reflexão privado). Compreende-se assim como o ceticismo filosófico pode se harmonizar com a prática política de diplomacia e de tolerância que efetivamente o homem público Michel de Montaigne desempenhou junto ao príncipe de Navarra para a costura dos acordos que iriam pôr fim às guerras de religião e selar uma paz mais duradoura31. Tolerância, afinal, visível na mesma atitude autolimitadora que Montaigne impõe a seu ceticismo mediante a distinção entre os registros interno e externo: os céticos, como vimos, são aqueles que, mesmo valorizando a prática do debate, buscam sempre debater brandamente, sem a pretensão de impor a todo transe seu ponto de vista, mesmo quando constatam a precariedade das opiniões alheias32. 3.4. A opacidade dos fenômenos

A discussão epistemológica e a reflexão sobre a ação política são, assim, ligadas por um único fio condutor cético, no qual a consideração do papel do costume é central. É importante, porém, com base no que esse percurso nos oferece, tentar esclarecer o sentido em que a noção cética de adesão ao phainómenon como critério de ação aqui se apresenta. Segundo Sexto, a suspensão pirrônica não afeta o modo como somos passivamente movidos por nossas representações ou phantasíai — que o cético toma como virtualmente idênticas ao modo como naturalmente as coisas nos aparecem, àquilo que nos é phainómenon —, mas apenas os juízos concernentes à natureza essencial das coisas, independentemente de como as percebemos33. Mas, se a esfera do phainó31. CARDOSO (1996) destaca o episódio da conversão de Henrique III (hóspede e correspondente de Montaigne, que lhe fazia as vezes de conselheiro político) como gesto que, exemplificando a distinção entre as esferas pública e privada no âmbito das crenças religiosas, veio “selar as condições da pacificação final do país” e marcou a gênese do que denomina a “razão política moderna” (p. 193). Sobre a tolerância de Montaigne, ver FRIEDRICH, 1985, p. 127. Para uma leitura diversa, ver ainda CARDOSO, 1996, p. 191. 32. Cf. III, 8, 922-925BC. 33. Ver HP I, 17, 19 ss., 21 ss. 165

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menon é suficientemente vaga para abarcar tanto nossas afecções sensíveis, os objetos tal como nos surgem em nossa experiência, como nossas variadas ações mentais, aí compreendidos o uso da razão e da linguagem, dele também não se exclui a própria manifestação do costume, que, como vimos, o cético pirrônico entende seguir como um de seus aspectos, de modo não-dogmático. O que vimos aqui nos parece amplamente confirmar algo que já no primeiro capítulo anunciáramos: que a noção cética de phainómenon é objeto de uma interpretação filosófica particularmente rica nos Ensaios, e que vários de seus desenvolvimentos podem ser situados com base nela. Aceitar o phainómenon como critério de ação, em lugar das sciences dogmáticas, é sobretudo aderir aos fatos, que a razão pode facilmente encobrir e adulterar nas explicações fantasiosas pelas quais os tematiza, pretendendo oferecer conhecimento absoluto das coisas34. Num ensaio mais tardio, “Dos coxos” (III, 11), as mesmas idéias são retomadas: por oposição ao modo como os homens passam por cima dos fatos e, sem se certificar de sua ocorrência, empregam a razão, instrumento capaz de “montar cem outros mundos e achar seus princípios e estruturas”, para especular sobre as causas e conseqüências do que presumem ter ocorrido, cabe reconhecer que está perfeitamente ao nosso alcance a fruição dos fatos: [C] O conhecimento das coisas pertence somente àquele que tem a condução das coisas, não a nós, que apenas as recebemos passivamente [qui n’en avons qui la souffrance] e das quais temos um uso perfeitamente pleno, segundo nossa natureza. O vinho não é mais agradável àquele que conhece suas faculdades principais. Ao contrário, o corpo e a alma interrompem e alteram o direito que temos de uso do mundo, aí imiscuindo sua pretensão de ciência. Determinála e sabê-la, como provê-la, pertence à regência e à mestria; à inferioridade, sujeição e aprendizagem pertencem o fruir e o aceitar … (III, 11, 1026). De modo geral, a reflexão cética, nos Ensaios, mostra-se inteiramente compatível com a idéia, freqüentemente evocada, de que o ho34. Cf. 571A, 541A. 166

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mem deve se reinserir na natureza segundo sua dimensão humana, e da qual se extravia por obra das ficções de seu espírito: [A] Eu não desmereço o uso que nós tiramos do mundo, nem duvido da potência e da uberdade da natureza, nem de sua aplicação à nossa necessidade. Vejo bem que os lúcios e as andorinhas acham nela o bastante. Eu desconfio das invenções de nosso espírito, de nossa ciência e da arte, em favor da qual nós abandonamos suas regras, e do qual não sabemos manter moderação nem limite … (II, 37, 766)35. A reflexão cética, em suma, converte-se numa defesa filosófica da busca dos fatos naturais, contra a alienação dogmática propiciada por aquilo a que freqüentemente alude pelo simples termo “filosofia”36. É através da suspensão, como vimos, que o cético se faria homem vivo, raciocinante, fruindo de todos os prazeres e comodidades naturais, empregando e servindo-se de todas as peças corporais e espirituais, “em regra e de direito” (cf. 505A). Se Montaigne, de sua parte, disser que o seu “metier é viver”, do qual o registro de experiências e usos pessoais de que se compõe seu livro se pretende expressão37, não deveremos ver aí ainda um resultado do mesmo movimento reflexivo, de um produto 35. Este ensaio, em que Montaigne trata de como o hábito lhe ensinou a conviver com a doença e empreende uma irônica crítica aos médicos, inspirada em Corneille Agrippa, oferece-se a diversas outras aproximações com o tema cético da adesão ao phainómenon como critério prático. Em HP I, 29-30, por exemplo, Sexto apresenta e explica a noção pirrônica da metriopátheia (moderação das afecções), em sua relação com a imperturbabilidade (ataraxía), reconhecendo que o cético não é totalmente isento de perturbações, pois é afetado pelo que se impõe involuntariamente, como o frio e a sede. Contudo, diz Sexto, os céticos procedem de modo mais moderado diante dessas afecções do que as pessoas comuns, na medida em que não acrescenta a essa experiência a crença de que aquilo que o aflige seja um mal “por natureza”. Montaigne, igualmente, no início de II, 37, narrando o modo como aprendeu a lidar com sua “pedra” nos rins, opõe as regras “supérfluas” que diversas filosofias propõem para o enfrentamento do mal ao modo como ele próprio, por força do costume, convive com seu mal procurando não o amplificar pela sua razão (v. II, 37, 763). Sobre o mesmo tema, ver II, 6, 372. 36. Ver, por exemplo, III, 13, 1073C, em que Montaigne critica o modo como os filósofos falsificam a natureza, apresentando-a sob uma face “… demasiado colorida e sofisticada, donde nascem tantos retratos diversos de um tema tão uniforme…”. 37. Ver II, 6, 378-379C. 167

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do mesmo “naturalismo cético” que se faz presente em Montaigne como resultado dessa temática? Não obstante, o ceticismo é a filosofia mais útil e verossimilhante por apresentar o homem “nu e vazio, reconhecendo sua fraqueza natural” (505-506A). Essa afirmação cética da natureza é, nessa medida, inteiramente vinculada ao reconhecimento de nossos limites em conhecê-la, de que a apreendemos de modo sempre precário, e relativo aos limites humanos e individuais que se impõem a nós. Por isso, o modo como a vida comum seria determinada pela ação do costume, sempre presente num grau maior do que o poderíamos reconhecer, deveria oferecer uma precaução a mais no que tangesse à caracterização desse retorno filosoficamente esclarecido (a despeito do que as alusões à filosofia poderiam sugerir) como algo que se distinguisse da pretensão de dispor de um efetivo conhecimento da natureza. Dela teríamos apenas um certo uso — no qual estaria incluído certamente o de nossas faculdades cognitivas, segundo seus limites naturais, e a posse de crenças e opiniões (que deveriam, portanto, ser vistas como parte desse uso que só poderíamos chamar de conhecimento de modo sempre impreciso e, nalgum grau, injustificado). Tal oposição é um aspecto particularmente sublinhado por Montaigne, na “Apologia”, em sua explicação do critério cético de ação. Ali, uma vez mais, ele articula elementos pirrônicos e acadêmicos, o phainómenon que permite ao cético pirrônico se portar nas ações da vida da maneira comum e a adesão ao probabilis proposta pelos acadêmicos, como partes de uma única concepção coerente: [C] Assim, não há seita que não seja obrigada a permitir ao seu sábio que admita muitas coisas não compreendidas, nem percebidas, nem assentidas, se ele quer viver. E, quando ele parte ao mar, segue essa decisão, ignorando se ela lhe será útil, e se fia no fato de o barco ser bom, o piloto experimentado, o tempo favorável. Circunstâncias somente prováveis, segundo as quais ele é obrigado a seguir e se deixar conduzir pelas aparências, desde que elas não lhe oponham expressa contrariedade. Ele tem um corpo, ele tem uma alma, os sentidos o impelem, o espírito o agita. Ainda que ele não encontre em si essa própria e singular marca para julgar, e que ele perceba que não deve engajar seu assentimento, uma vez que possa se tratar de um falso 168

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semelhante ao verdadeiro, ele não deixa de conduzir os afazeres de sua vida plenamente e comodamente. Quantas artes não há que fazem profissão de consistir mais na conjectura do que na ciência, que não decidem acerca do verdadeiro e do falso e seguem somente o que parece [ser o caso]? Há, dizem eles, o verdadeiro e o falso, e temos com o que buscá-los, mas não há uma pedra de toque para decidir. Vale bem mais para nós deixarmo-nos conduzir sem inquirir, segundo a ordem do mundo … (505-506)38.

Em suma, esse conjunto de textos deixa entrever um ceticismo no qual se conciliariam harmoniosamente a suspensão do juízo e a plena adesão à esfera da vida prática. Todavia, a natureza dogmática com que o costume se impõe pode sugerir que, se não na esfera pública, ao menos no âmbito da reflexão privada, essa adesão ao que nos aparece jamais se isenta inteiramente de uma natureza problemática. Não é o costume, segundo Montaigne, uma instância responsável pelo engendramento de uma concepção dogmática das coisas, exatamente na medida em que nos conduz a aceitá-las como se fossem meramente naturais, e normalmente presente nos juízos que fazemos sobre o que é a natureza num grau maior do que podemos perceber? Poderia, nessa medida, tal ceticismo corresponder plenamente à formulação sextiana segundo a qual o cético, por meio de sua suspensão, crê “cessar plenamente de dogmatizar” (HP I, 12)? Embora nos pareça que a resposta aqui deva ser afirmativa, a tensão conceitual criada pela presença das tendências dogmatizantes do costume, tal como Montaigne as detecta, convida-nos a observar que a adesão “não-dogmática” ao phainómenon por ele implicitamente proposta possui traços peculiares. Sexto expõe o phainómenon como critério prático dos pirrônicos de modo deliberadamente vago, aludindo a aspectos variados com que podemos nos referir a um aparecer involuntário das coisas, aquém de toda tematização filosófica. O reconhecimento inevitável de sentirmos sede quando a sentimos e o modo como somos movidos à piedade perante determinado fato (graças, eventualmente, a nos situarmos em de38. Tal descrição baseia-se na exposição de Cícero acerca da doutrina de Carnéades das probabilia como guia para a conduta na vida, apresentada em Acad. II, 99 ss. 169

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terminada cultura e termos determinada formação) são apenas aspectos diversos de um mesmo aparecer involuntário de certas coisas ao longo de nossa experiência. Tal exposição não sugere, em momento algum, que possa haver uma desarmonia intransponível no modo como eventos “costumeiros” e eventos “naturais” possam lado a lado se alojar na esfera do phainómenon (embora tampouco exclua essa possibilidade). Os textos de Montaigne que citamos indicam claramente que sua reflexão se apropria desse critério prático dos pirrônicos; porém, se o costume se mistura com o primeiro leite que sorvemos na infância, é preciso reconhecer que a tarefa cética de “reavermo-nos de suas presas e voltarmos a nós mesmos para refletir acerca de suas ordenações” (cf. I, 23, 115) não haveria de ser uma tarefa fácil, nem mesmo, ao que parece, humanamente factível de modo cabal e completo. As reflexões tardias que reconhecem no costume uma “segunda natureza”, não menos poderosa que a primeira, parecem estar preparadas, no seu essencial, pelas reflexões prévias sobre o império do costume em I, 2339. Mais do que isso, não apenas uma depuração absoluta do costume não parece passível de ser humanamente realizada (ainda que teoricamente sua possibilidade não gere contradição), mas o modo como o costume se converte numa segunda natureza faz dele, em certa medida, ainda um produto da natureza40. A concepção montaigniana de natureza, com efeito, parece-nos possuidora de uma riqueza e de uma complexidade que até o momento não foram objeto de um exame satisfatório. Se há, por certo, um aspecto otimista de seu naturalismo, que reconhece nessa entidade da qual dependemos inteiramente — a “Mãe Natureza”, tal 39. Ver III, 10, 1009-1010. Segundo Jean Céard, dever-se-ia, ao contrário, constatar uma “mudança profunda” no pensamento de Montaigne sobre o costume ao longo da evolução dos Ensaios: ele passaria de uma oposição resoluta entre o costume e a razão (ou, igualmente, a natureza) à idéia posterior de uma conveniência em guiar-se pelos costumes, que, por sua vez, são submetidos às leis naturais (1992, p. 26 ss.) Pensamos que, em vez disso, seria melhor nos referirmos, na melhor das hipóteses, a uma mudança de ênfase: ainda que a idéia de uma regularidade da natureza seja cada vez mais destacada a partir de 1588, ela já se faz plenamente presente na edição de 1580 (cf., p. ex., II, 12, 459A), bem como o reconhecimento do modo ambíguo como tendemos a tomar o meramente costumeiro igualmente como natural ou como razoável. 40. Ver ibid. 170

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como a ela por vezes se refere — uma transcendência que talvez ocupe, nalguma medida, o lugar do Deus cristão, trata-se, ao mesmo tempo, de uma instância que possui leis e regularidades próprias que escapam a nossas tentativas de abarcá-la por meio de nossas faculdades cognitivas. Aquilo que, segundo Montaigne, nos surge como natural não é mais do que uma imagem de nossa limitação relativa em apreender mais profundamente o que nos aparece: “[C] Nós dizemos que é contra a natureza o que surge contra o costume: tudo é sempre segundo a natureza, seja o que for. Que essa razão universal e natural nos livre do erro e do espanto que a novidade nos aporta” (II, 30, 713). Tal erro, portanto, é produto de nossa inserção singular e limitada numa natureza que nos abarca e nos transcende, na qual tudo tem o seu lugar, mesmo o que nos parece inútil41; uma natureza indefinidamente capaz de frustrar as imagens que dela humanamente produzimos. Essas reflexões tardias, no mais, se harmonizam perfeitamente com as considerações do ensaio “É loucura reportar o verdadeiro e o falso à nossa capacidade” (I, 27), em que, como vimos, a crítica ao modo como confundimos o verossímil e o verdadeiro vem de mãos dadas com o reconhecimento do poder infinito da mãe natureza, ao qual pretendemos insensatamente prescrever limites42. É difícil, em face do laconismo e da vagueza já mencionada dos textos sextianos, avaliar a exata medida em que essa noção de natureza seria diversa ou incompatível com aquela que ali subjaz. De todo modo, o domínio do aparecer natural das coisas parece emergir na reflexão de Montaigne como portador de uma opacidade e uma espessura próprias (que não parecem, à primeira vista, discerníveis na transparência que aparentam ter os conceitos pirrônicos que o descrevem, mesmo que não haja incompatibilidade conceitual, a propriamente dizer, entre esses dois autores). Tal opacidade corrobora, todavia, nossa impossibilidade de admitir que teríamos acesso às coisas tal como elas são naturalmente43, posto que só as conhecemos, ademais, segundo o modo como delas 41. Ver III, 1, 970B. 42. Ver I, 27, 179A. 43. Ver, por exemplo, II, 20, 673: “[A] A fraqueza de nossa condição faz com que as coisas, em sua simplicidade e pureza natural, não possam cair em nosso uso…”. 171

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se apropriam nossas faculdades de conhecer44. Não percamos de vista que isso não se opõe, contudo, ao modo como Montaigne entende que a reflexão cética possui uma dimensão naturalizante, possibilitandonos recuperar o mundo dos fatos, do qual nos alienam as fantasias produzidas pelos filósofos dogmáticos para explicar as coisas. Se nossas percepções da natureza estão impregnadas pelo costume de modo tal que a pretensão de ter acesso a ela independentemente desse aporte tende a se mostrar ilusória, apontar a presença do costume conjuga-se com a denúncia de nossas tendências a atribuir um poder irreal a nossa capacidade de conhecer a verdade e, assim, de pretendermos ilusoriamente nos evadir de nossa condição natural — tal como Montaigne enfaticamente sublinha em várias passagens da “Apologia”45. Nesse sentido, talvez se possa dizer que a tarefa mesma de uma identificação exaustiva do poder do costume não seria senão outro aspecto da mesma presunção exacerbada de alegar um conhecimento de que não somos capazes — posto que sua conseqüência não seria outra que determinar a medida em que a natureza se apresentaria de modo absoluto. Assim, se o costume nos embala num sono dogmático, dele despertamos sempre num sentido provisório e correspondente aos poderes limitados de nossas faculdades; mas esse despertar não é senão o modo como nos tornaríamos mais conscientes da inescapável relatividade de nossa apreensão do que denominamos “natural”. Por conseguinte, caberia admitir que, segundo essa perspectiva, o assentimento prático do cético se faz de modo intrinsecamente provisório, seja qual for o conteúdo desse assentimento; tal assentimento não poderia abolir jamais a possibilidade de que, ao menos em princípio, uma reflexão mais aguda fosse capaz de detectar alguma ação do costume onde ela não é momentaneamente reconhecível. Fossem as faculdades perceptivas mais atiladas e libertas do sono dogmático, tudo, 44. Ver, por exemplo, I, 14, 51A, II, 12, 562A, 598A, 599A; I, 50, 302: “[C] As coisas, elas mesmas à parte, têm talvez seu peso, medida e condição, mas interiormente, em nós, [a alma] lhes talha como bem entende…”. Aprofundaremos esse exame adiante, no capítulo VI. 45. Ver, por exemplo, 452A. 172

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no limite, lhes pareceria “milagre”, mesmo que não fosse possível agir num mundo que permanentemente frustrasse nossas expectativas acerca de suas regularidades. Esse caso imaginário, que Montaigne figura com um sábio ideal, aponta a distinção entre um plano de certezas práticas e um plano da “ciência”, ao qual não temos legitimamente acesso; estamos humanamente fadados a aceitar, como critério para a ação, um número indefinido de certezas que, independentemente do que possam vir a representar acerca das coisas em si mesmas, são requeridas pela fruição plena da vida. Eis por que não vemos contradição quando Montaigne, de uma parte, reconhece um efeito dogmático do costume e, de outra, admite a importância de assentir a ele, segundo a forma como ele se manifesta a cada um de nós, como uma via importante para a obtenção da tranqüilidade46. Do mesmo modo que, em certas passagens, ele afirma que permaneceu seguindo seus moeurs ou suas tendências naturais47, diz em outras que somos incapazes de nos contrapor às paixões e aos vícios que se enraizaram em nós por um longo hábito, e que foi ele próprio incapaz de corrigir sua natureza (num contexto em que a relação entre esta e o costume era particularmente difusa)48. Ao fazê-lo, Montaigne não está abandonando seu ceticismo; está apenas pondo em ação o critério cético para a inserção na vida prática, tal como o compreende no nível da reelaboração pessoal dos conceitos céticos. Sua reflexão cética observa a aceitação dos costumes e da natureza como casos de aplicação de um mesmo critério, em vista do qual o reconhecimento de limites impõe a aceitação daquilo que se nos oferece. Não há, ao menos desse ponto de vista, uma diferença essencial entre o modo como se trata de assentir “externamente” aos costumes aceitos (em vista da impossibilidade prática de subvertê-los, tal como observamos, e ainda que a razão que conduz a essa aceitação dependa justamente do modo 46. Ver II, 37, 759A, III, 13, 1080B ss. Em III, 3, 818B, entretanto, Montaigne preconiza como uma importante capacidade a de não nos atarmos muito fortemente à nossa compleição, mas termos a maleabilidade de nos adaptar a diversos usos, sem ser obrigados a proceder segundo um único modo de vida. 47. Além da passagem que citamos em epígrafe ao início (546A), ver II, 17, 638. 48. Ver III, 2, 908; III, 12, 1058-9. 173

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dogmático com que são coletivamente aceitos) e o de assentir àquilo que nos aparece, num plano individual, não como uma tese dogmática, mas simplesmente como “irrecusável” (em vista de nossa incapacidade de superar determinado hábito ou mesmo de reconhecer que o hábito esteja mais uma vez se impondo sobre o que nos parece simplesmente uma percepção natural). É claro que a adesão prática aos costumes dogmáticos, com os quais o cético não comunga nem passa por isso a comungar, em vista dos limites impostos pela “razão prática”, é diversa, ao menos em seu conteúdo, daquela que privadamente o mesmo filósofo cético dá a um hábito seu que se impõe, a uma paixão que se manifesta, a uma percepção que se apresenta involuntariamente ou mesmo a uma opinião que se impõe como mais verossímil que outra. Em todos esses casos, o estatuto do assentimento é o mesmo: ele é, nalgum grau, justificado pela necessidade de agir, em vista de limites que, maiores ou menores, correspondem ao modo relativo com que nossas faculdades cognitivas se podem exercer. Se esta leitura é correta, ao mesmo tempo em que tal concepção oferece mais um aspecto do esforço sistemático de Montaigne em proceder a uma reconstrução coerente e de posição em prática do ceticismo antigo, ela nos permite discutir sua eventual proximidade da filosofia cartesiana. Além das evidências factuais que estabelecem o contato de Descartes com textos pirrônicos, e notadamente com as obras de Montaigne e de Charron — filósofo este que escreveu sua obra De la sagesse (1601-1604) sob reconhecida inspiração do ceticismo que encontra em Montaigne —, tem-se buscado recentemente examinar a presença de elementos provenientes das obras desses dois últimos na formação do pensamento cartesiano49. Mesmo que a relação mais geral entre as filosofias de Montaigne e Descartes seja de oposição — na exata medida em que se opõem um filósofo que pretende sustentar um posicionamento cético e outro que pretende demonstrar verdades me49. Sobre o contato de Descartes com o ceticismo e sua intenção de oferecer uma solução à dúvida cética, ver particularmente POPKIN, 1979, esp. cap. 9 e 10. Segundo Popkin, Descartes exprimiu grande interesse pelo ceticismo da época, tendo lido Cornelius Agrippa na juventude e demonstrado familiaridade com os escritos de Montaigne e Charron à época da redação do Discurso do método. 174

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tafísicas, embora levando em consideração os problemas propostos pelos céticos —, é possível, ainda assim, traçar vários pontos de aproximação (que muitas vezes contribuirão sobretudo para melhor visualizarmos a oposição entre essas filosofias)50. Se, quanto à moral provisória cartesiana, existem evidências de que foi concebida diretamente com base na leitura do texto de Charron51, parece-nos oportuno aproximar o modo como Montaigne interpreta a adesão cética ao phainómenon (em face do problema constituído pela ingerência do costume no que julgamos natural) daquilo que Descartes qualifica como o domínio das certezas práticas ou morais — certezas cujo assentimento se justifica pelas exigências da vida prática, sem dispor da garantia de que possuirão apenas as verdades claras e distintas da ciência, depois de submetidas ao crivo da dúvida metódica. Há dois aspectos particulares que nos parecem justificar essa aproximação. Primeiramente, em ambos os casos, o fato de admitir alguma crença segundo esse regime “prático” implicaria isentá-la, ao menos provisoriamente, de valor epistêmico, e recusar a pretensão de que ela poderia ser tomada como critério para dizermos o que as coisas efetivamente são em si mesmas 50. RODIS-LEWIS (1999) acrescenta aos comentários de Popkin outras evidências da leitura de Montaigne por Descartes, que a conduzem a sustentar que a filosofia desse último, em mais de um aspecto, se apresenta como resposta à dúvida cética de Montaigne (v. p. 80). 51. Parece possível, contudo, constatar que diversos elementos provenientes da reflexão moral cética se deixam constantemente entrever, em formas e graus diferentes, nos diversos escritos filosóficos de Descartes. Segundo RODIS-LEWIS (1999), a moral provisória, proposta com base na leitura de Charron (por volta de 1620), atende a uma exigência de separar o domínio das exigências concretas da vida e da ação da radicalidade com que, por influência da discussão com os céticos, se põe, para ele, a crítica contra os erros na busca da verdade. Isso parece se confirmar no Discurso do método, particularmente na primeira parte, ao descrever, em termos bastante afeitos à dúvida acadêmica, sua experiência de contato com a filosofia tradicional, na qual nada encontrou que não fosse duvidoso (cf. Oeuvres, DM, Primeira parte, p. 96). E, ainda que posteriormente sua filosofia represente para ele, obviamente, uma superação desse diagnóstico, é curioso que, no âmbito em que a razão não pode operar plenamente segundo os critérios de clareza e distinção (por exemplo, ante a necessidade de agir diante de circunstâncias que não conhecemos plenamente), perdurem, ainda que num regime provisório, os traços da mesma “verossimilhança” que outrora ele aceitara como critério (v., p. ex., ibid., Tratado das paixões da alma, art. 146, p. 626). 175

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(quer o possamos fazer de outro modo ou não). Em segundo lugar, mais especificamente, também para ambos a certeza prática é comprometida em seu poder epistêmico, ao menos em parte, por causa da ingerência do costume. Nas Meditações, é visível a oposição entre, de um lado, o exercício da dúvida como meio de se contrapor ao modo como os prejuízos do costume se impõem com aparência de certeza e, de outro, quando se impõe a necessidade de suspender a marcha reflexiva da investigação metafísica (tal como ocorre ao final da Primeira Meditação), e a aquiescência às mesmas opiniões costumeiras e irrefletidas em vista das quais é preciso seguir o transcurso da vida comum52. Isso não faz, insistamos, de Descartes um cético nem de Montaigne um cartesiano avant la lettre, mas, como dissemos, trata-se de filósofos cuja oposição pode ser mais bem compreendida se se prestar atenção ao modo como seu vocabulário conceitual se afina em uma confrontação filosófica em torno do ceticismo. Segundo Descartes, o entendimento, diante da dúvida hiperbólica, prontamente encontra verdades inabaláveis que não apenas estão além daquilo que o costume nos impõe, mas também permitem suplantar a dúvida cética. Em contrapartida, poderíamos antever que o projeto cartesiano de transcender a esfera das certezas práticas ofereceria, em princípio, para Montaigne, um exemplo das armadilhas da razão, iludindo-nos sobre sua pretensão de reconhecer verdades. Uma última precisão se faz importante acerca da relatividade com que o cético assume crenças e opiniões, segundo esse critério, em vista de sua prática suspensiva. Dizer que, de um ponto de vista prático, o cético assente a crenças de um modo “relativo” a suas capacidades cognitivas finitas não significa dizer que ele não lhes dê um assentimento integral, nem que todas as crenças a que assente se situem num mesmo plano a despeito de seu conteúdo. Dado que “os olhos humanos não podem perceber as coisas senão segundo as formas do seu conhecimento”, Montaigne pode facilmente alegar que a pretensão de conhecimento acerca dos deuses e dos mecanismos internos da natureza forja apenas “sonhos e fantásticas loucuras” (cf. 535-536). Porém, 52. Cf. Descartes, Oeuvres, p. 156, 164, 171. 176

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mesmo aquilo que, em vista dessa crítica, poderia nos aparecer, em oposição, como verossímil deve ser visto com desconfiança. Nesse nível, o ceticismo conduz Montaigne, de modo geral, a uma recomendação de prudência e moderação, não apenas em vista das novidades que nos pareçam eventualmente persuasivas, mas também em relação às crenças e opiniões a que aderimos (v. 563-564A). Nesse sentido, o ceticismo de Montaigne aponta na direção de um exercício autocrítico constante, pelo qual suas opiniões se submetem à prova diante das que lhes são contrárias. Retomando a mesma crítica do verossímil que observamos no ensaio I, 27, ele escreverá, mais tardiamente: [B] Eu entro em conversação e discussão com grande liberdade e facilidade, posto que a opinião encontra em mim um terreno pouco propício para penetrar e lançar longas raízes. Nenhuma proposição me surpreende, nenhuma crença me ofende, seja qual for a contrariedade que houver com a minha. Não há fantasia que seja tão frívola nem tão extravagante que não a ache compatível com a produção do espírito humano. Nós, que privamos nosso juízo do direito de sentenciar [faire des arrests], observamos brandamente as opiniões diversas … As contradições portanto dos julgamentos não me ofendem nem me alteram, elas apenas me despertam e me exercitam… Quando me contrariam despertam minha atenção, não minha cólera; eu avanço para aquele que me contradiz, posto que me instrui … (III, 8, 923-4). Estamos diante de uma filosofia que, como veremos melhor, concebe-se essencialmente como uma prática relativa à capacidade daquele que filosofa de estabelecer a suspensão; uma prática que deve, portanto, fazer face, aceitando-os ou repondo-os em questão, tanto aos limites privados com que se defronta como aos limites públicos impostos pelo modo como o costume os constitui coletivamente. Discutiremos no capítulo VI alguns aspectos dessa primeira ordem privada de limitações e especialmente suas conseqüências com relação à compreensão da noção de epokhé nos Ensaios. Por ora, ater-nos-emos às limitações de cunho coletivo, que conduzem Montaigne a recusar certos interlocutores como inadequados para uma verdadeira discussão filosófica. Importa ver como essa ordem de limitações se articula ao uso de expedientes paradoxais por Montaigne em seus textos. 177

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CAPÍTULO IV

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No capítulo anterior, observamos como as reflexões de Montaigne sobre o costume se articulam ao critério cético de ação: sua ingerência naquilo que nos aparece como verossímil ou natural nos impede de admitir que estejamos diante de conhecimento das coisas, sem que, com isso, esteja vedada a plena adesão às crenças e aos costumes na medida em que nos facultam um pleno uso das coisas tal como relativamente nos aparecem. Vimos também, contudo, que o costume pode se impor diversamente a cada um (em vista de como cada qual se mostra capaz de se evadir de suas presas e descobrir a máscara que ele projeta nas coisas), o que conduz a uma importante distinção entre o assentimento “exterior” ou “interior” àquilo que o costume impõe. Adotando-o como critério de ação, o cético compreende a necessidade de assentir — externamente — a crenças costumeiras que ele mesmo julgaria inverossímeis, em vista de sua utilidade para a manutenção da ordem pública. Isso não significa, porém, que as crenças e os valores que ele adota interiormente representem mais do que o resultado provisório, e indefinidamente revisável, do exame autocrítico acerca daquilo que o 179

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costume lhe conduz a aceitar segundo seu próprio juízo — exame esse que, a rigor, parece não poder ser levado a cabo de forma definitiva, sempre refletindo o limite relativo das capacidades daquele que o empreende, como veremos melhor adiante. Por ora, importa examinar a maneira como a distinção entre esses dois sentidos diferentes em que a reflexão de Montaigne preconiza a adesão ao costume é importante pode ter conseqüências para o modo como se explicita seu ceticismo e, por conseguinte, para a investigação sobre sua “novidade” filosófica. Vimos ainda que a aceitação “externa” das crenças costumeiras pelo “sábio” não significa uma limitação teórica do ceticismo; ao contrário, ela corresponde à delimitação de um âmbito privado e “interior” do juízo no qual ele disporia, em princípio, das melhores condições de liberdade para considerar as coisas segundo sua “verdade”. Tal é o âmbito em que seria lícito julgar as opiniões segundo seu peso próprio, como diz Montaigne, sem levar em conta o valor que ganham em vista dos que as adotam; é também o âmbito em que a reflexão cética poderia plenamente vigorar, e ser explicitada segundo o sentido filosófico preciso de suas conseqüências. Essa oposição corresponde, assim, precisamente ao modo pelo qual a reflexão cética de Montaigne define, para si mesma, um âmbito de rigor, por oposição à esfera na qual o problema da aceitação de crenças sofre interferência da ordem da “utilidade”, e, nessa medida, dos valores coletivamente estabelecidos, segundo as determinações dogmáticas que comportam. O mesmo espaço público em que os reformistas equivocadamente pretendem rebater os dogmas costumeiramente aceitos seria aquele em que, de modo mais geral, inviabiliza-se a interlocução filosófica, tal como concebida por Montaigne, segundo seus próprios critérios, e, quão mais imperiosa fosse a vigência das razões da ordem da utilidade, tanto mais essa discussão deveria levar em conta, no modo como se explicita, a força particular com que as opiniões costumeiras se impõem, ao menos no que tange aos costumes associados à ordem pública. Porém, ser capaz de distinguir teoricamente as dimensões do “externo” e do “interno” — como faz Montaigne, de passagem, no ensaio sobre o costume — não é o mesmo que dispor de uma linha demarcatória plenamente clara entre elas ou admitir que seria possível estabele180

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cê-la. Assim, mesmo que tal esquema teórico ofereça uma chave geral para determinar diretrizes para a ação (especialmente na medida em que se pretende atravessar tal linha demarcatória), é importante, para compreendermos melhor a maneira como esse critério se materializa, segundo a compreensão de Montaigne, observar a forma pela qual seu juízo se explicita em vista de obstáculos “externos” da natureza aqui vislumbrada, indicados por seu próprio texto. O campo da defesa da religião revela-se particularmente digno de atenção, segundo esse novo enfoque. Embora essa diretriz cética de ação se traduza, como vimos, numa defesa em bloco da religião costumeira, esse simples fato certamente não garante que a autoridade do costume, tal como externamente ele se impõe, e a de seu próprio juízo possam ser sempre acolhidas de modo harmônico, a despeito da clareza com que se distinguem os sentidos diferentes da adesão. Mesmo que sua defesa “exterior” da religião se traduza numa declaração de submissão ao conjunto completo dos artigos de fé da Igreja tradicional, Montaigne igualmente explicita, ainda que com a devida cautela, noutras passagens sua recusa em se submeter integral ou incondicionalmente à autoridade dos tribunais eclesiásticos, entre as quais a mais eloqüente seja talvez a passagem em que ele se contrapõe às ameaças que a Inquisição lhe teria dirigido, graças à dúvida que professa relativamente aos testemunhos fantásticos que, uma vez aceitos como verdadeiros, serviriam de base para a condenação das feiticeiras: “[B] Eu bem vejo que se remoem, e que me proíbem de duvidar, sob pena de injúrias execráveis. Pelo amor de Deus, minha crença não se maneja a socos…” (III, 11, 1031). Nos desenvolvimentos mais tardios, Montaigne assume, cada vez mais abertamente, a liberdade de manifestar seus julgamentos nos casos em que a prudência talvez lhe teria antes recomendado o silêncio: Servet, entre outros protestantes, foi condenado ao fogo em 1553 por suas interpretações heréticas, em meio a um ambiente de perseguições e intolerância crescente de ambas as partes em conflito1, e Galileu, como sabemos, seria poste1. Sobre esse ponto, ver TOURNON, 1989, p. 14-18. Friedrich, de sua parte (1985, p. 40), considera que as críticas eventuais de Montaigne à Igreja, embora inegáveis, são, 181

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riormente forçado a se retratar (em 1663) de sua recusa de idéias ortodoxas não muito diversas do antropocentrismo cosmológico de Sebond que Montaigne ataca frontalmente na “Apologia”2. Ademais, tal conflito entre “externo” e “interno” parece ser potencializado pelo mesmo perigo que ele teria talvez antevisto em abertamente propagar sua posição pirrônica (posto que, a despeito de seu conteúdo filosófico ser inteiramente outro do que o das teses sustentadas pelos calvinistas, esse mero posicionamento poderia representar, por essa ótica, a mesma vaidade que ele critica nos objetores de Sebond)3. Como vimos, ele apresenta o cético em terceira pessoa, e sublinha que esse filósofo, porquanto ofereça armas para combater a vaidade dos que se aventuram a interpretar o sentido da verdade revelada, não é herético nem ateu, mas uma “página em branco” na qual se poderiam, talvez, inscrever várias formas e versões diversas de sua aceitação da religião. Não seria essa caracterização indiretamente reveladora da dimensão “perigosa” que poderia assumir essa filosofia, freqüentemente tomada, ao longo do século XVI, como uma forma de ateísmo e contraposta à religião4? Se ao sábio correspondevidas a seu ceticismo, menos ousadas que as de Rabelais, Bodin e Dolet (este igualmente condenado à fogueira). 2. Convém lembrar, seguindo Villey (v. Les Essais, p. 317), que, embora as “tendências agnósticas” da defesa da religião montaigniana tenham então sido vistas como aceitáveis pelo Maestro del Sacro Palazzio, em Roma, em 1581, uma das idéias centrais do ensaio I, 56 (em que narra suas opiniões sobre as preces), foi censurada e, nem por isso, Montaigne a tirou de seu texto (ressalvando antes que ali a introduzira por desconhecer que se tratava de um “erro”). Igualmente, vimos que ele elogia, na Apologia, concepções pitagóricas sobre um Deus incompreensível que seriam igualmente objeto de condenação. Seu elogio de Juliano Apóstata, imperador romano anticristão, num capítulo sugestivamente nomeado “Da liberdade de consciência”, foi igualmente criticada por Roma (ibid., p. 668). 3. Ver 565A, em que Montaigne descreve a vaidade que encontra em si mesmo, paradoxalmente aludindo à relatividade de suas apreensões segundo as circunstâncias (v. 568-569), que é um motivo cético da suspensão e da crítica da vaidade ou “propéteia” dogmática (que corresponde ao sentido desse termo na grande maioria das ocorrências). Não obstante, tal vaidade “cética” (que Montaigne afirma ser perceptível em cada um que se observe mais de perto, v. 566B) será ela mesma contraposta, algumas páginas adiante, à adesão pessoal ao catolicismo narrada por Montaigne em 569A, nos termos em que a examinamos. Retomaremos esse tema no capítulo seguinte. 4. Guy DE BRUÈS, no prefácio de seus Dialogues contre les Nouveaux Academiciens (1557) — tidos como a primeira obra de língua francesa a tratar exclusivamente de fi182

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de eventualmente uma conciliação ideal e harmônica entre a adesão exterior às formas aceitas e a manutenção interior da plena liberdade de julgar, diríamos que tal problema se impõe vivamente a Montaigne — como um problema que demanda não apenas particular destreza, mas recursos estilísticos adequados para o seu enfrentamento. Montaigne apresenta os Ensaios como um “livro de boa-fé”, no qual almeja retratar o mais fielmente possível seus próprios juízos5. Mas, para que o juízo não recue, por vezes a expressão parece se ver obrigada a tanto. Em “Da vaidade” (III, 9), ele afirma ser tão leviano escrever abertamente quanto o seria atacar o partido católico por ser o menos doente (v. III, 9, 993B), e, logo adiante, comentando o estilo aparentemente fragmentário de seus ensaios, ele precisa: “Além disso, eu eventualmente tenho alguma obrigação particular de não dizer pela metalosofia —, alude aos acadêmicos como “infelizes inimigos de si mesmos e de Deus…”, ao mesmo tempo reconhecendo que “há vários deles que estimam que tudo consiste tão-somente em opinião…” (v. Dial., p. 90). É bem verdade que esse autor, citado diversas vezes por Montaigne, alude à filosofia da Nova Academia e não ao ceticismo pirrônico. A obra de Bruès foi escrita e publicada num momento em que as obras de Sexto ainda não haviam sido divulgadas nas traduções latinas de Estienne (1562) e Hervet (1569). Mas seria evidente, para o leitor familiarizado com essa associação entre a dúvida cética dos acadêmicos e o ateísmo, que o pirronismo fosse uma posição compatível com a religião? Parece atestar o contrário, por exemplo, o discours do matemático e literato Jacques Peletier du Mans, no qual os pirrônicos não apenas são criticados com virulência por serem propositores de posições absurdas, mas também são identificados aos acadêmicos. (v. Paul LAMOUNIER, Un discours inconnu de Peletier du Mans, Revue de la Renaissance, V (1904) 286-287, apud GRAY, 1964, p. 33, nota 9). Na Apologia, há uma alusão, aparentemente irônica, a Peletier (que se teria hospedado no castelo de Montaigne durante o período da redação desse capítulo) como propositor de razões matemáticas que exibem a fraqueza da razão. Não deveríamos também ver aqui um indício de que o próprio Montaigne, por intermédio de quem talvez Peletier tenha tomado contato com essas filosofias, visse-as como próximas ou semelhantes (além dos diversos aspectos filosóficos em que já constatamos seu juízo implícito sobre tal parentesco)? É possível que a existência de uma margem interpretativa ampla acerca da relação entre ambas as filosofias “céticas” e a religião seja um motivo da insistência em sublinhar a compatibilidade entre o pirronismo e a religião em diversos textos do período que fazem referência a essa modalidade de ceticismo (além da “Apologia”, por exemplo, os prefácios dessas traduções latinas de Sexto), bem como haja uma explicação da utilidade dessa filosofia contra os inimigos da religião (no caso de Hervet, identificados igualmente como calvinistas e como “novos acadêmicos”). 5. Cf. “Ao leitor”, p. 3; II, 17, 653. 183

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de, de dizer confusamente, de dizer de modo discordante…” (III, 9, 994-995C). Esse não é um testemunho isolado: em várias passagens Montaigne alude à impossibilidade de se manifestar abertamente e aos recursos alternativos de que se vale. Interessa aqui retomá-las para observar como podem esclarecer essa zona de penumbra do texto montaigniano, ao qual confluem a expressão do juízo, segundo a sua liberdade própria, e as exigências da ordem costumeira, que o limitam. Pensamos que tal exame nos revela que o emprego de expedientes paradoxais no texto de Montaigne constitui, ao menos em parte, uma estratégia de prudência para permitir que o juízo se manifeste, tão plenamente quanto possível, sem incorrer na mesma temeridade denunciada. 4.1. Retórica do paradoxo

Comecemos por um exemplo atinente a uma temática central dos Ensaios, a intenção de se auto-retratar em sua obra, anunciada já no prefácio, no qual Montaigne avisa ao leitor que sua intenção é se apresentar em sua “feição simples, natural e ordinária, sem contensão e artifício”. O mesmo prefácio informa que sua liberdade se limita segundo a “reverência pública”6, limitação retomada e esclarecida noutras passagens, como esta, do capítulo “Do arrependimento”: “Eu digo a verdade, não à saciedade, mas o tanto que ouso dizer; e ouso um pouco mais ao envelhecer, pois me parece que o costume concede a essa idade mais liberdade de tagarelar e de indiscrição em falar de si…” (III, 2, 806). Alguns lerão essa referência à indiscrição como uma alusão ao pudor de se expor intimamente, ou ao simples fato de expor-se num livro em primeira pessoa7. Porém, uma parte essencial desse auto-retra6. Ver “Ao leitor”, p. 3. 7. Sobre o tema retórico da pertinência de falar de si mesmo sem incorrer em presunção, ver, por exemplo, MACGOWAN, 1974, p. 2 ss. Montaigne aborda o tema em várias ocasiões (v. esp. II, 17 e II, 18), especialmente com base em Plutarco e em Castiglione (v. I, p. 36). O que importa aqui destacar, contudo, é o fato de que, em conformidade com essas fontes, Montaigne diz explicitamente que não considera que o falar de si signifique necessariamente incorrer em presunção e que, em particular, não entende que seu auto-retrato incorra nesse problema (v. II, 6, 378). 184

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to consiste na exposição de seu juízo pessoal acerca dos variados temas que aborda8. Diante do que vimos até aqui, não caberia compreender essa alusão ao costume como uma irônica maneira de expressar a tensão existente na fronteira em que se opõem, de um lado, o projeto autoretratista (como exposição do “interior”, no sentido já examinado) e, de outro, os critérios costumeiros segundo os quais essa exposição, uma vez exteriorizada, será colhida, em vista dos problemas já considerados? A despeito de qual seja exatamente o risco envolvido nesse confronto com o costume, importa destacar a estratégia empregada por Montaigne diante dessa restrição, para compreender melhor o sentido paradoxal dessa última passagem considerada. Se considerada a defasagem entre a interioridade e a exterioridade a que nos referíamos, talvez o ensaio auto-retratista de Montaigne deva ser visto não apenas como tentativa de enfrentar os problemas relativos à exposição das dimensões intangíveis de sua interioridade9, mas também como esforço de estabelecer uma mediação entre espaços que, segundo o seu próprio juízo, são descontínuos (na medida mesma em que sua plena exposição se reconhece como inconveniente). Observar os Ensaios desse ângulo leva-nos a pôr em evidência que seu texto se converte no meio pelo qual a interioridade ganha forma ao se exteriorizar, valendo-se dos sinais públicos e compartilhados que a linguagem oferece. Em circunstâncias particulares, que não são definidas de antemão, ele se converte num instrumento pelo qual a interioridade, situada no exílio que se desenha no verso das ponderações sobre o poder do costume, precisará buscar caminhos para se exteriorizar tão fielmente quanto possível, sem desrespeitar as restrições devidas ao fato de que tal texto “publica” algo que será recolhido pelo juízo de outrem segundo seus critérios próprios e eventualmente diversos. Eis, sobre esse último ponto, o que ele mesmo afirma: [B] Eu não temo absolutamente inserir aqui [nos Ensaios] diversos artigos privados, que consumarão seu uso entre os homens que vivem hoje, e que tocam a ciência particular de alguns, que aí verão 8. Ver, por exemplo, II, 17, 653. 9. Ver, por exemplo, II, 6, 379. 185

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mais longe do que os da inteligência comum. Eu não quero que, depois de tudo, tal como vejo freqüentemente agitarem a memória dos trespassados, sigam debatendo: ele julgava e vivia assim, ele queria isso; se ele tivesse falado sobre seu fim, teria dito, teria dado; eu o conheço melhor do que todos os outros… (III, 9, 982-3).

Essa passagem afirma abertamente que alguns dos “artigos privados” — que refletem o juízo pessoal de Montaigne — fazem-no de um modo tal que certamente escaparão da compreensão de um conjunto de leitores. Já tivemos a oportunidade de examinar discussões que parecem se acomodar bem a essa descrição: os leitores que desprezarem a possibilidade de aproximar a defesa de Sebond das fontes diversas a que ele alude de modo direto ou indireto (Sebond, Cícero ou Sexto Empírico) abdicarão de elementos decisivos para compreender o sentido preciso em que se opera em seu texto uma defesa filosófica da religião, ou mesmo para interpretar suas fórmulas de adesão religiosa num sentido diverso do que aquele que isoladamente poderiam parecer possuir. Tal aproximação nos oferece, ademais, um novo elemento para esclarecer por que Montaigne considera sua estratégia apologética não apenas autodestrutiva (como vimos no capítulo II), mas também “temerária”. Na conclusão do ensaio intitulado “Das vãs sutilezas” (I, 54), ele se situa numa incômoda posição intermediária entre a ignorância “abecedária”, dos cristãos que simplesmente crêem, e a ignorância “doutoral”, que abrange os “filósofos” antigos, as naturezas fortes, claras e instruídas de seu tempo, bem como os espíritos capazes de compreender o segredo divino e misterioso da “política eclesiástica”: [C] Os mestiços [mestis], que desdenharam o primeiro assento de ignorância das letras, e não podem chegar à outra (sentados entre duas selas, dentre os quais estou eu, e tantos outros), são perigosos, ineptos e incômodos. Entretanto, de minha parte, eu recuo o tanto que posso ao meu assento primeiro e natural, do qual eu tentei, por um nada, partir…” (I, 54, 312-313BC; itálicos nossos). Poder-se-ia pensar, à primeira vista, que Montaigne contradiz aqui a passagem da “Apologia” em que afirma sermos “todos do vulgo”. Contudo, como vimos, aquela passagem sublinha a necessidade de desconfiarmos de nossa capacidade de atravessar em segurança o mar de opi186

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niões e argumentos das querelas religiosas. Mas em que medida ele se distinguiria dos que possuem uma “ignorância doutoral” suficientemente clara? A despeito de retornar para sua posição originária, buscando manter intactas as antigas crenças da religião, Montaigne não o pôde fazer plenamente (no mesmo sentido em que a elas assentia ingenuamente, antes de ter atinado com seu fundamento “costumeiro”). Ao menos nesse sentido, ele se aproxima dos reformistas: não por confundir, como estes fazem, a razão pública e a razão privada, mas porque também sua estratégia de conciliação entre seu juízo pessoal e a preservação do costume, como ele mesmo reconhece, comporta riscos, e depende de uma avaliação permanente acerca das possibilidades de dar livre curso às opiniões. As duas últimas passagens que citamos possuem muito em comum, no que tange ao seu aspecto paradoxal. Na última, graças ao modo enigmático pelo qual, situando-se entre o vulgo e os doutos, nos convida indiretamente a compreendê-la como uma alusão aos mesmos limites do costume que permanentemente são desafiados na relação tensa que mantêm com a exposição do julgamento pessoal. Na passagem anterior, ainda mais claramente, oferece seu texto como critério para que o conheçamos, por meio de seus juízos, mas condena de antemão o modo como os leitores futuros (e diversos outros de seu próprio tempo) presumirão saber o sentido “privado” desse juízo, e lhes transfere o ônus da presunção de “ver além dos demais”. Porém, esse paradoxo parece ser um retrato da manifestação da interioridade ante os problemas considerados: o texto, na medida exata do que afirma, é um exemplo da fidelidade pela qual aquilo que comunica é sempre conforme ao que pensa, mas ele não comunica muito mais, nessa passagem, do que o simples fato de que a comunicação não pode ser inteiramente clara. Contudo, a despeito das restrições que nos endereça, Montaigne não nos deixa inteiramente desamparados: ele também informa que tanto menos o leitor será capaz de reconhecer essas instâncias quanto menos for capaz de considerar as contingências “temporais” que as determinam (aquelas mesmas que, como vimos, concernem à ordem da exterioridade e do costume). Não deveremos ver aí um exemplo de que, embora não possa apresentar abertamente o que justifica essa ambigüi187

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dade (sem destruir sua estratégia, na medida em que ela deve justamente ocultar o que a motiva), ele pode, ao menos, “apontá-la com o dedo”? [B] … à medida que minha comodidade [bienséance] mo permite, faço aqui sentir minhas inclinações e afecções, mas o faço mais livremente e de melhor grado de boca a quem quer que deseje ser informado. Tanto há aqui que nestas memórias, se nelas olharem, descobrirão que eu tudo disse, ou tudo designei. O que eu não posso exprimir, eu o mostro com o dedo: Verum animo satis hæc vestigia parva sagaci sunt, per quæ possis cognoscere cætera tute. Eu nada deixo a desejar e a adivinhar de mim… (III, 9, 983)10. Montaigne não está, nessa nova versão do mesmo paradoxo, contraditoriamente afirmando e negando, no mesmo sentido, a completude das informações que oferece, mas novamente conciliando, pelo ângulo possível, as exigências postas pela fidelidade ao juízo “interno” e pelo respeito ao costume na sua dimensão “externa”. Dizer que não se pode dizer, de todo modo, é dizer claramente algo, que não precisa ser adivinhado. Mas o que deixa ele de dizer? Só pode apontá-lo com o dedo, e transferir ao leitor a responsabilidade de ver além dos demais. Ainda esta vez, a própria passagem não deixa de convidar o intérprete a julgar, ao apontar os limites de sua clareza — “à medida que minha comodidade mo permite” —, por mais que o gesto de apontar possa aqui perigosamente contrariar certos costumes. Essas passagens mostram que, segundo Montaigne, dizer fielmente segundo o seu juízo não significa dizer tudo o que se pensa, como ele mesmo declara claramente, após criticar o vício da dissimulação: “[A] Não é preciso sempre dizer tudo, pois isso seria tolice, mas o que se diz, é preciso que seja tal como se pensa, de outro modo é maldade…” (II, 17, 648). Essa nova informação paradoxal, por sua vez, exemplifica a maneira como o texto, em plena conformidade com a declaração de boa-fé do prefácio, apresenta-se, todavia, como critério de sua própria incompletude e como o espelho autorizado da interioridade que não pode ser inteiramente refletida. Mais uma vez, tal estratégia 10. A citação é de Lucrécio (De rerum natura, I, 403): “Em verdade, estas breves indicações bastam a um espírito penetrante, pelas quais poderias descobrir todo o resto”. 188

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serve para indiretamente precisar o sentido dessa declaração de boa-fé, desautorizando por antecipação os que pretendessem dela inferir a exigência de que os Ensaios, por se assumirem como um auto-retrato, fossem uma espécie de confessionário, no qual tudo que se pensasse devesse ser dito abertamente11, exigência incompatível com aquela que o próprio Montaigne estipula para tal fim: [B] Quando me disseram, ou que eu mesmo me tenha dito: tu és demasiado espesso de figuras… Eis um discurso paradoxal [discours paradoxe]. Eis um demasiado louco. [C] Tu brincas com freqüência; julgar-se-á que tu dizes efetivamente o que tu finges dizer. [B] — Sim, digo eu; mas eu corrijo os erros de inadvertência, não aqueles do costume. Não é assim que eu falo sempre? Não me represento assim vivamente? Basta. Fiz o que eu queria: todo mundo me reconhece no meu livro, e meu livro em mim… (III, 5, 875; itálicos nossos). Ainda que por um viés inesperado e paradoxal, o “discours paradoxe”, embora oculte as opiniões do autor, dele oferece uma boa imagem, posto que ele costumeiramente se valeria do mesmo expediente fora de seu livro. Todavia, essa é mais uma passagem que nos permite avançar sem perder de vista o princípio interpretativo que elege o texto como critério exclusivo para conhecer os pensamentos do filósofo. É o próprio texto que demarca seus limites e envolve o leitor num exercício interpretativo que, seja mais ou menos rigoroso, é de saída consignado como incapaz de suprimir totalmente a franja de ambigüidade que o texto deliberadamente cria (na medida em que se refere a um conjunto de circunstâncias, como condição de compreensão dessas lacunas, que não pode ser plenamente circunscrito). Ademais, a expressão “discours paradoxe” (acusação de um interlocutor fictício a que Montaigne reage com ironia, sem desautorizá-lo) é 11. Ver “Ao leitor”, p. 3: “Eu próprio sou a matéria de meu livro”. A mesma crítica foi feita por MARCU (v. 1964, p. 240). Outros comentadores observaram que já nesse prefácio, inserido na obra em março de 1580, a mesma estratégia paradoxal parece operar desde sua declaração inicial, acerca da boa-fé dessa obra originalmente dirigida apenas aos parentes e aos amigos (v., p. ex., DRESDEN, 1963, p. 269-270). 189

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particularmente relevante, não apenas pelo que confirma sobre a leitura das demais passagens aqui invocadas, mas também pelo significado preciso que possui na literatura do século XVI. Ela se refere a uma ampla tradição literária, que se modela principalmente pelo Elogio da Loucura, de Erasmo. Publicada em Paris em 1511, e rapidamente ganhando grande popularidade12, essa obra se anuncia como uma declamatio — um exercício de estilo, em tom de brincadeira — pelo qual a Loucura, narradora da obra, destila suas críticas aos homens sãos (sobretudo aos teólogos), paradoxalmente desautorizando o leitor a leválas a sério (por serem, justamente, falas da Loucura). O expediente se popularizou na literatura do período, freqüentemente empregado com o mesmo propósito de dissimular aspectos eventualmente perigosos das posições apresentadas (e, por conseguinte, como um meio de garantir ironicamente, em certa medida, a liberdade de expressão)13. Tal jogo, enfim, estimulou uma prática literária na qual é freqüente a mesma retórica da dissimulação, bem como as inversões de perspectivas e a intervenção de personagens destinados a produzir sentidos inesperados nas afirmações que lhes são atribuídas. Os Paradossi, de Ortensio Landi, são um exemplo particularmente importante, mas os mesmos expedientes se apresentam em diversos autores franceses do período, como Rabelais, Guy de Bruès, Tahureau, Boaystuau, Bonaventura des Periers, 12. Sobre esse ponto, ver a introdução de Claude BLUM (Bouquins, p. 3). 13. É o que ocorre, segundo FRIEDRICH (1965), não apenas nos procedimentos autodepreciativos de Montaigne, mas igualmente no caso de antecessores como Erasmo, More e Corneille Agrippa (v. p. 24-28). MACGOWAN, igualmente, relaciona os expedientes paradoxais dessa e de outras obras de Erasmo à “autoproteção” (v. p. 43). Inspirados por preceitos retóricos relacionados com o “método de prudência”, tal como presente em Ramus, e remontando a fontes antigas, como Quintiliano (a comentadora cita, em particular, Institutio Oratoria, IX, 2: “o expediente mais artístico é aquele pelo qual uma coisa é indicada por meio de outra”), os Colóquios de Erasmo, por exemplo, se constroem de modo que deixam o ônus da interpretação a cargo do leitor — que é, de modo aparentemente contraditório, convidado a se identificar com um, nenhum ou ambos os interlocutores (ibid.). O mesmo expediente inconclusivo, segundo BOWEN, se poderia observar já em autores medievais, como Guilherme de Ockham, mediante o uso deliberado da ambigüidade e da ficção. Igualmente aqui, Bowen sublinha, entre outras de suas possíveis motivações práticas, a necessidade eventual de esconder posições perigosas ante a situação de intranqüilidade política e religiosa (v. 1972, p. 13-14). 190

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Du Plessis Mornay, De la Primaudaye, Pasquier, Margueritte de Navarre — todos esses lidos e citados por Montaigne14. Esses elementos parecem nos oferecer uma chave indispensável para o exame de várias passagens dos Ensaios. Deveríamos, por exemplo, compreender literalmente a alusão de Montaigne à sua velhice como circunstância pela qual ele se autoriza, segundo o costume, uma licença eventualmente maior que a normalmente aceitável? Não seria essa mais uma ocasião em que, desautorizando formalmente suas opiniões na forma de “excrementos de um velho espírito”, ele poderia mais livremente dar-lhes um conteúdo adequado ao seu próprio juízo, filiando-se a essa mesma tradição? Importa, ademais, sublinhar que grande parte desses autores, a começar por Erasmo, não apenas tomou contato com o ceticismo, mas aludiu explicitamente a essa filosofia, quando não empregou argumentos céticos em suas obras. É o que ocorre, por exemplo, no Tiers Livre (1546), de Rabelais, um personagem filosofante, Trouillogan, intervindo com evasivas paradoxais para resolver as perplexidades de Panurge, é qualificado de “pyrrhonien” por Gargântua15. O mesmo ocorre no caso de Cornelius Agrippa, cujo De vanitate scientiarum, também fonte dos Ensaios, ataca sistematicamente os mais diversos representantes do saber humano — teólogos, dialéticos, sofistas, filósofos, médicos, 14. Não cabe aqui um exame da aplicação individual do paradoxo por esses autores, dos quais, segundo Villey, Montaigne dá testemunhos certos da leitura (salvo Du Plessis Mornay e Pasquier, que constam apenas como “muito provavelmente”, no “Catalogue des Livres de Montaigne” da edição de referência dos Ensaios). Segundo MacGowan, a estratégia de disfarce é um meio que Du Plessis e Pasquier, por exemplo, justificam como particularmente adequada para a apresentação de verdades no contexto das guerras civis (ibid.). Para uma análise geral do desenvolvimento da literatura paradoxal na França do século XVI, ver BOWEN, 1972: trata-se de um recurso estilístico o emprego do paradoxo, da antítese, do enigma e da ambigüidade, a fim de conduzir deliberadamente o leitor a um jogo de decifração das opiniões do autor e do verdadeiro peso a ser atribuído às suas afirmações. 15. Ver RABELAIS, Tiers livre du Pantagruel, cap. 36, apud. TOURNON, 1991, p. 32. Montaigne, de sua parte, inclui o livro de Rabelais entre os que considera “apenas divertidos” (plaisans) (v. II, 10, 410A). Noutra passagem ele se refere a Pirro, porém, como o filósofo “que fez da ignorância uma tão agradável ciência” (plaisante science) (II, 29, 705A; itálico nosso). 191

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retóricos — de um modo bastante afeito ao Elogio da Loucura, com argumentos variados que por vezes claramente se aproximam daqueles empregados pelo ceticismo antigo16. É certo, porém, que esse paradoxal exame erudito se volta contra a vaidade dessas sciences com um propósito satírico, que o transforma numa espécie de paródia bufa do Adversus mathematicos, obra em que Sexto examina em detalhe os diversos ramos dos saberes humanos, buscando sistematicamente mostrar o desconhecimento da verdade17. Estaríamos aqui, para empregar a expressão de Tournon, diante de uma espécie de “pirronismo lúdico” — uma “filosofia para rir”, ante a qual caberia hesitar em reconhecer uma atitude propriamente filosófica18. A filosofia cética, portanto, não apenas é redescoberta por tais autores, mas também se populariza exibindo a imagem lúdica que eles 16. Das passagens dessa obra que se avizinham de argumentos montaignianos, dois exemplos merecem destaque: o ataque à circularidade da argumentação pelas causas dos “dialéticos” e ao modo como Aristóteles preconiza os sentidos como base do conhecimento, sem levar em conta que eles são enganosos, em 41ff, e a crítica ao que ele denomina a “cosmimetrie, ou consideration des mesures du Monde” (76ff-78vf) — na verdade, a junção da cosmologia e da geografia —, ele ressalta que os autores são tão discordantes entre si dos limites, longitudes, latitudes, magnitudes, medidas, distâncias, climas e temperaturas que não sabemos a qual deles devemos nos ater. Como Montaigne, ele constrói um argumento cético com base na opinião de que não havia outra terra habitável além de Europa, Ásia e África, revelada falsa pelos navegadores portugueses e espanhóis, contra as “resveries” dos antigos poetas e a falsa opinião de Aristóteles. A presença desse autor como fonte dos Ensaios é particularmente visível no irônico exame da medicina empreendido por Montaigne no capítulo II, 37 (“Da semelhança dos filhos aos pais”). 17. Esse é o propósito do uso do paradoxo nessa obra, segundo Barbara BOWEN (C. Agrippa’s De Vanitate: Polemic or Paradox?, B. H. R. [1972] 249-256, apud TOURNON, 1991, p. 30). Na Apologie contre les teologues de Louvain, o mesmo Agrippa defende sua obra “cética”, o De Vanitate, das censuras dirigidas por esses teólogos esclarecendo o sentido em que ela é uma declamatio: um trabalho feito à moda de exercício, subtraído das regras que determinariam a verdade e que, nessa medida, não pretende produzir nenhuma asserção e engajar o assentimento (apud TOURNON, 1991). Digamos que a definição de declamatio parece fazer parte do mesmo dispositivo retórico pelo qual o autor se desengaja publicamente da responsabilidade pelo que afirma, sem que isso cancele, por certo, o sentido das críticas feitas quando tomadas pelo que valem. Isso parece ser confirmado pelo fato de que Agrippa dispõe-se, ainda assim, a prosseguir com a encenação refutando ponto por ponto os seus censores teólogos (v. ibid.). 18. Cf. TOURNON, 1991, p. 29-31. 192

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lhe conferem; autores que não parecem partilhar a mesma compreensão nem desenvolvem uma prática argumentativa comparável àquela que encontramos em Montaigne, na medida em que Montaigne busca restaurar com mais rigor a coerência filosófica do ceticismo tal como o encontra nas fontes antigas, como vimos. Por essa razão, eles são relegados a um plano secundário pela História do ceticismo de Popkin19. Pensamos, todavia, que os aspectos estilísticos aqui exibidos justificam uma reconsideração da importância relativa desses autores para a compreensão do ceticismo de Montaigne, sobretudo se temos em mente a paradoxal declaração de novidade com que ele apresenta sua filosofia. Que sentido devemos exatamente atribuir ao texto que citamos na epígrafe em face dessa imagem costumeira do ceticismo, à qual ele parece, nalguma medida, se filiar ao argumentar paradoxalmente, à moda dessa tradição literária “cética”? Como compreender a singularidade de sua atividade filosófica, que os elementos aqui considerados parecem demarcar, a um só tempo em face da tradição filosófica cética e da tradição literária do paradoxo? Quão longe se poderia ir, por exemplo, na trilha de Tournon, para quem os Ensaios, ao se situarem nessa confluência intelectual, inventariam uma “nova linguagem”, logicamente transmudada e imune aos inconvenientes que fariam do ceticismo antigo uma filosofia contraditória20? 19. Sobre o contato de Agrippa com os textos de Sexto, ver POPKIN, 1979, p. 23 ss., que lê a obra de Agrippa sem considerar nem mesmo a possível dimensão lúdica de seu texto. Segundo Popkin, trata-se apenas de um “antiintelectualismo fundamentalista”, que dificilmente pode representar um argumento genuinamente filosófico para o ceticismo sobre o conhecimento humano, ressaltando, igualmente, a inexistência de qualquer “análise epistemológica séria”. 20. TOURNON identifica a confusão entre textos e comentários nos Ensaios como um traço genuinamente cético dessa obra, que conferiria um novo alcance ao “pirronismo lúdico”, pelo qual haveria um jogo na construção do discurso destinado a minar as “instâncias reguladoras da comunicação” e a “armação lógica da linguagem” (1991, p. 36-37). Se assim fosse, teríamos dificuldade em compreender em que medida tal “ceticismo” seria diverso daquele que o mesmo comentador reconhece em Agrippa, cujo discurso se situaria num lugar intermediário entre o verdadeiro e o falso (ibid., p. 29). Parece-nos que a descoberta desse “novo ceticismo” só se faz possível ao preço de conferir ao pirronismo um sentido mais vago do que ele possuiu aos olhos do próprio Montaigne. Uma premissa da identificação entre epokhé e paradoxo no sentido em que o faz 193

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4.2. Um pirronismo lúdico?

Embora Montaigne certamente possua uma compreensão filosófica mais refinada do ceticismo do que seus colegas paradoxais, é preciso aqui, novamente, um especial cuidado para não o confinar numa filosofia fictícia, ou numa postura intelectual que não é a sua. Mesmo que diversas particularidades de sua interpretação permaneçam incógnitas, é possível, retomar aspectos da discussão em torno da noção de costume, bem como as exigências de rigor impostas por outros aspectos de sua compreensão do ceticismo, para avaliar em que medida poderia esse procedimento paradoxal ser assimilado, segundo Montaigne, à epokhé cética. Deixaremos por ora de lado o delicado e interessante problema da relação entre sua retórica paradoxal e o projeto do auto-retrato21, cuja abordagem pressupõe um Tournon reside na admissão de que Montaigne deve ser inteiramente levado a sério quando alega se afastar dos pirrônicos em virtude dos defeitos que a linguagem natural possuiria, impedindo os céticos de filosofar. Tournon parece não ter percebido que estamos, como já vimos no capítulo I, também nessa discussão sobre a linguagem cética, diante de um paradoxo da mesma natureza desses outros, e que a proximidade de Montaigne ao ceticismo antigo, como vimos, é maior, nesse aspecto, do que ele percebeu. De um modo mais precavido, Hugo FRIEDRICH (1968, p. 376), examinando a vagueza estudada da terminologia de Montaigne, no âmbito de uma análise estilística de sua “consciência literária”, identifica-o como um “filósofo da ambigüidade”, por se aproveitar da incerteza semântica do vocabulário do Moyen Français no qual escreve na fluidez de seu discurso. 21. Embora o auto-retrato de Montaigne não se reduza, como veremos adiante, a um exercício da arte do paradoxo, há aspectos importantes a recuperar nas análises de BOWEN (1972) e MACGOWAN (1974) caso se queira avaliar com justeza a dimensão na qual o auto-retrato ultrapassa essa dimensão. MacGowan, como dissemos, procura mostrar como se desenvolvem, nos Ensaios, estratégias de dissimulação (“deceits”) segundo as preconizações estilísticas de Castiglione e Petrus Ramus (lidos e citados por Montaigne). Bowen, por sua vez, aproxima Montaigne de Rabelais ao julgar que o livro (e o auto-retraro nele presente) é uma composição artística deliberadamente constituída de inverdade, ambigüidade, ironia, paradoxo e contradição, exemplificando o que ela denomina de arte do “Bluff” (“blefe”) (v. 1974, p. 103). Embora os Ensaios, em nosso entender, não se resumam nisso, pensamos que essas análises permitem problematizar passagens que poderiam ser lidas, à primeira vista, como afirmações que parecem ir no sentido oposto: “Se fosse para procurar o favor do mundo, eu teria me enfeitado mais e me apresentaria numa marcha estudada. Eu quero que me vejam na minha feição simples, natural e ordinária, sem contensão e artifício: pois eu me pinto a mim mesmo…” (“Ao 194

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esclarecimento sobre o modo como sua filosofia cética se harmoniza com tais procedimentos22. A idéia básica a ser levada em conta aqui seria a seguinte: se o assentimento ao costume, segundo Montaigne, não representa um limite teórico da dúvida cética, mas o simples reconhecimento de um limite “externo”, cabe também reconhecer que tais expedientes paradoxais — na medida em que representam uma forma prudente de lidar com os problemas decorrentes da exteriorização do juízo — não poderiam, a rigor, identificar-se com uma inovação filosófica propriamente dita (segundo os critérios “internos” que vigem para a consideração dessas razões segundo seu valor filosófico intrínseco). Especialmente, não poderiam corresponder à inovação que ele anuncia ao se apresentar como um filósofo de nova espécie. Não se trata aqui de negar que essa distinção conceitual mesma (entre externo e interno) e os expedientes estilísticos que a ela se articulam correspondam a uma particularidade histórica do pensamento de Montaigne: o problema diz respeito apenas ao seu estatuto filosófico. Parece-nos pertinente aplicar, tamLeitor”). Já se observou que Montaigne aqui alude aos preceitos do decoro que o Livro do cortesão, de Castiglione, endereça à nobreza. Mas em que sentido se deveria compreender essa sua “naturalidade não-estudada” se a sprezzatura (segundo Castiglione, a virtude fundamental do nobre) consiste justamente em “esconder a arte, e que mostra o que se fez e disse veio sem esforço e quase sem pensar…”? (v. Castiglione, p. 54). Deveríamos julgar que a erudição oculta nas linhas dos Ensaios foge desses moldes? Ademais, a despeito do que afirma o prefácio, como compreender a afirmação com que Montaigne alude a seu auto-retrato, no qual reconhece que se trai pelo simples fato de se descrever? Cf. II, 6, 378C: “Ora, eu me enfeito sem cessar, pois me descrevo sem cessar…”. Consideraremos uma interpretação alternativa dessa mesma passagem no capítulo VII. 22. Além de Tournon, BELLENGER (1982) entende que o emprego montaigniano do paradoxo não constitui mero ornamento, mas corresponde a uma preocupação profunda, relacionada com seu ceticismo (p. 15). DEMURE (1988) opõe ceticismo e paradoxo, considerando que as eventuais contradições dos Ensaios são antes o resultado não da arte do bluff, mas de uma zétesis cética pela qual Montaigne volta atrás relativamente a suas opiniões anteriores (p. 1000); considera, assim, inaceitável o viés de leitura proposto por Bowen, por ser incompatível com a coerência filosófica das contradições de Montaigne (p. 1002). Contudo, parece-nos que também a resposta de Demure exclui precipitadamente a possibilidade de uma conciliação entre o ceticismo de Montaigne e o emprego deliberado de expedientes paradoxais. 195

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bém a esse caso, as considerações sobre o emprego cético de argumentos dialéticos feitas no primeiro capítulo. Vimos que a produção dialética de argumentos especificamente fabricados contra a versão particular da filosofia dogmática alvejada não pode, senão contraditoriamente, significar uma inovação filosófica, posto que esse expediente se destina justamente a atualizar a mesma filosofia segundo suas diretrizes originais. Analogamente, se a ação do costume é vista como causa de dogmatismo, não deveríamos ver essas estratégias como mais uma forma de atualização ou adaptação destinada a garantir, na medida do possível, o rigor com que se pode pensar de acordo com essa mesma filosofia? Assim compreendida, a partilha entre a exterioridade e interioridade permite, por assim dizer, isolar um núcleo filosófico de seu pensamento, no qual o mesmo diagnóstico antigo sobre a precariedade da razão permanece, a seu ver, plenamente aceitável, e que preside em grande medida a forma de abordar as contingências “externas”, que o ultrapassam e que dele permanecem distintas por meio dessa própria partilha. Não se trata de desconhecer que os homens vivem segundo dimensões históricas, sociais e políticas — segundo hábitos particulares, em suma, cujo significado próprio e contingente podem mesmo desconhecer. Muito ao contrário, trata-se de reconhecer que tais aspectos podem ser objeto da reflexão filosófica, mas nenhum deles impede Montaigne de situar adequadamente, nesse amplo panorama, um lugar próprio e preciso para a filosofia que lhe permite nele se orientar. Aliás, é essa precisão que nos permite compreender que algumas “inovações” em sentido amplo (a distinção entre interior e exterior, por exemplo) — às quais ele mesmo não alude como “inovações” e tampouco como “filosóficas” — só podem ser tomadas como filosóficas num sentido alheio ao uso que o próprio filósofo faz de seus termos. Quão mais eficientes forem essas “inovações” em se adaptar às práticas argumentativas do interlocutor, tão mais fielmente permitirão a inserção desse filósofo numa tradição cética (que, de certo modo, permanece filosoficamente a mesma graças a essas inovações). A julgar pelos textos que examinamos, o paradoxo é retomado por Montaigne com um intuito bastante preciso: encontrar uma forma de conciliar a comunicação, na medida em que se faz possível, de seus 196

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próprios juízos (aí compreendidos aqueles relativos à exposição de conseqüências de seu posicionamento cético) ao assentimento ao costume, na medida em que uma forma mais direta de apresentá-los poderia confrontar perigosamente a autoridade, quando esta cumpre um papel organizador da vida comum. Ao menos nesse sentido, o paradoxo certamente não pode ser identificado com a epokhé cética, como pretende Tournon, ou tomado como seu substituto. Mesmo sem levar em conta que a interpretação da epokhé por Montaigne é, de fato, incompatível com aquela que emerge dessa leitura, o paradoxo surge, por essa ótica, sobretudo como um expediente retórico destinado à exposição de sua filosofia cética (como poderia sê-lo de qualquer outro aspecto não-cético de seu pensamento que demandasse tal recurso), destinado a “revelar e ocultar”, segundo a diversidade com que julgam seus presumidos leitores. Em vez de se confundir com a suspensão, o paradoxo corresponde a uma estratégia literária pela qual Montaigne elabora seu texto tentando não perder de vista os critérios pelos quais certos leitores poderiam julgar adequadamente sua postura filosófica diante da religião23. Identificá-lo com a epokhé, em suma, seria perder a oportunida23. São eventualmente relevantes aqui as considerações de BOWEN (1972, p. 7 ss.) sobre o modo como, no século XVI, os textos exigiriam do leitor uma atividade diferente daquela com que espontaneamente os consideramos hoje (favorecendo o desenvolvimento da técnica literária do paradoxo). Primeiramente, pelo fato de inexistir pontuação, obrigando o leitor a se defrontar constantemente com ambigüidades, no curso da leitura, eventualmente intransponíveis (vale lembrar que a pontuação do texto de Montaigne, tal como hoje a lemos, em sua divisão em parágrafos são criadas pelas edições modernas). Em segundo lugar, em vista do hábito, derivado da interpretação bíblica, de aceitar que um mesmo texto possa possuir diversos níveis de sentido. “Não esqueçamos que a exegese bíblica medieval [se faz] em pelo menos quatro diferentes níveis. Durante séculos, todo texto bíblico fora interpretado literalmente, e tropologicamente, e alegoricamente, e anagogicamente. Os autores do Renascimento ainda estavam ‘alegorizando’ Virgílio e Ovídio. Esse procedimento era claramente o oposto do complexo ‘e’ ou ‘ou’; um leitor assim treinado irá esperar que um texto seja válido em diversos níveis diferentes e terá necessidade de isolar uma interpretação em relação a outras…” (p. 10). Não pensamos que se possa admitir essa constatação como um pressuposto interpretativo automaticamente válido para os Ensaios, mas é relevante, de todo modo, registrar um aspecto de certas práticas interpretativas historicamente vigentes que pode oferecer plausibilidade a uma leitura que o texto de Montaigne parece sugerir em seus próprios termos. 197

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de de compreender o que ocorre: o paradoxo é um instrumento para manifestar uma verdade que não pode ser apresentada abertamente, como diz John Donne24 — ainda que essa “verdade” possa corresponder a uma postura filosófica que alega a impossibilidade humana de detectar racionalmente a verdade. Ademais, a compreensão filosófica que Montaigne tem do ceticismo em geral, e particularmente da epokhé, não corresponde ao modo pelo qual Tournon os compreende. Diversamente de Tournon, Montaigne não toma o ceticismo como um irracionalismo (nem mesmo como uma estratégia de solapar radicalmente a “armação lógica” do discurso, num sentido em que os antigos céticos teriam falhado). Pensamos dispor de elementos suficientes para compreender que são coisas bem diversas, para Montaigne, o uso de estratégias para transformar ou negar seu sentido aparente (estratégias articuladas a problemas que, embora não possam ser claramente exibidos, são ainda assim implicitamente circunscritos) e o exame argumentativo do assentimento a proposições filosóficas determinadas, que merecem ser individualmente consideradas. O fato de existirem caracterizações clássicas que associam o ceticismo a aspectos dessa prática paradoxal, como no caso de Agostinho25, não é suficiente para iluminar o sentido preciso em que o próprio Montaigne compreende o que seja a epokhé, ou se observa como um “filósofo de nova figura”. Por fim, a mesma interpretação 24. Em uma carta de 1600, enviada a um amigo, acompanhada de alguns paradoxos, Donne os apresenta como um meio de conduzir o leitor à verdade por meio do esforço de lutar contra o que aparentemente afirmam — “… eles foram feitos antes para enganar (passar) o tempo do que a sua irmã, a verdade, embora tenham sido escritos em uma época na qual qualquer coisa é forte o suficiente para suplantá-la; se eles o fazem encontrar melhores razões contra eles mesmos, fazem seu ofício; pois são meras bravatas e basta que você a elas resista… são antes asas para armar a verdade do que seus inimigos…” (apud MALLOCH, 1956, p. 192, tradução do autor). 25. Em Contra academicos, Agostinho caracteriza a filosofia cética acadêmica, por intermédio de Alípio, como possuidora de uma estratégia destinada a “esconder sua doutrina dos espíritos medíocres e para revelá-la aos espíritos penetrantes…” (II, X, 24). Contudo, precisa ele adiante, a doutrina verdadeiramente oculta pelos acadêmicos seria um platonismo esotérico, que pretenderiam resguardar diante do avanço do materialismo estóico (III, XVII, 38). Não há, de todo modo, nenhum indício de que Montaigne tenha se apoiado em tal fonte nos Ensaios. 198

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que confunde os registros filosóficos e literários, ao reduzir seu ceticismo a uma simples estratégia textual e literária, sob a alegação de que há um espelhamento entre o autor e sua obra, acaba por confinar Montaigne a uma existência meramente literária, incompatível não apenas com a recusa por ele da atitude livresca do saber contemporâneo, mas também com outros aspectos de sua postura propriamente filosófica (em particular, a afirmação cética da plena capacidade de todas as faculdades espirituais e corporais). Não se trata aqui de negar que o paradoxo eventualmente possua outros significados na reflexão de Montaigne. Os exemplos considerados, mesmo que demarquem um sentido definido de seu uso, não são exaustivos. Noutras passagens, ele se vale eventualmente do oximoro para figurar sua suspensão filosófica, mas esta sempre se apóia em argumentos particulares e precisos26. Nos dois capítulos seguintes, examinaremos as relações entre o emprego do paradoxo e a ação (ou suspensão) do juízo nos Ensaios. Mas pomos tudo a perder se não distinguimos cuidadosamente os diferentes sentidos que o emprego do paradoxo pode possuir em vista das exigências conceituais do autor. Incorrer numa generalização apressada nos conduziria facilmente a perder de vista o rigor próprio da compreensão montaigniana do ceticismo. Quanto à novidade vista por Montaigne em sua prática filosófica, contudo, há passagens que poderiam talvez ser invocadas em defesa de uma identificação, de sua parte, entre suas estratégias paradoxais e a novidade de seu ceticismo. Assim, por exemplo, ele valoriza a consideração das dimensões formais das idéias legadas por outros autores: [B] O assunto, segundo o que ele é, pode fazer com que um homem seja tido por sábio e memorioso, mas para julgar nele as partes mais suas e mais dignas, a força e a beleza de sua alma, é preciso saber o que é seu e o que não é, e, no que não é seu, saber o quanto lhe é devido na consideração da escolha, da disposição, do ornamento e 26. Ver 518AC, em que Montaigne afirma, com relação às promessas divinas, como a da imortalidade da alma, ser preciso “imaginá-las inimagináveis”. Considerar, por exemplo, que a estrutura paradoxal destina-se a engendrar a epokhé referida por essas palavras seria ou bem redundante, ou bem incompreensível. 199

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da linguagem que ele fornece. E se ele toma de empréstimo a matéria e piora a forma, como freqüentemente ocorre? (III, 8, 940)27.

Mas se, acompanhando essa nova distinção, o que Montaigne confere à matéria cética é a novidade da forma paradoxal, a primeira conseqüência a extrair é a de que sua novidade filosófica não concerne propriamente à “matéria” (isto é, ao conteúdo do que se afirma sobre o alcance da busca humana da verdade)28. Além disso, se nisso residisse o que ele mesmo veria como sua novidade filosófica, ela residiria, justamente, no que o aproxima da prática literária paradoxal de seus contemporâneos, e não no que o diferencia desses autores segundo as análises precedentes — a saber, o rigor filosófico com que ele pôde, diversamente desses autores, recuperar a dimensão argumentativa e, mais do que isso, a coerência filosófica dos antigos céticos. Mas não era esse, justamente, o sentido dos próprios paradoxos examinados no primeiro capítulo (a saber, apresentar de um modo detalhado a fidelidade conceitual de sua postura filosófica àquela dos antigos céticos)? Noutras palavras, se sua novidade no campo da filosofia resultasse do emprego que faz dessas estratégias literárias, se esvaziaria de um sentido filosófico mais rigoroso (pelo qual Montaigne se oporia não apenas aos “filósofos”, como na passagem da epígrafe, mas também aos literatos que disporiam de uma compreensão mais fluida e menos precisa da filosofia cética). Mais do que isso, os paradoxos precisos que a apresentam não poderiam ser adequadamente explicados por essa hipótese (ao menos na medida em que eles incluíssem a exibição de aspectos conceituais precisos pelos quais sua filosofia se aproximaria da postura filosófica dos antigos céticos). 27. Ver também III, 8, 925B. 28. O próprio Montaigne se apóia nessa distinção entre “forma” e “matéria” para comentar sua tradução de Sebond, admitindo que a empresa se facilitou pelo fato de não haver, nesse autor, “quase senão a matéria para representar” (v. 439-440A). Não pretendemos aqui sustentar que a leitura montaigniana do ceticismo não envolva o oferecimento de uma “forma” particular aos materiais céticos. O ponto é que nada nos autoriza, ao menos por ora, a identificar essa dimensão formal com a “nouvelle figure” filosófica pela qual Montaigne se apresenta e, por conseguinte, a identificar essa novidade filosófica na dimensão literária do paradoxo. 200

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Para esclarecer a inviabilidade dessa interpretação meramente “estilística” de sua particularidade filosófica, retomemos o paradoxo resultante da passagem precisa em que Montaigne se apresenta como um “filósofo de nova figura”. Lembremos que ali o paradoxo decorria do modo como sua trajetória filosófica cética, embora decalcada na maneira pela qual Sexto descreve a conversão do cético à sua postura filosófica, culmina na admissão de que ele seria um filósofo de nova espécie, por filosofar de modo “impremeditado e fortuito”, sem se ater a qualquer seita. Montaigne seria cético (por realizar um percurso investigativo estritamente individual, tal como preconizado pelos antigos céticos, que culmina na constatação da impossibilidade de escolha entre as doutrinas filosóficas e na manutenção de seus costumes e de sua forma natural de agir) e não seria cético (por alegar que tal percurso lhe mantém numa posição de exterioridade a todas as “seitas” preexistentes). Mas, se admitimos que a novidade filosófica que ele reconhece em si corresponde à estratégia paradoxal com que ele expõe suas credenciais céticas ao leitor, veremos que a conseqüência é a de que o próprio paradoxo é dissolvido no interior da passagem precisa em que ele trata de sua novidade filosófica, e que ofereceria um exemplo dessa mesma novidade. Pois, se a novidade reside no uso do próprio paradoxo, não reside no fato de ele retomar uma seita antiga enquanto se afirma de uma nova espécie, fato esse que era uma das premissas da leitura dessa passagem como um paradoxo. Assim, ao esvaziarmos sua novidade de um sentido filosófico distinto do próprio emprego do paradoxo, esvaziamos também, nessa passagem crucial, a dimensão paradoxal que corresponderia à suposta novidade. Tal desenlace do paradoxo, em vez de solucionar o problema, dissolvê-lo-ia sem esclarecer em que consistiria ali a própria novidade. Insistamos que nada parece obstar, em contrapartida, que o emprego do paradoxo seja compreendido como um aspecto das diversas estratégias montaignianas para fazer face ao dogmatismo e, nessa medida, como parte da tentativa de pôr em prática uma filosofia rigorosamente moldada pelos pressupostos filosóficos originais do ceticismo (que não estariam, portanto, sendo deliberadamente transformados por essa inovação, ao menos na medida em que ela os atende). Assim como ocorre com a própria distinção exterior/interior, o paradoxo converte-se aqui 201

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na armadura ocasional que se oferece ao filósofo cético, sem mais, como instrumento para enfrentar as perturbações circunstanciais das guerras de religião e da intolerância religiosa. Não se trata aqui de zelar pela disputa terminológica ou de defender um purismo idiossincrático relativamente à natureza da filosofia, mas sim de pretender focalizar de modo mais preciso o sentido em que o próprio filósofo compreende particularmente sua filosofia, especialmente no que nela enxerga de inovador — relativamente às filosofias diversas com que se defronta ou mesmo ao diagnóstico dos antigos céticos acerca dos limites da razão humana. E não estamos diante de um problema interpretativo raro ou periférico no texto de Montaigne, bem ao contrário. Para concluir este percurso com um derradeiro exemplo, consideremos o ataque de Montaigne, na “Apologia”, à pretensão da “filosofia” de propiciar a felicidade humana, em detrimento da “simplicidade religiosa”, única via que, naquele contexto, ele reconhece como defensável para a obtenção desse fim29. Não caberia aqui concluir que, para Montaigne, na mesma medida em que as exigências externas impõem a conveniência da preservação de certos dogmas, também o ideal pirrônico da ataraxía deve ceder o passo a outro conceito de tranqüilidade, não mais de ordem estritamente pessoal e filosófica, mas diretamente dependente da paz pública (contraposta ao estado de guerra)? Não é desprezível considerar o local estratégico em que essa discussão se situa no conjunto da “Apologia”. Ao seu final, e imediatamente antes de passar ao exame da science humaine, que será introduzido pela apresentação do ceticismo, Montaigne nos oferece esta importante baliza: [A] Eu teria um trabalho muito fácil se quisesse considerar o homem apenas na sua forma comum e de modo geral [en gros] e o poderia fazer, no entanto, por sua regra própria, que julga a verdade não pelo peso das vozes, mas pelo número. Deixemos lá o povo, qui vigilans stertit, mortua cui vita est prope jam vivo atque videnti30, que não se 29. Trata-se da divisão do ensaio que vai de 487 a 500. 30. Segundo Villey, a passagem provém do De natura rerum, de Lucrécio: “… que dorme acordado, cuja vida não é senão uma espécie de morte, ainda que ele esteja vivo e de olhos abertos” (III, 1059-1061). 202

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percebe [qui ne se sent point], que não se julga, que deixa a maior parte de suas faculdades naturais ociosas. Eu quero tomar o homem no seu mais alto assento. Consideremo-lo nesse pequeno número de homens excelentes e escolhidos que, dotados de uma bela e particular força natural, fortificaram-na ainda e afinaram-na, pelo estudo e pela arte, e ascenderam ao ponto mais alto que a sabedoria pode atingir… é neles que se situa a altura máxima da natureza humana… Não vou considerar senão tais pessoas, seu testemunho e sua experiência. Vejamos até onde eles foram e onde se detiveram… (501-502).

Se esse aviso dará imediatamente lugar ao exame do ceticismo antigo, devemos logo concluir que a porção de texto que se situa anteriormente a ele — precisamente, a discussão sobre a fraqueza da filosofia em propiciar a felicidade humana — é ainda determinada, nalguma medida, pela necessidade de considerar as vozes não apenas por seu peso, mas por seu número; pelos critérios, afinal, que atendem o testemunho e a experiência do homem en gros, não dos filósofos como tais. Tal como a loucura erasmiana, que assume a palavra para ironizar a pretensão do saber filosófico, aqui é a ignorance, identificada à rusticidade do vulgo, que tripudia sobre a infelicidade do sábio. Por trás da oposição grosseira que aí se encena entre filosofia e religião, encontramos, porém, modelos filosóficos particulares, que dão sentido especial a essa ironia: Montaigne ataca, sob a pele dos “filósofos”, a vaidade de estóicos como Sêneca, segundo quem o sábio rivaliza em felicidade com os deuses, e grande parte dos exemplos dos subterfúgios a que, segundo ele, a filosofia recorreria inutilmente, dada sua incapacidade de alcançar a felicidade, são diretamente dirigidos contra o estoicismo31. Em contrapartida, é visível que a descrição do homem do vulgo 31. Para atermo-nos aqui a alguns poucos exemplos: quanto à afirmação montaigniana sobre a incapacidade da filosofia de oferecer armas contra a “fortune”, cf. 489-490AC, Epist., I, xvi, xxxvii, lii e liii. Quanto à posição estóica em relação às dores, ironizada por Montaigne em 490A, cf. Epist., I, xxiv, ix. Elogiando a loucura como meio de acesso à felicidade, em 495C, ele parece se contrapor a Epist., I, vii, x, xviii, ix, xvi, xx, xxxi. Enfim, no que se refere ao tema da morte, criticado como paliativo filosófico na impossibilidade da obtenção de felicidade, cf. Epist., I, iv, xii, xxiv, xxvi, liv. Essa crítica de Montaigne, especialmente se confrontada aos ensaios anteriores de orientação estóica, 203

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(vulgaire), protagonista dos elogios retoricamente contrapostos ao filósofo perturbado pelos males imaginários inventados pela science, compõe-se de elementos da moral pirrônica — em especial, da temática da moderação das afecções (metriopátheia): [A] Comparai a vida de um homem escravizado a essas imaginações à de um trabalhador braçal [laboureur], que se deixa ir segundo seu apetite natural, medindo as coisas apenas pelo sentimento presente, sem ciência [science] e sem prognóstico, e que não tem dores senão na hora que as têm, enquanto o outro tem com freqüência a pedra na alma antes de tê-la nos rins: como se não houvesse tempo bastante para sofrer o mal na hora que ele o tiver, ele o antecipa por fantasia [fantasie], e corre na sua frente… (491)32. Como compreender o fato de que, nessa crítica genérica à filosofia, haja, em vez de ironia para com a filosofia (cética), emprego do conceito cético de ataraxía, retoricamente projetado na figura do trabalhador braçal? Embora seja possível reconhecer aí uma espécie de deslocamento temático relativamente ao pirronismo antigo (no qual não se discute diretamente um problema similar àquele que motiva a estratégia montaigniana de defesa da religião), importa ressaltar que não parece haver nenhuma incompatibilidade entre o tema da ataraxía — considerada estritamente do ponto de vista da tranqüilidade intelectual — e esse reconhecimento de um fator mais urgente de perturbação nas guerras civis, em vista do qual a defesa da simplicidade cristã é amparada pelo mesmo esquema filosófico já considerado. Não poderia essa pintura do vulgo com tintas da ataraxía cética ser lida como alusão indireta ao mesmo fio condutor cético que permanece amparando a como I, 20, exemplifica bastante bem sua mudança de postura filosófica. Retomaremos esse ponto adiante, no capítulo VII. 32. Sobre o tema pirrônico da metriopátheia, ver HP I, 29-30, III, 236. Por certo, o procedimento do “homem comum”, imerso em seu dogmatismo habitual, não há de ser, a despeito do que aí Montaigne afirma, absolutamente idêntico à postura cética de aceitar apenas externamente as formas de comportamento recebidas. Se Montaigne afirma, quanto aos céticos, que “eles deixam guiar por essas coisas suas ações comuns, sem nenhuma opinação ou julgamento…” (505), trata-se bem, como vimos, de uma suspensão do julgamento diversa da daquele que simplesmente adere aos costumes, sem julgá-los. 204

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defesa da simplicidade cristã contra a presunção dos objetores de Sebond, em vista de uma ordem mais urgente de razões relativa ao problema da “obtenção da tranqüilidade”33? Considerando esse problema de um ponto de vista mais amplo, diríamos que o sentido privado em que a reflexão cética pode contribuir para a ataraxía articula-se aqui ao sentido público em que a mesma reflexão preconiza mais atenção ao modo como os cristãos costumeiramente crêem, diante da ameaça urgente da deterioração das relações sociais que a guerra traz. Mais uma vez, aquilo que aqui poderia passar por novidade filosófica é conseqüência da mesma estratégia de adaptação do ceticismo às circunstâncias particulares da reflexão, e de uma compreensão mais aprofundada, portanto, das preconizações argumentativas originais dessa filosofia. Assim, a filosofia de Montaigne não se torna menos lúdica quando a consideramos em sua particularidade filosófica, ainda que isso dependa sobretudo de não confundir o que o vincula filosoficamente ao ceticismo dos instrumentos retóricos de que ela se vale. Esse resultado, por sua vez, convida-nos a aprofundar nossa investigação. Nos dois capítulos seguintes, consideraremos dois sentidos diversos em que o paradoxo pode se articular à reflexão cética de Montaigne. No capítulo V, examinaremos o uso do paradoxo nas passagens em que ele se refere à sua identidade filosófica à luz das deficiências que ele identifica na filosofia de seu tempo, e observaremos em que medida ele pode estar destinado — especialmente nas passagens que não sofrem interferência temática dos problemas ligados à preservação da ordem pública e às guerras de religião — não a esconder, mas a exercitar o juízo, faculdade da qual depende a qualidade da reflexão filosófica, como veremos. A dimensão retórica do paradoxo se destinará, nesse passo, também a pôr em marcha tal reflexão em vista de exigências de rigor próprias. Já no capítulo VI, consideraremos o modo pelo qual o paradoxo pode aparecer precisamente como imagem dos limites do entendimento humano e ser assim empregado como ilustração da epokhé. 33. Sobre a defesa da simplicidade religiosa, ver especialmente 467 ss. Outras transformações retóricas dessa temática que podem ser compreendidas com base no mesmo esquema interpretativo cético estão, por exemplo, em 488A, 491C. 205

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CAPÍTULO V

Filosofia como ensaio do juízo

A filosofia cética elabora-se em torno de um conceito fundamental — o de epokhé, ou suspensão do juízo. Esse conceito também se oferece freqüentemente, pelo que vimos desde o primeiro capítulo, como um norte da prática argumentativa dos Ensaios com que Montaigne busca se contrapor às ficções dogmáticas que assumem a razão como instrumento de conhecimento do real. Antes, contudo, de examinar em maior detalhe a interpretação montaigniana desse conceito, consideraremos, neste capítulo, o modo como a filosofia, em geral, e o ceticismo, em particular, são vinculados a uma exigência que, em vista do que acabamos de dizer, certamente soará como algo paradoxal: trata-se da exigência de que a filosofia corresponda a um exercício do juízo. Saber como se conciliam exercício e suspensão do juízo nos ensaios de Montaigne, como veremos, é compreender um elemento importante de sua interpretação do ceticismo, do qual nos ocuparemos, como dissemos, no capítulo seguinte. Agora nos ocuparemos de um passo prévio e indispensável, que nos porá diante daqui-

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lo que, de modo mais geral, parece definir a singularidade do filosofar de Montaigne — na forma de um exercício, ou ensaio do juízo. Para tanto, consideraremos aqui um uso do paradoxo diverso daquele que observamos no capítulo anterior, e que nos permitirá, afinal, propor um esclarecimento sobre o sentido em que Montaigne compreende a novidade de seu filosofar “impremeditado e fortuito” — apresentada, como vimos, num texto biográfico paradoxal que nos proíbe de identificar sua filosofia como cética (dada sua impremeditação ante o conjunto de todas as “seitas” preexistentes), mas parece ser detalhadamente moldado pelo relato biográfico que o cético pirrônico emprega para descrever seu engajamento filosófico no ceticismo (por uma análoga posição de exterioridade relativamente ao universo definido pelas opções filosóficas dogmáticas). Procuraremos mostrar que esse paradoxo não apenas se destina a manifestar a interioridade sem colidir com os obstáculos publicamente impostos pelo costume, mas se constitui como um recurso pelo qual Montaigne busca inscrever no texto as exigências de rigor que, a seu ver, determinam igualmente as condições necessárias do uso adequado de nossas faculdades e da boa filosofia. Veremos como Montaigne retoma os textos em que Sexto Empírico expõe o sentido especial em que a filosofia cética corresponde a uma doutrina (haíresis). Eles ajudam a compreender como ele mesmo qualifica sua adesão filosófica cética: não como adesão a uma “seita”, definida pelo assentimento a teses, mas sobretudo como engajamento em um gênero de filosofia, caracterizado pela prática argumentativa destinada à discussão das diversas teses de que se acerca, ciente da impossibilidade de estabelecê-las como verdadeiras. É desse gênero cético que seu filosofar, em suma, se veria como um espécime particular na medida em que se compreende como um “ensaio” do juízo1. Assim, do mesmo modo que nos permitem descobrir o paradoxo presente na novidade montaigniana, os textos pirrônicos nos oferecem os elementos para a sua decifração. Mas a importância desse ponto não reside na explicação que ele permite oferecer dessa passagem isolada: a dissolu1. Tal como ele o descreve, por exemplo, em II, 17, 653. 208

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ção desse paradoxo nos põe diante de uma espécie de instrumento metodológico do ceticismo montaigniano, justificado pelas contingências históricas que, em seu entender, determinam as condições de sua atividade filosófica. Isso nos permitirá tentar situar mais adequadamente a particularidade do ceticismo montaigniano não apenas relativamente à tradição cética — em vista do papel que a noção de formação do juízo nele desempenha —, mas também em seu contexto histórico. Mais exatamente, poderemos ver como o ceticismo de Montaigne parece figurar, de modo particular, uma transição entre a filosofia do Renascimento e a Modernidade. De uma parte, a reconstituição filosófica do ceticismo antigo na forma do “ensaio” parece oferecer um bom exemplo da experiência que, segundo Erwin Panofsky, constitui a “própria essência do Renascimento”, pela qual se irmanam a consciência da distância e o sentido da afinidade com a Antiguidade2. De outra parte, parece-nos também possível reconhecer, na forma pela qual a filosofia, segundo ele, passa a se caracterizar essencialmente não apenas pelo conjunto de teses que advoga, mas pela ação concreta mediante a qual o juízo lhes confere significado, um traço também presente na empresa cartesiana de inovar relativamente à filosofia que o precede, eventualmente inaugural de um hábito recorrente em filósofos posteriores. 5.1. O ceticismo como gênero filosófico

Na introdução das Hipotiposes, o ceticismo é apresentado e situado no universo das filosofias com auxílio de uma distinção entre três possibilidades de conceber a relação entre uma investigação qualquer e o objeto pesquisado: por oposição aos dogmáticos, que admitem dispor de alguma verdade (objeto da busca filosófica), e aos acadêmicos, para os quais ela não é reconhecível, os céticos são aqueles que, não a tendo encontrado nas filosofias disponíveis, permanecem investigando (HP I, 1-4). É possível reconhecer, na mesma obra, outras discussões 2. Ver PANOFSKY, 1960, p. 282. 209

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que fazem eco a essa qualificação preliminar da atividade filosófica cética. Sexto explica, por exemplo, que a natureza do ceticismo determina um sentido próprio em que se poderia falar de uma “doutrina” ou “orientação” (haíresis) cética: o filósofo pirrônico, diz ele, não pertence a uma escola filosófica no sentido de assentir um sistema coerente de dogmas que explique o phainómenon, mas somente no sentido em que adota uma “prática [agoghé]3 que, em concordância com o aparecer das coisas [to phainómenon], segue uma linha de raciocínio que lhe indica como é possível viver corretamente (o termo sendo aqui tomado num sentido amplo, e não apenas referindo-se à virtude) e tende a capacitá-lo a suspender seu juízo…” (HP I, 16); o cético, igualmente, segundo Sexto, segue um discurso conforme ao aparecer das coisas, que lhe permite viver em conformidade com os costumes de seu povo, com suas convicções e com seus sentimentos (v. HP I, 17). Em diversos momentos da exposição, Sexto cuida de precisar o sentido das diversas expressões empregadas pelo cético para descrever sua atitude suspensiva de modo consistente4. E a mesma precaução se aplica à descrição do engajamento filosófico cético. Se, no empreendimento filosófico tradicional, a adesão a uma doutrina identifica-se à aceitação de um conjunto de proposições como verdadeiras, o ceticismo se caracteriza como o abandono da pretensão de oferecer algum conhecimento absoluto do real (num sentido equivalente ao que se poderia reconhecer em qualquer uma dessas doutrinas), que se faz acompanhar de um uso nãodogmático (adoxástos) da linguagem5. Assim, Sexto caracteriza o ceticismo não como uma teoria sobre as coisas, mas sobretudo como uma prática; mais exatamente, uma capacidade (dynamis) de argumentar, opondo phainómena e juízos de vários modos, que engendra, em vista do igual peso dessas oposições, a suspensão e a imperturbabilidade; uma prática orientada, assim, por uma perspectiva que permanece ima3. Tal é a tradução de Bury para agoghé, que Barnes, por sua vez, traduz por “persuasão”. Se se preferir esse termo, ele deverá, naturalmente, ser dissociado de suas implicações dogmáticas. 4. Ver, especialmente, HP I, 187 ss. 5. Ver ibid.; cf. HP I, 24: “Dizemos tudo isso [sobre o critério cético e ação] sem sustentar quaisquer opiniões…”. 210

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nente à experiência pessoal e relativa que a justifica6. Eis por que, aos olhos do cético (isto é, daquele que “investiga”), sua investigação (zétesis), comparada ao sentido usual do termo “filosofia”, situar-se-ia numa posição de exterioridade ao espaço discursivo que a ele corresponde, e no qual as diferentes filosofias se engendram, por meio de suas teses, que ora tematizam o aparecer das coisas com o propósito de corroborar a persuasividade de sua descrição do mundo, ora versam sobre objetos que Sexto entende ser inapreensíveis (o que não o impede de investigálas criticamente, segundo o modo como esses discursos podem ser considerados de um ponto de vista extrafilosófico)7. Embora pouco salientado pelos comentadores, esse é um ponto ao qual a interpretação de Montaigne dá atenção especial em sua interpretação do ceticismo. Mais do que isso, parece-nos que se trata de um ponto importante para elucidar o sentido de sua filosofia, no que tange não apenas à maneira como ele compreende sua prática intelectual, mas também como a situa exteriormente às diversas “seitas” disponíveis. Dessa apropriação talvez um primeiro sinal possa ser reconhecido no fato de que ele não apenas retoma a divisão tripartite entre as filosofias proposta por Sexto, mas o faz apresentando-a em seu próprio nome, sem indicar a fonte (502A). Ao fazê-lo, não está ele, antes de mais, imediatamente assumindo a distinção que os pirrônicos empre6. Ver HP I, 8, para a definição do ceticismo. Em HP I, 11, Sexto define o filósofo pirrônico, simplesmente, como o homem que possui tal habilidade. Noutra passagem, ele explica que essa prática se constitui por meio da experiência pela qual os primeiros céticos, em busca de quietude, procuravam uma solução para a experiência de contradição nas coisas por meio da posse de uma verdade (HP I, 12); descobrindo, porém, ser sempre possível constatar a fraqueza das filosofias disponíveis, uma vez que se pode sempre opor uma razão a outra razão contrária de igual peso, o cético abandona a pretensão de fazer asserções sobre a realidade e se restringe a apenas narrar, “como um cronista”, aquilo que lhe aparece segundo sua experiência pessoal (da qual o engajamento nessa filosofia faz parte) (v. HP I, 4). 7. Ver HP II, 1 ss., especialmente II, 10, em que Sexto esclarece que a suspensão limita-se à realidade dos objetos não-evidentes propostos pela filosofia dogmática (como a “apreensão” do verdadeiro no sentido estóico), não obstando a apreensão no sentido do “mero pensamento”, que necessariamente precede a investigação. O cético, sublinha Sexto, não está impedido de pensar, desde que se observe o pensamento como uma representação que se impõe passivamente e não implica a realidade do que é pensado. 211

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garão para situar a peculiaridade de seu filosofar como coincidente com seu ponto de vista? Examinemos, contudo, mais de perto o modo como ele caracteriza a posição de exterioridade do filosofar cético relativamente ao filosofar dogmático. Os textos mais importantes de Montaigne relativamente a esse aspecto da interpretação do ceticismo encontram-se na apresentação dessa filosofia, que se segue imediatamente na “Apologia”8. Num sentido óbvio, cada filosofia se distingue das demais ao admitir posições diversas ou sustentar um ponto de vista particular sobre as coisas. Estes textos, porém, mostram claramente que, para ele, há algo além disso que distingue o ceticismo das diferentes formas de filosofar em geral. Montaigne recupera a reflexão dos céticos sobre a diaphonía para concluir que, embora tais filósofos argumentem contra as mais diversas filosofias, sua opção faz com que eles se situem fora do universo determinado pelo conflito que a diversidade das posições dogmáticas instaura: [C] Não é uma vantagem achar-se desengajado da necessidade que brida os outros? [B] Não vale mais permanecer em suspensão do que se emaranhar em tantos erros que a fantasia humana produziu? Não vale mais suspender sua persuasão do que se imiscuir nessas divisões sediciosas e querelantes? [C] Que irei escolher? O que preferir, desde que escolhas! Eis uma tola resposta, à qual, entretanto, parece que todo dogmatismo chega, ao não permitir que ignoremos o que ignoramos. [B] Adotai o mais famoso partido, ele não será jamais tão seguro que não vos seja preciso, para defendê-lo, atacar e combater cem e cem partidos contrários. Não é melhor ficar fora dessa confusão? Vós podeis esposar, como vossa honra e vossa vida, a crença aristotélica sobre a eternidade da alma e, a esse respeito, desdizer e desmentir Platão; e a eles, não será lícito duvidar disso? (504). Essa mesma passagem apresenta um conceito fundamental de que se vale Montaigne para qualificar tal exterioridade: a saber, a liberdade intelectual pela qual o filosofar cético se distingue, de modo geral, relativamente ao filosofar de tipo dogmático. Seja qual for o grau de dogmatismo com que o dogmático adota sua filosofia, tal adesão repre8. Ver especialmente 500-506ABC. 212

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senta sempre, à luz dessa consideração, algum nível de “aprisionamento” intelectual, porquanto corresponde a uma posição insuficientemente fundamentada do ponto de vista da razão: é uma adesão “sem juízo e sem escolha”, por força da autoridade dos mestres ou do costume9. Montaigne opõe hiperbolicamente a natureza do vínculo dos dogmáticos às opiniões que adotam — “escravizados e como que atados a um aprisionamento de que não podem se desvencilhar” (503B), por motivações estéticas, políticas ou de qualquer natureza outra que transcenda o efetivo valor demonstrativo das razões apresentadas — ao modo como os filósofos céticos, destruindo a pretensão de verdade de cada uma das explicações dogmáticas do mundo, acabam por “manter sua liberdade e considerar as coisas sem obrigação e servidão…” (ibid.). Parece-nos importante sublinhar que essa liberdade significa o oposto do que pareceria significar segundo uma abordagem mais superficial do problema (à qual se pode ser facilmente conduzido em vista do estilo montaigniano). Não se trata de uma licença para adotar filosoficamente esta ou aquela opinião, como bem lhe aprouver; muito pelo contrário: Montaigne afasta explicitamente essa conseqüência como a caricatura de um mau filosofar que corresponderia melhor não ao ceticismo, mas às justificativas arbitrárias pela qual o dogmático pensa justificar — ou dispensar-se de justificar — sua atividade intelectual. A tal exercício cético da liberdade filosófica deve corresponder, em vez disso, o uso pleno da razão e do juízo, em conformidade ao que tais faculdades nos oferecem (uso do qual os dogmáticos abdicariam ao se arvorar nos dogmas que escolhem como verdadeiros sem ter fundamentos suficientes para tanto). Trata-se de uma liberdade que, embora pudesse conduzir à adesão a qualquer filosofia disponível, não o faz em razão de reconhecer e preservar a liberdade própria da razão, indefinidamente capaz de argumentar pelos dois lados ou identificar insuficiências nos procedimentos demonstrativos com que os dogmáticos a pretendem usar. Devem ser igualmente vistos como fruto do exercício dessa mesma liberdade do uso da razão, ainda que o sejam num senti9. Ver 503-504BC. 213

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do estritamente pessoal e provisório, os diversos passos filosóficos pelos quais, segundo a narrativa oferecida por Sexto, o cético se engaja em sua postura filosófica — entre eles, a permanência na investigação, pela qual se trata de pôr permanentemente à prova a própria posição cética diante das presumidas verdades propaladas pelas diversas filosofias. Tal liberdade pode, desse modo, prestar-se à caracterização da posição de exterioridade em que o cético permanece relativamente ao empreendimento filosófico dogmático. Se engajamento filosófico há do cético à sua doutrina, ele poderia ser igualmente compreendido como adesão a essa situação de liberdade filosófica em face de toda e qualquer descrição filosófica das coisas que se pretenda verdadeira; trata-se, assim, ao menos nessa medida, de um engajamento que se pretende, em sua natureza, distinto daquele que caracteriza o engajamento de toda e qualquer filosofia de tipo dogmático. Montaigne vincula expressamente a forma particular pela qual o cético se despe de um sentimento de “vaidade por sua própria doutrina” ao exercício de uma atividade argumentativa que não encontra nenhuma espécie de cerceamento: [A] Eles se isentam [por meio da suspensão e da ataraxía] de vaidade por sua própria doutrina [jalousie de leur discipline]. Pois eles debatem bem brandamente [d’une bien molle façon]. Eles não temem a revanche na disputa. Quando dizem que o pesado vai para cima, serão bem descontentes que creiam neles: querem antes ser contraditos, para engendrar a dúvida e a suspensão do juízo, que é seu fim. Eles só avançam suas proposições para combater aquelas que pensamos ter em nossas crenças. Se assumirdes a posição deles, eles irão de bom grado sustentar a posição contrária: tudo é para eles do mesmo modo, eles se abstêm de qualquer opção. Se estabelecerdes que a neve é negra, eles argumentarão para mostrar que ela é branca. Se dizeis que ela não é uma coisa nem outra, cabe-lhes manter que ela é as duas coisas. E se, por um juízo certo, sustentais que não sabeis nada, eles vão manter que sabeis. Sim, e se, por um axioma afirmativo, assegurais que duvidais disso, eles irão debatendo para mostrar que não duvidais, ou que não podeis julgar e estabelecer que duvidais… (503). Essa passagem exibe claramente a compreensão montaigniana do ceticismo como uma prática argumentativa inteiramente livre da ne214

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cessidade de sustentar quaisquer verdades10; livre de tal modo que, por meio dessa prática, o cético poderia argumentar contra as teses que parecem caracterizar a posição cética, como “eu duvido”. Essa conseqüência certamente soa como paradoxal, e foi, com efeito, diversas vezes, através da história, assumida como argumento contra a coerência do ceticismo. Montaigne, ao contrário, parece incorporar esse elemento à prática usual do cético — o que se conjugaria, notemos de passagem, com a idéia de que tal engajamento filosófico, por sua natureza diferenciada, não corresponde à pretensão de defender nenhuma tese filosófica (tampouco aquela que corresponderia à proposição “eu duvido”). E, seja ou não fiel à que fora prática dos pirrônicos, não deixa de haver textos antigos que podem ser empregados para corroborar essa descrição montaigniana. Tratando das “expressões céticas”, por exemplo, Sexto observa que esses filósofos não pretendem asseverar positivamente a verdade absoluta das proposições que empregam, “uma vez que elas podem ser eventualmente confutadas por estarem elas próprias incluídas entre as coisas sobre as quais a dúvida se aplica, tal como as drogas purgativas não apenas eliminam os humores do corpo, mas também se expelem a si mesmas juntamente com eles…” (HP I, 206). Isso significa que a dúvida também se aplica, nalguma medida, sobre as próprias proposições por meio das quais o cético pretenderia caracterizar sua posição — como “eu duvido”. Podemos ir mais longe e destacar naquela mesma passagem outros elementos que permitem precisar a interpretação de Montaigne. A seu ver, o cético não está impedido de empregar as expressões que entende bem descreverem sua posição filosófica — “nada sabeis”, “duvidais” etc. O problema parece surgir quando essas expressões são usadas de um modo determinado, ou num sentido particular. A partir do momento em que o interlocutor do ceticismo pretenda sustentar demonstrativamente — “julgar e estabelecer”, 10. Sobre o papel central da atividade argumentativa no ceticismo antigo, ver PORCHAT, 1993, especialmente p. 211, 227 ss., 243, 251. Embora Porchat não chegue a afirmar que o abandono cético da pretensão de sustentar demonstrativamente a verdade conduza a uma maior liberdade argumentativa, propõe que o cético, valendo-se da linguagem num sentido plenamente não-tético ou simplesmente fenomênico, confere à argumentação um lugar privilegiado (p. 240-241). 215

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“por um juízo certo” ou “por um axioma afirmativo” — que ele duvida ou nada sabe, assim o cético, por intermédio de sua prática filosófica, pode uma vez mais encontrar argumentos capazes de pôr em dúvida essa tentativa dogmática de estabelecer tal proposição como verdadeira. A distinção entre o gênero cético de fazer filosofia e os demais é de tal ordem que as proposições de que o cético se vale para descrever sua filosofia são sujeitas a compreensões inteiramente diversas caso sejam ou não relacionadas à prática filosófica do ceticismo. Uma dificuldade, contudo, em que essa leitura parece esbarrar é a seguinte: na primeira edição dos Ensaios, caracterizando a diferença entre os pirrônicos e acadêmicos, Montaigne sublinha que, segundo os pirrônicos, os céticos acadêmicos seriam ainda portadores de alguma “vaidade muito temerária” ao sustentar que a verdade não pode ser encontrada. Fazer isso seria ainda sustentar uma tese sobre a capacidade de nossos poderes cognitivos, parte de uma “grande e extrema ciência” que poderia, portanto, ainda ser posta em dúvida11. A passagem de que Montaigne parte para apontar uma diferença entre os gêneros de filosofia é, igualmente, como vimos, de proveniência pirrônica. Noutros textos da mesma versão inicial da “Apologia”, ele parece igualmente atestar sua concordância com críticas dos pirrônicos aos acadêmicos, como quando discute a noção do “verossímil”, critério de ação dos filósofos da Nova Academia12. Esse conjunto de indícios nos levaria a admitir uma 11. “[A] Eles [os pirrônicos] julgam que aqueles que pensam tê-la encontrado [a verdade] enganam-se infinitamente, e que há ainda uma vaidade muito temerária nesse segundo grau que assegura que as forças humanas não são capazes de encontrá-la. Pois isso, de estabelecer a medida de nosso poder, de conhecer e julgar a dificuldade das coisas, é uma grande e extrema ciência, da qual duvidam que o homem seja capaz…” (502). Trataremos a seguir, mais detidamente, do problema das diferenças entre ceticismo pirrônico e acadêmico segundo Montaigne. 12. Comentando sua própria argumentação para mostrar que a alma humana, desconhecendo-se, não possui meios adequados para discriminar a verdade, Montaigne discute as divergências entre as concepções de suspensão de pirrônicos e acadêmicos. Seguindo as Hipotiposes, ele afirma que os acadêmicos admitem alguma inclinação de julgamento, por acharem muito rude a afirmação de que a brancura da neve é tão pouco segura quanto o movimento da oitava esfera celeste. Para evitar essa “dificuldade e estranheza”, que a seu ver dificilmente se aloja em nossa “imaginação” (561A), eles admitem o verossimilhante (vray-semblable) como critério de diferenciação entre as re216

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identificação precisa, por parte de Montaigne, entre o gênero particular de filosofia, que se estenderia à sua própria prática, e o pirronismo. Todavia, a caracterização da liberdade cética que ele oferece é apoiada em citações diretamente extraídas dos Acadêmicos de Cícero. Como compreender essa situação? Vê Montaigne, de fato, o pirronismo como um gênero de filosofia distinto do ceticismo acadêmico? Somos aqui remetidos a uma questão usual da interpretação do ceticismo nos Ensaios — determinar a natureza do engajamento cético de Montaigne em vista das diferentes figuras do ceticismo antigo referidas em seu texto —, e a interpretação usualmente mais aceita poderia talvez aqui oferecer uma solução: o acréscimo tardio de citações provenientes dos Acadêmicos corresponderia a uma mudança de posicionamento filosófico de Montaigne, que passaria de uma “crise cética” pirrônica a um posterior “ecletismo”, no qual teriam lugar esses elementos acadêmicos13. Embora, no primeiro capítulo, tenhamos examinado a fragilidade da caracterização do período filosófico final de Montaigne como um “ecletismo”, seria possível abordar o presente problema segundo as linhas gerais desse modelo cronológico: ele teria primeiramente apreendido a idéia de que o ceticismo, em sua versão pirrônica, corresponderia a um gênero filosófico especial; mais tarde, detendo-se em textos acadêmicos, ele reveria seu juízo acerca da distinção que os pirrônicos entenderiam haver entre sua filosofia e a dos acadêmicos. De fato, as citações de textos acadêmicos incluídas posteriormente ao texto presentações (apparences) e, por essa razão, admitem uma “propensão” do julgamento sem admitir sua “resolução” na afirmação de verdades. Mesmo assim, ele argumenta em favor da recusa pirrônica do critério acadêmico, alegando que a admissão do verossímil, por mínima que seja, implica o reconhecimento de uma “verdade mais aparente” e conseqüentemente a inclinação do julgamento. Em tal argumento ele apóia o juízo de que a opinião dos pirrônicos é, ela própria, “mais ousada e, no mesmo passo, mais verossímil” (561-562A). Sexto recusa o critério acadêmico de probabilidade das representações segundo seus graus, que critica nos mesmos termos, sem deixar de observar a semelhança entre o pirronismo e a filosofia acadêmica no que tange à recusa das asserções em sentido absoluto (v. HP I, 226 ss.). 13. Para a interpretação clássica que identifica uma crise cética em Montaigne, a referência é VILLEY, 1933. Uma leitura que minimiza a idéia de crise cética, e pretende ver no “ecletismo” antes uma forma de engajamento no ceticismo acadêmico é a de LIMBRICK, 1977. 217

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original, a partir de 1588, feitas na forma de esclarecimento das explicações anteriormente oferecidas, de modo geral, acerca da filosofia cética, têm o sentido de se contrapor à diferenciação entre pirrônicos e acadêmicos tal como sugerida em 158014. Mas, se admitíssemos que essa revisão não se aplica à consideração do ceticismo como um gênero filosófico próprio, acadêmicos e pirrônicos passariam assim a coabitar esse gênero, tal como anteriormente descrito, como espécimes diferentes. Esse modelo, porém, também apresenta problemas — antes de mais, de ordem cronológica: as descrições da liberdade cética baseadas em passagens dos Acadêmicos encontram-se já na primeira versão da Apologia, tal como publicada em 1580. Além disso, embora Montaigne se valha de uma divisão pirrônica dos gêneros de filosofia, já na primeira edição dos Ensaios apresenta o ceticismo em bloco, como um amálgama de textos pirrônicos e acadêmicos, sem diferenciá-los claramente, para depois concluir: “[A] Eis como, das três seitas gerais da Filosofia, [estas] duas fazem expressa profissão de dúvida e ignorância…” (506). O problema, portanto, apenas se ramifica, pois consiste agora em compreender também o sentido desse tratamento conjunto de pirronismo e filosofia acadêmica, produzido na mesma edição em que ele parece se inclinar, como vimos, em favor de um engajamento no pirronismo, por oposição ao ceticismo da Nova Academia. Tivemos, ao longo deste percurso, diversas ocasiões de constatar que, desde o primeiro momento da redação dos Ensaios, Montaigne se vale solidariamente de textos acadêmicos e pirrônicos para construir sua visão pessoal do ceticismo e sua discussão particular dos pontos ceticamente examinados. Isso não o impede, certamente, de exprimir 14. O exemplo mais eloqüente nos parece ser a citação latina dos Academica que é inserida, posteriormente a 1588, como comentário da crítica dos pirrônicos aos acadêmicos citada nas páginas anteriores: “Entre o verdadeiro e o falso não há diferença para o assentimento da alma” (Acad., II, xxviii). Embora introduzida como comentário a uma passagem pirrônica, tal citação se opõe frontalmente ao que o texto de 1580 afirmava acerca do sentido do verossimilhante segundo os acadêmicos: a passagem de Cícero sugere justamente que o veri similis não deve ser tomado como critério de conhecimento, mas antes, possivelmente, como um critério de ação que se pretende neutro ante a suspensão filosófica, tal como a adesão pirrônica ao phainómenon. Considerar, no mesmo sentido, as citações acadêmicas inseridas em 503-504BC e 505C. 218

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seu juízo sobre a discordância aparente dessas doutrinas acerca de pontos precisos e em momentos particulares. Contudo, o problema em tela nos ajuda a ver que esse modelo parece encontrar limitações quando se trata de indagar acerca de seu engajamento filosófico no ceticismo. Assim, pensamos que levar em conta ambos os elementos — tanto sua ênfase em uma diferença de gênero entre o ceticismo e a filosofia dogmática como sua tendência a operar, de modo geral, com as diferentes fontes céticas, a fim de encontrar nelas, de modo geral, uma forma de concordância e de continuidade — pode nos conduzir a observar as coisas de outro modo. Talvez, desde o primeiro momento de seu engajamento cético, Montaigne visse o pirronismo e a filosofia acadêmica como duas modalidades diversas de um mesmo gênero cético de filosofar que, a despeito das diferenças que se possam eventualmente apontar nessas filosofias, se oporia às filosofias dogmáticas, em geral, como representantes de um modo diverso e tradicional de filosofar. Se assim for, não haverá lugar para considerarmos que seus próprios Ensaios, à luz dessa mesma geografia conceitual, representariam, a seu ver, apenas mais um espécime filosófico singular desse mesmo gênero? Um espécime, portanto, conscientemente diverso dos representados nas fontes antigas de que dispõe, e portador de particularidades que precisam ser elucidadas e relacionadas ao sentido de seu próprio engajamento filosófico, por mais que fielmente se espelhe nas fontes antigas e com elas pretenda expressar sua concordância. Primeiramente, prestemos atenção ao fato de que o problema da determinação das diferenças entre pirrônicos e acadêmicos foi sempre visto com bastante cautela por parte de Montaigne — mesmo se provisoriamente ele as reconhece e toma partido, em pontos importantes, favoravelmente ao pirronismo. Nem mesmo na primeira versão dos Ensaios, na qual tal afinidade seria mais patente, contudo, ele se reconhece abertamente como “pirrônico” ou “acadêmico”, a despeito dos diversos indícios de seu posicionamento cético. Outras passagens indicam com clareza que tal prudência é derivada de sua consciência do distanciamento histórico. Ele se queixa, por exemplo, do eventual laconismo das fontes céticas de que dispõe e da falta de melhores elucidações sobre como os antigos puseram em prática suas doutrinas, frisan219

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do os limites da própria interpretação que oferece15. A vetus quaestio da diferença entre pirrônicos e acadêmicos é debatida por diversos de seus contemporâneos, muito provavelmente lidos por ele16. Mas não se trata aqui de um problema puramente filológico. Se ele é posto em discussão, importa compreender que tende a ganhar um significado filosófico particular mediante a compreensão geral que Montaigne tem do ceticismo: uma filosofia que se constitui, além do sentido das teses que a descrevem, essencialmente como uma prática filosófica argumentativa (em meio à qual essas mesmas teses podem ser postas em questão); trata-se, mais do que isso, de uma filosofia que se compreende como imanente à experiência filosófica individual de incapacidade de assentir à verdade que pretendem impor as diversas filosofias. Assim, dessa experiência e dessa prática depende a compreensão do sentido da expressão “eu duvido”, em si mesma desprovida de um sentido absoluto que contenha a “verdade” do ceticismo — uma vez que poderia igualmente se recobrir de um sentido dogmático, que justificaria a epokhé a seu respeito. Se o ceticismo se pensaria sobretudo como uma prática, não tenderia isso a relativizar, nalgum sentido, o modo como ela pode ser representada pelos textos? Não haveria, assim, uma motivação de prudência na recusa de Montaigne em engajar-se doutrinalmente em alguma versão filosófica do ceticismo antigo? Em segundo lugar, porém, a forma como tal concepção do gênero cético de filosofar ganha corpo nos Ensaios nos conduz a observar que a própria questão acerca daquilo que particulariza sua prática filosófica 15. Ver, por exemplo, os comentários acerca desse ponto que se seguem a uma discussão sobre a ataraxía pirrônica, em 578A. Vimos igualmente que, em 505A, ele frisa que exprime a noção cética de epokhé apenas “na medida em que é capaz”, o que não o impede de tomar partido pela interpretação segundo a qual seria plenamente possível conciliá-la com a vida prática. 16. Já Aulo-Gélio assim se referia à questão sobre as diferenças entre pirrônicos e acadêmicos (v. Noites áticas, XI, 5, 6, obra que Montaigne cita diversas vezes nos Ensaios), que a bem dizer permanece ainda, em certa medida, atual. Popkin nos oferece testemunhos de sua discussão, especialmente a partir da publicação das traduções latinas renascentistas de Sexto, por parte de outros contemporâneos de Montaigne, como Giordano Bruno, Justus Lipsius (autor a quem Montaigne se refere elogiosamente) e Petrus Valentia (v. POPKIN, 1979, p. 35). 220

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relativamente aos demais ceticismos — bem como a questão mais geral acerca das possíveis divergências filosóficas entre os céticos — se põe externamente ao âmbito dos conflitos existentes entre os filósofos dogmáticos. Observemos, por exemplo, esta passagem em que ele comenta diretamente o modo como se engendra a diversidade das formulações da dúvida cética: “[A] … por esta extremidade de dúvida que se atinge a si mesma, eles [os pirrônicos] se separam e se dividem de diversas opiniões, daquelas mesmas que mantiveram de diversas formas a dúvida e a ignorância…” (503). Esse texto da primeira edição da “Apologia” parece indicar que a consideração de teses não é adequada para caracterizar a diferença entre as filosofias céticas — afinal, elas não sustentam teses —, mas sobretudo a diferença da própria dúvida que praticaram. Seja qual for o significado exato desse deslocamento, ele deve ter conseqüências para o próprio sentido em que se poderiam distinguir diferentes posicionamentos céticos. Tanto pirrônicos como acadêmicos parecem ser igualmente interpretados por Montaigne como filósofos cuja prática argumentativa, distinguida do engajamento dogmático, é articulada à suspensão do juízo e a uma postura dubitativa ante as diversas formulações da verdade oferecidas pelas filosofias dogmáticas: [C] Enquanto [Cícero] tratava das Letras, era sem a obrigação de nenhum partido, seguindo o que lhe parecia aprovável, seja numa seita, seja em outra, mantendo-se assim sempre sob a dúvida da Academia. Dicendum est, sed ita ut nihil affirmem, quaeram omnia, dubitans plerumque et mihi diffidens… (501)17. Montaigne comenta sua exegese da filosofia de Cícero — cuja pertinência histórica não pretendemos aqui discutir18 — por meio de uma passagem acadêmica que justifica a associação da dúvida filosófica a uma atividade de “investigar todas as coisas”, contrariamente ao 17. O texto latino está em De diuinatione, II, iii: “Eu direi, sem nada afirmar; eu investigarei todas as coisas, freqüentemente duvidando e desconfiando de mim mesmo…”. 18. Parece-nos, de todo modo, que a interpretação montaigniana seria aceitável a alguns intérpretes contemporâneos de Cícero, como John Glucker, segundo quem a aceitação de aspectos de doutrinas filosóficas “dogmáticas” como probabile por Cícero seria, no mais, conforme à prática de Carnéades (v. GLUCKER, 1988, esp. p. 62 ss.) 221

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que se poderia depreender da condenação pirrônica dessa filosofia. Aqui, a mesma liberdade extrema da zétesis pirrônica deixa-se entrever na quaestio acadêmica: duas traduções de um mesmo gênero de investigação que, no caso específico dos acadêmicos, pode abarcar, segundo Montaigne, uma espécie de emprego diversificado das razões dos filósofos dogmáticos (transformadas, por certo, quanto a seu sentido demonstrativo original): sem obrigação doutrinária, conforme ao que lhe parece provável. E como situar, com base nesse viés interpretativo do ceticismo, o próprio modo “impremeditado e fortuito” pelo qual Montaigne se pretende um “filósofo de nova figura”? Por ora, prestemos atenção ao paralelismo entre o que Montaigne afirma sobre Cícero na passagem que acabamos de citar e o que ele afirma nesta importante página sobre o sentido de sua investigação filosófica — os “ensaios” de seu juízo: [A] O juízo é uma ferramenta para todos os fins, e se mete em toda parte. Por essa causa, nos ensaios que dele faço aqui, emprego todo tipo de ocasião. Se for um assunto que eu não entendo, por isso mesmo eu o ensaio [je l’essaye], sondando de longe o leito; se o acho demasiado fundo para meu tamanho, fico na margem. E esse reconhecimento de não poder atravessar é um traço de seu efeito, e mesmo daqueles dos quais ele mais se orgulha. Por vezes, num assunto vão e desimportante, eu tento [j’essaye] ver se ele achará de que lhe dar corpo, e de que lhe apoiar e sustentar. Por vezes, levo-o a passear por um assunto nobre e já muito trabalhado, no qual ele nada tem a encontrar por si, estando já o caminho tão desbravado que ele não pode senão marchar sobre os passos de outrem. Lá ele faz sua tarefa ao escolher a estrada que lhe parece a melhor e, de mil trilhas, ele diz que esta ou que aquela foi mais bem escolhida. Eu tomo ao acaso a primeira razão. Elas me são igualmente boas. E nunca pretendo pô-las em evidência por inteiro. [C] Pois de nada eu vejo o todo, e não o fazem aqueles que nos prometem fazê-lo. De cem membros e faces que tem cada coisa, pego apenas um, por vezes apenas a lamber, por outras a saborear a superfície, e por outras a examinar até o osso. E prefiro o mais freqüentemente tomá-los por um lume inusitado. Eu me aventuraria em tratar a fundo alguma matéria se me conhecesse menos. Semeando aqui um dizer, ali outro, fragmentos 222

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desprendidos do seu lugar, afastados, sem desígnio e sem promessa, eu não me comprometi em fazer melhor, nem de neles me apoiar eu mesmo, sem variar quando assim me aprouver; assim [posso eu] entregar-me à dúvida e à incerteza, à minha forma mestra [forme maitresse], que é a ignorância… (I, 50, 301-302).

Não pretendemos alegar que o modo como Montaigne compreende esse “ensaio” ou exercício filosófico diante das razões alheias seja semelhante ao que ele encontra em Cícero. Num nível meramente formal, seria já possível distinguir o modo como este constrói seus diálogos filosóficos, em torno da exposição e do exame de escolas diversas sobre determinado tema, e o estilo rapsódico, como diz Hugo Friedrich, dos Ensaios. Mas o que importa destacar aqui é o modo como a investigação de Montaigne, tal como aqui descrita, subordina o tratamento dos mais diversos temas — considerados freqüentemente à luz de razões e exemplos diversos e opostos, tomados das fontes antigas ou produzidos pelo próprio autor — a uma “forma mestra” que determina sua identidade filosófica. Assim, a própria interpretação montaigniana daquilo que fundamentalmente caracteriza o gênero cético de filosofar — rigorosamente desenvolvida a partir das fontes antigas — é por ele mesmo empregada como forma de se introduzir na mesma família. É, contudo, necessário supor que haja uma única e boa maneira de conciliar adequadamente uma dynamis argumentativa, destinada a engendrar a suspensão do juízo, e a aceitação dos fatos na dimensão em que eles irrecusavelmente se impõem? Ou não é em princípio compatível, com a largueza pela qual essa definição discrimina o ceticismo, a possibilidade de se desenvolverem consistentemente várias filosofias céticas? Parece-nos, assim, que a questão sobre a natureza pirrônica ou acadêmica do ceticismo de Montaigne é insuficiente para alcançarmos o fundo do problema. Não se trata de negar, contudo, a importância dessa questão, à qual em boa medida os próprios textos de Montaigne nos conduzem. Como vimos, ora ele caracteriza seu engajamento filosófico com base no modelo de narrativa biográfica pirrônica, ora ele descreve sua prática ensaísta com textos que muito se aproximam da caracterização do ceticismo acadêmico de Cícero. Porém, devidamente aprofundada, com base nos elementos que Montaigne oferece e em 223

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seu cotejo com as fontes céticas, essa busca acaba por nos levar a caminhos inesperados19. O leitor poderia objetar que a solução aqui apresentada não parece satisfazer plenamente as dificuldades que apontamos: se Montaigne compreende o ceticismo como um gênero filosófico próprio que abarca tanto pirrônicos como acadêmicos, como se apóia ele, afinal, numa divisão pirrônica das filosofias segundo a qual essa doutrina se distingue da filosofia acadêmica pela extremidade da dúvida com que se aparta da vaidade ainda presente nessa modalidade cética? Seja qual for a resposta, não pode desconsiderar a feição paradoxal que esse texto assume ao ser cotejado com as fontes céticas explicitamente discutidas por essa passagem — a exemplo do que ocorre, implicitamente, no texto em que Montaigne trata de seu filosofar impremeditado e fortuito. A discussão geral da filosofia cética assume inicialmente uma divisão tripartite dos gêneros de filosofia de origem pirrônica, pela qual esses filósofos se distinguem dos céticos acadêmicos, e prossegue ilustrando a liberdade correspondente à prática dessa mesma dúvida extrema com passagens certamente extraídas dos Academica, novamente sem que o leitor seja informado dessa particularidade, concluindo pela afirmação de que se tratou ali das duas seitas que professam a ignorância, sem claramente delinear sua diferença. Não é desprezível que esse fenômeno paradoxal seja recorrente nos textos de Montaigne que gravitam em torno da mesma problemática da diferença entre as vertentes céticas. Como mostramos, ele retoma literalmente a crítica que os pirrônicos dirigem ao vray-semblable acadêmico; mas notemos que, formulando 19. Essa crítica se aplica, nalguma medida, à própria leitura que fizemos do ceticismo de Montaigne em textos como EVA, 1993 e 2004, posto que ali permanecemos orientados pela questão de saber se estávamos diante de um autor pirrônico ou acadêmico. Insistamos, porém, que esse é, em boa medida, um resultado natural do reconhecimento dos indícios textuais legados pelo próprio Montaigne. Se entendemos ser aqui possível aprofundar o tratamento do mesmo problema, dizemos que, até certo ponto, o seu tratamento à luz das fontes pirrônicas e acadêmicas é um pressuposto indispensável. Isso não revoga o reconhecimento dos aspectos pirrônicos e acadêmicos presentes na reflexão de Montaigne, tal como lá os indicamos, mas apenas nos conduz a observá-los de um novo ponto de vista que permite melhor compreender as conseqüências desse ceticismo no âmbito mais geral dos Ensaios. 224

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sua concordância com essa objeção, ele se exprime por meio do próprio critério recusado: “[A] A opinião dos pirrônicos é mais ousada e, no mesmo passo, mais verossímil…” (562; itálico nosso). Desses paradoxos, o efeito mais imediato, por certo, é o de desconcertarem o leitor, e especialmente aquele que busca saber qual é exatamente a posição de Montaigne diante da velha questão sobre as divergências das seitas céticas. E o próprio Montaigne, em vez de elidir o aspecto desconcertante da conclusão pela qual o cético pode se opor às próprias teses que definem sua filosofia, apenas acentua a nota paradoxal que aí ressoa, demonstrando que essa liberdade acaba por conduzir o cético a reconhecer sua vitória mesmo nas disputas em que é derrotado: [B] Eles reservaram para si uma maravilhosa vantagem no combate, uma vez que se desincumbiram do cuidado de se defender. Não lhes importa que se lhes atinja, desde que atinjam; e de tudo acabam por se aproveitar. Se eles vencem, vossa proposição falha, se vós, a deles. Se provarem que nada se sabe, tudo bem, se não o souberem provar, é igualmente bom. [C] Ut, quum in eadem re paria contrariis inpartibus momenta inveniuntur, facilius ab utraque parte assertio sustineatur. E contam com o fato de se achar bem mais facilmente com que mostrar que uma coisa seja falsa, do que verdadeira, e o que não é, do que é; e o que não crêem, do que o que crêem… (504-505)20. Seria essa uma ironia para com os céticos, afeita às descrições insólitas de Diógenes Laércio? Mas essa discussão culminará, justamente, numa recusa explícita da leitura laerciana que conduz o cético ao precipício. Todos os paradoxos que acabamos de mencionar parecem possuir importantes elementos em comum. Primeiramente, eles se relacionam tematicamente à discussão de aspectos conceituais do ceticismo e, de modo mais ou menos direto, à posição filosófica pessoal de Montaigne em face deles. Além disso, tais paradoxos — sejam ou não dependentes do confronto com as fontes céticas originais — tendem a se transformar significativamente ou mesmo a se dissolver quando considerados à luz 20. A citação latina provém de Acad., I, xii: “Para, descobrindo acerca de cada coisa razões contrárias, ser mais fácil suspender o julgamento por ambos os lados”. 225

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das precisões conceituais que o próprio Montaigne oferece acerca da filosofia cética. É tanto mais fácil, por exemplo, compreender a última passagem citada como uma eventual crítica ao ceticismo, quanto mais se atém à exigência de que uma doutrina filosófica se defina pela posse de um conjunto de teses cuja veracidade se pretenda estabelecer. Mas a passagem pretende alegar que estamos diante de um gênero de filosofia radicalmente outro, que focaliza diversamente a atividade opinativa e argumentativa dos homens, situando-nos externamente à atividade filosófica considerada como meio de obter verdades — o que nos conduz, nas palavras de Montaigne, a observar “brandamente” as opiniões diversas21. Seja qual for o sentido de que se reveste essa atividade, com ele passa a ser compatível a possibilidade de considerarmos seriamente a alegação de que o cético pode indefinidamente extrair a “prova da ignorância humana” das críticas que são dirigidas à sua filosofia. E o mesmo estilo paradoxal de exposição apresenta-se na análise que, em seguida, Montaigne efetua dos filósofos dogmáticos — todos eles apresentados como céticos que, por alguma razão, teriam disfarçado seu ceticismo sob uma aparência resolutiva. Aristóteles é o príncipe dos pirrônicos devido à obscuridade que nos impede de compreender seus escritos, Platão filosofa de modo irresoluto ao nos apresentar diálogos aporéticos etc. Não é o leitor igualmente convocado a concluir se esse julgamento pode possuir alguma verossimilhança ou se está diante de simples ironia?22 Algo de semelhante parece ocorrer no caso dos paradoxos relativos à crítica ao critério acadêmico de ação e às diferenças entre as espécies céticas. Não deveremos reconhecer que também nesses casos o impasse depende, nalguma medida, de um pressuposto que, embora sugerido pela própria discussão, pode ser revisto (se tal elemento é proveniente de Sexto, então ele é pirrônico, portanto não é acadêmico)? Se reformulamos o problema segundo as precisões oferecidas por Montaigne acerca do gênero cético de filosofia, o enigmático quebra-cabeça das passagens com que os diferentes céticos qualificam a especificidade da 21. Ver III, 8, 923. 22. Cf. 506-512. Para uma análise mais detalhada dessa discussão, ver EVA, 2004, p. 106 ss. 226

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sua filosofia por oposição a um filosofar dogmático acaba sobretudo nos impedindo de situar adequadamente o ceticismo de Montaigne com base na oposição pirrônico/acadêmico. Montaigne, como vimos, não se declara pirrônico nem acadêmico, mas “filósofo de nova figura”, impremeditado e fortuito, que filosofa exteriormente a todas as “seitas”. Mais um paradoxo que, para nós, só é paradoxal enquanto nos atemos a um sentido determinado de “engajamento filosófico”, e que desaparece à medida que o relato de sua decisão de conservar sua liberdade natural (descrita em tintas nitidamente céticas) pode ser assimilado à liberdade que os céticos preservam, desengajados da necessidade de defender quaisquer dogmas. Não é, afinal, essa exterioridade a toda e qualquer seita característica da própria postura cética em geral? Não depende o paradoxo justamente da compreensão da adesão a uma seita (cética ou não), segundo a acepção tradicional pela qual se define uma “seita”? Não seria justamente a compreensão do que caracteriza distintamente o gênero cético de filosofar aquilo que impediria tal equívoco? Em suma, é claramente insuficiente, para explicar tais paradoxos, a hipótese de que Montaigne estaria apenas buscando ocultar aspectos de seu posicionamento vistos como perigosos relativamente à ordem pública. Diríamos que, além desse efeito de ocultamento, esses exemplos parecem anunciar um sentido mais positivo de seu emprego (que não seria, afinal, de todo ausente nos exemplos que analisamos no capítulo anterior). O paradoxo parece ser aqui empregado como um instrumento destinado a conduzir o leitor a julgar por si mesmo, ante o efeito desconcertante dos elementos dispostos, e a ponderar as precisões conceituais que o próprio Montaigne assinala noutras passagens. Para tornar contudo isso mais claro, cabe examinar melhor as motivações filosóficas que estão aqui em jogo. 5.2. O ensaio como investigação cética

Consideremos aqui outra passagem que serve de exemplo ao modo paradoxal pelo qual Montaigne nos apresenta sua identidade cética: “[A] Se filosofar é duvidar, como eles dizem, com mais forte razão ocupar-se de ninharias e fantasiar [niaiser et phantastiquer], como eu 227

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faço, deve ser duvidar. Pois cabe aos aprendizes investigar e debater [enquerir et debattre], e ao catedrático resolver…” (II, 3, 350). “Eles”, os mestres para os quais filosofar é duvidar, são certamente os céticos, apontados laconicamente. Montaigne declara sua proximidade desses filósofos ao dizer que possui razões ainda mais fortes de duvidar, por se ocupar de ninharias e fantasia. Tal atividade é igualmente caracterizada como um modo de “investigar e debater” transposto no nível dos aprendizes. Contudo, no mesmo passo, há um afastamento implícito relativamente aos filósofos céticos, pois, uma vez caracterizada como atividade de aprendizes, e não dos mestres, não corresponde exatamente à dúvida dos “filósofos”, nalguma medida equiparados, segundo a mesma assimetria, aos “catedráticos”. Mas qual seria a natureza filosófica desse “fantasiar”, igualmente identificado e diferenciado da atividade dos filósofos que duvidam. Talvez se possa pensar que esse paradoxo seja desfeito pela seqüência desta passagem: “[A] O meu catedrático é a vontade divina, que nos rege sem oposição e tem seu lugar acima dessas vãs e humanas contestações” (ibid.). Não é preciso, porém, retomar aqui as considerações de Montaigne sobre a nossa impossibilidade de sondar a vontade divina. Não seria esse desenlace antes um indício dos inconvenientes de exibir uma identidade cética de índole puramente filosófica, e da conveniência em ocultá-la por meio de um alter ego filosofante que se subordinasse à autoridade da religião? Ainda assim, essa hipótese não explicaria exatamente por que Montaigne identifica, nessa passagem, sua atitude dubitativa com a de um “aprendiz” que “investiga”, por oposição aos “catedráticos” — da filosofia ou da fé. Um elemento adicional torna essa questão, a nosso ver, mais interessante. Segundo a cronologia estabelecida por Villey, Montaigne decidiu batizar sua obra como “Os ensaios de Michel de Montaigne” às vésperas da publicação da primeira edição, em 1580 — posteriormente, portanto, à redação da “Apologia”. Sem pretender aqui adentrar na discussão dos comentadores sobre o sentido do termo “ensaio”23, 23. Cf., por exemplo: BLINKENBERG, 1964; NACAS, 1980; e principalmente FRIE1968, cap. VII, especialmente 353 ss.

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importa destacar duas acepções filosoficamente importantes que ele adquire para Montaigne, não suficientemente consideradas nesse debate. Primeiramente, entre outros significados que esse termo possui no moyen français, está o de “lição ou trabalho escolar”, acepção na qual o termo é empregado nos Ensaios24. Em “Da amizade”, num trecho provavelmente composto antes de 1574, Montaigne se refere ao “Discurso da servidão voluntária”, de La Boétie, como tendo sido escrito “à maneira de ensaio, na sua primeira juventude, à honra da liberdade contra os tiranos” (I, 28, 183-184A). O contexto enfatiza que, a despeito da boa acolhida que o texto teve por parte das “pessoas de entendimento”, se tratou apenas de um exercício filosófico, de que tal autor foi capaz antes da idade de dezoito anos e que, caso ele tivesse sobrevivido e adotado, mais amadurecido, um desígnio semelhante ao dele, de “deixar por escrito suas fantasias”, teria superado outros ainda mais próximos da altura dos antigos: “… pois, notadamente nesta parte dos dons da natureza, eu não conheci ninguém que lhe seja comparável…” (ibid.). Montaigne emprega o mesmo termo “ensaio” para qualificar seus exercícios filosóficos de natureza estóica, ao se referir à experiência da morte como ocasião de avaliação da capacidade de pôr em prática tal filosofia: “[A] Eu remeto à morte o ensaio do fruto de meus estudos. Lá veremos se minhas razões [discours] partem da boca ou da coragem…” (I, 19, 80; itálico nosso). Não adentraremos, por ora, numa discussão mais detalhada desse ponto. Mas é seguro, de todo modo, que o termo se revestirá de um significado filosófico particular e nalguma medida diverso quando, identificando sua postura filosófica dubitativa à investigação cética e abandonando tal orientação estóica, ele o escolher como título de seu livro. Embora geralmente se faça remontar a etimologia do termo ao latim exagium25, parece-nos bastante relevante que Jacques 24. Ver, por exemplo, I, 26, 174A. 25. “Peso”, donde “ensaiar” seria “pesar”; cf. GREIMAS, KEANE, 1992, p. 263. Observemos porém que, mesmo nesse sentido que, de um ponto de vista filosófico, é bastante amplo e vago, o termo poderia se prestar a uma aproximação com o ceticismo. Se os ensaios são um exame de razões filosóficas diversas, não esqueçamos que Montaigne grava uma medalha com a efígie da balança equilibrada para simbolizar a suspensão 229

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Amyot, na tradução de Plutarco amplamente elogiada e freqüentada por Montaigne, escolha exatamente o termo essay para traduzir a investigação dubitativa acadêmica26. Assim, não parece gratuita a escolha de Montaigne, para batizar sua atividade filosófica, de um termo que pode igualmente significar a sképsis — o mesmo termo que os pirrônicos ou “Skeptiques”, na expressão do próprio Montaigne, escolheram para denominar sua filosofia — ou a quaestio pela qual Cícero se refere, como vimos, à dúvida acadêmica. Esses três termos pertencem, afinal, a uma mesma família filosófica, ao batizar uma filosofia que se define puramente pela atividade de investigação que realiza, por oposição àquelas que se presumem capazes da formulação de alguma verdade. Mas, se fosse assim, o ensaio, em particular, seria, a um só tempo, uma investigação cética e um exercício pensado como uma espécie de aprendizado, cujo modelo seria a dúvida propriamente filosófica. O que significa exatamente essa caracterização? Por que, ademais, isso se manifesta na forma de um paradoxo? Para responder a essas questões, retomemos alguns aspectos das análises feitas anteriormente. Vimos no item anterior que, segundo Montaigne, ao pormo-nos diante do ceticismo não estamos diante de uma filosofia que caiba na maneira usual de compreender a adesão doutrinal a uma filosofia. Assim como o epicurismo, por exemplo, define-se, quanto à sua física, por defender um atomismo materialista, o ceticismo se definiria pela tese de que nada conhecemos. Essa seria uma maneira de facilmente se equivocar em relação ao que efetivamente caracterizaria essa filosofia. Mas, seja qual for a boa maneira de compreender o ceticismo, decorre dessa precisão que as fórmulas que Sexto emprega e Montaigne retoma para descrever a filosofia cética representam essas mesmas filosofias de maneira distinta, em alguma medida, do que ocorre na forma tradicional de conceber o que sejam as cética. Ademais, ele se vale da mesma metáfora para aludir diretamente à sua prática antinômica, em III, 8, 923-924. 26. Em “Contre l’epicurien Colotes” (569D), Plutarco afirma que a “seita” dos acadêmicos se teria constituído por meio de uma investigação (essay) de todas as coisas, no intuito de engendrar uma ampla dúvida destinada a uma “legítima e justa” disputa contra os estóicos. 230

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filosofias. Tratando-se de uma filosofia que não se caracteriza pela posse de “dogmas”, que colhem e sintetizam em si mesmos, por assim dizer, o sentido do esforço filosófico, os lemas gerais que caracterizam a filosofia cética não desempenham o mesmo papel que possuiriam no caso de uma filosofia dogmática. Como diz Sexto, o cético não emprega as expressões que definem sua filosofia como se possuíssem um significado absoluto e autoritariamente definissem as coisas que por elas são explicadas, mas utiliza-as de um modo deliberadamente impreciso e vago, posto que o cético não irá brigar pelas palavras (cf. HP I, 207). Embora essas expressões céticas possam descrever adequadamente o pirronismo, não seriam por si mesmas portadoras de um poder inequívoco de dar a compreender o que seja a experiência filosófica própria do ceticismo. Isso porque sua boa compreensão se pretende solidária de uma prática, isto é, de uma experiência do uso da razão, no exame da precariedade das diversas tentativas de formulação da verdade, bem como da experiência de reagir à constatação dos limites naturalmente experimentados de nossa pretensão cognitiva, tentando equacioná-la do modo mais coerente possível. Essa conclusão se harmoniza com outras análises feitas anteriormente. No capítulo II, vimos que a admissão da fraqueza da razão em sustentar verdades (mesmo a Verdade Revelada) pode possuir um sentido tal — como ocorre no caso dos primeiros objetores de Sebond — que sua semelhança com a compreensão cética acerca desse ponto é apenas superficial (uma vez que esses objetores não compreenderiam adequadamente a fraqueza demonstrativa do próprio critério interpretativo que propõem). No mesmo sentido, o que julgamos “natural”, assim o julgamos relativamente à capacidade individual de ação de nosso juízo ou, mutatis mutandis, à nossa ignorância daquilo em que a natureza nos poderia surpreender, dada a maneira como o costume adormece nosso juízo. Digamos agora que esses diversos aspectos da compreensão do ceticismo podem ser vistos como rendimentos da interpretação dessa filosofia como um exercício da razão e do juízo levado às últimas conseqüências, libertado da pretensão de estabelecer a verdade, consciente de que são relativos a essa prática tanto a compreensão dos próprios conceitos céticos como o modo pelo qual po231

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dem ganhar sentido, mais amplamente, os conceitos que povoam o discurso filosófico. É interessante notar que essa mesma visão da filosofia cética se manifesta indiretamente na passagem em que Montaigne descreve sua atividade ensaística, citada no item anterior27. Já observamos como, nessa passagem, ele subordina a uma “forma mestra” da filosofia dubitativa todos os diversos matizes em que aborda as razões e os exemplos que considera, deslocados de sua pretensão original de estabelecer uma verdade. Mas todos os aspectos dessa sua experiência filosófica são também subordinados a outro objetivo comum. Seja ao se ver obrigado a seguir as mesmas trilhas dos antigos, seja descobrindo um viés inusitado para abordar um tópico tradicional, seja ainda reconhecendo-se incapaz de ir além e constatando os limites de seu próprio entendimento, Montaigne alega estar fundamentalmente, em todas essas ocasiões, exercitando e avaliando o seu próprio juízo em diversos ângulos. Assim, a atividade argumentativa cética de Montaigne relaciona-se prioritariamente a uma tarefa de auto-exame, reconhecimento e eventualmente desenvolvimento do alcance natural daquilo a que ele se refere como o seu “juízo”; tarefa que, por si mesma, projeta, como pano de fundo, o reconhecimento de que a estatura natural do juízo é não apenas diversa entre os diferentes homens, mas intrinsecamente finita e limitada. Importa examinar com mais cuidado essa motivação de sua filosofia. Reconhecendo a diversidade com que o juízo se apresenta entre os homens e conferindo-lhe um papel prioritário em suas deliberações, Montaigne não descuida de tentar se observar comparativamente, em sua relação não apenas com seus contemporâneos, mas sobretudo com os homens do passado: Casualmente, o comércio contínuo que tenho com os humores antigos, e a idéia dessas ricas almas do tempo passado me desgosta de outrem e de mim mesmo; ou ainda [me leva a pensar] que, na verdade, vivemos num século que não produziu senão coisas bem medíocres. Tanto é assim que não conheço nada digno de grande admiração. Também quase não conheço homens com a familiaridade 27. Ver I, 50, 301-302. 232

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[privauté] que é preciso ter para poder julgá-los, e aqueles a que minha condição me põe em contato mais comumente, na sua maior parte, pessoas com pouco cuidado da cultura da alma, aos quais se propõe apenas a honra como toda a sua beatitude, e como toda perfeição apenas a coragem… (II, 17, 658A)28.

Essa passagem é uma dentre muitas nas quais uma mesma nota ressoa ao fundo das comparações que Montaigne traça entre seu mundo e a Antiguidade: a inferioridade do primeiro em relação à segunda29. Todavia, por mais que se possa aqui reconhecer uma aura de idealidade projetada nos antigos, aquilo que torna, a seu ver, os homens antigos dignos de consideração, até de um ponto de vista filosófico, é justamente o mesmo que, faltando na atividade intelectual de seus contemporâneos, os impede de apreciar adequadamente essa grandeza. Interessam-lhe os antigos não por sua antiguidade, mas como exemplos de um exercício superior e particularmente livre das faculdades intelectuais, por oposição a um culto servil à memória e à autoridade daqueles que teriam encontrado verdades cujo valor — relativo ou absoluto — não pode mais ser adequadamente reconhecido pelas práticas intelectuais em que normalmente os textos dos antigos são retomados. Tal nota é particularmente audível quando Montaigne examina as formas institucionais adquiridas pela filosofia contemporânea, formas que inibem a ação do juízo e comprometem o próprio sentido em que ela pode, de modo geral, ser compreendida. [A] Não é pouco que as coisas estejam assim em nosso século, que a filosofia seja, mesmo para as pessoas de entendimento, um nome vão e fantástico, sem nenhum uso e nenhum valor, [C] por opinião e de fato [par effect]. [A] Eu creio que esses ergotismos, que se apoderaram de seus caminhos, são a causa… (I, 26, 160). O problema diz respeito às condições gerais da atividade filosófica: o sentido que ganha o próprio termo “filosofia” é aqui, mais uma vez, 28. Ver, também, I, 26, 146-147. 29. Ver III, 2, 812-813BC; III, 8, 932; III, 9, 946, 993B, II, 17, 658-659A. Sobre esse ponto, ver CAVE, 1984, p. 6-8, bem como, sobre a ambigüidade da relação entre Montaigne e a cultura clássica, as excelentes páginas de FRIEDRICH, 1968, p. 42 ss. 233

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determinado pela prática intelectual que a ela corresponde. Mas, mesmo que as críticas dos antigos céticos aos dogmáticos sirvam a Montaigne como modelo da sua atividade filosófica, ambos os pólos desse embate intelectual parecem ser aqui transformados por esse deslocamento histórico, que acaba por lhes conferir uma feição particular. A crítica de Montaigne ao dogmatismo estende-se à própria forma disciplinar do estudo da filosofia, posto que se condenam, num amplo mostruário, desde as sutilezas da gramática e os ergotismos da lógica (v. ibid., 169171) até a “ridícula pesquisa da pedra filosofal” e os demais exemplos das ficções que a filosofia de seu tempo elabora sobre o macrocosmo e o microcosmo30. Tais exemplos da vaidade da science são alvejados não apenas por proporem teorias falsas ou incorretas, mas também por serem inúteis e incompatíveis com a espécie de formação que caberia à “verdadeira filosofia”. Podemos, ainda aqui, retomar a pista da reflexão pirrônica de Sexto Empírico, que, qualificando o sentido próprio em que os céticos concebem a atividade filosófica, se confessa por vezes incapaz de reconhecer o sentido das expressões de que se valem os dogmáticos, ou mesmo a existência dos objetos sobre os quais supostamente versam suas doutrinas31. Mas essa consideração de algum modo se amplifica pelas lentes com que Montaigne a examina em seu universo contemporâneo: inferiores aos verdadeiros “philosophes” antigos (mesmo os dogmáticos), os do seu tempo filosofam segundo as formas 30. STEVENS (1965) opina que o leque semântico do termo “philosophie” nos ensaios é mais amplo do que o usual nos autores do século XVI (v. p. 147), mas equivocase na leitura que faz da definição tripartite dos gêneros de filosofia, desconhecendo sua proveniência cética (v. p. 148; tal desconhecimento é aliás corrente entre os comentadores que se põem a analisar a noção montaigniana de filosofia, como COMTE-SPONVILLE, 1993, p. 30). Segundo Stevens, Montaigne não emprega o termo “philosophie” designando a “pesquisa da pedra filosofal”, que ele identifica em Pasquier e é relativamente comum na época (v. p. 153; v. tb., p. ex., GREIMAS, KEANE, 1992, p. 474). Parece-nos difícil, porém, negar que as críticas de Montaigne à alquimia se enquadrem no mesmo modelo geral da crítica ao dogmatismo. 31. Em HP I, 18, Sexto responde à questão “O cético lida com a Física?” explicando que o cético não a aborda com o intuito dogmático de fazer asserções, mas sim ao opor proposições com o objetivo de obter a quietude. “É com o mesmo espírito que nós abordamos as partes lógicas e éticas do que eles chamam de filosofia” (itálicos nossos). Ver também HP II, 11. 234

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decadentes adquiridas por essa atividade, que acabaram por comprometer drasticamente a própria maneira de concebê-la. Assim, o dogmatismo estende-se e degrada-se num modo de filosofar que, só reconhecendo como verdadeiro o que está em Aristóteles, se dispensa com mais liberdade do emprego do juízo naquilo que sustenta, e acaba por se enredar ainda mais cegamente nas mesmas teias que já teriam imobilizado, nalgum grau por certo mais sutil, o juízo dos antigos32. Tal é o pano de fundo da apresentação que Montaigne oferece de sua própria filosofia. Ao justificar a escrita e a publicação de seus Ensaios, ele alega que não pretendeu haurir fama (a despeito da popularidade que alcançaram), nem esperou, mesmo daqueles que o apreciaram, uma particular capacidade de apreender adequadamente o sentido do exercício do juízo neles contido: [A] Assim, é uma espécie de exercício do qual espero muito pouco de recomendação e louvor, e um modo de compor de pouco renome. [C] E, pois, para quem escreveis? Os sçavans, a quem concerne a erudição livresca, não conhecem outro valor que a doutrina e não reconhecem outro procedimento em nossos espíritos que a erudição e a arte… Quem ignora Aristóteles, segundo eles, ignora-se a si mesmo. As almas comuns e populares não vêem a graça e o preço de um discurso alto e livre. Ora, são as duas espécies que ocupam o mundo. A terceira… das almas regradas e fortes por si mesmas é tão rara que não possui nome nem destaque entre nós: esforçar-se por agradá-la é quase perder de todo seu tempo… (II, 17, 656-657). Reaparece aqui uma mesma classe de pseudo-sábios repetidamente ridicularizados nos Ensaios, em retomada de um mote erasmiano e agripano: philosophes cujas prescrições são de menor acordo com a verdadeira filosofia do que o modo pelo qual o vulgo vive costumeiramente33. São presumidos filósofos que não se apercebem de quão precariamente empregam as próprias faculdades intelectuais e merecem por isso ser ridicularizados — como Tales o foi por sua camareira, que ria de sua cegueira para os fatos mais óbvios à sua volta, perdido em suas 32. Cf., por exemplo, I, 25, 134-135AC. 33. Ver II, 17, 660A. 235

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elucubrações sobre as causas34. Esse mesmo mote — a crítica à filosofia tradicional, compreendida como elogio da memória e erudição livresca, em detrimento do exercício natural das faculdades de conhecer — surge com freqüência em textos do período e ecoa em conhecidas páginas do Discurso do método35 . Mas ele provém, como vemos, do escárnio paradoxal cético, tal como se apresenta nos textos menos freqüentados de Corneille Agrippa, que também ironiza genericamente o que denomina a “filosofia” segundo as formas institucionais que a teriam mumificado numa obediência irrefletida à autoridade dos antigos36. Com Montaigne, a crítica da filosofia em voga parece projetar-se, em certa medida, numa zona de indeterminação de seu estatuto filosófico, em vista do modo como ele mesmo mapeia a história de filosofia: ela é um escárnio da filosofia institucional, que se situa exteriormente a ela, mas imantada pela intenção de alcançar um sentido da atividade filosófica modelado no mundo antigo (tal como ele o observa) e virtualmente desconhecido de seu tempo. A isso corresponde o modo como o jogo literário dos autores paradoxais é investido de um novo sentido: não apenas a condenação da fraqueza dos saberes instituídos ganha a dimensão de uma crítica epistemológica, mas se associa ao projeto de rearticulação coerente de uma postura filosófica que se pensa indissociável de sua prática. A metáfora do exílio do filósofo cético diante dos costumes (que usamos para caracterizar a interioridade como o espaço reservado de sua reflexão, no capítulo III) pode aqui ser retomada e mesmo radicalizada: Montaigne tende a situar sua reflexão cética num horizonte conceitual em que a oposição antiga entre dogmatismo e ceticismo se converteu, segundo ele mesmo, numa oposição entre uma pseudofilosofia marcada por ergotismos e ausência de julgamento e um gênero de atividade intelectual produzido por uma categoria de almas que não têm mais nome nem lugar, sejam os dogmáticos (num sentido mais nobre desse termo), sejam, num degrau acima de liberdade filosófica, os acadêmicos e pirrônicos. 34. Ver 538AC. 35. Ver Discurso do método, partes primeira e sexta, especialmente p. 70-71. 36. Ver De Vanitate Scientiarum, Preface au Lecteur, vi vof, vii fof e, adiante, 40fof. 236

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Essa situação parece não ser desprovida de conseqüências para o modo como esse cético constata a relatividade de sua própria compreensão das coisas. De modo geral, o resultado da reflexão sobre o ceticismo como um gênero filosófico é o de conduzi-lo à compreensão de que o sentido que podem possuir as teses filosóficas é sempre dependente da ação do juízo de cada filósofo. Julga ele que sua reflexão se isenta plenamente dos mesmos determinantes culturais que empobrecem o pensamento de seu tempo?37 Se assim fosse, talvez sua reflexão não demandasse, como uma tarefa básica e prioritária, medir o alcance de seu próprio juízo natural, como vimos no item anterior, continuamente levada a cabo pelo cotejo de suas opiniões pessoais com os exemplos antigos com os quais as pode comparar. Eis como os Ensaios convertem-se, a um só tempo, no exame que seu autor realiza das razões legadas pelos filósofos mais diversos e de seu próprio juízo, e no aprendizado de uma “nova” filosofia, que se trata, na verdade, de recriar à luz do ceticismo antigo — segundo a liberdade do emprego das faculdades intelectuais a que tal ceticismo potencialmente conduz. Esse aprendizado da dúvida há de se fazer, segundo Montaigne, por meio da freqüentação dos espíritos mais altos, que tanto podem fortificar o espírito quanto pode enfraquecê-lo a freqüentação com os mais baixos e doentios38. Ele não consiste, porém, numa mera retomada das “teses” que teriam definido a postura de tais filósofos, pois seu sentido filosófico reside, como vimos, no exercício intelectual efetivamente realizado com base nas razões e nos exemplos legados, sejam eles quais forem. Ganham aqui especial relevo as preconizações pedagógicas que Montaigne nos oferece em “Da educação das crianças” (I, 26) e que, a bem observar, refletem vários aspectos de sua atividade filosófica. É 37. Em I, 25, depois de examinar uma primeira explicação sobre a causa pela qual os homens com mais saberes podem se tornar menos sábios (segundo a qual a ação do espírito demasiado atarefado acaba se curvando pelo peso, explicação que ele imediatamente rejeita; v. 134A), Montaigne avalia, detendo-se especialmente em seus contemporâneos, que isso depende da “má forma” como eles se ligam à ciência e da forma de instrução vigente, voltada apenas “a nos mobiliar a cabeça de science”, sem se ocupar da virtude e do juízo. 38. III, 8, 923B. 237

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fácil ouvir o eco dessas preconizações na pedagogia moderna, e por isso mesmo importa evitar uma possível confusão entre seus elogios à superioridade do juízo, por oposição a um saber calcado na memória, e a vulgarização posterior dessas reflexões, que as transformou nos chavões que conhecemos39. Eis o que ele preconiza ao futuro preceptor do filho de Mme. de Foix: [A] Que ele lhe faça passar pelo crivo do juízo [estamine] e não aloje nada na cabeça por simples autoridade e crédito: que os princípios de Aristóteles não lhe sejam princípios mais do que os dos estóicos e dos epicuristas. Que lhe seja proposta a diversidade dos juízos: ele escolherá se puder, se não, que permaneça em dúvida… (I, 26, 160). O principal benefício desse exercício do juízo parece ser, segundo Montaigne, o de possibilitar a apreensão da precariedade e da fraqueza do juízo humano ante o modo como a diversidade de leis e costumes dos diversos povos e a diversidade de julgamentos a que as filosofias podem submetê-los: [A] Tanto de humores, de seitas, de julgamentos, de leis e de costumes nos ensinam a julgar sadiamente os nossos, e ensinam o julgamento a reconhecer sua imperfeição e sua fraqueza natural, o que não é um ligeiro aprendizado… (I, 26, 158). Como compreender a diferença entre o “ensaio” desse aluno e o seu próprio, uma vez que também ele pretende se pôr diante do horizonte demarcado pela altura dos antigos filósofos (e, entre os muitos outros que ele freqüenta, especial e privilegiadamente os céticos), em busca de reinstaurar a liberdade do juízo por seu próprio exercício? A passagem que acabamos de citar é mais uma que, tematizando indiretamente o problema do engajamento filosófico cético, pode bem provocar um estranhamento. Sabemos que a dúvida é o resultado a que, segundo seu próprio juízo, esse exercício, quão melhor e mais rigorosa39. Embora, em meio a uma crítica às formas que assume a educação de seu tempo, Montaigne afirme que “nós não trabalhamos senão para abastecer a memória, e deixamos o entendimento e a consciência vazios…” (I, 25, 136AC), ele também explica, noutra parte, que a memória é uma ferramenta fundamental para o bom uso do julgamento (II, 17, 649A). Trata-se de uma concepção de filosofia identificada com a plena capacidade de exercitar as diversas faculdades espirituais humanas, em seu conjunto. 238

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mente se execute, deverá retornar. Porém aqui o resultado dubitativo, em vez de ser apontado como uma meta da filosofia, surge como uma espécie de prêmio de consolação: “se não [puder escolher], que permaneça em dúvida”. Se, de acordo com o juízo filosófico do próprio Montaigne, a impossibilidade de escolher (entre as filosofias dogmáticas disponíveis) não demonstra por si falta de capacidade intelectual, mas antes o contrário, o modo como ele sugere que essa impossibilidade demonstre tal falta de capacidade parece ocultar aquela que, ao menos segundo o juízo de Montaigne, seria a meta dessa atividade (suspender o juízo). Por que, afinal, a meta cética está oculta? A resposta nos parece ser esta: porque o essencial, a um só tempo, do aprendizado filosófico que ele tem em vista e da prática filosófica constitutiva do ceticismo é, justamente, o exercício do juízo. Considerando as exigências filosóficas que o movem, tal como antes expostas, podemos ver que não faria sentido pretender impingir a epokhé como uma máxima a ser aceita por tal aluno meramente com base na autoridade, se não fosse ele capaz de reconhecer por si mesmo a cogência da reflexão que a tanto deveria conduzir. Fazê-lo seria suprimir aquilo que sua reflexão sobre o ceticismo mostra-lhe ser mais relevante nessa filosofia: a liberdade do uso do juízo (ainda que seu juízo lhe apresente por antecipação os resultados a que tal liberdade deva conduzir, e que, considerados isoladamente, dissociados do exercício intelectual que os justifica, perdem sentido). De que valeria apresentar essa identidade por meio de uma etiqueta mais óbvia (a despeito de tudo o que vimos) se o próprio fato de se dizer “cético” — ou bem, se preferisse, “estóico” ou “epicurista” — poderia surgir ao leitor como um primeiro convite para a aceitação daquilo mesmo que o ceticismo, devidamente compreendido, lhe ensina ser um resultado, em grau maior ou menor, de uma deficiência na capacidade de julgar (a saber, a aceitação de opiniões meramente com base na autoridade alheia)? Apresentar esse juízo seria, portanto, ocultar ao leitor e ao aluno o aspecto principal da atividade filosófica do gênero preconizado. Mas esse ocultamento, como sabemos, não constitui um caso isolado; ele se manifesta sistematicamente nas passagens em que Montaigne alude à sua identidade filosófica. Essa passagem apenas aponta 239

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de modo mais claro suas causas, que certamente não se limitam aqui aos perigos da plena exposição do juízo pessoal. Assim como o paradoxo permite dissimular as dimensões inconvenientes das opiniões a ser apresentadas, ele também exige do leitor que empregue por si mesmo (para enfrentar os enigmas e decifrações que propõe) a capacidade de julgar que, segundo essa concepção de filosofia, é a própria condição de compreensão de seu sentido. Trata-se aqui de um aspecto peculiar da estruturação argumentativa dos Ensaios, para o qual chamaram a atenção alguns dos comentadores que os aproximaram da literatura do paradoxo (mesmo que o tenham feito sem explorar suficientemente a articulação entre essa estratégia argumentativa e o posicionamento filosófico cético do qual ela se converte em instrumento)40. Podemos agora ver que o paradoxo serve a Montaigne como instrumento para conduzir o leitor à “boa” atividade filosófica, tal como a preconiza e busca pôr em prática. Tal como vimos em outros exemplos, percebemos que também aqui o paradoxo tende a se dissolver no momento em que compreendemos que o engajamento cético sugerido por tais preconizações não corresponde ao sentido usual, não-qualificado ou “dogmático”, do engajamento filosófico. Além das “teses” que o poderão descrever, esse engajamento consiste prioritariamente na liberdade com que o filósofo se dispõe a empregar seu juízo externamente a toda e qualquer doutrina: no ensaio do juízo que Montaigne preconiza a seu aluno ideal, e ao qual indiretamente convida seus leitores reais, à falta de poderem reconhecer qual seria exatamente o seu juízo sobre a ques40. Trata-se de uma visão corrente acerca do papel do paradoxo na literatura do Renascimento. Segundo BOWEN (1972), os escritores do século XVI se valem do paradoxo, da ambigüidade, da antítese e do enigma porque buscam antes estimular o leitor, estética e intelectualmente, do que “satisfazê-lo” (p. 4-5). MACGOWAN, por sua vez, considera-o um meio de envolver o leitor na obra, conduzindo as pessoas a pensar por meio do uso deliberado da obscuridade e pela variedade de estilo e conteúdo. “Abordagens oblíquas, argumentos irresolvidos, discussões inconclusivas, e uma maneira hesitante de escrever e pensar, tudo isso serve para envolver o leitor na obra…” (1974, p. 17, v. tb. p. 68, 76). Ver igualmente MALLOCH, 1956, p. 192. No mais, mesmo outros intérpretes que não se preocuparam diretamente com o tema do paradoxo parecem-nos todavia bastante sensíveis a esse aspecto dos Ensaios, como, por exemplo, POUILLOUX, 1995, passim, especialmente p. 131 ss. 240

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tão examinada. Tal parece ser, afinal, o intuito do tratamento desconcertante e inconclusivo de diversos temas examinados por Montaigne41. Tampouco o auto-retrato que seus juízos compõem, ainda que não se resumam a isso, deixa de assumir um sorriso irônico por meio dessa estratégia retórica: talvez a imagem algo difusa de suas posições pessoais não se deva exclusivamente à dificuldade da empresa autodescritiva, mas também ao propósito deliberado de fazer com que o leitor julgue por si mesmo ante a perplexidade a que é freqüentemente conduzido quando busca, no detalhe, saber o que pensa Montaigne. Ao examinar, por exemplo, o acidente da queda do cavalo, que quase lhe tirara a vida, em “Da exercitação”, Montaigne conclui que “para se familiarizar com a morte, basta dela se avizinhar”, mas não deixa de sublinhar, concordando com Plínio, que “cada um é para si mesmo uma boa escola [discipline] desde que tenha a capacidade de se observar de perto. Esta não é a minha doutrina, é o meu estudo; e não é a lição de outrem, mas a minha…” (II, 6, 377). Noutra passagem, ele assim estende, implicitamente, sua desconfiança sobre os testemunhos alheios àqueles que apresenta em sua obra: [B] Eu, que sou um rei na matéria de que trato, e que não devo nada a ninguém, nem por isso creio inteiramente em mim mesmo. Eu lanço com freqüência alguns repentes de meu espírito, dos quais 41. Naturalmente isso não diz respeito a todas as opiniões que Montaigne emite em seu texto. Todavia, diversos capítulos se apresentam como um conjunto de julgamentos acerca de determinado problema sem que se possa, ao que nos parece, obter uma resposta conclusiva acerca da posição exata do autor sobre o problema. Limitemo-nos aqui a dois exemplos. O leitor poderia consultar o capítulo I, 31 (“Dos canibais”), em busca de determinar exatamente o critério por ele aceito para a confiabilidade dos relatos sobre os costumes diversos (se os testemunhos dos mais capazes tendem a ser maquiados por sua intenção de conferir verossimilhança ao que contam, v. 205A, e, ao mesmo tempo, os menos capazes, se permitem melhor que observemos onde emendam a estória, nem sempre compreendem bem o que relatam, v. 214A); ou o capítulo III, 12, em busca de saber exatamente qual seria a posição do autor sobre o que significa exatamente agir “conforme a natureza” (tal como ali interpreta o modo de proceder socrático), ante as diversas dimensões que se podem contrapor (o conhecimento, a arte, o costume, a dissimulação) às várias interpretações que esse próprio termo adquire ao longo do capítulo. Para uma análise da estrutura paradoxal desse capítulo, ver O’BRIEN, 1989. 241

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desconfio, [C] e certas sutilezas verbais, das quais sacudo as orelhas, [B] mas deixo-as correr ao acaso… (III, 8, 943).

Se assim for, isso também nos mostra que, embora afirme não esperar grande compreensão do exercício do juízo que pratica, nem por isso Montaigne se encastela em sua filosofia, desprezando o que venham a pensar os demais; ao contrário, ele busca, a um só tempo, transformar seu livro, segundo as ferramentas de que dispõe, num meio de encaminhar o leitor à atividade do juízo que preconiza, e contornar os problemas que poderiam decorrer de um questionamento inconseqüente de aspectos dos costumes aceitos42. Igualmente, parece lícito dizer que, se a perspectiva em que o ceticismo é retomado, na forma do “ensaio” montaigniano, é a da busca da instauração da filosofia em um grau superior àquele disponível segundo a prática contemporânea, embora não o deforme filosoficamente, parece deslocar seu centro de gravidade, se assim podemos dizer, ao momento que precede e prepara a epokhé. Mesmo que a suspensão seja o horizonte de tal exercício cético, como veremos no próximo capítulo, a última passagem que analisamos mostra que ela tende a se tornar secundária caso seja dissociada da ação do juízo que a ela conduz — do ensaio, a bem dizer, que corresponderia assim, mais precisamente, ao momento da zétesis, ou da quaestio. Dizer que o aluno “escolherá se puder, se não, que permaneça em dúvida” ou que ele obterá a clareza acerca do seu próprio filosofar de modo “impremeditado e fortuito” são apenas dois modos de destacar a importância central desse mesmo exercício, para o qual o filósofo desperta ao compreender o que se oculta sob a idéia de que o valor da filosofia é determinado pela verdade que aporta. Como dissemos, a condenação da esterilidade da filosofia tradicional é uma espécie de lugar-comum da literatura do período sob in42. Noutra passagem já considerada, em que se põe igualmente a distinguir diversas categorias de espíritos (a “ignorância abecedária” oposta à “ignorância doutoral”, entre as quais ele se situa), Montaigne conjectura, porém, que os que apreciarão sua obra serão exatamente os medianos. Mas isso, segundo Montaigne, não se deverá à capacidade de compreendê-lo, mas sim, ao contrário, ao fato de que o entendimento do leitor não há de se satisfazer plenamente com o que encontrar: “[A]… aqueles não entenderiam o suficiente, estes entenderiam demais…” (I, 54, 313). 242

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fluência cética, e reaparecerá em Descartes43. Pensamos, porém, que esta análise nos permite aprofundar a compreensão desse parentesco. Indo além do paralelo que propusemos no final do terceiro capítulo (quanto ao estatuto “prático” da aceitação das crenças que se pode obter, em face da impossibilidade de reconhecer a verdade ou de seu desconhecimento apenas provisório), diríamos agora que o modo como Montaigne vincula a compreensão da filosofia a uma ação concreta do juízo, capaz de conferir sentido preciso às fórmulas que a representam e traduzem, anuncia uma preocupação que será igualmente central para Descartes, a despeito da divergência de resultados (posto que Descartes pretende formular uma metafísica). Para ambos, será de grande importância que o texto se valha de estratégias para conduzir o pensamento a se pôr adequadamente em marcha e reconhecer em seu movimento o sentido particular que se pode conferir aos conceitos (também no caso de Descartes, trata-se de uma estratégia dubitativa). O exemplo mais claro desse procedimento na filosofia cartesiana se apresenta nas Meditações. Ao longo do exame da primeira certeza, confrontando as crenças que anteriormente possuía acerca de sua natureza às razões de duvidar ainda vigentes, da qual extraiu a certeza de sua existência, o sujeito da investigação acaba por conferir sentido filosoficamente preciso ao conhecimento de sua existência como uma coisa pensante44. Descartes emprega uma dúvida filosófica metodologicamente, para direcionar o pensamento na via de uma reflexão criteriosa, de tal modo que sua supressão vem de par com a compreensão rigorosa de como as verdades descobertas segundo a ordem das razões podem revogá-la. Montaigne, por sua vez, também se serve metodologicamente do paradoxo, para conduzir não exatamente à verdade, mas à dúvida cética em seu sentido filosófico próprio, encaminhando o juízo numa investiga43. Segundo Rodis LEWIS (1999), é com Montaigne que Descartes aprende a se opor às pretensões filosóficas da lógica silogística e da retórica (v. p. 82-83). 44. Ver Méditations, II, ed. Beyssade, p. 77; Abregé de six méditations suivantes, p. 49 da mesma edição. Importa igualmente notar que Descartes é sensível ao fato de que o espírito deve ser exercitado a buscar aquilo que já foi encontrado por outros para aprender a reconhecer filosoficamente as evidências filosóficas, tal como afirma no comentário da décima das Regras para a direção do espírito. 243

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ção em cujo horizonte se projeta a perspectiva do reconhecimento da incapacidade de escolher entre as filosofias que prometem a verdade. Trata-se, em ambos os casos, de pretender pôr adequadamente em ação as faculdades humanas de conhecer, no sentido de uma investigação filosoficamente “nova”, seja em sentido absoluto, seja relativamente ao modo como a verdadeira “filosofia” não mais tem nome, em lugar daquilo que se chama, impropriamente, de filosofia. Eis, em suma, como a noção de juízo passa a constituir uma espécie de eixo da investigação cética de Montaigne: sua ação determina não apenas a oposição entre ceticismo e dogmatismo, mas a própria oposição entre o filosofar, em sentido próprio, e um simulacro dessa atividade intelectual pela qual os sçavans crêem filosofar. Importa, assim, proceder a uma investigação dessa faculdade, que Montaigne concebe de modo diverso daquele pelo qual Descartes a subordina a uma razão naturalmente dotada do poder de conhecer a verdade, mas também diverso, talvez, daquele como o conceberam os antigos pirrônicos. 5.3. O filósofo e as abelhas

O juízo não é pensado por Montaigne como o simples ato de negar ou afirmar uma proposição, mas como uma faculdade mais complexa, na qual se refletem as mesmas exigências filosóficas céticas, deixando entrever, contudo, uma imagem própria da subjetividade. Um capítulo fundamental para a compreensão do sentido que essa noção adquire nos Ensaios é ainda “Da educação das crianças” — no qual, a despeito das críticas que o vimos fazer à filosofia de seu tempo, ele sublinha o papel central dessa disciplina na formação dos juízos e dos comportamentos: [A] Na nossa [escola], um escritório, um jardim, a mesa e a cama, a solidão e a companhia, a manhã e a tarde, todas as horas serão para ele uma, todos os lugares lhe serão de estudo: pois a filosofia que, como formadora de juízos e de costumes, será a sua principal lição, tem esse privilégio de se imiscuir em toda parte… (I, 26, 164). Já vimos que a atividade cética de Montaigne volta-se à investigação do alcance de seu próprio juízo. Mas o que significa, para ele, a “formação do juízo”? Observemos, nessa passagem, como a filosofia é associada 244

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igualmente ao juízo e às ações. Por certo, a moral possui um privilégio temático no conjunto de estudos que a filosofia, a seu ver, deve compor. Contudo, trata-se aqui de algo mais amplo, a saber, da exigência de uma articulação entre pensamento e ação. Tal idéia relaciona-se, mais uma vez, à concepção geral de filosofia que Montaigne apresenta desde os capítulos filosóficos mais antigos, escritos sob o estímulo das cartas de Sêneca. Quando, em I, 26, afirma que a filosofia deve ser posta em prática, testada, assimilada e traduzida pelo candidato a admiti-la, nos termos de sua experiência pessoal concreta, ele retoma exigências formuladas por Sêneca, segundo quem não se deve filosofar apenas nas palavras, mas também nas ações. Tampouco aqui se trata apenas de privilegiar os conteúdos da filosofia moral, mas de sustentar que a presença da filosofia (seja qual for ela) deverá ser averiguada mediante seu efeito ao transformar a ação daquele que a pratica45. Igualmente podemos encontrar, nas Epístolas, outra idéia central que ressoa nos Ensaios, a saber, a afirmação da liberdade de aderir àquilo que a razão individualmente mostra ser aceitável, por contraposição ao que é ditado pela autoridade de outrem (ou pela força do costume, segundo a voz da maioria)46. Pensamos que seria um exagero e uma imprecisão dizer que isso representa uma “influência estóica” permanente nos Ensaios, mesmo após o contato com o ceticismo. Tais reflexões desenvolvem antes uma tendência antidogmática, já perceptível no próprio Sêneca, numa direção diversa, posto que no caso de Montaigne, uma vez articulada à reflexão cética, ela culminará na plena dissolução, por assim dizer, de seu substrato “dogmático”47. Sêneca se apresenta como um “estóico inteiramente livre”, disposto a submeter todo e qualquer ponto da sabedoria antiga ao crivo de seu juízo pessoal, valendo-se continuamente de máximas de Epicuro ao se endereçar a Lucílio. Porém, a partir de seu contato com o ceticismo, Montaigne passa a se opor frontalmente aos 45. Cf. Sêneca, Epist. I, xx, 132 et. ss.; Ensaios, I, 26, 158-159A, 168AC; I, 25, 137A. 46. Ver ibid., I, xxix, 163; xxxiii, 183; e, especialmente, I, xxi, 115: “… deve-se filosofar como se age no senado: quando não partilho de um ponto do senador, peço a divisão e só voto no que aprovo”. 47. Para uma análise mais detalhada desse ponto, ver EVA, 1995. Retomaremos esse tema no capítulo VII. 245

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conteúdos filosóficos da moral estóica, pelos quais as reflexões de Sêneca freqüentemente se pautam, e que, nos capítulos mais antigos dos Ensaios, como I, 20, ainda articulam sua concepção de filosofia48. A partir da época da redação da “Apologia”, trata-se sobretudo de recusar a pretensão filosófica (igualmente central de uma perspectiva estóica) de obter, por meio da razão, um conjunto definido de preceitos que, por sua verdade, devem servir como diretriz para a vida filosófica. Posteriormente ao contato com o ceticismo, essa liberdade antidogmática transforma-se, portanto, numa desconfiança cética que abarca tanto a science acerca do que nos é longínquo e desconhecido, como os epiciclos planetários, quanto, ainda mais enfaticamente, as ficções filosóficas sobre a alma humana ou as preconizações impraticáveis de suas morais dogmáticas, meros jogos de palavras que dão as costas para o mundo49. De fato, o interesse de Montaigne pela reflexão de Sêneca pode bem ter contribuído para posteriormente realçar o tema cético da liberdade argumentativa, tal como se rearticulará em sua prática de um filosofar livre da pretensão de afirmar alguma verdade. Mas esse tema, a despeito de sua origem, ganha uma identidade filosófica precisa quando passa a ser reconhecido como definidor, em particular, do filosofar cético. No mesmo passo em que o dogmatismo se revela uma forma de cerceamento do juízo (posto que sempre se baseia num intuito de defender a veracidade de teses a rigor insustentáveis), a idéia de que o “conhecimento” propiciado pela filosofia, seja qual for, deve sempre ser submetido à experiência do juízo individual tende a se identificar à própria concepção do ensaio cético, concebido como a realização dessa prática liberada da 48. Um motivo recorrente da crítica de Montaigne ao estoicismo, de uma perspectiva cética, é o de observar que suas preconizações morais contra a dor, por exemplo, são artificiais ou simplesmente “cerimoniosas” (v. II, 37, 760-761A); segue-se daí uma crítica aos conselhos da “filosofia” (estóica, em particular) como superficiais e inadequados à vida e aos fatos em questão (no caso, os males físicos), contrapostos a uma descrição pessoal de Montaigne sobre o modo como pessoalmente experimentou o sofrimento ocasionado pela pedra em seus rins. Por vezes, Montaigne critica de modo geral a impossibilidade de pôr em prática as “idéias elevadas” da filosofia (v., p. ex., II, 20, 675) e afirma que o costume tem um poder maior de conformar a vida das pessoas do que as idéias filosóficas o têm de conformar a alma dos sábios (v. I, 23, 114). 49. Ver 537A; 541A ss.; III, 13, 1073B. 246

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pretensão de “reger, ordenar e estabelecer” a verdade, que acaba sempre por falsear o livre emprego de nossas faculdades cognitivas. Um aspecto decisivo dessa transformação filosófica reside no sentido que adquire a própria noção de juízo mediante sua articulação com o filosofar cético. Montaigne afirma, no mesmo ensaio, “Da educação das crianças”, que a experiência individual do contato com os diversos discursos morais deverá sobretudo ser aferida no modo como a filosofia for apreendida, segundo a versatilidade com que o aluno for capaz de empregar uma mesma idéia filosófica em circunstâncias e sentidos inusitados. O seu exercício filosófico diante das razões está intrinsecamente associado ao sentido em que uma determinada idéia pode ser assimilada pelo juízo: [A] Que ele [o seu preceptor] não o interrogue apenas acerca das palavras de sua lição, mas do sentido e da substância, e que ele julgue o proveito que ele terá feito, não pelo testemunho de sua memória, mas de sua vida. Que ele o faça dispor aquilo que acaba de aprender em cem faces, e acomodar a tantos quantos assuntos diferentes, para ver se ele ainda o tem bem com ele, e o fez bem seu… É testemunho de má digestão regurgitar a carne como ela foi engolida. O estômago não fez a sua operação se ele não alterou a forma e a feição daquilo que lhe deram para digerir… (I, 26, 151). Como vimos, a reconstrução do ceticismo por Montaigne não apenas enfatiza a zétesis, mas conduz a discernir um papel central na dimensão ativa do juízo ante as razões com que se depara50. Nisso nos parece destacável uma particularidade de sua compreensão do ceticismo, pela qual reencontramos, por um ângulo diverso, a mesma distinção já considerada entre os domínios da “verdade” e da “utilidade”. Pois tal exercício compreende o posicionamento do juízo diante das diversas razões que podem a ele se apresentar, e que, no entanto, não mais interessam como formulações de uma verdade definitivamente descoberta. Porém, dada a maneira nítida com que Montaigne opõe “a ciência e a verdade”, que se poderiam talvez alojar em nós sem o uso do juízo, e a ação dessa faculdade que, por sua vez, tem no reconhecimento da igno50. Como observou WALTON, 1988, p. 93. 247

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rância um de seus mais belos testemunhos51, tais razões importarão, ainda que difiram em seu peso individual, como um meio de “formar o juízo” do aluno de filosofia que se dispuser a tentar “incorporá-las”, numa atividade que Montaigne entende ser de todo diversa do modo como usualmente eles são conduzidos a assimilar “discursos universais”52. Tais razões podem ser objeto de um esforço do entendimento ou colaborar para o desenvolvimento, por meio da visitação segundo perspectivas filosóficas potencialmente conflitantes, de uma maleabilidade pela qual a alma se torna capaz de adaptar-se a circunstâncias diversas53. Esse, em particular, é um dos aspectos pelos quais essa espécie de visitação às razões das almas mais elevadas torna-se importante. Eis como Montaigne desenvolve a mesma metáfora digestiva que acabamos de considerar: [C] Quem segue um outro, não segue nada. Ele nada encontra, pois nada busca… [A] É preciso que ele se embeba de seus humores, não que ele aprenda seus preceitos. E que ele esqueça de onde os toma, ousadamente, se assim o quiser, mas que ele saiba deles se apropriar. A verdade e a razão são comuns a todos, tanto aos que dizem primeiro quanto aos que dizem depois. [C] Não é mais segundo Platão do que segundo eu mesmo, posto que ele e eu entendemos e vemos igualmente. [A] As abelhas pinçam aqui e ali as flores, mas delas fazem depois o mel, que é inteiramente delas, não é mais tomilho nem manjerona; assim, ele transformará e fundirá as peças que tomar de empréstimo de outrem, para delas fazer uma obra inteiramente sua, a saber, seu juízo. Sua educação, seu trabalho e seu estudo não visam senão formá-lo… (I, 26, 151-152). O tratamento dessa metáfora, corrente na literatura renascentista54, converte-se aqui num exemplo daquilo mesmo que, por seu intermédio, Montaigne está propondo (pois também ele dela pretenderia extrair aqui um “mel” particular). Ele reside, precisamente, em sua con51. Ver II, 10, 409A. 52. I, 26, 146C. 53. Ver ibid., 166-167AC; III, 3, 821B. 54. Villey ressalta esse ponto, identificando como possíveis fontes da metáfora da abelha, em I, 26, Plutarco, Horácio ou Castiglione (v. Les Essais, 1243). GLUCKER (1988, p. 63), tal como nos alertou Roberto Bolzani Filho, vale-se dessa metáfora para 248

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cepção de que o processo pelo qual o juízo se apropria de uma idéia como sua é freqüentemente um processo de transformação, tanto da idéia apropriada quanto do próprio juízo. Eis aqui mais um desdobramento de como, nesse exercício cético do juízo, enfatiza-se sua dimensão radicalmente individual e subjetiva. Como vimos, o juízo é a faculdade ou capacidade pela qual o sujeito pode se apropriar das opiniões de outrem, tornando-as suas. Nesse sentido — diversamente do que ocorrerá na filosofia cartesiana, por exemplo — ele tende a se identificar com o que Montaigne denomina o entendimento (l’entendement), o filtro (l’estamine) pelo qual se pode aceitar determinada idéia, fazendo-a sua: “Não é mais segundo Platão do que segundo eu mesmo, posto que ele e eu entendemos [entendons] e vemos igualmente…”. Em certas passagens, tal ação do juízo é identificada à experiência concreta pela qual temos contato direto com uma idéia que pensamos (razão pela qual Montaigne se recusa, mais uma vez, a identificar sua filosofia ao conjunto de razões que pode compilar em seu livro)55. Mas o papel delegado ao juízo é ainda mais amplo: além do ato particular pelo qual se emite um julgamento, ele compreende igualmente uma capacidade subjetiva de compreensão, uma potência que é posta em ação a cada vez que se julga, um discernimento que resulta da própria experiência em julgar (sendo a “experiência” um outro conceito-chave dos Ensaios com o qual o juízo é freqüentemente relacionado). Por vezes, sua ação designa uma capacidade de discernir as causas dos eventos, a fim de obter um conhecimento capaz de se refletir no aperfeiçoamento de determinada prática: [B]… [O] fruto da experiência de um cirurgião não é a história de suas práticas, e a lembrança de ter curado quatro pestilentos e três gotosos, se ele não sabe desse uso tirar de que formar seu juízo, e não nos sabe fazer perceber que ele tenha se tornado mais sábio no emprego de sua arte… (III, 8, 931; itálicos nossos). ilustrar o modo como, segundo Cícero, a postura cética acadêmica se associaria à admissão “eclética” de opiniões filosóficas diversas como probabile. Infelizmente, Glucker não indica a fonte de sua metáfora. 55. Ver I, 25, 136C. 249

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A experiência, associada ao desenvolvimento de uma capacidade de bem julgar, é igualmente apresentada por Montaigne como o critério pelo qual ele busca formar suas opiniões56. Não é num sentido inteiramente diverso que cabe ao juízo, além da aprendizagem dos meros preceitos, imbuir-se, como diz ele, dos humeurs dos autores que freqüenta: por seu intermédio se podem considerar os modos particulares pelo quais tais autores refletem sobre razões e exemplos diversos como modelos que o podem capacitar a pesar aqueles que se apresentarem a ele57. Mas, para Montaigne, tal contato se converte num meio de submeter esse órgão de nosso conhecimento a um determinado exercício: ou bem, sob o alento dos espíritos de maior estatura, ele pode ser emulado e se desenvolver, ou bem pode também involuir ou definhar, tornando-se “servil e covarde”, escravizando-se aos costumes. Por certo, em todos os homens o emprego de tal faculdade encontra alguma aptidão, assim como algum limite natural. Observada por seu olhar cético, porém, ela não corresponde a um poder tacitamente dado, no mesmo sentido e da mesma forma, a todos os homens, mas sim a algo que, para se manifestar e se desenvolver, carece sobretudo de exercício e de emprego — como se se tratasse de uma habilidade específica, ou mesmo da atividade de um órgão físico, tal como Montaigne a ela metaforicamente alude58. 56. A despeito de suas muitas críticas e ironias para com os médicos (em sua maior parte tomadas de Agrippa), Montaigne oferece-nos a seguinte analogia entre os médicos e sua maneira de ver: “[A] A medicina se forma por exemplos e experiências, [assim] também se faz minha opinião…” (II, 37, 764). LA CHARITÉ observa ainda que um dos sentidos freqüentes do termo “jugement” nos autores do século XVI é o de designar uma qualidade pessoal, por meio de uma demonstração de gosto ou de astúcia em apreciar o valor de algo que ainda não está devidamente demonstrado (ibid., p. 5-6). 57. Ver, por exemplo, a comparação entre Sêneca e Plutarco, em III, 12, 1040BC, segundo o modo como agem sobre o juízo: o primeiro, mais vivo, o arrebata; o segundo, mais assentado e informativo, o ganha. Não parece estar em jogo, nessa confrontação, saber qual das opiniões desses filósofos corresponde à verdade. Ademais — e mesmo que Montaigne confessadamente o prefira, a essa altura —, o modo como o estilo de Plutarco é remetido à ação do entendimento não obsta o interesse pela forma senecana de julgar e por seu efeito em nosso juízo. 58. Ver I, 26, 152 AC: Montaigne compara o emprego do julgamento à prática de um instrumento musical, que não se pode bem tocar sem exercício. Para tanto, segundo Montaigne, qualquer objeto pode ser adequado: a malícia de um pajem, a tolice de um 250

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Assim, essa concepção de juízo parece emergir como um resultado da mesma imagem naturalizada do homem produzida pela perspectiva cética, vista aqui de outro ângulo. Com efeito, a mesma metáfora apiária da formação do juízo descreve o imbuir-se dos “humores” como uma espécie de “transformação” e “fusão das peças” emprestadas de outrem, produzindo algo diverso. De modo talvez análogo àquele pelo qual fisicamente os homens manifestam suas diferenças, também a ação do juízo tem a propriedade de produzir um “mel próprio”, isto é, de manifestar um aspecto particular daquele que julga. De tal modo que as opiniões que poderiam passar por idênticas, vistas com mais cuidado à luz da particularidade do juízo pelo qual emergem, acabam por manifestar sua “mais universal qualidade” — tal como ele a descreve nesta passagem do ensaio “Da semelhança dos filhos aos pais” (II, 37), concluindo sua crítica aos médicos: [A] Aqueles que amam a nossa medicina podem também ter suas próprias considerações boas, grandes e fortes. Eu não odeio as fantasias contrárias às minhas. Falta tanto para que eu me irrite ao ver a discordância de meus julgamentos com relação àqueles de outrem, ou que eu me torne incompatível com a sociedade dos homens por serem de outro sentimento e partido que o meu, quanto, sendo a variedade a mais geral forma que a natureza seguiu, [C] e ainda mais nos espíritos que nos corpos, posto que são de substância mais maleável e suscetível de mais formas, [A] eu acho muito mais raro ver concordarem nossos humores e desígnios. E não houve nunca no mundo duas opiniões semelhantes, não mais do que dois pêlos ou dois grãos. Sua qualidade mais universal é a diversidade (II, 37, 786)59. Não se trata, nessa passagem, de propor nenhuma tese ontológica sobre a diversidade intrínseca do mundo da experiência humana, mas sim de uma fórmula estreitamente ligada à sua concepção de ceticiscriado ou uma conversação de mesa. Alguns comentários interessantes desses aspectos encontram-se em LA CHARITÉ, 1968, p. 15-17, 27. 59. Entre outras várias ocasiões em que a mesma idéia é retomada, ver, por exemplo, III, 8, 943: “[B] Os espíritos, mesmo [quando] semelhantes em força, não são sempre semelhantes no seu emprego [application] e no gosto…”. 251

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mo como exercício do juízo60. Tampouco se trata de qualquer elogio da idiossincrasia. A particularidade manifesta não é por si mesma critério para aferir a presença do juízo; ela é sobretudo uma conseqüência problemática, como veremos, da forma como cada juízo mira a verdade. O reconhecimento de que sua ação acaba sempre por aflorar uma perspectiva singular pode, por sua vez, ser relacionado ao sentido autocrítico do exercício filosófico realizado pelos ensaios de Montaigne, prioritariamente voltados à avaliação do alcance de seu juízo pessoal. Tal relação ajuda, por exemplo, a compreender as motivações da tolerância montaigniana que se manifesta na passagem citada na página anterior. Se Montaigne não se irrita com as fantasias alheias, sem com isso admitir que elas sejam mais aceitáveis que as dele, isso depende não apenas do reconhecimento de que também as suas fantasias não pretendem representar um parâmetro absoluto de conhecimento das coisas, mas também da importância filosófica que a idéia de formação do juízo adquire (por oposição à pretensão de possuir a verdade). Não é, como diz ele, o reconhecimento das limitações de seu juízo uma prova singular e especial da presença de juízo? Assim, a diversidade opinativa pode ser aceita como uma conseqüência mais “realista”, conforme aos fatos, da forma sempre limitada como nossas faculdades cognitivas pretendem se acercar da verdade, uma conseqüência que oferece ocasião privilegiada para esse exercício autocrítico e para a aferição de seu próprio juízo. Tudo se passa como se coubesse ao cético montaigniano reconhecer que está inserido na diversidade opinativa que por si mesma a ação do juízo produz, ainda que ele tome consciência desse fato num sentido muito diverso daquele pelo qual o observam os dogmáticos. Ao modo como a despreocupação dos céticos em asseverar a verdade pode conferir à sua discordância, aos 60. Em III, 13, 1070B, por exemplo, por meio de considerações análogas, Montaigne contrapõe a inteira dessemelhança dos eventos e das formas ao fato de que nenhum difere inteiramente do outro, para concluir que também a relação que se extrai da experiência é sempre falha e imperfeita. Extrair daí uma tese ontológica é apoiar-se numa afirmação parcial, que força o leitor a assumir pressupostos filosóficos que não são seus: tal afirmação é, ao contrário, parte de uma reflexão epistemológica destinada a estender o âmbito do reconhecimento da incapacidade de obtenção da verdade. 252

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olhos de Montaigne, um caráter próprio parece corresponder uma compreensão diversa do modo como a diversidade de nossos juízos naturalmente se manifesta (por oposição à pretensão de obter um conhecimento absoluto, mesmo no que tange à formulação de nossa incapacidade de obtê-lo). Essas considerações nos convidam novamente a observar que as relações entre esse ceticismo e a filosofia cartesiana são mais estreitas e complexas do que poderiam parecer à primeira vista. Parece possível reconhecer, em Descartes, alguns ecos dessa mesma concepção de filosofia associada à formação do juízo61. Aproxima-se do sentido que Montaigne confere ao juízo o modo como, no Discurso do método, Descartes inclui o juízo entre as diversas faculdades do espírito — porquanto correspondem a uma instância naturalmente diversa entre os homens, capaz de se desenvolver ou involuir como se fora uma capacidade física. Porém, Descartes opõe tais faculdades à razão que, identificada ao “bom senso”, se apresentaria inteira e igualmente em cada um dos homens62. Nas Meditações, posteriormente, ele se refere ao eu pensante, cujo conhecimento deriva do cogito, igualmente como uma “razão” ou um “entendimento”63. Montaigne, como vimos, não apenas tende a identificar entendimento e juízo (por oposição à razão), mas também a identificar o próprio jugement com a consciência que a alma tem de si mesma — nessa medida, com o próprio “eu”. Após estabele61. A idéia de que a experiência de contato com outros povos, a freqüentação do “grande livro do mundo”, que Descartes encontra em Montaigne, é deliberadamente posta em prática pelo primeiro, como ele mesmo indica no Discurso do método (cf. DM, primeira parte, e I, 26, 158). Ver, sobre esse ponto, RODIS-LEWIS, 1999, p. 79. Numa carta a Martin Schoock, Descartes afirma desejar que sua filosofia fosse assimilada mediante uma leitura atenta e reiterada, a fim de se converter na própria seiva (AT VIII-2, 41, apud FAYE, 1999, p. 16) Faye, por sua vez, busca aproximar os dois autores mostrando como Descartes recusa-se a atribuir ao homem a prerrogativa, corrente na cosmologia dogmática renascentista, de ser a mais perfeita das criaturas da natureza (Carta a Elizabeth, 15 sept. 1645, apud ibid., p. 20). 62. Ver DM, p. 1-2. 63. Ver Meditações II, ed. Beyssade, 76-77, AT VII 27: “Eu não admito nada agora que não seja necessariamente verdadeiro: eu não sou, portanto, senão uma coisa que pensa, a saber, um espírito, um entendimento ou uma razão, que são termos cuja significação me era anteriormente desconhecida…”. 253

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cer a analogia entre o mel das abelhas e a formação do julgamento como fruto dos estudos, Montaigne prossegue: [A] É o entendimento, dizia Epicarmo, que vê e que ouve, é o entendimento que tudo aproveita e tudo dispõe, que age, que domina e que reina: todas as outras coisas são cegas, surdas e sem alma. É certo, porém, que nós o tornamos servil e covarde por não lhe deixarmos a liberdade de nada fazer por si. Quem alguma vez pergunta ao seu discípulo o que lhe parece [B] a retórica ou a gramática [A], esta ou aquela sentença de Cícero? Nos pregam-nas todas emplumadas na memória, como oráculos onde as letras e as sílabas são da substância da coisa… (I, 26, 152)64. Assim, à adoção de uma postura cética ou à sua rejeição, nessas filosofias, parece espelhar-se em formas diversas de conceitualizar e compreender a relação entre as faculdades da alma (cuja diversidade tem certamente como fulcro a admissão cartesiana da razão como faculdade de conhecimento objetivo). Mais ainda, em decorrência disso, em ambas as filosofias parecem projetar-se, na mesma medida, concepções bastante diversas da “subjetividade” — se por esse termo for lícito nos referirmos genericamente ao “eu” considerado como agente da cognição, no sentido em que isso se faz possível para cada um desses filósofos. Na antropologia cartesiana, tanto o que corresponde às dimensões perfectíveis do homem quanto o que se relaciona ao modo como cada qual se apresenta diversamente (seja no nível de sua constituição corporal, seja no que tange àquilo a que ele se refere como o espírito) parecem ser remetidos a um plano secundário, por oposição à instância que, a um só tempo, garante a possibilidade de conhecimento objetivo do mundo e a existência de um sentido no qual se pode absolutamente reconhecer uma identidade humana para todo e qualquer homem. Na filosofia de Montaigne, a consciência de si, pela qual cada um se reconhece como “eu”, e a capacidade de compreensão e 64. Embora atribua a opinião a Epicarmo, Montaigne parece apresentá-la para atestar concordância pessoal. Montaigne reserva à palavra “conscience” sobretudo o sentido moral (tema central, aliás, do ensaio II, 5), mas “jugement” também surge igualmente com essa conotação (v. LA CHARITÉ, 1968, p. 24). 254

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assimilação das razões e opiniões alheias, capaz de ser mais ou menos desenvolvida segundo os homens, apresentam-se solidariamente na mesma faculdade, sem remeter a uma instância racional anterior capaz de garantir a verdade65. Por isso, em vez de fundar-se sobre a idéia prévia de uma identidade essencial de cada sujeito do conhecimento humano, a reflexão montaigniana modela, com base no diagnóstico cético de nossa incapacidade de reconhecer a verdade, uma concepção de homem que enfatiza o modo como a singularidade de cada indivíduo se manifesta, de maneira aparentemente irredutível, naquilo que opõe suas ações cognitivas às dos demais. O homem aparece assim como um ser multiforme e transformável, capaz de abarcar, segundo sua natureza, uma variedade mais ampla do que aquela que tende a ser imediatamente capaz de reconhecer: [A] Plutarco diz em algum lugar que não encontra distância tão grande de um animal a outro como de um homem a outro. Ele fala da capacidade da alma e das qualidades internas. Na verdade, eu acho tão distante Epaminondas, tal como o imagino, deste outro tal que conheço como capaz, por assim dizer, do senso comum, que eu replicaria de bom grado a Plutarco e diria que há mais distância de um homem a tal outro do que há de distância de um tal homem a tal animal [C] hem vir viro quid praestat. E que há tantos graus de espíritos e tão inumeráveis quanto há de braças daqui ao céu (I, 42, 258-259). Se identidade entre os homens há, ela tende a se projetar numa espécie de fundo natural situado aquém de nossas capacidades cognitivas, e incapaz de ser abarcado, por meio destas, senão de modo sempre limitado e imperfeito. 65. FAYE sustenta que a filosofia cartesiana é a culminação da transformação renascentista da idéia de perfectio hominis, presente na filosofia de Montaigne, de que o aperfeiçoamento humano reside no bom uso das faculdades cognitivas (v. 1999, p. 19). RODIS-LEWIS, por sua vez, reconhece que a mesma idéia da racionalidade humana possui incidências bastante diversas em Montaigne, que acentua sua particularidade, e Descartes, que confere à razão um instrumento de discriminação da verdade por meio do método, por meio de um reconhecimento prévio universal da capacidade de reconhecê-la por tal faculdade (1999, p. 83). 255

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Compreende-se assim, ao mesmo tempo, que à adoção de uma perspectiva filosófica cética corresponde uma redefinição, bem como uma crescente importância da noção de juízo nos Ensaios. Quando Montaigne filosofa à luz do otimismo racionalista estóico, nos ensaios mais antigos, não parece haver especial ocasião de distinguir juízo e razão. Embora mencionada discretamente, a expressão “jugement” já ocupa um papel relevante em capítulos como I, 14. No entanto, a essa altura parece imperar a crença de que à diversidade dos juízos humanos correspondem meras interferências na atividade de um juízo que seria naturalmente capaz de propiciar uma science certaine. No mesmo passo em que o juízo passa posteriormente a ocupar um “lugar magistral” para o próprio autor (ainda que pelo reconhecimento de seus limites para agir sobre seus desejos e afetos, bem como de sua relativa independência diante deles)66, cresce a tendência a observar a razão sob desconfiança, como um instrumento cognitivo imperfeito e ilusionista. Isso não torna, como veremos, a atividade do juízo “irracional” nem o dota do poder autônomo de reconhecer verdades; antes, isso tende a transformálo na faculdade pela qual se torna possível um posicionamento crítico diante da atividade demonstrativa da razão. Pondo-a em perspectiva, ele observa seu limite cognitivo e pode aprender algo dessa experiência. Em suma, essa distinção entre juízo e razão, tal como se opera na reflexão de Montaigne, tem relação direta com o significado particular que ganha o “ensaio” quando passa a traduzir a zétesis e que não se apresenta nas preconizações estóicas de Sêneca, nem tampouco, ao que nos parece, nas considerações um tanto lacônicas de Sexto. O sentido dessa investigação, embora corresponda em parte à repetição de um mesmo trajeto investigativo sabidamente paradoxal em busca da verdade — posto que reconhecidamente seu advento não se torna mais palpável pelo avanço dessa investigação —, deixa de constituir, nessa mesma medida, uma tarefa filosófica estéril. Pois o ensaio, em sua particularidade, ganha sentido como meio de desenvolvimento, manifestação, exame e mesmo constituição da singularidade própria com que cada juízo desempenha sua atividade cognitiva ante os materiais com que se 66. Ver III, 13, 1074B. 256

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depara ao acaso, ainda que para culminar no reconhecimento da própria incapacidade de reconhecer a verdade. Emerge dessa investigação um olhar diferenciado sobre as razões filosóficas alheias, que não mais busca nelas a verdade que formulam pelo valor intrínseco e absoluto que elas possuiriam, mas sobretudo o benefício eventual do contato com a feição (façon) pela qual, mediante o modo diverso como tematizam um mesmo problema, exibem a singularidade do juízo de cada filósofo e permitem ao juízo do “aprendiz” um exercício particular por meio do conhecimento dessa diversidade67. Igualmente, Montaigne espera que, no modo como sonda as diversas matérias de que trata, seja especialmente visível, em seu auto-retrato, a forma pela qual as julga68: [A] Não tenho dúvida de que freqüentemente me ocorre de falar de coisas que são mais bem conhecidas pelos mestres desses assuntos, e mais verdadeiramente. Aqui está apenas o ensaio de minhas faculdades naturais, e não das adquiridas, e quem acusar minha ignorância nada fará contra mim, pois dificilmente eu responderia a outrem por minhas considerações [discours], eu que não respondo nem a mim mesmo, nem estou com elas satisfeito. Quem estiver em busca do saber [science] que o pesque onde ele está. Não há nada de que eu faça menos profissão. Aqui estão minhas fantasias, pelas quais eu não viso conhecer as coisas, mas a mim mesmo. Elas [as coisas] me serão casualmente conhecidas um dia, ou outrora o foram, segundo o modo pelo qual a fortuna me tenha podido levar aos lugares onde elas estejam esclarecidas… Que não se atente às matérias, mas à feição [façon] que dou… (II, 10, 407-408). Ainda que os ensaios de seu juízo tenham a constatação da “ignorância” como horizonte, lhe permitem igualmente julgar acerca de seu acordo com os antigos, ou reconhecer sua particularidade, no viés 67. Ver III, 8, 923BC ss., especialmente 928C: “E todos os dias eu me divirto em ler os autores, sem cuidar de sua ciência, mas buscando sua feição [façon], e não sua matéria [subject]…”. 68. Caberia frisar que o próprio esforço de conhecer o alcance de suas “faculdades naturais”, por sua explicitação verbal nos ensaios, poderia ser visto como um aspecto desse exercício: o reconhecimento dos limites do juízo, como vimos, são, segundo Montaigne, demonstração importante da ação do próprio juízo. 257

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inusitado pelo qual eventualmente os retoma69. Eles constituem um exercício que lhe permite o conhecimento de suas limitações e particularidades, pela observação do seu juízo em ação ante os diversos materiais que examina. Se tal é o fruto da busca filosófica de restaurar, do modo mais coerente possível, o gênero de filosofia que mais longe leva, em seu entender, a liberdade do juízo humano, é difícil não ler nas entrelinhas dessa descoberta (da singularidade daquele que julga mirando a epokhé) uma espécie de manifesto implícito de independência e liberdade filosófica (nos sentidos próprios em que tais conceitos devem ser aqui compreendidos), contra o servilismo denunciado nas filosofias oficiais, redigido sob a égide do ceticismo antigo. Não se exemplifica aqui a ambigüidade renascentista, a que nos referimos de saída, entre a nostalgia e o sentimento de afinidade com a Antiguidade? Mas igualmente o ensaio cético de Montaigne se converte num autocomentário permanente, pelo qual, além de julgar as razões que pinça de autores diversos, Montaigne julga, nas edições posteriores, seus juízos prévios, num trajeto pelo qual o exercício do juízo inclui a observação de sua particularidade. Graças a isso, caberia talvez dizer que, no pólo oposto da aceitação irrefletida da autoridade alheia, o ensaio também se torna um exercício da capacidade de ser autor de sua individualidade, pelo qual se poderia, afinal, compreender num sentido quase literal sua pretensão de ser consubstancial ao auto-retrato de seu juízo: “Não são meus gestos que eu escrevo, é a mim mesmo, é minha essência…” (II, 6, 379C). Eis, afinal, como a forma filosófica desenvolvida por Montaigne é, a um só tempo, perfeitamente cética, mas focalizada num objetivo diverso daqueles que se encontram nos textos representantes do ceticismo antigo, que é o estudo do “eu”. 5.4. Exemplaridade, subjetividade e filosofia moderna

Esboçaremos agora dois breves comentários sobre a significação histórica e filosófica desse ceticismo. Primeiramente, apoiando-nos em 69. Ver, além de I, 50, 302-303, seu comentário sobre a maneira como considera o julgamento de Tácito em seus relatos históricos, em III, 8, 940-941BC. 258

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algumas considerações gerais sobre a natureza do engajamento filosófico no ceticismo, tentaremos desenvolver a aproximação entre Montaigne e Descartes que desenvolvemos no item anterior, focalizando um aspecto fundamental em que a articulação entre ceticismo e subjetividade nos parece relevante para pensar tal contraponto — a saber, o recurso à exemplaridade do discurso em primeira pessoa. Em seguida, apresentaremos uma conjectura (cujo risco, digamos desde já, será proporcional à sua generalidade) sobre eventuais implicações da compreensão montaigniana de ceticismo como um gênero filosófico na tematização moderna da própria noção de filosofia. No final do capítulo I, ante o paradoxo originado pelo engajamento filosófico de Montaigne, indagamos em que sentido podemos estar diante de um relato estritamente biográfico e individual, caso aceitemos que se trata de uma descrição moldada na forma como Sexto descreve os passos conceituais pelos quais os primeiros pirrônicos teriam casualmente descoberto a ataraxía na reiteração da suspensão do juízo e, por conseguinte, a possibilidade de conferir uma identidade filosófica à experiência intelectual da impossibilidade de reconhecer a verdade. Tal paradoxo nos conduziu a formular uma questão teórica mais geral, sobre o valor argumentativo desse relato biográfico no que tange ao engajamento do cético em sua filosofia. A análise do gênero filosófico cético que realizamos nos ofereceu, por sua vez, outros elementos para reconsiderar esse aparente paradoxo e notar que sua formulação parece depender de falsos pressupostos. Declarar que Montaigne se engaja numa filosofia cética não é contraditório com dizer que ele não se engaja em nenhuma “seita” preexistente, desde que se considere o sentido próprio em que a filosofia cética pretenderia se diferenciar das demais. Mais precisamente, embora o texto montaigniano, ao ser aproximado das fontes, revista-se de um sentido paradoxal, o destino desse paradoxo parece ser o de dirigir o leitor a uma compreensão mais precisa da filosofia que se põe em prática nos Ensaios, capaz de dissolvê-lo. Contudo, essa solução não resolve plenamente um problema teórico mais amplo implicitamente levantado pelo paradoxo. Ainda que o engajamento do cético à sua filosofia não corresponda a um assentimento à veracidade de “teses”, precisamos admitir que, se estamos, em 259

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alguma medida, nos referindo a uma filosofia preexistente (defina-se ela como se definir), tal filosofia parece almejar necessariamente algum grau de generalidade, além de um relato que se limita a narrar uma experiência estritamente biográfica. Em que sentido deve ser compreendida a natureza pessoal desse relato, se ele se pretende possuidor de um poder persuasivo pelo qual está em questão, nalguma medida, o convencimento de outrem no engajamento em uma mesma postura filosófica? Se ele repete um movimento feito por um filósofo anterior, até onde podemos admitir que a experiência cética de uma inteira liberdade do uso de suas faculdades intelectuais, diante do que sua experiência individual lhe oferece, seja plenamente “impremeditada e fortuita”? Desse modo, o paradoxo montaigniano acaba por nos conduzir a julgar não apenas a natureza de seu filosofar, mas também a natureza, de modo mais geral, do engajamento filosófico cético segundo esta dimensão que nos parece ser central a essa filosofia: em que pode exatamente consistir a exemplaridade dessa narrativa biográfica pela qual o cético descreve a ordem de razões de instauração de sua postura pirrônica? Tal narrativa tem a curiosa peculiaridade de ser, a um só tempo, a descrição válida da experiência intelectual individual do filósofo, como parte constitutiva desse filosofar à qual ele é imanente e não pode, de direito, transcender (na medida em que esse filósofo não pretende asseverar nenhuma verdade e, nessa medida, nada além do que lhe aparece segundo o seu páthos individual), mas também o engajamento em uma filosofia cuja constituição precede tal experiência e a ilumina (sem o que não se pode falar de uma tradição filosófica cética que, nalguma medida, se perpetua além de uma experiência filosófica individual e isolada). Por que o diagnóstico pirrônico acerca da impossibilidade de reconhecer filosoficamente a verdade apresenta-se na forma de um simples relato de sua experiência pessoal? Já vimos que, uma vez admitindo filosoficamente a impossibilidade de reconhecer a verdade nos diversos sistemas em conflito, o filósofo pirrônico é conduzido a se referir à sua filosofia, por força da própria constatação que a determina, num sentido precário e intrinsecamente provisório. Numa importante passagem, na qual explica o modo como os céticos admitem crenças, Sexto 260

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afirma que o “principal ponto” referente ao sentido com que se exprimem os pirrônicos é o seguinte: “… ao proferir [as expressões céticas], eles dizem apenas o que lhes aparece e narram suas próprias afecções [pathé], sem sustentar opiniões, nada afirmando acerca dos objetos externos…” (HP I, 15). É uma consideração muito semelhante às que se delineiam em passagens nas quais Montaigne explicita o sentido de seu discurso. Por exemplo: [B] Desculpemo-nos aqui do que digo freqüentemente, que raramente me arrependo … adicionando sempre esse refrão, não um refrão de cerimônia, mas de ingênua [naifve] e essencial submissão: que eu falo investigando e ignorando, reportando-me à resolução, pura e simplesmente, das crenças comuns e legítimas. Eu não ensino, eu narro… (III, 2, 806)70. Ao menos a partir do momento em que se reconhecem sob esse título, os Ensaios tornam-se permanentemente sensíveis ao fato de serem relativos à experiência pessoal e possuidores do mesmo estatuto que o cético pirrônico atribui à formulação de sua filosofia. No entanto, esse subjetivismo carece de melhor qualificação: formulando-se como postura filosófica, tal relato da experiência individual e própria parece almejar inevitavelmente algum grau de generalidade. Tal pretensão não se confundiria, a nosso ver, com a adoção de uma intenção explícita, por parte do cético, de persuadir alguém daquilo que ele é conduzido a aceitar por sua experiência. Parece-nos que ela está implícita nas condições de coerência interna desse posicionamento, isto é, nas condições pelas quais ele poderia estar justificado em adotar o ceticismo como uma postura filosófica. Sem isso, tal postura se converteria numa mera idiossincrasia e perderia as credenciais que a diferenciaram, portanto, das posições filosóficas dogmáticas, tal como as compreende. Estaria o cético justificado em aceitar sua filosofia se, embora não a presumisse “verdadeira” no mesmo sentido que o fazem os dogmáticos, ele julgasse que seu diagnóstico sobre a verdade das filosofias pudesse 70. Ver ainda os textos nos quais Montaigne contrapõe sua postura “investigativa” e irresoluta ao estilo professoral e taxativo dos eruditos livrescos, como, entre outros, II, 17, 657; I, 26, 145-146A; III, 8, 943BC. 261

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ser inválido para os outros homens que se dispusessem a avaliar de modo igualmente racional o mesmo estado de coisas? Sua perspectiva cética deveria perder muito de sua persuasividade para ele mesmo, se não se tornasse inteiramente sem sentido, caso ele pudesse coerentemente admitir que um outro filósofo, posicionando-se ante a contradição entre as filosofias, estivesse individualmente apto a escolher alguma delas como verdadeira, se as examinasse de um modo tão judicioso como as examina e procedesse de modo conseqüente em vista do que esse exame lhe oferece. E esse é um problema diverso de saber se empiricamente seus interlocutores irão se persuadir ou não com seu discurso: isso é algo que depende, além da cogência que o interlocutor reconhece nas razões que emprega, de outros fatores, como sua capacidade retórica, ou a capacidade de compreensão de seu interlocutor (e o “realismo” do filósofo cético, a que já aludimos, diante da situação efetiva das crenças humanas e de suas capacidades individuais de lidar com essa situação apontaria antes, ao contrário, na direção de um abandono da pretensão de persuadir de modo geral os homens). Parece-nos ainda que o cético não pretende tampouco ser inconseqüente em sua decisão filosófica pessoal, diante de um certo conjunto de dados que em princípio se apresentam à disposição para o juízo comum, ainda que tal decisão seja em certa medida “arbitrária” e subjetiva: ela o é apenas no sentido estrito em que a racionalidade que o conduz à sua conclusão não pode conduzir a uma demonstração irreversível da veracidade de sua constatação (sobre a incapacidade de adotar uma filosofia como verdadeira), e não no sentido em que o conduz a essa posição como poderia conduzi-lo a outra qualquer. Se ele supusesse, porém, que outro filósofo qualquer pudesse ser conduzido a uma posição diversa avaliando as mesmas coisas de modo tão racional quanto ele, não seria isso minar a razoabilidade de sua própria decisão (e a pretensão de que sua filosofia reflita sua tentativa de levar pessoalmente o uso da razão às últimas conseqüências, por oposição ao modo precipitado pelo qual o dogmático se arvora em seus dogmas)? Além disso, se o cético se julgasse incapaz de reconhecer a verdade e pudesse admitir que outro filósofo fosse ou tivesse sido capaz de o fazer, acabaria por transformar o sentido em que sua dúvida seria “subje262

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tiva”. O cético deveria, se assim fosse, ser coerentemente conduzido não a duvidar de que os filósofos sejam capazes de nos oferecer uma verdade, mas a desconfiar de sua eventual compreensão da verdade que eles ofereceram. Mas é claro que o cético não pretende afirmar algo como: “os dogmáticos realmente encontraram uma verdade, mas eu não a compreendo”. O cético pode, sim, eventualmente, recusar-se a reconhecer sentido no discurso do filósofo dogmático71, mas dizer que a verdade não pode ser reconhecida nas diversas filosofias que a pretenderam formular (ainda que tal juízo deva ser relativizado à experiência individual) é ir bem mais longe — e finalmente afirmar algo inteiramente diverso — do que apenas confessar que sua incapacidade de compreender as verdades que uma filosofia dogmática alega ter descoberto é individual, embora outros filósofos possam eventualmente compreendê-la. O cético pretende sustentar que as filosofias não encontraram a verdade, ainda que o critério que oferece para tanto seja sua experiência pessoal, e não apenas propor que o dogmático deva indefinidamente tentar se fazer mais claro, para que a verdade que ele afirma ter alcançado possa se fazer compreendida. Se o problema fosse esse, as mesmas exigências que moveram sua investigação rigorosa e intransigente das filosofias que injustificadamente alegaram a verdade deveriam coerentemente movê-lo agora, com o mesmo afinco, a superar sua limitação meramente pessoal que, assim compreendida, o teria conduzido à suspensão por força de uma incapacidade apenas pessoal, e a tentar apreender o sentido da verdade que, embora eventualmente esteja presente na formulação do filósofo dogmático que diz compreendê-la, está para o cético provisoriamente indecifrada. Por isso, parece-nos que a persuasão (háiresis) cética, apoiada nos diversos tropos que a corroboram e sistematizam, deva ser vista pelo próprio cético como geralmente válida para todo e qualquer filósofo que se empenhe em refazer concretamente o mesmo trajeto reflexivo (mesmo que os vários argumentos que a ela podem conduzir não sejam igualmente aceitáveis para todos). Disso não se segue que, para ser 71. Ver, por exemplo, HP II, 22. 263

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coerente, ele deve impor a todo custo sua filosofia aos demais; ele pode reconhecer, de modo tolerante, a diversidade de juízos, sem abrir mão de seu próprio juízo sobre a maior aceitabilidade de suas posições filosóficas, tendo como horizonte a idéia de uma terapia da vaidade e da precipitação dogmática, a ser buscada segundo sua viabilidade prática e, sobretudo, seu interesse pessoal em submeter permanentemente a teste seu próprio juízo sobre sua filosofia. Mas não nos parece que o cético possa abrir mão, sem incorrer numa incoerência, de aceitar sua conclusão como potencialmente válida para todo e qualquer filósofo que se situar de modo igualmente judicioso ante os elementos que ele considera segundo sua experiência. Em contrapartida, todo interlocutor que recusa sua cogência de um modo consistente e argumentado sempre propõe potencialmente, ao menos em princípio, um problema para o cético que concerne ao seu próprio engajamento filosófico (ainda que, em virtude da natureza desse problema, ele possa imediatamente recusá-lo ou ignorá-lo, equivocadamente ou não). A discordância desperta, como diz Montaigne, não sua cólera, mas sua atenção (III, 8, 924B). Se o ceticismo não se pretende um irracionalismo, ao desconfiar da razão como instrumento humano de conhecimento da verdade, o empreendimento filosófico cético parece pressupor e projetar um espaço comum de racionalidade na avaliação da busca humana da verdade, no centro da qual se sustenta sua própria perspectiva. Nos termos conceituais da filosofia montaigniana, esse espaço parece ser aquele que corresponde à ação adequada do juízo: embora tal conseqüência não seja rigorosamente demonstrável (no sentido em que um filósofo dogmático pretende demonstrar a verdade), cabe esperar que o juízo suficientemente desenvolvido e atilado siga os passos dos demais filósofos que o precederam, e reconheça que sua incapacidade de escolher a verdade entre os sistemas filosóficos conflitantes é uma demonstração notável de sua ação. A ordem de razões pelas quais o cético descreve biograficamente os passos de seu engajamento filosófico parece ser, como vimos, um aspecto fundamental para a boa compreensão da posição pirrônica. Mas tampouco esse aspecto é secundário nos Ensaios, seja na medida em que a obra pretende ser um registro fiel das idéias do autor em sua 264

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mutabilidade própria, seja sobretudo na própria descrição em que ele descreve biograficamente seu engajamento numa filosofia de “nova figura”. As considerações anteriores, contudo, parecem indicar que tanto a ordem de razões de instauração do pirronismo como sua retomada montaigniana descrevem não apenas um episódio biográfico em seu sentido estritamente individual, mas também um episódio exemplar, válido para o filósofo qualquer. Mais exatamente, ainda que tal relato descreva uma experiência biográfica real, seu valor persuasivo reside no modo como ele pretende não apenas representar uma experiência acessível a todo e qualquer filósofo, mas dela extrair as conseqüências que seriam, segundo o cético, as mais plausíveis e pertinentes. Nessa medida, parece igualmente possível afirmar que, uma vez aceito segundo sua pretensão de persuasividade, esse relato biográfico não perderia sua relevância filosófica mesmo que a descrição da experiência dos “primeiros céticos”, que descobriram a filosofia da suspensão ante a experiência de repetidamente falhar na pretensão de encontrar um sistema a salvo de críticas, fosse apenas um mito, uma narrativa ficcional que não descrevesse o trajeto biográfico real de nenhum filósofo, mas apenas um percurso ideal de engajamento filosófico. Diríamos assim que a natureza exemplar desse relato parece desempenhar um papel importante (e insuficientemente explorado) para a compreensão não apenas da coerência interna da posição cética, mas também de seus reflexos históricos. A adesão do cético à filosofia da suspensão está, é claro, afiançada pelo poder dos argumentos oferecidos contra as filosofias que se pretendem verdadeiras. Convém notar, porém, que esse critério não é oferecido pelo cético como portador de uma plena objetividade. Não apenas Sexto explica, ao final das Hipotiposes, que o cético se vale dos argumentos que podem persuadir segundo o que é aceitável para o interlocutor, mas afirma explicitamente, noutras passagens, que ele não pretende se comprometer com nenhum juízo sobre a persuasividade ou falta de persuasividade intrínseca dos argumentos que considera72. Assim, se a posição filosófica do 72. Ver, por exemplo, HP I, 222, 226-227. 265

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cético lhe aparece como mais persuasiva do que a posição dos filósofos dogmáticos, tal aparecer não pode corresponder a uma avaliação da persuasividade intrínseca dessa posição; ele se limita a ser a expressão subjetiva e provisória de um páthos, eventualmente revogável por uma argumentação virtualmente irrefutável em favor de alguma posição filosófica dogmática (possibilidade essa que o cético, por força da lógica interna de sua posição, não pode plenamente abolir). A adoção de uma postura suspensiva se assenta, como dissemos, numa decisão filosófica pessoal, imanente à avaliação individual do que a experiência filosófica oferece. Como compreender esse engajamento, porém, em vista das considerações aqui esboçadas? Parece-nos que tal decisão pessoal de assentir à persuasividade das motivações biograficamente alegadas pelo cético para suspender o juízo equivale a conferir, ainda que momentaneamente, à experiência singular descrita pelo “primeiro cético” uma espécie de universalização. Dizendo de outro modo: o filósofo que adere ao ceticismo reconhece, por meio dessa adesão, em sua experiência intelectual pessoal, considerada em seu sentido estritamente individual e singular, uma espécie de imagem, nalguma medida, da mesma descrição autobiográfica individual que o cético previamente oferece de sua experiência filosófica. Quando isso ocorre, a descrição prévia, legada pelo cético que o antecede, parece ser investida de um sentido argumentativo pelo qual transcende, mesmo que momentaneamente, sua particularidade, adquirindo um valor exemplar. Isso permitiria explicar em que medida o ceticismo, ao se constituir como uma doutrina filosófica, não transgride a autolimitação subjetiva que impõe à validade de seu discurso: a despeito de cada cético naturalmente presumir, quando adere à sua perspectiva filosófica, que ela corresponda (ainda que de modo provisório) àquela que ele julga ser a mais razoável em face dos elementos de que dispõe para julgar a questão, o ato filosófico pelo qual ele universaliza a experiência de outro filósofo é plenamente individual. É a ele próprio que cabem inteiramente o poder e a responsabilidade filosófica de assentir à exemplaridade e reconhecer um papel argumentativo à descrição autobiográfica do cético que lhe antecede. Assim, o fato de o cético almejar universalidade para o seu diagnóstico filosófico não aboliria a subjetividade da 266

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experiência pessoal que ele descreve, nem a subjetividade da decisão de seguir o exemplo por aquele que se persuade por sua experiência; ao contrário, o sentido mesmo dessa “persuasão” filosófica é o de rejeitar as tentativas filosóficas de transcender, em nome da verdade que propõem, a dimensão estritamente pessoal em que aquele que as investiga se situa exteriormente a elas. A despeito disso, parece possível também dizer que, embora esse fenômeno possa ser descrito como inteiramente imanente à experiência vivida, em sua relatividade própria, quando a enunciação do páthos subjetivo pelo discurso cético é momentaneamente imantada por sua exemplaridade, parece engendrar-se uma espécie de ambigüidade — à falta de melhor termo — entre o aspecto estritamente particular e singular com que o cético narra sua experiência biográfica e uma dimensão potencialmente exemplar e universalizável, na forma de uma persuasão capaz de se impor como válida além dessa experiência particular. Seria tal ambigüidade inerente ao discurso filosófico cético? Ela nos parece igualmente, salvo melhor juízo, um elemento importante na determinação da coerência própria com que esse posicionamento pode se instituir como filosofia. O problema teórico aqui descortinado mereceria certamente maior aprofundamento73. Aqui nos limitaremos a assinalar que essa particularidade retórica do ceticismo, tal como descortinada pela reflexão de Montaigne, parece possuir igualmente conseqüências relevantes para a configuração adquirida pela discussão filosófica em torno do ceticismo e da possibilidade de obter conhecimento objetivo. Já tivemos mais de uma ocasião de indicar que as relações entre o ceticismo de Montaigne e a resposta que Descartes pretenderia oferecer a essa filosofia são mais complexas do que se tende a admitir. Cabe agora indagar se deveríamos ver como casual e gratuito o fato de Descartes construir uma estratégia de refutação do ceticismo que parece operar por meio da mesma ambigüidade retórica que acabamos de assinalar. Em Montaigne e Descartes podemos igualmente encontrar uma denúncia do costume e da imaginação como empecilhos ao entendi73. Abordamo-lo de forma mais detalhada e documentada em EVA, 2005. 267

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mento, que pode permanecer ocioso à falta de ser empregado. Porém, se o espírito aprende a sabedoria ao se exercitar naquilo que foi descoberto por outrem, a importância desse exercício recai especialmente, para Descartes, em capacitar o entendimento individual em reconhecer por si próprio as mesmas verdades já encontradas74. É nas Meditações, contudo, obra em que Descartes enfrenta as razões para duvidar do reconhecimento das verdades que o entendimento pode encontrar em seu uso natural, que talvez possamos ver mais claramente como sua tentativa de refutação do ceticismo procura explorar uma ambigüidade análoga à que acabamos de considerar. Se o sujeito que, na Primeira Meditação, realiza a experiência da dúvida é, de saída, o sujeito empírico René Descartes, próximo ao fogo, diante do papel, o resultado do trajeto da dúvida terá (diversamente do que vimos ocorrer no caso de Montaigne) o efeito de depurar esse sujeito de tais marcas de sua particularidade empírica. Por certo, ao menos à altura da Segunda Meditação, tudo o que o sujeito que se descobre existente por meio do cogito pode reconhecer é sua existência estritamente individual, posto que a dúvida o encerra, ao menos provisoriamente, num ambiente solipsista (no qual a existência de outros indivíduos é, ao menos por ora, tão duvidosa quanto a existência dos demais elementos do mundo exterior). Tomemos, porém, a liberdade de considerar essa prova de um ponto de vista externo ao trajeto daquele que realiza tal percurso meditativo: embora ela só possa ser válida para o eu que realiza tal percurso reflexivo, cabe reconhecer que poderia ser indefinidamente refeita por cada candidato que, situado numa posição “pré-filosófica”, se dispusesse a considerar esse trajeto. Mas as considerações que acabamos de apresentar chamam a atenção para um sentido adicional que tal prova parece possuir, pois a “descoberta” da existência do “eu” — primeira verdade que Descartes pretende poder oferecer contra uma dúvida levada aos seus limites mais extremos — pode também ser vista, por esse ângulo, como a descoberta de que todo e qualquer sujeito individual que empreenda essa reflexão conhecer-se-á exatamente no 74. Ver, por exemplo, Recherche de la Verité par la Lumière Naturelle, in Oeuvres, p. 669. 268

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mesmo sentido — a saber, como um “puro entendimento”, dado pela evidência inteligível da impossibilidade de sua inexistência no momento em que se reconhece como pensamento de algo, além das diversas representações dos sentidos ou da imaginação com que esse “eu” se poderia confundir75. Tais aspectos do eu pensante cartesiano são explicitamente evidenciados por Descartes em sua prova; o que, à primeira vista, não é tão evidente é que tal “descoberta” emerge do mesmo princípio argumentativo ora apontado. Pois o que essa prova cartesiana solicita é que cada leitor das Meditações reconheça, por sua experiência individual e empírica, a validade de um relato exemplar no qual Descartes, igualmente partindo da inspeção de sua experiência empírica particular, realiza o mesmo percurso que convida cada qual de seus leitores a realizar por intermédio dessa leitura. Formulando em primeira pessoa, em seu próprio texto, não apenas os argumentos da dúvida hiperbólica, mas aqueles com que a pretende limitar, Descartes exemplifica o leitor singular qualquer, que deverá descobrir, ao fim do trajeto, um eu pensante que é a essência mesma dessa exemplaridade. O que representaria o uso de tal estratégia por Descartes? Ela consistiria em mais uma evidência de que sua estratégia de resposta ao ceticismo se elabora com base na observação precisa de elementos conceituais e argumentativos próprios do ceticismo tal como o encontrou disponível nos autores céticos com que se defrontou, como é o caso de Montaigne, sem perder de vista os rendimentos filosóficos precisos que este extrai de sua postura dubitativa. Mesmo que a sua estratégia retórica não se limite a isso, o fato de que o trajeto cartesiano se instale de saída no solo da experiência individual possui uma relevância própria em vista da intenção de superar uma filosofia que, negando a possibilidade de conhecermos a verdade, se instala num discurso circunscrito à manifestação do que aparece ao filósofo, de modo pessoal e subjetivo. Ademais, a conseqüência que Montaigne pretende extrair de seu ceticismo é a de que o emprego de nossas faculdades é não apenas cingido por essas limitações, mas de certo modo contribui para aprofundá-las.

75. Na mesma direção, ver FRANKFURT, 1970, p. 4; GUEROULT, 1968, p. 54-59. 269

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Para Montaigne, a ação do juízo acaba por exibir, como vimos, um viés único e individual, que espelha, ao mesmo tempo, a distância em que cada qual se encontra do conhecimento de uma verdade que, se fosse conhecida como tal, deveria poder se apresentar exatamente no mesmo sentido a cada juízo individual. Mais ainda, o fato de que não haja proposição humana, segundo Montaigne, que não possa se mostrar controvertida o levará a concluir que “[A] nosso juízo natural não apreende claramente o que apreende … [e] que eu obtive [tal opinião] por um meio diverso do que o seria um poder natural de julgar presente em mim e em todos os homens…” (562)76. É bastante curioso que Descartes não apenas pretenda, com sua prova, oferecer uma verdade acerca da própria subjetividade humana que se oporia diretamente, no nível mesmo dos conceitos empregados, às conclusões dessa argumentação, mas que também empregue para tanto um expediente retórico análogo àquele de que o próprio ceticismo (segundo a análise que realizamos aqui) se vale para se compreender como uma filosofia coerente. Não pretendemos aqui avaliar a resposta cartesiana, mas apenas mostrar que se pode reconhecer, nessa reflexão, um solo comum, de origens céticas, determinantes para sua tematização posterior ao longo da filosofia moderna. Se é possível aproximar Descartes e Montaigne sob o viés de suas diferentes reações a essa ambigüidade cética, entre a singularidade da experiência intelectual subjetiva e a generalidade das concepções filosóficas que formula, abre-se aqui, ao menos, uma oportunidade inusitada de observar as raízes históricas daquilo que Merleau-Ponty, à sua moda, descreveu como a ambigüidade intrínseca da concepção de sujeito moderna, que, em suas diversas formulações, “não é coisa nem substância, mas extremidade do particular e do universal”77. Se Descartes se vale da generalização da experiência singular para pretender limitar a dúvida metodológica, Montaigne, inversamente, ao assumir a dúvida cética, recu76. Dedicamos o item 6.2.1 do próximo capítulo ao exame detido desse argumento montaigniano. 77. Ver MERLEAU-PONTY, 1980, Em toda e nenhuma parte, “5. A descoberta da subjetividade”, especialmente p. 232. 270

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sa-se a tomar sua experiência — que os Ensaios pretendem, a partir de um certo momento de sua composição, retratar naquilo que a particulariza — como critério para um juízo universal: [A] Seja como for, quero dizê-las, e mesmo que sejam estas inépcias [os Ensaios], eu não as decidi esconder, não mais do que um retrato meu, calvo e grisalho, onde o pintor teria posto, não um rosto perfeito, mas o meu. Pois também estão aqui meus humores e opiniões, eu os dou pelo que está na minha crença, não pelo que se deve crer. Eu não viso aqui senão mostrar-me a mim mesmo, e seria um outro amanhã, se um novo aprendizado me mudasse. Eu não tenho autoridade para que me creiam, nem o desejo, sentindo-me mui mal instruído para instruir a outrem… (I, 26, 148). Isso não significa que Descartes pretendesse suprimir a individualidade do sujeito que empreende a reflexão filosófica: a despeito da função desempenhada pela depuração filosófica da subjetividade que servirá de fundamento à sua metafísica, pode-se dizer que o sujeito filosófico, em sua universalidade, permanece ancorado no sujeito empírico do qual emerge. Isso parece atender, pelo que vemos, a exigências próprias dessa filosofia. Diversas passagens parecem indicar a permanência de uma tensão, no pensamento cartesiano, entre as verdades universais e irrecusáveis a que a filosofia poderia conduzir o intelecto humano — em particular, acerca de si mesmo — e a vinculação da empresa filosófica ao alcance particular da capacidade do intelecto individual que a formula78. Em contrapartida, podemos encontrar Montaigne trilhando, por vezes, as estradas filosóficas assentadas pelo juízo dos antigos (como ocorre, em especial, na admissão de posições 78. Essa tensão parece ser especialmente notável no Discurso do método. Embora o método seja, de saída, assumido como via para a obtenção de verdades pelo uso adequado da razão, que se situa em cada um de nós como a forma da espécie humana (DM, primeira parte, p. 2-3), Descartes anuncia que o abordará, em vista da possibilidade do erro, na forma de um discurso biográfico privado, a ser considerado como uma “fábula” (ibid., p. 4). Contudo, diversas vezes, adiante, ele aludirá à dimensão meramente pessoal com que a empresa de produzir tais verdades é levada a cabo: seja no que tange à perfeição das obras conduzidas por um só (v. ibid., p. 12-14), seja ainda ao reservar para si mesmo uma maior capacidade de levar adiante a busca metódica de outras verdades (v. ibid., p. 69-72). 271

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céticas) sem que nelas seu juízo se veja sempre em posição de reconhecer claramente algo que produz de modo particular, a partir de si. Mesmo no âmbito de sua experiência, Montaigne reconhece uma permanente “forma dominante” (forme maistresse), oposta à educação e “à tempestade das paixões que lhe são opostas” e reconhecível por todo aquele que se escutar devidamente (v. III, 2, 811)79, bem como a possibilidade de uma generalização da “vida simples e sem brilho” que seus ensaios retratam, sugerindo que “cada homem porta a forma inteira da condição humana”. Tal afirmação, porém, pela qual Montaigne parece justificar ao leitor a eventual utilidade do auto-retrato como objeto de seu livro, é acompanhada por outras que sublinham o aspecto oscilante da imagem obtida, bem como o caráter estritamente particular com que é retratado esse suposto “ser universal” humano: [B] É um registro de diversos e mutáveis acidentes; e de imaginações irresolutas e, de vez em quando, contrárias. Seja porque eu mesmo sou outro, seja porque eu apanho os assuntos noutras circunstâncias e considerações… Se minha alma pudesse firmar pé, eu não me ensaiaria, eu me resolveria: ela está sempre em aprendizagem e posta à prova… [C] Os autores comunicam-se ao povo por alguma marca particular e estrangeira; eu sou o primeiro que o faço pelo meu ser universal, como Michel de Montaigne, não como gramático, poeta ou jurisconsulto. Se o mundo se queixa de que falo demasiado de mim mesmo, eu me queixo de que ele não pensa apenas em si… (ibid.). Em suma, os dois filósofos parecem operar de modos diversos com base na mesma ambigüidade argumentativa entre a natureza estritamente pessoal do discurso e a possibilidade de generalização do que é dito. Enquanto a “substância pensante” cartesiana se oferece como a formulação metafísica da forma racional universalmente presente nos homens, acessível por uma meditação metódica que necessariamente 79. Cf. I, 50, 302, em que Montaigne afirma, numa passagem de evidente inspiração cética, ser a “ignorância” sua forma mestra. Por mais que seja tentador encontrar nessa instância uma espécie de núcleo estável da subjetividade em Montaigne, não parece haver mais elementos que abonem esse passo. Ademais, não se poderia admitir, em vista do que já examinamos, que tal instância possa ser perfeitamente separável da dimensão do costume (“l’institution”) à qual se opõe. 272

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parte do terreno particular biográfico, Montaigne, ao assumir uma posição cética, observa os julgamentos gerais como inevitavelmente “vagos e imperfeitos” (III, 8, 943B), e projeta essa desconfiança no âmago de seu projeto de auto-exame: “[B] Eu nada digo de mim inteiramente, simplesmente e solidamente, sem confusão e sem mistura, nem numa só palavra…” (II, 1, 335)80. Assim, por oposição ao modo como o “eu penso” reporta com precisão a essência da subjetividade, segundo Descartes, o esforço montaigniano em captá-la exige uma dispersão discursiva indefinida que, em lugar de oferecer uma imagem definitiva e acabada, a expõe pelos diversos vieses contraditórios e incongruentes que propriamente a constituem: “[A] Se eu falo diversamente de mim, é que me observo diversamente. Todas as contrariedades aí se encontram, cada uma de sua vez e à sua feição … e quem quer que se estude bem atentamente encontra em si, a saber, no seu próprio julgamento, essa volubilidade e discordância” (II, 1, 335). Mas, sobretudo, por mais que a natureza peculiar do retrato possa induzir à universalização de qualquer um dos aspectos que o constituem, Montaigne cinge rigorosamente o alcance da descrição à sua experiência pessoal e emprega a mesma ambigüidade a que nos referimos para persuadir ou convidar os leitores a empregar o próprio juízo, aos quais é expressamente transferida a responsabilidade de aplicar a si mesmos aquilo que Montaigne apresenta como seu retrato: [A] Esta não é a minha doutrina, é o meu estudo; e não é a lição de outrem, mas a minha. [C] E não me tenham em má conta se eu o comunico. O que me serve pode também por acidente servir a um outro. Eu suma, eu não gasto nada, pois só uso o que é meu. E, se faço o louco, é à minha custa e sem prejuízo de ninguém. Pois se trata de loucura que morre em mim e não tem conseqüências… (II, 6, 377). Não deixaremos, ademais, de encontrar, noutros níveis da interpretação montaigniana do ceticismo, sinais mais ou menos explícitos da mesma ênfase na particularidade — seja no sentido próprio com que 80. RODIS-LEWIS sinteticamente observou que no contraponto entre as concepções de “eu” em Descartes e Montaigne está em jogo uma resposta do primeiro ao ceticismo do segundo (1999, p. 84). 273

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se interpreta determinado conceito cético, seja mesmo na interpretação do ceticismo como a possibilidade de admissão de soluções filosóficas individualizadas ante os problemas que se apresentam —, como Montaigne parece sugerir que se faça no âmbito da busca da “ataraxía”, por exemplo81. Seja como for, coube a Descartes historicamente produzir a tematização filosófica da subjetividade que protagonizou o debate posterior, reintegrando, quer os materiais diversos provenientes da metafísica medieval, como mostraram comentadores como Gilson, quer questões e conceitos próprios de tradições filosóficas rivais à escolástica ao longo do Renascimento82. Igualmente, coube a ele o papel de reintegrar o ceticismo, tal como o compreendeu, à mesma dimensão institucional da filosofia (ainda que, paradoxalmente, ele buscasse produzir uma refutação dessa postura filosófica). A despeito de alguns de seus contemporâneos terem tido consciência da importância da redescoberta dos textos 81. Não poderemos aqui dar suficiente atenção a esse importante ponto. Mas notemos que, a partir da interpretação ora proposta, seja talvez possível reconhecer uma inspiração moral cética, nesse sentido preciso, numa afirmação como esta (que, à primeira vista, parece mais uma vez enfatizar a simples exterioridade relativamente às soluções particulares encontradas por uma filosofia): “[C] Toda a glória que eu pretendo de minha vida é a de ter vivido tranqüilo: tranqüilo não segundo Metrodoro, ou Arcésilas, ou Aristipo, mas tranqüilo segundo eu mesmo. Posto que a filosofia não soube encontrar nenhuma via para a tranqüilidade que seja boa em comum, que cada um a busque particularmente…” (II, 16, 622C). Também nesse aspecto, o ceticismo montaigniano poderia ser visto como o desenvolvimento da ênfase na individualidade do sujeito da moral, já presente em Sêneca, no sentido de uma adaptação da moral a cada indivíduo que a concerne (v., p. ex., III, 2, 807: “[B]… Nós outros, principalmente, que vivemos uma vida privada que apenas importa para nós, devemos ter estabelecido um padrão interno pelo qual medir nossas ações e, segundo ele, por vezes nos agradar, por vezes nos castigar. Eu tenho minhas leis e minha corte para me julgar, e me dirijo a eles mais do que a outra coisa. Eu restrinjo bem minhas ações a partir de outrem, mas eu só as estendo a partir de mim mesmo…”). Talvez devamos compreender nesse mesmo contexto a passagem que citamos no início de nosso trajeto: “[C] Eu não sou filósofo: os males me assolam segundo o que pesam; e pesam segundo a forma como segundo a matéria, e por vezes ainda mais…” (III, 9, 950). Talvez Montaigne se refira aqui ao fato de que, em sua prática filosófica pessoal do ceticismo, não encontra um modo suficientemente eficiente para se valer da argumentação antinômica a fim de obter a metriopátheia cética. 82. A esse respeito, ver FAYE, 1999. 274

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de Sexto Empírico83, é à Primeira Meditação de Descartes que devemos a versão dessa problemática que se tornou clássica (seja ele ou não um bom intérprete do efetivo alcance filosófico do ceticismo antigo). Todavia, não seria justo dizer que Montaigne, ao eleger a “boa filosofia” como aquela que se define radicalmente pelo exercício do juízo individual como critério, o antecede na invenção de uma certa suspensão metodológica da tradição filosófica que contribuiu, talvez, para definir um modus operandi típico daquilo que denominamos hoje a filosofia moderna? Além de ser, de modo por vezes trivial ou impreciso, a filosofia da subjetividade ou a filosofia das idéias, a filosofia que se denominou “moderna” parece estar marcada por esta peculiaridade: muito freqüentemente os filósofos insistiram na importância de rever não apenas as teses eventualmente sustentadas pelas filosofias passadas, mas principalmente as concepções de filosofia imperfeitas ou limitadas por meio das quais pensaram seus predecessores, geralmente invocadas nos diagnósticos que produzem acerca das razões pelas quais aqueles não teriam podido ultrapassar o terreno do pensamento em que se viram inseridos. Não estaríamos aqui diante de um possível ponto de partida desse hábito intelectual moderno pelo qual freqüentemente se assume, de saída, uma posição de dúvida, ainda que metodológica, concernente à própria maneira “tradicional” de compreender a atividade filosófica (tradição que é compreendida, a cada vez, de modo particular), para que se possa estabelecer a “boa” maneira de filosofar? Pensamos que assinalar esse movimento histórico vale o risco das imprecisões e das teses demasiado gerais ou triviais em que forçosamente incorreremos neste espaço limitado: nossa hipótese é a de que ele marca, de forma particular, o ressurgimento moderno de um fenômeno que, embora visível na forma pela qual a filosofia platônica demarcou para si o uso próprio desse termo, em contraposição a outras tradições intelectuais84, não se apre83. Segundo Popkin, além de Montaigne, pensadores como Mersenne e Gassendi tomaram materiais argumentativos diretamente de Sexto, e Pierre Bayle viu a reintrodução desses argumentos no debate filosófico como o início da filosofia moderna: cf. POPKIN, 1979, xvii. 84. Ver, por exemplo, o livro VII da República, e o comentário de HADOT (1995) sobre a filosofia platônica. Talvez não seja o caso de pretender, portanto, que o fenôme 275

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sentava de igual modo ao longo dos séculos que precederam o advento da filosofia moderna — ou, ao menos, com igual radicalidade. É assim que, nas Regras para a direção do espírito, Descartes entende que a “filosofia habitual”, incapaz de se ater apenas ao conhecimento do que a intuição e a dedução podem evidenciar, não fez mais do que reunir conjecturas fadadas a imergir numa controvérsia insanável, à falta de um método adequado. Sem método trabalha a maioria dos filósofos, segundo Descartes, numa atividade de busca da verdade da qual seria melhor desistir do que nela perseverar85. Ainda que a noção de método seja eventualmente herdada de uma ampla tradição renascentista que a discute, Descartes parece ser o primeiro filósofo a vincular o uso do método a uma compreensão do sentido do que seja autenticamente a filosofia. Posteriormente — para nos restringirmos aqui a apenas dois outros exemplos entre os que poderiam ser lembrados —, David Hume, mesmo abdicando da presunção de encontrar a verdade onde tantos gênios do passado tenham falhado, propõe o seu estudo experimental da natureza humana, na qual se ancora a possibilidade de sucesso das diversas ciências à disposição do homem, diante de um panorama no qual duas espécies de filosofia, a “abstrusa” e a “fácil”, colaboraram diversamente para um ceticismo que pareceria desencorajar a própria atividade filosófica como tal86. Renovar as pretensões da filosofia não é, portanto, rumar na direção de um novo gênero de filono em questão seja uma novidade histórica em sentido estrito, apesar do sentido particular que ganha e da intensidade com que se manifesta. Myles Burnyeat, por exemplo, assinala que, no caso de Aristóteles, a distinção entre filosofia primeira e os demais ramos do conhecimento não deve ser vista como uma distinção entre gêneros de saber, mas atende, em vez disso, a uma departamentalização do conhecimento (v. 1984, p. 246). 85. Ver regras III a V (Oeuvres, esp. p. 11, 14). O tema, na verdade, é recorrente e ganha relevância crescente nas obras posteriores, como o Discurso do método (v. primeira parte). 86. Cf. as introduções de A Treatise of Human Nature e Enquiries concerning Human Understanding. O que pretendemos sugerir é que, para Hume, a própria atividade filosófica apenas parece fazer sentido se associada à esperança não apenas da produção de um novo sistema filosófico, mas de uma nova maneira de filosofar que reúna as virtudes desses dois tipos de filosofia (um deles, grosso modo, preocupado com o homem como um ser voltado para a ação; outro com os problemas relativos ao conhecimento racional da verdade). Ver especialmente EHU, p. 16. 276

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sofia? Outro exemplo claro nos parece ser o oferecido por Kant, na medida em que a própria idéia de uma crítica das faculdades está diretamente ligada à determinação de uma dimensão própria da atividade filosófica, pela qual a razão possa livremente desempenhar o papel ao qual seria naturalmente apta. Isso impõe tanto o discernimento desse papel em contraposição ao “uso dogmático” da razão (que Kant examina precisando as condições do conhecimento filosófico por oposição ao conhecimento matemático, ao qual a razão tende, segundo ele, a ser dogmaticamente assimilada por alguns filósofos)87 como o reconhecimento da justeza apenas parcial da postura dos céticos ante os dogmáticos (que ele define como uma mera “censura” às pretensões da razão de ultrapassar o domínio da experiência), insuficiente para o estabelecimento de uma filosofia efetivamente “crítica”, graças à qual, exclusivamente, a razão seria investida da autonomia que lhe cabe para conhecer a priori seus limites88. Em suma, assistimos na filosofia pós-cartesiana (ou pós-montaigniana) o que parece corresponder a uma transformação e radicalização do conflito das filosofias dogmáticas, que agora abrange não apenas as diversas pretensões de formular a verdade e explicar o que seja o real, mas também “a natureza e o escopo da filosofia, o sentido e o alcance do discurso filosófico e do discurso em geral”89. Mas isso não é também pôr em questão, de um modo radicalmente novo, o próprio sentido em que se pode dizer filosofia? Por essa razão, talvez seja insuficiente a 87. Ver o corolário que Kant extrai relativamente à “natureza da filosofia” com base na diferença entre demonstração matemática e prova discursiva, na Crítica da Razão pura, III, 482, B763. 88. Ver ibid., III, 495, A757/B785 ss., e especialmente III, 496, A760-761/ B788-789. Sobre a especificidade do projeto da filosofia crítica, entre outros textos kantianos, ver a primeira introdução da Crítica do Juízo e o segundo prefácio da Crítica da Razão pura. 89. A formulação é de Oswaldo PORCHAT (1993, p. 219) e se aplica, em seu contexto, às nuances que ganham certas posturas dogmáticas no discurso filosófico contemporâneo. Diversos discursos filosóficos que se pretendem liberados de uma postura dogmática não percebem que, nessa medida, a preservam; ainda que abandonem a pretensão de revelar a realidade das coisas ou professar uma verdade absoluta, não percebem que permanecem. Porchat considera a hipótese de que tal dogmatismo dissimulado seja em parte decorrente de uma “infeliz e generalizada ignorância do pirronismo histórico”, cujas críticas se aplicariam igualmente a essa forma não-confessada de dogmatismo. 277

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simples constatação de que, entre as filosofias modernas, há uma diaphonía insolúvel não apenas relativamente a suas teses, mas também aos métodos de que se valem. Tal formulação poderia talvez sugerir uma dissociação possível entre o método efetivamente posto em prática e a filosofia que o pratica. Mas talvez se ofereça aqui uma ocasião para melhor compreendermos por que, na filosofia moderna, essa dissociação se tornou particularmente problemática (mesmo que esse problema não seja privativo dos modernos). O modo como implicitamente a filosofia moderna institucionalizou o questionamento cético que está em sua origem pode, nessa medida, ter contribuído para convertê-la numa atividade essencialmente voltada para a reflexão do que a define e justifica, determinando sua natureza, seus limites, seus interesses, seus problemas próprios, sua relação com o passado. Talvez isso possua, por conseguinte, alguma relação com a incomensurabilidade radical que hoje parece patente entre as diversas linhagens de empreendimentos filosóficos existentes: não apenas um filósofo se revela freqüentemente incapaz de compreender o que afirma outro, pertencente a uma tradição diversa, mas se torna por vezes mesmo incapaz de reconhecê-lo como filósofo (a menos de empregar tal tradição num sentido frouxo e, afinal, pouco filosófico). Se pudermos ver isso como mais um subproduto da Caixa de Pandora cética reaberta em meio aos debates entre Reforma e Contra-Reforma, talvez possamos também lançar um olhar renovado sobre a mesma história e, nalguma medida, contrapor ao modo como a filosofia moderna mimetiza o projeto fundacionista da filosofia cartesiana uma questão filosófica mais montaigniana. Não representaria esse progresso histórico antes uma espécie de atualização inconsciente da mesma singularidade irredutível dos juízos em diaphonía diagnosticada pelo ceticismo de Montaigne?90 90. Se cabe falar de uma exacerbação, talvez crescente, da controvérsia filosófica a partir da modernidade, caberia igualmente, contudo, uma questão sobre a natureza do problema cético implícito: caso aceitemos que a reação ao ceticismo renascentista determina uma tematização explícita e uma transformação do sentido que ganha, a cada vez, a empresa filosófica, deveremos efetivamente aceitar que o problema da escolha entre filosofias, ainda que se ponha, permaneça sendo posto no mesmo sentido? Não seria eventualmente o caso de reconhecer que, pela maneira como reagem ao desafio 278

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Filosofia como ensaio do juízo

Eis como nos pareceria possível observar o ceticismo montaigniano por um viés pelo qual ele se torna filosoficamente mais interessante do que costumeiramente se pensa. Contrariamente ao que alegam as interpretações que condenam a leitura cética de Montaigne como uma redução de seu “andar muito peculiar”, é a recusa a observar o modo peculiar pelo qual a tradição cética se reinstaura nos Ensaios a principal responsável por reduzi-los a um mero “efeito” de seu tempo, de decifração impossível ou relevância dúbia, e cegar-se à verdadeira dimensão histórica de sua filosofia.

cético, ao menos algumas filosofias posteriores apresentam argumentos diversificados, e não necessariamente equivalentes, para justificar o engajamento em empresas filosóficas que, embora preservem elementos importantes do ceticismo que as precede (diversamente, por certo, quanto ao modo como compreendem esse ceticismo), não mais, todavia, se pretendem céticas? Seriam afinal tais filosofias comensuráveis pelo mesmo argumento cético que recusa a possibilidade de uma escolha filosófica entre os dogmatismos antigos? 279

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CAPÍTULO VI

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No capítulo anterior, observamos que o engajamento cético de Montaigne, no mesmo passo em que busca retomar aspectos conceituais peculiares dessa filosofia, com base em uma leitura atenta e detalhada dos textos pirrônicos e acadêmicos, deixa também entrever aspectos peculiares — especialmente na medida em que tal prática filosófica é articulada à manifestação da singularidade do juízo daquele que a retoma. O ceticismo, na forma do ensaio do juízo, norteia-se por certas diretrizes fundamentais quanto à impossibilidade humana de reconhecer verdades, ao uso de nossas faculdades intelectuais e corporais, à adesão ao costume e à natureza — que se oferecem como um relato não-dogmático, provisório e pessoal da experiência intelectual do cético, iluminada pelos testemunhos precedentes, atualizados e reinterpretados. Concebe-se, porém, como um gênero próprio de filosofia que, em vez de buscar estabelecer um conjunto de teses verdadeiras sobre o mundo, consiste numa prática argumentativa e num exercício intelectual voltado ao desenvolvimento dessas faculdades.

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E o mesmo viés particular, por certo, se deixa entrever na forma pela qual Montaigne retoma a própria noção cética da epokhé — e é desse tema que nos ocuparemos neste capítulo. Mas, se tal conseqüência poderia parecer, à primeira vista, natural em virtude da ênfase na individualidade do julgamento compreendida na interpretação proposta, importa situar, de saída, nossa discussão em um problema que parece imediatamente dela decorrer. Em que medida, exatamente, devemos ver como cética uma filosofia que se articula em torno da idéia de ação do juízo, se o conceito central do ceticismo é a epokhé — isto é, a suspensão do juízo? Como conciliar esses elementos aparentemente antagônicos? Essa questão epistemológica — que, como se vê, parece ganhar uma importância central no conjunto da interpretação — poderia soar talvez artificial ou secundária em vista das predominantes preocupações de Montaigne com temas morais, mas há diversas passagens, como veremos, atestando não apenas que se trata de uma questão interpretativa sobre a qual ele mesmo diversas vezes se debruça, mas ainda que ele nos oferece uma compreensão própria acerca da suspensão cética. Procuraremos, num primeiro momento, abordar o problema com base em um debate contemporâneo — normalmente desconsiderado pela crítica dos Ensaios — acerca do pirronismo, protagonizado nos meios filosóficos de língua inglesa durante os anos 19801. A questão central desse debate é determinar o escopo da noção de epokhé tal como presente nos textos de Sexto. Basicamente, opuseram-se duas interpretações principais, definindo implicitamente, segundo Jonathan Barnes, dois tipos de pirronismo: um “urbano” e outro “rústico”2. O pirronismo “urbano” seria o que resulta de uma interpretação da suspensão cética segundo a qual esta possuiria um objeto restrito e razoavelmente bem delimitado — a saber, os ádela, os objetos “não-evidentes” da filosofia dogmática. Assim compreendida, a suspensão do juízo diria respeito apenas às teorias filosóficas, em nada afetando, portanto, 1. O único artigo em língua francesa, em nosso conhecimento, que procura discutir o ceticismo de Montaigne à luz desse debate é WILD, 2000. Discutiremos oportunamente aspectos de sua leitura. 2. Ver BARNES, 1982, p. 2-3. 282

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a possibilidade de assentimento às evidências próprias do phainómenon, aí compreendidas em grande número as crenças variadas que os homens, em geral, normalmente aceitam. Michael Frede, em particular, procurou distinguir duas espécies de assentimento: o cético recusaria apenas aquele dado às teorias filosóficas, mas em nada se comprometeria a dimensão epistêmica (isto é, a capacidade cognitiva) das crenças e evidências relativas ao domínio do aparecer3. Opondo-se a essa interpretação, Myles Burnyeat sustentou que os pirrônicos propuseram, na verdade, um ceticismo “rústico”, isto é, uma dúvida que abarcaria toda e qualquer evidência transcendente à dimensão meramente subjetiva do aparecer, que tais filósofos teriam pretendido descrever por relatos desprovidos de valor epistêmico4. Segundo Burnyeat, a interpretação urbana desfiguraria a inspiração original do pirronismo antigo, porque os argumentos dos antigos céticos alvejam freqüentemente os conhecimentos sobre os objetos mundanos num sentido que apenas de modo anacrônico pode ser considerado meramente “filosófico” ou teorético5. Contudo, sua reconstituição da virulência própria da dúvida pirrônica o conduz a vê-la como uma filosofia, em última análise, inconsistente, posto que a recusa em se pronunciar além da esfera das 3. Ver FREDE, 1979; 1984. Ao menos em suas linhas mais gerais assim descritas, essa visão do pirronismo antigo parece-nos próxima daquela que se apresenta na reconstrução pessoal do pirronismo antigo por Oswaldo PORCHAT, na forma de um “neopirronismo” (v., p. ex., 1992). 4. Ver BURNYEAT, 1980. Sua posição é posteriormente aprimorada (v. 1984) em virtude das críticas à identificação entre “dogma” (como objeto de suspensão) e crença feita no primeiro artigo. O próprio Burnyeat sintetiza a controvérsia (1984, p. 230-232). 5. BURNYEAT sustenta (v. 1984, p. 230-231) que a dúvida dos antigos pirrônicos é incompatível com o “insulamento” — isto é, a restrição de um domínio próprio de validade das questões filosóficas acerca de objetos cuja existência é normalmente admitida. O filósofo, por exemplo, que nega a realidade do tempo não vê nenhuma relação entre essa discussão e o fato de ter que ser pontual em seus compromissos. Segundo esse comentador, trata-se de um fenômeno desconhecido dos antigos, historicamente produzido pelo modo como o ceticismo foi retomado por Descartes e respondido pelos modernos, que acabaram por confinar a discussão filosófica num registro não-empírico. Kant é, a seu ver, a figura decisiva, por imunizar o realismo empírico da dúvida cética com seu idealismo transcendental. Sobre isso, ver também STROUD, 1984, cap. IV, p. 128-169. 283

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representações subjetivas seria incompatível com a admissão de crenças. Seria, assim, preciso responder negativamente à questão sobre se o cético pode viver coerentemente seu ceticismo e reservar à filosofia de Hume o mérito de abordar adequadamente o problema, na medida em que delega à natureza o poder de simplesmente impor crenças ao cético perplexo e incapaz de compreender racionalmente os fundamentos dessas crenças. Sem pretender aqui tomar partido no debate relativo ao ceticismo antigo, notemos, contudo, que Burnyeat não deixou de fazer uma breve homenagem a Montaigne e Gassendi como patronos do que ele denomina a interpretação “country gentlemen”, outra maneira de se referir à leitura “urbana” do pirronismo, uma vez que, nesses filósofos, a adoção de uma postura cética “em nada interfere na próxima colheita”6. Melhor dizendo, o ceticismo “urbano” seria apenas uma “tendência” mais claramente discernível nos Ensaios de Montaigne, ainda que a obra “frustre a tentativa de encontrar uma interpretação do pirronismo única e consistente…”7. Seria essa, porém, uma leitura adequada? Pelo que vimos, temos já suficientes razões para considerar que tal veredicto parece não prestar a devida atenção aos conceitos próprios dos Ensaios, ao cuidado e ao aprofundamento com que ele procede a uma exegese do ceticismo antigo, e tampouco à significação histórica de sua reconstrução filosófica do ceticismo. Ao considerar as diferenças entre as várias escolas céticas antigas, Montaigne discute explicitamente um problema aparentado a esse, o de saber como deve ser compreendida a “suspensão extrema” dos pirrônicos, tendo em vista a forma de agir desses filósofos na vida prática (cf. 505A). Ademais, ele preconiza um exercício do juízo que deve se medir por sua capacidade de transformar 6. Ver BURNYEAT, 1984, p. 231. 7. BURNYEAT, 1984, p. 228, nota 9. Para a interpretação de Montaigne, Burnyeat remete a CAVE (1997; 1979), que, contudo, não se detém numa análise filosófica mais precisa do ceticismo presente nos Ensaios. A despeito do interesse de suas análises pelos procedimentos retóricos dessa obra, suas alusões passageiras ao ceticismo mostram que ele não escapa inteiramente do preconceito já assinalado que conduz os leitores a desconsiderar a possibilidade de um engajamento de Montaigne a uma filosofia (v. 1997, p. 285). 284

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as ações e de devolver os homens ao mundo comum do qual a filosofia dogmática tende a aliená-los. Não se apresenta aqui uma imagem da filosofia de todo oposta ao “insulamento” das questões filosóficas que Burnyeat pensa haver no ceticismo “urbano”?8 Ainda que nosso exame nos tenha conduzido a relativizar o problema de saber qual seria a versão do ceticismo antigo a que melhor ele corresponderia, isso não significa abdicar do esforço de buscar, em sua reflexão, uma resposta ao problema da interpretação do sentido e do alcance da epokhé consistente com esses elementos. Seria possível, talvez, contornar tal esforço alegando haver uma contradição, em última instância, entre o tipo de suspensão do assentimento propugnado pelo ceticismo de Montaigne (caso não se trate de um ceticismo urbano) e outros aspectos de sua reflexão. Pretendemos, contudo, considerar esta ocasião para situar melhor nossa investigação, em busca de esclarecer como se articulam a concepção de filosofia como exercício do juízo e a idéia cética de suspensão do juízo, o que, assim nos parece, permitirá compreender melhor o sentido da resposta que Montaigne teria a oferecer a tal problema interpretativo. Num primeiro momento (6.1), tentaremos mostrar como a alternativa posta por essa discussão, embora útil para situarmos o problema, oferece uma chave interpretativa inadequada, para explicar não apenas o modo como, segundo Montaigne, o ceticismo constitui um gênero filosófico especial, mas também o modo como ele se explicita na forma de uma crítica das capacidades de nossas faculdades cognitivas, que visa denunciar que elas fomentam uma crença ilusória relativamente a 8. Ver nota 5 deste capítulo. Parece-nos que a reflexão de Montaigne se adaptaria melhor, por exemplo, à imagem de sua filosofia que nos oferecem, ainda que de modo igualmente rápido, as análises de Pierre HADOT sobre a transformação histórica da dimensão teorética da reflexão filosófica. Ainda que por meio da análise de uma referência de Nietzsche a Montaigne (Humano, demasiado humano. O filósofo e sua sombra, § 86), Hadot o inclui entre aqueles que conceberam, como os antigos, a filosofia como algo intrinsecamente associado a uma “forma de vida”, por contraposição aos autores que a verão, modernamente, como uma atividade estritamente teórica (v. 1995, esp. cap. I e IX). Ver como Hadot apresenta sua interpretação do ceticismo antigo como modo de vida (1995, cap. VII, esp. p. 174-177, 207-208, 222-226). 285

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nossa forma de conhecer as coisas, oferecendo uma imagem mais adequada de como naturalmente agem. Assim, para considerar o problema segundo sua lógica própria, examinaremos a crítica que Montaigne desenvolve acerca da incapacidade de nosso juízo de reconhecer a verdade, no início da assim chamada “crítica à vaidade da razão”, que constitui o terceiro momento argumentativo geral da “Apologia”9. Tal discussão, como veremos (6.2), parece constituir um caso privilegiado em que Montaigne, indo além de uma retomada dos argumentos dubitativos do ceticismo antigo (como ocorre, por exemplo, na crítica que ele dirige, em seguida, aos sentidos), nos ofereceria uma argumentação dubitativa original, na forma de uma tentativa pessoal de enfrentar o problema da formulação positiva dos limites de nosso conhecimento. Dessa discussão (que nos permitirá aprofundar o contraponto que elaboramos entre Montaigne e Descartes) talvez o aspecto mais curioso seja o modo como a análise dos limites do juízo humano se desdobra em dois aspectos diversos e potencialmente antagônicos: o de sua incapacidade de obter uma verdade em sentido estrito (que possa ser assumida como conhecimento absoluto) e o de sua incapacidade de compreender plenamente suas limitações, diante do fato de que incessantemente se produzem, em vista de seu exercício natural, múltiplas “impressões de verdade” (nenhuma das quais capaz, contudo, de constituir uma imagem definitiva das coisas). Poderemos assim reconhecer (6.3) um novo papel desempenhado pelo paradoxo na filosofia de Montaigne, de ordem propriamente epistemológica: não apenas ele se oferecerá como imagem dos limites de nosso conhecimento (e, na medida em que isso representa uma imobilização do entendimento, como uma representação da epokhé), mas se apresentará na estrutura da própria atividade do juízo, projetando-se sobre a atividade investigativa potencialmente infinita a que o entendimento humano se vê condenado. Confirmaremos aqui nossas observações sobre o modo como o ceticismo, retomado na forma do ensaio, confere um valor destacado à própria zétesis — uma atividade potencialmente permanente pela 9. Especialmente das páginas 559 a 577, como veremos adiante. 286

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qual as diversas impressões de verdade que se apresentam são sempre candidatas a um olhar capaz de relativizá-las. Isso nos conduzirá (6.4) a extrair novas conseqüências relativamente ao estatuto das formulações positivas que a própria filosofia cética poderia oferecer acerca do desconhecimento humano da verdade — intrinsecamente singulares, imperfeitas e provisórias, ainda que isso não resulte propriamente numa crítica ao ceticismo, mas num meio de situá-lo segundo a constatação da natureza paradoxal do juízo humano. Por fim, procuraremos precisar (6.5) alguns aspectos da atitude filosófica que, segundo essa leitura, passa a ser um elemento determinante para a compreensão de como o ceticismo se diferencia das demais formas de filosofia: no que tange não apenas à observação mais realista dos verdadeiros limites de nossas capacidades cognitivas, mas também à nossa inexorável tendência a ignorá-los, que compõem a feição paradoxal de nossa natureza. 6.1. A extremidade da dúvida sob exame

No capítulo I, ao abordar preliminarmente a interpretação montaigniana de epokhé10, consideramos algumas passagens que parecem convidar a uma leitura “urbana” do ceticismo de Montaigne — em especial, a crítica à science das coisas naturais (v. 536-558). Vimos, então, como Montaigne se ocupa de refutar as diversas teorias inventadas para explicar o universo e a alma humana, atacando particularmente o justificacionismo racionalista com que os filósofos se apropriam da evidência dos fenômenos, como parte de uma estratégia de legitimação de suas doutrinas. Ali, as críticas céticas não compreendem o mero aparecer dos fenômenos, nem mesmo a constatação de certa regularidade com que eles nos aparecem (a constatação de que a face se ruborize ou empalideça em determinada situação), eventualmente correspondentes a leis naturais, mas sim o modo como eles são empregados pelos filósofos para sustentar teorias inventadas acerca daquilo que escapa de nossa experiência (como a relação entre o corpo e a alma) (v. 538-539). 10. Ver item 1.2 — “A epokhé posta em prática”. 287

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Montaigne parece aí assentir à evidência dos fenômenos de um modo compatível com a admissão das “crenças comuns e legítimas” em que ele alega se fiar, no mesmo passo em que abre mão de estar alegando verdades por meio de sua narrativa — “eu não ensino, eu narro”11. O cenário parece, à primeira vista, propício à manifestação de um ceticismo “urbano”. Contudo, inspecionemos essa discussão. Montaigne acabara de desenvolver uma crítica dos supostos saberes humanos acerca das coisas divinas, e particularmente do antropomorfismo, alvejado como “espantosa embriaguez do entendimento humano” (516A). O homem é limitado pelas formas finitas e precárias de conhecimento propiciadas por suas faculdades, incapazes de conhecer a dimensão divina, em que se alojaria a verdade, e que transcende radicalmente a experiência cognitiva humana. Mas, incapaz de forjar um verme, ele forja deuses às dúzias (530A), e julga-se capaz, por seu raciocínio, de algo abarcar acerca da dimensão que transcende a experiência humana. Tal pretensão, correspondente a uma figura delirante de nossas tendências dogmáticas, exige uma atitude suspensiva radical, que se expressa na forma de um oximoro: quanto às coisas celestes, é preciso “imaginá-las inimagináveis” (518AC) e reconhecer que, quando nos referimos a Deus, pretendemos nos referir a algo que ultrapassa inteiramente nosso entendimento: nossa palavra o diz, mas nossa inteligência não entende (528). Poder-se-ia supor, porém, que no âmbito das coisas que se oferecem à nossa experiência estivesse a nosso alcance o conhecimento de alguma verdade. Mas Montaigne estende a mesma crítica — alvejando, antes de mais, o modo como os filósofos dogmáticos produzem, acerca dos objetos naturais, explicações igualmente fantasiosas que pretenderiam oferecer como conhecimento: a atitude de Montaigne é a de considerá-los ainda mais criticáveis, tal como o seria um pintor naturalista que produzisse uma pintura infiel à paisagem (cf. 536-538). E uma razão observada aqui contra tal pretensão de conhecimento reside na forma pela qual geralmente confundimos a natureza e o costume (como vimos no capítulo III)12. Tudo aquilo que tomamos por natural, tomamo-lo não com base no que seria a natureza 11. Ver III, 2, 806B. 288

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das próprias coisas, mas relativamente à nossa própria experiência. Por isso, diz Montaigne: “[A]… aos mais sábios, tudo será, portanto, monstruoso: pois a esses a razão humana persuadiu de que ela não tem pé nem fundamento qualquer, seja para assegurar que a neve é branca… se há qualquer coisa ou se não há nada… ou se nós vivemos…” (526). Mas não poderíamos assumir aquilo que nos surge segundo nossa experiência como correspondente a alguma forma de conhecimento acerca da natureza? Ainda que, segundo Montaigne, a experiência possa nos oferecer um critério para a vida prática mais confiável que as ilusões que a razão forja, tão mais livremente quanto mais dela se afasta, tampouco ela é compreendida por ele como instância capaz de propriamente oferecer conhecimento. Eis como se introduz o último capítulo dos Ensaios, “Da experiência” (III, 13): [B] Não há desejo mais natural que o desejo de conhecimento. Nós tentamos todos os meios que aí podem conduzir. Quando a razão nos falta, nós empregamos a experiência… que é um meio mais fraco e menos digno; mas a verdade é coisa tão grande que nós não devemos desdenhar nenhum intermediário que a ela conduza. A razão tem tantas formas que não sabemos a qual nos ater; a experiência não as tem menos. A conseqüência que nós queremos extrair da semelhança dos eventos é muito insegura, uma vez que eles são sempre dessemelhantes: não há nenhuma qualidade tão universal nessa imagem das coisas que a diversidade e variedade… (III, 13, 1065). Notemos que Montaigne não se restringe aqui a condenar conhecimentos de determinada espécie (relativos ao não-evidente); trata-se, de modo mais geral, de considerar a capacidade de nossos recursos cognitivos de propiciar conhecimento da verdade. E conquanto a experiência possa mostrar-se um recurso mais seguro do que a razão, a despeito de se tratar de um meio “mais fraco e menos digno”, também aqui nos defrontamos com o mesmo limite. Mais exatamente, a impossibilidade de perfazermos de modo seguro generalizações com base em cada experiência isolada nos impede de alegar conhecimento de verdade (na medida, ao menos, em que disso depende a alegação da 12. Ver item 3.4 — “A ogacidade dos fenômenos”. 289

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semelhança entre eventos). O mesmo verifica-se nas discussões nas quais o contexto é estritamente o da recusa das interpretações dos fenômenos pelos dogmáticos. Montaigne retoma a argumentação cética por meio de fórmulas que não parecem restringir a dúvida a um conjunto de proposições teóricas, como nesta instanciação do tropo cético da Hipótese (cf. HP I, 164 ss.): [A] Contra aqueles que combatem por pressuposições, é preciso pressupor, ao contrário, o mesmo axioma que se debate. Pois toda pressuposição humana e toda enunciação têm tanta autoridade quanto a outra, se a razão não faz sua diferença. Assim, é preciso pô-las todas na balança, e primeiramente as mais gerais e aquelas que nos tiranizam. [C] A impressão de certeza é um testemunho certo de loucura e de incerteza extrema… (540). Talvez pudéssemos pensar que “pressuposição” e “enunciação” fossem sinônimos, de modo que o texto se restringisse a condenar proposições que, mesmo sem exibir em seu conteúdo os conceitos forjados pelas filosofias dogmáticas, fossem empregadas num contexto de justificação teórica. No entanto, o sentido do texto não é o de restringir, mas o de estender: se é preciso “primeiramente” pôr em suspensão “as mais gerais e aquelas que nos tiranizam”, estas se apresentam como parte de um conjunto em que todos os enunciados podem ser postos em dúvida, ainda que alguns deles só o possam ser posteriormente. E se a razão pode “fazer a diferença”, segundo esse texto, é no sentido de prover determinada proposição de alguma prerrogativa que a distinga desse conjunto (que abarca, portanto, todas aquelas que se pretenda alegar como princípio demonstrativo, bem como as que delas venham a ser inferidas). Porém, analogamente ao que vimos no exemplo anterior, Montaigne parece pretender conciliar aqui, de uma parte, uma dúvida geral sobre a possibilidade de reconhecermos quaisquer proposições como capazes de oferecer conhecimento e, de outra, alguma diferenciação entre o grau de confiabilidade de proposições de tipo diverso. O caráter geralmente dubitável das proposições humanas não exclui a possibilidade de que algumas delas possam ser privilegiadamente objetos de suspensão — tal como ocorre noutras discussões em que Montaigne pretende divisar algum alvo prioritário da suspensão: 290

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[B] … cada nação tem diversos costumes e usanças que são, não apenas desconhecidas, mas selvagens e miraculosas para uma outra nação… Eu digo com freqüência que é pura tolice o que nos faz correr atrás de exemplos remotos e escolásticos… Pois, se dizemos que nos falta autoridade para dar fé a nossos próprios testemunhos, nós o dizemos fora de propósito… De tal modo que, na minha opinião, das coisas mais ordinárias e comuns e conhecidas, se soubermos encontrar o lume, podem se formar os maiores milagres da natureza e os mais maravilhosos exemplos, notadamente nas ações humanas… (III, 13, 1081; itálicos nossos).

Notadamente as ações humanas se deixam apreender sob múltiplos vieses, proibindo-nos de identificar nossas impressões relativas com aquilo que as coisas são. Notadamente, mas não exclusivamente: tratase apenas de um caso particular do que se poderia verificar nas demais “coisas”. Do mesmo modo, o texto anterior é bastante claro quanto ao escopo legítimo da dúvida, o que se confirma pelo modo como a crítica desenvolvida à autoridade dos princípios é finalmente traduzida na terminologia da certeza e da evidência: “a impressão de certeza é um testemunho certo de loucura e de extrema incerteza”. Não se trata, ao que parece, de reservar nenhuma forma de “certeza” que poderia ser distinta da mera “impressão de certeza”; Montaigne não convoca os “fatos” como um critério de conhecimento, por oposição ao modo como estariam vedados no plano teórico, mesmo que afirme serem eles “preferíveis à razão”. Noutra passagem dessa mesma discussão sobre a science dogmática, Montaigne questiona concepções cosmológicas e geográficas vigentes e se refere à argumentação dos pirrônicos nos seguintes termos: [A] … e os Pirrônicos não se servem de seus argumentos e de sua razão senão para arruinar a aparência de experiência, e é uma maravilha [ver] até onde a maleabilidade da nossa razão os acompanhou nesse desígnio de combater a evidência dos fatos [effects], pois eles provam [verifient] que não nos movemos, que não falamos, que não há pesado nem quente, com uma força de argumentação semelhante àquela com que provamos as coisas mais verossimilhantes… (571). À evidência aparentemente inquestionável dos “fatos”, a argumentação pirrônica se contrapõe para mostrar que a razão não é um instru291

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mento de conhecimento confiável, uma vez que pode igualmente sustentar teses opostas, e para arruinar, assim, a “aparência de experiência”. Seja qual for o sentido da aceitação pirrônica da experiência factual, não o é, aos olhos de Montaigne, admitindo-a como um solo em que se possa seguramente enraizar alguma espécie de conhecimento: seja porque não dispomos de meios para determinar o aporte da razão e do costume naquilo que nos surge como natural, seja porque a razão, pretendendo tudo dominar, nos priva da capacidade de identificar inequivocamente a presença da natureza além daquilo que nos aparece como natural13, seja ainda em virtude do modo como a própria experiência pode frustrar nossa crença acerca das coisas. Contudo, a mera exibição desse e de outros exemplos talvez não baste para recusar a interpretação de Burnyeat: poder-se-ia alegar que estamos diante de um conjunto de exemplos que, em última instância, são disparatados ou contraditórios, uma vez considerados da perspectiva de saber se o ceticismo de Montaigne é “rural” ou “urbano”. Mas cabe indagar, antes de mais, quão longe pode avançar um diagnóstico que se limita a contrapor passagens que, isoladamente, invocariam interpretações supostamente incompatíveis, sem se ocupar de um exame mais preciso do encadeamento lógico dos textos em que se apresentam14. Mesmo admitindo que a discussão sobre a precariedade dos saberes sobre a natureza constitua um exemplo de uma interpretação urbana, convém não esquecermos que a argumentação da Apologia, da qual essa crítica é uma etapa, progride no sentido de uma radicalização das 13. Ver 580B, III, 12, 1049B. 14. Embora WILD tenha corretamente reconhecido, em nosso entender, que a análise de Burnyeat é incorreta ao confinar Montaigne num ceticismo urbano, parece-nos que sua leitura peca por permanecer presa ao problema de enquadrá-lo nessa mesma grade conceitual. Ele admite sem mais que, como não se trata de um ceticismo urbano, Montaigne adota um ceticismo rústico (v. p. 48), sem devidamente considerar que, segundo Burnyeat, isso conduziria a uma condenação crítica da filosofia dos céticos, que Hume teria sido o primeiro a formular, compreendendo a inconsistência dessa filosofia. Eis por que, parece-nos, ele é conduzido a encontrar uma oscilação da reflexão de Montaigne entre duas formas de ceticismo (v. p. 50): ater-se à formulação do problema herdada de Burnyeat conduz à impossibilidade de recuperar a coerência própria com que esse ceticismo é pensado. 292

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razões de duvidar. Nessa discussão, em particular, Montaigne se ocupa de examinar os resultados insatisfatórios da busca humana da verdade — que Villey denomina crítica da “vaidade do saber”. Mas ele reserva para expor apenas posteriormente, de um modo sistemático, na crítica à “vaidade da razão” (ainda segundo a nomenclatura desse mesmo comentador), os argumentos propriamente epistemológicos do pirronismo (em especial, os quatro primeiros tropos de Enesidemo), que retoma na qualidade de provas da insuficiência dos meios pelos quais obteríamos a verdade: a razão, o juízo e os sentidos, que são por fim atacados como “prova maior da ignorância humana”15. Detenhamo-nos um instante em examinar a passagem que faz a transição a esses dois grandes momentos da “Apologia”, a enigmática e controvertida “dedicatória” da “Apologia” e a subseqüente discussão sobre a impossibilidade de oferecer limites ao espírito humano. Finalizando uma ampla argumentação destinada a revelar a fraqueza de nosso conhecimento acerca da natureza de nossa alma e de nosso corpo, Montaigne conclui a crítica à vaidade dos saberes afirmando: “Nós tocamos aqui os limites e as últimas fronteiras dos saberes, dos quais a extremidade é viciosa, como [ocorre com] a virtude…” (558A). O que significa exatamente afirmar que a “extremidade” do saber é viciosa? Em eco a essa observação, Montaigne alerta àquela a quem dedica o ensaio (a princesa Margarida de Navarra, supostamente) para os perigos do método argumentativo ora empregado, no qual é preciso ser alvejado para poder alvejar seu oponente (uma eventual alusão à sua defesa de Sebond, na qual acaba por destruir as teses do teólogo catalão), em vista da natureza perigosa do espírito humano (557-559). Recomendando a ela que se atenha à “trilha habitual” e ao modo comum de argumentar (ainda que o método cético, ora apresentado, possa ser, diz ele, nalguma situação extrema, útil contra o contágio do veneno de algum dos “novos doutores” protestantes), Montaigne justifica tais re15. A crítica da “vaidade do saber” se estende, segundo Villey (v. ibid., 438), de 486 a 559, enquanto a crítica à “vaidade da razão” e das demais faculdades cognitivas vai de 559 a 600. Oferecemos um mapa argumentativo mais detalhado, sem divergências significativas com a divisão proposta por Villey, em EVA, 2003. 293

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comendações alertando para a necessidade de oferecer limites ao espírito, em face de sua tendência a extraviar-se, e para a dificuldade de fazê-lo. Mas a natureza ilimitada do espírito é descrita de modo bastante vago, compreendendo alusões indiretas tanto às guerras de religião como à necessidade de contê-lo em seus estudos, posto que haveria poucas almas capazes de, “com moderação e sem temeridade, vogar na liberdade de seus pensamentos para além das opiniões comuns…”16. As páginas que imediatamente daí se seguem podem, com efeito, ser lidas como uma discussão indireta desse tema, pois se concentram no problema do oferecimento de limites ao saber humano. Elas nos oferecem, porém, um dos exemplos mais expressivos e curiosos das reviravoltas argumentativas que temos observado (e às quais Montaigne acaba de aludir indiretamente). O desenvolvimento da discussão oferece uma preterição relativa aos conselhos que Montaigne acaba de dar: embora seja conveniente se deter diante dos limites perigosos oferecidos pelas ciências, ele próprio passa a criticar, em consonância com a crítica da vaidade dos saberes, o modo como seus contemporâneos põem-se de acordo sobre as coisas que examinam, graças ao modo como se escravizaram ao costume e à autoridade de outrem, muito embora a filosofia antiga tenha produzido uma infinda multiplicidade de opiniões sobre os mais diversos temas17. Noutros termos: se limite é preciso impor ao espírito, não se confunde com a admissão do servilismo intelectual pelo qual freqüentemente a aceitação de verdades é a mera contrapartida da ausência de espírito crítico. Isso posto, Montaigne passa a examinar exemplos de posicionamentos filosóficos que, de diversas maneiras, procuraram equacionar o tema do limite dos conhecimentos acessíveis ao homem (ou, inversamente, da dúvida a respeito dos conhecimentos disponíveis). Trata-se, em particular, de discutir duas teorias epistemológicas que põem em cena, cada uma à sua maneira, um problema análogo àquele que perseguimos relativamente ao modelo conceitual do ceticismo. E a discussão que Montaigne nos oferece, 16. Ver 559AB. 17. Ver 559-560AC. Para uma discussão do mesmo tema, ver item 5.2 — “O ensaio como investigação cética”. 294

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como veremos agora, é bastante elucidativa para a compreensão de aspectos de sua posição. A primeira dessas teorias é atribuída ao aristotélico Teofrasto, e consiste em admitir que o conhecimento humano teria um alcance limitado: partindo daquilo que os sentidos oferecem, poderia em certa medida julgar acerca das causas, mas não poderia apreender aquelas “extremas e primeiras, em razão, ou de sua fraqueza, ou da dificuldade das coisas” (560). Não representaria ela uma interpretação possível, entre outras, da afirmação de Montaigne sobre a “extremidade viciosa” do saber? O que importa sublinhar é que, muito embora não se possa aqui reconhecer uma epistemologia cética, essa teoria de Teofrasto parece guardar algumas analogias com uma interpretação urbana do ceticismo. Pois o que essa teoria propõe é que admitamos que o conhecimento humano abarca as certezas oferecidas pelos sentidos e pode mesmo ser veiculado por um discurso sobre as causas que permanecesse rente à superfície dos fenômenos, mas recusasse a especulação sobre as entidades abstrusas que se ocultam nas fossas abissais que essa fonte sensível não ilumina. Não poderia isso se aproximar de uma teoria disposta a reconhecer valor epistêmico a nossas descrições do phainómenon, ao lado de uma suspensão do juízo sobre as proposições de natureza filosófica, acerca do não-evidente? A resposta de Montaigne, de todo modo, exibe as dificuldades que teria ele para assentir a uma epistemologia como essa. Ele elogia a opinião de Teofrasto, na medida em que é “plausível e proposta por pessoas conciliadoras”, bem como “moderada e persuasiva”, por reconhecer a temeridade de avançar além das “medidas do poder” de nossa capacidade de conhecer. Mas o veredicto é claro: isso não a torna uma posição coerente. Segundo Montaigne, ela constitui antes um exemplo de tentativa malfadada de pretender impor limites ao espírito humano: “… ele é curioso e ávido e não tem mais ocasião de se deter em mil do que em cinqüenta…” (560). Mostra a sua experiência, diz ele, que: … aquilo em que um falhou, o outro conseguiu, e que o que era desconhecido num século, o século seguinte esclareceu, e que as ciências e as artes não se jogam numa forma, mas antes se formam 295

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e figuram pouco a pouco, manejando-as e polindo-as diversas vezes, como os ursos conformam seus filhotes lambendo-os à vontade… (ibid.).

Significa isso que o problema de Teofrasto foi o de ter minimizado o poder do progresso científico e a eventualidade de um conhecimento não só dos objetos sensíveis, mas das causas primeiras? O problema aqui não é o da possibilidade de que uma teoria que pretendesse alegar conhecimento viesse a ser suplantada por outra mais capaz de fazê-lo, mas sim a pretensão de afirmar conhecimento mediante um conhecimento parcial das causas. Confessar que as primeiras causas são desconhecidas nos conduzirá a confessar que também o são seus efeitos, posto que o “discutir e investigar” não tem outro limite que os princípios: “se esse fim não detém sua marcha, ele se lança a uma incerteza infinita” (561). Não apenas a tentativa de impor um limite à curiosidade é malfadada (porque é natural estender o suposto conhecimento dos efeitos à sua causa, ainda que remota), mas a própria teoria que pretende estabelecer essa limitação, ao confessar que as causas são incognoscíveis, comprometerá o conhecimento do restante. Uma citação tardia dos Academica atesta a referência cética dessa crítica18. Embora o comprometimento da pretensão de conhecimento aqui pareça decorrer da admissão de que ele se dá sempre segundo uma relação causal, no parágrafo seguinte Montaigne retoma as conclusões da crítica à vaidade do saber, articulando-as a uma dúvida de outra natureza: sendo a alma incapaz de se conhecer e ao corpo onde se situa (como mostram os intermináveis debates a respeito), e sendo nosso corpo e nossa alma o que deveríamos primeiro conhecer (por serem aquilo que mais imediatamente se oferece a nós), segue-se que, de fato, nada conhecemos. 18. “[C] Uma coisa não pode ser mais ou menos compreendida que outra, posto que para todas as coisas há uma só definição de compreender…” (561; cf. Acad., II, xli, 128). Embora essa afirmação possua em seu contexto original um propósito dialético (destinado a criticar a maneira como os estóicos operam com uma única definição de “perceber” em situações que se aplicam tanto à percepção dos fenômenos quanto à investigação de suas causas), aqui tal citação parece aludir apenas ao modo como nossas tentativas de demarcar uma região onde seria possível o conhecimento tendem a ser fadadas ao insucesso, caso examinemos mais a fundo as condições dessa demarcação. 296

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Ao que parece, trata-se de estender a crítica anterior a um caso em que poderíamos pretender alegar um conhecimento que não dependeria de qualquer causa remota para obter uma conclusão mais geral: basta dar rédeas livres ao nosso poder de julgar para que se revele a inadequação de uma teoria epistemológica que pretenda delimitar, por meio de alguma linha divisória nítida, aquilo que, em princípio, pode ser conhecido e aquilo que não o pode ser. Poder-se-ia alegar, porém, que a teoria de Teofrasto é dogmática, preocupada em estabelecer verdades (e, para tanto, em traçar os limites em que essa atividade pode ser levada a cabo), enquanto a filosofia cética pretenderia apenas lançar dúvidas sobre os nossos conhecimentos (embora limitando-as a um conjunto de proposições para se tornar viável). Porém, essa discussão conduz explicitamente ao problema de saber como poderia o cético viver seu ceticismo, segundo a radicalidade que, de direito, sua dúvida poderia atingir para ser coerente com nossa incapacidade de reconhecer a verdade. A segunda “opinião” discutida por Montaigne é a posição relativa à impossibilidade de conhecer que ele apresenta como a dos céticos acadêmicos, caracterizada por meio dos textos pirrônicos que a criticam. Tendo concluído a discussão da proposta de Teofrasto pela constatação cética de que a alma não tem como separar a verdade do falso, uma vez que é pela mesma via que ambos adentram em nossa alma, ele passa a examinar o modo pelo qual os pirrônicos teriam lidado com a radicalidade de sua dúvida, segundo a qual não seria mais verossímil dizer que a neve seja branca do que negra, nem dizer que não seríamos mais seguros do movimento de uma pedra que parte de nossa mão do que do movimento da oitava esfera (v. 561A). As palavras com que Montaigne qualifica esse resultado filosófico são estas: trata-se de uma “dificuldade e estranheza, que não pode se alojar em nossa imaginação senão dificilmente” (ibid.). E como os acadêmicos responderiam, segundo ele, a tal dificuldade? “[A] Eles se rendem ao reconhecimento de que algumas coisas são mais verossímeis do que outras e recebem em seu juízo a faculdade de poder se inclinar antes a uma aparência do que a outra: eles lhe facultam a propensão, proibindo-lhe a resolução…” (561). A interpretação de Montaigne dessa resposta acadêmica (que 297

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seria revista, ao que parece, posteriormente a 1580)19, parece admitir, de um lado, a admissão da impossibilidade radical de conhecer e, de outro, a necessidade de limitar essa conclusão em vista dos problemas que ela acarreta, por meio da admissão de uma inclinação de nosso juízo às proposições que se apresentem com aparência inquestionável de verdade. Há, com efeito, um fio condutor único para a discussão das posições cética e dogmática — a impossibilidade de oferecer limites ao espírito humano — pelo qual podemos precisar a interpretação do ceticismo aqui implicada. Qual seria exatamente a impossibilidade de reconhecer limites que agora, em versão negativa, se oferece na discussão do exemplo acadêmico? Montaigne faz seu aqui o argumento oferecido por Sexto, nas Hipotiposes, segundo o qual a concessão feita à inclinação do juízo ao verossímil não difere daquela que se faria ao reconhecimento da verdade, pois aquele que pensa ver uma aparência 19. Há pelo menos dois indícios de uma possível mudança na interpretação acerca desse aspecto do ceticismo acadêmico por parte de Montaigne após 1588. Adicionando tardiamente uma passagem de Cícero para ilustrar a exposição do critério cético de ação (que passa, portanto, a ser comentado por passagens oriundas dessas duas orientações céticas indistintamente), Montaigne afirma que a necessidade de viver obriga o sábio a admitir coisas “não compreendidas, não percebidas e não consentidas” (505-506; itálicos nossos). Como o termo consentement é empregado por Montaigne como sinônimo de “assentimento”, talvez não mais se trate, a essa altura, de compreender a adesão ao “provável” como uma forma de assentimento a uma inclinação do julgamento. De modo geral, Montaigne tenderá a interpretá-la, como dissemos no capítulo III, como um critério puramente prático. A mesma idéia é exposta nesta citação latina dos Academica, também tardia, que Montaigne justapõe à crítica dos pirrônicos aos acadêmicos: “Nenhuma diferença há entre as aparências verdadeiras e as falsas que mova a alma ao assentimento” (562; cf. Acad. II, 28). Qual pode ser o sentido desse acréscimo se não o de levantar uma suspeita acerca da justeza da interpretação dessa filosofia proposta pelos pirrônicos, então aceita por Montaigne? Tal passagem parece oposta à hipótese de que eles teriam deliberadamente conferido algum peso epistêmico ao “provável”, pressuposta por aquela interpretação. Assim, Montaigne poderia preservar a coerência da crítica, mas discutir sua eventual pertinência interpretativa. De todo modo, sublinhemos que já em 1580 Montaigne aproxima, duas páginas depois, pirrônicos — aqueles que duvidam de tudo, mesmo de que “o céu está sobre a nossa cabeça” — de acadêmicos — aqueles que dizem que nada pode ser compreendido, nem mesmo que “o céu está sobre a nossa cabeça” — como as “duas opiniões que são…, sem comparação, as mais fortes” entre as diversas sustentadas pelos filósofos (v. 563A). 298

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de verdade deveria admitir que pode afinal conhecê-la inteiramente, uma vez que deve conhecer a própria coisa para poder dizer o que lhe é semelhante20. O problema é similar ao que fora detectado na posição de Teofrasto, mas de sinais trocados: se ali a admissão de uma impossibilidade parcial de reconhecer a verdade acaba por destruir o empreendimento dogmático, aqui é a admissão implícita de seu reconhecimento que mostra ser problemática essa versão do ceticismo. Porém, tal inconsistência parece aqui se tornar objeto de crítica na medida em que reflete alguma forma de teoria sobre as coisas — mais exatamente, sobre aquilo que podemos ou não conhecer. É nesse sentido que Montaigne compreende, na mesma época, a diferença estabelecida pelos pirrônicos entre o gênero de filosofia que praticam e a dúvida acadêmica, como atesta esta passagem: [A] Os pirrônicos pensam que os que pensam tê-la encontrado [a verdade] enganam-se infinitamente, e que há ainda grande ousadia de vaidade neste segundo grau [na filosofia acadêmica] que assegura serem as forças humanas incapazes de atingi-la. Pois isso de estabelecer a medida do nosso poder de conhecer e julgar a dificuldade das coisas é uma grande e extrema ciência [science], da qual duvidam que o homem seja capaz… (502; itálicos nossos; cf. HP I, 226). Eis o que a crítica pirrônica elucidaria acerca da situação humana de ignorância da verdade, aos olhos de Montaigne: não se trata de recusar ou restringir a tese segundo a qual nada conhecemos, igualmente formulada pelos acadêmicos, mas, ao contrário, de ir além e apontar as dificuldades de obter uma formulação clara acerca dos limites do desconhecimento humano da verdade. Isso porque a compreensão do ceticismo como pura prática argumentativa comportaria a possibilidade de duvidar não apenas da “tese” cética de que seríamos totalmente incapazes de conhecer (mesmo que fosse para constatar que a capacidade de entendimento humano seria ainda menor do que aquela implicitamente reconhecida pelos acadêmicos), mas também das explicações que o cético produziria para pretender explicar como ele vive coerentemente sua filosofia — desde que elas constituíssem elabora20. Ver. 562, cf. HP II, 74-75. 299

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ções teóricas. Da pretensão de restringir a esfera de nossas pretensões cognitivas ao assentimento à nossa incapacidade de conhecer a verdade em todos os níveis, e daí à constatação de que tampouco essa incapacidade poderia ser objeto de uma formulação inteiramente satisfatória, tratar-se-ia apenas de um aprofundamento contínuo da mesma pretensão de extrair as conseqüências mais coerentes da necessidade de reconhecer os limites do espírito humano e descobrir, entre essas limitações, a permanente impossibilidade de fazê-lo. Há textos, porém, em que Montaigne parece adotar uma posição, relativamente à viabilidade prática de uma dúvida extrema como a que seria proposta pelo pirronismo, oposta àquela que consideramos. Porém, graças aos elementos metodológicos sobre o paradoxo montaigniano já considerados, tais textos, em vez de nos conduzirem a condenar a eventual incoerência de Montaigne, parecem nos convidar à consideração de aspectos que parecem escapar à alternativa “rústico” versus “urbano” de interpretação (no sentido em que ela se apresenta formulada). Na mesma discussão sobre o verossímil acadêmico, a extremidade da epokhé dos pirrônicos, a despeito da sua coerência também extrema, é apresentada em termos condicionais: “a mais segura posição de nosso entendimento, e a mais feliz, seria aquela em que ele se manteria calmo, reto, inflexível, sem movimento e sem agitação…” (562). E na introdução de um ensaio aparentemente contemporâneo da “Apologia”, intitulado “Da virtude”21, assim Montaigne se refere à dúvida de Pirro: [A] Eu acho, por experiência, que há bastante diferença entre os impulsos e repentes da alma e um hábito constante e resoluto… Pirro, aquele que construiu da ignorância um saber [science] tão agradável, tentou, como todos os outros verdadeiramente filósofos, fazer sua vida responder à sua doutrina. E por sustentar ser a fraqueza do juízo humano tão extrema, a ponto de não poder tomar partido 21. Diante da impossibilidade de uma datação precisa, VILLEY conjectura que esse ensaio tenha sido composto posteriormente a 1576 (v. Les Essais, p. 705, 676, 668). Seja como for, é evidente o interesse pronunciado de Montaigne pelo ceticismo — aí discutido, em particular, a partir das Vidas de Diógenes Laércio. 300

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ou inclinação, e de querê-lo perpetuamente equilibrado, observando e acolhendo todas as coisas como indiferentes, diz-se que ele se mantinha sempre de mesma feição e aspecto: se começava uma conversa, não a interrompia quando aquele a quem falava já se tinha ido… Uma vez ele sofria, ao ser incisado e cauterizado, com uma constância tal que não se o via sequer piscar os olhos. Não é pouco conduzir a alma a essas imaginações, é ainda mais aí juntar as ações [les effects], todavia não é impossível; mas, juntá-las com tal perseverança e constância a ponto de estabelecer delas o seu curso de vida ordinário, certamente, nessas empresas tão afastadas do uso comum, é quase incrível que se possa… (II, 29, 705-706).

O ponto central pelo qual essa interpretação da prática da epokhé se opõe àquela sustentada por Montaigne na apresentação da filosofia cética da “Apologia” concerne à sua relação com a vida comum: lá, a adesão ao phainómenon, como vimos, é entendida como algo que corresponderia a uma vivência segundo “a forma comum” (505A), em detrimento da interpretação proveniente de Diógenes Laércio — que aqui, sem maiores explicações, é apresentada como conseqüência coerente da conclusão pirrônica sobre a fraqueza extrema do juízo. Entretanto, se esse comentário se aproxima das qualificações da dúvida extrema presentes na discussão sobre a verossimilhança acadêmica — uma “dificuldade e estranheza, que não pode se alojar em nossa imaginação senão dificilmente” (561) —, trata-se aqui de oferecer uma versão mais branda da mesma posição extrema: seria possível não apenas imaginar, mas praticar tal dúvida, ainda que apenas temporariamente. Qual é, afinal, a dedução coerente a extrair da conclusão extrema sobre a fraqueza do juízo? Eis a questão que esse conjunto de textos nos parece implicitamente propor. E talvez a primeira lição que contenham seja a de nos convidar a desconfiar das aparências. Pelo que vimos até aqui, uma situação paradoxal tão flagrante como a que se apresenta nesses textos pode bem oferecer não uma mera contradição inexplicável, mas um convite deliberado ao julgamento do leitor (seja acerca da interpretação de Montaigne a respeito do problema, seja, por esse meio, acerca do problema, ele mesmo). Com efeito, parece haver ao menos uma diferença entre 301

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essas discussões que, embora sutil, é bastante significativa. Na “Apologia”, Montaigne compara as duas interpretações e oferece seu juízo, em primeira pessoa, sobre o ponto22, ao passo que aqui ele retoma a interpretação laerciana do ceticismo tomando o devido cuidado de não a endossar pessoalmente: “diz-se que ele se mantinha sempre de mesma feição e aspecto” (II, 29, 705; itálicos nossos). Mas o fato de se tratar de uma descrição eventualmente infiel ou fantasiosa da filosofia pirrônica torná-la-ia inútil como objeto de reflexão? Isso parece estar, aliás, em conformidade com o que Montaigne reconhece ser a utilidade, de modo geral, das diversas narrativas que considera no âmbito de seu exercício reflexivo, como diz ele no ensaio “Da força da imaginação”: [C] Também no estudo que faço de nossos modos de agir [mœurs] e movimentos, os testemunhos fabulosos, posto que sejam possíveis, servem como os verdadeiros. Ocorrido ou não, em Paris ou Roma, a João ou a Pedro, é sempre um lance [tour] da capacidade humana, do qual sou utilmente informado por esse conto… (I, 21, 105). E a que se prestaria aquele relato, considerado de tal ponto de vista? Montaigne parece sugerir que, se essa fosse a conseqüência necessária do reconhecimento da fraqueza do juízo humano, precisaríamos concluir pela impossibilidade de pôr em prática uma dúvida dessa ordem, ainda que o pudéssemos fazer temporariamente. Isso não significa necessariamente que o ceticismo devesse ser praticado desse modo. Mas pode significar que, embora uma dúvida com tal abrangência pudesse mesmo ser justificada por nossas efetivas capacidades de conhecer a verdade, embora, ademais, tal dúvida não seja, de fato, conciliável com o que nos mostra nossa experiência acerca das ações humanas, ela seria, ainda assim, praticável de modo mais restrito (apenas momentaneamente, por exemplo, num espaço próprio da reflexão filosófica, em que poderíamos nos afastar da aceitação das certezas exigi22. “[A] Eles [os pirrônicos] deixam por essas coisas [os quatro aspectos do phainómenon] suas ações comuns, sem nenhuma opinação ou julgamento. O que faz com que eu não possa conciliar com esse discurso o que se diz de Pirro…” (505; itálicos nossos). Villey informa que, nas edições publicadas antes da morte de Montaigne o texto assim precisava: “… o que Laércio diz da vida de Pirro, e a que Luciano, Aulo Gélio e outros parecem se inclinar: …”. 302

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das pela ação no mundo — tal como a dúvida articulada pela Primeira Meditação cartesiana ou atribuída por Hume ao cético pirrônico). Essa mesma espécie de exercício reflexivo, com base em considerações hipotéticas, parece se apresentar noutras passagens em que se discute o mesmo ponto. Quando Montaigne sugere que aos mais sábios, capazes de examinar às ultimas conseqüências o poder com que a razão pode igualmente sustentar teses opostas, “tudo pareceria desordenado ou monstruoso” (v. 526AC), não se trata de admitir que seja realmente possível pôr em prática tal relativização, mas tampouco se trata de criticar a extremidade da dúvida pirrônica. Isso nos mostra ser importante cuidar de não confundir dois aspectos diversos dessa reflexão, para não sermos conduzidos à incapacidade de compreender como eles se conciliam: de uma parte, o juízo de Montaigne sobre a coerência com que os pirrônicos denunciariam nossa incapacidade extrema de conhecer; de outra, seu juízo sobre a possibilidade de praticar um exercício dubitativo que faça plenamente justiça ao reconhecimento dessa incapacidade. O fato de que o pirronismo, segundo Montaigne, ofereça o posicionamento filosófico mais coerente acerca de nossa situação natural no que tange ao conhecimento de verdades não significa necessariamente que a dúvida que a ela corresponderia de modo perfeito deva ser passível de ser posta em prática. Isso parece depender de um esforço interpretativo independente, e o modo como se responde a esse problema não tem necessariamente implicações sobre o primeiro. Importa distinguir, assim, de uma parte, o fato de que as mais diversas proposições que podem ser oferecidas como conhecimento de algo (os exemplos oferecidos abarcam enunciados como “a neve é branca” ou “existe algo”) possam revelar-se ilimitadamente como objeto de dúvida e, de outra, a possibilidade de praticar integralmente uma dúvida que a elas corresponda e que nos permita abandoná-las conjuntamente. Noutros termos, Montaigne parece considerar implicitamente como coisas diversas o problema de saber se são igualmente passíveis de dúvida as proposições “a neve é branca” e “a oitava esfera celeste se move” (problema cuja resposta seria, a seu ver, afirmativa) e o problema de saber como isso pode se acomodar em nossa “imaginação” ou mesmo em nossa prática. O primeiro parece dizer respeito à dubitabi303

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lidade das diversas proposições que se ofereçam como candidatas a representar uma verdade. O segundo, à atualização dessa dubitabilidade numa dúvida atual e efetiva. O breve capítulo sobre “Como nosso espírito se enreda a si mesmo” (II, 14) se constitui de uma página na qual se desenvolve um novo exercício imaginativo que guarda algumas analogias com os que acabamos de examinar. Assim se inicia ele: [A] É uma interessante imaginação conceber um espírito justamente equilibrado entre duas vontades iguais. Pois é indubitável que ele não tomará nunca partido, posto que o emprego [l’application] e a escolha envolvem desigualdade de apreciação; e quem nos colocasse entre a garrafa e o presunto, com igual apetite de beber e de comer, não nos daria, sem dúvida, outro remédio que morrer de fome e de sede… (II, 14, 611A). Assim como o pirrônico em suspensão de juízo, segundo a interpretação de Diógenes, estaria condenado à impossibilidade de viver de maneira prática, porquanto sua filosofia o conduziria a encontrar razões contra todas as espécies de evidência, um espírito que permanecesse em suspensão entre duas vontades pereceria sem poder agir. Em ambos os casos, trata-se do mesmo problema da apraxía. Poder-se-ia objetar que uma igualdade de vontades não é uma igualdade de razões, e o próprio Montaigne, como dissemos no primeiro capítulo, circunscreve a epokhé, em sua exposição da filosofia pirrônica, ao assentimento (consentante), nada obstando ao “imaginar” e ao “querer” (v. 503A). Mas o tratamento desse exemplo sobrepõe um caso a outro, posto que Montaigne passa imediatamente a considerar a explicação dos estóicos acerca de como a alma escolhe entre “duas coisas indiferentes… entre as quais nenhuma razão nos incline à preferência…”. E em que consistiria a explicação estóica para essa escolha não-racional? Em sustentar que tal eleição é resultado de um movimento “extraordinário e desregrado, que nos advém de um impulso estrangeiro, acidental e fortuito…”. De sua parte, porém, Montaigne prefere esta outra explicação: [A] Poder-se-ia dizer, parece-me, antes, que nenhuma outra coisa se apresenta a nós em que não haja alguma diferença, por ligeira que 304

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seja; e que, ou à vista ou ao toque, há sempre alguma coisa que nos atrai, ainda que seja imperceptivelmente… (ibid.).

Como compreender o sentido da alternativa oferecida por Montaigne? Pretenderia ele efetivamente propor uma teoria alternativa? Novamente, antes de precipitadamente extrairmos dessa passagem alguma teoria ontológica, gratuitamente formulada, sobre a diversidade radical dos objetos naturais, importa prestar atenção às ilustrações que Montaigne oferece desta sua opinião: a corda igualmente forte em todos os pontos que não se romperia jamais, ou as demonstrações geométricas que conduzem a proposições paradoxais como a que afirma que duas linhas se aproximam sem jamais se tocar; exemplos nos quais “a razão e os fatos [effects] são tão opostos” que nos autorizam a aceitar esta conclusão “extrema” (hardy) de Plínio: “Nada é tão certo quanto a incerteza, e nada mais miserável e orgulhoso do que o homem”23. Seria de esperar que a própria explicação montaigniana — especialmente ao alegar que qualquer escolha é implicitamente feita por razões, mesmo que sejam imperceptíveis — viesse apoiada, ela própria, de razões para ser admitida como uma alternativa melhor que a explicação estóica. Contudo, as ilustrações a que nos referimos dificilmente parecem poder oferecer uma corroboração de tal explicação. Se a alternativa montaigniana for vista como o oferecimento de uma explicação positiva, não será razoável reagir, sobretudo na medida em que falta um apoio argumentativo mais claro, a fim de suspender o juízo diante de ambas? A partir do momento em que o leitor adota uma postura mais ativa e busca se posicionar diante da alternativa oferecida, acaba por perceber que as razões oferecidas tematizam indiretamente essa questão e acabam por problematizar os próprios critérios relativos à escolha de uma delas. Como escolher diante de duas explicações que, do ponto de vista da razão, parecem ter o mesmo peso? O único elemento que Montaigne acaba por oferecer em favor de sua explicação é o fato de que ela lhe aparece como preferível relativamente à outra. Porém, essa justificativa nos conduz à conclusão de que a explicação 23. Cf. PLÍNIO, História natural, II, 7. 305

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de Montaigne é equivalente à explicação estóica (pois os estóicos afirmam, exatamente, que à falta de razões nós escolhemos por um movimento fortuito, não-racional). Ao mesmo tempo, isso não basta para conferir razão aos estóicos, pois as duas explicações são diversas quanto ao seu conteúdo: uma alega que essa escolha residiria num impulso fortuito da alma; outra alega que a diferença que nos move a escolher reside nas próprias coisas. Somos, afinal, reduzidos a um impasse e acabamos por descobrir um panorama, nessa discussão, que parece melhor justificar as ilustrações paradoxais oferecidas por Montaigne24. Se essa leitura for aceitável, acabaremos por constatar uma curiosa transformação do papel retórico dos próprios paradoxos apresentados como ilustração por Montaigne. À primeira vista, eles pareceriam representar exemplos ou justificativas da explicação proposta por ele, mas agora é a própria explicação proposta que passa a constituir, ao lado da explicação estóica, uma ilustração, ao lado dos outros paradoxos, da dúvida extrema afirmada pela citação de Plínio que conclui esse capítulo. Ao mesmo tempo, o impasse a que somos conduzidos nos convida a reconsiderar o texto e indagar se a explicação oferecida por Montaigne não poderia atender a um propósito outro que o de oferecer uma explicação positiva sobre a razão que nos leva a escolher entre alternativas iguais. Não estaria Montaigne, em vez disso, apenas elaborando um argumento dubitativo? A oposição entre “razões e fatos” que se segue à explicação oferecida por Montaigne parece claramente aludir à prática pirrônica de argumentar de vários modos para engendrar a suspensão sobre todas as coisas, opondo o que é pensado ao que é pensado, ou o que aparece ao que aparece, ou alternativamente25. Todos esses relatos são oferecidos 24. Na “Apologia”, o mesmo problema é objeto de uma explicação que se aproxima antes da que é aqui considerada como proposta pelos estóicos, posto que Montaigne alude ao modo como um “instinto fortuito” poderia inclinar nosso julgamento em favor de uma causa diante de dois objetos semelhantes (v. 569A). Tal oscilação talvez seja um motivo para suspeitarmos de que a descrição da causa objetiva importa menos do que o reconhecimento de que interfere na ação do julgamento um elemento que lhe escapa. 25. Cf. HP I, 31. Como exemplo da oposição entre o que é pensado e o que aparece, o cético afirma proceder como Anaxágoras, opondo à visão de que a neve é branca o 306

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como exemplos de elucubrações cujos resultados, embora se sigam racionalmente dos pressupostos, chocam-se com os “fatos” (as duas linhas que, segundo a razão, poderiam se aproximar infinitamente sem se cruzar acabariam por se encontrar no mundo da experiência factual). Ora, a alegação de que existem diferenças “imperceptíveis” nas coisas que nos levam sempre a escolher poderia talvez, nessa medida, ganhar outro significado: não aludia ela, novamente, ao modo como as próprias teorias sobre o que se deveria seguir da prática de uma dúvida extrema se chocam com a forma com que os fatos efetivamente se impõem? Se assim fosse, esse conflito entre as razões e os fatos, em vez de representar alguma espécie de limitação do ceticismo (na linha do argumento da apraxía, como poderia parecer à primeira vista), poderia se converter, ao contrário, em uma ilustração de um ceticismo mais radical, que conduz sua dúvida ainda além (em conformidade com o que se afirma no final do ensaio). Tais fatos só significariam um limite a uma “dúvida extrema” num contexto em que o ceticismo fosse compreendido como a produção de uma teoria coerente sobre como o caráter dubitável de todas as proposições humanas se concilia ou mesmo possibilita a inserção plena e integral na vida comum. Mas, se o ceticismo pirrônico é essencialmente compreendido como uma prática argumentativa, destinada a exibir a natureza duvidosa de tudo aquilo que se pretenda oferecer como uma verdade incontestável, esses mesmos fatos podem representar mais uma instanciação da prática cética, ilustrando a impossibilidade de oferecer limites ao espírito. Essa explicação nos permitiria, todavia, observar melhor a coerência própria desse breve ensaio, permitindo-nos constatar que seu trajeto aprofunda e transforma o sentido em que se poderia compreender seu tema central: “como nosso espírito se enreda a si mesmo”. Ao fazê-lo, Montaigne nos conduz de uma concepção inicial sobre o que seja a dúvida extrema — “entre vontades iguais o espírito perece” — a outra que corresponde não a uma simples formulação oposta (posto que, por seu simples conteúdo, a conclusão, proveniente de Plínio, nada esclapensamento de que a neve é água congelada e a água é negra; portanto, a neve é negra (v. HP I, 33, cf. HP II, 244). 307

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rece acerca de como Montaigne a compreende), mas se identifica com a própria atividade reflexiva pela qual a primeira imagem é submetida a uma investigação crítica. Igualmente, podemos dizer que essa estratégia paradoxal atende a um propósito similar àquele que já observamos em exemplos anteriores: trata-se de exigir, por seu intermédio, o próprio aprofundamento da reflexão, sob pena de permanecer no impasse ou na superficialidade. O leitor é, desse modo, conduzido a observar que a própria formulação do problema sobre a relação entre dúvida cética e vida prática deve ser reconsiderada e reposta no âmbito de uma prática filosófica dubitativa mais extrema e menos ingênua. Se, por fim, o “espírito se imobiliza”, a isso corresponde uma transformação do próprio sentido da epokhé: o espírito não se torna inapto a agir ante o reconhecimento da capacidade de opor toda razão a uma razão oposta, mas apenas reconhece a impossibilidade de conciliar o que a razão lhe apresenta (a impossibilidade de agir como conseqüência racional da constatação da possibilidade de indefinidamente opor razões opostas) e os fatos (pois, de todo modo, necessariamente o espírito age). No mesmo passo, é uma visão mais tosca do ceticismo, presa à perspectiva de oferecer ainda alguma espécie de teoria que não estaria inteiramente isenta de alguma forma de vaidade dogmática (visão que se faria ainda presente quando, alternativamente, se negasse ao cético a possibilidade de praticar seu ceticismo), que cede o passo a outra, segundo a qual a compreensão da impossibilidade de oferecer limites à atividade dubitativa do espírito se traduz numa prática permanente, que considera cada nova proposição que se alcança mais uma candidata potencial à suspensão. Façamos uma rápida síntese dos principais pontos até aqui levantados. Em primeiro lugar, a compreensão que tem Montaigne do ceticismo antigo, tal como o interpreta (e tal interpretação tem reflexos no nível de sua prática argumentativa cética), aparenta ser incompatível não apenas com uma interpretação “urbana”, mas, de modo mais geral, com qualquer leitura que pretenda estabelecer alguma forma de teoria sobre o âmbito de aplicação da dúvida ou sobre a possibilidade de articulá-la de modo plenamente coerente com a esfera da ação. É nesse sentido que ele advoga uma dúvida “extrema”: ele não julga 308

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possível impor, ao que parece, qualquer restrição teórica à possibilidade de que, de direito, toda e qualquer proposição seja sujeita à dúvida filosófica quanto a sua pretensão de formular uma verdade. Se isso o aproximaria de um ceticismo de tipo “rústico”, ele considera, contudo, que a impossibilidade de impor limites à atividade dubitativa abarca não apenas os pressupostos de uma leitura de tipo urbano, mas também a exigência tácita que obrigaria o cético, ou bem a recusar sua vida prática, se isso fosse possível, ou bem a abandonar sua filosofia. O filósofo cético pirrônico (ao qual o filósofo da Nova Academia acaba por ser assimilado, com o progresso da redação da obra) parece ser, segundo Montaigne, aquele que teria conduzido ao seu limite mais extremo de coerência nosso esforço de reconhecer nossa impossibilidade de reconhecer a verdade, e tal reconhecimento converte sua filosofia essencialmente numa prática capaz de abarcar até as diferentes formas de compreensão teórica de sua coerência particular. Disso não se segue que o cético esteja proibido de aceitar as diversas percepções e crenças que a ele se impõem no contexto de sua inserção prática no mundo — desde que não sejam compreendidas como conhecimento das coisas, mas como elementos que facultam o seu uso. Em segundo lugar, como vimos, Montaigne discute o problema da possibilidade de pôr em prática uma dúvida extrema: se as diversas teorizações acerca dos limites da dúvida podem ser alvo de uma argumentação suspensiva, isso não significa que se pretenda simplesmente abdicar de compreender como tal dúvida pode ser efetivada em vista das exigências impostas pela própria esfera da vida prática. E como compreenderia o próprio Montaigne a efetivação da dúvida cética em vista desse âmbito de restrições? Deixando aqui de lado aquelas de ordem “externa” (relativas ao assentimento estratégico e voluntário do que impõe o costume), notemos, primeiramente, que parece ser decisiva a distinção entre dois níveis pelos quais se trata de considerar o diagnóstico cético: de uma parte, o ceticismo extremo corresponde à admissão de que toda e qualquer proposição seja, em princípio, passível de dúvida; de outra, isso não significa que seja efetivamente pôr em prática uma dúvida que atualize integralmente tal possibilidade. E, sobretudo, os limites encontrados quanto ao segundo ponto não devem ser vistos 309

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como algo que interfira necessariamente na validade do primeiro. Ademais, Montaigne recusa a possibilidade da prática de uma dúvida extrema constante, mas não da uma prática pontual de uma dúvida dessa espécie mais radical; bem como recusa a possibilidade de uma dúvida que se atualize simultaneamente sobre tudo o que seria passível de dúvida, mas não de uma dúvida que se atenha antes a um conjunto privilegiado de proposições (antes as mais gerais do que aquelas que descrevem fatos particulares, ou antes aquelas concernentes aos eventos humanos do que aos de outra natureza), sem que isso signifique que as proposições que não foram postas em dúvida sejam por isso portadoras de alguma garantia de veracidade. Por fim, parece-nos que os textos aqui examinados, devidamente compreendidos, não se opõem à interpretação do ceticismo a que Montaigne expressamente adere na “Apologia”, e não fazem dos Ensaios, como poderia parecer à primeira vista, uma colcha de retalhos incongruentes: o ceticismo surge-lhe como uma filosofia não apenas compatível com a prática, mas capaz de favorecer a plena inserção do homem no mundo, segundo o uso de todas as suas faculdades naturais e espirituais. Mesmo sem ver claramente, por ora, como exatamente isso se articula com a admissão de que toda e qualquer proposição pode ser objeto de dúvida, podemos antever que, em linhas gerais, Montaigne se afigura, ao menos nesse aspecto, como um filósofo menos distante de Hume do que a literatura de comentário tem tendência a reconhecer (salvo pelo fato de que não compreende a impossibilidade prática da atualização de uma dúvida compatível com a precariedade efetiva das demonstrações racionais como algo que se oponha a um ceticismo extremo). Seja qual for a melhor forma de compreender essa articulação, ela implica uma forma de aceitação do phainómenon que pretende despi-lo de qualquer aporte epistêmico, sem com isso esvaziar a vivência no mundo de qualquer dos aspectos em que ela se oferece a nós segundo as capacidades humanas. Se esse ceticismo não cabe exatamente nas chaves interpretativas impostas pelo debate entre Burnyeat e Frede, os elementos aqui levantados são úteis para prosseguirmos nosso esforço de reconstituí-lo segundo sua lógica própria. Um primeiro ponto a ser investigado diz res310

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peito às razões que tal ceticismo encontra para formular uma dúvida, ao menos potencialmente, tão extrema como a que propõe, e para tanto examinaremos os argumentos destinados a exibir a precariedade do juízo, na “Apologia”. De todo modo, a despeito da validade do modelo interpretativo que passamos a esboçar, importa ressaltar que o problema parece-nos justificar o esforço em vista de seu interesse histórico. Estamos aqui diante da possibilidade de observar como Montaigne reconstrói uma certa forma de ceticismo “extremo”, cuja prática ele não entende ser incompatível com nossa plena inserção no mundo natural, segundo a dimensão das possibilidades humanas. Um ceticismo, portanto, que, embora se aproxime da dúvida cartesiana, eleita pela posteridade como marco fundador de uma forma “moderna” e radical de ceticismo26, faz isso num sentido diverso daquele pelo qual Descartes conciliará tal dúvida com nossa inserção natural no mundo. 6.2. Um retrato mais fiel do juízo humano

Montaigne alude numerosas vezes à incapacidade da razão de sustentar verdades. As múltiplas metáforas que emprega para caracterizála sublinham com insistência sua ambivalência, sugerindo que ele considere a razão uma faculdade que, em sua atividade de encadear evidências demonstrativamente, é capaz de sustentar com igual força conclusões contraditórias entre si. Assim, argumentar ceticamente in utramque partem, “em favor de ambas as partes”, pró e contra determinada tese, é mostrar que a crença na capacidade da razão de nos encaminhar diretamente à verdade é precipitada e corresponde a uma visão imatura acerca do poder natural dessa faculdade. Em certo sentido, seu poder “demonstrativo” é maior do que imaginamos (uma vez que podemos empregá-la para sustentar, com mais sucesso do que poderia parecer à primeira vista, evidências contraditórias); por isso mesmo, ela se mostra menos apta do que supomos a produzir verdades. Isso não significa que Montaigne advogue, simplesmente, a suspensão do emprego da razão; o ceticismo é o resultado, a seu ver, do uso pleno e livre 26. Sobre isso, ver BURNYEAT, 1984, p. 247; WILLIAMS, 1986, p. 118. 311

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da razão, e pode nos conduzir a substituir a imagem fantasiosa dessa faculdade que, explícita ou implicitamente, subtende toda empresa filosófica de cunho dogmático por outra mais consciente de suas limitações no que tange às verdades que aparenta produzir. Como vimos no capítulo anterior, a compreensão de Montaigne acerca dos limites da razão se reflete no recurso a um outro conceito capaz de designar a capacidade da alma de posicionar-se diante das evidências racionais, pesá-las, compará-las e delas, eventualmente, se apropriar. Trata-se do juízo, que Montaigne identifica, de modo geral, ao entendimento e, eventualmente, ao próprio “eu”. Assim, não apenas o exercício filosófico pelo qual o juízo sonda as diversas matérias de que se acerca é visto por Montaigne como um produto de sua “forma mestra” filosófica dubitativa, mas o próprio movimento que o conduz a focalizar prioritariamente essa faculdade é produzido, ou ao menos alimentado, por um recuo reflexivo, igualmente cético, diante do caráter sorrateiro da razão. É graças a isso que o juízo passa a designar uma espécie de mediador — se não de sujeito (termo que não é por ele empregado) — dos conhecimentos ou opiniões que a alma adota ou produz ao operar diante do material que se lhe apresenta. Na “Apologia”, é nestes termos que se formula a relação entre o conhecimento e a faculdade de conhecer, circunscrita, como podemos ver, a uma dimensão subjetiva, sobretudo à falta de dispormos de um critério que nos assegure o acesso às coisas em si mesmas: [A] Tudo o que se conhece, conhece-se, sem nenhuma dúvida, pela faculdade daquele que conhece: pois, uma vez que o juízo resulta da operação daquele que julga, há razão [para admitir] que ele a perfaça por seus meios e vontade, não pela imposição do que lhe é externo, como ocorreria se nós conhecêssemos as coisas pela força e lei de sua essência… (587). Segundo essa passagem, toda a possibilidade de conhecimento parece ser tratada como imanente à operação dessa faculdade natural, humana e subjetivamente dada (descartando-se assim, por exemplo, o recurso a alguma forma de conhecimento não-proposicional ou alguma espécie de conhecimento de tipo meramente sensível, como ocorre no caso de diferentes versões da metafísica do conhecimento sus312

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tentada pelos escolásticos ao longo do século XVI). Essa passagem se situa, com efeito, na introdução de uma análise da precariedade dos sentidos — “começo e fim da ciência humana” — como prova da ignorância humana da verdade, certamente destinada, ao menos em parte, ao ataque da epistemologia de Aristóteles, que sucederá esse exame como ponto culminante da argumentação dubitativa na “Apologia”27. Na ordem de razões da “Apologia”, essa passagem é precedida por uma crítica epistemológica destinada a revelar como as diversas “peças” de nossa alma contribuem para nosso desconhecimento da verdade, por meio da qual Montaigne procura evidenciar a fraqueza não apenas da razão, mas também do próprio juízo humano na busca desse fim28. Não pretendemos oferecer um exame exaustivo dessa crítica, que se segue imediatamente à discussão sobre a impossibilidade de oferecer limites ao espírito humano, examinada no item anterior29. Destacaremos apenas quatro argumentações que pontuam esse desenvolvimento, exibindo aspectos que nos parecem importantes para o propósito de esclarecer os fundamentos da “dúvida extrema” advogada por Montaigne. Primeiramente, consideraremos um argumento inicial pelo qual ele extrai da constatação do desacordo entre os juízos individuais uma conclusão sobre a precariedade natural de nosso entendimento (562A). 27. Cf. 587-588. Ainda que não se constitua como alvo central do ataque cético de Montaigne, como ocorrerá no caso de autores como Sanchez, o modo como ele igualmente alveja a epistemologia aristotélica (pelo recurso à mediação problemática das nossas faculdades sensíveis) faz com que não possamos concordar com T. Gontier, segundo quem a separação entre sensível e inteligível abriria caminho, em Montaigne, a um “conhecimento do sensível” (v. GONTIER, 1999, p. 106). 28. Acompanhamos a divisão proposta por Villey, em seu sentido mais amplo. Ver II, 12, 438; 560-604. A discussão sobre a fraqueza do julgamento humano vai de 560 a 576. 29. Grosso modo, esse trajeto poderia ser dividido em três etapas (que nem sempre corresponderão às etapas de nossa análise a seguir): (1) Análise de nossa incapacidade de atingir a verdade, que corresponde, em linhas gerais, ao percurso descrito no parágrafo anterior, que se encerra com as ponderações sobre a necessidade de nos conduzirmos com moderação diante das impressões de verdade (560-564). (2) Análise de interferência das paixões em nosso juízo, sejam paixões de natureza corporal (564-566), sejam paixões produzidas pela própria alma (567-569). (3) Constatação sobre a impossibilidade de obtenção de conhecimento atual da natureza pela razão, posto que a própria natureza determina nossas crenças de um modo que nos escapa (569-576). 313

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Um segundo argumento, oferecido por meio de um comentário sobre a oscilação de suas crenças pessoais, nos dará ocasião de examinar a relação entre a suspensão do juízo e a adoção de crenças (563-564). Esses dois primeiros exemplos nos oferecerão igualmente ocasião de comparar as argumentações dubitativas de Montaigne e de Descartes, mas será o terceiro exemplo que nos permitirá precisar as divergências essenciais que separam as dúvidas filosóficas formuladas por ambos: ele constitui uma espécie de reinterpretação do Quarto Tropo de Enesidemo — um locus clássico do qual historicamente emergiram as diversas versões céticas do argumento do sonho (também presente, como veremos, na “Apologia”) — exposta em 564-569. Por fim, consideraremos os argumentos destinados a mostrar como o juízo compromete sua isenção por desconhecer o conjunto das causas que interferem em sua ação (especialmente em 575-576). 6.2.1. Uma outra face da individualidade

Tendo ilustrado a impossibilidade de oferecer limites ao espírito humano por meio de uma progressão crítica, que vai das pretensões de Teofrasto em limitar o conhecimento causal à crítica dos pirrônicos ao verossimilhante acadêmico, Montaigne dá continuidade à sua exposição oferecendo um argumento cético que não atribui explicitamente a nenhum de seus predecessores (e, salvo engano, não parece provir de nenhuma das fontes antigas a que ele recorre). Deveríamos vê-lo como uma mostra pessoal dessa mesma incapacidade de oferecer limites ao espírito30? Assentindo ao modo como os pirrônicos desenvolvem as conseqüências extremas de nossa incapacidade de reconhecer a verdade (destituindo de fundamento mesmo nossa pretensão de reconhecer maior verossimilhança em algumas proposições do que em outras), Montaigne agora nos oferece uma argumentação capaz de figu30. O fato de serem precedidos por uma discussão em que Montaigne se situa pessoalmente no fio histórico de um debate sobre a possibilidade de encontrar a verdade parece-nos apoiar a presunção de que se trata aqui de desenvolvimentos argumentativos assumidamente originais. De todo modo, isso não é essencial para o nosso exame. 314

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rar sua própria compreensão (e, como tal, reconhecidamente precária, eventualmente provisória) acerca dessa mesma impossibilidade radical denunciada por tais céticos. Embora aparentemente inspirado em argumentações céticas antigas, como o argumento da diaphonía (que é novamente retomado, ainda mais explicitamente, nas linhas seguintes)31 ou o Segundo Tropo de Enesidemo (acerca da diferença entre os homens), tal argumento não deixa, contudo, de exibir um viés pessoal pelo qual Montaigne invoca a diversidade das percepções e das opiniões humanas como testemunho de nosso desconhecimento da verdade. Para ele, essa discrepância atesta, mais do que isso, a impossibilidade de reconhecermos a presença do juízo, num mesmo sentido, em todos os homens: [A] Que as coisas não se alojam em nós em sua forma e sua essência, e não adentrem segundo sua força própria e autoridade, vemos o bastante. Não fosse assim, recebê-las-íamos da mesma forma: o vinho seria idêntico na boca do doente e na boca do são… Os objetos externos [estrangers] se rendem à nossa mercê, eles se alojam em nós como nos agrada. Ora, se de nossa parte nós recebêssemos alguma coisa sem alteração, se as presas humanas fossem suficientemente firmes e capazes para agarrarmos a verdade por nossos próprios meios, sendo esses meios comuns a todos os homens, a verdade seria passada de mão em mão, de um a outro. E encontraríamos ao menos uma única coisa no mundo, de tantas que há, que seria acreditada pelos homens por um assentimento [consentement] universal. Mas [o fato de] não se ver nenhuma proposição que não seja debatida e controversa entre nós, ou que não possa ser, mostra bem que nosso juízo natural não apreende claramente o que apreende, pois meu juízo não a pode fazer receber pelo juízo de meu companheiro, o que é o signo de que eu a obtive de um meio diverso do que o seria um poder natural de julgar presente em mim e em todos os homens… (562). Se a filosofia cética, como a interpreta Montaigne, situa-nos de modo mais realista ante nossa condição natural, trata-se aqui de exibir o poder relativo das “presas” de que o homem é naturalmente provido 31. Ver 562-3A. 315

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para extrair conhecimento das coisas que o cercam. Seria aparentemente possível discernir, nessa intricada argumentação, três passos, salvo melhor análise, em certa medida distintos. No primeiro (desenvolvido em duas versões ligeiramente diversas), a constatação da inexistência de uma percepção ou proposição que possa ser salva da controvérsia insanável entre os homens conduz à conclusão de que não as conhecemos. Isso porque, caso possuíssemos a faculdade de efetivamente conhecer as coisas tais como elas são, disporíamos de algum conhecimento indubitável. Porém, num segundo momento (possuidor de duas inferências), se não as conhecemos, quando pensamos dizer o que as coisas são, dizemos apenas aquilo que pensamos que elas sejam, segundo o modo como nossa alma individualmente delas se apropria. Assim, a constatação de que não conhecemos revela algo, igualmente, acerca de nossas faculdades cognitivas: as coisas são apreendidas pela alma “como lhe apraz” e não por um meio que corresponda a um poder de julgar que esteja igualmente presente entre os homens. Por conseguinte, terceiro passo, embora nosso juízo pense obter verdades, ele “não apreende claramente o que apreende”. Antes de mais, prestemos atenção em como Montaigne formula sua constatação da controvérsia opinativa (em que toda a argumentação se apóia), afirmando não ver “nenhuma proposição que não seja debatida e controversa entre nós, ou que não possa ser” (itálicos nossos). Isso nos parece confirmar não apenas o caráter “extremo” do escopo da suspensão aqui almejada, mas também que ele se limita a alegar que as proposições humanas são, de modo geral, passíveis de dúvida (o que é diverso de alegar que se possa desenvolver, na prática, uma dúvida capaz de abarcar a todas). Por certo, a existência de um eventual consenso não garante a certeza de nenhuma proposição (e a seqüência do texto confirma que ele pode ser simplesmente resultado de uma adesão dogmática a uma opinião coletivamente imposta pelo costume). Em vez disso, seria a natureza indubitável de determinado conhecimento que, caso existisse, garantiria um assentimento universal. Mas por que Montaigne alega essa natureza dubitável universal como um “fato”, se as controvérsias existentes se limitam a minar, na melhor das hipóteses, as proposições particulares que consideram? Se nossa análise está correta, 316

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isso não pode derivar da conclusão da fraqueza do juízo como meio de conhecimento. Por certo, uma vez aceita essa conclusão, temos um meio de transportar essa mesma reflexão para todas as proposições a que acedemos por seu intermédio. Porém, essa conclusão apenas reflete algo que é assumido na premissa que estamos discutindo, de modo que a precariedade do juízo não pode ser aqui alegada sem gerar uma circularidade. Talvez uma alternativa seja a de corroborar a base argumentativa oferecida pelo argumento da diaphonía pelo contexto em que esse argumento se insere: os diversos modos argumentativos céticos, retomados por Montaigne, são uma sistematização dos diversos modos de argumentar dubitativamente contra, de modo geral, as mais diversas tentativas filosóficas de alegar conhecimento das coisas (mesmo no âmbito das proposições que naturalmente nos aparecem como as mais evidentes e indiscutíveis). Se levarmos em conta o conjunto de argumentos apresentados, talvez a generalização contida na premissa de Montaigne deva ser lida como uma tentativa de transferir o ônus da prova ao interlocutor que pretenda restringir essa possibilidade. Se os céticos oferecem razões que permitam pôr em dúvida mesmo as proposições mais evidentes, aquele que pretende afiançar a existência de alguma proposição indubitável não estaria na posição de justificar por que essa sua proposição efetivamente restringiria a alegação do caráter universalmente duvidoso das proposições? Isso parece apontar na direção da resposta cartesiana ao ceticismo. No final do capítulo anterior, sugerimos que o cogito cartesiano poderia ser visto como uma tentativa de resposta adaptada à configuração própria que a dúvida cética ganha em Montaigne (no que tange à sua admissão de uma diversidade aparentemente irredutível nos julgamentos humanos). Essa sugestão pode ser aqui desenvolvida, em mais de um sentido: não apenas o método da dúvida hiperbólica, posto em prática na Primeira Meditação, pode ser visto como uma tentativa de atualizar uma dúvida universal sobre o conjunto de todas as proposições, mas o recurso a tal método se justifica pelo modo como Descartes assume, no início desse texto, o caráter potencialmente duvidoso de todas as suas opiniões, por não dispor de uma garantia de que aquilo que lhe aparece como certo não venha a se mostrar duvidoso, como 317

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diversas vezes lhe ocorrera no passado32. Para limitar essa dúvida, por sua vez, Descartes oferecerá, precisamente, um exemplar de uma proposição supostamente capaz de se revelar indubitável ante o exercício de uma dúvida levada às últimas conseqüências. Ademais, o conflito das percepções acerca de um mesmo objeto, segundo Montaigne, mostra que a alma deles se apropria sem garantia de que preserva a sua “essência”, e a natureza controvertível de todas as proposições, que não existe “um poder natural de julgar presente em mim e em todos os homens”. Tal “poder natural de julgar”, faculdade da alma potencialmente responsável pela eventual apreensão da verdade, caso esta esteja a nosso alcance, é comparada a presas que precisariam, para tanto, ser possuidoras de força que lhes permitisse colher os objetos percebidos “sem alteração”. Mas a inexistência de uma evidência que se imponha universalmente leva à conclusão não apenas de que o juízo não apreende a verdade, mas de que sua própria identidade como faculdade responsável pelo conhecimento se encontra ameaçada. Equivocarmo-nos quanto àquilo que julgamos ser objetivamente verdadeiro é equivocarmo-nos igualmente, ao menos nesse caso particular, quanto àquilo que supomos ser nossa faculdade de conhecer as coisas. A suposta “faculdade” ou capacidade de conhecer, ao não cumprir adequadamente as exigências que ela própria reconheceria, não é, portanto, essa presumida capacidade. É a própria faculdade de conhecer — o entendimento ou juízo — que não se encontra, assim, plenamente presente, em sentido absoluto, para todos os homens, como um poder naturalmente dado, em vista da diversidade irredutível com que ela (ou aquilo que almejaria ser tal faculdade) se manifesta nos homens. É o que parece confirmar um texto do ensaio “Da presunção”, no qual o modo com que cada um se julga portador de bom senso (a despeito da controvérsia universal de opiniões) surge antes como razão de desconfiança tanto em relação às verdades que ele produz como relativamente à posse da faculdade que seria designada por essa expressão33. Muito mais célebre tornou-se, contudo, a introdução do Discurso 32. Primeira Meditação, ed. Beyssade, p. 56-59, AT VII, 17-18. 33. Ver II, 17, 656-657. 318

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do método, na qual Descartes parece inverter o argumento montaigniano para extrair uma conclusão oposta àquela que Montaigne pretendeu extrair da mesma constatação. Descartes declara que o bom senso deve estar, de fato, igualmente presente entre os homens, desde que ele designe a razão — que nas Meditações será identificada ao entendimento, mas já aqui aparece como uma faculdade naturalmente presente de modo absolutamente igual nos homens, como aquilo que define a “forma” da natureza humana e como a condição de possibilidade do conhecimento da verdade — por oposição ao juízo — que parece ser implicitamente associado ao “espírito” e, de modo geral, às demais faculdades naturais que são passíveis de comparação qualitativa ou mesmo quantitativa (uma vez que o bom juízo envolve o uso correto da razão)34. Para Montaigne, ao contrário, mesmo as opiniões humanas que poderiam, à primeira vista, parecer semelhantes entre dois homens não tardarão a mostrar, cada qual, sua singularidade, desde que devidamente observadas e consideradas segundo o nosso entendimento: [B] Nunca dois homens julgaram de modo idêntico a mesma coisa, e é impossível ver duas opiniões exatamente semelhantes, não apenas em homens diversos, mas no mesmo homem em diversas horas… Quem não diria que as glosas aumentam a dúvida e a ignorância, posto que não se vê nenhum livro, seja humano, seja divino, do qual o mundo se ocupe, do qual a interpretação tenha estancado a dificuldade? O centésimo comentário envia-o ao seu seguinte mais espinhoso e mais escabroso que o primeiro o tinha achado. Quando entre nós nos pomos de acordo: deste livro já temos o bastante, não há mais o que dizer?… (III, 13, 1067). 34. Ver DM, p. 1-3. Segundo Descartes, o bom senso, desde que devidamente compreendido como o que ele denomina a razão, pode propiciar um critério seguro para a superação da controvérsia opinativa entre os homens desde que devidamente conduzido pelo método (do qual, portanto, o conhecimento adequado da própria razão se torna solidário). Assim, se os “ensaios do método” que a esse discurso se seguirão poderiam ser invocados como uma espécie de argumentação indireta em favor dessa tese sobre o papel da razão em reconhecer a verdade, eles igualmente teriam a função tácita de exibir, uma vez aceitos pelos leitores de Descartes, sua igual distribuição entre os homens como condição de compreensão das verdades que por seu intermédio se formulariam. 319

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Seria gratuito que Descartes oferecesse, como primeira verdade pela qual pretendia suplantar o ceticismo, uma proposição, exatamente, a respeito do conhecimento que a alma teria de sua existência, que deveria ser, por definição, retomada absolutamente no mesmo sentido por cada eu pensante, ao refazer a mesma reflexão35? Quanto a Montaigne, essa argumentação dubitativa oferece uma complementação importante às suas considerações sobre como o exercício do juízo acaba por produzir um “mel próprio” pelo qual se manifesta sua singularidade. Aqui se oferece uma outra perspectiva da mesma situação. Ou bem, como vimos no capítulo anterior, tal manifestação pode ser vista como sinal de uma ultrapassagem da pretensa uniformidade das idéias impostas pela autoridade alheia e pela uniformização costumeira, ou bem ela pode revelar a distância relativamente à verdade que o juízo, se fosse suficientemente penetrante, poderia quiçá extrair das coisas. As duas perspectivas refletem o intuito de examinar a faculdade humana de conhecer, segundo sua força e sua fraqueza, suas capacidades e seus limites naturais. E, se assim é, parece também possível admitir que Montaigne considera por uma ótica bastante peculiar a relação entre a filosofia cética e o conflito dogmático que ele denuncia. A empresa do auto-retrato, expressão de sua individualidade, na qual culminam os Ensaios, mostra que não estamos absolutamente diante de um ceticismo que pretenda abolir, anular ou suprimir o uso do juízo, como faculdade natural humana. Mas essa manifestação, no mesmo passo em que é um retrato do que é individual e particular, é também a expressão daquilo que nosso juízo produz quando procura se acercar da verdade sem poder encontrá-la. Não aponta isso uma inesperada afinidade que esse cético seria obrigado a reconhecer, em certa medida, a um dogmatismo latente no próprio exercício de juízo que ele preconiza? Se a faculdade humana de conhecer, uma vez posta em ação, produzirá sempre, nalguma medida, perspectivas singulares das coisas (que, nessa singularidade mesma, atestam a ausência de uma verdade objetiva), não deverá o próprio cético reconhecer que, pelo emprego natural de seu juízo, insere-se, nalguma medida, no mesmo 35. Ver, por exemplo, Meditação Segunda, ed. Beyssade, p. 76-77, AT VII, 27. 320

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terreno opinativo em que se dá o conflito das teses dogmáticas que ele pretende denunciar? Se assim for, isso permitirá igualmente destacar um aspecto preciso da diferença que haveria, à luz do ceticismo montaigniano, entre as perspectivas cética e dogmática desse mesmo fato (a atividade do julgamento): o cético adentrar no mar da diversidade dos juízos humanos reconhecendo que não pode se furtar inteiramente a isso, mas não alimenta uma esperança cega e ingênua de que possa alcançar o “favo no bolo”, como diz Montaigne; ele o faz, ao contrário, consciente da dificuldade radical em que se encontra para superá-la e, sobretudo, das conseqüências cognitivas dessa situação. Esse ponto é decisivo para compreendermos por que, a despeito de o juízo não poder deixar de produzir “impressões de verdade” que, segundo Montaigne, serão sempre potenciais objetos, nalguma medida, de uma investigação cética, o cético montaigniano se isentaria de tomar parte no mesmo debate dos dogmáticos. Consciente dos limites que lhe são tacitamente impostos pelas faculdades cognitivas, tal cético se volta a uma atividade eminentemente autocrítica e reflexiva, pela qual cabe retomar as impressões de verdade produzidas por seu juízo e cotejá-las com juízos diversos. Trata-se de um ceticismo cujo corolário é não apenas, como vimos, a moderação opinativa e a tolerância, mas também a compreensão de que os dogmáticos, enredados na pretensão de sustentar cada qual sua própria verdade, embrenham-se num falso debate, e acabam por se tornar impermeáveis a um verdadeiro diálogo filosófico. Eis por que o reconhecimento de um limite pairando sobre o conjunto da atividade comunicativa dos homens, curiosamente, não veda para o cético a comunicação com outrem, mas a torna mesmo indispensável, como parte desse movimento autocrítico (por oposição ao modo como a filosofia dogmática, por mais que pretenda alegar o oposto, acaba nalguma medida sendo conduzida a um certo solipsismo)36. Outra peculiaridade dessa interpretação cética se faz aqui em certa medida visível (embora não possamos discuti-la adequadamente sem levar em conta outros argumentos que veremos adiante). A argumenta36. Quanto a isso, ver, de modo geral, o ensaio “Da arte de conversar” (III, 8), e em particular 922B ss. 321

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ção cética se destinaria aqui não apenas a mostrar nossa incapacidade de reconhecer a verdade, mas também a indicar que a ela se soma a dificuldade de compreender nossos limites cognitivos, uma vez efetivamente postas em ação nossas faculdades. Pois não apenas nosso juízo não apreende a verdade que imagina apreender, mas também não apreende claramente a maneira pela qual, em vez de ser igualmente dado como “um poder natural de julgar presente em mim e em todos os homens”, ele constitui apenas um modo particular de apreensão do que nos aparece, a cada qual, como aparentemente verdadeiro. Assim, essa argumentação parece sugerir que a constatação do desconhecimento da verdade surge como um resultado a posteriori da confrontação entre as aparentes verdades que eu pensara obter com outras que se produziriam pelo juízo de outrem, ou pelo meu próprio noutra ocasião; analogamente, aquilo que, num primeiro momento, me pareceria ser simplesmente o entendimento das coisas que a mim se apresentam (segundo um “juízo natural” em mim presente como nos outros homens) pode vir a se revelar como apenas o resultado de minha apreciação particular das coisas, por um “meio diverso” daquele de que eu julgava dispor, graças ao qual minha alma se apropria das coisas como lhe apraz. Trata-se, afinal, de um meio de acesso às coisas que não é tão cristalino como parecia à primeira vista, mas possui uma opacidade que só pode ser reconhecida por uma avaliação crítica posterior de seu uso. Porém, sendo essa uma opacidade invisível do ponto de vista pelo qual nosso juízo, ao julgar, pensa imediatamente conhecer as coisas, ela conduz Montaigne a exprimir sua conclusão por esta fórmula que beira o paradoxo — “nosso juízo natural não apreende claramente o que apreende” — e que consideraremos melhor adiante. 6.2.2. A balança das crenças

“[B] Nunca dois homens julgaram de modo idêntico a mesma coisa, e é impossível ver duas opiniões exatamente semelhantes, não apenas em homens diversos, mas no mesmo homem em diversas horas…” (III, 13, 1067). Em conformidade com essa afirmação presente em “Da experiência”, Montaigne, na discussão que examinamos, depois de 322

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considerar a controvérsia existente entre o juízo dos diferentes homens, evoca a oscilação das crenças do juízo de cada indivíduo como uma nova razão para dele desconfiarmos: [A] Além dessa diversidade e divisão infinita, pelo turvamento que nosso juízo nos causa a nós mesmos, e pela incerteza que cada um sente em si, é fácil ver que ele possui uma posição bastante insegura. Quão diversamente julgamos as coisas? Quantas vezes mudamos de opinião [fantasies]? O que sustento hoje e o que creio, creio de toda minha crença. Todos os meus meios e recursos empunham essa opinião e por ela respondem com tudo o que podem. Eu não saberia abraçar nenhuma verdade nem conservá-la com mais força do que faço com esta. Aí estou inteiro, aí estou verdadeiramente. Mas não me ocorreu, não uma vez, mas cem, mas mil, e todos os dias, de ter abraçado alguma outra coisa com todos esses mesmos instrumentos e nessa mesma condição, que depois a tenha julgado falsa? Ao menos é preciso ser sábio à própria custa. Se me encontrei freqüentemente traído por essa cor, se minha pedra de toque se encontra comumente falseada, e minha balança desigual e injusta, qual segurança posso dela ter nesta vez mais do que em outras? Não é tolice deixar-me tantas vezes enganar por um guia? Todavia, que a fortuna nos mova cinco vezes de lugar, que ela não faça senão carregar e esvaziar sem cessar, como num barco, na nossa crença, novas e novas opiniões, sempre a presente e a última é a certa e a infalível… Ao menos deveria nossa condição errática nos fazer portar de modo mais moderado e contido em nossas mudanças. Seria preciso lembrarmo-nos que, ainda que recebamos [tal coisa] no entendimento, nós aí recebemos freqüentemente coisas falsas, e por essas mesmas ferramentas [outils] que se desmentem e se enganam freqüentemente… (563-564). Podemos ver que não estamos diante de um ceticismo que preconize uma suspensão geral das crenças ou uma interdição genérica do emprego de nossas “ferramentas” cognitivas. Em vez disso, a mobilidade das opiniões produzidas por seu intermédio é pressuposta e observada como ocasião de desconfiarmos de nossa tendência a emprestar àquelas que hoje nos parecem admissíveis um valor artificial e indevido em contraposição ao modo como tendemos a assumir aquilo que agora nos aparece como evidente como uma forma de aperfeiçoamento cogniti323

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vo ante o que outrora nos aparecia como tal, como a conquista de um conhecimento objetivo acerca das coisas. Daí se pretende extrair, por certo, uma desconfiança acerca da evidência com que nossas faculdades se acercam das coisas e sugerir que isso não pode constituir um critério de verdade. Mas não se trata de exigir, ao que parece, em vista disso, que nosso juízo se imobilize (o que não pareceria, aliás, possível), mas sim de refletir sobre o modo como nos engajamos em nossas crenças e sobre seu real valor cognitivo. O fato de possuirmos crenças que se modificam e que, no momento em que as adotamos, são normalmente acompanhadas de uma presunção de verdade desproporcional à sua fragilidade conduz à conclusão de que o juízo, instrumento que responde por essa impressão de verdade, não pode ser, sem mais, admitido como perfeitamente confiável; trata de um instrumento, como diz ele, cuja “posição” é insegura. O termo “assiette”, no moyen français, significa “posição” ou “equilíbrio”, mas pode significar também “estado de espírito, disposição”, ou ainda “situação, firmeza, equilíbrio”37. Trata-se antes de indicar que a posição assumida pelo juízo humano nunca é plenamente confiável, isto é, que o modo como ele produz um veredicto, tendo pesado as evidências que a ele se apresentam, não nos autoriza a assumir tal veredicto como imagem de como absolutamente as coisas são; ele é sempre o reflexo parcial e momentâneo de um movimento que, devidamente observado, tenderia a se revelar perpetuamente fluido e oscilante. Não apenas o tema será recorrentemente retomado nos Ensaios, a partir do contato com o ceticismo, mas também este mesmo argumento: “[B] Quem se lembra de ter tantas e tantas vezes sido enganado pelo seu próprio julgamento, não é um tolo de nunca estar dele em desconfiança?…” (III, 13, 1074). Dessa imagem de nosso juízo, Montaigne extrai, porém, não uma perfeita suspensão, mas uma recomendação de moderação em nossas “mudanças”. Por ora, cabe assinalar que a mesma moderação se refletirá no âmbito do assentimento às crenças, em vista do modo como elas deixam de ser vistas como portadoras de conhecimento seguro. Por esse viés, o argumento se harmoniza com as passagens supradiscutidas 37. Cf. GREYMAS, KEANE, 1992, p. 39. 324

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em que Montaigne discorre sobre a importância de não tratar o verossímil como verdadeiro, bem como sobre o fato de que as opiniões não encontram em seu espírito um ambiente próprio para desenvolver “longas raízes” (III, 8, 923B). Ademais, Montaigne parece nalguma medida se aproximar, por meio dessa reflexão, daquilo que os textos de Sexto Empírico enunciam relativamente ao modo de crer do cético: Acreditar [peitestaí = seguir, dar assentimento ao que se impõe] é usado em diversos sentidos. Significa não resistir, mas simplesmente seguir sem forte inclinação ou adesão, como se diz da criança que segue o tutor, e algumas vezes significa dar assentimento por escolha e simpatia (como os homens dissolutos seguem alguém que propõe um modo de vida extravagante). Assim, uma vez que Carnéades e Clitômaco dizem que aceitam as coisas e que algumas dessas coisas são plausíveis no sentido de evocarem um grande desejo e uma forte inclinação, diferimos deles a esse respeito, posto que dizemos aceitálas simplesmente assentindo, sem adesão… (HP I, 230-231). Quando trata da suspensão de crenças, Sexto esclarece que não está interditado ao cético possuir crenças no sentido mais geral em que isso significa “aceitar algo”, posto que o cético não nega, explica ele, que está com frio se sente frio, uma vez que assente “às experiências inevitáveis em virtude desta ou daquela impressão” (v. HP I, 13). O que ele recusa é admitir crenças acerca dos objetos não-evidentes da investigação dogmática (ibid.). O argumento de Montaigne viria sublinhar a importância de levar em consideração, quando se crê, a mesma experiência, cara à perspectiva cética, de frustração em relação àquilo que parecera antes indubitável. Contudo, Montaigne assim se refere, como vimos, à sua maneira de crer: “Eu não saberia abraçar nenhuma verdade nem conservá-la com mais força do que faço com esta”. Seria isso compatível com a descrição sextiana das crenças do cético — “sem forte inclinação ou adesão, como se diz da criança que segue o tutor”? Não se aproximaria ele aqui antes da descrição que Sexto oferece dos filósofos da Nova Academia, uma vez que “Carnéades e Clitômaco dizem que aceitam as coisas e que algumas dessas coisas são plausíveis no sentido de evocarem um grande desejo e uma forte inclinação…”? Essa discussão 325

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envolve, porém, outros elementos que nos convidam a desconfiar dessa hipótese. Se o oferecimento da experiência pessoal de crença como um caso exemplar é um procedimento recorrente nos Ensaios, como dissemos, nessa discussão isso é feito de forma explícita. Descrevendo a “vaidade que encontra em si mesmo” por meio das oscilações constantes de seu próprio julgamento (565-566A), ele não deixa de assinalar: “[A] Cada um poderia dizer mais ou menos o mesmo de si, se se observasse tanto quanto eu [me observo]” (566). Mas, se o valor argumentativo dessa premissa é o de convidar cada qual a consultar a sua própria experiência para aferir o valor dessa descrição, a ênfase no contraste entre a crença e a mudança de opinião pode ganhar uma tonalidade retórica: quanto mais intensa a experiência de crer num determinado momento, tanto mais é relevante o fato de o juízo voltar atrás. Além disso, assim como a conclusão do argumento anteriormente examinado envolvia uma reflexão a posteriori sobre o modo como o juízo de cada homem diverso se faz acompanhar de uma impressão de verdade, aqui também a reflexão a respeito do valor cognitivo das crenças, por meio de uma observação de mais longo prazo, constituiria, por assim dizer, um momento diverso daquele em que as avaliamos pelo modo como imediatamente se apresentam. Num primeiro momento, o argumento considera como o ato de crer envolve, por si mesmo, uma presunção de conhecimento; em seguida, ele nos convida a observar que essa mesma presunção se faz presente a despeito de nosso juízo oscilar entre opiniões contraditórias a que, a cada vez, nos agarramos como se possuíssem, de modo geral, uma solidez maior do que elas podem revelar se consideradas no decorrer do tempo. Disso se extrai uma razão para suspeitar de que estamos diante de uma “pedra de toque” pouco confiável, de uma “balança desigual e injusta”, e para pôr em questão o valor epistêmico das crenças em razão do caráter inseguro da faculdade intelectual “sem pé nem fundamento” que a produz. Montaigne extrai dessa conclusão uma reflexão sobre a necessidade de moderá-las, em coerência com a mesma constatação: “ Seria preciso lembrarmo-nos que, ainda que recebamos [tal coisa] no entendimento, nós aí recebemos freqüentemente coisas falsas, e por essas mesmas ferramentas que se desmentem e se enganam freqüentemen326

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te…”. Uma coisa, portanto, é a alegação do caráter universalmente duvidoso das opiniões que podem surgir como objeto de nossa crença; outra, a possibilidade de “lembrarmos” de sua conclusão — isto é, de refletirmos criticamente sobre cada uma das crenças que atualmente aceitamos, segundo nossas capacidades individuais e distintas, e duvidarmos do modo como elas eventualmente pretendam se passar por representações da verdade. E o fato de sermos eventualmente incapazes de pôr em prática (em virtude de nossas limitações naturais) uma revisão das crenças inteiramente compatível com sua precariedade não parece interferir diretamente na validade da conclusão extraída acerca do primeiro ponto; se as crenças exibem tal precariedade, cabe seguir a regra prudencial que dessa constatação é extraída na medida em que cada qual possa fazê-lo; mas a relatividade dessa prática não determina a validade do diagnóstico. Aqui, a mesma idéia “rústica” de que todas as nossas crenças podem ser postas em dúvida se apóia, portanto, num novo argumento: se esse mesmo instrumento de conhecimento pode aceitar, em momentos diversos, crenças contraditórias com a mesma evidência, o que se põe em xeque é a validade do próprio instrumento que responde pela aceitação de tais crenças. Mas seria compatível, afinal, com a suspensão do juízo pirrônica essa reflexão que se limita a propor uma moderação do juízo em vista do reconhecimento de seu caráter perpetuamente oscilante? Para negar essa compatibilidade, seria preciso assumir a idéia de que a suspensão pirrônica seria relativa a todo e qualquer juízo; vimos, porém, que, ao menos no nível da interpretação do pirronismo adotada por Montaigne, não é isso que ocorre: se o pirronismo é uma filosofia compatível com o pleno uso de nossas faculdades corporais e espirituais, como admitir, ao mesmo tempo, que ela proponha uma impraticável suspensão total das ações do juízo? Se Montaigne considera que os pirrônicos reconhecem as diversas ações da alma, mas não admitem o “assentimento” (consentement), talvez esse termo deva se aplicar a uma ação diversa daquela pela qual nosso juízo se posiciona, natural e espontaneamente, em favor desta ou daquela opinião como mais ou menos plausível; o “assentimento” que se trataria de suspender ceticamente, assim, diria respeito, mais do que isso, à eleição de uma 327

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determinada opinião como capaz de propriamente oferecer das coisas o conhecimento com que acena. É o que sugere o modo como a oscilação do juízo se compatibiliza, por meio desse argumento, com uma posição cética. Além do mais, essa argumentação de Montaigne parece novamente confirmar que nos movemos num território conceitual vizinho da epistemologia cartesiana. Não é o argumento do “erro dos sentidos”, no percurso da Primeira Meditação de Descartes, um primeiro convite a desconfiar do poder intrínseco às nossas faculdades cognitivas (em particular, os sentidos), com base no fato de já nos terem elas anteriormente enganado? Se Descartes desenvolve uma dúvida hiperbólica sobre o conhecimento eventualmente propiciado pelos “sentidos” (que serão igualmente questionados por Montaigne no momento culminante da “Apologia”), com base no fato de eles já terem se mostrado enganadores, e de que “é de prudência não se fiar nunca inteiramente naqueles que uma vez nos enganaram…”, parece ecoar nessa afirmação a mesma questão que, como vimos, Montaigne formula com base na oscilação do juízo: “Não é tolice deixar-me tantas vezes enganar por um guia?”38. Ademais, se o assim chamado “argumento da loucura” — mais exatamente, um contra-argumento destinado a mostrar que essa conclusão extrema, que extrai do fato de os sentidos terem por vezes enganado uma desconfiança total, é igual às que extraem os loucos ante as certezas mais evidentes39 — suspende provisoriamente o assentimento a essa conclusão, não deveríamos admitir que a dúvida proposta pelo “argumento do sonho”, dando continuidade à argumentação dubitativa, constitui uma espécie de retomada do argumento contra os sentidos? Consideraremos mais detidamente esse argumento no próximo item. 6.2.3. Uma doença natural do juízo?

Prosseguindo com sua análise do juízo, Montaigne retoma, de 564 a 569, aspectos do Quarto Tropo de Enesidemo, um modo argumen38. Cf. Meditação Primeira, p. 58, ed. Beyssade, AT VII, 18. 39. Cf. ibid., AT VII, 18-19. 328

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tativo pirrônico no bojo do qual se apresenta a primeira formulação que conhecemos de um argumento cético “do sonho”, relacionado à oposição entre o sonho e a vigília. Esse modo argumentativo, tal como exposto por Sexto, considera o conflito entre nossas percepções segundo a diversidade das circunstâncias de percepção — a saúde e a doença, a sanidade e a loucura, a sobriedade e a embriaguez, a vigília e o sonho etc. — observando-as como uma ocasião para a suspensão do juízo. Isso porque, a cada vez que pretendemos julgar o conflito e dizer qual dessas percepções representa adequadamente as coisas, apoiamonos em critérios de julgamento para a controvérsia que são evidentes ou persuasivos apenas no contexto relativo à própria circunstância em que nos situamos. A cada vez que julgamos segundo a evidência que imediatamente experimentamos (em oposição àquilo que potencialmente apareceria como evidente numa circunstância diversa) estamos condenados, de modo radical, a uma petição de princípio, posto que não podemos nos situar absolutamente fora de alguma circunstância perceptiva determinada para examinar independentemente, de um lado, as próprias coisas e, de outro, a maneira como se representam em cada uma dessas circunstâncias40. Teríamos tão pouco direito de julgar que nossa impressão de conhecer a realidade, tal como ela se oferece na vigília, corresponde, de fato, à realidade, quanto o homem que sonha teria de julgar, enquanto sonha, que aquilo que lhe aparece em sonho corresponda ao que são realmente as coisas. Podemos, portanto, apenas dizer o que são as coisas segundo a maneira com que nos aparecem, relativamente à circunstância perceptiva em que nos encontramos, tomando a precaução de não acreditar que isso seja equivalente a um conhecimento das coisas como tais. Um aspecto importante a ser destacado nessa argumentação é o de que, diversamente do que ocorre, como veremos, no argumento cartesiano do sonho, ele não pretende contestar a evidência de estarmos despertos quando assim nos parece que estamos. Trata-se apenas, para 40. Cf. HP I, 100 ss. Em 562A, Montaigne ilustra a divergência dos julgamentos humanos por meio do exemplo sextiano da diferença de percepção de sabor nos estados de saúde e de doença, como faz Sexto em HP I, 101. 329

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os pirrônicos, de confrontar as evidências potencialmente conflitantes, tal como elas se oferecem em cada circunstância, para mostrar que nos equivocamos quando pretendemos desqualificar umas com base em outras para asseverar o que são as coisas, desconsiderando que as evidências são internas e relativas a cada uma delas41. Tal conclusão não pretende, em particular, sustentar que devamos nos desfazer das impressões que nos aparecerem como naturalmente evidentes em cada circunstância — o que seria, aliás, impossível. Ela pretende mostrar apenas, aparentemente, que não podemos tomar aquilo que espontaneamente nos surge como evidente na condição de homens despertos (por oposição à evidência com que as coisas se apresentam em sonho) como um critério para dizer que conhecemos as coisas como elas são em si mesmas — o que não nos impede de assumir o que nos surge como evidente para a adoção de ações em conformidade a tal circunstância. Não parece haver diferenças significativas entre essa conclusão e aquela que é proposta por outra versão antiga desse argumento, a dos céticos acadêmicos, a despeito do cunho claramente dialético com que eles a formulam. Tal como o encontramos em Cícero, trata-se de defender a idéia de que, sendo as representações do sonho tão evidentes para aquele que sonha quanto são as da vigília para o homem desperto, não se sustenta a pretensão do filósofo estóico de alegar a evidência (perspicuitas) das representações de vigília, por oposição ao sonho, como uma característica a elas intrínseca, pela qual seriam apreensivas do real. Aqui, ainda mais claramente do que no caso pirrônico, podemos constatar que não se trata, em absoluto, de sugerir que poderíamos estar sonhando. Cícero responde a Lúculo, interlocutor estóico do diálogo, declarando que a conclusão que ele extrai do argumento cético, na forma de uma crítica irônica, segundo a qual seríamos incapazes de distinguir o sonho da vigília, não passa de uma incompreensão daquilo que os céticos efetivamente propõem. O cético, diz Cícero, nunca pretendeu negar que aquele que está acordado saiba isso, mas apenas que a impressão perceptiva que ele tem, no momento em que está acordado, seja critério para o conhecimento das coisas: 41. Ver HP I, 104, 112-113. 330

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Como se alguém pretendesse negar que um homem que acordou saiba perfeitamente que não está mais sonhando, ou que aquele cujo furor se abranda não saiba que as coisas vistas durante o delírio não são verdadeiras! Esse não é o ponto em questão: o que perguntamos é como as coisas pareciam no momento em que foram vistas…42.

O primeiro filósofo a extrair dessa forma de aproximação entre o sonho e a vigília um argumento “cético” — isto é, um argumento que propusesse como dúvida filosófica aquilo que os estóicos apontavam como ironia — parece ter sido Descartes (curiosamente, um filósofo que, em vez de cético, pretendeu se valer de sua dúvida hiperbólica como propedêutica para a fundamentação da metafísica e, indiretamente, para rebater os céticos). Na Primeira Meditação, depois de contrapor, como vimos, uma primeira razão de duvidar, o argumento do erro dos sentidos, à alegação de que tal dúvida generalizada acerca dos sentidos equivale à veiculação de um critério para o exame do conhecimento que nos iguala à condição antinatural dos loucos, Descartes evoca outros fenômenos naturais para reformular uma dúvida tão ou mais radical que aquela: Quantas vezes me ocorreu de sonhar, à noite, que eu estava neste lugar, que eu estava vestido, que eu estava perto do fogo, ainda que eu estivesse inteiramente nu em meu leito? Parece-me bem agora que não é com olhos adormecidos que eu observo este papel, que esta cabeça que eu movo não está dormente, e que é com desígnio e propósito deliberado que eu estendo esta mão, e que a sinto. O que me ocorre no sonho não me parece absolutamente tão claro nem tão distinto quanto isso. Mas, pensando nisso cuidadosamente, eu me relembro de ter sido enganado, quando dormia, por semelhantes ilusões. E, detendo-me neste pensamento, eu vejo tão manifestamente que não há quaisquer indícios conclusivos, nem marcas suficientemente certas pelas quais eu possa distinguir nitidamente a vigília do 42. Acad., II, 88-89. A crítica dos estóicos ao argumento acadêmico, segundo a qual ele nos impossibilitaria de distinguir a vigília do sonho, encontra-se formulada em Acad. II, 51-53. A resposta de Cícero a essa crítica, por sua vez, da qual essa citação faz parte, em Acad. II, 88-90. 331

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sonho, que fico inteiramente pasmo; e minha estupefação é tanta que sou quase capaz de me persuadir que durmo…43.

Considerando a impossibilidade de dispormos agora, no interior dessa circunstância, de um critério pelo qual possamos distinguir o que nos aparece como evidente daquilo que nos aparecia como evidente quando estávamos sonhando, Descartes põe em xeque não apenas nossa pretensão de afirmar que o que nos aparece como evidente agora não ofereça conhecimento da realidade, mas, muito mais do que isso, a própria evidência de que agora estamos despertos, e não sonhando. Diversamente do que ocorre com a argumentação cética tradicional, portanto, a radicalidade aparentemente maior da dúvida cartesiana parece transformar a dúvida cética numa posição incompatível mesmo com as certezas da vida prática. Veremos adiante que, embora diversa da versão cartesiana, a formulação de Montaigne possui relevantes afinidades com ela. Contudo, para uma melhor compreensão de seu argumento e do contraponto que ele permite estabelecer com a dúvida cartesiana, convém determo-nos um instante no modo como ele retoma o mesmo tropo cético em que aparece o argumento pirrônico do sonho segundo o fio da argumentação que estamos acompanhando — discutindo não a oposição entre sonho e vigília, mas a oposição entre a saúde e a doença. Ela é evocada, em continuidade com as considerações do item anterior, como um argumento destinado a exibir a precariedade de nosso juízo. Em linhas gerais, trata-se de sustentar que a oscilação do juízo segundo a diversidade de circunstâncias — da qual a oposição entre a saúde e a doença oferece um primeiro paradigma — deve nos conduzir a perceber que ele não constitui uma pedra de toque confiável para o conhecimento das coisas. Mas para sustentar essa conclusão Montaigne argumenta que, embora reconheçamos que nosso juízo atue melhor quando estamos saudáveis do que quando estamos doentes, há razões para admitir que sua ação é permanentemente comprometida. E assim comentará ele, conclusivamente, a oposição entre os efeitos de uma paixão amorosa juvenil em sua percepção das coisas e o estado desapaixonado: “[A] Qual dos dois 43. Meditação Primeira, ed. Beyssade, p. 58-60, AT VII, 19. 332

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mais verdadeiramente, Pirro não o sabe. Nunca estamos sem doença. As febres têm seu calor e seu frio, dos efeitos de uma paixão ardente nós recaímos nos efeitos de uma paixão gélida…” (569). O argumento aqui depende, assim, de esclarecermos o significado dessa generalização — “nunca estamos sem doença” — na qual se apóia. Mas notemos desde já que, nesse aspecto particular, a despeito da evidente intenção de Montaigne de produzir uma dúvida afeita àquela proposta pelos pirrônicos, seu argumento possui uma curiosa vizinhança ao argumento cartesiano do sonho: tal como ali se sugere que poderíamos estar permanentemente numa condição de incapacidade de atestar que não estamos sonhando, e que poderíamos nos equivocar, portanto, ao determinar a própria circunstância em que nos situamos, o argumento de Montaigne parece problematizar, igualmente, nossa pretensão de nos situarmos numa circunstância determinada que é de princípio pressuposta como uma condição propícia para o conhecimento das coisas (a saúde, por oposição à doença). Seria Montaigne uma espécie de “elo perdido” entre o ceticismo antigo e o assim chamado ceticismo moderno (cartesiano)? A despeito do tratamento original a que Montaigne submete sua dúvida alegadamente pirrônica, é preciso avançar aqui com cuidado — especialmente no que tange às conclusões sobre o fundo filosófico dessas inovações. Um ponto central para a compreensão do argumento montaigniano reside em determinar o sentido em que se trata, no caso de Montaigne, de alegar que “nunca estamos sem doença”, bem como de assumir um desnível epistêmico entre as situações de saúde e de doença. Enquanto Sexto nos oferece um esquema argumentativo geral para desautorizar, como vimos, a admissão de uma circunstância em detrimento de outra como critério para determinar o que são realmente as coisas, Montaigne situa seu argumento na primeira pessoa do plural, elegendo a saúde como uma situação cognitiva supostamente privilegiada, por oposição à doença: [A] É certo que nossa percepção [aprehension], nosso juízo e as faculdades de nossa alma em geral sofrem segundo os movimentos e a operação do corpo, alterações estas que são contínuas. Não temos o espírito mais desperto, a memória mais pronta e o discurso mais vivo na saúde do que na doença? (564). 333

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Notemos, porém, que ele caracteriza a doença como uma circunstância determinada pela interferência de instâncias externas, capazes de comprometer sua ação (no caso, as paixões corporais). Esse reconhecimento servirá como pedra de toque de sua argumentação: em vez de se ater diretamente à nossa crença de que a saúde oferece uma circunstância propícia para o conhecimento das coisas, Montaigne nos convida a considerar que as mesmas instâncias externas, que claramente reconhecemos como problemáticas na situação de doença, também se manifestam, em algum grau, na situação que denominamos ser a de saúde. A argumentação evolui no sentido de multiplicar as evidências de que estamos permanentemente expostos a tais interferências, que não são de natureza diversa daquelas que claramente, quando estamos doentes, reconhecemos como problemáticas: [A] Não são apenas as febres, as bebidas e os grandes acidentes que invertem o juízo; as menores coisas do mundo o reviram. E não se deve duvidar de que, ainda que não o sintamos, se a febre contínua pode deter nossa alma, a terçã não aporte aí alguma alteração segundo sua medida e proporção. Se a apoplexia adormece e apaga inteiramente a visão de nosso entendimento, não se duvide que um resfriado não a ofusque. E, por conseguinte, dificilmente se pode encontrar uma só hora em nossa vida na qual o nosso juízo esteja na sua devida posição, sendo nosso corpo sujeito a tantas mutações contínuas e provido de tantas espécies de molas que (nisso creio nos médicos) é muito difícil que não haja sempre alguma que funcione mal… (564-565). O argumento nos convida a inspecionar nossa experiência perceptiva e sugere que ela nos oferece elementos que nos convidariam a generalizar as interferências comprometedoras do juízo, além das instâncias de doença em que claramente as poderíamos detectar (ainda que apenas a posteriori). O fato de a interferência nas situações em que não nos reconhecemos doentes ser mais discreta não atenua seu caráter problemático — desde que consideremos precisamente o problema que se põe, que é o de detectar uma instância ideal em que o entendimento ou juízo opere de modo inteiramente isento e, portanto, apto a oferecer uma imagem incontestavelmente verdadeira das coisas. Nessa 334

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medida, sua pequenez as torna apenas, talvez, mais insidiosas. Mesmo sendo alterações causadas pelas “menores coisas do mundo”, ou por paixões que não consideramos normalmente doentias no sentido próprio do termo, seriam o suficiente para minar a crença espontânea, de que se parte, segundo a qual o juízo nos disporia de um instrumento naturalmente confiável de conhecimento. Ademais, se a incapacidade de perceber essas interferências menores pode resultar (como veremos melhor adiante) da limitação dos mesmos instrumentos cognitivos, o fato de não as percebermos claramente por meio de sua ação não pode ser alegado para descartar a hipótese. Em suma, esta é a conclusão geral em que tal argumentação culmina: [A] Quais diferenças de sentido e de razão, qual contrariedade de imaginações nos apresenta a diversidade de nossas paixões! Que segurança podemos ter de coisa tão instável e tão móvel, sujeito por sua condição ao domínio da turbulência, [C] não indo nunca senão num passo forçado e emprestado? [A] Se nosso juízo está nas mãos da própria doença e da perturbação, se é da loucura e da temeridade que se tem que ele receba as impressões das coisas, que segurança podemos esperar dele? (568). É curioso notar que, uma vez aceita, a conclusão, parece ter um efeito retroativo sobre a compreensão do significado de suas premissas. Pois, embora o argumento se baseie numa oposição e numa dissimilaridade entre as circunstâncias cognitivas da saúde e da doença, para concluir que “nunca estamos sem doença”, acaba por transformar, bem considerado, o significado desse par de conceitos. Não se trata de suprimir nossa constatação de que ora estamos doentes, ora não estamos; não se trata de alegar que sempre estaríamos doentes num sentido que dissolveria, sem mais, as distinções que reconhecemos nas circunstâncias em que nos encontramos. Tal fórmula, em vez disso, significa que, por oposição ao significado idealizado que tendemos espontaneamente a emprestar à oposição entre as circunstâncias de saúde e doença, quanto ao seu poder epistêmico (ou bem nos encontramos numa condição que nos capacita a conhecer as coisas, ou bem não nos encontramos), não há diferença de natureza, mas apenas de grau, na maneira como operam nossas faculdades cognitivas em ambas as circunstân335

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cias. E isso basta para minar a idéia de que disporíamos de um critério de conhecimento, supostamente dado pela circunstância perceptiva. Esse ponto nos parece importante para estabelecer uma comparação mais precisa entre esse argumento e outro que, como dissemos, parece a ele bastante similar, o argumento cartesiano do sonho. Pois não poderíamos identificar, em ambos os argumentos, uma estratégia de apontar o reconhecimento inicial de um desnível epistêmico entre duas circunstâncias — a saúde e a doença, a vigília e o sono — para posteriormente, num segundo momento, projetar a situação reconhecidamente problemática sobre aquela que ofereceria um critério de conhecimento (quando se alega que nunca estamos sem doença, ou que não podemos nos assegurar de que não estaríamos sonhando)? Em ambos os casos não partimos de uma presumida distinção entre instâncias perceptivas que não pode, ao cabo da argumentação, ser mantida? Apesar das aparências, as coisas se passam diversamente em ambas as argumentações. E a diferença essencial reside, parece-nos, no modo como a conclusão de cada argumento projeta a circunstância epistemicamente tida como problemática sobre a circunstância oposta. No caso de Montaigne, a alegação de que “nunca estaríamos sem doença” não significa que não possamos determinar em que estado nos encontramos: o que o argumento pretende alegar é que a própria circunstância da saúde possui, bem observada, uma natureza diversa, mais próxima da situação oposta do que julgaríamos à primeira vista. É sobre essa primeira avaliação sobre o significado epistêmico dessa oposição que pretende incidir o argumento. O problema cartesiano, em contrapartida, só é gerado na medida em que não podemos determinar se não estamos sonhando, mantida a avaliação inicial de que partimos, pela qual opomos a vigília, como território de conhecimento da realidade, ao sonho, como território da ilusão. Responder ao argumento cartesiano é restabelecer a vigência dessa distinção epistêmica básica, que fora temporariamente perturbada pela impossibilidade de oferecer um critério de distinção dessas circunstâncias; no caso de Montaigne, o tipo de resposta envolveria a determinação de que esse estado de “saúde” em que nos encontramos pode efetivamente ser compreendido como uma instância cognitiva capaz de gerar, por si, conhecimento absoluto 336

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das coisas (em oposição às distorções cognitivas que podemos mais claramente detectar nas situações de doença). O que precisa ser restabelecido é o juízo de senso comum sobre a diferença entre a saúde e a doença, que tal argumento pretende ter revelado ser grosseiro — e não a crença elementar de que estamos acordados, sem a qual se comprometeria, por certo, a própria possibilidade da vida prática. Essa oposição entre os argumentos se reflete no nível da análise de sua estrutura lógica. Mais precisamente, podemos observar que o argumento cartesiano opera uma sutil inversão, porém decisiva, na ordem argumentativa com que Montaigne extrai uma conclusão dubitativa de suas premissas. No caso do argumento cartesiano, a razão que temos para desconfiar de nosso conhecimento decorre da hipótese de estarmos sonhando: se estamos sonhando, não conhecemos o mundo exterior. Antes de aceitarmos essa conclusão, a que seríamos conduzidos por evidências da vida comum que nada teriam de problemáticas, nenhum problema cognitivo é detectável; eles são inteiramente derivados da admissão da conclusão sobre a impossibilidade de reconhecermos em que circunstância estamos. Não é exatamente o mesmo que nos propõe em consideração o argumento montaigniano, pois a razão para suspeitarmos de nosso juízo não decorre da possibilidade de estarmos sempre doentes. Ao contrário, são as razões que encontramos para assemelhar a situação da saúde à situação de doença que geram, de modo autônomo, o problema cético — e a conclusão rigorosa desse problema (isto é, de que não podemos, seja na saúde, seja na doença, nos assegurar de que nosso juízo nos oferece uma imagem adequada do real) é que poderão ser traduzidas na fórmula “nunca estamos sem doença”. Como vimos, essa fórmula pode se prestar a mal-entendidos: ela não significa que nós não dispomos de critério para determinar se estamos doentes ou não no sentido literal desse termo — ou, pelo menos, no sentido em que permanece vigente essa oposição quando nos reconhecemos doentes ou saudáveis (tal como reconhecemos que estamos despertos e não dormindo), mesmo que pudéssemos estar, num caso ou noutro, enganados a esse respeito. Ela significa, sim, que bem observada a relação entre a saúde e a doença, além dessa avaliação prática (a que sempre nos prendemos, em certa medida), teríamos razão para 337

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admitir que, diante das razões que temos para desconfiar do juízo, poderíamos, em certo sentido, admitir que “nunca estamos sem doença”. Montaigne não pretente alegar que somos incapazes agora de discernir a saúde da doença segundo o uso habitual dessas palavras. Como vimos, ele principia seu argumento reconhecendo que, na doença, percebemos que o juízo é comprometido. Em seguida, porém, ele não irá sustentar que estamos também doentes quando não pensamos estar, mas sim que, também quando não estamos propriamente doentes podemos considerar a presença de interferências diversas, ainda que com igual efeito problemático — sejam as paixões da própria alma (além das paixões do corpo, às quais ele implicitamente associa a doença), sejam certos desarranjos normais e naturais das peças diversas de que nos compomos, sejam mesmo “paixões imperceptíveis” cuja natureza não podemos devidamente reconhecer. Assim, se tanto Descartes como Montaigne assumem, de saída, uma avaliação de senso comum sobre a oposição de circunstâncias para em seguida subvertê-la, isso é feito de modo muito diferente nos dois casos. Descartes preserva, até o final da argumentação, o significado epistêmico da distinção de senso comum entre “vigília” e “sonho”, da qual partiu. Mas seu argumento, identificando-as, cria uma espécie de curto-circuito nas pretensões cognitivas do senso comum, ainda vigentes, que destrói a distinção mais elementar que seríamos capazes de estabelecer entre essas circunstâncias (para restabelecê-la filosoficamente, seis meditações mais tarde, como veremos adiante) e faz do senso comum refém de sua incapacidade de comprovar que se encontra situado na posição que permanece aceitando como condição básica de conhecimento. Montaigne, por sua vez, preserva a distinção de senso comum, em certo sentido, além do que o faz o argumento cartesiano: a conclusão de seu argumento não nos impede de permanecer aceitando que por vezes nos aparece estar doentes, em outras que estamos saudáveis (no mesmo nível, talvez, em que Descartes, quando interrompe sua Meditação, retoma suas certezas práticas). Contudo, o próprio argumento cético montaigniano pretende, diversamente do que ocorre em Descartes, criticar a interpretação que o senso comum confere a essa oposição, assimilando-a a um esquema perceptivo simplista e fantasio338

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so, em seu conjunto (segundo o qual, à oposição entre saúde e doença se poderia fazer corresponder uma oposição entre capacidade ou incapacidade de conhecer as coisas tais como elas são), e substituí-lo por outro, que melhor corresponderia àquela que seria, de fato, nossa situação perceptiva natural. Para fazê-lo, Montaigne expõe sua experiência pessoal diante das paixões que o acometem, e convida o leitor a fazer o mesmo: não apenas podemos observar como nosso juízo se dobra evidentemente às paixões quando estamos doentes, mas, caso agucemos nosso olhar, podemos constatar elementos mais diminutos e imperceptíveis — e por isso mesmo mais problemáticos — permanentemente agindo sobre ele, num sentido que pode igualmente comprometer seu poder cognitivo. Por conseguinte, se nos enganamos no modo como usualmente opomos saúde e doença, isso se restringe a um aspecto preciso: em ambos os casos, nosso instável juízo se encontra igualmente refém de circunstâncias que nos impedem de tomar seu produto como conhecimento absoluto e objetivo. E se isso nos mostra que, como dissemos, a diferença entre a operação do juízo na saúde e na doença deveria ser mais bem descrita, não como uma diferença de natureza, mas talvez como uma diferença de grau, essa analogia, de todo modo, não nos permite concluir que a diferença entre saúde e doença seja de grau (e muito menos que se trata de estados indiscerníveis). Talvez a fórmula “nunca estamos sem doença” possa ser lida como o desenvolvimento retórico de um pressuposto do senso comum destinado a levá-lo ao absurdo: mas aqui não se trata de questionar nossa crença elementar de situarmo-nos em determinado estado perceptivo (a vigília, por oposição ao sonho), mas apenas de um modelo perceptivo ao qual usualmente os fatos (ou melhor, um certo conjunto de fatos) são subordinados: se sustentarmos que a saúde é por definição a situação em que conhecemos as coisas como são em si mesmas, por oposição à doença, caberá concluir que nunca estamos sem doença. Não é necessário, contudo, compreender, de modo geral, a oposição entre saúde e doença segundo o mesmo esquema. Temos, é verdade, uma tendência espontânea a assumir uma superioridade epistêmica da saúde com relação à doença: em face dessa tendência, o absurdo da conclusão talvez possa soar como um sinal de nossa incapacidade de com339

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preender plenamente os limites de nossas faculdades cognitivas. Seja como for, tal conclusão não pode ser aqui senão uma metáfora (que, em sua natureza metafórica, alude talvez a esse mesmo limite cognitivo, como veremos melhor adiante). Se “doença” há, estamos aqui diante de uma espécie de doença natural de nosso juízo, cuja oscilação abarca tanto a saúde como a doença em sentido próprio. Não se trata de suprimir nossa percepção da oscilação entre os estados de saúde e doença, tal como a percebemos; muito menos de negar o sentido prático dessa percepção e nossas reações naturais a ela. Em vez disso, o propósito do argumento é apenas o de procurar oferecer uma imagem menos fantasiosa do efetivo funcionamento natural de nossas faculdades cognitivas, segundo seus alcances e limites próprios. Se há algum diagnóstico, na filosofia de Montaigne, de alguma “doença natural” do homem que se trate, nalguma medida, de pretender curar, não é aquele produzido pela dúvida (que apenas o cartesianismo irá tingir de tonalidades mórbidas), mas a presunção do reconhecimento de alguma verdade, da qual participam as ficções sobre a possibilidade de reconhecê-la em certas condições privilegiadas de percepção: “[A] A presunção é nossa doença natural e original…” (540). Não deveríamos, afinal, reconhecer que, a despeito do uso retórico que faz do modelo perceptivo do senso comum, o argumento de Montaigne acaba produzindo, a despeito do aparente parentesco com o argumento cartesiano, um resultado muito mais próximo da argumentação cética dos pirrônicos? Costuma-se dizer, em contrapartida, que o argumento cartesiano produz uma versão mais radical de ceticismo do que aquele presente nas versões anteriores. Mas, em vista do que dissemos, esse juízo precisaria ser, no mínimo, qualificado. Por certo, a dúvida produzida por Descartes é mais devastadora do que aquela produzida pelo argumento de Montaigne no que tange às conseqüências da conclusão quanto às nossas certezas práticas. Contudo, devemos observar tal apreciação da “radicalidade” como satisfatória se levamos em conta que Descartes só estabelece sua conclusão ao preço de manter inquestionado o modelo perceptivo pelo qual o senso comum opõe, de um lado, a vigília como condição de certeza e o sonho como condição de ilusão? Neste momento, talvez o leitor proteste e nos acuse de não estar levando devi340

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damente em conta a diferença de conteúdo das argumentações. Pedir para abandonar o “modelo do senso comum” aqui não seria abdicar do modo como espontaneamente assumimos, no interior da própria condição de vigília, que caso estivéssemos sonhando estaríamos radicalmente impedidos de alegar os conhecimentos mais elementares que pensamos dispor do mundo exterior, tal como nos parece existente? Porém, como antecipamos, Montaigne desenvolve uma versão própria do argumento do sonho, que conserva as mesmas linhas gerais de sua argumentação relativa à oposição entre a saúde e a doença: [B] Aqueles que compararam nossa vida a um sonho tiveram eventualmente mais razão do que supunham ter. Quando sonhamos, nossa alma vive, age, exerce todas as suas faculdades, nem mais nem menos do que o faz quando estamos despertos; mas sim apenas mais molemente e obscuramente, não de modo que a diferença seja como a da noite a uma claridade viva, mas sim como a da noite à sombra. Lá ela dorme, aqui ela cochila, mais e menos. São sempre trevas, e trevas cimerianas. [C] Nós velamos dormentes, e vigilantes dormimos. Eu não vejo tão claro no sonho; mas, quanto ao velar, nunca o encontro suficientemente puro e sem nuvem. Mesmo o sono em sua profundeza adormece também os sonhos. Mas a nossa vigília não é nunca tão desperta que purgue e dissipe inteiramente os devaneios, que são os sonhos da vigília, e piores que sonhos. Nossa razão e nossa alma, recebendo as fantasias e opiniões que nela nascem quando dorme, e autorizando as ações de nosso sonho com semelhante aprovação àquela que dá às do dia, por que não pomos em dúvida que nosso pensamento e nosso agir não são um outro sonhar, e nossa vigília uma espécie de dormir? (596). Em seu final, especialmente, tal argumentação se aproxima bastante do argumento do sonho proposto por Descartes, mas isso apenas confirma o quão decisivas as diferenças de detalhe podem ser aqui. Em vez de oferecer uma razão para supor que podemos efetivamente estar sonhando, essa argumentação pretende nos mover à desconfiança de nossa crença segundo a qual a situação de vigília seria apta, por si, para o conhecimento da verdade, por oposição aos sonhos, alegando que o parentesco entre o sonho e a vigília talvez seja maior do que tendemos a presumir. Mas, em vez de sustentar que poderíamos estar literalmen341

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te sonhando, o argumento se limita a indagar se a vigília não seria “uma outra espécie de sonhar” (itálicos nossos). Em vez de reclamar sua refutação por seu caráter absurdo, essa conclusão, aproximando vigília e sonho, pretende ser um retrato fidedigno do modo como efetivamente nos inserimos, natural e cotidianamente, no mundo em que vivemos. E aqui ele acompanha toda a tradição cética que o precede: o que se questiona não é a certeza que temos de estar acordados quando julgamos estar (por mais que possamos, eventualmente, vir a nos enganar, vez ou outra, a esse respeito); questiona-se, em vez disso, o juízo que tendemos a produzir, quando estamos acordados, sobre a diferença essencial entre essa situação e os sonhos. Essa argumentação, como dissemos, não faz senão transportar a outra clave o mesmo esquema argumentativo destinado a criticar o simplismo do modelo perceptivo que assume ser a vigília uma circunstância espontaneamente capaz de propiciar a verdade, por oposição ao sonho. Para abandonar tal esquema, mais uma vez o leitor é convidado a confrontá-lo com uma consideração mais atenta de sua efetiva experiência perceptiva; e mesmo que aqui algumas expressões sugiram mais incisivamente que a distância entre o sonho e a vigília, à luz de tal exame, consista numa simples gradação, a força do argumento não é simplesmente haurida dessa alegação. O problema principal reside no modo como aquilo que se torna para nós um objeto de conhecimento é sempre mediado por nossas faculdades cognitivas, dado que o parentesco entre a ação de nosso juízo na vigília e no sonho revela-se maior do que pretenderia aquele que admite a circunstância em que ocorre a percepção (no caso, a vigília) como uma garantia de conhecimento das coisas. Estejamos dormindo ou acordados, os objetos que conhecemos nos são apresentados por nossas faculdades cognitivas que, por si mesmas, como diz Montaigne noutras passagens, livremente os transformam. Mais exatamente, o argumento se apóia na admissão de que, no sonho, nossa mente exerce naturalmente uma atividade capaz de produzir uma impressão de conhecimento dos objetos externos, atividade essa que permanece se exercendo durante a vigília, sob a forma dos devaneios. Quando nos atemos à impressão de conhecimento das coisas, tal como se produz nos sonhos, no momento em que os viven342

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ciamos, e nos damos conta de que, na vigília, nossa impressão de conhecimento é semelhante àquela que temos durante os sonhos, o mesmo parentesco antes observado se revela uma razão para desconfiarmos não exatamente de que possamos estar sonhando, mas sim de que o assentimento dado aos objetos durante a vigília não seja tampouco capaz de purgar plenamente as sombras dos sonhos — isto é, não nos ofereça conhecimento pleno das coisas, mesmo que não saibamos determinar, exatamente, em que sentido nossas faculdades intercedem naquilo que apreendemos. Em particular, notemos que, no momento final da argumentação, Montaigne focaliza exatamente o mesmo ponto sobre o qual incide o argumento do sonho em sua versão ciceroniana: o assentimento às “ações de nosso sonho com semelhante aprovação àquela que dá às do dia…” — razão pela qual deveríamos despir nossas faculdades perceptivas do poder que espontaneamente lhes outorgamos, solidariamente ao esquema perceptivo simplificado pelo qual opomos sonho e vigília. A conclusão suspensiva haure sua força do modo como nossa experiência se deixaria avaliar de modo diverso, descortinando a ondulação e variação de nosso juízo, que os Ensaios recorrentemente retomam. Porém, diversamente do argumento cético proposto pelos pirrônicos, que se limita a opor as evidências dos que sonham às evidências dos que estão despertos, o argumento de Montaigne é, mais uma vez, construído com base em um aparente pressuposto de senso comum — o de que, quando despertos, temos alguma forma de acesso privilegiada aos assim chamados objetos externos (ainda que ela não constitua propriamente conhecimento). Ele contrabalança o fato de que o sono não adormece plenamente nossa alma ao fato de que ela não está inteiramente desperta na vigília. Significa isso, porém, conceder algum privilégio epistêmico à vigília por oposição ao sonho, diversamente do que propõe Sexto? Como dissemos, a despeito da diferença de estratégias e da formulação metafórica, a conclusão do argumento parece ser a mesma que foi proposta pela versão acadêmica. Uma vez mais nos parece aqui ser levada a cabo, de modo consistente com o sentido do ceticismo antigo, uma relativização geral das evidências próprias de cada uma das variáveis circunstâncias perceptivas pelas quais o oscilante juízo 343

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humano revela sua incapacidade de nos prover de um critério de conhecimento. Novamente, a diferença nos parece ser sobretudo retórica, mesmo que nessa chave devamos incluir a admissão de um pressuposto que, enquanto estivermos no estado de vigília, tenderemos a compartilhar com os demais que assim se encontram. Somos inclinados, em suma, a situar o argumento montaigniano do sonho, quanto a suas conseqüências propriamente epistemológicas, ao lado de suas demais versões antigas, por mais que as semelhanças com o argumento cartesiano sejam notáveis e talvez historicamente relevantes para a reconstituição das discussões em torno da problemática cética nas origens do pensamento moderno. Decerto a argumentação dubitativa cartesiana guarda importantes semelhanças, quanto ao seu conteúdo filosófico, com a argumentação cética que lhe inspira. Igualmente Descartes pretende questionar a admissão de que a vigília possa oferecer, por si, um critério de conhecimento das coisas, e seu argumento pode ser lido como um questionamento de um esquema epistêmico imperfeito44, que se trata de substituir por outro. Porém, sua argumentação estende a identificação do sonho e da vigília de um modo tal que, em vez de dar espaço à reavaliação cética que se oferece no argumento de Montaigne, a substituição desse esquema perceptivo dá lugar a outro, que se apóia na admissão da possibilidade de haurir verdades inteiramente distintas daquilo que se ofereceria em nossa experiência sensível. Dando o passo que seus antecessores céticos se recusam a dar e extraindo de suas premissas uma razão para suspeitar de que poderíamos estar efetivamente sonhando, ele inventou um ceticismo “moderno”, especialmente catastrófico, que se apóia, como vimos, na ambigüidade das evidências que movem nosso juízo ao assentimento para sustentar a hipótese de que podería44. Parece-nos relevante, por exemplo, que Descartes, na formulação do seu argumento, afirme que “o que ocorre no sonho não lhe parece tão claro nem tão distinto quanto tudo isso” (que seus sentidos lhe oferecem quanto aos objetos que o cercam na situação de vigília). Ele se vale de seus próprios termos técnicos, que apenas com a evolução argumentativa poderão ser investidos de sentido pleno, para designar a aparência de critério oferecida pela evidência de vigília, e que o argumento do sonho acaba justamente por dissolver. 344

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mos agora estar situados na circunstância que, segundo os critérios vigentes (de vigília), nos aparece necessariamente como problemática (isto é, o sonho). A rigor, cabe dizer que seu argumento “cético” não leva em consideração as conclusões propriamente céticas, segundo as versões antigas do argumento — que nos proíbem, exatamente, de assumir a presunção de conhecimento de dada circunstância num sentido absoluto. Ele apenas abala provisoriamente nossa crença ingênua de que a vigília ofereceria um conhecimento adequado do mundo exterior para, posteriormente, ao final da Sexta Meditação, restabelecêla sobre as bases que, a seu ver, seriam filosoficamente adequadas: a bondade de um Deus veraz e onipotente e a harmonia e a regularidade de nossas percepções de vigília, por oposição às que ocorrem no sonho45. Contudo, se efetivamente Descartes desconsidera em seu argumento o cerne da problematização própria do ceticismo antigo, não lhe basta deter o mérito de ter descoberto um problema novo que ultrapassa as próprias razões de duvidar dos céticos antigos46? Limitar-nos-emos aqui, para concluir provisoriamente a discussão desse ponto, a algumas considerações sobre a interpretação do argumento cartesiano que lhe é subjacente. Pensamos que a forma corrente de interpretar esse argumento confere abusivamente um poder à inferência proposta por tal argumento que não é aquele de que ele disporia, segundo o próprio Descartes. Ele estaria sugerindo, segundo essa leitura, que a devida consideração dos elementos perceptivos elencados por suas premissas — a saber, minha memória acerca da evidência com que as coisas me apareceram durante um sonho; minha consciência de saber, agora, que se tratava apenas de um sonho; minha incapacidade de encontrar um indício conclusivo pelo qual eu pudesse agora distinguir minha certeza de conhecer as coisas daquela que tive enquanto sonhava — seria uma razão suficiente para sustentar a conclusão de que poderíamos estar sonhando. Porém, como pensamos ter 45. Cf. Meditações, VI, 206-211, ed. Beyssade, AT VII, 89-90. 46. Cf. novamente BURNYEAT, 1984, p. 247, segundo quem Descartes detém o mérito de ter compreendido que os materiais céticos possuem maior virulência do que aquela que foi percebida pelos antigos céticos, ao pôr em dúvida a própria existência do mundo exterior. 345

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mostrado noutra ocasião47, Descartes teria compreendido seu argumento de outro modo. Pois, sem oferecer qualquer contra-argumento específico a essa razão de duvidar que dependa das verdades metafísicas demonstradas ao longo das Meditações, ele simplesmente descarta a hipótese de estarmos sonhando como “hiperbólica e ridícula”, ao final de seu percurso, por ser incompatível com a crença de estarmos acordados. Tal crença, por sua vez, é espontaneamente produzida em nós pela harmonia de nossas percepções, independentemente de como possamos justificá-la metafisicamente, por meio da prova do Deus veraz (de modo que essa prova apenas diz respeito ao valor cognitivo da crença de estarmos acordados e das demais que dela se seguem, mas não interferere no simples fato de crermos que estamos acordados). Pensamos que assim ele procede porque tal hipótese, rigorosamente, não se segue apenas do conjunto das premissas descritas; ela exige, além delas, que se admita tratar o simplesmente duvidoso como sabidamente falso. Ela depende, noutros termos, de darmos um passo que Montaigne expressamente, pelo que vimos, se recusaria a dar — ao distinguir as razões que nos conduzem a admitir a dubitabilidade geral das proposições da exigência da posição em prática de uma dúvida de tal ordem — exatamente na medida em que ele transformaria o ceticismo numa doutrina contraditória, confundindo uma questão de direito com uma questão de fato. Descartes, assim o entendemos, só julgaria seu argumento do sonho como cogente no contexto de sua dúvida hiperbólica e admitidas as premissas que determinam o regime epistêmico próprio de sua investigação, sabidamente diverso daquele que vige segundo nossos parâmetros cognitivos usuais (segundo os quais não decretamos que aquilo que nos parece duvidoso seja sabidamente falso). Tal passo é que nos autorizaria logicamente a admitir a hipótese de que poderíamos estar sonhando — mesmo que ele não seja imediatamente identificado48. Porém, é justamente na medida em que esse 47. Cf. EVA, 2001, para uma exposição mais detalhada das razões que, em nosso entender, apóiam esse julgamento. Apoiamo-nos nesse trabalho para a justificativa sucinta que se segue daqui. 48. Efetivamente, o passo é explicitamente dado no parágrafo seguinte àquele em que se toma o argumento do sonho por formulado. Se a conclusão do parágrafo quinto 346

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passo pode parecer avulso e que as demais premissas podem parecer suficientes para gerar a conclusão que (apenas parcialmente) sustentam que reside o poder retórico do argumento, pois ele pode parecer isoladamente um recurso corroborador do próprio empreendimento cartesiano (que não é oferecido dogmaticamente, mas vai sendo justificado, ao longo do trajeto da Primeira Meditação, através do recurso a contra-argumentos que parecem pô-lo em xeque, como o contra-argumento da loucura). Todavia, embora o argumento não exija tal justificação retórica por parte daquele que compreende e admite o contexto metódico da investigação — e, por conseguinte, o efetivo sentido lógico do argumento —, a leitura usual, que não considera adequadamente seu regime metódico, corresponde, aos olhos Descartes, a um simples produto da imaginação49. Para os propósitos de Descartes, isto bastaria: ele não pretende provar que efetivamente estejamos sonhando, mas conduzir o leitor, ainda incapaz de compreender exatamente a distinção que há, a seu ver, entre a razão e a imaginação (e, portanto, os efetivos fundamentos das verdades que se trata de provar), a enredarse em seus preconceitos filosóficos que, neutralizados, possibilitarão que ele volte sua atenção àquilo que Descartes considera fundamental para o conhecimento de verdades necessárias. Em síntese, no lugar da dúvida extrema dos pirrônicos, que, segundo a descrição oferecida por Diógenes Laércio, só poderia, como notou Montaigne, ser posta em prática por alguns instantes (e não se tornar uma prática habitual e constante), Descartes ter-se-ia valido de um argumento capaz de seduzir a imaginação do leitor, para bloquear metodicamente a admissão de um modelo perceptivo apoiado nas conseqüências contraditórias que da Meditação Primeira afirma apenas que “minha estupefação é tanta que sou quase capaz de me persuadir que durmo…” (itálico nosso), o parágrafo sexto se inicia com esta afirmação: “Suponhamos, portanto, que sonhamos…” (ed. Beyssade, p. 58-59, AT VII, 19). Nossa sugestão é, assim, a de que a inferência significada por esse “portanto” compreende a instanciação do princípio da dúvida hiperbólica — tratar o duvidoso como falso — como premissa. 49. Ver, por exemplo, a referência ao sonho no Discurso do método (cf. DM, Quarta Parte, p. 32), descrito como uma “decisão de fingir” que todas as coisas que lhe advieram ao espírito seriam como as ilusões dos sonhos. 347

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geraria e criaria um ambiente propício à apresentação das verdades claras e distintas. Por certo, porém, que essa interpretação não esgota o problema. Mas, se ela é aceitável, a relação entre a reflexão de Descartes e o ceticismo pode ganhar uma feição diversa da que usualmente se admite. Pois, em vez de produzir um “novo ceticismo”, sua dúvida metódica seria resultante do reconhecimento de que o ceticismo, a seu ver, poderia ser compatível com a vida prática (desde que nos abstivéssemos de traduzir a hipótese de que tudo é passível de dúvida num projeto de efetivamente pôr em dúvida todos os nossos conhecimentos). Como sugerimos, o ponto de partida das Meditações — no qual Descartes está situado numa esfera de certezas práticas, sem dispor de um critério pelo qual qualquer uma das opiniões que ele aceita não venha a se revelar “muito duvidosa e incerta” — seria eventualmente compatível com aquela que o ceticismo de Montaigne propõe ser efetivamente nossa situação natural de inserção no mundo. Porém, ao mesmo tempo, tal postura filosófica lhe pareceria insatisfatória por não ter esgotado todas as possibilidades de examinar a possibilidade de obtenção de algo além da certeza prática, isto é, uma verdade “firme e constante”, como a que tal método lhe permitiria supostamente alcançar. Mas não nos cabe aqui estender esse contraponto no sentido de uma avaliação filosófica da felicidade dessa aposta; limitemo-nos a observar como a admissão demasiado rápida de um veredicto em favor da assimilação da dúvida metódica à dúvida cética pode encobrir a coerência própria com que o ceticismo montaigniano se oferece como interlocutor potencial na reflexão acerca dos limites de nossa experiência cognitiva. 6.2.4. O movimento natural das opiniões

Consideremos ainda uma derradeira forma de argumentação presente nessa crítica da vaidade do juízo humano, que já se deixou entrever nos exemplos anteriores. Vimos que o fato de toda proposição ser passível de controvérsia mostra, segundo Montaigne, que nossa alma se apropria das coisas por um meio diverso de um “poder natural de 348

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julgar presente em mim e em todos os homens” (562). Mas se o juízo (ou entendimento) é, nessa medida, aquilo que nos põe em posição de propriamente reconhecer a presença da verdade, caso esse poder estivesse à nossa disposição, é a própria designação de poder cognitivo que limitadamente possuímos como “juízo” ou “entendimento” que tende a se tornar inadequada ou ilusória. Quando pensamos estar conhecendo as coisas, apreendemo-las, sem nos dar plenamente conta disso, filtradas por um elemento externo ao que seria uma pura capacidade de conhecer a verdade (que, para tanto, deveria ser naturalmente dada a todos os homens). Pensamos conhecer as coisas por meio de nosso entendimento, mas, de fato, apenas imaginamos conhecer as coisas; confundimos, portanto, o juízo ou entendimento com uma faculdade diversa. O mesmo processo parece estar em consideração quando se observa que o costume se sobrepõe à natureza (ainda que ali Montaigne se valha preferencialmente do termo “razão” para designar a faculdade cognitiva eclipsada), e ainda mais claramente intervêm elementos externos ao juízo, como vimos, no caso das paixões e de outras instâncias corporais que comprometem sua atuação: “[A] É certo que nossa apreensão, nosso juízo, e as faculdades de nossa alma em geral sofrem segundo os movimentos e a operação do corpo, cujas alterações são contínuas. Não temos o espírito mais desperto, a memória mais pronta, o discurso mais vivo na saúde que na doença?” (564). Contudo, essa ingerência de elementos externos não é problemática apenas quando nossa alma ou nosso corpo intervém nas impressões de conhecimento que se produzem em nós, mas também em vista de problemas decorrentes do modo como a natureza externa, de modo geral, interfere no processo cognitivo. No início da “Apologia”, ao atacar a “vaidade do homem” — que pretenderia se situar, graças à posse da razão, no centro do cosmo —, Montaigne oferece o seguinte argumento contra as explicações astrológicas: [A] Mas, pobrezinho, que tem ele em si digno de tal vantagem? A considerar essa vida incorruptível dos corpos celestes, sua beleza, sua grandeza, sua agitação co ntínua [seguindo] uma tão justa regra… a considerar a dominação e o poder que esses corpos têm, não somente sobre nossa vida e sobre as condições de nossa fortuna… mas mesmo 349

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sobre nossas inclinações, nossos raciocínios [discours], nossas vontades, que eles regem, conduzem e movem à mercê de suas influências, segundo nossa razão nos ensina e descobre… de modo que não apenas um homem, nem um rei, mas as monarquias, os impérios e todo este mundo inferior se movem pelo balanço dos menores movimentos celestes… se nossa virtude, nossos vícios, nossa capacidade e conhecimento [science], e esse mesmo raciocínio que fazemos sobre a força dos astros, e essa comparação deles conosco, vem ela, como julga nossa razão, por seu intermédio e seu favor… se nós recebemos da distribuição do céu esta parte de razão que nós possuímos, como poderá ela se igualar a ele? Como submeter à nossa ciência sua essência e [suas] condições? (450-451; itálicos nossos).

O leitor não precisaria aguardar os momentos posteriores da argumentação cética desse ensaio para constatar que Montaigne não compartilha da crença na astrologia, nem nas demais teses da cosmologia antropocêntrica que formam o quadro dessa argumentação. Já aqui podemos perceber que estamos diante de um argumento dialético, que assume determinadas teses com o intuito de mostrar o caráter contraditório da argumentação que as advoga: Montaigne assume a tese de que os astros influem nos assuntos terrestres para condenar nossa pretensão de abarcar a “essência e [as] condições” das coisas celestes. Ora, à medida que as próprias explicações astrológicas passam a ser vistas como um efeito da influência dos astros, a tese de que os astros interferem em tudo o que se produz no mundo sublunar (de uma forma que não é, pelo menos, imediatamente detectável no andamento das coisas) acaba por conduzir a um paradoxo, pois justamente o fato de que tal influência exista compromete a aparente verdade que pensamos poder extrair, com as evidências que reconhecemos conduzir a tanto, acerca desses assuntos celestes por meio dos supostos conhecimentos astrológicos. Noutros termos, o que tal teoria astrológica afirma sobre a intervenção dos astros é implicitamente posto em xeque caso o que ela afirma seja verdade, pois, se assim for, deveremos também aceitar que, oculta sob os supostos conhecimentos astrológicos que essa teoria nos propõe, está a mesma intervenção dos astros, ainda incógnita, que influencia o fato de que essas teses sejam essas e não 350

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outras, além dos próprios argumentos e explicações oferecidos por esse saber astrológico50. Não é preciso, contudo, partilhar de tais pressupostos astrológicos para ser conduzido a problemas similares. Ao final da discussão sobre a precariedade do juízo, assim Montaigne se refere ao modo como a “natureza” interfere no andamento de nossas faculdades cognitivas, comprometendo nossa pretensão de conhecer as coisas: [A] Se a natureza encerra nos termos do seu progresso ordinário, como todas as demais coisas, também as crenças, os juízos e as opiniões dos homens; se eles têm sua revolução, seu nascimento, sua morte, como as couves; se o céu os move e rola a partir de seu lugar, que magistral e permanente autoridade vamos nós a eles atribuindo? (575). Esse argumento corrobora o propósito geral dessa discussão, como o anunciamos: o de promover uma espécie de “naturalização” de nossas faculdades cognitivas e de nossas crenças (neutralizando, na medida do possível, o modo como nossas opiniões tenderiam a mascará-las). Ele se faz acompanhar de uma variedade de testemunhos destinados a sustentar que há uma interferência dos lugares e climas em que se vive, não apenas na diversidade de nossas compleições físicas, mas também nas “compleições” ou “faculdades da alma” (v. ibid.). Nesse caso, porém, não se trata apenas de mostrar que alguma teoria pressuposta nos enredaria num paradoxo. O problema aqui se segue de uma ordem mais geral de constatações, a saber, do fato de nos inserirmos numa natureza que ultrapassa necessariamente o alcance de nossas faculdades de conhecimento. Não se trata, ao que parece, de pretender condenar essa premissa, posto que ela está na base da própria tentativa de oferecer uma imagem mais realista de nossa inserção na natureza, por oposição às teorias que nos acordam uma falsa prerrogativa. Alegar essa suposta dimensão natural do desenvolvimento de nossas opiniões, que se pretende contrapor ao valor eterno e objetivo que tendemos a lhes 50. Para uma explanação mais ampla acerca do emprego cético de argumentações dialéticas na “Apologia”, em especial na crítica à “vaidade do homem”, ver EVA, 1994a, e 2003, especialmente cap. 1. 351

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atribuir quando as julgamos verdadeiras, é parte dessa tentativa. Seja qual for o significado exato da alegação de que nossas opiniões possuem uma vida própria, como as “couves”, tampouco se pretende aí, ao que nos parece, uma asserção a ser entendida literalmente. E não precisamos aqui examinar as opiniões correntes na Renascença para avaliar a plausibilidade dessa hipótese, pois o contexto é suficientemente claro. Pretenderia Montaigne incorrer numa afirmação tão temerária se está criticando justamente o modo como nossas faculdades cognitivas produzem explicações fantasiosas sobre sua própria natureza? Talvez essa metáfora pretenda, ao contrário, assinalar a estranheza que decorre da percepção de que nossas opiniões e crenças são determinadas pelas leis próprias do “progresso ordinário” da natureza, de um modo alheio à nossa percepção. O efeito desse alheamento não seria outro que o de produzir em nós a falsa crença de que elas nos oferecem imagens exatas e objetivas das coisas, além da forma como refletem tais “causas naturais” que nelas interferem. A metáfora seria, eventualmente, a maneira possível de aludir a algo que escapa de nosso conhecimento, em vista do que alega o próprio argumento. Não nos parece, tampouco aqui, que seja o caso de imputar a Montaigne a defesa de uma tese sobre o determinismo natural (por oposição ao modo como nossa idéia de liberdade, por exemplo, poderia mascará-lo). Embora o argumento questione a crença na autonomia que pensamos ter sobre nossas opiniões, Montaigne aponta, por meio de suas metáforas, um problema mais radical, relativo às operações de nossas faculdades cognitivas. O problema diz respeito à “autoridade magistral e permanente do juízo”, resultante da invisibilidade do “progresso ordinário” da natureza como algo que determinaria nossos juízos e opiniões. Ao julgarmos ou entendermos, nossas faculdades cognitivas se verão tanto mais imbuídas de autoridade para julgar o que julgam quanto maior isenção puderem auferir no ato de julgar ou entender, segundo as evidências disponíveis. Contudo, na medida em que o alcance de nosso entendimento é limitado e finito (posto que ele é parte de uma natureza perpetuamente em movimento, que o transcende e que ele é incapaz de abarcar plenamente), ele próprio não pode se julgar possuidor de um critério satisfatório para discriminar se há ou não algo que 352

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esteja interferindo em seu funcionamento. Mais exatamente, com a devida consideração dos dados do problema — a inserção de nossas faculdades numa natureza que as determina de um modo que ela própria não é capaz de conhecer perfeitamente —, somos conduzidos a constatar que o valor cognitivo acordado às nossas opiniões deve ser posto em xeque num sentido que não estamos normalmente dispostos a reconhecer. Montaigne não está, portanto, apenas assinalando os limites de nossas faculdades em conhecer a natureza em geral, mas particularmente suas implicações no conhecimento do modo como a natureza determina, entre outras coisas, seu funcionamento quando conhecemos algo, de um modo tal que comprometa suas pretensões cognitivas. Pois, quando pensamos saber algo, reconhecemos apenas como “causa” de nossos conhecimentos os próprios fatos que determinam, ou que pensamos determinar, a veracidade ou a falsidade de nossas opiniões. Porém, nosso processo cognitivo é também determinado, nalguma medida, por causas que não somos capazes de reconhecer como determinantes do fato de pensarmos conhecer algo ou de ter esta ou aquela opinião. E se trata de um problema constitutivo de nosso juízo: como nele nos fiarmos se ele não pode abarcar o conjunto de causas que interferem no modo como é levado a considerar isto verdadeiro e aquilo falso e, a despeito disso, ele nos apresenta seus supostos conhecimentos como independentes dessas causas ocultas que determinam sua ação? Mais uma vez aqui haveria um convite implícito ao aprimoramento da imagem que normalmente produzimos acerca de nossas faculdades; nesse caso, porém, somos particularmente convidados a ver que, por mais que possamos aguçá-las para a percepção dessas instâncias que nela interferem, isso nunca poderá ser feito de modo completo; por conseguinte, deveríamos rever nossa crença sobre nossa capacidade de obter conhecimento objetivo. Porém, o juízo, a despeito disso, produz de modo espontâneo e natural uma impressão de conhecimento, aderindo inevitavelmente a certas opiniões e recusando outras, diante das infinitas ocasiões de julgar que se lhe vão sucedendo. Ele não é apenas incapaz de perceber claramente suas limitações, mas acaba por necessariamente mascará353

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las, em vista de sua forma natural de agir (forma essa que não oferece, nessa medida, nenhuma garantia de objetividade). O ceticismo de Montaigne, nessa medida, parece nos conduzir a um corolário singular: não apenas ele se ocupa de observar os limites cognitivos de nosso entendimento, mas acaba por assinalar que tais limites são sempre, em alguma medida, para nós invisíveis através dele mesmo, e por causa do seu modo natural de conhecer — o que não impede que ele nos possa indicar a existência de tais limites de um modo suficiente para comprometer nossa pretensão de conhecimento. No mesmo sentido, Montaigne nos convida a observar, noutra passagem, o “instinto fortuito” que insensivelmente agiria de modo permanente sobre nosso juízo: caso nos detivamos, com especial atenção, em inspecionar nossa experiência, poderemos não apenas senti-lo continuamente imantado por fatores “tão importantes” como o favoritismo aos amigos, a beleza ou a vingança, mas também por uma “sombra de vaidade qualquer” que nos leva a preferir uma a outra numa alternativa de coisas equivalentes do ponto de vista da razão (v. 565). Em conformidade com o que observamos ao examinar a discussão de Montaigne em “Como nosso espírito se enreda a si mesmo” (II, 14)51, trata-se aqui de aludir a um “instinto fortuito” (que lá ele recusara para a explicação do mesmo fenômeno) como parte de um conjunto de causas que nos movem a julgar “sem a licença da razão”. O que importa não é apenas o fato de serem justas as causas pelas quais se julga, mas sobretudo saber se elas podem ser reconhecíveis como causas (a beleza, a vingança etc.), uma vez que, embora de menor monta, elas são igualmente problemáticas em face da pretensão de julgar de modo objetivo e isento, uma vez que fazem igualmente a balança pender. A capacidade do juízo humano revela-se finalmente relativa à sua capacidade de considerar esse conjunto de fatores potencialmente indeterminados e inabarcáveis: um juiz incompetente talvez seja incapaz de reconhecer as inclinações em favor dos parentes e dos amigos que interferem em seu juízo como problemáticas, que outros (a despeito de qual seja o veredicto) poderão ao menos detectar; um olhar mais penetrante, porém, poderia ainda distinguir, 51. Ver item 6.1 — “A extremidade da dúvida sob exame”. 354

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além daquelas que são mais comumente reconhecíveis, outras causas que, mal podendo ser denominadas — uma “sombra de vaidade” qualquer —, fazem imperceptivelmente pender a balança. Se a agudeza dessa capacidade nos encaminha no sentido de uma província cada vez mais remota das exigências da esfera prática, é sempre, de todo modo, limitada e incapaz de detectar todas as causas que assim podem agir, o que permite a Montaigne generalizar, para o conjunto das ações do juízo (como vimos ocorrer no caso da oposição entre as percepções do homem doente e do homem são) um problema percebido de forma pontual, em maior escala, em circunstâncias determinadas. Ademais, se nosso entendimento é naturalmente finito, há outras particularidades de nossas faculdades cognitivas que naturalmente agravam sua imprecisão. Por exemplo, o modo como nossa razão é por si mesma capaz de produzir cem explicações opostas acerca de um mesmo tema: [A] Em suma, essa doença [do juízo] não se descobre tão facilmente, se ela não é totalmente extrema e irremediável, uma vez que a razão vai sempre torta, e manca, e caída, com a mentira como com a verdade. Por isso é difícil descobrir seu engano e [seu] desregramento. Eu chamo de razão [raison] sempre essa aparência de raciocínio [discours] que cada um forja em si; essa razão, cuja condição permite haver cem contrários acerca de um mesmo assunto, é um instrumento de chumbo e cera, alongável, dobrável e acomodável a todos os vieses e a todas as medidas; não resta senão a capacidade de saber torneá-lo [contourner]… (565). Não apenas por seu caráter remoto ou diminuto escapam à visão de nosso juízo as causas que nele intervêm, mas ele normalmente desvia seu olhar e deixa que a razão encubra seus limites, forjando justificativas. É uma idéia que Montaigne retomará noutras ocasiões, como ao notar que nosso espírito, em vista de sua necessidade de compreender ou de convencer, tende a produzir espontaneamente uma interpretação daquilo que percebe, em maior ou menor grau, distorcida52. Assim, 52. Ver sobre esse “fenômeno” natural, por exemplo, I, 31, 205A, ou as interessantes análises de III, 11, 1027BC ss. sobre como as narrativas fantásticas vão naturalmente se 355

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a precariedade cognitiva de nosso juízo acaba por se manifestar não apenas nos paradoxos em que se enreda ao se acercar de seus limites, mas também no modo como sua ação se faz sempre acompanhar de alguma impressão de verdade — de um bom senso permanente que, como vimos, oferece em verdade, segundo Montaigne, uma prova da falta intrínseca que nos faz um senso efetivamente bom. Desse exame podemos extrair um esclarecimento sobre por que, nas digressões que Montaigne oferece acerca da vaidade que encontra em si mesmo, não se trata, ao contrário do que pode parecer, de apresentar uma limitação da reflexão cética: [A] Eu, que me espio mais de perto… com dificuldade ousaria dizer a vaidade e [a] fraqueza que eu encontro em mim. Eu tenho o pé tão instável e mal apoiado, eu o acho tão fácil de vacilar e tão pronto a se abalar, e minha vista tão desregrada, que no jejum me sinto outro que depois da refeição; se minha saúde me ri, bem como a claridade de um belo dia, eis-me um homem amável; se uma ponta me aperta o dedo do pé, eis-me desencorajado, desagradável e inacessível… [B] Muitas vezes (tal como me ocorre de fazer de bom grado) tendo me posto, por exercício e por prazer, a sustentar uma opinião contrária à minha, meu espírito, aplicando-se e virando-se para esse lado, aí me amarra tão bem que eu não encontro mais a razão de minha primeira opinião, e a abandono. Eu me deixo arrastar quase aonde me debruço, seja como for, e me lanço com meu peso. Cada um poderia dizer o mesmo de si, se se observasse como eu… (565-566). Nesse valioso testemunho que ele nos oferece de ter freqüentemente praticado — “por exercício e por prazer” — uma argumentação cética in utramque partem, poderíamos ser tentados a descobrir uma confissão de incapacidade de praticar a epokhé (posto que, em vez de permanecer em suspenso entre as duas alternativas, ele se deixa arrastar pela segunda). Tanto mais que a “vaidade”, que ele reconhece em si, é igualmente o termo, como vimos, empregado para demarcar o constituindo ao passar de mão em mão, acalentadas pelo amor que os homens têm de se tornar persuasivos, com base nessa observação cética. Examinaremos essa discussão no capítulo seguinte. 356

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resultado da precipitação dogmática. Contudo, podemos agora ver que tal leitura seria precipitada. A “vaidade” a que Montaigne se refere quando descreve suas oscilações faz parte do mesmo diagnóstico sobre a fraqueza do juízo, pelo qual se trata, aqui como nos exemplos anteriores, de pretender superar uma imagem mais rudimentar da suspensão cética, como uma dúvida impraticável. Pois, embora nosso juízo, por seu funcionamento natural, faça-se sempre acompanhar de uma “impressão de verdade”, a conclusão cética decorre do reconhecimento de que sua capacidade de oscilar entre as razões é maior do que a que cremos ser quando pensamos dispor de uma boa razão (“Eu me deixo arrastar quase aonde me debruço… Cada um poderia dizer o mesmo de si, se se observasse como eu…”). A isosthéneia relativa ao valor cognitivo das opiniões que inevitavelmente devemos, em grande número, aceitar, graças à nossa inserção na vida comum, segue-se, por assim dizer, a posteriori, como conseqüência de uma observação crítica do instrumento pelo qual as aceitamos. Não deixa de ser notável, porém, o modo paradoxal como Montaigne instaura aqui uma argumentação cética, fazendo da própria impossibilidade de permanecer em suspensão entre duas teses opostas um argumento em favor do ceticismo. Seja qual for, porém, a razão motivadora desse paradoxo (eventualmente, a preocupação de não incorrer na mesma vaidade opinativa pela qual os reformistas advogam posições contrárias aos costumes relativos à crença religiosa53), ele oferece uma ilustração adicional do problema central que a análise realizada neste item descortinou. Se, como diz Montaigne, a compreensão dos limites do juízo é uma especial prova de sua presença, quanto mais agudo e penetrante for ele, tanto melhor se acercará de um paradoxo imanente à sua própria condição, na medida em que se acercar de seus limites, que não pode compreender e que comprometem a objetividade do conhecimento que pensa obter. Mas, sendo a possibilidade de avançar nessa direção sempre limitada, o juízo deixa entrever um segundo aspecto de sua precariedade, na medida em que, por força de sua atividade natural, 53. Sobre essa possibilidade, ver o início do capítulo IV. 357

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produz incessantemente impressões de verdade, abraçando as razões que lhe parecem mais aceitáveis com o poder que relativamente possui para se voltar na direção da verdade (mesmo que negativamente, excluindo aquilo que pode reconhecer como falso); razões que são, contudo, sempre intrinsecamente dubitáveis.

*** É tempo de sintetizar, nalguns traços principais, a imagem naturalizada do juízo humano projetada por essa argumentação. A despeito de ser identificado à eventual capacidade humana de reconhecer a verdade — mesmo que negativamente, correspondendo à instância pela qual é possível recuar para observar a plasticidade contraditória exibida pela razão —, o juízo revela-se igualmente inapto a esse propósito. No mesmo passo em que a razão se revela uma faca de dois gumes, pela qual se pode argumentar in utramque partem, o juízo (identificado ao entendimento) se apresenta, ao ser distinguido da razão, como um órgão destinado à observação da verdade e ao assentimento, instância pela qual individualmente colhemos as crenças que nos parecem pertinentes em face do que nos é oferecido pela razão. Contudo, a observação naturalizada do modo como humanamente age o juízo, como a razão, também nos mostra dele uma imagem bastante diversa daquela que presumíamos ter. A despeito da semelhança geral que o juízo dos diversos homens parece possuir, ele é apenas, em cada um, a faculdade singular e individual de se acercar da verdade, tal como se projeta em sua diversidade, que testemunha da incapacidade geral do homem de efetivamente obtê-la; ele é portador de uma oscilação permanente entre as diversas opiniões que se apresentam; nunca está, ademais, inteiramente livre dos sonhos e da ingerência das paixões, as quais, quando se apresentam de modo especialmente pronunciado, ele confessa comprometerem sua capacidade de conhecer. Seus próprios produtos possuem uma natureza similar à dos demais objetos naturais que ele tende a desconhecer mediante a imagem que faz de seu próprio poder cognitivo. Ademais, em conformidade com o exame acerca de sua capacidade de desenvolver-se ou de embotar, vista no capítulo anterior, ele 358

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pode tanto se deixar arrastar por esquemas cognitivos ilusórios que oferecem um quadro para sua ação quanto se aprofundar no exame mais cuidadoso de sua própria experiência, a fim de desvelar uma imagem de suas limitações, que não pode ser senão sempre limitada. Tal diagnóstico autoriza a conclusão de que toda e qualquer imagem de verdade produzida por tal instrumento está ipso facto posta sob suspeita; tudo o que é objeto de nossa faculdade de conhecer é duvidoso: “nosso juízo natural não apreende claramente o que apreende”. Isso porque a tendência permanente de nosso juízo a se mascarar e a se tomar como possuidor de um poder diverso decorre de sua forma natural de agir: embora seja um juízo singular, toma-se por universal; embora seja oscilante, toma-se, a cada vez, por definitivo; embora nunca se dissipem as trevas dos sonhos inteiramente, inventa para si uma situação ideal na qual pensa estar conhecendo a realidade; embora possa compreender que causas externas nele intervêm permanentemente, toma-se sempre por representante do “bom senso”. É em virtude desse segundo aspecto que cabe afirmar que o juízo porta uma dupla fraqueza: ele é não incapaz apenas de reconhecer uma verdade que seria compatível com as exigências que ele mesmo admite (e o pode perceber, desde que focalize melhor aquela que pensa ter encontrado), mas também de reconhecer adequadamente sua fraqueza e seus limites, sendo permanentemente imantado por alguma imagem da verdade que acaba por ocultá-los. Diríamos agora que a particular atenção a esse aspecto natural parece ser uma razão das estratégias retóricas que, como vimos, Montaigne imprime a seus argumentos céticos. Eis o diagnóstico cético que Montaigne nos oferece da faculdade de que naturalmente disporíamos para conhecer a verdade e que não resulta numa preconização a que abandonemos seu uso. É por seu intermédio que assentimos às crenças e podemos eventualmente aprimorá-las, aprimorando nossa capacidade de pesá-las; é por tal exercício que ele manifesta, como dissemos, sua diversidade singular, que, embora represente um grau de afastamento da verdade objetivamente inalcançável, cabe melhor conhecer, diante do modo como tendemos a mascará-la; é por seu intermédio, afinal, que podemos desenvolver um olhar cético para aquilo que mascara nossa experiência, desemba359

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raçando, na medida do possível, a percepção dos eventos naturais das ilusões em que os envolvemos (aí compreendida a imagem que nosso juízo pode fazer de nossas faculdades cognitivas e de si mesmo). Mais ainda, tal diagnóstico da situação natural de nosso juízo pode favorecer a adoção de posturas compatíveis: a moderação do assentimento, seja às opiniões que possuímos, seja às que nos atraem por sua mera novidade; a postura de constante autocrítica e de tolerância em relação aos juízos alheios. Mas é preciso sublinhar que, se isso pode minimizar as conseqüências que se seguem das limitações e deficiências do juízo, elas são, em certa medida, radicais e intransponíveis. Poder-se-ia dizer que a desilusão produzida pela reflexão cética, nesse caso, é ainda mais radical e problemática do que aquela que se produz relativamente à imagem dogmática da razão. No capítulo III, vimos como a impossibilidade de detectar a presença do costume, que se esconde, ante aquilo que nos aparece como natural nos impede de conferir valor de conhecimento àquilo que se impõe a nosso assentimento como tal; seria ao menos possível, porém, de acordo com tal argumentação, empreender um exercício imaginativo capaz de nos mostrar que, em face da relatividade da noção de natureza, “tudo pareceria milagre”. Ainda que impraticável, tratava-se de uma possibilidade ao menos imaginável. Aqui, contudo, embora as mesmas observações sobre a impossibilidade de conferir valor de conhecimento aos objetos do nosso assentimento se confirmem, o último argumento examinado mostra que, no caso do juízo, estamos diante de um problema estrutural que parece impedir que essa atividade crítica seja levada às suas últimas conseqüências. Pois estamos diante da situação paradoxal segundo a qual nosso juízo está votado a uma incessante produção de crenças que nos parecerão sempre, nalguma medida, irrecusáveis, ainda que elas de fato não se eximam da mesma precariedade geral que compromete sua ação. Em suma, o entendimento humano parece ser essencialmente comprometido por sua própria finitude cognitiva num sentido que o impede de conhecer adequadamente essa própria finitude e suas eventuais conseqüências relativamente aos seus diversos atos. Isso nos põe diante de uma situação radicalmente paradoxal. Por mais que nosso juízo avance na compreensão das causas que o movem 360

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e lhe são anteriormente desconhecidas, não deixará de produzir “juízos” que, em sua própria positividade, eclipsam o conhecimento daquilo que lhe escapa. Mais do que isso, essa argumentação sugere que, sempre que levarmos essa investigação suficientemente adiante, seremos efetivamente conduzidos a um paradoxo, na medida em que nos defrontaremos com a imagem do limite de nosso entendimento (isto é, a uma situação que representa um reconhecimento da incapacidade do nosso entendimento de ir além). Assim, se o exame da precariedade do juízo humano nos aporta algum esclarecimento sobre o modo como se conciliam “dúvida extrema” (mais precisamente, o reconhecimento do caráter universalmente dubitável de nossas impressões de conhecer) e aceitação de crenças no ceticismo montaigniano, ele também nos conduz a um território novo, que merece ser mais bem explorado em suas conseqüências ao longo dos Ensaios. 6.3. Os cães de Esopo

Embora as análises anteriores se concentrem num breve desenvolvimento argumentativo da “Apologia”, nossas conclusões relativas à noção de juízo poderiam se estender ao que se observa noutros ensaios e mesmo noutras esferas temáticas — como é o caso das discussões sobre a linguagem. Mas tais temas estão vinculados conceitualmente. Montaigne se refere por vezes ao juízo de um modo que poderia tanto designar a ação de julgar ou compreender algo como os juízos ou opiniões que seriam seu produto lingüístico. Diz ele, por exemplo, que as pessoas finas “nunca representam as coisas puras… e, para dar crédito a seu julgamento e atrair a ele, apresentam de bom grado a matéria por determinado lado, alongam-na e a amplificam…”54. Assim, a linguagem não deixa de manifestar, pelo mesmo olhar cético, algumas 54. I, 31, 205A. Ver também I, 37, 230C; II, 17, 634A; III, 9, 980B. Isso nos parece confirmar (cf. nota 27 deste capítulo) que não faria sentido considerar, segundo Montaigne, uma forma humana de conhecimento que ultrapassasse a esfera da abrangência do juízo ou entendimento, tal como o considera: o que está em jogo é, numa palavra, a forma pela qual conhecemos, e pensamos poder descrever adequadamente as coisas em geral ao empregar a linguagem. 361

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vicissitudes similares às que se descortinaram aqui relativamente ao juízo. “Nosso falar tem suas fraquezas e seus defeitos, como todo o resto…” (527). Em particular, porém, as discussões acerca desse tema nos interessam pelo modo como explicitam ainda mais claramente a mesma situação paradoxal do juízo humano anteriormente apontada. No capítulo II, vimos que Montaigne discute as considerações de Sexto Empírico acerca do uso cético da linguagem tematizando, a um só tempo, suas imperfeições naturais e nossas limitações cognitivas: se é para nós impossível compreender o que concerne às “coisas divinas”, dada a maneira como nossa linguagem se forja pela experiência meramente humana, trata-se da mesma impossibilidade que se revela quando a consideramos no nível dos objetos a que temos acesso em nossa experiência natural55. O primeiro problema apontado é o de que a linguagem é intrinsecamente portadora de ambigüidade, fonte de inúmeras guerras e querelas (v. 527A). Tal problema, rapidamente mencionado nessa discussão, é diversas vezes retomado por ele. Comentando a opinião pitagórica de que as experiências perceptivas contrárias que possuímos seriam causadas pelas próprias coisas, Montaigne escreve: [A] Essa opinião me recorda a experiência que nós temos, de que não há nenhum sentido nem aspecto, nem reto, nem amargo, nem doce, nem curvo, que o espírito humano não encontre nos escritos que se mete a folhear. Na palavra mais nítida, pura e perfeita que possa ser, quanta falsidade e mentira não se fez nascer? Qual heresia não achou aí fundamentos e testemunhos suficientes, para se estabelecer e se manter?… (585)56. Seria indefinidamente possível distorcer o sentido mesmo das afirmações mais claras, o que conduz à constatação de que é freqüentemente ilusória a clareza que normalmente pretendemos haurir por seu 55. Ver 2.2, em que esse problema é abordado relativamente ao sentido das supostas teses fideístas formuladas por Montaigne. 56. Embora Montaigne se refira aqui imediatamente, e com ironia, ao problema da interpretação das Escrituras, parece-nos que as análises anteriores confirmam que ele estende além desse âmbito a mesma crítica cética que Erasmo assim dirige ao modo como os “teólogos” esticam o texto sagrado como uma “pele”, do modo como lhes convém (v. Elogio da Loucura, lxiii-lxiv). 362

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intermédio. E a vinculação de tal problemática com o ceticismo é clara. Ao expor, por exemplo, a dúvida “extrema” dos céticos pirrônicos, ele indaga: “[B] Existe alguma coisa, das que vos possam ser propostas para defender ou para recusar, que não seja legítimo considerar como ambígua?” (503; itálico nosso). No capítulo “Da experiência”, Montaigne argumenta (possivelmente retomando discussões do cético português Francisco Sanches, em sua obra Quod Nihil Scitur, como notou Villey57) para mostrar que a atividade de definição e de comentário não faz mais, normalmente, que trocar expressões por outras mais obscuras, a fim de apenas ampliar a dúvida que já se possuía: “[B] Nunca dois homens julgaram de modo idêntico a mesma coisa, e é impossível ver duas opiniões exatamente semelhantes, não apenas em homens diversos, mas no mesmo homem em diversas horas… Quem não diria que as glosas aumentam a dúvida e a ignorância, posto que não se vê nenhum livro, seja humano, seja divino, do qual o mundo se ocupe, do qual a interpretação tenha estancado a dificuldade? O centésimo comentário o remete [leitor] ao seguinte mais espinhoso e mais escabroso que o primeiro o tinha achado. Quando entre nós nos pomos de acordo: deste livro já temos o bastante, não há mais o que dizer?… (III, 13, 1067). Projeta-se nesse âmbito a mesma diversidade dos juízos humanos que, como vimos, surge, na “Apologia”, como testemunho de nossa incapacidade de reconhecer a verdade (v. 6.2.1). Isso não significa, por certo, que os homens não se ponham de acordo em vista da crença de terem compreendido algo do mesmo modo, mas sim que tal acordo espelharia uma visão parcial e limitada dos fatos. Bastaria conduzir o juízo a se explicitar mais amplamente, indagando em que sentido exatamente se compreendeu tal coisa, para que a dúvida logo se instalasse. Depois de considerar o modo como os comentários sobre os autores amplificam as dificuldades originais de compreensão do que eles haviam dito, ele afirmará, aludindo à Reforma: [B] Nossa contestação é verbal. Eu pergunto o que é natureza, volúpia, círculo e substituição. A questão é de palavras e se paga do mesmo 57. Cf. Les Essais, vol. III, p. 69; Quod Nihil Scitur (QNS), p. 5, 178; 8, 182 ss. 363

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modo. Mas quem insistiria: e corpo, o que é? — Substância… Trocase um termo por outro termo, e freqüentemente mais desconhecido. Sei melhor o que é homem que o que seja animal, ou mortal, ou razoável. Para satisfazer uma dúvida, eles me dão três: é a cabeça da Hidra… (III, 13, 1069)58.

Em lugar de uma uniformidade de compreensão, capaz de atestar a posse de uma verdade, caso tentássemos aprofundar aquilo que nos oferece o nosso entendimento constataríamos finalmente alguma divergência, reveladora da singularidade com que julgamos e desmentindo nossa crença de que possuíamos a verdade que pensávamos possuir. Montaigne parece sugerir que a clareza que encontramos na linguagem é sempre provisória, relativa a determinado uso, que mascara os defeitos potenciais desse instrumento que, contudo, se evidenciam quando buscamos dele extrair — legitimamente, segundo as próprias exigências práticas que a isso nos conduzem — um grau maior de precisão: “[B] Por que nossa linguagem comum, tão simples em todo outro uso, torna-se obscura e ininteligível em contrato e testamento, e aquele que se exprime tão claramente, seja o que disser e o que escrever, não acha nisso nenhuma maneira de declarar que não recaia em dúvida e contradição? (III, 13, 1066). Seria lícito dizer que, assim como nosso juízo natural nunca apreende claramente o que apreende, a linguagem humana nunca diz claramente o que diz sobre as coisas? Em suma, tudo se passa, à luz desse argumento, como se cada proposição potencialmente contivesse, nalgum grau, uma ambigüidade intrínseca pela qual o juízo de outrem, 58. Observemos de passagem que Descartes retomará a mesma crítica à pretensão de conhecimento filosófica, negando que se possa conhecer o que é o homem mediante sua definição como “animal racional”. Contudo, em seu lugar, ele assume como critério de conhecimento a evidência oferecida pelas idéias claras e distintas: é notável que ele condene, como causa de erro, a tentativa de explicar uma idéia clara e distinta por outras que, em vista dela, não poderão ser senão menos claras. Diríamos, porém, que no mesmo passo em que os produtos desse critério, aos olhos de Montaigne, permaneceriam correspondendo a ficções filosóficas (pensemos na concepção de que o homem pode se conhecer verdadeiramente como um puro eu pensante), ele não estaria apto a reconhecê-lo como capaz de satisfazer as exigências consideradas. Retomaremos esse ponto adiante. 364

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em vez de ser transportado, de modo absoluto, às mesmas evidências, acabaria sempre por exibir, sob a roupagem da mesma fórmula (e eventualmente pela maneira como ele a relaciona a outras), o traço da singularidade com que ele mesmo se distanciaria de um conhecimento propriamente objetivo. Uma segunda marca da precariedade da linguagem humana, aos olhos de Montaigne, que parece confirmar esse ponto, encontra-se em sua dimensão assertiva. Quando discute as estratégias de que o cético se vale para exprimir sua posição, Montaigne diz que esta não poderia ser plenamente exprimida pela linguagem: “Eu vejo os filósofos pirrônicos, que não podem exprimir sua concepção geral em nenhuma forma de falar: pois lhes seria preciso uma nova linguagem. A nossa é toda formada de proposições afirmativas, que lhes são inteiramente inimigas…” (527A). Devem aqui ser afastadas, em nosso entender, duas hipóteses de leitura. Primeiramente, a de que Montaigne pretenderia encontrar um limite do pirronismo, pelo modo como essa filosofia se contradiz ao empregar a linguagem (hipótese que, não fossem as demais evidências arroladas, o próprio contexto da discussão, em que se trata de argumentar ceticamente, mostra ser absurda). Em segundo lugar, a de que se trataria literalmente de propor a invenção de uma nova linguagem (o que não se revelaria, à luz da própria filosofia de Montaigne, um exemplo a mais da mesma arrogância dogmática presente nas tentativas ilusórias de suplantar os limites da compreensão humana, que é o alvo principal dessa crítica). Resta a hipótese de que ele esteja apenas reconhecendo, novamente, uma espécie de conflito latente entre o caráter potencialmente dubitável das mais diversas proposições e a pretensão de verdade que, a despeito de seus defeitos, a linguagem inevitavelmente manifesta; pretensão sempre capaz de ser submetida a uma crítica posterior. Essa leitura não apenas nos parece corroborar as análises do item anterior, mas também ser conforme ao sentido preciso em que se desenvolve a própria argumentação. Montaigne insere tardiamente, no rol dos argumentos destinados a mostrar o caráter problemático da linguagem, o célebre Paradoxo do Mentiroso, que ele toma, muito provavelmente, dos Academica. Pondo lado a lado duas proposições igualmente 365

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bem construídas e portadoras de um sentido claro, diante das quais, à primeira vista, nos sentimos inteiramente capazes de precisar as circunstâncias em que as empregamos significativamente — “chove” e “eu minto” —, trata-se de mostrar que tais qualidades não bastam para que sejamos capazes de determinar a veracidade de uma proposição. Pois embora a proposição “chove” não gere, aparentemente, nenhum paradoxo, a proposição “eu minto”, que à primeira vista parece igualmente passível, por sua clareza e sua compreensibilidade, de ser acolhida como verdadeira ou falsa, gera, como sabemos, um célebre paradoxo de autoreferência, pelo qual a presunção de verdade ou falsidade da proposição é reciprocamente contradita pelo conteúdo diverso que se afirma, quando esse conteúdo é aplicado à própria sentença. (Se a sentença “eu minto” é verdadeira relativamente ao proferimento dessa sentença, eu minto ao proferir essa sentença, por conseguinte ela é falsa, e vice-versa.) O que interessa aqui a Montaigne parece ser sobretudo a semelhança aparente que essa sentença; à primeira vista clara e compreensível, pode guardar com toda e qualquer sentença portadora das mesmas características. Embora a proposição “chove” não gere um paradoxo, Montaigne pretende extrair dessa semelhança uma suspeita geral acerca das demais proposições. Talvez elas simplesmente não tenham tido, até o momento, ocasião de exibir um aspecto igualmente problemático: assim como eu poderia tomar a proposição “eu minto”, antes de compreender sua dimensão paradoxal, como provisoriamente satisfatória, em virtude da clareza com que se refere àquilo a que se refere, eu não posso, inversamente, tomar a clareza similar com que uma proposição aparentemente aponta para as condições que satisfariam sua veracidade ou falsidade, como “chove”, como uma garantia de conhecimento objetivo, posto que essa avaliação, também aqui, pode ser limitada e apenas provisória. Tal avaliação pode mesmo ser, eventualmente, apenas relativa à nossa incapacidade de compreender as condições pelas quais a aparente transparência da linguagem diante das coisas revele-se enganosa; maior fosse nossa capacidade, melhor poderíamos quiçá compreender a pertinência da cláusula segundo a qual toda e qualquer proposição é passível de ser controvertida. Assim, embora seja o veículo exclusivo do conhecimento humano, a linguagem se revelaria, em sua asser366

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tividade, como um meio inseguro e imperfeito de acesso às coisas, relativamente ao qual não podemos ter uma garantia absoluta no que tange à presunção de verdade com que o empregamos. Isto parece se harmonizar com o que vimos a propósito de nossa incapacidade de detectar as causas externas que agiriam sobre o juízo: cada proposição que nosso entendimento acolhe como verdadeira seria potencialmente objeto de um paradoxo (relativo, por exemplo, às causas que nos conduzem a conhecê-las desse modo, mas não nos são conhecidas, embora determinem nosso suposto conhecimento de forma relevante). Bastaria nosso conhecimento dessas causas se alargar para que se abrisse um horizonte diverso, em vista do qual o que anteriormente nos parecia conhecimento verdadeiro passaria a se mostrar algo falso ou indeterminável. Mas a presente discussão nos permite ver melhor as implicações paradoxais que daí decorrem relativamente à estrutura do juízo humano e suas conseqüências relativas ao modelo de investigação cética adotado por Montaigne. À luz dessas reflexões, o modo como assumimos determinada proposição como verdadeira não é, de maneira geral, senão relativo à nossa incapacidade de julgar mais agudamente e considerar um conjunto mais amplo de fatores relevantes. A satisfação com as evidências disponíveis seria sempre solidária de uma fraqueza relativa de nossa capacidade de conhecer. Na verdade mais transparente, haveria sempre um grau de opacidade, exibido por outras evidências com que ela aparentemente se concatenassem, que poderia ser detectada por uma ação mais aguda do espírito. Eis o que afirma Montaigne, desenvolvendo a mesma discussão de III, 13, a que nos referimos há pouco, sobre como as glosas são incapazes de produzir uma verdade: [B] Não é nada além da nossa fraqueza particular o que nos faz contentarmo-nos com o que outros ou com o que nós mesmos encontramos nessa caça de conhecimento; um mais hábil não se contentará. Há sempre lugar para um seguinte, [C] sim, e para nós mesmos, [B] e caminho para seguir além… Não há fim em nossas inquisições, nosso fim é noutro mundo. [C] É um sinal de estreitamento do espírito quando ele se contenta, ou de lassidão. Nenhum espírito generoso se detém em si mesmo; ele pretende sempre ir e vai além de suas forças; ele tem elãs [eslans] para além dos seus poderes 367

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efetivos [effects]; se ele não avança, e não se lança, e não se impõe, e não ataca, ele só é vivo pela metade; [B] suas buscas são sem termo e sem forma; seu alimento é [C] admiração, caça, [B] ambigüidade… (III, 13, 1068).

Essa passagem mostra que o assentimento àquilo que “encontramos nessa caça de conhecimento” corresponde à entronização indevida de um mero instante, na progressão de nosso entendimento, como uma suposta verdade sobre as coisas, estancando, por assim dizer, um movimento possível pelo qual ele poderia sempre ir além. É certo que ela parece possuir um alcance mais amplo do que o referente a uma investigação filosófica cética, referindo-se ao sentido de uma investigação em geral. Porém, estaria Montaigne entrevendo, nesse progresso, a idéia de uma aproximação da verdade? Declarar que o bom uso do juízo ou entendimento é capaz de indefinidamente conduzir à superação daquilo que se adotou provisoriamente como verdadeiro não é assumir, ao mesmo tempo, a conclusão cética de que nossas faculdades têm permanentemente entre as mãos objetos precários no seu poder de representar a verdade? Vimos, no item anterior, que os argumentos propostos contra o juízo (como a configurar uma espécie de tropo argumentativo montaigniano) consistem, de modo geral, num convite a seu aprofundamento, que permite suplantar algo do caráter simplista e impreciso de uma determinada imagem prévia acerca de nossos próprios processos de conhecimento, da qual se parte. Os argumentos céticos de Montaigne parecem, assim, aludir a essa mesma “caça” — e, mais do que isso, dela oferecer um esclarecimento decisivo: por mais que o espírito humano possa avançar, os resultados eventualmente obtidos não equivalem a nenhuma espécie de conhecimento; ao menos, num sentido tal que outra investigação posterior não pudesse mostrar as imperfeições daquilo que tomávamos como conhecimento, como uma imagem clara e verdadeira das coisas. Tal conseqüência se harmoniza bem com a metáfora exposta a seguir, da qual ele se vale para ilustrar, na mesma página do texto que acabamos de citar, a situação humana ante as diversas opiniões que se podem sustentar como verdadeiras sobre as coisas. Comentando o modo como se confere “autoridade de lei” a inúmeros doutores, sentenças e interpretações, ele indaga: 368

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[B] Encontramos nós, em razão disso, algum fim à necessidade de interpretar?… Os homens desconhecem a doença natural de seu espírito: ele não faz senão vasculhar e buscar, e vai sem cessar volteando, construindo e se aprisionando em seu trabalho, como os nossos bichos-da-seda, e aí se sufoca. Mus in pice. Ele pensa perceber de longe alguma aparência de clareza e de verdade imaginária, mas, enquanto ele corre, tantas dificuldades lhe atravessam o caminho, tantos impedimentos e novas buscas, que elas o desviam e o inebriam. Quase do mesmo modo como ocorreu com os cães de Esopo, os quais, descobrindo o que parecia ser um corpo morto flutuando no mar, e não podendo dele se aproximar, resolveram beber a água e secar o caminho, e aí se afogaram… (III, 13, 1068B).

Aqui a “doença natural” do espírito — que, por vezes, se exprime como presunção (de conhecer); por vezes designa, como vimos, metaforicamente, as perturbações que marcam, em sentido oposto, a incapacidade humana de conhecer — é retratada pela alegoria dos cães de Esopo, como aquela que o move incessantemente em direção às “aparências de clareza e verdade” que, posteriormente, acabam por se revelar uma simples miragem. Por certo se trata de um diagnóstico cético, que aqui não se limita, contudo, a focalizar os “dogmáticos” em sentido estrito. É da própria condição humana que o texto pretende tratar — ao menos na medida em que tal “doença” pode ser referida às imperfeições naturais de nossas faculdades cognitivas; mais exatamente, ao modo paradoxal com que se relacionam dois aspectos fundamentais de seu bom funcionamento natural. De uma parte, o fato de guiar-se necessariamente pela busca da verdade e, de outra, o fato de se reconhecer radicalmente incapaz de encontrá-la, desde que vá ainda além no esforço do exame racional daquilo que possa se oferecer como “verdade”. Importa sublinhar, assim, que não estamos aqui diante de uma leitura do ceticismo que pretenda simplesmente suprimir nossa pretensão de conhecimento e de encontrar a verdade, mesmo se isso viesse a ser de algum modo desejável59. Ainda que uma suspensão do assenti59. É a interpretação proposta por D. SEDLEY (1983) relativamente ao pirronismo antigo. Analogamente, Montaigne não poderia subscrever a leitura de Pascal acerca do 369

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mento pudesse, como vimos, ser praticada por um curto instante, Montaigne reconhece que seria impossível, caso fosse desejável, pôr em prática tal suspensão de modo constante. Simplesmente, nosso juízo não cessa de naturalmente produzir, por força de sua situação no mundo, impressões acerca do que é verdadeiro ou falso (que são sempre, em princípio, num maior ou menor grau, objeto potencial de uma crítica cética). E a própria constatação da fraqueza do juízo não é obtida senão pelo juízo. Ora, não pretendemos suprimir aquilo que somos, segundo o que involuntariamente se manifesta em nossa natureza; é preciso, ao contrário, levar mais longe nossa constatação do que somos, conferindo a nossas faculdades cognitivas um sentido autocrítico e autoreflexivo que lhes permita compreender melhor sua natureza, seja para apreender o modo como necessariamente se orientam pela busca da verdade, seja para confessar sua incapacidade de reconhecê-la. Compreende-se assim por que não são poucas as passagens em que esse cético Montaigne insiste na importância de buscar a verdade (sem pretender, ele mesmo, que seu juízo deixe de estar continuamente movido na direção de seu reconhecimento) e nos males que, em seu entender, decorrem da deturpação dessa busca, como nesta passagem do ensaio “Do desmentir”: [A] O primeiro traço da corrupção dos costumes e o banimento da verdade: pois, como dizia Píndaro, o ser verdadeiro é o princípio de uma grande virtude… Nossa verdade de agora é, não o que é, mas o que se persuade a outrem: como nós chamamos de moeda não apenas aquela que é legal, mas também a falsa assim como a circulante… Nossa inteligência conduzindo-se unicamente pela via da palavra, aquele que a falsifica trai a sociedade pública. É o único utensíceticismo implícita na alegação de que possuímos “uma idéia de verdade invencível para todo o pirronismo” (Pensées, § 406-395). Para Montaigne, compreender que possuímos uma idéia de verdade em vista da qual nosso julgamento necessariamente age não é algo que se opõe ao pirronismo, mas parte da naturalização cética que resulta do exame crítico de nossas faculdades. Ainda que se trate aqui de uma interpretação particular do ceticismo, eventualmente diversa de como os pirrônicos antigos tenham compreendido sua filosofia, isso não atenua o contraponto com a leitura pascaliana que reconhece no autor dos Ensaios o representante por excelência do pirronismo. 370

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lio por meio do qual se comunicam nossas vontades e nossos pensamentos, é o intérprete de nossa alma: se ele nos falta, nós não nos mantemos mais, nós não nos conhecemos mais uns aos outros. Se ele nos engana, ele rompe todo nosso comércio e dissolve todas as ligações de nossa cidadania [police]… (II, 18, 666-667)60.

Pode-se mesmo dizer que, se o homem fosse considerado segundo o optimum de suas forças naturais na busca de entender, segundo o pleno uso de suas faculdades, constatar-se-ia, segundo tal ceticismo, que o entendimento haure seus próprios critérios, mesmo que para reconhecer a incapacidade de detectar a verdade, com base no modo como se volta para a verdade e se põe em seu encalço: [B] A agitação e a caça são propriamente de nossa alçada: nós não somos desculpáveis de conduzi-la mal e de modo impertinente; quanto a pegar a presa, é outra coisa. Pois nós nascemos para buscar a verdade; cabe possuí-la a um poder maior. Ela não é senão, como dizia Demócrito, no conhecimento divino. [C] O mundo é apenas uma escola de inquisição… (III, 8, 928)61. Assim, esse ceticismo, não vendo ser possível satisfazer-se com uma solução que cinda a idéia de verdade em duas versões — uma verdade aceitável, meramente fenomênica, e outra condenada de saída, por pretender estabelecer a science —, acaba por reaproximar-se criticamente de certos aspectos que poderiam caracterizar a situação do filósofo dogmático. Cético ou dogmático, o filósofo, como homem que é, deve se haver com a satisfação de necessidades de suas faculdades de conhecer, segundo o modo pelo qual naturalmente operam. Torna-se assim decisivo, para caracterizar sua diferença, o fato de que ambos possuem, contudo, consciência diversa da situação que compartilham, e particularmente de seus limites cognitivos: enquanto o dogmático, não se dando 60. Note-se porém que, nesse contexto moral, a verdade não é oposta a falsidade, mas à mentira: trata-se especialmente de condenar a traição ao propósito de dizer a verdade, e não a eventual incapacidade de dizê-la em virtude de limitações gerais do entendimento humano. Ver, também, III, 13, 1065B; II, 17, 647-648; II, 5, 885; III, 8, 924B, III, 2, 805B. 61. Para a distinção entre o reconhecimento da fraqueza cognitiva do juízo e o seu uso “regrado”, ver ainda II, 10, 410A. 371

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conta da dimensão paradoxal dessa busca, crê cegamente em seu poder de reconhecer a verdade, o cético reconhece que, em vez de dispor de verdades capazes de sanar essa deriva, encontra-se definitivamente nela mergulhado, como um resultado da condição paradoxal que sua finitude lhe oferece. São, afinal, as mesmas exigências de “ir além” que nos movem em direção à verdade aquelas que irão eventualmente nos conduzir, se efetivamente formos capazes de ir além, a constatar que aquilo que ora nos pareceu ser verdade não atende às exigências que deveria atender para tanto. Essa constatação cética de nossa situação paradoxal poderia conduzir a conseqüências diversas; limitamo-nos aqui a apontar duas delas, intimamente relacionadas, relativas ao estatuto do assentimento e da própria atividade investigativa. Primeiramente, o fato de nos vermos condenados a tal paradoxo faz com que aquilo que nos pareça provisoriamente digno de assentimento seja apenas o avesso de nossa incapacidade de “ir além”. A consciência dessa situação pareceria ser, por si mesma, um convite a nos precavermos da precariedade intrínseca de nossos diversos juízos — a despeito de sua diferença relativa e do modo como tendem a aparecer a nós. É assim, ao menos, que Montaigne projeta sobre sua atividade intelectual aquilo que o vimos há pouco preconizar aos “espíritos generosos”: [A] Quanto às faculdades naturais que se acham em mim, das quais está aqui o exame [l’essay], sinto-as dobrar sob a carga. Minhas concepções e meu juízo não avançam senão tateando, vacilando, tropeçando, esfolando-se; e quando eu cheguei o mais longe que eu pude ir, não me encontro de modo algum satisfeito: vejo ainda um território além, mas com uma vista turva e embaçada, que não posso bem discernir… (I, 26, 146)62. Essa nova versão da mesma imagem a exibe em outro aspecto. Se, aludindo aos cães de Esopo, ele apontou o modo como os homens em geral se enganam com as verdades que pensam possuir, aqui ele extrai uma conseqüência acerca do estatuto do assentimento, sublinhando a precariedade e a provisoriedade dos resultados: se, ao atingir um limite, 62. Ver, no mesmo sentido, I, 50, 302-303. 372

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o juízo sempre entrevê um território além, em vez de ignorá-lo, cabe integrá-lo à paisagem, e compreender que as nebulosidades de nosso quadro intelectual, embora sempre relativas, são parte essencial de um retrato que se pretende singular, acerca dos limites próprios de seu autor, caso queira obter verossimilhança (por oposição ao procedimento do dogmático que, focalizando apenas as verdades que pensa ter encontrado, pensa que elas lhe oferecem os meios de dissipar plenamente essa nebulosidade provisória, e se satisfaz com os resultados ali alcançados). Menos metaforicamente, embora não seja possível nem desejável suspendermos plenamente o nosso assentimento e deixarmos de operar segundo aquilo que se apresenta a nós como aparentemente verdadeiro, importa recuarmos diante do panorama opinativo que se oferece a nós e voltarmos nossa atenção, na medida de nossas possibilidades, aos elementos capazes de nos mostrar a precariedade daquilo que inadvertidamente aceitamos como verdadeiro. Noutros termos, trata-se de preconizar uma atitude intelectual própria diante daquilo que nos surge como objeto de entendimento (o que vem se harmonizar com a moderação pela qual Montaigne, a um só tempo, desconfia do modo como as novidades nos aparecem portadoras de um ilusório poder de persuasão e impede que as opiniões que ele mesmo aceita “criem raízes”). É o que nos mostra igualmente outro elemento central das duas metáforas: a imagem do movimento. Não seria a mesma imagem que surge nesta sentença lapidar em que Montaigne sintetiza o sentido de sua atividade cética? “[B] Nós outros, que privamos nosso juízo do direito de sentenciar [faire arrests], observamos brandamente [mollement] as opiniões diversas…” (III, 8, 923; itálicos nossos). O termo “arrester” — designando no vocabulário jurídico o ato de proferir uma sentença, que detém o processo de exame dos materiais relevantes — pode significar, no moyen français do século XVI, tanto “decidir, determinar, resolver” como “fixar, amarrar; parar, deter-se”63. Montaigne está recusando ao seu juízo o direito de “sentenciar”, no sentido de decretar e estabelecer preceito, mas a compreensão dessa afirmação pode talvez 63. Ver GREIMAS, KEANE, 1992, p. 36; os autores encontram igualmente um exemplo em Montaigne, em que o termo arrest é empregado como sinônimo de “limite”. 373

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ser enriquecida por essas metáforas, que aludem ao esforço intelectual no sentido de impedir que tais opiniões se entronizem como “sentenças”, e de contribuir, em vez disso, para repô-las no interior de um movimento do juízo e mostrar que a aparência de verdade nela contida pode sempre se dissolver. Trata-se, assim, não de pretender deter o movimento pelo qual o espírito humano assente necessariamente a opiniões, mas, ao contrário, de afirmá-lo mais radicalmente e de poder observá-lo diversamente, enquadrando-o por um prisma autocrítico que permite, por vezes, a simples rejeição de determinada opinião como produto evidente da fantasia humana (caso em que se pode falar de uma suspensão do assentimento), ou, por vezes, quando isso não é possível, a observação das opiniões a que se assente por um viés inusitado, segundo a comparação crítica com opiniões diversas e com as razões que as podem sustentar. A constatação da natureza paradoxal do entendimento em sua busca da verdade tem o efeito de descortinar, como dissemos, uma ambivalência intrínseca das opiniões a que se assente, pela qual elas são, a um só tempo, a imagem que se pode obter da verdade segundo o alcance relativo do próprio entendimento e a marca singular da distância em que de fato se permanece da verdade (tal como se poderia ver mais claramente se fosse possível ir ainda mais longe). Assim, tal ceticismo propicia ao filósofo, se não a observação de como as coisas são objetivamente, uma consciência dos limites de seu próprio juízo, naquilo que exibe como particular. É essa, ao menos, a utilidade que Montaigne — discorrendo sobre seu comércio intelectual com diferentes autores — afirma expressamente descobrir no registro de opiniões que constitui seu livro: [A] Eu digo livremente minha opinião sobre todas as coisas, e mesmo sobre aquelas que casualmente ultrapassam a minha capacidade, e que não tenho de modo nenhum como pertencentes à minha jurisdição. Aquilo que opino sobre isso, faço-o para declarar a medida da minha visão, não a medida das coisas… (II, 10, 410)64. 64. Em I, 26, 147, Montaigne assinala que desenvolve seu exercício do juízo “indiferentemente”, a partir de tudo com o que se depara sua fantasia, freqüentemente para 374

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Isso explica, portanto, não apenas como o ensaio pode se tornar uma atividade essencialmente autocrítica, mas também como o registro das opiniões de Montaigne pode se articular a um processo de conhecimento de sua individualidade, nas dobras pelas quais ela se oculta dele quando se volta imediatamente a essa tarefa. Aprofundaremos esse ponto no capítulo seguinte. Por ora, voltemo-nos a um segundo aspecto das conseqüências dessa mesma imagem paradoxal do juízo humano, agora relativas ao estatuto da investigação. Aceitamos certas opiniões que trazem, ainda que não sejamos capazes de vê-lo, a medida relativa de nosso desconhecimento, e que se revelariam precárias à luz de um entendimento mais vigoroso; se fôssemos capazes de atualizar plenamente essa possibilidade, todo o conjunto das opiniões que ora aceitamos como claras e inquestionáveis nos apareceria de súbito como paradoxal e insustentável. A situação provisória de nosso entendimento é, em certo sentido, a de um adiamento da visão possível de um paradoxo de que participa aquilo que foi entendido — o que pode, por certo, parecer bastante desalentador. Com efeito, trata-se de pretender nos pôr em contato com nossa situação paradoxal, tal como ilustrada pela fábula dos cães de Esopo: estamos condenados a uma busca potencialmente infinita (posto que à maior capacidade de se pôr no encalço da verdade corresponde uma maior capacidade de compreender a impossibilidade de encontrá-la e de conhecer o caráter imaginário das supostas verdades que se pensa obter), sem, contudo, podermos nos livrar dela (ainda que possamos reconhecer nossa impossibilidade de ir além). Todavia, essa reflexão pode não apenas produzir um esclarecimento inesperado sobre o uso efetivo de nossas faculdades naturais, mas também, em corroboração da leitura apresentada no capítulo anterior, reconhecer apenas sua situação cativa, em comparação a autores como Plutarco. Ao menos, porém, ele se contenta com o reconhecimento da “extrema diferença” entre eles e da natureza “fraca e baixa” de suas opiniões, resultante de defeitos que ele não pretende “repintar e recosturar”, mas apenas exibir. Também a imagem de Sócrates, tal como retomada pelos ensaios, parece por vezes estabelecer, nos Ensaios, uma ponte entre o reconhecimento dos limites do julgamento e o autoconhecimento. Ver II, 6, 378C; III, 3, 820B. 375

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produzir uma reavaliação do sentido da investigação (em vez de conduzir a uma desistência). Em síntese, pensamos que o ensaio, concebido como uma investigação autocrítica, destinada a indefinidamente repor em movimento os resultados obtidos, possa corresponder a uma forma cética na qual, em face dos limites determinados por nossa condição paradoxal, a pura zétesis — a busca propriamente dita — adquire um valor central, digamos, como signo da saúde da alma e de uma maximização do uso “de regra e de direito” de nossas faculdades naturais (cf. 505). Tal como verificamos no capítulo anterior, quanto ao movimento reflexivo precedente à epokhé, também no que tange a esse exame do sentido da epokhé diríamos que a zétesis revela-se como o essencial da atividade do entendimento, que se move das certezas que pensa possuir à constatação de que elas não se sustentam como se supunha, ganhando um papel prioritário relativamente aos resultados produzidos pelo juízo, segundo o seu valor propriamente cognitivo. Essa afirmação da zétesis tornar-se-ia assim, ao mesmo tempo, um diferencial decisivo desse ceticismo relativamente ao modo “dogmático” de encarar a pesquisa pela verdade, tendendo a ser assimilada, em passagens mais tardias, à investigação socrática65. É desse modo que Montaigne entende que o ceticismo lhe permite usar mais livre e plenamente sua razão, numa prática argumentativa permanente, e também seu juízo, na medida em que permanece numa investigação contínua, enquanto o dogmático investiga almejando filosoficamente superar e abolir, nalguma medida, o estado investigativo por meio da posse de uma pretensa verdade — que marca apenas sua impossibilidade de ir além, ainda que seja na mera observação isenta dos diagnósticos rivais acerca das mesmas questões que ele pensa resolver. E ainda que o filósofo se encontre individualmente incapaz de ou inapto a enfrentar as dificuldades que encontra, o registro do movimento pelo qual se produzem suas opiniões e o esforço crítico a que seu próprio juízo as submete propiciam-lhe uma ocasião de autoconhecimento: [A] Eu desejaria bem possuir um entendimento mais perfeito das coisas, mas eu não quero adquiri-lo a todo preço. Meu desígnio é o 65. Ver 509C; III, 8, 927C; III, 13, 1069-1070B. 376

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de passar docemente, e não laboriosamente, o que me resta de vida… Eu busco nos livros apenas uma ocasião de prazer por uma conveniente [honneste] diversão, ou, se os estudo, não busco aí senão a ciência que trata do conhecimento de mim mesmo, e que me instrua a bem viver e a bem morrer: [B] Hac meus ad metas sudet oportet equus… (II, 10, 409).

Por fim, um comentário anacrônico, mas inevitável. Se assim constatamos novamente como o ceticismo de Montaigne converge na direção do exame e do reconhecimento da singularidade empírica de seu “eu”, essa filosofia parece dispor, ao menos potencialmente, de razões pelas quais estaria pouco disposta a reconhecer algum cogito capaz de deter a marcha dessa zétesis infinita (a não ser como marca de uma impossibilidade meramente relativa de ir além, e de todo modo distinta do reconhecimento de alguma verdade). Pois não bastaria alegar, por exemplo, que o “eu existo” pode representar uma proposição clara e aparentemente irrecusável ao entendimento que dela toma consciência. À luz das considerações anteriores, deixa de ser imediatamente aceitável que isso nos conduza a uma verdade, uma vez que toda e qualquer evidência do entendimento está embargada por essa argumentação, mesmo aquela com que o entendimento acolhe as proposições cuja evidência é de tal ordem que ele não pode delas se desfazer. Escapariam daí as proposições cuja evidência fosse absolutamente necessária, mesmo que sua refutação nos conduzisse a um paradoxo? A evidência, de todo modo, deixa de ser admitida como passaporte para uma verdade inconteste e, se isso decorre de uma possível deficiência natural do entendimento, ela atinge nossa capacidade de examinar adequadamente as possibilidades de estar enganados com relação a tal evidência. Não poderíamos, porém, refutar essa possibilidade pela própria clareza com que esse entendimento conhece sua existência ou por meio de algum outro argumento capaz de corroborar essa clareza (como aquele que provaria nossa necessidade de admitir a existência de um Deus onipotente, cuja bondade nos impede de nos enganar)? Como, nos dois casos, a clareza da prova oferecida é evidente apenas para o próprio entendimento, e como aquilo que depende de prova aqui é justamente o fato de que a clareza do entendimento, mesmo quando 377

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nos parece irrefutável, seja uma garantia de que conhecemos uma verdade capaz de excluir a possibilidade de engano, tal solução parece conduzir a um círculo (efetivamente explicitado nas Quartas Objeções, por Arnaud, no que tange à prova cartesiana da existência de Deus, e fartamente discutido pelos comentadores). É preciso, de modo mais geral, provar que a clareza do entendimento humano exclui a possibilidade de que ela se comprometa em seus resultados em vista de fatores que ultrapassam o seu alcance, mas a prova oferecida só pode ser evidente para o entendimento humano, cuja clareza está de modo geral embargada pela constatação dos problemas decorrentes de sua finitude cognitiva. Como nos assegurar de que essa possibilidade inexiste, ainda nesse caso privilegiado, se sua eventual existência ser-nos-ia radicalmente invisível em virtude da natureza de nosso entendimento? Ademais, ainda que o cogito pretenda oferecer uma verdade a ser compreendida no mesmo sentido por todo e qualquer espírito que perfaça a mesma reflexão, a história das interpretações não mostra que essa evidência aparentemente inquestionável pôde se tornar fonte de disputas acirradas e intermináveis entre os comentadores dessa filosofia da clareza e da distinção? Pode-se alegar que, a despeito dessa disputa, existe a boa compreensão da prova, tal como a pensou o próprio filósofo. De todo modo, a disputa permanece em si mesma significativa se passamos, de uma filosofia voltada para a observação de como a certeza imediata do entendimento poderia instituir uma verdade, para outra voltada para o modo como aquilo que nos aparece instantaneamente como evidente deixa de assim nos aparecer se repomos essa evidência num percurso ao longo do qual o movimento paradoxal realizado pelo espírito humano em busca da verdade pode exibir suas fraquezas. Talvez se possa dizer que o recorte dos momentos isolados em que o entendimento conhece a certeza de sua existência surgiria, sob um olhar cético-montaigniano, como um expediente pelo qual se constrói uma imagem fantasiosa da natureza humana, recusando, afinal, precisamente aquilo que seria essencial para o aprofundamento de sua compreensão. Supor que uma determinada proposição (“eu sou, eu existo”) entendese exatamente no mesmo sentido por meio do ato de julgar em que ela se formula seria talvez, para Montaigne, contentar-se com uma apreen378

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são míope, que se sustentaria apenas se tal evidência se observasse a determinada distância. À medida, porém, que nos aproximarmos e convidarmos aquele que a compreende a expor o sentido exato em que o faz, não tardará a se manifestar a singularidade com que a cada vez ela é compreendida, de modo que a ação pela qual o juízo se explicita ao longo do tempo deverá incluir o reconhecimento da dissolução da evidência. De que vale deter esse movimento, alegando que as evidências mais claras não são passíveis de definições que não as obscureçam, se o que se questiona é a pretensão, por parte do filósofo dogmático, de conferir a essas evidências um poder cognitivo? Não significaria isso, em última instância, uma recusa em justificar essa alegação? Não faria ele o que Sexto condena no procedimento dogmático de oferecer hipóteses para deter a regressão infinita da justificação à qual ele se veria condenado66? O cogito não seria, nessa medida, capaz de abolir a natureza paradoxal com que o espírito se acerca de todos os seus conhecimentos: quão mais poderoso for ele, na busca de esclarecer o sentido exato da verdade que pretende ter encontrado, mais prontamente descobrirá que tal verdade não é tão clara e distinta quanto poderia parecer de saída. E, mesmo se aqui ele estivesse reduzido, para nós, a uma invisibilidade total, isso não excluiria a possibilidade de que um entendimento mais poderoso compreendesse onde ele se engana quando pensa ser absoluta a clareza da proposição, mesmo daquela pela qual ele compreende a necessidade de sua existência enquanto existe. 6.4. A epokhé em movimento

Uma conseqüência dessa leitura que cabe considerar à parte é a que se refere à posição de Montaigne sobre a epokhé e ao estatuto da própria discussão sobre o escopo da epokhé. Não seríamos aqui conduzidos a uma situação autocontraditória, na medida em que essa interpretação poderia ser objeto da mesma crítica que postula (uma vez que um exame mais agudo de sua consistência poderia, por definição, refutá-la)? Retomemos brevemente a exposição de Montaigne sobre a impos66. Ver HP I, 173; o mesmo tropo é retomado por Montaigne em 540-541. 379

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sibilidade de deter o progresso do espírito humano em sua busca da verdade, pela qual se revelam insustentáveis a posição de Teofrasto, ao pretender assinalar um limite para o cognoscível, e a posição dos filósofos da Nova Academia, em sua tentativa de oferecer, segundo Montaigne, um limite para a dúvida extrema dos pirrônicos67. É importante retomar agora os termos com que, depois de refutar o primeiro, mas antes de passar ao segundo, Montaigne inscreve sua contribuição pessoal no interior dessa progressão: [A] Tendo experienciado [essayé par experience] que aquilo em que um falhou, outro obteve, e que o que era desconhecido num século, o século seguinte esclareceu, e que as ciências e as artes não saem prontas da forma, mas se formam e se configuram pouco a pouco ao serem manejadas e polidas diversas vezes, como fazem os ursos ao lamberem seus filhotes. O que minha força não pode descobrir não deixo de sondar e de ensaiar e, ao novamente degustar e amassar essa nova matéria, mexendo-a e esquentando-a, eu disponho para aquele que me segue alguma facilidade, para dela fruir mais à vontade, entregando-a mais flexível e mais manejável… O tanto fará o segundo ao terceiro, o que é causa de que não deva desesperar, nem mesmo de minha impotência, que é só minha… (560-561). Vimos há pouco como a reflexão de Montaigne projeta uma espécie de ambivalência na atividade opinativa humana (particularmente no modo como nossas opiniões exibem sua diversidade), pela qual se pode considerá-las, ou bem segundo o entendimento que positivamente oferecem, ou bem segundo a verdade da qual, negativamente, se apartam. O texto acima também se presta a uma espécie de dupla leitura (que a própria ambigüidade dessa progressão apenas favorece, ao enfeixar numa única busca céticos e dogmáticos, e localizar, na passagem de um a outro, a contribuição mais pessoal do autor). De uma parte, Montaigne observa essa sucessão histórica como progressão rumo a uma “verdade” — que ele próprio, ao menos, não se pretende em condições de alcançar. Mas o mesmo relato, curiosamente, trata de um progresso de dimensão histórica e institucional, e o observa por um 67. Ver item 6.1 — “A extremidade da dúvida sob exame”. 380

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ângulo que o aproxima de posições epistemológicas advogadas no século XX (cuja origem é usualmente referida, de modo geral, a um autor quase contemporâneo de Montaigne, que é Francis Bacon): as ciências e as artes não se constituem com base em um “molde”, mas gradativamente, pelas mãos de vários que as manejam e lapidam, podendo ser indefinidamente substituídas, à medida que se tornam obsoletas em vista de alternativas descobertas ou coletivamente elaboradas, de um modo potencialmente infinito68. O ceticismo de Montaigne, a despeito de seu caráter extremo, não se pretende assim incompatível com o reconhecimento de um progresso, lastreado na “experiência” (domínio que, se não possibilita obtenção de verdades absolutas, surge, como vimos, na forma de uma alternativa de conhecimento mais viável que a razão). Isso depende do reconhecimento de um assentimento provisório a posições que, justamente por não representarem a posse da verdade, poderão ser sempre superadas por uma nova investida mais vigorosa de nossas faculdades cognitivas. Nesse sentido, o sentido do ensaio das matérias que escapam ao seu alcance não é meramente individual, mas possui uma contrapartida no âmbito dessa progressão mesma: o resultado provisório de seu trabalho pretende representar um passo a mais pelo qual ele julga avançar, em sua coerência, relativamente aos seus predecessores, sem contudo oferecer a última palavra. Ora, quando nos damos conta de que esse texto se refere, de certo modo, a si mesmo — uma vez que a “matéria” aqui amassada pelo juízo de Montaigne não é senão a própria interpretação do ceticismo, ou melhor, sua compreensão do resultado a que teria conduzido o progresso do espírito humano ao tentar formular coerentemente seu ceticismo — , torna-se visível uma segunda leitura. Além de designar o sentido da 68. Diversamente de Montaigne, porém, Bacon constitui seu método em vista da obtenção de um conhecimento verdadeiro das “formas” das coisas naturais. Contudo, como observa VILLEY (1973, p. 108-109), Montaigne parece se encontrar mais próximo desse último do que da filosofia cartesiana. Se aquilo que, para Montaigne, confere aceitabilidade a esse progresso, seja em que sentido for, é a colaboração dos vários julgamentos na sua própria constituição, trata-se justamente do que Descartes tende a recusar como causa da imperfeição na construção das ciências em geral (cf. Discurso do método, segunda parte, p. 11). 381

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investigação específica realizada pelos Ensaios (no contexto mais geral da investigação humana da verdade), essa passagem oferece-nos também algo acerca da contribuição que Montaigne pretenderia dar, segundo seu entendimento pessoal, para o esclarecimento da possibilidade de oferecer limites ao espírito humano, não apenas no que tange ao progresso rumo à verdade (que afinal não se encontra), mas no reflexo invertido dessa mesma discussão, que é o progresso da coerência na formulação de um diagnóstico cético sobre a ignorância da verdade. E qual seria essa contribuição? Ela não nos parece ser outra que a de sustentar que toda e qualquer resposta positivamente dada ao problema de formular coerentemente o posicionamento cético (por mais que se situe numa posição superior, de modo geral, ao filosofar dogmático) deve também ser tida como apenas mais uma estação provisória num progresso conceitual potencialmente ilimitado que, se for levado ainda além, não deixará de mostrar os limites do que fora anteriormente aceito. Isso não significa que não haja, eventualmente, razão para aceitar essa resposta — mesmo que se trate de uma razão negativa, dependente de uma avaliação comparativa com a coerência interna de outras formas de compreender o mesmo problema —, mas sim que tal aceitação é forçosamente provisória e não exclui sequer a possibilidade de que ela simplesmente deva coexistir com respostas providas do mesmo grau de plausibilidade. Se assim for, que sentido poderá haver na questão sobre o escopo da epokhé — ao menos no que tange à interpretação montaigniana do ceticismo? Parece-nos que tal ceticismo justificaria, em certa medida, considerações como as de Jonathan Barnes acerca desse ponto, ainda que por razões diversas da que ele oferece. Esse comentador assinala que a própria questão sobre o escopo da epokhé não faz sentido, na medida em que o ceticismo se pretende fundamentalmente uma terapia antidogmática e produz argumentos cujo poder de persuasão é variável e se adapta à precipitação do filósofo a que se dirige69. Diría69. Ver BARNES, 1982, p. 19: “Quanta epokhé precisa alguém para sua ataraxía ou saúde mental?… Claramente, isso depende da doença…”. Consideraremos no capítulo seguinte alguns aspectos de como a dimensão terapêutica do ceticismo se reflete nos Ensaios. 382

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mos, de nossa parte, que Montaigne não parece pretender simplesmente “negar sentido” à questão — pois não parece ser tampouco o caso de impor limites ao espírito humano aqui, quando se busca compreender o limite em que pode reconhecer a incapacidade de conhecer a verdade. Do ponto de vista da alternativa corrente, teríamos antes razão, como vimos, para considerar que Montaigne esposa um ceticismo “rústico” potencial, cercando-o de cuidados que evitariam a espécie de crítica que Burnyeat dirige ao ceticismo antigo (como a distinção entre o escopo da dubitabilidade das proposições disponíveis e o da viabilidade prática de uma dúvida extrema). De todo modo, parece-nos que esse esquema interpretativo tem alcance limitado para a compreensão do que ocorre. O fundamental, aqui, é assinalar que tal questão sobre o escopo da epokhé poderia nos induzir a uma resposta que, do ponto de vista do ceticismo em questão, caberia avaliar, em alguma medida, como dogmática70. Em suma, o problema fundamental a ser contornado residiria na pretensão de oferecer a “boa resposta”, a compreensão definitiva e acabada dos limites de nosso conhecimento. É importante frisar que isso não significa, contudo, nenhum relativismo, pois não se trata de negar que o juízo possa comparar qualitativamente diferentes interpretações e levar em consideração os problemas que geram quando pretendem descrever tais limites, mas sim que cada uma delas será o produto da ação de um entendimento particular, segundo seu alcance limitado e relativo, de antemão sob suspeita pelo modo como eclipsa, nalgum grau, por meio da própria “aparência de clareza e de verdade” que oferece, a possibilidade de sua revogação por outra resultante de uma inspeção mais aguda71. 70. Ver item 5.1 — “O ceticismo como gênero filosófico”. Procuramos ali sustentar que Montaigne lê o ceticismo como um gênero filosófico compatível, ao menos em princípio, com um número indefinido de interpretações acerca de como conciliar coerentemente, pela prática efetiva, a epokhé e a inserção na vida comum. 71. Concluindo o ensaio “Dos coxos” (III, 11), Montaigne escreve: “[B] Ogni medaglia a suo riverso. Eis por que Clitômaco dizia antigamente que Carnéades tinha superado os trabalhos de Hércules, por ter arrancado o consentimento dos homens, isto é, a opinião e a temeridade de julgar. Esta fantasia de Carnéades, tão vigorosa, nasceu, na minha opinião, do despudor daqueles que professam saber, e da sua arrogância desme383

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No que tange a esse ponto particular, a compreensão montaigniana do ceticismo pode ser favorecida por elementos a um só tempo históricos e filosóficos. Os textos de Sexto Empírico referem-se à epokhé como uma noção bastante clara e precisa, que poderia ser formulada adequadamente de várias maneiras, a despeito dos equívocos interpretativos por parte dos dogmáticos que, muitas vezes, propuseram objeções meramente verbais, em torno das palavras empregadas pelo cético. Em resposta, Sexto tece diversas considerações sobre o sentido que pretende imprimir às diversas frases que emprega para apresentar a suspensão, de um modo deliberadamente vago e indiferente. Diz ele, por exemplo, sobre a “não-asserção”: “Aqui também nós não brigamos meramente em torno das palavras, nem investigamos se as frases tornam, elas mesmas, as coisas claras por natureza, mas, como disse, as usamos indiferentemente…” (HP I, 195). E, algumas linhas acima, ele esclarece o sentido dessa vagueza: “Nossa intenção é a de deixar claro o que nos aparece e somos indiferentes quanto a qual frase usar para deixar isso claro…” (HP I, 195). Montaigne, contudo, a despeito do modo cuidadoso como procura fazer justiça aos textos pirrônicos, não deixa de assinalar que, ainda assim, eles lhe parecem eventualmente portadores de alguma dificuldade: “[C] Eu exprimo essa concepção [a saber, a filosofia cética] o tanto que posso, porquanto vários a acham dida… Assim ocorreu na escola da filosofia: o orgulho daqueles que atribuíam ao espírito humano a capacidade de todas as coisas causou, noutros, por despeito e emulação, a de que ele não é capaz de nada. Uns têm a ignorância na mesma extremidade que outros têm o saber [science], a fim de que não se possa negar que o homem seja sempre imoderado, e que ele não tem parada [arrest] senão diante da necessidade e da impossibilidade de ir além” (III, 11, 1035). Como bem observou TOURNON (1986, p. 80), não se trata aqui de uma recusa tardia do pirronismo, como supuseram Villey, Armangaud e Limbrick, uma vez que a condenação é dirigida não a um pirrônico, mas a Carnéades (interpretado aqui segundo a visão sextiana da filosofia acadêmica, isto é, defendendo a tese de que a verdade é incognoscível). Mas a suposta crítica a Carnéades não é desprovida de ambigüidade, pois a “imoderação” desse filósofo justifica-se pela desmedida da opinião contrária (à qual se faz corresponder, aliás, a dimensão dialética de seu ceticismo). Porém, o modo como o comentário de Montaigne exibe sua tentativa de equacionar a pretensão humana de encontrar verdades e a compreensão da fraqueza da razão pode significar, paradoxalmente, que é ela que se pretende afirmar como intrinsecamente provisória, resultante de uma impossibilidade de ir além. 384

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difícil de conceber, e os autores mesmos a representam um pouco diversamente e obscuramente…” (505). Como compreender essa ressalva? Talvez ela pretenda ressaltar o caráter relativo de sua compreensão do problema — e mostrar o quanto sua visão porta de “turvo e embaçado” diante desse panorama, a despeito da coerência que nele encontra. Uma razão particular para tal precaução seria derivada, como vimos, de sua consciência de lidar com uma filosofia que se pretende pura prática intelectual, da qual a linguagem se emprega sobretudo como um instrumento; são, porém, apenas os textos que restam como os vestígios sabidamente pálidos dessa prática, que o seu próprio século só pode reconstituir pela estatura do juízo dos homens que nele habitam. Outra possível razão residiria em como a reflexão cética de Montaigne lança uma desconfiança particular sobre a capacidade da linguagem humana de transmitir univocamente verdades, pelas razões vistas há pouco. Se ele não pretende que os conceitos pirrônicos estejam colados numa formulação definitiva e intocável, isso não o exime de um trabalho interpretativo quando se trata de reconstruir essa filosofia no nível de sua experiência e sua reflexão pessoal. Assim, embora o pirronismo seja, para ele, a filosofia que levou ao limite a constatação da ignorância humana, sua interpretação é especialmente atenta às suas relatividade e particularidade. Isso nos chama a atenção para o modo como são estreitamente aproximados, pelo ceticismo de Montaigne, o problema de explicar nossa situação de impossibilidade de reconhecer a verdade e o problema de interpretar as respostas oferecidas para resolver o problema. Parece-nos significativo que o termo “interpretação”, nos Ensaios, possa tanto designar o trabalho de elucidação do sentido original de um texto72 como a simples investigação de determinado problema teórico (envolvendo a inspeção daquilo que os diversos autores escreveram sobre o tema). Nesse segundo sentido, por exemplo, ele afirma, no início da “Apologia”, acerca do problema de saber se é verdade que toda a virtude se origina do saber, e o vício da ignorância: “… [Saber] se isso é verdade é assunto de uma longa investigação [interpretation]…” (438A). 72. Ver, por exemplo, várias ocorrências em III, 13, 1067-1069. 385

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Parece-nos igualmente significativo que Montaigne empregue o recurso da alegoria para descrever a situação paradoxal do homem e, ao mesmo tempo, assim se refira (em continuação à passagem extraída do ensaio “Dos livros”, que citamos no item anterior) à multiplicidade de sentidos que intrinsecamente as alegorias, de modo geral, contêm: [A] Quando me decepciono com o Axíoco, de Platão, [que me parece] uma obra sem força, tendo em vista um tal autor, meu juízo não se crê em si mesmo: ele não é tão tolo de se opor à autoridade de tantos juízos famosos [C] e antigos, que ele toma como seus regentes e seus mestres, e com os quais ele é antes contente de faltar. [A] Ele se considera a si mesmo, e se condena, ou de se deter na superfície, não podendo penetrar até o fundo, ou de observar a coisa por algum falso lume. Ele se contenta de apenas se garantir contra a perturbação [trouble] e o desregramento; mas quanto à sua fraqueza, ele a reconhece e a confessa de bom grado. Ele pensa dar justa interpretação às aparências que sua concepção lhe apresenta, mas elas são fracas e imperfeitas. A maior parte das fábulas de Esopo têm vários sentidos e inteligências. Aqueles que as alegorizam [mythologisent] escolhem algum aspecto que se enquadra bem na fábula, mas para a maior parte é apenas o aspecto primeiro e superficial; há outros mais vivos, mais essenciais e internos, nos quais eles não souberam penetrar: eis como eu faço… (II, 10, 410). Embora a última afirmação — “eis como eu faço” — possa talvez sugerir que Montaigne se atém apenas ao sentido superficial dos textos, essa leitura não se sustenta em vista do modo como ele constrói seus textos, empregando, pelo contrário, o paradoxo como meio de conduzir o leitor a superar seu sentido superficial. Trata-se, porém, de salientar que cada interpretação oferecida, por mais que se aprofunde no exame de um problema, está cingida pelos limites relativos do juízo daquele que interpreta. Decorreriam, porém, dessa posição algumas conseqüências que importa assinalar. As dificuldades assinaladas por Montaigne relativamente à explicação dos limites de nosso entendimento parecem, em certa medida, projetar-se, de modo auto-referente, sobre si mesmas: se o entendimento é tido como permanentemente possuidor de uma potencial opacidade mesmo quando se volta para o problema de com386

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preender os limites de nosso entendimento, ela não acaba por se projetar nessa compreensão do problema? Tal resposta, em sua particularidade, seria sempre uma imagem “fraca e imperfeita”, por comparação àquela produzida por um juízo possuidor de presas capazes de arrancar das coisas, se não uma “verdade”, uma imagem desta mais capaz de passar num sentido invariável de mão em mão. Mais ainda, o fato de que tal problema seja, de modo geral, da ordem da interpretação, faz com que, caso essa leitura seja aceitável, ele se alastre inevitavelmente pela rede das interpretações acerca do próprio texto de Montaigne (isto é, da reconstrução da posição do problema de oferecer uma formulação dos limites de nosso conhecimento tal como compreendido por Montaigne em seus textos). Isso significa que os diversos argumentos e exames destinados a exibir a leitura que Montaigne empreende da filosofia cética, muito embora não se esvaziem de significado, não podem ser tomados como convergentes para uma conclusão segundo a qual estaríamos diante da verdadeira interpretação do problema. Como compreender tais conseqüências paradoxais? Não são elas, no que tange à interpretação do texto de Montaigne, conformes às demais passagens em que, como vimos no capítulo IV, ele repele por antecipação os leitores que pretendam conhecê-lo tal como verdadeiramente foi73? Isso não significa, por certo, que ele mesmo não entenda ser essa estratégia relativizadora, a despeito de ser a sua interpretação compatível com a coerência própria que ele pensa estar disponível nos próprios textos em que os pirrônicos oferecem o seu diagnóstico de nossa incapacidade de conhecer a verdade. Parece-nos, assim, que não se trata nem de reconhecer uma contradição que conduza à recusa das interpretações, nem mesmo de produzir um relativismo geral. Montaigne não pretende negar, como vimos, que o entendimento disponha de exigências próprias para bem proceder, hauridas do modo como se move na direção do reconhecimento da verdade (ainda que não possamos estabelecer quais sejam elas e que não viabilizem, de fato, o reconhecimento de uma verdade plenamente compatível com elas). A 73. Ver, por exemplo, III, 9, 982-983 B; texto examinado no item 4.1 — “Retórica do paradoxo”. 387

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natureza paradoxal dessas conseqüências apenas sublinha o fato de que de modo geral nosso entendimento não pode reconhecer verdades, e isso se aplica também às próprias formulações que o cético oferece de sua filosofia. O paradoxo serve aqui, noutras palavras, para atualizar o esclarecimento que Sexto Empírico oferece acerca do uso cético da linguagem, um uso vago, transitório, esvaziado de poder assertivo, e todavia preciso. Mais exatamente, Sexto esclarece que as expressões céticas aplicam-se sobre si mesmas e, com as proposições dogmáticas que pretendem neutralizar, elas são eliminadas tal como os purgantes são expelidos com os humores que pretendem purgar74. Ademais, a admissão de que cada formulação de nossa incapacidade de encontrar a verdade, por sua simples positividade, está sujeita a ser superada por um esforço superior, ainda que sempre relativo e limitado, de um entendimento humano que é incapaz de entender plenamente seus próprios limites, parece ser conforme à interpretação montaigniana do pirronismo como uma prática incessante da dúvida, pela qual cada proposição obtida pode ser indefinidamente submetida a uma nova refutação — aí compreendida a posição apresentada por esses mesmos céticos75. Observar, porém, que essa marcha ilimitada se faz à sombra da natureza paradoxal do entendimento humano permite-nos chamar a atenção para aspectos aparentemente secundários, mas não menos importantes, do texto de Montaigne. Eis, por exemplo, como ele apresenta seu veredicto acerca da coerência da crítica dos pirrônicos ao veri similis acadêmico: “[A] A opinião dos Pirrônicos é mais ousada e, na mesma medida, mais verossímil…” (561; itálico nosso). Por certo, esse emprego paradoxal do conceito acadêmico, ora criticado, na formulação do juízo pró-pirrônico, ora aceito, como parte da apresentação da posição pirrônica, não há de ser gratuito, mas é igualmente evidente que ele tampouco pode visar uma recusa da coerência da crítica pirrônica — a despeito da dificuldade e da estranheza dessa posição extrema, “que não pode, na verdade, alojar-se em nossa imaginação senão com dificuldade…” (ibid.). O que concluir, senão que o 74. Ver HP I, 206. 75. Ver 504-505B. 388

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paradoxo é, nalguma medida, o preço a pagar pela forma como essa maior coerência, de todo modo, se impõe? Noutros termos, precisamos assentir à coerência do ceticismo extremo mesmo que tendamos irremediavelmente a admitir certas proposições como mais verossímeis que outras (“a neve é branca” por oposição a “move-se a oitava esfera”) e sejamos incapazes de nos opor a essa evidência. Não nos permite isso, afinal, melhor compreender o sentido da conclusão condicional dessa discussão? “A posição mais segura de nosso entendimento… seria aquela em que ele se manteria calmo, reto, inflexível, sem abalo nem agitação…” (562B). A lição a extrair aqui, quanto à fraqueza do entendimento humano, é a de que o esforço pelo qual ele se move para compreender seus limites acaba por conduzi-lo, em última instância, à imobilidade: podemos encontrar argumentos inteiramente claros que revelam a impropriedade das proposições mais evidentes, mas não por isso nos tornamos capazes de compreender as conseqüências a que, em última instância, eles nos conduzem. O próprio ceticismo, devidamente compreendido, acabaria por mostrar que, levada às últimas conseqüências, a tentativa mais coerente de compreender os limites do entendimento humano acabaria por nos conduzir a um paradoxo, que refletiria a própria paralisia do entendimento. Tal é, como vimos, o sentido do percurso do ensaio sobre “Como nosso espírito se enreda a si mesmo” (II, 14). Embora a posição mais extrema e mais coerente nos ensine que a “impressão de clareza e verdade” é sempre duvidosa, não pode deixar de nos aparecer como portadora dessa mesma impressão de verdade76. 76. Um outro exemplo da mesma imobilização do entendimento — entre o que se impõe como verossímil e o reconhecimento da falta de fundamento do verossímil — manifestar-se-ia no lema “que sei eu?”. Essa fórmula, com que Montaigne autografa sua compreensão do ceticismo, é por ele apresentada como opção (que ele adota pela clareza) àquilo que igualmente se oferece pelo paradoxo do mentiroso ou pelo modo como a metáfora purgativa cética pretenderia neutralizar plenamente a dimensão assertiva da linguagem (v. 527B). Nela encerrar-se-ia outra tradução da mesma epokhé, a um só tempo mais radical e mais coerente, dos pirrônicos: mesmo que todas as proposições humanas estejam marcadas, em sua simples assertividade, pela precariedade, sou normalmente incapaz de compreender, pela finitude do entendimento, em que sentido elas se comprometem. 389

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Significaria isso que o ceticismo é incoerente? Apenas se fosse possível tomar esse impasse como portador de alguma verdade capaz de suplantar tal diagnóstico da condição humana. Mas, ao contrário, o ceticismo, assim compreendido, mostra que, embora não possamos abrir mão de nossa pretensão de mirar a verdade e obter uma coerência última e absoluta no entendimento que possuímos das coisas, a resposta mais coerente que a filosofia pode oferecer, no ponto extremo a que alcança sua investigação (ainda que por seu viés negativo), é sempre portadora de uma coerência imperfeita e relativa. Nossa condição é a dos cães de Esopo, posto que a sabedoria humana não atinge os fins que prescreve para si e prescreveria outros além caso os atingisse77. Eis como, afinal, a epokhé pirrônica, entendida como “fim” em vista do qual os céticos filosofam, parece ser aqui reeditada na forma de um paradoxo — que contribui para ressaltar a natureza essencial do próprio percurso, isto é, do movimento pelo qual o espírito se lança ainda além para constatar que mesmo a última resposta que ele consegue oferecer demonstra sua própria limitação e contemplar, num sentido aprofundado, a conclusão paradoxal de Plínio, o Antigo: “Nada é tão certo quanto a incerteza, e nada mais miserável e orgulhoso do que o homem”. É a mesma consciência, afinal, de que não está ao alcance do homem suprimir plenamente sua condição vaidosa e ilusória que se exprime nesta passagem com que encerra o capítulo “Da vaidade”: [B] Se os outros se observassem atentamente, como faço, eles se achariam, como eu, cheios de inanição e tolice. Desfazer-me disso não posso sem me desfazer de mim mesmo. Nisso estamos todos mergulhados, tanto uns quanto outros; mas aqueles que o percebem [sentent] levam isso um pouco melhor em consideração, é o que ao menos sei. Essa opinião e uso comum de observar o que se passa alhures, que não em nós, foi bem propícia às nossas necessidades. [O homem] é um objeto cheio de descontentamento, não vemos aí senão miséria e vaidade. Para não nos desconfortar, a natureza voltou, bem a propósito, a ação de nossa vista para fora. Nós avançamos e nos extraviamos, mas voltar nossa corrida em direção a nós mesmos é um movi77. Ver III, 9, 990, passagem citada no item anterior. 390

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mento difícil: o mar se agita e se abate contra si mesmo quando reflui… Era uma ordem paradoxal aquela que nos dava antigamente esse Deus de Delfos: olhai em vós, reconhecei-vos, atei-vos a vós mesmos; vosso espírito e vossa vontade, que se consome alhures, trazei-a para vós; esgotai-vos, mostrai-vos, aplicai-vos, sustentai-vos: vós sois traídos, dissipados, roubados de vós mesmos… É sempre vaidade, dentro e fora, mas é menos vaidade quando é menos extensa. Afora ti, ó homem, dizia esse Deus, cada coisa é a primeira a se estudar e, segundo suas necessidades, põe limites a seus trabalhos e desejos. Não há delas uma única que seja tão vazia e carente quanto tu, que abraça o universo: tu és o escrutador sem conhecimento, o magistrado sem jurisdição e, apesar de tudo, o bufão da farsa… (III, 9, 1000-1001).

6.5. Uma atitude cética

Eis aqui um ceticismo peculiar, cuja linhagem “radical” nos auxilia a compreender, em contrapartida, a radicalidade da empresa cartesiana de reconstituição da ciência, ao mesmo tempo em que nos provê de elementos para examiná-la criticamente. Por mais que a “Apologia” nos ofereça problemas epistemológicos afins aos que serão discutidos por Descartes e Locke, certamente Montaigne não almejou produzir uma epistemologia como a que quiçá encontramos nesses filósofos. Pela ótica de seu ceticismo, ambas as tentativas de explicar a origem dos conhecimentos humanos estariam comprometidas não apenas por seu pressuposto básico, mas porque certamente representariam exemplares de uma “extrema ciência”, da qual os pirrônicos, como Montaigne, duvidam que o homem seja capaz (v. 502A). Se podemos chamar sua reflexão de epistemológica, ela se volta contra a pretensão do estabelecimento de limites à atividade dubitativa, sobretudo diante das teorias epistemológicas, e à constatação de que não podemos, em última instância, explicar por que, a despeito do caráter universalmente dubitável de nossos conhecimentos, assentimos a alguns como aparentemente indubitáveis, e somos conduzidos a agir e escolher em vista de nossas necessidades. Se explicação há, não pretende almejar o estatuto de conhecimento, mas limita-se à constatação de que somos parte de 391

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uma natureza que transcende indefinidamente nossa capacidade de conhecê-la, que nos oferece “pés para andar e também prudência para nos guiarmos na vida” (cf. III, 13, 1073), e oferece, ao nosso corpo e à nossa alma, perfeitas condições de uso, desde que nela não imiscuamos nossa “opinião de saber” (III, 13, 1026). Como diz ele, pretender explicar as coisas tal como nos aparecem é comprometer a sua fruição: O conhecimento das coisas pertence somente àquele que tem a condução das coisas, não a nós, que apenas as recebemos passivamente [qui n’en avons qui la souffrance] e das quais temos um uso perfeitamente pleno, segundo nossa natureza. O vinho não é mais agradável àquele que conhece suas faculdades principais. Ao contrário, o corpo e a alma interrompem e alteram o direito que temos de uso do mundo, aí imiscuindo sua pretensão de ciência. Determiná-la e sabêla, como provê-la, pertencem à regência e à mestria; à inferioridade, sujeição e aprendizagem pertencem o fruir e o aceitar (III, 13, 1026). Mas isso não significa que a situação desse cético seja a de uma mera passividade ante o que lhe aparece: não apenas porque ele é conduzido a agir, ainda que ignore o modo como a natureza o move a tanto, mas porque seu ceticismo lhe oferece diretrizes para refletir sobre sua ação, em virtude da imagem naturalizada de nossas faculdades cognitivas propiciada por tal reflexão. Uma parte dessas conseqüências já foi apresentada ao longo deste trajeto. Vimos que o cético, abdicando de uma imagem fantasiosa do poder da razão, pode ser levado a uma particular atitude de tolerância, e desenvolver especial atenção ao modo como cada qual raciocina com base em seus pressupostos e em sua capacidade individual. Igualmente, vimos que a consideração atenta de nossa experiência cotidiana, em particular de nossos juízos, nos deveria conduzir, na medida em que pudéssemos usar nossa experiência como uma ocasião para agir diversamente no futuro, a moderar nosso assentimento àquilo que nos parece verdadeiro (sabendo que tal assentimento é intrinsecamente relativo e provisório), bem como, por razões semelhantes, a desconfiar da plausibilidade daquilo que, por sua novidade, nos atrai de modo particular. Mas essa mesma reflexão, ao chamar a atenção para o modo como nosso juízo carrega continuamente consigo a crença em seu “bom sen392

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so” e em sua capacidade de conhecer a verdade, pode também conduzir a uma apreciação diversa das ocasiões em que ele se engana: [B] Quem se recorda de ter sido tantas e tantas vezes enganado por seu juízo não é um tolo de nunca dele desconfiar? Quando eu me acho convencido pela razão de outrem acerca de uma opinião falsa [que eu sustentava], eu não aprendo tanto o que ele me diz de novo, bem como esta ignorância particular (seria uma pequena aquisição), eu aprendo, em geral, minha fraqueza, e a traição do meu entendimento, de onde tiro a reforma de toda a massa. Em todos os meus erros ajo da mesma maneira, e percebo que essa regra tem grande utilidade para a minha vida… (III, 13, 1074). Da mesma constatação de ser enganado por seu juízo (mesmo no que pode parecer mais certo e indubitável), Descartes extrai, logo no início da Primeira Meditação, uma conclusão sobre a natureza duvidosa de tudo aquilo que tomara por verdadeiro, ante a falta de um critério diverso; para enfrentar esse problema, iguala metodicamente o duvidoso ao falso, para melhor detectar um critério de verdade capaz de superálo definitivamente (uma vez que poderia reconhecer ao menos algumas certezas como irrecusáveis). Porém, vemos aqui que essa decisão metódica seria equivalente a esmagar a dimensão da utilidade prática que, num plano moral, Montaigne pretende extrair de tal constatação nas ocasiões em que ela se oferece: “a reforma de toda a massa”. Tal conseqüência se vincula aqui ao sentido particular que ganha a denúncia da precariedade do juízo: esta não se manifesta apenas na apreensão da verdade, mas também no conhecimento de sua própria falibilidade, mascarada pelo fio de coerência com que amarra o conjunto de seus movimentos. Essa passagem é também oportuna para observarmos como tal atitude, ao mesmo tempo em que assume que tal será permanentemente a situação de nosso juízo, deve sempre, no que respeita a sua utilidade, se ancorar num evento particular que propicie tal exame: mesmo que nenhuma impressão de verdade possua garantia de objetividade, é a oportunidade inesperada de observar por um ângulo diverso alguma dessas impressões que se tinha como provisoriamente admitida — “quando eu me acho convencido pela razão de outrem acerca de uma opinião falsa [que eu sustentava]”. Dá-se assim a ocasião de um 393

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movimento reflexivo, pelo qual se busca detectar onde, sem sabermos exatamente, a rede de coerência que criamos para apreender o conjunto dos fatos revelou-se falha. Isso não conduz, evidentemente, a um pleno abandono de todas as crenças que poderiam ser assumidas como duvidosas, o que seria impossível (como Descartes perceberia) e inútil (quanto às conseqüências práticas que aí enxerga Montaigne). Conduz, em vez disso, à tentativa de uma reacomodação do conjunto de modo tal que se possa revelar mais “útil para a vida”. Permanecem aqui distintas, até o final, a questão da utilidade que teria a admissão de crenças para a vida prática e a questão de seu poder cognitivo para representar objetivamente a realidade, analogamente ao modo como a aceitação do poder do costume, mesmo em vista da sua “utilidade” para a vida, não equivale a considerá-lo critério de conhecimento. Por mais, como vimos, que o costume obste a ação do juízo e mascare a verdadeira natureza das coisas, Montaigne nele detecta aspectos úteis, de um ponto de vista prático, sem confundir os registros com que o observa: Eu sou grato à fortuna que ela me assalte tão freqüentemente com o mesmo tipo de armas: ela me forma e me prepara pelo uso, me curte e me habitua… O acostumar-se me serve também a melhor esperar para o futuro, pois a condução dessa colheita tendo continuado por tanto tempo, cabe crer que a natureza não mudará seu andamento e não ocorrerá pior acidente que aquele que eu já sinto… (III, 13, 1092B)78. Por ainda outra razão essa passagem evoca a filosofia cartesiana: para Descartes, o modo como a irresolução nas ações é incompatível com a vida feliz suscita a adoção de certos princípios, constitutivos de uma moral provisória79. Deveríamos também aqui ver um antecedente da filosofia cartesiana? Tivemos mais de uma ocasião de aproximá-la de Montaigne no que tange à admissão, ao menos provisoriamente, de uma esfera de “certezas práticas”; mas importa aqui não tanto assinalar que tal esfera tem uma extensão diversa em ambas as filosofias, e se 78. Ver também as análises sobre a noção de natureza e o modo como se confunde com o costume, no item final do capítulo III (3.4 — “A opacidade dos fenômenos”). 79. Ver Discurso do método (DM), Terceira parte, p. 22 ss. 394

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relaciona diversamente com a possibilidade de dispor de certezas de outra natureza, teórica e definitiva, capazes de iluminá-las e de servir, nalguma medida, de cânone para a avaliação de seu estatuto. Sobretudo, cabe ressaltar que o rendimento filosófico que se extrai do caráter provisório das certezas é muito diverso nos dois casos. Ainda que Montaigne associe sua postura cética a uma espécie de dificuldade pessoal de tomar decisões práticas (que ele confessadamente relaciona a suas tendências circunstancialmente conservadoras), isso se concilia com uma prática permanente, ao longo dos Ensaios, de observar continuamente a isosthéneia, o equilíbrio que facilmente se estabelece entre as razões contrárias, mesmo relativas às ações humanas, conciliando-a com seu modo de agir na prática. No mesmo passo em que identifica a irresolução como um defeito “pessoal”, incômodo nos afazeres mundanos, mas favorecido pelas razões que podem facilmente apoiar lados opostos80, isso se configura, para ele, como ocasião não de imobilidade, mas de reflexão sobre as condições da ação: seja para convidá-lo a desconfiar do poder de persuasão com que a novidade tende a se impor81, seja para melhor discernir as razões que podem contar em favor de cada ponto, ainda que a decisão acabe se impondo pela necessidade de agir, que casualmente a conduzirá: [B] Eu sei bem sustentar uma opinião, mas não sei escolher… [A] Assim, eu preservo a dúvida e a liberdade de escolher até o momento em que a ocasião me pressiona. E então, para confessar a verdade, eu lanço freqüentemente a pluma ao vento, como se diz, e me abandono à mercê da fortuna: uma inclinação ou circunstância bem leves me carregam… A incerteza de meu julgamento é tão igualmente balançada na maior parte das ocorrências que eu subscreveria de bom grado a decisão da sorte e dos dados… (II, 17, 655). No caso de Descartes, a provisoriedade parece apenas constituir um meio de delimitar uma esfera de problemas que filosoficamente podem ser deixados em segundo plano, enquanto para Montaigne tal situação é permanentemente objeto de exame na particularidade própria com 80. Ver II, 17, 645A. 81. Ibid., 654-655. 395

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que se apresenta. Desse modo, a observação da natureza intrinsecamente provisória das certezas disponíveis articula-se com o papel positivo e diferenciado que a própria noção de ação ganha em sua filosofia. Quando o costume conduz, pelo que vimos, a uma adesão “externa” a certas crenças, opera uma espécie de razão prática, capaz de avaliar o peso circunstancial das opiniões relativamente aos interlocutores particulares que se tem em vista. O modo como essa reflexão descortinou a natureza paradoxal do juízo humano permite-nos agora ver com mais clareza que se desenha, também no âmbito de suas conseqüências práticas, uma cisão entre o trabalho realizado pelo juízo humano e o modo como, à sua revelia, a natureza se impõe. Pois, embora possamos criticamente tentar perseguir o fio das impressões de verdade que o juízo enreda, o modo como casualmente nos deparamos com a possibilidade de perceber seu erro constitui uma ocasião oportuna para rever “a massa” de suas ações. Isso parece estar em consonância com as diversas passagens em que Montaigne oporá, de modo mais geral, as exigências relativas ao domínio da ação, tal como se impõem por si mesmas, àquilo que nosso espírito pode nos revelar acerca das coisas. [B] E as opiniões da filosofia, elevadas e admiráveis, acham-se ineptas ao exercício. Essa aguda vivacidade da alma, eessa volubilidade adaptável e inquieta perturba nossas negociações. É preciso manejar as empresas humanas mais grosseira e superficialmente, e nela deixar boa e grande parte aos direitos da fortuna. Não é necessário esclarecer os afazeres tão profundamente e sutilmente. Perdemo-nos na consideração de tantos lumes e formas diversas… (II, 20, 675). Não faltam nessa passagem que se refere à filosofia em geral elementos que delineiam o perfil da investigação cética, voltada à exibição dos “lumes e formas diversas”, das razões favoráveis e contrárias a uma possível conduta. Mas o ceticismo está associado não apenas diretamente à plena fruição das coisas, mas também à compreensão de como a ação humana está inexoravelmente submetida ao acaso (de um modo que deve ser positivamente levado em consideração quando se tratar de ponderar sobre como agir). No ensaio “Da incerteza de nossos juízos”, por exemplo, Montaigne contrapõe diversos raciocínios e exemplos opostos (relativamente à situação de guerra), para concluir: 396

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Assim, nós bem nos acostumamos a dizer com razão que os eventos e resultados dependem, notadamente na guerra, por sua maior parte da fortuna, à qual não quer se acomodar e sujeitar a nosso discurso e [nossa] prudência… Mas, a bem considerar, parece que nossos conselhos e deliberações dependem dela igualmente, e que a fortuna engaja em seu tumulto e [sua] incerteza igualmente nossos raciocínios… (I, 47, 286).

Cabe, assim, novamente concluir que aquilo que mais superficialmente pareceria uma crítica é na verdade um meio de precisar indiretamente o estatuto com que os “fatos” e a natureza se impõem a nós, diante de nossa precariedade cognitiva. O ceticismo nos convida assim a abandonar a pretensão de encontrar uma plena justificativa racional das possibilidades de ação que se apresentam, e nos convida à consideração, também aqui, de nossa finitude cognitiva e de nossa tendência a nos extraviar em nossas miragens racionais. “Vale bem mais para nós deixarmo-nos conduzir sem inquirir, segundo a ordem do mundo…” — diz Montaigne, ao concluir a apresentação do critério cético para a ação82. Nos textos mais tardios, ainda, o acesso à “natureza” como critério de ação é mediado pelo reconhecimento de nossa incapacidade de abarcá-la: “[B] Deixemos um pouco a natureza agir: ela entende melhor de seus assuntos do que nós…” (III, 13, 1088)83. Trata-se de considerar, em suma, como o próprio desenrolar dos fatos (que sempre ultrapassam nossa capacidade de abarcá-los) pode servir como uma espécie de lastro capaz de trazer nosso espírito de volta às coisas. Embora essa mesma idéia se apresente já nos ensaios mais antigos, podemos ver como o posicionamento cético de Montaigne acaba por lhe dar forma e estatuto filosófico próprio — seja no que se refere à ênfase com que a própria filosofia será vista como exercício concreto do juízo, seja no sentido mais amplo em que nossa própria ação é tida como capaz de produzir os parâmetros pelos quais há de se nortear nossa 82. Ver 505-506. 83. Ver igualmente III, 13, 1073, em que a recusa das imagens falsificadas que os filósofos propõem da “lei geral do mundo” dá lugar a um elogio à adesão à natureza em sua “simplicidade” própria. Sobre o mesmo problema, ver, de modo geral, o ensaio III, 12. 397

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conduta: “[B] Eu não almejo nenhum outro fruto, agindo, que o de agir, e não o amarro a longas seqüências e projetos: cada ação faz particularmente seu jogo…” (III, 9, 792)84. Porém, esse “retorno esclarecido” ao mundo da ação propugnado pelo ceticismo vem acompanhado da atribuição de um sentido próprio à atividade intelectual. Diríamos que o papel da reflexão, desse ponto de vista, é tanto o de desenvolver o pleno uso de nossas faculdades — aí compreendida, por exemplo, a “formação do juízo”, tal como considerada no item anterior — como o de propiciar uma revisão iluminadora de “certezas práticas” — provenientes da “natureza” ou do “costume” — que se impõem individualmente como objeto de adesão, segundo sua utilidade. Se a dúvida cética pode abarcar de direito todas as opiniões, a prática da dúvida pode se converter num recuo reflexivo (tanto na política como, em sentido amplo, na moral), pelo qual é possível se distanciar e observar provisoriamente as inclinações que enfeixam um sentido determinado da ação. Nessa medida, o ensaio do juízo converte-se num esforço prudente, destinado a discernir onde sua permanente clareza esconde perigosamente uma falsa impressão de conhecimento das coisas. 84. O tema mereceria um tratamento à parte, mas limitemo-nos a reproduzir aqui as passagens indispensáveis. Já em I, 4, 22, podemos ler: “[A] … o braço estando levantado para bater, faz-nos mal se o golpe não se dá… do mesmo modo, parece que a alma se move e se perde a si mesma, se não tem uma empresa: é preciso sempre lhe fornecer um objeto no qual ela mire e atue… E nós vemos que a alma em suas paixões se ilude antes a si mesma, estabelecendo para si um objeto falso e fantástico, mesmo contra sua própria crença, em vez de não agir contra nada…”. Em I, 20 o modo como a dimensão da “ação” determina nossa existência é assim demarcado em tintas estóicas: “[A] Não se deve estabelecer nenhum desígnio de tão longo fôlego, ou ao menos com tal intenção de se apaixonar sem poder ver o fim. Nós nascemos para agir… Eu quero agir, [C] e que os ofícios da vida se alonguem o tanto que se possa, [A] e que a morte me encontre plantando minhas couves, despreocupado dela, e ainda menos de meu jardim imperfeito…”. Posteriormente, sob outro enquadramento filosófico, a esfera da ação permanece possuindo uma espécie de primazia e autonomia: “Minha filosofia está na ação, no uso natural [C] e presente: pouco na fantasia. Tivera eu gosto de jogar com as avelãs e os piões…” (III, 5, 842). Num dos primeiros capítulos, “Nossas afecções se movem para além de nós”, observando o modo como a natureza nos encaminha a desviarmonos dos bens presentes em direção ao futuro, ele acrescentará posteriormente: “… imprimindo-nos, como tantas outras, essa imaginação falsa, mais interessada em nossa ação que em nosso saber [science]…” (I, 3, 15C). 398

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Cabe insistir nesse ponto, porque ele parece demarcar um aspecto peculiar e importante da prática cética dos Ensaios. Ainda que todas as proposições sejam em princípio passíveis de dúvida, parece haver, genericamente, dois grupos delas que tendem a se distanciar do foco privilegiado de sua prática. De um lado, aquelas que configuram as teorias delirantes que a filosofia dogmática incansavelmente produz: dizimá-las não parece ser a tarefa mais difícil nem a mais interessante. Embora essas teorias possam fornecer diversos materiais para o exercício do juízo, no sentido já considerado, não são levadas a sério segundo sua pretensão de verdade. De outro, parece haver um conjunto de teses que representam aparentes certezas básicas, articuladas com nossa inserção no mundo, que, mesmo não sendo isentas de uma dúvida possível, não surgem como objeto de uma reflexão cética — seja por se tratar de uma atividade que não pode ser praticamente levada a cabo, seja por se afigurar como irrelevante ou desinteressante, seja por serem pressupostos de outra crítica que aparece como mais relevante. Afinal, observado segundo sua prática efetiva, parece-nos que o exercício dubitativo de Montaigne acaba por se concentrar preferencialmente nas ocasiões em que pode ser trazida à tona a ambivalência oculta das opiniões que o véu do bom senso encobre. São ocasiões de realizar um exercício autocrítico, em que a prática da epokhé converte-se num esforço pelo qual, de modo pontual, impressões individuais de certeza podem ser vistas com distanciamento e eventualmente exibir um aspecto paradoxal até então desprezado. Diríamos, em suma, que o ensaio cético, em sua forma acabada, parece comportar duas atividades complementares, que correspondem aos aspectos conflitantes do juízo, tal como os apresentamos. De uma parte, Montaigne dá “livremente sua opinião sobre todas as coisas”, e o ensaio torna-se o anteparo no qual essas opiniões podem ser colhidas e pesadas ao lado das razões e opiniões antigas, com as quais elas podem ser acomodadas ou contrapostas e ser assim mais bemconhecidas e observadas, graças ao distanciamento. De outra, não nos pareceria incorreto dizer (particularmente em vista de ensaios aporéticos como “Da fisionomia”) que tal exercício freqüentemente evolui na forma de uma armadilha deliberada, pela qual se trata, aparentemente, de enredar o fio de coerência pelo 399

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qual o próprio juízo persegue seu movimento opinativo num paradoxo. Assim, Montaigne se detém preferencialmente em certos temas — seguramente em vista de seu enraizamento problemático na vida prática —, como a relação entre natureza e arte (ou costume), a ordem pública, a morte, a natureza geral do homem e a natureza singular de seu próprio eu. (Persegui-los em sua filigrana própria seria escrever um outro livro: não deixaremos, contudo, de situar melhor tais preocupações biográficas no próximo capítulo, ao tratarmos das conseqüências céticas relativamente à noção de fantasia nos Ensaios.) Também aí se projeta um esforço autocrítico, pelo qual esse cético pretende refletir sobre a relatividade intrínseca das impressões de verdade que as coisas lhe suscitam, e sobre os limites de suas faculdades. Visto pela ótica da produção de um conhecimento das coisas, o percurso que deságua no paradoxo pareceria talvez leviano e sem sentido. Visto, porém, como trabalho de uma filosofia na qual o fundamental se torna o percurso — o movimento pelo qual o juízo assiste à produção e à superação das próprias teses, em vista da sua formação ou da clarificação de seus limites, como um meio de aprofundar e tornar mais consciente sua inserção na experiência que naturalmente a vida oferece —, esse filosofar pode ganhar um interesse diverso. É decisivo, assim, ter em mente que a afirmação de um gênero cético de filosofia por oposição à atitude dogmática corresponde a uma mudança no sentido geral da própria atividade intelectual: o ceticismo se converte sobretudo numa experiência que depende da prática efetiva, para o filósofo ou para o cirurgião, como vimos no capítulo anterior85. Ela não é apenas um conhecimento acumulado, mas a perda da ingenuidade dogmática, acompanhada das devidas conseqüências que daí se seguem. Mas é essencial para a devida caracterização desse gênero a compreensão de que nossa situação não é menos paradoxal do que a dos cães de Esopo: a consciência de nossa precariedade não nos torna capazes de compreendê-la plenamente, inevitavelmente portadora, ela mesma, de alguma “vaidade” residual e inexpugnável, no simples gesto pelo qual se pretende almejar a compreensão de algo. Se o mal do dogmático, 85. Ver II, 37, 764. 400

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segundo Sexto, é a oíesis, presunção resultante da precipitação opinativa, parece preciso reconhecer que Montaigne desconfia seriamente da possibilidade de levar inteiramente a cabo a purgação do dogmatismo, cujas sementes parecem instalar-se em nossa “natureza”, na ação do próprio juízo: “[A] A presunção é nossa doença natural e original…” (540, cf. 634A). Defrontarmo-nos ceticamente com nossa situação paradoxal não constitui aqui nenhuma espécie de preâmbulo da fé (como ocorrerá na filosofia de Pascal), mas uma ocasião para vermos mais claramente nossa natureza em sua precariedade intrínseca — aí compreendida nossa tendência a ignorar nossa precariedade —, aceitála como tal e com ela lidar segundo nossos limites naturais. Trata-se igualmente de facultar ao homem a possibilidade de gozar de seus efetivos recursos naturais, corporais e espirituais, segundo a medida humana, e de ensiná-lo a desconfiar, ao menos, das miragens que ele pretende buscar mar adentro.

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CAPÍTULO VII

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Nosso exame das diferentes figuras do paradoxo nos Ensaios — como estratégia retórica de ocultamento, como meio de induzir a ação do juízo ou como representação dos limites do conhecimento — seria incompleto se não considerássemos uma noção-chave da reflexão filosófica dos Ensaios. O ceticismo, denunciando as fraquezas da razão e preconizando o “ensaio do juízo”, corresponderia a uma atividade intelectual diversa daquela pela qual a filosofia de seu tempo converte-se, de modo geral, num nome “vão e fantástico”, ao aceitar de modo irrefletido a autoridade filosófica alheia (I, 26, 160A). E o filósofo pirrônico é caracterizado como aquele que abandonou “[A] os privilégios fantásticos, imaginários e falsos, que o homem se usurpou, de reger, ordenar e estabelecer a verdade…” (505; itálicos nossos) — por oposição ao dogmático, que permanece entretido por suas ficções1. Mais do que 1. Como vimos, Montaigne se refere ironicamente, logo após tal caracterização do ceticismo, às “idéias, números e átomos” avançados pelos filósofos dogmáticos como meras “invenções” que, mesmo falsas, foram propostas por possuírem uma aparência 403

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isso, um dos efeitos da observação da multiplicidade de perspectivas contraditórias que a razão pode sustentar é o de revelar, segundo Montaigne, que tal faculdade se identifica, ao menos em certa medida, à imaginação e à fantasia (na medida em que somos por ela induzidos a crer que reconhecemos uma verdade, embora isso se faça de modo apenas ilusório): “[B] Estimo que não apareça na imaginação humana nenhuma fantasia tão delirante que não encontre um exemplo nalguma usança pública e, por conseguinte, que nossa razão não sustente e fundamente…” (I, 23, 111 ss.)2. E, ademais, como vimos no capítulo anterior, também a incapacidade do juízo de apreender uma verdade inteiramente digna desse nome, que passasse incólume de mão em mão, pode ser vista como resultante da ação de uma faculdade diversa de uma simples capacidade de compreender as coisas. Assim, o efeito da crítica cética parece ser o de revelar que, o mais das vezes, nos situamos no terreno da fantasia e da imaginação, ao pretender superá-lo por meio da obtenção de uma verdade filosófica. Contudo, o texto de Montaigne nos conduz igualmente a uma certa perplexidade se consideramos algumas passagens que relacionam a fantasia ao juízo. Em certas passagens ele se refere ambiguamente ao juízo ou à fantasia para designar os produtos de nossa faculdade de conhecer (como sinônimos de “opinião”)3. Ainda mais, o próprio termo “fantasia” surge designando, de modo ambivalente, o sutil e agradável e poderem (ao menos em certa medida) resistir às objeções. O contexto dessa passagem mostra que essas expressões — imaginário, fantástico e falso — tendem a ganhar um sentido intercambiável. Trata-se, aliás, de um procedimento estilístico recorrente nos Ensaios: a repetição de termos de sentido muito próximo ou análogo buscando a ênfase (para um exemplo ao acaso, v. 522C; cf. AULOTTE, 1979, p. 129). Para uma identificação similar entre “dogmas” (no sentido filosófico) e “fantasias”, ver II, 10, 416. 2. Examinamos essa passagem no capítulo III, item 3.1 — “Um traiçoeiro mestre” — mostrando como, embora a razão possa se identificar à diversidade das fantasias produzidas pela imaginação humana ao sustentar essa diversidade de comportamentos, é o costume que intercede forjando uma aparência de verdade naqueles que efetivamente aceitamos, cabendo à reflexão cética relativizar esse aporte dogmático. 3. Ver, entre outros exemplos, que podem ser facilmente recolhidos em todos os períodos de composição dos Ensaios: I, 21, 104A; I, 22, 107; I, 23, 121A; I, 26, 147; I, 28, 184A; I, 42, 265A; II, 10, 416A; III, 8, 923B; III, 12, 1049. 404

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próprio juízo, isto é, a faculdade mesma da qual se trata de “ensaiar” filosoficamente: [A] Quanto às faculdades naturais que se acham em mim, das quais está aqui o exame [l’essay], sinto-as dobrar sob a carga. Minhas concepções e meu juízo não avançam senão tateando, vacilando, tropeçando, esfolando-se; e quando eu cheguei o mais longe que eu pude ir, não me encontro de modo algum satisfeito: vejo ainda um território além, mas com uma vista turva e embaçada, que não posso bem discernir. E empreendendo falar indiferentemente de tudo o que se apresenta à minha fantasia, e não empregando aí senão meus meios próprios e naturais, ocorre freqüentemente de eu encontrar por acaso, nos bons autores, esses mesmos lugares que eu empreendi de tratar, como acabo de fazer com Plutarco, agora mesmo, [em] seu discurso sobre a força da imaginação… (I, 26, 146; itálicos nossos). Se “fantasia” parece designar aqui sobretudo a produção das opiniões, Montaigne não busca, porém, opô-la ao juízo, como se a este coubesse apenas uma tarefa crítica. O juízo surge aqui igualmente como sinônimo de “concepções”. Ademais, Montaigne se refere explicitamente, no plural, ao ensaio das “faculdades naturais” que nele se encontram. E, com efeito, se sua obra é tal ensaio, muito freqüentemente ele mesmo qualifica suas produções como “songes”, “imaginations”, “fantasies” ou “resveries”. Em particular, lembremo-nos de que ele singulariza sua atividade dubitativa, relativamente ao ceticismo antigo, a ela se referindo como um “niaiser et fantastiquer”4. Como reagir a essa ambigüidade? Como compreender aquilo que particulariza a atividade cética, por oposição à filosofia dogmática, por esse novo prisma conceitual? A análise realizada no capítulo anterior fornece elementos para explorarmos esse ponto. Como vimos, a precariedade natural do juízo humano faz com que Montaigne compreenda seu ceticismo como uma atividade crítica capaz de ser levada a efeito sempre de modo relativo, nunca exaustivo e definitivo. A metáfora que destacamos para representar o movimento crítico de sua reflexão é também aqui relevante: o homem se põe no encalço da verdade, mas perse4. V. II, 3, 350, passagem examinada no item 1.3 — “Um novo cético?”. 405

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gue uma miragem inalcançável, posto que os produtos obtidos podem sempre ser objeto de uma crítica mais profunda, capaz de revelar seu aspecto fantasioso. Talvez pudéssemos mesmo afirmar que aquilo que é caracterizado como ação do juízo não o pode ser de modo absoluto, mas apenas segundo um ângulo relativo, ao longo de um movimento crítico, podendo dar lugar a outra avaliação que, observando a mesma ação pelo prisma da distância da verdade, a descreva como um resultado da fantasia. Se julgamos por um poder diverso do poder natural de julgar presente em todos os homens, determinando individualmente o que os objetos são (cf. 562A), a fantasia talvez seja um elemento naturalmente presente na própria ação do juízo, pois a mesma ação capaz de denunciar o caráter fantasioso do que é aceito irrefletidamente traz em si, na medida em que reflete alguma imagem da verdade (pela qual se pretende suplantar determinada fantasia), o mesmo germe fantasioso que denuncia. Mas não se trata aqui apenas de traduzir em termos outros a mesma crítica já examinada: os elementos considerados no capítulo anterior reaparecem aqui, como veremos, por um novo viés, com base no estatuto e no sentido próprios a essa temática. O termo “fantasia” também surge, nos Ensaios, como sinônimo de concepção ou de imaginação (conotando igualmente a natureza fortuita e caprichosa de nossa faculdade de imaginar)5. Trata-se de uma faculdade própria, de uma das “peças da alma” que, por mais que ambiguamente se mescle com as demais, é possuidora de particularidade e de vida própria, por assim dizer, nos Ensaios. E sua observação pode alargar a compreensão dessa prática intelectual cética, oferecendo-nos, de saída, um fio condutor privilegiado para situarmos de forma mais precisa as motivações filosóficas de Montaigne e a própria discussão acerca do ceticismo no contexto mais amplo de seu percurso intelectual. 5. Sobre seu emprego numa acepção semelhante ao que hoje denominamos “imaginação”, ver, por exemplo, II, 29, 711B, bem como, de modo geral, o capítulo 21 do livro I, “Da força da imaginação”. Em II, 37, 761, em que “fantasie” designa figuradamente os interesses próprios do corpo, por contraposição à alma, ela surge como sinônimo de “capricho”. Sobre como a fantasia designa o caráter imprevisível e caprichoso pelo qual a alma humana formula aleatoriamente concepções e imagens, ou mesmo interfere sobre as sensações, ver MACFARLANE, 1968, p. 119. 406

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7.1. Quimeras e monstros fantásticos

Retomemos aqui suas primeiras considerações atinentes ao tema da imaginação, inicialmente redigidas, segundo Villey, por volta de 1572 (antecedendo, portanto, em cerca de quatro anos o contato com Sexto e a redação da “Apologia”). Nessa época, Montaigne lê as Epistolae Morales ad Lucilium, de Sêneca, e redige partes, ao menos, de “Da força da imaginação” (I, 21)6. Da mesma época é também o capítulo “Da ociosidade” (I, 8), importante testemunho das motivações iniciais de Montaigne para o exercício da filosofia7. Conta ele, nesse capítulo, como buscou evitar que seu espírito permanecesse à deriva no “vago campo da imaginação”, à falta de algo que o contivesse. Retirando-se para fruir, no repouso e na solidão, o tempo de vida que lhe restava, ele acabou por constatar que essa forma de ociosidade não lhe propiciara uma via adequada para que seu espírito obtivesse tal fim: … ao contrário, como um cavalo em fuga, ele se dá cem vezes mais de trabalhos a si mesmo que os que assumiria para outrem e engendra tantas quimeras e monstros fantásticos, uns sobre os outros, sem ordem e sem propósito, que, para contemplar à vontade [sua] inépcia e [sua] estranheza, eu comecei a registrá-los [mettre en rolle], esperando com o tempo fazer-lhes vergonha a eles mesmos (I, 8, 33A; itálicos nossos). Quanto às motivações pessoais originais que determinaram, em sua origem, o engajamento filosófico de Montaigne, essa passagem nos informa, primeiramente, que a razão primeira da redação dos Ensaios decorre da busca de controlar a imaginação8. Isso se faz desejável por6. Cf. nota introdutória de VILLEY, Les Essais, p. 97. Ver também as notas introdutórias dos capítulos I, 2 (p. 11); I, 14 (p. 50); I, 19 (p. 78); I, 20 (p. 81). 7. Lembremos que o prefácio auto-retratista, no qual Montaigne afirma ser ele mesmo a matéria de seu livro, foi redigido tardiamente, em março de 1580. Cf. Les Essais, Au Lecteur, p. 3; ver a nota de Pierre Villey. 8. Segundo Villey, essa declaração de motivações não deve ser levada a sério: produto de uma visão retrospectiva, ela atenderia à necessidade de se desculpar diante das damas pela condição de escritor por ele assumida, pouco condizente com sua nobreza (VILLEY, 1992, p. 29). De nossa parte, não vemos, nesse caso particular, que relação mais precisa poderia haver entre esses pontos, nem por que isso seria uma razão para esvaziar o conteúdo do que é dito. A eventualidade de estarmos diante de uma explicação retrospectiva, ademais, não nos parece particularmente significativa se levamos em 407

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que, segundo a mesma explicação, seu descontrole, produzido na solidão e na ociosidade, é fonte de perturbação. O trabalho pelo qual Montaigne se põe a registrar os “monstros fantásticos” (em sua obra) reflete, nalguma medida, uma certa expectativa terapêutica (considerando-se aqui esse termo numa acepção próxima daquela em que as filosofias helenísticas pretenderam, por meio de suas prescrições relativas à sabedoria, promover a tranqüilidade da alma — como veremos com mais detalhe a seguir). O inventário de tais “monstros” que viria a ser os Ensaios tem seu valor inicialmente lastreado no modo como ele exibe a desordem da alma e na possibilidade de que o contato com seu aspecto perturbador tenha algum efeito benéfico: revistos de outras perspectivas, tais monstros poderiam conduzi-lo a “envergonhar-se de si mesmo”. Pode-se dizer que esse relato se articula com a perspectiva de ele observar a si próprio de modo distanciado, de um modo tal que auxiliaria a alma a recobrar o controle sobre sua prole monstruosa. Outra descrição do mesmo propósito inaugural da obra esclarece que recobrar esse controle é igualmente recobrar a harmonia desfeita pelo “humor melancólico” que dele se apoderou, pela tristeza decorrente de sua longa solidão. Assim ele expõe a Mme. d’Estissac a perturbação originária dos Ensaios: [A] É um humor melancólico, e um humor, por conseguinte, bem inimigo de minha compleição natural, produzido pela tristeza da solidão na qual há alguns anos me vejo lançado, que me pôs primeiramente na cabeça esse devaneio de me meter a escrever… (II, 8, 385). Essa passagem, por sua vez, nos convida a remeter essa causa originária a uma instância ainda anterior ao momento em que Montaigne se pôs a registrar suas quimeras. Se há “alguns anos” ele se vê lançado na tristeza da solidão, não cabe ver aqui, em consonância com a interpretação clássica, uma alusão à morte do amigo La Boétie, a quem dedica Montaigne seu ensaio sobre a amizade9? Importa, contudo, evoconta que o projeto filosófico do qual ela é parte, como veremos, antecede em muito a própria época designada pela redação desse texto. 9. Certas passagens desse capítulo convidam a considerar os Ensaios, de modo geral, como uma maneira de preservar alguma forma de comunicação com a memória do 408

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car esse dado pelo modo como completa o quadro dessa primeira concepção de “ensaio filosófico”, voltada ao controle da imaginação e ao projeto de recuperar um acordo com a sua natureza (não-melancólica), em conformidade com as preconizações estóicas de Sêneca10. De fato, é todo um projeto filosófico que passa a ser concebido anteriormente à redação dos Ensaios, no âmbito dos interesses que ele compartilha com La Boétie pela filosofia estóica. Ele se deixa claramente entrever nas considerações de Montaigne sobre a firmeza da atitude de seu amigo ao enfrentar a agonia da morte, como revela uma eloqüente carta escrita, na ocasião (agosto de 1563), a seu pai. Assim narra ele esta confissão que dirigiu ao amigo, em resposta aos discursos testamentários que ele ainda proferia em meio a sua agonia, à véspera de sua morte: … eu lhe disse que havia ruborizado de vergonha por ter deixado de ouvir o que ele, que estava tomado pelo mal, tinha tido a coragem de me dizer; que até então eu pensara que Deus não nos houvera dado tão grande poder sobre os acidentes humanos e acreditava com dificuldade naquilo que lia nos historiadores, mas que, tendo tido disso uma tal prova, eu louvaria a Deus pelo fato de que isso tenha se dado com uma pessoa por quem eu fui tão estimado e que me era tão cara, e que isso me serviria de exemplo quando fosse a minha vez de desempenhar o mesmo papel… Ele me interrompeu, para me pedir a assim proceder, e mostrar, pelas ações [par effet], que os discursos que nós houvéramos mantido juntos durante a nossa saúde, nós não os portássemos apenas na boca, mas gravados bem antes no coração e na alma, para pô-los em execução nas primeiras ocasiões que se oferecessem, e a isso acrescentando que era a verdadeira prática de nossos estudos e da filosofia… (Lettres, p. 38). Os primeiros ensaios filosóficos, redigidos por Montaigne a partir de 1572, foram construídos, basicamente, com base em citações estóicas, amigo perdido, sempre presente à imaginação de Montaigne: “[A] Não há ação ou imaginação onde eu não reconheça sua falta [où je ne le trouve à dire]…” (I, 28, 193-194; itálicos nossos). Consideraremos adiante outro aspecto da relação entre o modo como Montaigne se defronta com sua fantasie e o exemplo de la Boétie. 10. Ver capítulo V, item 5.2 — “O ensaio como investigação cética”. 409

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provenientes sobretudo de Sêneca, articuladas em torno dos temas da reflexão filosófica desse autor (como igualmente admitem os comentadores, a despeito das divergências interpretativas de seu significado filosófico)11. Destaca-se especialmente entre esses temas a reflexão sobre a morte (como mostra o título do ensaio que mais claramente exprime o sentido do mesmo projeto: “Que filosofar é aprender a morrer”)12. Esses ensaios balizam, portanto, uma busca da tranqüilidade, que se almeja auferir do reencontro com a natureza — mais exatamente, da reconstituição de uma “compleição natural”. Cumpre ao autor, para tanto, purgar um “humor” melancólico, oriundo da solidão e manifesto na tristeza que o impede de levar a bom termo seu projeto de fazer face, de modo eficiente, à iminência da morte e bem gozar do tempo que lhe resta. As afinidades entre esse projeto e a filosofia estóica demandam, contudo, um exame mais minucioso, pois parecem estar presentes mesmo em passagens nas quais não são normalmente reconhecidas. No capítulo “Da ociosidade”, por exemplo, eis a razão que Montaigne atribui à geração dos monstros que pretenderia conter: “[A] A alma que não tem fim estabelecido se perde: pois, como se diz, estar em todos os lugares é não estar em nenhum…” (I, 8, 32). Esse é talvez o primeiro embrião de uma idéia a que nos referimos no capítulo anterior e que ganhará, posteriormente, maior importância nos Ensaios: a de que a ação pode, por si mesma, suplantar os impasses reflexivos que a alma cria para si mesma. Aqui, mais precisamente, trata-se de alegar que, na falta de objetos definidos de ação, a alma se perde. Assim, suas paixões 11. Para a interpretação clássica sobre o período estóico, ver STROWSKI, 1931, p. 93 ss. A interpretação é retomada por VILLEY, 1933, t. II, p. 52 ss., passim, que se refere a tais ensaios, para designar seu esquema de composição, como mosaicos de sententiae. Para uma leitura divergente do significado filosófico desses ensaios, ver FRIEDRICH, 1968, p. 71-78 (cujos argumentos, apoiados sobretudo em aspectos formais e filosoficamente discutíveis, parecem-nos todavia insuficientes para negar a existência de tal período estóico). 12. Ainda que Montaigne não faça nenhuma alusão nominal a Sêneca (como não o fará igualmente a Sexto), o título mesmo desse capítulo I, 20 (e o mesmo valeria para I, 19: “Que não cabe julgar de nossa felicidade senão depois da morte”), se inspira diretamente em passagens das Epistolae ad Lucilium (cf., I, xxvi, xxxvii). 410

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a movem a se iludir e criá-los por si mesma, de modo desordenado e muitas vezes inconveniente — “dispondo um objeto [subject] falso e fantástico, e mesmo contra a sua própria crença” (I, 4, 22). Sêneca, de sua parte, afirma que é necessário fixar por meio da razão o objeto adequado a ser visado pela ação dos homens, posto que o caráter ilimitado dos desejos, paixões e opiniões é uma marca da inconstância humana, que conduz à escravização. Assim responde ele a Lucílio: “O que é a sabedoria? desejar as mesmas coisas e recusar as mesmas coisas.” Não preciso acrescentar ainda esta fórmula: deve-se desejar o bom [rectum], pois ninguém pode permanecer satisfeito com o mesmo sem desejá-lo. Por isso, os homens não sabem o que desejam, a menos no momento em que desejam; ninguém jamais decidiu de uma vez por todas o que desejar e o que recusar. O juízo varia cotidianamente, muda-se em seu oposto, fazendo muitos homens passarem sua vida como num jogo [per lusum]. Persista, então, uma vez que começaste; talvez sejas levado a alguma espécie de perfeição… (Epist., I, xx, 5-6)13. Tais instâncias tirânicas serão várias vezes caracterizadas como aquilo que é desprovido de limites e, nessa medida, se opõe aos desejos naturais, por si mesmos limitados14. É possível que o sentido preciso em que Sêneca diz que um “desejo” é ilimitado possua alguma diferença daquele em que Montaigne se refere à ilimitação de suas fantasias. Sêneca não se atém particularmente ao tema da “imaginação” como causa de perturbação15. De todo modo, é certo que provém da leitura de suas 13. Sobre o risco de que a alma perca sua autonomia racional diante do poder das paixões e opiniões, ver também III, cxvi. O tema estóico do controle da vontade ressoa igualmente em ensaios de Montaigne compostos na mesma época: “[A] Nós não podemos nos manter para além de nossas forças e de nossos meios. Por essa causa, porque os efeitos e execuções não estão de modo algum em nosso poder, e não há nada que esteja sabidamente sob o nosso poder do que a vontade: nela se fundam necessariamente e se estabelecem as regras do dever do homem…” (I, 7, 30). Para uma exposição geral do estoicismo (e particularmente da teoria das paixões) ver especilamente BRÉHIER, 1978, vol. III. 14. Ver Epist., I, xvi, 9; I, xxxix, 5-6. 15. Não encontramos o emprego do termo phantasía nas Epistolae. A única passagem, salvo engano, em que Sêneca se refere estritamente ao caráter imaginativo ou 411

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Epístolas a problematização da perda de limites da alma tal como ela se formula, a essa altura, nos Ensaios — como uma perda das rédeas de suas motivações por parte da alma, de modo tal que ela se deixa escravizar por instâncias sobre as quais a razão não tem controle, como é particularmente o caso, para Montaigne, da imaginação. Segundo Sêneca, cabe à “filosofia” ou “sabedoria” (estóica, fundamentalmente) remediar essa perda de limites, por meio da subordinação dos desejos e das vontades à constância da alma16, e um tema que retorna constantemente nas Epístolas (e igualmente nos Ensaios) é o da necessidade de que o filosofar, em vista desse fim, se dê não apenas nas palavras, mas também através das ações: … deixa, Lucílio, a filosofia navegar em tua alma e teste o teu progresso, não apenas através de teu discurso, mas pela firmeza de tua alma e pela diminuição de teus desejos… [A filosofia] ensina que os homens devem viver segundo suas leis, que a sua vida não deve estar em desarmonia com as palavras, que a sua vida interior [intra vita] não deve estar em dissensão com todas as suas atividades. Este é o dever mais alto e a mais alta prova de sabedoria: as ações e as palavras devem estar em acordo, o homem deve ser igual a si mesmo sob todas as condições, deve ser sempre o mesmo… (Epist., I, xx, 1-2)17. ficcional de certos sofrimentos é Epist., I, xiii, 5, em que o filósofo condena o hábito de exagerar, antecipar e imaginar as dores. Tal passagem oferece contudo um mote repetidamente retomado — o de que nossas perturbações são causadas por nossa alma — e que ressurge, nessa mesma página, em outra versão que inspira considerações contemporâneas de Montaigne: “Há mais, Lucílio, coisas que nos assustam que nos atingem; sofremos mais na opinião [opinione] que na realidade”. 16. Cf. nota anterior. Como vimos no capítulo V (5.3 — “O filósofo e as abelhas”), Sêneca busca se afastar de uma postura de adesão incondicional ao estoicismo, reservando-se o direito de assentir apenas àquilo com que seu próprio entendimento mostrarlhe aceitável, além de concluir, invariavelmente, cada epístola com um comentário elogioso acerca de alguma máxima de Epicuro. Não obstante, ele se apresenta expressamente como um filósofo estóico (em I, xiii, 4). 17. Ver também Epist., I, xvi, 3. O mesmo tema da conformidade entre as palavras e as ações como meta da filosofia é recorrente em Montaigne, como atesta a citação da carta em que ele narra ao pai o exemplo da morte de La Boétie, e permanece presente (ainda que filosoficamente revisto) mesmo em textos posteriores ao período senecano. Sobre a presença do ideal estóico da constância nos Ensaios mais antigos, ver, precisa412

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Isso só se faria possível, porém, pelo modo como a filosofia guia nossa alma, banindo as incertezas, posto que a intranqüilidade é fruto das opiniões incertas18. O mesmo ideal filosófico igualmente se formula, também para Sêneca, na forma de uma conformação à natureza (em contraponto à obediência às paixões desnaturadas), compreendida como obediência à reta razão (em lugar da aceitação irrefletida de opiniões incertas)19. Eis, em linhas gerais, o esquema conceitual pelo qual o estoicismo de Sêneca pensa o enfrentamento das perturbações, no qual é patente o otimismo racionalista: é preciso desmascarar, mediante a reflexão racional, as falsas impressões e opiniões incertas que são a causa dessas perturbações, ao aprisionar a vontade humana. Tais opiniões só se sustentam no desconhecimento da verdadeira natureza das coisas. À reflexão filosófica cabe reconduzir o homem, pelo conhecimento racional, a uma harmonização com a natureza no âmbito de diversos temas em que a posse de opiniões incertas pode ser nociva — o engajamento na sociedade, a solidão, a posse dos bens materiais, a doença e, especialmente, a morte. São múltiplas as passagens redigidas por Montaigne no mesmo período (1572-1575), segundo a cronologia de Villey, em que podemos redescobrir o mesmo esquema filosófico. Por exemplo, ele escreve: [A] Ei-nos portanto já soterrados e enterrados. As crianças têm medo mesmo dos seus amigos quando os vêem mascarados, também nós o temos. É preciso arrancar a máscara, tanto das coisas quanto das pessoas. Uma vez arrancada, nós não encontraremos por debaixo mais do que essa mesma morte que um cavaleiro ou uma simples camareira enfrentaram ao fim sem medo… (I, 20, 96). mente, “Da constância” (I, 12, esp. 45A), em que a mesma idéia é apresentada como meio de fazer face à surpresa dos males e inconvenientes. Cf., a esse respeito, Epist., I, xvi, III, cvii, em que Sêneca igualmente trata da “paciência” e submissão ao destino estóica. 18. Ver Epist., I, xvi, 3. 19. Sobre a razão como qualidade essencial que define a superioridade do homem, na medida em que conduz à vida conforme à natureza, cf. Epist., I, xli. Ainda sobre a ideal de conformação à natureza: I, v, 4; xvi, 8 (“As exigências da natureza são exíguas, as da opinião, ilimitadas…”). Ver também I, xxxvii. 413

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Retomando aqui quase literalmente um diagnóstico apresentado por Sêneca nas Epístolas20, Montaigne identifica como causa de perturbação, na morte, o modo como a cercamos de “aspectos e ritos assustadores… que nos fazem mais medo do que ela”. Seguindo a preconização do autor estóico, ele adota como ideal filosófico a postura de pensar continuamente nela, diversamente do que faz o vulgo: não, certamente, para se deixar possuir por imaginações mórbidas, mas para melhor enfrentá-las, dissipando os fantasmas por meio da razão, e finalmente recobrar a verdadeira imagem natural das coisas: [A] aprendamos a enfrentá-lo [o inimigo: a morte] com pés firmes, e a combatê-lo. E para começar a neutralizar sua maior vantagem, tomemos um caminho inteiramente oposto ao comum. Tiremo-lhe a estranheza, pratiquemo-la, acostumemo-nos a ela. Retomemo-la, a todo instante, na nossa imaginação, e sob todas as faces… É incerto o lugar onde a morte nos espera, esperemo-la em toda parte. A premeditação da morte é premeditação da liberdade. Quem aprendeu a morrer, desaprendeu a servir… (I, 20, 86-87)21. Não basta aqui reconhecer que Montaigne se vale de múltiplos argumentos de proveniência senecana para mostrar a insensatez de nosso temor da morte. É preciso admitir, mais do que isso, que o sentido com que são retomados autoriza uma aproximação filosófica mais estreita: o emprego de tais argumentos se apresenta como a efetivação do trabalho da razão, levado a cabo por Montaigne, contra o temor irracional22. Eles instauram, de uma só vez para o leitor em geral e para o próprio Montaigne, a mesma diretriz senecana que ainda ecoará em passagens tardias: “Nunca um homem se preparou para deixar o mundo mais 20. Cf. Epist., I, xxiv; nessa epístola, entre muitas outras (cf. nota seguinte), Sêneca tematiza a necessidade de enfrentar racionalmente o medo da morte. 21. Cf. Epist., I, xxx, 18: “Pense sempre na morte para poder nunca temê-la”; ver também iv, xvii, xxiv, xxvi, xxxvi; sobre a recusa da forma pela qual o vulgo enfrenta o problema, ver I, 20, 84-85; Sêneca tematiza a necessidade de afastar-se das opiniões do vulgo, por exemplo, em Epist., I, xxv, xxxi. 22. Montaigne o afirma explicitamente, por exemplo, em I, 20, 91-92, 95A (cf. Epist., I, xxx, xix). Há um conjunto mais amplo de textos no mesmo sentido mapeados por VILLEY em Les Essais, p. 1232. 414

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pura e plenamente, e nem se desprendeu mais universalmente do que eu me atenho a fazer…” (I, 20, 89). Contudo, cabe assinalar que tal terapia estóica não deixa de exibir um viés próprio ao ser retomada por Montaigne. Pensar constantemente na morte é uma prática que ele adota, a essa altura, para enfrentar as imagens assustadoras com que ela se apodera da imaginação. A mesma terapêutica parece ser tematizada no capítulo “Da solidão”, que retoma a necessidade de fixar a deriva da imaginação, por meio desta fórmula lapidar (na qual transparece, igualmente, a temática estóica da autonomia do sábio): “Nós temos uma alma contornável [contournable] em si mesma. Ela pode se fazer companhia e tem meios de atacar e de defender, de receber e de dar: não temamos nessa solidão estagnarmos numa ociosidade tediosa…” (I, 39, 241). Em seu contexto, essa imagem alude à necessidade de que a alma disponha de um certo espaço recolhido, uma sala nos fundos (“arrière boutique”) onde ela possa se entreter, numa solidão pacífica, consigo mesma, e obter sua “verdadeira liberdade”, a salvo dos monstros fantásticos que a fazem partir num movimento desgovernado, como um cavalo em disparada. Mas o termo “contourner” possui uma especial riqueza semântica — pela qual pode significar igualmente “voltar-se sobre si mesmo” (como sugere o contexto), “tornear” ou “transformar”23. Diríamos que o próprio contexto parece fazer com que esses sentidos diversos se encontrem aqui sobrepostos: a alma “contornável”, em si mesma ou por si mesma, ao menos a essa altura de suas reflexões, seria não apenas aquela que se pode limitar — entreter-se consigo, libertando-se das amarras que a fazem depender das opiniões alheias —, mas também aquela que, por essa razão, pode também se transformar por meio de um trabalho paulatino sobre si mesma, destinado a dizimar racionalmente suas fontes passionais de tormento. Com isso, não se trata de propor que o tema 23. Contourner provém do latim tornare, literalmente “trabalhar com o torno”, “arredondar” (cf. DUBOIS, 1994, p. 416). GREIMAS e KEANE (1979) usam o exemplo de Montaigne para traduzir o termo, nessa ocorrência, por “contornável”, “recurvável”, “dobrável” (p. 142), mas oferecem outras possibilidades, entre elas “transformar” (p. 141). Sobre como as expressões francesas de Montaigne conservam significações latinas, ver SCREECH, 1989. 415

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seja inteiramente novo: Sêneca retoma sempre, em suas exortações a Lucílio, o tema da dificuldade e da lentidão do processo de engajamento nas verdadeiras diretrizes da razão, capazes de modificar a existência24. Igualmente, ele retoma diversas vezes a tese de que a alma é a principal fonte de seus infortúnios, bem como de sua felicidade25. A afirmação de Montaigne sobre a capacidade da alma de “se contornar” significa, portanto, a possibilidade de auferir uma existência tranqüila no ócio e em sua solidão consigo mesma, atinando o que aí haja de proveitoso, desengajando-se das verdadeiras fontes de perturbação, mais ameaçadoras do que as que podem enredá-la na vita activa (como diz ele, seguindo mais uma vez os passos de Sêneca)26. Alcançar isso equivale, metaforicamente, a propiciar à alma que assuma, pelo emprego da razão, as rédeas de si mesma; sem isso, como vimos, ela se desgoverna, arrastada pelas próprias fantasias. Assim Montaigne traduz o diagnóstico estóico, valendo-se explicitamente dessa noção: “Nós carregamos nossos ferros conosco: não é uma inteira liberdade, voltamos ainda a vista ao que nós deixamos, temos ainda a fantasia repleta…”27. A nota particular da reflexão de Montaigne parece-nos soar claramente neste ponto: a “imaginação” surge para ele não apenas como 24.Ver, por exemplo, Epist., I, iv, v, xvi, xxiii, xxvii; sobre a concepção estóica de sabedoria como aperfeiçoamento da mente, ver III, cxvii, 16 ss. 25. Ver I, xxx, 17; I, lxiii; I, xvii, 12; I, xviii, 15. Por oposição às perturbações que a alma causa a si mesma, ela é também a verdadeira fonte de sua felicidade: Epist., I, lv, 7. Ver também, de modo geral, I, xxiii, esp. 6. 26. Nas Epístolas, a tematização da “solidão” pode ser igualmente considerada segundo uma dupla perspectiva. De uma parte, ela pode representar um inconveniente — por exemplo, em face da necessidade natural do homem de estabelecer amizades (I, ix), ou no sentido em que o insensato pode ser uma companhia inconveniente para si mesmo, embora o contato com o vulgo seja nocivo para a busca da sabedoria (I, xxv), ou ainda na crítica à inutilidade das viagens (I, xxviii). De outra, ela designa o sentido da autonomia do sábio estóico, que busca retirar sua alma da massa comum (v. I, xii: sobre as eventuais vantagens da velhice para a prática da filosofia; I, xiv, sobre o recolhimento do sábio estóico; I, vii, sobre o distanciamento das opiniões do vulgo; I, x, xix, xv, lvi, xxxi, sobre a autonomia do sábio na obtenção de sua felicidade). Não apenas os temas isolados são retomados em I, 39 (v. esp. I, 39, 238-242; I, 20, 91), mas uma tematização análoga da solidão — isto é, segundo o sentido em que ela pode ser desejável ou proveitosa — constitui o eixo central desse capítulo. 27. I, 39, 240; itálico nosso; cf. Epist., I, xviii. 416

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veículo das perturbações (como vimos, esse termo pode desde então igualmente significar “opinião” ou “representação”), mas também como instrumento da dizimação dos males que ela mesma gera. Montaigne afirma se valer de um expediente similar àquele das pessoas que evitam as crises de que costumam ser acometidas simplesmente por saber que o remédio está à mão: [A] Basta-me, sob o favor da fortuna, preparar-me ao seu desfavor, e representar-me, estando à vontade comigo mesmo, o mal futuro, o tanto que a imaginação pode alcançá-lo: do mesmo modo como nos acostumamos às justas e aos torneios e contrafazemos a guerra em plena paz… (I, 39, 243). O tema da preparação contra os imprevistos do acaso provém do estoicismo28, bem como o reconhecimento de que é à razão, fundamentalmente, que cabe essa tarefa (faculdade que Montaigne claramente opõe à fantasia, nas passagens de inspiração estóica)29. Porém, ele outorga-lhe, ao mesmo tempo, um papel terapêutico coadjuvante, por assim dizer, e subordinado ao poder da razão. Mais exatamente, Montaigne busca imaginar-se na posição do vulgo — isto é, de um mendigo que bate à sua porta e enfrenta seu infortúnio exclusivamente pela força do hábito — para meditar, em seguida, sobre a impossibilidade de que o poder da razão seja inferior ao do costume, e se convencer, por fim, a não temer “o que um menor do que ele suporta com tal paciência” (v. ibid., 243A). Eis aqui um bom exemplo de como Montaigne emprega sua razão para fazer com que suas fantasias “se envergonhem de si mesmas”: situar-se imaginariamente numa situação irreal converte-se num meio de meditar sobre os limites da “necessidade natural” (ibid.) e se contrapor à perturbação causada pelo medo da morte que sempre o rondou (v. I, 20, 87A). Esse exercício que Montaigne desenvolve consigo mesmo indica que ele reconhece a imaginação como instância portadora de um po28. Tematizado por Sêneca à exaustão, num sentido aparentemente análogo ao de Montaigne: ver, por exemplo, Epist., I, iv, viii, xxiii, xvi, lviii; esp. liii: “Incredibilis philosophiae vis est ad omnem fortuitam vim retundendam…”. 29. Ver I, 39, 240-242, 247-248A. 417

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der próprio e de certa autonomia, pela qual ela não apenas se subtrai a um domínio imediato da razão, mas demanda uma estratégia própria para ser domesticada, como sugeria já a metáfora do cavalo em disparada. Tudo se passa como se ela possuísse um modo de ser peculiar, que precisasse ser levado em conta para que as diretrizes racionais estóicas pudessem ser implementadas de modo proveitoso contra o seu desregramento30. Ocasionalmente, trata-se de abrandar as rédeas da imaginação e deixá-la seguir seu curso, mas ela deve, todavia, permanecer escoltada por um elemento dela diverso, que a dirija e sirva de referência, que permita à alma voltar-se sobre si mesma e caminhar no sentido de sua própria transformação. Mas como tal operação terapêutica é levada a cabo? Se o ensaio é, como diz Montaigne, o registro dos “monstros fantásticos”, seu núcleo filosófico se constitui do mosaico de sententiae da sabedoria estóica por ele compiladas. A própria atividade de constante releitura, que se torna constitutiva da obra, indica que o texto dos ensaios se constituiu originalmente, ao menos em parte, como uma espécie de breviário filosófico: nele se oferecem lado a lado as máximas estóicas (sobre as quais ele medita, antes de inscrever, nas vigas de sua biblioteca, os lemas céticos que tomarão seu lugar) e os registros de sua imaginação ante o que a perturba (o medo da morte, do poder da imaginação e das paixões, do acaso com que os eventos se tornam imponderáveis, especialmente nos tempos de guerra em que tal experiência se situa). Em certa medida, pode-se dizer que o ensaio é, por ora, o esforço de empreender essa mediação. E, se apenas posteriormente o livro assume como fim próprio o projeto de empreender um auto-retrato, cabe dizer que, no texto desses ensaios estóicos, se projetam, a um só tempo, duas imagens diversas: a do autor que se reconhece nas fantasias fora de controle, que 30. É possível que haja aqui vestígios de outras leituras da mesma época, como o De Occulta Philosophia, de Agrippa (que, segundo Villey, é fonte de várias passagens de I, 21 e I, 23), especialmente no que se refere ao modo como este enfatiza o poder da imaginação, a fim de aproximá-lo ao poder da razão. Ele o faz, contudo, no bojo de uma teoria neoplatônica da alma tripartite — dividida em mens, ratio e eidolon — percorrida por uma mesma luz proveniente de Deus, no processo de conhecimento, em direção aos corpos, que Montaigne deixa inteiramente à parte; op. cit., cap. xliii, p. 362-363. 418

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registra para delas “se envergonhar” (diante das quais poderá agir racionalmente, buscando implantar em sua alma as diretrizes inexistentes), e, no horizonte, a de seu alter ego, que frui a tranqüilidade da alma, pintado em tintas estóicas pelas quais se poderia vislumbrar a contenção da imaginação pela razão. Noutros termos, se a escrita dos ensaios, por ora, é o registro pelo qual Montaigne dá rédeas livres à sua imaginação, o retrato é aqui assumido como atividade de uma alma em busca de transformação e superação desse regime provisório e, em certa medida, pré-filosófico, no qual tal tarefa ganha sentido. Nesse regime vigem a inconstância humana e o desregramento da imaginação, mas isso demarca igualmente a distância em que o autor se reconhece relativamente ao império da razão (que, factível ou não como almejado, é de todo modo projetado idealmente, como um ponto de fuga dessa auto-observação). Como vimos, “ensaiar” é, em sua origem, empreender um exercício, fazer uma lição, apenas tentar pôr em prática a filosofia, sem saber ao certo se ela obterá sucesso: a perspectiva de Montaigne diante do estoicismo é a de um “ensaio” nesse sentido, isto é, uma tentativa de pôr em ação a filosofia. Com esse fim, ele retrata suas fantasias, segundo sua manifestação particular e pessoal, para tentar lhes conferir um ponto de convergência, que estanque seu curso desregrado e as enquadre, por assim dizer, numa moldura racional. No capítulo “Da solidão” a expressão essayer é empregada, precisamente, para designar sua tentativa de se situar, imaginariamente, diante dos objetos de sua perturbação, para desenvolver a capacidade de enfrentála: especialmente, por meio de uma ação do entendimento contra o poder do costume: “[A] Eu vejo a que limites vai a necessidade natural; e considerando o pobre mendigo à minha porta, freqüentemente mais alegre e sadio do que eu, eu me ponho em seu lugar, e ensaio de calçar minha alma pelo seu viés…” (I, 39, 243; itálico nosso)31. Compreende-se também em que medida o ensaiar não poderia aqui ainda constituir uma identidade filosófica estável: ele remonta ao fracas31. Ver também I, 19, 80A, numa alusão ainda mais óbvia ao estoicismo, em que Montaigne afirma que o último dia da vida é aquele no qual se julgam todas as ações e o fruto dos estudos, com o intuito de saber se estes se reduzem a palavras ou partem do coração. 419

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so de um projeto filosófico estóico, relatado, como vimos, em I, 8: em vez de propiciar a vida tranqüila, que corresponderia ao equilíbrio e à constância do sábio estóico, seu retiro deliberado na solidão da biblioteca, em parte herdada de La Boétie (possivelmente levando a cabo o mesmo propósito narrado na carta de 1563), mergulhou-o nas perturbações das quimeras e dos monstros fantásticos gerados por sua alma. Dessa perspectiva, os capítulos estóicos podem nos conduzir a uma constatação importante sobre a evolução filosófica dos Ensaios: embora a crítica tenha se prendido a um debate sobre a “crise cética” de Montaigne, parece-nos que esse termo, afinal, caberia melhor a essa primeira concepção do ensaio. Se é preciso meditar estrategicamente sobre a força da imaginação e, mais do que isso, registrar o curso desregrado das fantasias para transformá-las, tal esforço visa eminentemente à abolição do regime em que são produzidas e que é sua própria razão de ser. Tratase de tentar equiparar, nalguma medida, sua tentativa de se engajar numa existência filosófica àquela posta em prática por La Boétie, nas palavras como nas ações. Em comparação com os “ensaios” do amigo, ele observa e descreve os seus (valendo-se dos mesmos adjetivos com que apresentara suas perturbações em “Da ociosidade”) como meras fantasias, “corpos monstruosos, montados de diversos membros, sem figura certa, não tendo ordem nem proporção que não na casualidade” (I, 28, 183A); em suma, ele os qualifica como “crotesques” — “pinturas fantasiosas [fantasques], que não têm graça senão na variedade e estranheza” (ibid.) — destinados a emoldurar a valiosa obra do amigo morto32. Embora ainda estejamos distantes da concepção cética de ensaio — que consistirá, ao contrário, a partir de 1576, numa postura filosófi32. O termo crotesque, segundo GREIMAS e KEANE, designa originariamente uma “decoração mural italiana rica e fantasista, à imitação da Antiguidade” (1992, p. 166). A introdução de “Da amizade”, na qual se encontra essa passagem, oferece uma das primeiras alusões aos Ensaios por meio de uma metáfora pictórica. Sublinhemos, contudo, que a metáfora escolhida não é a do auto-retrato, mas a dos “crotesques”, cujo caráter “fantasque” se alia à ausência de uma natureza propriamente representativa. Todavia, essa parece ser também uma das primeiras passagens em que Montaigne também reconhece nessas fantasias algum valor positivo, relacionado à sua “variedade e estranheza” — anunciando um aspecto da transformação que examinaremos a seguir. 420

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ca que, em suas linhas gerais, permanecerá estável33 —, emergem já aqui alguns elementos que permanecerão ocupando um lugar central. Dois, em particular, parecem-nos dignos de nota. O primeiro é relativo ao modo como essa “crise estóica” move Montaigne a refletir sobre a condição individual na qual se encontra, diretamente relacionada à ação de sua imaginação, no que tange às conseqüências para a boa consecução de sua terapia filosófica. A consciência de que ele se situa de modo particular diante do problema — seja tal situação plenamente transformável ou não — emerge claramente quando ele contrasta, por exemplo, as práticas filosóficas das naturezas “firmes e fortes”, que podem fazer de seu otium algo glorioso e exemplar (capazes de levar adiante as prescrições estóicas a ponto de se desfazerem de suas riquezas e se infligirem a dor), à sua “compleição”, que o impede de alcançar esse grau de virtude: [A] Na verdade, em todas as coisas, se a natureza não empresta um pouco, é difícil que a arte e a indústria avancem. Eu sou, quanto a mim mesmo, não melancólico, mas sonhador [songecreux]. Não há nada com que eu me tenha mais entretido que com as imaginações da morte… (I, 20, 87)34. Montaigne entende, portanto, ao menos a essa altura, que sua compleição se singulariza por ser “imaginativa”. Em vez de ir à guerra, ele cria para si “torneios imaginários” que lhe servem de arma contra a 33. Recusando-se a ver a adesão de Montaigne ao ceticismo como uma crise, SCHIFFMANN (1984) a vê, igualmente, como a solução de uma crise intelectual que ele próprio situa, contudo, um pouco diferentemente: tratar-se-ia, em linhas gerais, de superar um conflito entre sua formação pedagógica segundo hábitos argumentativos céticos (in utramque partem) e os “lugares-comuns” da visão de mundo herdada da tradição escolástica. 34. Segundo GREIMAS e KEANE, “songecreux” é “pessoa que pensa profundamente” ou “pessoa que alimenta seu espírito de sonhos e quimeras” (1992, p. 596). Não nos parece desprezível a hipótese de que o uso montaigniano de “complexion” remonte à teoria dos temperamentos, oriunda das correntes médicas afinadas ao estoicismo, segundo a qual a alma é entendida como uma combinação de humores corpóreos (cf. BRÉHIER, 1978, 38 ss.; SCREECH, 1992, p. 37-41). Porém, não nos parece, como a Screech, que o modo como Montaigne se refere à sua índole imaginativa se resuma a um expediente retórico, decorrente da auto-ironia (1992, p. 34). 421

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perturbação (v. 243A). Ao fazê-lo, ao mesmo tempo em que se mira nos argumentos que garantem a superioridade da razão do sábio aos costumes do vulgo, Montaigne se situa, comparativamente, numa posição análoga à do vulgo, cujo procedimento costumeiro ele, todavia, recusa. Mas ele também parece reconhecer que não se afasta inteiramente do mesmo padrão, ao se valer dos subterfúgios que estão ao seu alcance para rumar em direção à tranqüilidade almejada: as armas do costume não diferem essencialmente das armas da imaginação. Essa mesma consciência se traduz na busca de avaliar como sua “compleição” viabiliza a aplicação dos preceitos estóicos relativos à vida filosófica solitária ao seu caso particular: [A] Há compleições mais próprias a esses preceitos [C] do recolhimento [A] do que outras. Aquelas que têm uma percepção branda e frouxa [apprehension molle et lache], uma afecção e vontade delicada, e que não se submetem e se empregam com facilidade, tal como eu sou por condição natural e por reflexão [discours], elas se dobrarão melhor a esse conselho que as almas ativas e ocupadas, que tudo abraçam e em tudo se engajam, que se apaixonam por todas as coisas, que se oferecem e se apresentam, e se dão em todas as ocasiões (I, 39, 242A; itálicos nossos). Se também essa passagem antecipa aspectos do projeto do autoretrato — como se depreende das próprias declarações de Montaigne a esse respeito35 —, cabe insistir que aqui não se trata ainda de reconhecer, como um fim em si mesmo, a auto-observação e a manifestação do juízo em sua singularidade própria. Por ora, ele se orienta pelas próprias preconizações filosóficas do estoicismo, que explicitamente convidam a um auto-exame. Ao mesmo tempo em que exorta Lucílio a persistir na busca de uma vida filosófica, Sêneca não deixa de ponderar acerca dos 35. Em II, 8, 385, depois de afirmar que sua atividade de escrever é oriunda do humor melancólico produzido pela tristeza, ele informa que se tomou como tema, achando-se desprovido de outro. “[A] É … um desígnio pioneiro [farouche] e extravagante…” (II, 8, 385). Há razão, nessa medida, em observar que já esses primeiros capítulos, compostos antes de 1574, não são inteiramente desprovidos de elementos “pessoais”, tal como propõem GENZ (1962) e LA CHARITÉ (1971), o que permitiria recusar ou, pelo menos, relativizar o diagnóstico de Villey sobre a natureza impessoal desses capítulos. 422

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limites do empreendimento de aderir racionalmente ao que dita à natureza, diante dos entraves que se podem interpor a essa tarefa: sejam os vícios, que se tornam de cura difícil ou impossível à medida que se tornam hábitos, seja aquilo que aportamos como constituindo a nossa natureza, na forma de uma limitação intrinsecamente pessoal, que a sabedoria filosófica seria incapaz de superar36. Como saber quais são esses limites? Como traduzir exatamente as prescrições morais estóicas segundo a trama particular dessas circunstâncias desconhecidas? Tu compreendes que é preciso se subtrair dessas ocupações más e especiosas, mas desejas saber de que modo isso pode ser obtido. Há certas coisas que só podem ser apontadas pelos que estão presentes. O médico não pode prescrever por carta quais as ocasiões das refeições e dos banhos, ele precisa medir o pulso… Podemos apenas formular regras gerais e deixá-las por escrito, quanto ao que comumente se faz ou deve ser feito… (Epist., I, xxii, 1-2). Eis por que Sêneca exorta Lucílio ao auto-exame37: como a vida filosófica depende do conhecimento dessas circunstâncias, a observação de si mesmo é um aspecto integrante da autonomia do sábio. Na medida em que os ensaios são aqui “monstros fantásticos”, que trazem a marca da distância em que se encontram de um objetivo filosófico há muito perseguido e ainda inalcançado, eles convidam à consideração do caminho a ser percorrido em busca desse fim. Essa preocupação se traduz, como vimos, na interrogação sobre o sentido em que sua natureza pessoal, à luz dos conselhos estóicos, exigiria uma redefinição desse projeto para sua boa consecução. Mas, além disso, dela também decorre uma focalização particular dos preceitos filosóficos estóicos, posto que sua compreensão se dá, por ora, num regime assumidamente prévio ao pleno uso filosófico da razão. O controle da imaginação é uma ação da razão, iluminada pela boa compreensão que ela 36. Ver Epist., I, xi, 1, 7 (“Tudo aquilo que nos é assinalado pelo nosso nascimento e pela nossa têmpera corporal [temperatura corporalis] permanecerá conosco, a despeito de quanto tempo ou esforço a alma despender para se dominar a si mesma…”); ver ainda as cartas xxv, xxix, xxxix. 37. Ver Epist., I, xvi, 2-3. 423

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produz, acerca tanto dos falsos motivos dessas perturbações como das verdades que elucidam a possibilidade mesma de sua superação. Se assim é, há ocasião de suspeitar que a compreensão atual dos preceitos que orientam essa atividade não seja ainda plenamente satisfatória. Eis por que, ao lado dos ensaios até aqui considerados, encontramos outros, aparentemente contemporâneos (1572-1574), cuja temática é claramente epistemológica. São, por exemplo, capítulos como estes, eloqüentemente denominados “Nossas afecções se deixam ir para além de nós mesmos” (I, 3) ou “Como a alma descarrega suas paixões sobre objetos falsos quando os verdadeiros lhe faltam” (I, 4). A despeito do tom solene com que Montaigne assume as argumentações senecanas como fio condutor de seus ensaios estóicos, é preciso levar em conta a hesitação que ressoa em questões como estas que, a essa altura, ele discute: devemos aceitar que a alma, em seu contato com as coisas, experimenta apenas aquilo que ela própria projeta nelas? Em que medida será a alma inteiramente capaz de agir sobre si mesma (em particular, sobre sua fantasia) de um modo satisfatório em vista de suas perturbações? [A] Os homens (diz uma antiga sentença grega) são atormentados pelas opiniões que têm das coisas, não pelas próprias coisas. Haveria uma grande conquista para o alívio de nossa miserável condição humana se fosse possível estabelecer essa proposição como verdadeira, sempre e plenamente. Pois, se os males não adentram em nós senão por nosso juízo, parece que estaria em nosso poder desprezá-los ou transformá-los [contourner] num bem. Se as coisas se oferecem à nossa mercê, por que não as aproveitamos, ou não as acomodamos a nosso favor? Se o que chamamos mal e tormento não é nem mal nem tormento em si, mas é apenas a nossa fantasia que lhe dá essa qualidade, está em nós [o poder] de mudá-la… (I, 14, 50; itálicos nossos). Reparemos como juízo e fantasia foram articulados nessa passagem, que introduz o capítulo “Que os bens e os males dependem em grande parte da opinião que deles temos”: embora o termo “juízo”, à primeira vista, designe, sobretudo, o modo pelo qual avaliamos e opinamos acerca das coisas e o termo “fantasia” aponte antes o elemento subjetivo que configura nossas apreensões, tais instâncias são afinal equiparadas e identificadas como aquilo pelo que “os males adentram 424

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em nós”. A hipótese “mentalista” considerada nessa passagem — hipótese de orientação estóica, segundo a qual nós seríamos sempre a causa de nossas apreensões dos males — seria, para Montaigne, bem-vinda, na medida em que, se verdadeira, determinaria, ao menos em tese, a possibilidade de intervirmos sobre a experiência dos males (“cabe a nós mudá-la”)38. Mas notemos que essa hipótese epistemológica está sendo considerada, basicamente, como objeto de investigação. O próprio capítulo (I, 14) se estrutura como um exame dos principais males com os quais temos que nos defrontar (sobre os quais igualmente se concentram as reflexões de Sêneca) — a dor, a pobreza e a morte —, que, contudo, não emergirão desse exame como equivalentes: contrapondo a morte à dor, por exemplo, Montaigne admite que, no caso da primeira, o poder de ação da alma sobre a experiência do mal tende a ser consideravelmente maior39. A despeito da orientação estóica dessa discussão, é curioso observar que Montaigne recorre a exemplos provenientes de outras filosofias em busca de uma virtual corroboração de suas considerações: o famoso porco de Pirro — que, permanecendo calmo a bordo de um barco em plena tempestade, teria sido apontado pelo filósofo como exemplo da virtude originária da ignorância — é então arrolado como argumento, em favor tanto do reconhecimento da intervenção da alma no que tange ao medo da morte como da restrição desse poder quando se trata da 38. Talvez essa avaliação hipotética do poder da alma pudesse ser aproximada a um conhecido aspecto da doutrina estóica da percepção (segundo a qual só temos diretamente acesso às phantasiae, modificações de nossa alma, entre as quais deveríamos assentir apenas às que fossem “apreensivas”, isto é, verdadeiras por representar adequadamente a realidade exterior). Não há, ao que parece, nenhum texto do período que permita estabelecer essa aproximação de modo mais rigoroso. Porém, numa passagem tardia, acrescida ao capítulo I, 12, aparentemente proveniente de Aulo Gélio, Montaigne usa o termo “fantasie” para traduzir precisamente a noção estóica de phantasía, significando igualmente uma impressão sensível e uma paixão que se apresentaria diante da alma do sábio impassível (v. I, 12, 46C). Considerações de teor análogo se encontram em Sêneca (v. Epist., I, xi), mas esse autor não usa a expressão phantasía. Aparentemente, Montaigne só estudou as demais fontes antigas que discutem essa teoria estóica (como os Academica) posteriormente. Para uma apresentação sucinta dessa doutrina estóica, ver BRÉHIER, 1978, vol. III. 39. Ver I, 14, 55-56A. 425

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experiência sensível da dor40. Isso não significa que, segundo Montaigne, a alma não tenha um papel decisivo no que se refere à experiência da dor, mas isso o conduz à constatação de que aí o costume pode ser mais efetivo do que a razão: “[A] O que nos faz sofrer a dor com tanta impaciência é não estarmos acostumados a encontrar nosso principal contentamento na alma…” (I, 14, 57). Igualmente, no capítulo destinado ao exame da força da imaginação (I, 21), ao lado das mais diversas constatações, presentes já na primeira edição (colcha A), sobre o poder dessa faculdade, especialmente no que tange às relações entre o corpo e a alma41, Montaigne tende a dimensioná-la em vista do modo como cada alma é capaz de resistir a suas impressões (opondo a credulidade do vulgo à reflexão dos mais sábios)42. Eis, portanto, como se articula o ensaio estóico de Montaigne, em torno da tentativa de efetuar uma terapia filosófica da perturbação originada pela idéia da morte e da investigação correlata das condições que determinam a boa consecução dessa tarefa. Determinadas já no nível da “compleição natural” do filósofo, elas abarcam uma gama diversa de particularidades que as favorecem ou prejudicam, e incluem uma avaliação da própria compreensão relativa que tem o filósofo dos elementos racionais que as norteiam. Por ora, tais elementos apenas se projetam no plano das “fantasias” ou “opiniões”, que exibem implicitamente a distância que ele reconhece mediar entre sua versão singular 40. Ver I, 14, 54-55A: “Aqui o porco de Pirro nos acompanha. Ele bem pode não ter medo da morte, mas se lhe batem, ele guincha e se atormenta…” (ibid.). O que faz com que nessa ocasião o porco se alie a Montaigne? Provavelmente, não é o fato de que ele se contraporia à tese de que o medo da morte é produzido por nossa imaginação (e que ele entende ser consoante com o que dizem os estóicos), mas antes o fato de que ele ofereceria um contra-exemplo a uma hipótese mais geral sobre o enfrentamento das perturbações: o porco, noutras palavras, parece então servir como porta-voz das dúvidas do autor acerca do sentido ou da validade das teses em pauta, que não chegam, porém, a constituir uma reflexão cética organizada como as que se elaboram posteriormente, tal como as examinamos. A fonte dessa passagem é, provavelmente, Diógenes Laércio (Vidas dos filósofos ilustres, XI, lxviii), muito embora, segundo Villey, a anedota seja recorrente nas compilações contemporâneas (v. Les Essais, p. 1228). 41. Ver I, 21, 98A, 103-104A. 42. Ver I, 21, 99A, cf. I, 27, 178A. 426

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do empreendimento filosófico e o ideal que almeja. Ao mesmo tempo, tais fantasias nos permitem apreender o significado filosófico central de que é investida a faculdade que as produz: ela tanto é a causa de perturbação, obstáculo aos projetos racionais vislumbrados, como também pode ser o fator individual de superação de seu próprio domínio, graças ao fio condutor da razão estóica. Tais são os traços gerais desse panorama, cuja transformação mediante o contato com o ceticismo cabe agora tentar examinar. 7.2. Da fantasia dogmática à fantasia cética

Considerar essa mudança de perspectiva filosófica segundo o fio condutor desse exame nos permite compreender melhor a importância da reflexão epistemológica para Montaigne (ainda que suas preocupações principais não deixem, por isso, de ser concernentes à esfera da “moral”). O problema relativo ao modo como nossas representações dependem de nossa alma receberá, por volta de 1576, uma resposta mais definida e estável, que permanecerá a ser aceita na evolução ulterior dos Ensaios (ainda que, por seu estatuto filosófico próprio, possua um caráter intrinsecamente provisório). Igualmente, o conceito de “fantasia” passará a ser empregado num sentido filosófico mais preciso do que aquele que podemos observar nos ensaios estóicos. Isso não significa, porém, que não se preservem elementos da concepção presente nesses ensaios, importantes para a compreensão das inflexões autoretratistas que o ensaio montaigniano ganhará. Qual é a resposta que Montaigne adota, segundo uma perspectiva cética, para o problema enunciado? Passagens posteriores a essa época que tratam do tema retomam a idéia de que a alma intervém em grande medida no modo como apreendemos as coisas: só as conhecemos de um modo relativo à ação de nossas faculdades cognitivas e não podemos nos pronunciar, por conseguinte, acerca de como elas são em si mesmas43 . 43. Por exemplo, ver I, 50, 302: “[C] As coisas, elas mesmas à parte, têm talvez seu peso, medida e condição, mas interiormente, em nós, [a alma] lhes talha como bem entende…”; ver também II, 20, 673A. 427

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Montaigne pretende revelar a fraqueza cognitiva do juízo, como vimos no capítulo anterior, alegando que, em vez de serem as coisas conhecidas em sua natureza própria, elas se alojam em nós como nos apraz44. Ele parece assumir, assim, com seu ceticismo, uma espécie de mentalismo, cujo sentido precisa, porém, ser esclarecido: não apenas porque ele não corresponde à admissão de pressupostos epistemológicos de natureza teórica, mas também porque conduz a um resultado inteiramente oposto do que seria o esperado segundo as reflexões estóicas. Tal mentalismo não corresponde à admissão de uma tese epistemológica que permita determinar, de modo geral, a natureza de nossas representações. Muito ao contrário: ainda que certas idéias possam ser um produto de nossas faculdades, o fato de o nosso juízo ser sujeito à intervenção de um meio diverso de um puro poder de conhecer é lembrado como um fator, dentre outros, que nos impede de dispor de um critério para saber o que são as coisas. Exprimindo sua concordância com os pirrônicos, na “Apologia”, ele se manifesta claramente sobre esse ponto na introdução do “exame dos sentidos”, nos quais reside, a seu ver, “o maior fundamento e prova de nossa ignorância…”: nós simplesmente não podemos saber se aquilo que pensamos conhecer, no seu todo ou em parte, é um produto da ação transformadora da alma ao apreender as coisas, ou se corresponde, ao contrário, a como as coisas efetivamente são45. Admitir a possibilidade de uma intervenção de certas partes da alma sobre outras no processo de cognição, sem que saibamos determinar exatamente como isso ocorre, significa, no fim das contas, reconhecer que nosso poder cognitivo é mais fraco do que imaginamos ser quando espontaneamente pensamos conhecer as coisas, e que não dispomos de conhecimento seguro acerca de como nossa alma intervém na percepção, eventualmente comprometendo o valor objeti44. Ver 562A, passagem analisada em 6.2.1. 45. A esse respeito, cf. 587AC, em que Montaigne opõe diversas posições filosóficas acerca do problema de saber se nossas representações correspondem às coisas, entre as quais a dos pirrônicos, que “atingem sempre o mais alto ponto da dúvida” ao dizer que não sabem a resposta. Embora apresentada em terceira pessoa, como uma resposta entre outras, é fácil constatar que a ela correspondem os argumentos que, em seguida, Montaigne apresenta para sustentar a mesma posição dubitativa. 428

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vo da cognição. Trata-se de um problema similar àquele que se manifesta no exame da ação do costume, tal como vimos anteriormente46: por sua ação, ele nos rouba os critérios para o reconhecimento de sua presença. Problema similar, mas aqui presente de um modo talvez mais radical, uma vez que nossa própria alma se imiscui sorrateiramente no andamento das faculdades pelas quais poderíamos conhecer as coisas, de modo tal que conduz Montaigne a concluir, como vimos, que “nosso juízo natural não obtém claramente o que obtém” (v. 562). Se isso ocorre, é simplesmente porque não podemos exatamente determinar em que medida um meio diverso de um “simples poder natural de conhecer” — seja ele o costume ou a imaginação47 — intervém naquilo que tomamos como verdadeiro, produzindo apenas mais uma perspectiva individual e particular que, não obstante seu conflito com as que lhe são potencialmente opostas, almeja sempre oferecer a verdade. Em suma, são as próprias tentativas de oferecer uma solução a esse problema epistemológico que, consideradas em sua contradição insolúvel e segundo os diversos problemas demonstrativos que suscitam, vão agora se revelar meras especulações fantasiosas, que proliferam à sombra da ignorância de nossos limites cognitivos. Com efeito, esse é um tema freqüentemente retomado nos Ensaios a partir desse momento: a própria idéia de que a razão ou o entendimento humano possa obter verdades passa, de modo geral, a ser vista como uma fantasia (tratada aqui como sinônimo de pura imaginação). Ao justificar a suspensão cética, Montaigne assim alude à diaphonía das filosofias dogmáticas: “[B] Não é melhor permanecer em suspensão do que se embaraçar em tantos erros que produziu a fantasia humana?…” (504; itálico nosso)48. Trata-se aqui de mais uma ressonância das fontes céticas desconsiderada pelos comentadores: nas Hipotiposes de Sexto Empí46. Cf. capítulo III, item 3.1 — “Um traiçoeiro mestre”. 47. Os termos com que Montaigne descreve a situação oscilante do julgamento, logo em seguida, sugerem que o “outro meio” intervindo na particularidade de nossas opiniões pode corresponder à fantasia: “[A] Quão diversamente julgamos nós as coisas? Quantas vezes nós mudamos nossas opiniões [fantasies]?” (563). 48. Ver, ademais, as passagens mencionadas no início deste capítulo, bem como 511AC. 429

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rico, os dogmatismos são por vezes descritos como uma ficção produzida pelos filósofos, que meramente imaginam, ainda que não o saibam, conhecer uma verdade nas opiniões que apresentam como certas. Assim Sexto comenta, por exemplo, a teoria pitagórica dos números: “Tais são as ficções que eles imaginam…” (III, 156)49. Igualmente, no Quod Nihil Scitur (1581), de Francisco Sanches, possivelmente lido por Montaigne antes da publicação da segunda edição dos Ensaios, as filosofias dogmáticas são expressamente qualificadas como ficções50. O tema, de todo modo, recebe um tratamento particularmente enfático nos Ensaios, possivelmente resultante, em parte, da leitura das obras morais de Plutarco (uma das quais se intitula “Que os estóicos dizem coisas mais estranhas do que os poetas”)51, ou ainda das obras de Agrippa (seja o De Occulta Philosophia, no qual encontramos um elogio das forças da imaginação, seja principalmente a autocrítica cética que esse autor posteriormente faz de suas reflexões anteriores, intitulada De Vanitate Scientiarum)52. Essa ênfase não distorce, contudo, o 49. Ao longo dos livros II e III das Hipotiposes, Sexto argumenta para mostrar a “inapreensibilidade” das concepções particulares dos filósofos dogmáticos. Em HP III, 114, por exemplo, ele conclui sua investigação sobre as noções de geração e corrupção afirmando que a física dos dogmáticos é “irreal e inconcebível” (“tó anúparkton… kaì anepinóeton”). Noutra passagem, a propósito da teoria platônica da alma, ele afirma ser um contra-senso admitir que “a construção imaginária [aneidelopoiésin] da alma proposta por Platão seja capaz de receber o Bem…” (HP III, 189). 50. Por exemplo, empregando um argumento aristotélico contra a tese platônica segundo a qual haveria uma identificação entre conhecer e lembrar, Sanches afirma: “Com minhas desculpas a esse pensador normalmente tão brilhante, esta é uma ficção desprovida de fundamento [leue admodum figmentum], que não se sustenta nem pela experiência nem por argumento racional — como mil outros sonhos que ele sonhou acerca da alma, como irei demonstrar no meu ‘Tratado sobre a Alma’…” (QNS 17, 193). Ver, igualmente, QNS 13-14, 189; 22, 199. 51. Ver PLUTARCO, op. cit., 560-561. Trata-se, nesse opúsculo, de ironizar a moral estóica em diversos de seus aspectos — a liberdade do sábio, a noção de virtude, a apatia, a inconstância —, afirmando que tais idéias são similares às descrições mitológicas dos heróis homéricos (tidas por ele como mais verossímeis que as invenções dos estóicos). Noutro opúsculo que, do mesmo modo, Montaigne certamente leu, intitulado “As contradições dos filósofos estóicos”, tais contradições doutrinais são examinadas por meio de argumentos que o próprio autor atribui aos acadêmicos (v. 561 D-E). 52. Ver nota 30 deste capítulo. No ensaio I, 21, encontramos um dos primeiros exemplos claros do procedimento montaigniano de “torcer as razões” para lhes conferir 430

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sentido essencial da crítica cética à vaidade que ele intermedeia — esteja ela presente no antropomorfismo religioso53, no modo como os supostos conhecimentos das coisas “humanas e naturais”, como as roldanas e amarras que segurariam os astros, segundo Platão, em seus movimentos, revelam-se apenas “sonhos e fantásticas loucuras” (v. 536537A); ou ainda na forma como, numa glosa à afirmação platônica de que a natureza seria uma “poesia enigmática” que nos incita a inúmeras conjecturas, é a própria filosofia, segundo Montaigne, que se torna uma “poesia sofismada”54. Tal é a amplificação que o tema recebe que a própria razão, como dissemos, chega a ser assimilada, em sua operação, a essa faculdade: “[A] … eu chamo razão nossos devaneios e sonhos, com a autorização da filosofia, que afirma que mesmo o louco e o raivoso enlouquecem pela razão, mas que se trata de uma razão de forma particular…” (523)55. deliberadamente um sentido diverso daquele que se encontra originalmente em seus autores, freqüentemente de modo irônico. Os exemplos de Agrippa anteriormente considerados, sobre o poder especial com que a imaginação nos outorgaria um contato corporal com o sobrenatural, convertem-se, segundo Montaigne, num exemplo do que é capaz a imaginação humana (não mais aqui no sentido, contudo, de designar um poder de intervenção na realidade, e sim no sentido compatível com a crítica cética). Por meio dessa ironia, ele se aproxima, porém, do Agrippa tardio, que, no De Vanitate, critica os diversos saberes num tom análogo. Em 89 ss., por exemplo, ele se refere à astrologia, ao longo de uma digressão autobiográfica, como “puras mentiras e fábulas poéticas, prodigiosos devaneios e falsas imaginações”. 53. Ao longo da radical crítica que Montaigne dirige à pretensão de conhecimento religioso — que o leva a afirmar que deveríamos, quanto às coisas celestes, imaginá-las inimagináveis (v. 518, 523) —, ele alude a diversas manifestações da religiosidade humana (invariavelmente por meio de exemplos antigos ou maometanos) como “chimeres” (529) ou “fantasies” (521); em 532-533, Montaigne retoma de Cícero um argumento contra o antropomorfismo divino dos epicuristas, atribuído a Xenófanes: se, como nós, os animais inventarem deuses, como é verossímil que o façam, eles deverão tomar a si mesmos como modelos, como nós o fazemos: o Deus do pato, assim, deverá possuir a forma do pato. 54. Cf. 536-537A. No original, “poesie sophistiqué”, em que o segundo termo significa, provavelmente, “feita de sofismas”. GREIMAS e KEANE (1992, p. 596), traduzem essa ocorrência como “transformar desnaturando”, embora também reconheçam para esse termo, no moyen français, os sentidos de “enganar” e “desnortear”. 55. Villey não oferece nenhuma indicação de fonte para essa passagem, mas seu contexto é claro. Os “devaneios” racionais em jogo são exemplos da aplicação da razão 431

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É curioso, porém, que o termo “fantasia”, ao mesmo tempo, seja sistematicamente empregado por Montaigne para traduzir as ocorrências de “phantasía” nos textos pirrônicos por ele retomados. Pode-se dizer que esse termo de origem estóica possui, igualmente, um estatuto técnico no pirronismo de Sexto, designando as afecções ou impressões que o cético assume como virtualmente correspondentes ao que é phainómenon e às quais dá assentimento, como parte do critério prático. Em HP I, 13, por exemplo, Sexto informa que o cético admite crenças no sentido amplo de “aprovação a algo”, como, por exemplo, “aos sentimentos que resultam de nossas impressões [phantasíai] — de tal modo que ele não dirá ‘acredito estar com frio (ou calor)’ quando estiver sentindo calor (ou frio)”. O assentimento estaria suspenso apenas no sentido em que dogma designa, além dos sentimentos e das phantasíai que o causam, um objeto não-evidente da investigação filosófica (ibid.). Logo adiante, Sexto esclarece que, analogamente, o cético não quer abolir o aparecer das coisas, isto é, “aquilo que nos conduz ao assentimento involuntário de acordo com uma impressão passiva [phantasía pathetiké], isto é, aquilo que é phainómenon” (HP I, 19)56. A julgar por essas linhas, a phantasía corresponderia à impressão perceptiva ou mental que teria como causa uma afecção (pathé), como em HP I, 13, mas corresponderia a tudo aquilo a que, de modo amplo, assentimos involuntariamente como pertencente à esfera do phainómenon (as impressões sensíveis correspondentes aos objetos externos, os valores a que assentimos por força de nossos hábitos e tradições, os efeitos de nossas faculdades internas, ou mesmo a linguagem e os conceitos filosóficos pirrônicos a que o cético assente segundo sua experiência)57. no âmbito da teologia, exemplo privilegiado da “espantosa embriaguez do entendimento humano” (516) que Montaigne visa igualmente atestar por meio dos outros casos que arrola. Ainda aqui, porém, convém lembrar que, ao relatar a “Vida de Pirro”, Diógenes Laércio, aludindo às hoje perdidas Hipotiposes de Enesidemo, atribui a esse autor cético uma identificação análoga entre razão e imaginação (v. op. cit., p. 182, 184). 56. Se tomamos por base a versão latina de Hervet, possivelmente usada por Montaigne, o termo “phantasía” é mantido, tanto nessa passagem quanto na que foi citada anteriormente (v. op. cit., cap. VII, p. 407). 57. Ver BURNYEAT, 1978, p. 127: opondo-se a Charlotte STOUGH (Greek Skepticism, Berkeley/Los Angeles, 1969), para quem phantasía significa estritamente “impressão 432

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Tais phantasíai correspondem, em suma, àquilo a que o cético em suspensão dá assentimento de modo involuntário. Na introdução do livro II das Hipotiposes, Sexto esclarece que a recusa das sutilezas filosóficas propostas pelos dogmáticos não impede o cético de pensar e proceder à sua investigação, dado que a suspensão, limitando-se à realidade dos objetos não-evidentes propostos por essas filosofias, não atinge a phantasía — o que lhe aparece espontânea e passivamente no pensamento pelo simples fato de realizar essa investigação sobre os objetos dogmáticos, ainda que sejam eles irreais58. Ao mesmo tempo, situar no domínio da phantasía o objeto do assentimento para o cético contribui para marcar o viés assumidamente relativo e subjetivo desse assentimento, pois seu estatuto é o da narrativa de um cronista que se limita a registrar os fatos tal como lhe aparecem nesse momento (v. HP I, 4). Referindo-se às diversas posições filosóficas que se ofereciam como candidatas ao assentimento, Sexto informa que o cético, inicialmente perturbado pelo problema de discriminar quais phantasíai eram verdadeiras ou falsas (cf. HP I, 25-27), viu-se incapaz de escolher entre as antíteses de igual peso e acabou por encontrar nessa epokhé sua imperturbabilidade. Contudo, o fato de que a renovação da epokhé se converta casualmente num fim da atividade cética — tal como ocorreu ao pintor Apeles, que casualmente se deparou com a espuma na boca do cavalo ao ter lançado a esponja sobre a tela, quando desistia de obter o efeito desejado — é algo que aparece para o filósofo cético, igualmente, com o estatuto de phantasía, isto é, de algo que se impõe involuntariamente à apreensão desse filósofo (cf. HP I, 28-30). Não é por meio de uma expressão diversa que Montaigne alude ao sentido não-assertivo em que os pirrônicos fazem de seu fim a ataraxía, numa discussão sobre as controvérsias da filosofia moral: sensível”, Burnyeat observa que, em Sexto, como no vocabulário estóico, há phantasíai que não correspondem a impressões sensíveis, entre elas a própria phantasía segundo a qual não podemos reconhecer uma phantasía apreensiva. Ademais, insiste ele, os aspectos do phainómenon ao qual o cético dá assentimento (os objetos mentais, o pensamento, as próprias expressões céticas) não corresponderiam a tal interpretação; ver também p. 129 ss. 58. Ver HP II, 10. 433

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“[A] Os pirrônicos, quando dizem que o soberano bem é a ataraxía, que é a imobilidade do juízo, não entendem dizê-lo de uma forma afirmativa; é o mesmo movimento da sua alma que os faz evitar os precipícios e se abrigar que lhes apresenta essa fantasia [fantasie] e lhes faz recusar uma outra… (578).

Aqui “fantasie” designa precisamente o sentido fenomênico em que essa ataraxía se aceita (como uma decorrência imediata da epokhé), sentido em que se podem igualmente aceitar, como mostra essa passagem, as impressões sensíveis e o conteúdo de suas reflexões. É por meio do mesmo termo que Montaigne alude a outras concepções que são objeto de assentimento do filósofo pirrônico; seja a idéia de que a linguagem se isenta de peso assertivo, uma vez que a dúvida cética se aplica sobre suas afirmações59, seja o sentido em que a “epokhé”, segundo seu entendimento pessoal, se impõe involuntariamente para os pirrônicos: “[A] … exprimo essa fantasia na medida em que posso…” (505; itálico nosso). O mesmo cuidado conceitual confirma-se noutras passagens em que Montaigne, ainda mais claramente, traduz termos técnicos do ceticismo pirrônico. Ao final da “Apologia”, pondo o próprio testemunho dos sentidos em questão no cume de sua retomada sistemática da argumentação cética, ele escreve: [A] Nossa fantasia não se aplica às coisas externas [choses estrangeres], ela é antes concebida por intermédio dos sentidos; e os sentidos não compreendem [comprennent] o objeto [subject] externo, antes as suas próprias paixões [passions]; assim, a fantasia e aparência [fantasie et apparence] não é do objeto, mas somente da paixão e recepção do sentido, sendo essa paixão e o objeto coisas diversas. Por isso, quem julga pelas aparências julga por outra coisa que pelo objeto. E [quanto a] dizer que as paixões do sentido reportam à alma a qualidade dos objetos externos [subjects étrangers] por semelhança, como podem a alma e o entendimento se assegurar dessa semelhança, não tendo por si nenhum comércio com os objetos externos? Tal como quem não conhece Sócrates, vendo seu retrato, não pode dizer que lhe é semelhante… (601; itálicos nossos). 59. “Esta fantasia é mais seguramente concebida pela interrogação: Que sei eu? como eu a uso como divisa numa balança” (527A; itálico nosso). 434

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Aqui ele adapta uma passagem das Hipotiposes (HP II, 72 ss.), situada no exame dos diversos critérios dogmáticos de verdade, em que Sexto alveja, mais precisamente, a teoria estóica da representação apreensiva (phantasía kataleptiké). Nessa argumentação, o ataque ao estoicismo tem um papel de destaque, seja pelo fato de o próprio exame se orientar por uma divisão estóica das partes da filosofia (lógica, física e ética), seja pela visível intenção de voltar contra os estóicos seus próprios pressupostos (evidenciando que a tese de que só temos acesso à nossa phantasía, modificação de nossa própria alma, nos retira os meios de reconhecer qual delas seria kataleptiké, isto é, apreensiva da realidade externa). Uma rápida comparação com o texto latino de Hervet mostra aqui, novamente, que, ao adaptá-lo, Montaigne cuida de preservar a terminologia cética, empregando “passions” para traduzir “passiones”, “subject estranger” para “subjectus externus”, “comprendre” para “comprehendere” — e, para “phantasia”, o termo “fantasie” (ao qual associa, como sinônimo, “apparence”)60. Não deixemos, ademais, de notar que, na primeira ocorrência do termo na passagem acima, “fantasia” parece designar, além de nossas simples representações, uma ação de “nossa” faculdade apreensiva humana, tal como a empregamos diante dos objetos sensíveis que percebemos como objetos externos. Essa mesma acepção se confirma em outros textos citados por Montaigne, como este de Plutarco, por meio do qual ele busca, na “Apologia”, precisar os contornos conceituais da epokhé: “Das três ações da alma, a imaginativa [l’imaginative], a apetitiva e a do assentimento [consentante], eles [os céticos] acolhem as duas primeiras; a última, eles a suspendem e a mantêm ambígua, sem inclinação nem aprovação de uma parte ou de outra, por mais ligeira que seja…” (503). O emprego de “imagination” não é tampouco aqui uma inovação de Montaigne: trata-se da mesma expressão que Amyot emprega para traduzir aquilo que no original de Plutarco é phantasía61. O mesmo Plutarco, por meio dos termos que 60. Cf., por exemplo, a passagem latina correspondente a HP II, 72-75. 61. Ver PLUTARCO, “Contre l épicurien Colotes”, 596 D-E. Para o original de Plutarco, ver Plutarch’s Moralia, Prós Kolótem úper tón allón philosophon, Loeb Classical Library, Harvard University Press, XIII, p. 219, 1112 A-F. 435

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lhe empresta Amyot na tradução lida e elogiada por Montaigne, cuida de esclarecer que “imagination” designa aquilo a que os céticos (acadêmicos) assentem, seja como objeto involuntário da percepção sensível62, seja como aquilo que se apresenta como um bem em virtude do qual a ação é possível: ela é, segundo essa filosofia, aquilo cuja aceitação basta para agir no mundo conforme a natureza. Portanto, o termo “fantasia” é igualmente usado por Montaigne para nomear aquilo que é objeto de assentimento para o cético, num sentido involuntário e relativo, concomitante à epokhé, mas já aqui é resultante da ação de uma faculdade da alma. Igualmente, porém, o mesmo termo designa aquilo que essa faculdade produz, no caso das filosofias dogmáticas, como especulações delirantes e ilusórias que podem passar, para quem as adota, por verdades inabaláveis sobre o mundo. Mais ainda, o próprio Montaigne o emprega para se referir aos ensaios de seu juízo, nomeando, precisamente, a faculdade pela qual ele passivamente apreende aquilo que lhe ocorre63. Se ele cuida de seguir, como vemos, em seu detalhe terminológico, os textos céticos que retoma, por mais que os leia de modo inovador, é significativo que ele singularize sua atividade ensaística referindo-se a ela como um “fantasiar”, um filosofar caracterizado pela formulação de “fantasias irresolutas”: não uma apresentação do mundo e das coisas, mas apenas uma exposição estritamente pessoal e provisória do que pensa: [A] Eu proponho fantasias disformes e irresolutas, como fazem aqueles que publicam questões duvidosas, para debater nas escolas: não para estabelecer a verdade, mas para procurá-la… (I, 56, 317). [C] Eu proponho fantasias humanas e minhas, simplesmente como humanas fantasias, não como decididas e regradas pelas ordenações celestes, isentas de dúvidas e altercação: matéria de opinião, não matéria de fé, o que eu discorro [discours] segundo eu mesmo, não 62. Explicando a diferença entre as três ações da alma segundo os acadêmicos, Plutarco escreve: “quanto à imaginativa [imaginative] ou apreensão, não se poderia suprimi-la quanto bem se quisesse, pois é forçoso que quando nos acercamos das coisas, sejase informado e moldado [informe & moulé], por assim dizer, por elas, e receba-se a impressão delas…” (ibid.). 63. Cf. I, 26, 146; passagem citada no início deste capítulo. 436

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o que creio segundo Deus, assim como as crianças fazem suas lições [essais]: capazes de ser instruídas, não instrutoras; de matéria leiga, não clerical, mas sempre mui-religiosa… (ibid., 323).

Igualmente significativo, porém, é o fato de que tais “fantasias” céticas permaneçam igualmente sendo, como o eram na fase estóica, produtos de sua imaginação — os “devaneios” (resveries) de um homem que apenas saboreou a crosta das sciences (v. I, 26, 146A), ou, nos termos em que bem posteriormente ele ainda se referirá ao seu ócio filosófico: “Por vezes eu sonho [je reve], por vezes eu registro e dito, caminhando, estes devaneios [songes] que aqui estão…” (III, 3, 828B). Trata-se de uma inconsistência? Pensamos que, ao contrário, prestar atenção à ambivalência desse termo não apenas confirma que Montaigne reconheça uma espécie de afinidade entre a filosofia cética e a dogmática (quanto à natureza dos objetos a que se assente), mas permite, sobretudo, precisar o sentido da diferença que ele entende haver entre essas formas de filosofar (relacionada, como vimos, a uma tomada de consciência diversa dessa situação, bem como às atitudes filosóficas com ela coerentes). Trate-se de um cético ou de um dogmático, a fantasia é aquilo que designa, seja objeto externo ou interno, aquilo que humanamente nos surge como objeto do assentimento. Em ambos os casos, na medida em que tal assentimento aponta uma “impressão de verdade”, estamos ainda diante de um objeto determinado por nossas faculdades subjetivas — pelo modo como o juízo põe diante de si uma idéia de verdade, ou bem por nossa própria imaginação de possuir algo de verdadeiro, que se imiscui de algum modo naquilo que é objeto de nosso assentimento, se não na própria idéia de verdade pela qual permanentemente nossas faculdades cognitivas naturalmente se guiam. O emprego desse único termo em todas as situações descritas parece sublinhar, uma vez mais, que o cético assente de modo relativo àquilo que permanece lhe aparecendo como verdadeiro, ainda que restritamente ao “uso” das coisas: trata-se de algo que não é verdadeiro em si, mas que aparece como verdadeiro e poderia, em princípio, revelar-se falso e fantasioso a um olhar mais penetrante, capaz de discernir, no ato de assentimento, a intervenção ilusionista da fantasia. 437

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Nessa medida, a “fantasia” montaigniana parece afinal antecipar um fenômeno típico da filosofia moderna, ao se oferecer como uma espécie de solo epistemológico básico da própria atividade do pensamento, seja cético ou dogmático. Porém, o recurso a essa temática esclarece que, enquanto o filosofar dogmático acaba por se revelar, de modo geral, solidário de uma pretensão malfadada de evadir do terreno da fantasia, que apenas acaba por levar o filósofo a nele se enredar mais profunda e sutilmente, o ceticismo, ao contrário, corresponderia a uma denúncia do caráter vão de tal pretensão e, sem abdicar da intenção de realizar uma crítica da ação ilusória da fantasia (da qual o filósofo dogmático é a vítima exemplar), ao reconhecimento, afinal, da impossibilidade de o fazer cabalmente. O terreno da fantasia, em toda a sua dimensão, revela-se permanente e inescapavelmente constitutivo de nossa situação no mundo: o que podemos, na melhor das hipóteses, é minimizá-lo, conhecê-lo e nalgum grau conscientemente aceitá-lo — como veremos melhor no item seguinte. Por fim, cabe ainda observar que a redução das teorias filosóficas dogmáticas ao terreno da fantasia tem, por certo, conotações que ultrapassam a dimensão epistemológica. Como já se observou fartamente, a idéia de um enfrentamento racional da dor e do medo da morte, tal como proposta pelo estoicismo, passa a ser amplamente recusada por Montaigne como desumana e fantasiosa. No que respeita a esse percurso, a superação do estoicismo fará com que a idéia mesma de um controle racional da imaginação, derivado do conhecimento de verdades que tenham o poder de contê-la, acabe por ser relativizada e perca o sentido que possuía. É disso que trataremos no item final deste capítulo. Tal transformação não significa, como veremos, que a imaginação deixe de ser vista como fonte de perturbação. O que muda é a forma de encarar o papel dessa faculdade e o modo de intervir sobre ela. De fato, o projeto de registrar as fantasias e examinar a singularidade com que a imaginação se manifesta, ancorado na fase estóica, não será abolido por essa transformação, mas aprofundado. Ele deixa de se subordinar ao objetivo de sua transformação pela “vergonha” que elas poderiam fazer a si mesmas, sob um olhar iluminado pela reta razão, e adquire um sentido autônomo: o ensaio, mais do que um trabalho de formação 438

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de juízo, converte-se num exame da fantasia como uma província da subjetividade que se subtrai à nossa consciência e ao nosso controle, no seu próprio curso impremeditado — ainda que seja essa própria ação da imaginação, em grande medida, oculta pela imagem fantasiosa que tendemos a fazer de nós mesmos. 7.3. Uma quimera que não cabe na imaginação

Para melhor como o projeto original estóico de conformação à natureza mediante um conhecimento racional da verdade dá lugar a uma concepção bastante diversa de “naturalização” de nossas fantasias, mediada pela reflexão cética, consideremos dois exemplos. Um primeiro, extraído da “Apologia”, apresenta-se na crítica à vaidade com que o homem se julga numa posição naturalmente privilegiada com relação às demais criaturas. Outro, mais tardio, é o exame dos processos de feitiçaria em “Dos coxos” (III, 11). Ambas as discussões interessam aqui especialmente na medida em que nos permitem observar o papel ambivalente da fantasia — igualmente relacionada com a crítica aos dogmatismos e com a determinação do estatuto daquilo que, por meio dessa própria crítica, estaríamos em posição de reconhecer e aceitar.

*** Já tivemos outras oportunidades de nos referir à crítica da “vaidade do homem” — primeiro movimento argumentativo da “Apologia”, no qual, valendo-se da estratégia dialética de aceitar os pressupostos do adversário para refutá-lo, Montaigne combate teses de proveniência estóica (presentes, como já dissemos, nas defesas humanistas da dignitas hominis e na Teologia de Sebond) sobre a posição privilegiada do homem em relação às demais criaturas, graças à posse da razão64. Aqui não faltam exemplos do emprego de um vocabulário associado à imaginação: tal crença, diz Montaigne, é um “delírio” (frenaisie, 448), 64. Ver itens 2.1 — “Um fideísmo paradoxal” — e 6.2.4 — “O movimento natural das opiniões”. 439

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produto de um orgulho exacerbado; as teses pelas quais inventamos mundos diversos do nosso, com o propósito de nos assegurar de que estamos no melhor deles, nada mais são que “sonhos da vaidade humana” (452). Igualmente fantasiosa é a idéia de que o homem teria sido o único ser agraciado pela natureza com a posse da razão, por oposição aos demais animais, criados apenas para servi-lo: [A] É pela vaidade desta mesma imaginação que o homem se iguala a Deus, que ele se atribui condições divinas, que ele se escolhe a si mesmo e se separa da massa das outras criaturas, decide a parte que cabe aos animais, seus confrades e companheiros, e lhes distribui tal porção de faculdades e forças que lhe parece boa… (452). Em vez de assumir nossa ignorância acerca dos “móveis internos e secretos” dos outros animais, dizemos que eles agem por “instinto” — um expediente fantasioso a mais para lhes negar a posse da razão, pela qual nos elegemos superiores ao resto. Trata-se, assim, de buscar neutralizar tal crença acerca da excelência essencial do homem e trazê-lo de volta ao mundo natural que ele coabita com os animais65. Isso se faz por meio de uma argumentação cética que se contrapõe a esta, sustentando que homens e animais possuem, de modo geral, as mesmas faculdades (particularmente a razão), e que não há uma diferença essencial entre eles; se diferença há, é sobretudo de grau. Dialeticamente, Montaigne assume a crença de que os animais agiriam por puro instinto, para concluir que seria preciso, nesse caso, reconhecer que a natureza foi mais bondosa com eles, posto que cuidaria de guiá-los às coisas que lhes seriam adequadas, enquanto nós permanecemos à mercê da “liberdade de imaginação e desregramento do pensamento”, isto é, do uso de nossas faculdades falíveis nas diversas deliberações que se fazem necessárias ao longo da vida, com as perturbações daí decorrentes66. Invertendo a hipótese estóica em suas conseqüências, Montaigne parece conduzir implicitamente o leitor a um dilema: ou bem seria preciso aceitar, com tal crença, que o homem é 65. Ver 459A. Para uma análise mais detalhada dessa argumentação, ver EVA, 1994 e 2004, capítulo 1. 66. Ver 455-460A. 440

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inferior (e efetivamente ele ocupa algumas páginas com o desenvolvimento dos argumentos tradicionais da miseria hominis para dar corpo a tal hipótese, que o contexto converte numa espécie de ameaça retórica ao dogmático estóico-sebondiano, partidário de um universo hierarquizado no qual o homem é o ser superior), ou bem seria preciso, recusando também essa alternativa, abandonar a postulação mesma de uma diferença essencial e considerar o problema por ótica diversa. É, com efeito, nessa segunda direção que o texto prossegue, exibindo um exemplário de comportamentos animais, extraídos de fontes variadas67, diante do qual se aplica uma única e mesma regra natural para julgar a relação entre homens e animais: de comportamentos semelhantes, cabe inferir a posse de faculdades semelhantes (v. 460A). Montaigne retoma, então, um exemplo de Plutarco (muito similar a outro oferecido por Sexto Empírico, ao longo da apresentação do Primeiro Tropo de Enesidemo)68 que, ao mesmo tempo, inaugura o mostruário e lhe serve de paradigma: se a raposa, da qual os trácios se serviam para atravessar um rio cuja superfície congelou, aproxima seu ouvido do gelo para ouvir se o som está mais próximo ou distante e, por conseguinte, se o gelo é mais fino ou mais espesso, caberia ver aí um exemplo de ação meramente instintiva? Em vez disso: [A] … não teríamos nós razão de julgar que lhe passa pela cabeça esse mesmo raciocínio [discours] que se passaria pela nossa? O que faz barulho se move; o que se move não está congelado; o que não está congelado está líquido; o que está líquido cederá ao peso. Pois atribuir isso apenas a uma vivacidade do sentido da audição, sem raciocínio e sem conseqüência, é uma quimera, e não pode caber na nossa imaginação… (460; itálicos nossos). O que significa isso: uma quimera que não cabe na imaginação? Eis uma pista valiosa para a compreensão do sentido geral dessa ar67. Ver 456A ss. Os exemplos são extraídos de autores vários, como Plínio, Lactâncio, Heródoto, mas, sobretudo, de Plutarco, especialmente dos opúsculos “Quais animais são os mais inteligentes” e “Que os animais usam da razão”. Cf. VILLEY, Les Essais, p. 1279-1282; Les Sources, II, 30. 68. Cf. 463A ss., HP I, 62 ss. 441

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gumentação. Primeiramente, notemos que o exame, como um todo, parte da constatação de que, uma vez que não temos acesso direto ao que se passa no espírito dos animais, tudo o que podemos fazer é estabelecer conjecturas. Isso não é mais do que uma conseqüência imediata da argumentação pirrônica do Primeiro Tropo (apresentada mais detalhadamente num momento posterior da “Apologia”): devemos constatar que nossas representações são apenas relativas a nós, o animal humano, um animal entre outros69. Como não podemos ultrapassar o âmbito das percepções relativas a nós, não podemos pretender alegar como elas efetivamente aparecem aos outros seres percipientes, segundo suas faculdades próprias (o que seria necessário, alega esse tropo, para que pudéssemos tomar nossas representações humanas como conhecimento das coisas em si mesmas). Assim, a imaginação é o continente em que as explicações acerca daquilo que ultrapassa nossa experiência imediata se produzem: seja de modo inconsciente, como fazem os dogmáticos (pensando dispor de verdades evidentes, que não passam de uma fantasia acerca da superioridade ou inferioridade essencial relativamente àquilo que desconhecemos), seja conscientemente, isto é, respeitando critérios pelos quais podemos, ao menos, reduzir a ilegitimidade com que imaginamos o que em si nos é inacessível. Se alguns dos comportamentos animais nos deixam perplexos e se afiguram estranhos pelo modo como, segundo Montaigne, escapam à nossa capacidade de conjecturar (como a aranha construindo sua teia)70, a própria imaginação pode, contudo, se pautar, até certo ponto, por critérios mais fiáveis, como a experiência: 69. Ve HP I, 40-63: Sexto aí procura comparar as representações conflitantes que os diversos animais parecem ter (em vista, por exemplo, das diferenças de seus órgãos perceptivos), para concluir pela impossibilidade de julgar qual das representações potencialmente conflitantes melhor representaria o real (posto que não é possível, tampouco aqui, um acesso independente ao “real” que não seja parte envolvida no conflito): os homens não podem senão narrar o que lhe aparece relativamente à sua circunstância de animal humano, devendo se abster de pronunciar sobre o que são as coisas em si mesmas. Montaigne retoma essa argumentação na “crítica da vaidade da razão”; ver 590A, 596-598A. 70. Ver 467A. 442

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[A] Eu digo, portanto, … que não há verossimilhança [apparence] em julgar que os animais façam por inclinação natural e forçada as mesmas coisas que nós fazemos por nossa escolha e indústria. Nós devemos concluir de semelhantes fatos semelhantes faculdades, e confessar, por conseguinte, que essa mesma razão [discours], essa mesma via que temos de operar, é também aquela dos animais. Por que imaginamos nós neles essa determinação natural [o instinto], nós que nunca experimentamos fato semelhante?… A vaidade de nossa presunção faz com que nós pretendamos deixar nossa capacidade por conta de nossas próprias forças que de sua liberalidade [= da natureza]… (460; itálico nosso).

Se podemos tentar contornar ou minimizar o aspecto propriamente arbitrário pelo qual age a imaginação ao produzirmos nossas conjecturas, é igualmente possível inspecionar as explicações rivais, que o dogmático quer validar como conhecimento, para nelas entrever, afinal, suas costuras imaginativas ocultas. Como apenas os homens possuem a razão, os animais agem exclusivamente por instinto ou pela pura “excelência auditiva”, subproduto conceitual incongruente dessa falsa ciência, que denuncia o caráter ficcional da própria teoria. Pois imaginar que a excelência auditiva conduz por si só à ação parece ser mais evidentemente fantasioso, segundo o que nossa experiência nos oferece, do que o seria o conjunto explicativo contrário (ainda que também ele não passe de uma conjectura, talvez falsa, acerca do que não podemos conhecer). Trata-se, em suma, de controlar criticamente o terreno da fantasia, no qual estamos, em alguma medida, inapelavelmente instalados. Poder-se-ia dizer que o reconhecimento de que o animal humano está submetido à experiência direta de suas representações, que só pode ultrapassar em sua fantasia, é o preço a pagar para evitar explicações mais quiméricas, como as que, movidas pela vaidade com que o homem cegamente admira suas faculdades, relega aos animais uma condição meramente maquinal. A mesma crítica da imaginação pode ser observada no ensaio “Dos coxos” (III, 11), em que se trata, igualmente, de exibir sua presença onde ela passa despercebida, mesmo na pretensão de superá-la plenamente. Montaigne invoca inicialmente a reforma que instituíra o ca443

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lendário gregoriano — cujas correções efetuadas foram, diz ele, tão imperceptíveis no transcurso de nossa vida quanto eram os erros do calendário anterior — para apontar a incerteza das coisas e o caráter “grosseiro, obscuro e obtuso” de nossa percepção71. Igualmente é “livre e vaga” nossa razão: uma vez que abandona o plano dos “fatos”, “[B] [ela] é capaz de produzir uma centena de mundos diferentes e ainda de descobrir os seus princípios e sua estrutura…” (III, 11, 1027). São, por certo, elaborações fantasiosas, que encontram uma ocasião propícia para proliferar ao deixarmos de considerar nossa ignorância (e perdemos de vista que se trata de mera especulação): [B] Engendram-se muitos abusos no mundo, [C] ou, para dizê-lo mais enfaticamente, todos os abusos do mundo se engendram [B] de que nos ensinam a temer a confissão de nossa própria ignorância [C] e que somos obrigados a aceitar tudo aquilo que não podemos recusar… (III, 11, 1030). Essa afirmação dá vez a desenvolvimentos claramente inspirados pelo pirronismo: uma condenação aos que tratam o verossimilhante como verdadeiro, bem como um elogio aos modos de falar “não-resolutivos” e à ignorância “forte e generosa” que nada deve em honra e coragem ao “saber” (science), e para cuja compreensão, segundo Montaigne, não é preciso menos science do que para a compreensão da própria science (v. ibid.). Igualmente anuncia-se aí a motivação central do ensaio: condenar os abusos das condenações das feiticeiras pelos tribunais da Inquisição. Montaigne, em linhas gerais, denuncia o modo como tais condenações são resultantes de processos fantasiosos, que se iniciam na construção das provas, embora terminem em fogueiras reais. Assim comenta ele um primeiro exemplo de condenação de feiticeira, originado numa acusação feita numa brincadeira infantil: [B] Podem-se ver [as coisas] claramente neste caso, que é escancarado. Mas em diversas coisas de qualidade semelhante, que ultrapassam nosso conhecimento, sou da opinião de que devemos suspender nosso juízo, tanto para recusar quanto para aceitar… (III, 13, 1030). 71. Ver III, 11, 1026BC. 444

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Poder-se-ia dizer, com base nessa fórmula, que se pretenderia estabelecer uma espécie de suspensão de juízo (entendendo-se aqui este termo inclusive em seu sentido jurídico) relativamente aos processos de acusação de feitiçaria. Para tanto, retomando J. Wier, ele argumenta: “[B] Para matar as pessoas, é preciso uma evidência luminosa e nítida, e a nossa vida é demasiado real e essencial para corroborar esses eventos sobrenaturais e fantásticos…” (III, 11, 1031). Como vemos, o problema reside na base precária das condenações: “[B] Sobretudo, é preciso estimar suas conjecturas num valor bem alto para cozinhar um homem vivo…” (III, 11, 1032). Se o leitor pode se surpreender com a simplicidade do argumento, cabe lembrar que a posição de Montaigne não apenas é bastante ousada e corajosa em seu tempo, ao se confrontar à autoridade dos tribunais da Inquisição, mas oposta ao senso comum jurídico da época, que adota como paradigma a Demonomanie des Sorciers, de Jean Bodin72. Como notou Tournon, a estratégia argumentativa de Montaigne parece visar os termos próprios das exigências de absolvição postuladas por Bodin73. Este reage contra a tentativa de Wier de salvar as bruxas, segundo quem as alegações seriam incompatíveis com a ordem da natureza. Para Bodin, essa argumentação é fraca: é preciso provar mais, quando se quer salvar uma presumida bruxa; é preciso oferecer uma prova clara de que os eventos alegados são incompatíveis com os milagres descritos nas Escrituras. Uma vantagem da argumentação de Montaigne contra Bodin seria, assim, a de não requerer nenhum conhecimento absoluto da ordem da natureza e das condições de sua eventual transgressão. Alegando que nossa imaginação produz causas de modo descontrolado quando abandona o terreno dos fatos, ela devolve o ônus da prova à acusação: Para acomodar os exemplos que a palavra divina nos oferece de tais coisas, exemplos mui certos e irrefragáveis, e aplicá-los aos eventos modernos, posto que não vemos nem suas causas nem seus meios, é preciso um engenho [engine] diverso do nosso. Cabe, eventualmen72. Sobre a atitude de Montaigne contra os tribunais, ver VILLEY, 1933, t. II, p. 357 ss.; FRIEDRICH, 1968, p. 148-150. 73. Ver TOURNON, 1986, p. 75-76. 445

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te, a esse único todo-poderoso testemunho dizer-nos: este aqui é, aquele também, mas não esse outro. Deus deve ser acreditado, há verdadeiramente razão, mas não, em absoluto, algum de nós, que se espanta com sua própria narrativa (e necessariamente ele se espanta se não perdeu o senso), ainda que ele a empregue contra si mesmo… (III, 11, 1031).

Porém, há mais do que isso — tanto em nível jurídico como filosófico. Para vê-lo, é preciso bem observar como a crítica da imaginação se torna aqui um pivô da argumentação cética. O aspecto talvez mais interessante consiste no modo como esse ceticismo vai além da crítica às especulações metafísicas que a imaginação produz além da experiência. Estas seriam apenas uma forma mais flagrante de uma atividade bem mais natural e corriqueira, pela qual a própria imaginação inventa “fatos” — à qual alude o próprio título do ensaio. Como se relacionam, afinal, com a crítica dos processos de feitiçaria estas outras duas discussões paralelas: sobre por que as mulheres coxas propiciariam maior prazer sexual ou por que o hipismo deixaria as pernas mais finas? Indaga-se sobre a causa de fatos sem antes se perguntar se os fatos mesmos ocorrem: [B] Eu divagava presentemente, como sempre faço, sobre como é a razão humana um instrumento livre e vago. Eu vejo comumente que os homens, ante os fatos que lhes são propostos, se entretêm mais em buscar a razão do que em buscar a verdade: eles deixam de lado as coisas, e se divertem em tratar das causas… Eles passam por cima dos fatos [effects] mas examinam cuidadosamente as conseqüências. Eles começam normalmente assim: Como isso aconteceu? — Mas aconteceu? — é o que seria preciso dizer… (III, 11, 1026-1027)74. Nessa singular revisitação do tema cético da vaidade dogmática articulam-se a ação da razão e da imaginação: uma vez assumida, implicitamente, a posse da verdade, os homens passam a se ocupar de sua 74. Ver também III, 11, 1034B, em que Montaigne explicitamente identifica essas discussões pelo modo como exibem “a flexibilidade com que nossa invenção forja razões para toda sorte de sonhos” e nossa imaginação facilmente aceita “impressões falsas a partir de verossimilhanças bem frívolas”. 446

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fundamentação e sua justificação, para persuadir os outros. Montaigne alega, de sua própria experiência, haver observado como histórias milagrosas se constituíram com base em causas insignificantes ou desconhecidas, transformadas pela tendência dos homens a fortalecer a verossimilhança das histórias que relatam, produzindo ficções que atendam à intenção de persuadir, que naturalmente predomina sobre a intenção de investigar: [B] Eu vi o nascimento de diversos milagres em meu tempo… Os primeiros que são embebidos nesse começo de estranheza, vindo a semear sua história, percebem, pelas oposições que lhe são feitas, onde reside a dificuldade de persuasão, e vão calafetando esse lugar com alguma peça falsa. [C] Além disso, “insita homines libidine alendi de industria rumores”75: nossa consciência naturalmente nos conduz a devolver aquilo que nos foi emprestado com alguma usura e acréscimo de nossa parte. O erro particular se faz primeiramente erro público, e por sua vez, posteriormente, o erro público se faz particular… [B] É uma progressão natural. Pois cada qual que crê em algo estima que é obra de caridade persuadir a outrem; e, para o fazer, ele não teme acrescentar algo de sua invenção, na medida em que ele o vê, por sua conta, ser necessário, para responder à resistência e ao defeito que ele pensa estar na forma de conceber de outrem… (III, 11, 1027-1028; itálicos nossos). Essa tendência natural à ficção, movida pela vaidade dogmática, surge aqui como motor das condenações inquisitoriais: “Não há nada a que comumente os homens sejam mais inclinados do que a dar caminho a suas próprias opiniões: onde falta o meio ordinário, nós somamos a ordem, a força, o ferro e o fogo…” (III, 11, 1028). A isso, somase que o vulgo se deixa persuadir mais credulamente e a aceitação da ficção pela opinião comum lhe confere um peso que a protege de ser desfeita76. A própria curiosidade dos homens, enfim, não se vê normalmente saciada com causas que, por sua pequenez, escapam do apetite 75. TITO LÍVIO, Historia, xxviii, xxiv: “… pela tendência inata que leva o homem a dar vazão aos rumores…”. 76. Ver ibid. 447

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da imaginação77. Contudo, aquelas das quais efetivamente se geram essas ficções são geralmente desprezíveis, ou irrecuperáveis, ou encobertas por aquilo que se presumem ser os fatos, quando não mascaradas pela forma como os próprios condenados, por vezes, defendem, parcial ou integralmente, por loucura ou ignorância, versões que conspiram contra eles mesmos78. Essa rica análise psicológica da constituição de crenças em fatos imaginários permite-nos novamente observar que o ceticismo de Montaigne não se restringe a uma crítica ao dogmatismo no sentido restrito em que ele se apresentaria nas teorias filosóficas. A filosofia ofereceria apenas um terreno especialmente fértil, porquanto especialmente despregado dos fatos, em que podem agir as mesmas tendências ficcionais que pontuam a existência cotidiana dos homens. Ao mesmo tempo, vemos como esse ceticismo se projeta numa direção pela qual aparentemente os antigos não enveredaram, pois a mesma atividade fantasiosa que se deixa observar, de modo mais incisivo, na atividade filosófica estaria potencialmente presente, em algum grau, já no processo pelo qual descrevemos os fatos que se encontram à nossa disposição. Se já a crítica do juízo, tal como exposta no item anterior, nos permitiu constatar que, em princípio, toda e qualquer impressão de verdade surge como potencial objeto de suspeita e de uma possível crítica cética, esse exame da imaginação não apenas confirma esse ponto, mas permite melhor mapear as forças ativas que conduzem à produção de crenças fantasiosas na posse de verdades, presentes no nível das motivações mais básicas que conduzem os homens à ação e capazes de comprometer a veracidade dos próprios relatos que buscam representar os fatos que se oferecem à nossa experiência. Esse problema não parece ser, pela ótica do ceticismo montaigniano, transitório ou secundário, posto que é retomado em outras passagens79. 77. Ver III, 11, 1029B. 78. Ver III, 11, 1029-1031, esp. 1031B. 79. Por exemplo, no capítulo “Dos canibais”, eis como Montaigne apresenta o testemunho no qual se baseia para discorrer sobre os povos do Novo Mundo: “[A] Esse homem com quem estive era simples e grosseiro, o que é condição própria para dar testemunho verdadeiro, pois as pessoas finas observam mais coisas, e bem mais curiosa448

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Ao mesmo tempo, a alegação de que o poder da imaginação é maior e mais difundido do que estamos dispostos a reconhecer oferece um pano de fundo para a argumentação jurídica. Não estaria o tribunal meramente se solidarizando às fantasias que assume como verdadeiras, ao se poupar do trabalho de verificar se os fatos alegados ocorreram? Entre os exemplos de “histórias milagrosas” que Montaigne oferece, encontram-se casos em que o tribunal admitiu a veracidade de relatos sobre o assassinato de pessoas que posteriormente foram achadas vivas e saudáveis (III, 11, 1031B). Abre-se, assim, caminho para o oferecimento de um critério diverso daquele proposto por Bodin: em vez de aceitar como verdadeiro um relato possível, à falta de provas conclusivas sobre sua falsidade, é preciso antes examinar se os fatos de que dispomos são compatíveis com esses relatos e considerar se eles não podem ser melhor acomodáveis segundo uma explicação mais verossímil, segundo os diversos aspectos de nossa experiência comum (aí compreendida, por certo, nossa experiência sobre o poder da imaginação humana): [B] Nessas outras acusações extravagantes eu diria, de bom grado, que é bem suficiente que um homem, seja qual for sua recomendação, seja acreditado enquanto ser humano; quanto a aquilo que está fora de sua capacidade de conceber e é fato [effect] sobrenatural, devemente, porém as glosam. Para fazer valer sua interpretação e persuadir, não podem evitar alterar um pouco a história: eles nunca vos representam as coisas puras, inclinamnas e mascaram-nas com a face que nelas viram. Para dar crédito a seu julgamento e atrair-vos a ele, apresentam de bom grado a matéria daquele lado, alongam-na e amplificam-na. Ou bem é preciso um homem muito fiel, ou bem tão simples que não tenha com o que construir e dar verossimilhança a invenções falsas, com nada comprometido…” (I, 31, 205). Essa passagem poderia, à primeira vista, sugerir que as “pessoas simples” seriam mais capazes de dizer a verdade do que as “pessoas finas”. Diríamos que o critério é outro: trata-se de evitar os testemunhos das pessoas mais capazes porque, a despeito dos méritos que possam conter, a própria capacidade destas, porquanto envolve as mesmas tendências ficcionais, compromete sua veracidade. Assim, os testemunhos das pessoas simples permitem mais facilmente fazer a triagem daquilo que é evidentemente forjado. Eis por que, adiante, Montaigne será forçado a relativizar o próprio critério por ele adotado: “[A] Falei com um deles mui longamente, mas tinha um intérprete que me seguia tão mal e que, por sua estupidez, estava tão impedido de compreender minhas idéias [recevoir mes imaginations] que não pude obter nada muito satisfatório…” (ibid., 214). 449

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se nele crer apenas quando uma aprovação sobrenatural o autorizar… Tenho as orelhas calejadas de mil contos como este: três o viram um tal dia no levante, três o viram no dia seguinte no ocidente, a tal hora, em tal lugar, assim vestido. Quanto acho eu mais natural e verossímil que dois homens mintam do que alguma espécie de homem passe, em doze horas, como fazem os ventos, do oriente ao ocidente? Quão mais natural que seu entendimento seja transportado de seu lugar por nosso espírito desregulado do que alguém seja raptado numa vassoura, pelo buraco da sua chaminé, em carne e osso, por um espírito estranho? Não busquemos ilusões externas e desconhecidas, nós que já somos perpetuamente agitados por ilusões domésticas e nossas. Parece-me perdoável de descrer numa maravilha, tanto mais se podemos elidir sua verificação por uma via não maravilhosa. Sou da opinião de santo Agostinho, segundo quem vale mais pender para a dúvida do que para a segurança nas coisas de difícil prova e de perigosa crença… (III, 11, 1031-1032; itálicos nossos).

É importante notar, contudo, que a verossimilhança que preside essa opção interpretativa — pela qual é mais fácil crer que dois estejam mentindo ou que aquele que não se espanta com seu relato sobrenatural esteja “fora de si”80 — não pretende se medir, como ocorria no caso de Wier, por um conhecimento inviolável da ordem da natureza. Ela se apresenta apenas como uma explicação mais aceitável, ainda que meramente no plano da verossimilhança, ante os riscos maiores em que incorre a explicação oposta de comungar com uma explicação falsa. Por certo, Montaigne não descrê da loucura dos réus ou da mentira delirante das testemunhas, como não exclui a possibilidade de aplicação de penas judiciais cabíveis quando fatos que as mereçam puderem ser averiguados81. Possivelmente, referindo-se à sua explicação como mais “verossímil”, ele atenda a algum cuidado retórico diante dos interlocutores, posto que se trata de simplesmente negar a ocorrência de fatos diante dos que estão dispostos a examinar suas causas82. Mas 80. Ver os exemplos oferecidos e comentados em III, 11, 1028B e 1032B. 81. Ver III, 11, 1031B. 82. Ver III, 11, 1027B. 450

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não se trata apenas disso, e sim de uma conseqüência de sua postura cética que se traduz aqui numa vantagem argumentativa (ao menos na medida em que Montaigne não se apóia, como dissemos, numa presunção sobre a ordem absoluta da natureza). Assim, sua crença na explicação que sustenta contra as acusações de bruxaria pode ser admitida com o estatuto de uma fantasia alternativa proposta pela razão, por si mesma capaz de sustentar uma infinidade de versões diversas dos fatos, especialmente quando estes não são passíveis de verificação. Montaigne não pretende apenas abdicar de julgar acerca do sobrenatural, mas também de tratar o verossímil como verdadeiro, e aqui o critério que lhe permite se fiar no verossímil, segundos os diversos aspectos da experiência humana que podem servir de guia, reside tanto na evidência com que determinada “fantasia” se impõe (posto que aos fatos mesmos não se tem acesso) quanto, sobretudo, no modo como uma outra explicação pode ser elidida — como uma quimera que não cabe em nossa imaginação. Se Montaigne aceita uma e recusa outra, não pretende se fiar num critério capaz de garantir a solidez essencial de um tipo de explicação por oposição a outro: o assentimento, mesmo aqui, obedece aos mesmos princípios céticos e é inteiramente relativo às evidências disponíveis, provisório e reversível, bem como inteiramente conforme ao uso de uma razão que se reconhece incapaz de determinar a verdade. [B] O que eu digo, como alguém que não é nem juiz nem conselheiro dos reis e não se estima nem de longe digno, mas antes um homem comum [homme du commun], nascido e votado à obediência da razão pública nos seus feitos e dizeres. Quem levasse meus devaneios em conta em prejuízo da mais cativa lei de seu vilarejo, ou opinião, ou costume, cometeria um grande erro, e também com relação a mim. [C] Pois, naquilo que digo, não deponho outra certeza senão aquela que tenho então no meu pensamento, pensamento tumultuado e vacilante. Nec me pudet, ut istos, fateri nescire quod nesciam [“Não tenho, como tais pessoas, vergonha de confessar que ignoro o que ignoro” (Cícero, Tusculanas, I, xxv)] [B] Eu não seria tão ousado a ponto de falar se me coubesse ser acreditado, e foi o que respondi a um eminente que se queixava da aspereza e da combati451

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vidade [contention] de minhas exortações. Sentindo-vos inclinado e predisposto para um lado, eu vos proponho o outro com todo o cuidado que posso, para esclarecer vosso juízo, não para obrigá-lo… (III, 11, 1033)83.

É no terreno comum da fantasia, portanto, que podem vicejar tanto as explicações claramente delirantes — cuja aceitação coletiva pode criticamente nos alertar sobre como nos iludimos sobre o alcance de nosso conhecimento — como as explicações mais verossímeis que se podem oferecer em troca — entre as quais o próprio diagnóstico cético sobre a precariedade da razão, e que se relativiza a si próprio, como vimos, de um modo análogo ao que a dúvida cética, segundo os antigos, se aplica sobre si mesma. Dado o caráter assumidamente precário das estimações acerca dos fatos e a natureza meramente “prática” das decisões que se podem tomar nessas condições, não se tem aí uma boa razão para evitar, por princípio, as penas mais radicalmente irreversíveis? Apesar da relativa vantagem argumentativa da posição de Montaigne relativamente à de Wier, o ponto não se torna, por isso, menos delicado, pois sua simples opção pela explicação verossimilhante, como ele mesmo informa, provocou as reações mais exaltadas84. Por que a alternativa rebatida não seria apenas, segundo Montaigne, “difícil de ser provada”, mas também representaria uma “perigosa crença”? Um perigo particular, decorrente da pretensão de afirmar a verdade nos assuntos em que o próprio santo recomenda a dúvida e a prudência, pode residir no modo como aquele que alega a ocorrência de um milagre se situa tacitamente na situação de intérprete do poder divino. Não seria particularmente arriscado, especialmente nesse contexto de perseguição e intolerância dogmática, envolver-se indiretamente numa questão legislativa acerca dos desígnios sobrenaturais? Esses dois exemplos aqui comentados revelam, em nosso entender, uma importante faceta da prática cética de Montaigne — pela qual ela 83. Ver igualmente III, 11, 1026BC. 84. Ver III, 11, 1031B. Isso parece ter relação com seu recurso à autoridade de Agostinho na passagem que citamos, o que ofereceria, nesse contexto, um importante argumento adicional. 452

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se apresenta como uma crítica da imaginação que reconhece, ao mesmo tempo, a impossibilidade de se evadir plenamente do terreno da imaginação. Disso resulta, como vimos, uma atitude de autocrítica e tolerância: “[B] … é preciso um inquisidor bem prudente, atento e sutil em tais pesquisas, indiferente e sem pré-julgamentos…” (III, 11, 1029). Esses exemplos nos mostram, igualmente, como as ilusões “externas e desconhecidas”, que são propriamente seu objeto, apenas projetam em grandes caracteres as ilusões “domésticas e nossas” que permanentemente nos agitam. Para além dos “delírios” que claramente se opõem ao curso regular da experiência, o próprio Montaigne confessa que, a despeito de seu “singular escrúpulo em não mentir”, se percebe freqüentemente acalentado — “ou pela resistência de outrem, ou pelo calor próprio da narração” — a dispor suas fantasias numa versão mais aceitável para aqueles a que se destinam, com eventual prejuízo de sua plena veracidade85. Trata-se de uma vaidade na qual involuntariamente nos embaraçamos, inerente à condição humana, e da qual o cético não se encontra imune simplesmente em virtude de seu engajamento filosófico: “[B] Nós amamos nos embrulhar na vaidade, como é conforme a nosso ser…” (III, 11, 1027). O que esse engajamento lhe propicia é, sobretudo, uma consciência particular dessa situação e a possibilidade de adotar uma atitude mais conseqüente diante dela. Também por esse viés, a zétesis cética tende a se converter numa atividade incessante e indeterminada, diante de um movimento fantasiador natural da alma humana86. Podemos também ver que, se a exigência de um exame das próprias fantasias se enraíza no mesmo projeto filosófico de que resultaram os ensaios estóicos (como meio de avaliação das condições particulares pelas quais Montaigne poderia levar esse projeto a bom termo), a superação cética do estoicismo acentua o viés introspectivo que, libertado da normatividade do projeto filosófico inicial, acaba por se desenvolver na forma do “retrato do eu” (que consistirá tanto num exame autocrítico da fantasia como num expediente para melhor conhecê-la). Podemos igualmente compreender por que a onipresença da fantasia 85. III, 11, 1028B. 86. Ver III, 11, 1027-1028B. 453

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no campo de nossas percepções não se converte, para Montaigne, num problema relativo à determinação da existência do mundo exterior, como ocorrerá na filosofia pós-cartesiana. As questões sobre a correspondência entre nossas fantasias e as coisas encontram-se plenamente formuladas, como vimos. Mas para que a impossibilidade de identificarmos nossas representações às coisas se converta num problema de refutação do solipsismo e de prova da existência do mundo exterior são necessários outros pressupostos (entre os quais a admissão de que o duvidoso possa ser identificado ao falso; ou mesmo a crença de que possamos dispor de uma ciência absoluta acerca do mundo além de nossas representações, como ocorrerá na filosofia cartesiana). No caso de Montaigne, a naturalização cética da fantasia pretende ser, ao contrário, a conseqüência do reconhecimento de nossos limites cognitivos, relativos a como nos inserimos no mundo, e diante disso buscar, se possível, uma maneira menos irrealista de enfrentar nossas perturbações. 7.4. Uma imagem menos fantasiosa do homem

Cabe agora examinar melhor as transformações aportadas pelo ceticismo às motivações filosóficas originárias de Montaigne — a saber, dissipar os “monstros fantásticos” produzidos pela imaginação solitária. Se antes o objetivo era, como vimos, obter seu controle por intermédio das verdades que obtém a reta razão, harmonizando-a com a natureza, o aspecto mais claro em que essa mudança se apresenta talvez seja o que reside na transformação profunda da idéia de “contornar [contourner] a alma”. Na época da redação da “Apologia”, a expressão “tornear [tourner] a razão” surge associada não ao conhecimento da verdade, mas à capacidade de bem usá-la, considerada em sua ambigüidade própria, pela qual se pode igualmente argumentar pró e contra qualquer opinião — capacidade essa que corresponderia a uma compreensão mais aguda de sua natureza87. O núcleo dessa transformação, portan87. Passagens que exemplificam essa acepção cética de contourner encontram-se em 559A, 565A (ver item 2.4 — “Doença racional e terapia cética”); I, 23, 112A; III, 8, 929B. 454

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to, reside no abandono da crença filosófica de que a razão possa conhecer verdades (e, por esse meio, encontrar uma maneira de suplantar seus próprios desarranjos imaginativos). Vimos que, no contexto da defesa da Teologia de Sebond, a capacidade de “contourner” a razão concernia ao modo como ela podia ser empregada em vista das razões dos objetores que se tratava de rebater, segundo sua força variável e aquilo que poderia, supostamente, ser aceito por qualquer objetor. Ora, o objetivo mesmo dos Ensaios será — a partir de 1578, quando Montaigne formula explicitamente o projeto de oferecer um “retrato de si” por meio de sua obra — associado à exibição daquilo que constitui a individualidade de seu autor, tal como se evidencia, em especial, no tratamento particular que seu juízo dá aos exemplos e opiniões considerados em sua obra. Porém, na medida em que tal manifestação não se pretende a enunciação de uma verdade absoluta, ela pode se refletir no registro de suas “fantasias”: [A] Não tenho dúvida que freqüentemente me ocorre de falar de coisas que são mais bem conhecidas pelos mestres desses assuntos e mais verdadeiramente. Aqui está apenas o ensaio de minhas faculdades naturais, e não das adquiridas, e quem acusar minha ignorância nada fará contra mim, pois dificilmente eu responderia a outrem por minhas considerações [discours], eu que não respondo nem a mim mesmo, nem estou com elas satisfeito. Quem estiver em busca do saber [science] que o pesque onde ele está. Não há nada de que eu faça menos profissão. Aqui estão minhas fantasias, pelas quais eu não viso conhecer as coisas, mas a mim mesmo. Elas [as coisas] me serão casualmente conhecidas um dia, ou outrora o foram, segundo o modo pelo qual a fortuna me tenha podido levar aos lugares onde elas estejam esclarecidas… Assim eu não almejei nenhuma certeza, mas apenas fazer conhecer a que ponto vai, neste momento, o conhecimento de que disponho… (II, 10, 407-408; itálicos nossos). Se já no período estóico formulava-se o projeto de um auto-exame de sua condição imaginativa, agora as fantasias que resultam de suas faculdades naturais conferem a tal projeto autonomia e posição central na obra. Contudo, em que sentido pretende Montaigne conhecer a si 455

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mesmo? A “ignorância” é admitida em vista da ausência de um critério para discernir, entre as diversas opiniões, passadas ou presentes, aquela que corresponderia à science. Dizer que as coisas foram “casualmente” conhecidas um dia significa, no contexto acima, apenas reconhecer que eventualmente admitimos, com as crenças falsas, outras verdadeiras, sem dispor de critérios adequados para detectá-las. Assim, se algum “conhecimento” ele pretende oferecer, sem todavia dispor de tal critério, não se trata de science, no mesmo sentido que, algumas linhas acima, esta foi recusada. Trata-se agora de simplesmente exibir o movimento de suas crenças, assumidamente transitórias, tal como produzidas segundo suas faculdades naturais — numa palavra: suas “fantasias”. A essa altura, Montaigne observa seu projeto filosófico anterior como um exemplo da forma fantasiosa como os dogmáticos concebem nossa existência: a posse da razão revela-se antes indissociável da experiência de paixões que nos assaltam sem cessar (v. 486A), e os saberes disponíveis são agora vistos, de modo geral, como incapazes de nos propiciar uma existência mais tranqüila do que aquela que o homem comum pode fruir pela força do costume. A “doutrina”, diz ele, embora não seja de todo inútil para a vida, tem seu valor relativizado, posto ao lado da glória e da dignidade; ele se determina “um pouco mais por fantasia que por natureza”88. A própria fantasia ocupa o lugar de critério prático e determina, assim, a utilidade da science (como veremos melhor adiante). Contudo, a despeito desse valor circunstancial, ela tende a ser observada, doravante, como fonte de perturbação: as falsas opiniões que a filosofia alimenta acerca do que somos originam males adicionais, que se somam aos naturais, sem propriamente remediá-los: “[B] … a science, buscando nos armar de novas defesas contra os inconvenientes naturais, imprimiu mais em nós, na fantasia, sua grandeza e seu peso do que nos protegeu deles com suas razões e sutilezas…” (III, 12, 1038). Ainda outra vez estamos diante de uma temática pirrônica: segundo Sexto, embora os céticos assintam ao páthos involuntariamente causado pela experiência dos males, sua moderação opinativa (metrio88. Ver 487A. 456

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pathía) permite que eles se defrontem com os infortúnios inevitáveis sem amplificá-los. Já os dogmatismos, incapazes de sanar os males que naturalmente possuímos, acrescentam outros à nossa simples experiência, ao fomentarem a crença de que as coisas sejam boas ou más em si mesmas. Tal tema, objeto de várias reflexões à época da “Apologia”89, reaparecerá em passagens tardias que relatam sua experiência pessoal: [B] Eu represento as minhas doenças, na sua maior parte, tal como elas são, e evito as palavras compostas de mau prognóstico e exclamação… Eu quero estudar a doença quando estou são; quando ela está presente, ela faz a sua impressão de modo bastante real, sem que minha imaginação a ajude… (III, 9, 979). Mas considera Montaigne a possibilidade de um conhecimento numa esfera meramente subjetiva? Estaríamos, ao voltar-nos para o “eu”, diante de uma esfera epistemicamente privilegiada na qual, por oposição aos objetos situados no mundo externo ao eu, poderíamos garantir a possibilidade de conhecimento — como ocorrerá, de modo geral, na epistemologia cartesiana e moderna? De fato, na “Apologia”, ao longo de uma argumentação crítica, Montaigne sugere que, se a alma fosse capaz de conhecer algo, deveria antes conhecer a si mesma que às coisas externas90. Se, em vez de tais coisas, temos apenas acesso às representações produzidas por nossas faculdades, devemos supor que o conhecimento do próprio homem seja mais factível. Embora possa parecer artificial a aproximação dessas questões morais e epistemológicas, importa aprofundar a compreensão de seu posicionamento cético relativo ao problema do conhecimento do homem para ver que a transformação mais radical da espécie de terapia filosófica inicialmente almejada pelos Ensaios deixa de depender, propriamente, de um conhecimento teórico da natureza humana. A partir de seu engajamento cético, Montaigne não vislumbrará, seja na esfera dos 89. Ver 490-491A (desenvolvimento examinado em 4.2 — “Um pirronismo lúdico”); cf. HP I, 27-30. 90. “[A] Por onde melhor poderíamos experimentá-la [a razão] do que por ela mesma? Se não podemos nela crer falando de si mesma, dificilmente seria ela apropriada a julgar as coisas externas…” (541-542). 457

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objetos externos ao eu, seja na esfera da subjetividade, nenhuma instância de conhecimento em sentido próprio. O que a razão mostra acerca da alma humana é uma confusão de opiniões contraditórias e falsas, que ainda uma vez o conduzem a assemelhar as posições dos filósofos às ficções dos poetas91. Se, no caso do homem, a exigência de verossimilhança é maior que a que se aplica aos pintores que representam apenas paisagens de coisas distantes e desconhecidas92, isso se afirma para enfatizar as críticas àquilo que a filosofia, de modo geral, oferece a esse respeito: [A] Eles fazem [do homem] uma coisa pública imaginária. É um objeto que eles pegam e manejam, outorgando-se todo o poder de descosturar, arrumar, ajuntar e preencher, cada qual segundo a sua fantasia; e mesmo sem ainda o possuir. Nem em verdade, nem mesmo em sonho eles não o podem regular de um modo que não se encontre alguma cadência ou som que escape à sua arquitetura, tão monstruosa que ela é, e montada de mil pedaços falsos e fantásticos… (538; itálicos nossos). A proximidade do homem relativamente a si próprio acaba, em vez disso, por conferir uma nota paradoxal ao seu empreendimento de obter uma imagem verdadeira de si, posto que ela conduz à exigência de uma espécie de representação que acaba por se revelar bem mais difícil do que a das coisas situadas no exterior93. Isso não significa que o autor 91. Ver 542-544 ABC. 92. Ver 538C. 93. Segundo BRUSH (cf. 1966, p. 33-34), seria possível identificar as filosofias céticas de Montaigne e Francisco Sanches, na medida em que ambos reconheceriam a existência de uma distância intransponível entre o homem e a realidade externa e a maior facilidade que o homem teria de se conhecer por oposição à realidade externa. Parecenos, ao contrário, que, embora ambos os filósofos afirmem explicitamente a impossibilidade de conhecimento externo e interno, o tratamento dessa oposição é diverso em ambos os autores. Segundo Sanches, são fatores diversos que caracterizam a maneira como nos acercamos dos objetos e a impossibilidade de “conhecimento perfeito”, no âmbito interno e externo: “… neste último tipo, o entendimento dispõe de algo a que ele pode se ater, isto é, a forma de um homem, uma pedra ou uma árvore, a qual ele derivou dos sentidos… Mas no primeiro tipo, que tem a ver com as noções interiores, o entendimento não encontra nada que ele possa extrair, ele tropeça aqui e ali, e vai cambaleando como um cego em busca de saber se ele pode se apoiar em algo… Por 458

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dos Ensaios abdique de pretender oferecer um conhecimento mais aceitável do homem e, em especial, de si mesmo — empresa à qual, em vista de sua utilidade e a despeito de sua especial dificuldade, ele subordina sua obra: [C] Como diz Plínio, cada um é uma boa escola [discipline] para si mesmo desde que tenha a capacidade de se observar de perto. Esta aqui não é minha doutrina, é meu estudo, e não é a lição de outrem, é a minha. E não me levem a mal se, entretanto, eu a comunico. O que me serve pode também por acidente servir a um outro… É uma empresa espinhosa, mais do que o parece, seguir um andamento tão errante como o do nosso espírito, e de penetrar as profundezas opacas de suas dobras internas, de escolher e fixar [arrester] tantos ares minúsculos de suas agitações… Não há descrição igual em dificuldade que a descrição de si, nem certamente em utilidade… (II, 6, 377-378)94. Mas será factível, afinal, tal empresa, em vista desse caráter paradoxal que assume? Sua especial dificuldade é assinalada mesmo nos momentos em que Montaigne evoca, como meio de criticar e ridicularizar os dogmáticos que pretendem investigar as coisas exteriores, a familiaridade que o homem tem consigo próprio: [A] De todas as opiniões que a Antiguidade teve sobre o homem em geral, aquelas que eu abraço mais prontamente e às quais eu mais me atenho são aquelas que mais nos desprezam, rebaixam e anulam. A filosofia não me parece nunca fazer nada de melhor do que quando combate nossa presunção e vaidade, quando ela reconhece de boa-fé sua irresolução, fraqueza e ignorância… Essas pessoas que paroposição a isso, no entanto, a apreensão dos objetos externos, adquirida por meio dos sentidos, é superada em certeza pela espécie de apreensão que temos dos objetos que se originam ou existem no interior de nós. Pois eu estou mais seguro de que eu possuo tanto a inclinação quanto a vontade, e de que estou em determinado momento contemplando esta idéia, e em outro momento evitando e repelindo aquela idéia, do que estou de poder ver um templo, ou Sócrates…” (QNS, 58, pp. 243-244). Assim, Sanches pareceria estar mais disposto que Montaigne a admitir aquilo a que Descartes recorrerá contra a dúvida cética e se converterá em uma premissa básica, de modo geral, das teorias do conhecimento clássicas. 94. Ver ainda III, 9, 1000-1001 (passagem citada no final do capítulo anterior). 459

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tem a galope sobre o epiciclo de Mercúrio, [C] que vêem tão longe nos céus, [A] elas me arrancam os dentes. Pois no estudo que eu faço, cujo objeto é o homem, encontrando uma tão extrema variedade de juízos, um tão profundo labirinto de dificuldades umas sobre as outras, tanta diversidade e incerteza na escola mesma da sabedoria, podereis pensar: posto que [os sábios] não puderam nem mesmo se decidir no que tange ao conhecimento deles mesmos e de sua condição, que está continuamente presente a seus olhos e que está neles mesmos, posto que não sabem como se move aquilo mesmo que os faz mover, nem como nos pintar e decifrar as molas que eles mesmos manejam, como poderia eu crer no que dizem da causa do fluxo e do refluxo do Nilo?… (II, 17, 634-635).

Se nalguma medida se faz possível um “conhecimento” do homem, não cabe esperar mais do que a obtenção de uma imagem “mais verossimilhante” do que as quimeras que “nem em sonho” poderiam satisfazer um olhar mais atento. Porém, o primeiro passo a ser dado nessa direção, como mostra essa passagem, consiste em reservar, no centro dessa imagem, um lugar principal para o reconhecimento de nossa ignorância sobre o que somos — onde se projetam os mesmos limites naturais de nossas faculdades cognitivas já considerados. Situamo-nos, assim, num registro bem diverso daquele das filosofias dogmáticas, que, a despeito de se enredarem num “profundo labirinto de dificuldades”, reeditam implicitamente uma mesma crença na dignitas hominis, ao pretender que a razão humana seja capaz, nalguma medida, de superar as vicissitudes de nossa condição. Contudo, apesar de algumas passagens poderem sugerir o oposto, Montaigne não pretende sustentar a concepção dogmática oposta — pela qual o homem se encontraria numa situação essencialmente inferior à de outras criaturas. Trata-se sobretudo de alertar para o modo como somos conduzidos a fantasiar nossos poderes e a perder de vista aquilo que efetivamente nossa experiência nos pode oferecer: “[B] Não busquemos ilusões externas e desconhecidas, nós que somos perpetuamente agitados por ilusões domésticas e nossas” (III, 11, 1032). A crítica cética da fantasia não almeja, por sua vez, produzir uma compreensão completa ou absoluta de nossa condição, nem propiciar uma superação de nossa 460

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condição imaginativa: ela se concebe como um esforço filosófico relativo, precário e limitado diante de uma natureza humana que, como a natureza externa, parece transcender indefinidamente, e talvez mais claramente, nossa pretensão de abarcá-la. Também aqui seria possível divisar a distância entre as reflexões de Montaigne e a tematização do homem por Descartes. Apesar de a filosofia cartesiana valer-se também de uma crítica da imaginação para traçar sua concepção de subjetividade95, o tipo de conhecimento por ela almejado a situaria, em princípio (sem entrarmos aqui no mérito de seus argumentos), no alvo da mesma crítica geral que Montaigne dirige à filosofia dogmática. Seja o entendimento do eu acerca de sua natureza pensante um fio condutor do exame pelo qual ele se compreende, na Segunda Meditação, como uma substância pensante distinta do corpo, cuja essência seria o próprio entendimento, à qual se agregariam, como seus atributos ou modos, todos os demais atos do eu (duvidar, conceber, afirmar, negar, querer, imaginar ou sentir)96 — não motivaria tal percurso a Montaigne essa mesma avaliação acerca de como os filósofos “pegam e manejam [o homem], outorgando-se todo o poder de descosturar, arrumar, ajuntar e preencher, cada qual segundo a sua fantasia…”? Ofereça ou não o cogito a crença em uma certeza inabalável, o problema diz respeito ao estatuto dessa crença como uma pedra basilar para a produção de uma imagem definitiva do homem, a salvo da ingerência da imaginação. Não poderia, de um ponto de vista cético, o teor absoluto dessa certeza representar antes um testemunho da cegueira de nosso entendimento, em vista dos demais elementos que nossa experiência nos oferece acerca de nós mesmos? Em lugar de uma arquitetônica das faculdades humanas, no centro das quais se situaria o conhecimento, Montaigne pretende descrever nossa condição 95. Ver, em especial, o parágrafo décimo da Segunda Meditação: “Mas eu não posso me impedir de crer que as coisas corporais, cujas imagens se formam pelo meu pensamento, e que caem sob os nossos sentidos, não sejam mais distintamente conhecidas que não sei qual parte de mim mesmo que não se oferece de modo algum à imaginação… Mas vejo bem o que é: apraz a meu espírito extraviar-se; ele não se pode conter ainda nas medidas justas da verdade…” (AT VII, 29, ed. Beyssade, 82-83). 96. V. AT VII, 23-30, ed. Beyssade, 70-83. 461

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tendo em vista que, seja qual for a imagem obtida, tratar-se-á sempre, nalgum grau, de uma fantasia. Trata-se de adotar uma postura filosófica coerente com o reconhecimento dos elementos imaginativos que inexoravelmente cimentam a nossa natureza. Eis como Montaigne alude, no ensaio “Dos coxos”, ao seu auto-retrato: [B] Até este momento, todos esses milagres e eventos estranhos se escondem diante de mim. Eu não vi monstro ou milagre mais expresso que eu mesmo. Familiarizamo-nos com toda a estranheza pelo uso e o tempo, mas mais eu me persigo e me conheço, mais minha deformidade me espanta, menos eu me entendo em mim… (III, 11, 1029). O apelo reiterado de sua argumentação a substituir as simplificações dogmáticas pelo esforço de considerar mais atentamente nossa experiência também aqui se aplica. Contra a tendência a nos considerarmos um composto de duas partes separadas, corpo e alma, encontraremos, nos Ensaios, freqüentes considerações destinadas a evidenciar como nossa condição é “espantosamente corporal” (mais do que, supostamente, tendemos a perceber), mas também à remissão daquilo que é corporal a um aspecto “espiritual” a ele relacionado, que tendemos a desconsiderar97. Tendemos, também, a desconsiderar a interferência de elementos que escapam à nossa consciência na apreensão das coisas, outorgando, em vez disso, uma espécie de auto-suficiência ilusória a nossas faculdades cognitivas. Este tema, já examinado no capítulo anterior da perspectiva da ação do juízo, ressurge em diversas ocasiões — como nos diversos exemplos alinhados em “Da vaidade”, relativos ao poder que a presença dos objetos sensíveis pode ter sobre nossa vontade98, ou ao poder com que as paixões, uma vez instaladas, 97. Ver, por exemplo, III, 13, 1114B: “Que o espírito vivifique o peso do corpo e o corpo detenha a leveza do espírito e a fixe…”. Cf., igualmente, ibid., 1106B, 1110C; II, 17, 639-642A. São freqüentes, em especial, passagens que evocam a corporalidade da nossa condição, contra aqueles que nos pretendem tomar como seres essencialmente espirituais (cf., p. ex., ibid., 1115BC), ou então que buscam pôr em paralelo a condição do corpo e da alma (p. ex., III, 4, 823B, 839B; III, 11). 98. “Eu elevo minha coragem ao encontro das adversidades; os olhos, eu não posso…” (III, 9, 954); ver também III, 8, 930B. Parece ecoar nessa temática a argumentação cética da “Apologia” acerca de como os sentidos contradizem a razão e sobre ela se impõem; cf. 594A. 462

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permanecem agindo a despeito de nos crermos capazes de dominálas99. Numa posição igualmente antagônica àquela que o estoicismo delega ao poder da razão e àquela que identificaria o eu pensante e a vontade consciente como a substância que daria unidade aos diversos atos do sujeito ao longo do tempo, Montaigne insiste na idéia de que tendemos a constituir uma identidade imaginária para aquilo que somos, possuidora de estabilidade e uniformidade num grau que não corresponde àquele que poderemos constatar se observarmos devidamente o que nos oferece nossa experiência acerca de nós mesmos: [A] Nós não pensamos no que queremos senão no instante em que o queremos, e mudamos como esse animal que toma a cor do lugar onde o pomos… Nós não vamos, somos levados, como as coisas que flutuam, ora suavemente, ora com violência, conforme seja a água revolta ou tranqüila… Cada dia, nova fantasia, e movem-se os nossos humores com o movimento do tempo… [C] Nós flutuamos entre diversas opiniões: nós não queremos nada livremente, nada absolutamente, nada constantemente… (II, 1, 333). Podemos ver que a imagem da instabilidade e da variedade que compõem a nossa natureza — motivo central da imagem do homem que se desenha a partir do segundo livro dos Ensaios — tem como pano de fundo a crítica da ficção dogmática que nos concebe como seres constantes e estáveis em suas opiniões e percepções, num grau maior, ao menos, do que aquele que corresponde à nossa experiência efetiva. Não apenas nossas opiniões são mais provisórias e movediças do que temos tendência a admitir, mas pensamos, a cada instante, poder discriminar um estado determinado como aquele que nos caracteriza; igualmente, pensamos o homem como uma composição organizada e 99. Ver III, 9, 950B. A mesma idéia é o tema central do capítulo quarto do livro III, no qual Montaigne propõe seu método da “diversão” (diversion), isto é, de expedientes para desviar, através de uma “fácil e insensível inclinação”, a “paixão do luto”, uma vez instalada. Isso porque pretender enfrentá-la diretamente, pela razão, parece-lhe algo fadado ao insucesso: “Procedem mal os que se opõem a essa paixão, pois a oposição aguilhoa-os e engaja-os mais fundo na tristeza: exaspera-se o mal pela vaidade da discussão…” (III, 4, 830). Mais uma vez, esses desenvolvimentos parecem remontar ao modo como na “Apologia” Montaigne observa o poder com que as paixões podem dominar nosso juízo (v., p. ex., 568-569). Ver ainda III, 10, 1017B. 463

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bem equilibrada de faculdades que se inter-relacionam e complementam, por meio de “mil peças [lopins] falsas e fantásticas” (composição que cada filosofia moral dogmática procura expor e aperfeiçoar, sem poder chegar a um acordo, nem mesmo a um retrato fiel do modelo comum). Essa imagem Montaigne substitui por outra, que pretende resultante de sua experiência e observação de si — mas presumidamente compatível com aquela que qualquer um obteria se se detivesse como ele em observar a si mesmo, ao menos em alguns de seus aspectos principais: “[A] Nós somos todos [feitos] de pedaços [lopins], e de uma contextura tão disforme e tão diversa que cada peça, cada momento, faz seu jogo. E se encontra tanta diferença de nós a nós mesmos quanto de nós a outrem…” (II, 1, 337)100. Em vez de subordinadas a uma identidade única e autônoma, as partes de que somos compostos possuem uma autonomia relativa que desconhecemos e ocultamos sob o que imaginamos a nosso respeito. Em vez de sermos permanentemente idênticos a nós mesmos, por intermédio de nossa consciência, esta simplifica a ambigüidade intrínseca e a multiplicidade indeterminada de estados, eventualmente incongruentes: [B] Não somente o vento das ocorrências [accidens] me move segundo sua inclinação, mas, além disso, eu me remexo e perturbo a mim mesmo pela instabilidade de minha posição. Quem observa isso atentamente quase nunca se encontra duas vezes no mesmo estado. Eu dou à minha alma ora uma face, ora uma outra, segundo o lado para o qual a volto. Se eu falo diversamente de mim, é porque me observo diversamente. Todas as contrariedades aí se encontram de alguma maneira [tour] e nalguma forma [façon]. Envergonhado, insolente. [C] Casto, luxurioso. [B] Falador, taciturno. Laborioso, delicado. Engenhoso, embotado. Aflito, afável. Mentiroso, veraz. [C] Sabedor, ignorante, e liberal, e avaro, e pródigo, [B] tudo isso, eu vejo em mim nalguma medida, na medida em que me volto; e qualquer um que se estude bem atentamente encontra em si, e no seu próprio juízo, essa volubilidade e discordância. Eu nada tenho a dizer de mim inteira100. Um desenvolvimento eloqüente da mesma imagem encontra-se na “Apologia”, em 565-566AB. 464

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mente, simplesmente e solidamente, sem confusão e sem mistura, nem numa só palavra. Distingo é o membro mais universal da minha lógica (II, 1, 335).

O ensaio “Da vaidade”, por sua vez, nos oferece um importante aspecto complementar da mesma imagem. Montaigne ali se detém em explicar seu procedimento de acrescentar prolongamentos (allongeails) ao texto original dos Ensaios, sem alterar sua redação original, oferecendo ao leitor duas razões. A primeira consiste no fato de que, a seu ver, não possui mais esse direito aquele que “hipotecou ao mundo a sua obra” (III, 9, 963). Condenando os que não refletem suficientemente antes de exibir seus escritos em público, ele afirma que o seu livro é “sempre um”. Embora não corrija aquilo que outrora escreveu, mesmo mudando de “fantasia”, ele não se proíbe, porém, de fazer acréscimos ao texto, que acabam, por vezes, por transformar o sentido do texto original: “… eu me dou o direito de aí ajuntar, posto que [ele] é um mosaico desconjuntado [marqueterie mal jointe], alguma incrustação gratuita [emblème super-numéraire]…”. Mas é a segunda razão oferecida por Montaigne que nos parece especialmente relevante aqui: Em segundo lugar, no que me concerne, eu temo perder na troca. Meu entendimento não vai sempre adiante, ele também vai recuando; eu não desconfio menos de minhas fantasias por serem segundas ou terceiras, primeiras ou presentes, do que por serem passadas. Nós nos corrigimos com freqüência tão tolamente quanto nós corrigimos os outros. Minhas primeiras publicações foram no ano de 1580. A partir de então, eu envelheci consideravelmente, mas não me tornei mais sábio com certeza uma polegada sequer. Eu agora e eu outrora somos bem dois. Qual o melhor? Nada posso dizer. Seria bom ficar velho se caminhássemos apenas para o aperfeiçoamento. É um movimento de ebriedade, titubeante, vertiginoso, disforme; [são] juncos que o ar maneja casualmente como quer… (III, 9, 964). Em conformidade com a alusão ao ceticismo que se segue imediatamente a essa passagem, oferece-se aqui uma imagem da subjetividade que se presta a aproximações mais estreitas com a argumentação cética antiga. No Quarto Tropo, referente às “circunstâncias”, Sexto Empírico procura mostrar, como vimos, que não dispomos de um crité465

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rio isento para julgar o conflito entre os juízos discordantes segundo suas circunstâncias perceptivas diversas (não apenas as diversas idades, mas a vigília por oposição ao sonho, a alegria e a tristeza, o amor e o ódio, a sobriedade e a embriaguez, a normalidade e a loucura)101. Embora Sexto não desenvolva nenhuma reflexão sobre as conseqüências dessa relativização quanto à forma cética de compreender a natureza do homem que conhece por meio dessas circunstâncias, parece-nos que a descrição que Montaigne oferece da progressão de suas fantasias é bastante compatível com a que estaria subjacente às argumentações epistemológicas desse tropo. Pois o que significa o reconhecimento dessa impossibilidade de dizer “qual o melhor” destes “eus” que se sucedem se não o reconhecimento de que nenhuma das circunstâncias em que julgamos (em conflito com aquele que ofereceremos noutra circunstância) configura a presença, digamos assim, de um “eu” privilegiado, capaz de julgar do exterior essa própria e certificar-se de que sua atual impressão de certeza — e não a de outrora — é a que corresponde a uma imagem absoluta e objetiva de como as coisas efetivamente são? O cético não pode fazer mais do que registrar as coisas tais como lhe aparecem a cada momento, à maneira de um cronista, sem asseverar que as coisas sejam exata e positivamente como as apresenta (HP I, 4). Assim, incapacitado de detectar a presença de um “eu” absoluto ao longo dessa progressão — um eu que represente um ponto fixo absoluto para o entendimento, sem o qual não se pode assegurar de avançar na direção da verdade —, o cronista cético se observa, para não pressupor injustificadamente tal critério, como um conjunto de circunstâncias sucessivas — ou melhor, de lopins, como diz Montaigne, cujos movimentos próprios interessa mapear para contrapor à imagem fantasiosa da identidade que emprestamos a nós mesmos. É significativo que uma das primeiras passagens dos Ensaios em que, segundo Villey, se apresenta explicitamente o projeto do autoretrato seja um prolongamento do ensaio “Da exercitação” (II, 6), em que Montaigne expõe a progressão oscilante e contraditória de suas 101. Ver HP I, 101 ss. Discutimos esse tropo argumentativo no item 6.2.3 — “Uma doença natural do juízo”. 466

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memórias de um acidente que ele sofrera, caindo do cavalo, pelo qual quase perdera a vida. Esse evento, cuja narrativa ele oferece como ocasião relativa de “experimentar” a proximidade da morte, à qual nunca podemos ter acesso direto, oferece, por assim dizer, uma metáfora daquela que será sua investigação nos Ensaios: uma experiência de se acercar permanentemente, por meio de seu retrato, de um “eu” que nunca pode ser conhecido absolutamente, mas apenas em perspectivas sabidamente parciais, mutáveis e incompletas. [C] Há diversos anos que só tenho a mim mesmo como a visada dos meus pensamentos, que eu não controlo e estudo senão a mim mesmo. E se eu estudo outra coisa é para de imediato deitá-la sobre mim, ou em mim, para dizer melhor. E não me parece de modo algum ser um defeito se, como se faz nas outras ciências [sciences], sem comparação menos úteis, eu também comunico o que eu aprendi nesta, ainda que eu quase não me contente do progresso que faço. Não há descrição igual em dificuldade que a descrição de si, nem certamente em utilidade. Ainda é preciso se experimentar [tastonner], ainda é preciso se ordenar e arrumar para aparecer em público. Eu me enfeito [pare] sem cessar, pois eu me descrevo sem cessar… (378)102.

102. Ver, mais amplamente, II, 6, especialmente 377-379. Montaigne aponta aqui a existência de uma potencial atividade falseadora no mero gesto pelo qual se descreve — seja ela deliberada (em conformidade com a possibilidade que sugerimos no capítulo IV) ou não. Isso se acomoda igualmente com o que dissemos sobre como seu ceticismo problematiza o conhecimento no nível da própria descrição dos fatos (como visto no item anterior). É curioso notar que, embora o termo “parer” seja freqüentemente traduzido nessa passagem como “enfeitar”, em vista do contexto, ele igualmente pode significar, no francês do período, “preparar” ou mesmo “despelar” (para essa acepção, cf. GODEFROY, 1982, vol. V, p. 760). Essa possibilidade de tradução poderia ser mais facilmente desconsiderada se não tivéssemos em conta essa relação metafórica que, como dissemos, o ensaio parece estabelecer entre a possibilidade de ter uma experiência direta da morte ou uma apreensão plena do eu, ou esta outra passagem que se segue, algumas linhas adiante: “Eu [aqui] me instalo inteiro: É um skeletos em que, de uma olhar, as veias, os músculos e os tendões aparecem…” (379C). A despeito de enfatizar o sentido em que o retrato se pretende integral, não anunciaria essa metáfora, ambiguamente, que a empresa de se descrever está sempre aquém da integridade da experiência vivida? Ademais, o auto-retrato é noutra passagem representado por outra metáfora que 467

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Tal experiência, contudo, por mais que ofereça a seu autor uma perspectiva diversa acerca de si mesmo, jamais poderá se traduzir num “ensinamento” de algo; ela guardará sempre o estatuto de uma simples narração, assumidamente provisória e subjetiva, que reflete o reconhecimento de seu autor acerca de sua “ignorância” — tal como faz o filósofo pirrônico que, desconhecedor da verdade, se limita a descrever aquilo que pessoalmente lhe aparece, tal como faz um cronista: “[A] Eu proponho fantasias disformes e irresolutas, como fazem aqueles que publicam questões duvidosas, para debater nas escolas: não para estabelecer a verdade, mas para procurá-la…” (I, 56, 317)103. No contexto da evolução do pensamento de Montaigne, podemos constatar que o novo sentido e a autonomia que ganha esse projeto de auto-retratar-se é, por certo, uma conseqüência do engajamento filosófico cético ante o projeto inicial de um auto-exame em busca do controle da imaginação. Mas essas motivações filosóficas originárias ajudam a compreender, em contrapartida, as inflexões particulares que ganhará a reflexão cética nos Ensaios. Em nosso capítulo IV, observamos como o auto-retrato pode possuir uma dimensão paradoxal retórica (associada a uma estratégia de ocultamento e de mediação entre a interioridade e a exterioridade); e, no capítulo seguinte, constatamos que a zétesis cética ganha, para Montaigne, a dimensão positiva de uma instância de formação do juízo e, no mesmo passo, da manifestação da própria subjetividade. Vemos agora que, mais do que isso, essa zétesis, na medida em que assume como objeto explícito e autônomo um objetivo de autoconhecimento, conduz a um permanente esforço de desmascarar as ficções imaginativas que o “eu” produz acerca de si mesmo (e, como veremos adiante, de uma aceitação relativa de nossa dimensão imaginativa). Esse é um aspecto da filosofia de Montaigne reflete esse mesmo sentido: “[B] … ninguém nunca penetrou tão fundo na sua matéria [no tema de sua investigação], nem destrinchou [eplucha] mais minuciosamente seus membros e prolongamentos [membres et suites]…” (III, 2, 805). 103. Igualmente eloqüente é a passagem de III, 2, 806, sobre a fidelidade com que seu livro pode representá-lo: [B] … eu falo investigando e ignorante. E me conformando por resolução, puramente e simplesmente, às crenças comuns e legítimas. Eu não ensino nada; eu narro…” (III, 2, 806). 468

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aparentemente portador de conseqüências históricas, a despeito da pouca atenção que lhe tem sido dada. Se essa imagem da subjetividade corresponde à que subjaz às reflexões epistemológicas do ceticismo antigo, não é a tentativa cartesiana de produzir uma concepção de sujeito capaz de garantir a possibilidade de conhecimento objetivo, ao menos em parte, uma reação a esse aspecto da reflexão epistemológica cética nos Ensaios? Montaigne pretende que sua descrição do “eu”, a despeito de ser uma descrição de alcance meramente individual e pessoal, ofereça um retrato mais geral acerca da condição humana — que ele anuncia claramente em diversas ocasiões, como nesta passagem célebre: [B] Os outros formam o homem. Eu o descrevo [recite], e represento um, em particular, bem malformado. A este, se me coubesse novamente dar forma, eu o faria verdadeiramente bem outro do que ele é. Mas agora está feito. Ora, os traços de minha pintura não se perdem, ainda que eles mudem e se diversifiquem. O mundo não é senão um perene balanço. Todas as coisas nele balançam sem cessar: a terra, as montanhas do Cáucaso, as pirâmides do Egito. Tanto do balançar público quanto do delas próprias. A constância não é senão um balançar mais lânguido. Eu não posso fixar [asseurer] meu objeto. Ele vai, turbulento e oscilante [trouble et chancelante], de uma ebriedade natural. Eu o tomo neste ponto, tal como ele é, no instante em que me ocupo dele. Eu não pinto o ser. Eu pinto a passagem. Não uma passagem de uma era a outra, ou, como diz o povo, “de sete a sete anos”, mas de dia a dia, de minuto a minuto. Preciso acomodar minha história ao momento. Eu poderia em breve mudar, não apenas por acaso [fortune], mas também por intenção. É um registro de diversas e mutáveis ocorrências [accidens], e de imaginações irresolutas. E, quando é o caso, contrárias. Seja porque eu sou outro eu mesmo. Seja porque eu tome os assuntos por outras circunstâncias e considerações. Tanto há, que eu bem me contradigo, eventualmente. Mas a verdade, como dizia Demades, eu não a contradigo nunca. Se a minha alma pudesse tomar pé, eu não me ensaiaria, eu me resolveria. Ela está sempre em aprendizagem e em teste [en épreuve]. Eu proponho uma vida baixa e sem brilho. Dá no mesmo. Vinculase tão bem toda a filosofia moral a uma vida popular e privada quan469

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to a uma vida de mais rico estofo. Cada homem traz em si a forma inteira da condição humana… (III, 2, 804-806).

Essa passagem não apenas articula diversos elementos céticos do projeto montaigniano anteriormente mencionados — a dimensão meramente descritiva de seu projeto, a imagem mutável, provisória e mesmo contraditória que dele emerge, a recusa em apresentá-la como resultado de um conhecimento definitivo acerca de si — mas também relaciona, como dissemos, seu retrato ao propósito de oferecer uma imagem da condição humana. Como é possível compreender esse propósito num registro propriamente cético — se o relato cético assumese como provisório e relativo exatamente na medida em que se recusa a se pronunciar além daquilo que se oferece à experiência? Noutros termos, como esse relato da experiência individual que o “eu” tem de si mesmo pode ser tomado como conhecimento de uma forma que cada homem traz em si, de modo que vincule toda a filosofia moral? Esse problema, situado no âmago do auto-retrato de Montaigne, é uma versão particular de outro que se pode reconhecer na passagem pela qual iniciamos este percurso: em que medida a natureza “impremeditada e fortuita” do percurso individual realizado por Montaigne pode consistentemente ser vista como a reedição de um mesmo discurso cético original, já ele formulado em primeira pessoa? Trata-se de saber como pode, de modo geral, o discurso cético almejar algum grau mais geral de persuasividade sem abrir mão de ser deliberadamente limitado a uma dimensão subjetiva, à expressão de um páthos que não pode ser assumido, sem mais, como descrição do que são as coisas em si. Procuramos sugerir, noutro lugar104, que a resposta a esse problema, já no ceticismo antigo, depende de um expediente retórico fundamental — a exemplaridade de que se pode revestir o discurso em primeira pessoa. Mais exatamente, pensamos que o próprio relato cético só pode ganhar um valor persuasivo para outrem (além daquele que efetivamente perfaz a experiência narrada pelo discurso) na medida em que ele o assume como significativo, por sua conta e risco, no âmbito de 104. Tratamos desse problema de modo mais amplo em EVA, 2005; essas considerações retomam, em linhas gerais, as que ali propomos. 470

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sua experiência individual. O texto de Sexto Empírico, ao expor a causa da filosofia cética, se limita a narrar a experiência de “homens de talento” que, em busca de uma verdade sobre as coisas, se depararam com uma contradição filosófica racionalmente insolúvel, na qual casualmente acabaram encontrando a ataraxía que antes buscavam nas filosofias dogmáticas (e, por isso, passaram a filosofar deliberadamente em busca de renovar a experiência da epokhé)105. Se assumimos esse relato de uma experiência biográfica como persuasivo para nós, isso depende do modo como cada um de nós se vale desse relato para reexaminar sua experiência intelectual e o elege, eventualmente, como persuasivo, solidariamente ao seu juízo sobre a possibilidade de reconhecer a verdade nalgum dos sistemas filosóficos disponíveis. Analogamente, embora Montaigne confira a suas reflexões sobre si mesmo (tanto naquilo em que ele se reconhece como singular e diverso quanto naquilo que reconhece como uma característica mais geral acerca dos homens) um valor estritamente vinculado à sua experiência, pessoal e relativa106, é na experiência do leitor que se ancora a possibilidade de uma generalização desse relato. Assim, a afirmação de que “cada homem porta a forma inteira da condição humana” deve ser interpretada, ao que nos parece, como o anúncio da possibilidade da generalização de uma experiência que, de todo modo, sempre se enuncia de modo pessoal e subjetivo. Só se pode reconhecer alguma legitimidade nas afirmações mais gerais sobre o homem no âmbito da experiência individual. Esse é o horizonte máximo de generalidade em que se pode almejar o reconhecimento de algo comum à condição humana — a “forma” humana, afinal, a que se alude aqui. Eis por que não caberia ver essa “ciência cética” do homem, fundada na exemplaridade de um relato assumidamente singular, como uma espécie de recaída dogmática, filosoficamente incongruente com os demais indícios aqui examinados; ela representa, em vez disso, uma primeira instanciação da retomada de um expediente retórico cético — pelo qual a experiência pessoal é oferecida como evidência argumentativa — cujo uso será 105. Cf. HP I, 12, 26. 106. Ver, por exemplo, II, 6, 964. 471

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freqüente na epistemologia moderna, ainda que dissociado do contexto problemático em que emerge107. Importa notar, ademais, que há uma íntima relação entre o conteúdo do retrato e seus aspectos formais: o caráter fragmentário e variável concerne tanto à imagem do homem que aí se perfila como ao próprio livro no qual ela se deposita — segundo Montaigne, um “mosaico desconjuntado”. Não apenas a eventual diversidade com que os temas são retomados, mas a própria transformação da obra em evolução (posto que os alongamentos freqüentemente transformam, como vimos, o sentido das passagens anteriores, mesmo quando estas permanecem intocadas) parece refletir o modo como o “eu” apenas se deixa apreender por meio das edições diversas e eventualmente incongruentes de si mesmo, nenhuma delas representando de modo absoluto e definitivo seu modelo. Mas, se o problema reside, justamente, na parcialidade com que o registro instantâneo pode falsear o modelo, não é essa uma boa razão para que se busque descrever e observar tais variações desde sua origem — tal como alega Montaigne ser o objetivo da obra? Este feixe de tantas peças diversas se faz nesta condição: só ponho nele a mão quando uma ociosidade demasiado relaxada me move, e nunca noutro lugar que minha casa. Assim ele se faz em diversas posições e intervalos, uma vez que as ocasiões me detêm fora às vezes por vários meses. Em suma, eu não corrijo minhas primeiras opiniões [imaginations] pelas segundas… Eu quero representar o pro107. Não pensamos aqui apenas no modo como o cogito cartesiano é extraído de uma argumentação na qual Descartes, em primeira pessoa, faz o trajeto das razões de duvidar, mas também no modo como Locke retoma usualmente essa fórmula em suas argumentações. Ver, por exemplo, Essay concerning Human Understanding, introd., § 8: “Eu presumo que me será concedido que haja tais idéias na mente dos homens: cada um é consciente delas nele mesmo…”; ou então, quando argumenta para provar que todas as nossas idéias provêm da sensação ou da reflexão: “… Deixe quem quer que seja examinar seus próprios pensamentos e buscar a fundo em seu entendimento, e que ele então me diga se todas as idéias originais que ele tem aí não são apenas os objetos dos seus sentidos, ou as operações de sua mente consideradas como objetos de sua reflexão…” (ibid., Ch. I, book ii, § 5). Esse mesmo expediente retórico talvez possa igualmente oferecer um esclarecimento inesperado sobre a fonte desta passagem dos Pensamentos de Pascal (sem deixar de projetar-lhe um sentido igualmente paradoxal): “Não é em Montaigne, mas em mim que encontro tudo o que nele vejo…” (§ 689-64). 472

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gresso de meus humores, e que se veja cada peça em sua nascente. Eu teria prazer de ter começado mais cedo e a reconhecer o andamento de minhas mutações… (II, 37, 758A).

Talvez, assim, a visão em perspectiva possa agregar-se, como uma espécie de referência relativamente constante (ainda que mutável), às imagens presentes que faz o autor de si, auxiliando-o a relativizá-las e observá-las diversamente. Igualmente útil para esse mesmo propósito parece ser o hábito de cotejar as próprias opiniões e os juízos diversos de outros autores, como repetidamente ele o faz. Eis, em suma, por que ganham um valor especial nesse ceticismo a observação e o registro das produções mais diversas e contraditórias da fantasia, sejam próprias do autor ou colhidas noutra parte, ainda que posta entre parênteses sua eventual pretensão de verdade: [C] Também no estudo que faço de nossos modos de agir [mœurs] e movimentos, os testemunhos fabulosos, posto que sejam possíveis, servem como os verdadeiros. Ocorrido ou não, em Paris ou Roma, a João ou a Pedro, é sempre um feito [tour] da capacidade humana, do qual sou utilmente informado por esse conto [recit]… Há autores cujo fim é dizer os eventos. O meu, se eu soubesse a ele chegar, seria dizer o que pode ocorrer… Nos exemplos que aí lanço, acerca do que eu ouvi, fiz ou disse, eu me proibi de alterar mesmo as mais leves e inúteis circunstâncias. Minha consciência não falsifica um iota, meu saber [science] não o sei… (I, 21, 105-106)108. Assim como a “forma humana” se deixa reconhecer no modo como a experiência individual refaz um percurso mais geral, a observação das fantasias em sua diversidade pode oferecer uma imagem da “capacidade humana” em sua esfera imaginativa, seja no inusitado com que se contrapõe a nossas expectativas, seja na surpresa das próprias recorrências. Seja como for, o ponto de fuga dessa diversidade reside no modo como auxiliam o autor do registro a situar a singularidade de suas fantasias, na medida mesma em que se é naturalmente conduzido a pensar e opinar. A observação da fantasia, em seus diversos aspectos, colabora para a tentativa de se observar distanciadamente, posto que a imagem imediata e 108. Ver 516A, 545C; III, 8, 545C. 473

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demasiado próxima facilmente se solidariza com uma ilusão, pela qual perdemos de vista a dimensão ambivalente e movediça do objeto: [C] Eu ouso não somente falar de mim, mas falar somente de mim; eu me extravio quando escrevo sobre outra coisa e me furto a meu assunto. Eu não me amo tão desmedidamente e não sou tão ligado e imiscuído a mim mesmo que não possa me distinguir e considerar a distância, como um vizinho, ou como uma árvore… (III, 8, 942). Mas quais são os efeitos filosóficos do ceticismo relativamente às preocupações morais que motivaram inicialmente o projeto montaigniano de registrar suas fantasias — em especial no que tange a sua dimensão terapêutica? Não podemos terminar nosso percurso sem uma palavra sobre esse tema. 7.5. Imaginação, experiência e impremeditação

No mesmo passo em que Montaigne abandona o esquema conceitual estóico que o orientava, transforma-se o diagnóstico do problema que articulava o projeto de terapia estóica naqueles ensaios. Se antes era a presença da melancolia que se afigurava como alvo particular de sua terapia estóica, o ceticismo transforma a imagem que Montaigne faz de si, de modo que aquele traço de sua personalidade surgirá como um fantasia dentre outras a seu respeito. Na “Apologia”, ele assim se descreve: “Ocorrem mil agitações intempestivas e casuais em mim. Ou o humor melancólico me tem, ou o colérico; e segundo sua autoridade privada, neste momento a tristeza predomina em mim, naquele a alegria…” (566). Não estaríamos aqui diante de um exemplo peculiar do modo pelo qual, segundo os céticos, a suspensão da crença pode moderar a experiência dos males, que a tematização dogmática, ao contrário, inflaciona? Nas Hipotiposes, Sexto afirma que o fim em vista do qual o cético filosofa é a quietude com respeito aos assuntos de opinião e a moderação dos sentimentos (metriopathía) com relação às coisas inevitáveis (HP I, 25). Assim ele explica a maneira pela qual a suspensão o conduz a esse fim: Pois o homem que opina que algo é por natureza bom ou mau está continuamente inquieto: quando ele está sem as coisas que estima 474

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boas, ele se crê atormentado pelas coisas naturalmente más, e anseia pelas coisas que são, como ele pensa, boas; as quais, quando ele as obtém, o lançam em perturbações ainda maiores, por causa de seu desejo irracional e imoderado por elas, e pelo seu temor de uma mudança da fortuna, de modo que ele emprega todos os seus esforços para evitar perder as coisas que ele estima boas. Por outro lado, o homem que nada determina acerca daquilo que é por natureza bom ou mau nem evita nem persegue nada avidamente; em conseqüência, ele permanece imperturbado… (HP I, 27-28)109.

Assim, embora o esforço auto-reflexivo de Montaigne seja uma herança de seu período estóico, seu teor investigativo muda de natureza. Mesmo que essa reflexão cética o conduza a esboçar uma imagem geral do homem, Montaigne não pretende extrair daí, ao que tudo indica, um critério geral para a obtenção de tranqüilidade filosoficamente. Também no que tange à moral, sua reflexão cética conduz a uma espécie de reconhecimento acerca da individualidade como traço irredutível dos homens: [C] Toda a glória que eu pretendo da minha vida é a de tê-la vivido tranqüila: tranqüila não segundo Metrodoro, ou Arcesilau, ou Aristipo, mas tranqüila segundo eu mesmo. Posto que a filosofia não soube encontrar nenhuma via para a tranqüilidade que fosse boa em comum, que cada um a busque em seu particular… (II, 16, 622). Uma vez que as reflexões de Montaigne permanecem norteadas pelo objetivo de se regrar, para encontrar a “ordem, harmonia e tranqüilidade de opiniões e de conduta”110, cumpre reconhecer que tal objetivo subordina igualmente o auto-retrato, e mesmo que a ele atenda o modo como ele descobre que a própria atividade de se auto-retratar acaba por produzir uma concomitante transformação no modelo retratado: [C] Moldando sobre mim mesmo essa figura [os Ensaios], foi-me preciso com freqüência levantar-me e compor-me para me extrair, [de 109. Diversas passagens dos ensaios posteriores ao engajamento cético de Montaigne apontam o modo problemático como a razão antecipa as experiências, no âmbito da moral: cf. II, 12, 486; II, 37, 760; III, 11, 1034; III, 12, 1044, 1053. 110. Ver II, 17, 658A. 475

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maneira tal] que o molde se afirmou e de algum modo se formou a si mesmo. Pintando-me para outrem, pintei-me a mim mesmo de cores mais nítidas do que eram as minhas primeiras. Eu não fiz mais o meu livro do que o meu livro me fez, livro consubstancial a seu autor, que não se ocupa senão dele, membro de minha vida; não de uma ocupação e fim terceiros, como todos os outros livros… (II, 18, 665).

Não será possível aqui examinar todas as conseqüências da investigação de si mesmo, pela qual Montaigne ou bem se vê num fluxo de fantasias variadas ou oscilantes, a cuja variedade imprevisível cabe eventualmente se amoldar, ou bem pretende discernir nesse fluxo a constância eventual de seu juízo, pelo qual se guia, ou das formas implantadas “mais fundo” pela natureza ou pelo costume.111 Em vista do tema que estivemos aqui perseguindo, todavia, não podemos deixar de nos interrogar pelo destino da noção de fantasia no âmbito desse projeto terapêutico. Referindo-se agora ao seu projeto como um estudo profundo, um registro metódico, de longa duração, por oposição àqueles que se consideram apenas “por fantasia e pela boca”112, Montaigne persevera em sua intenção de “organizar” suas fantasias, mas a eventual ação terapêutica dessa atividade parece agora ser depositada no próprio ato de seu registro: [C] A natureza nos habilitou de uma ampla faculdade de nos entretermos à parte, e a isso nos chama com freqüência para nos ensinar que nós somos devedores em parte à sociedade, mas na melhor parte a nós. Com o fim de ordenar [renger] minha fantasia a sonhar mesmo com alguma ordem e projeto, e guardá-la de se perder e extraviar ao vento, basta dar corpo e registrar esses tantos pensamentos miúdos que a ela se apresentam. Eu escuto meus devaneios porque tenho de registrá-los [enroller]… (ibid.). Resta indagar como esse registro pode ser investido de um efeito “terapêutico” e se ainda aqui deveríamos encontrar aspectos da reflexão moral do pirronismo antigo. Em continuação da passagem que 111. Ver, nesse sentido, por exemplo, III, 2, 813-4, 816BC, cf. III, 3, 818B. 112. II, 18, 665C. 476

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citamos acerca das conexões entre a epokhé e a “moderação das opiniões”, Sexto nos oferece a metáfora do pintor Apeles, a que já nos referimos, para ilustrar a casualidade com que o cético atinge o seu objetivo: assim como Apeles obteve por acaso o efeito da espuma na boca do cavalo quando jogou, irritado, a esponja sobre a tela, a tranqüilidade que o cético antes buscara na posse da verdade passa a casualmente seguir a epokhé, como uma sombra acompanha o objeto que a causa113. Procuraremos agora mostrar que o papel próprio que se reserva, na reflexão de Montaigne, à imaginação, a partir de seu contato com o ceticismo, reflete-se no reconhecimento de um papel igualmente especial do acaso, até no âmbito da reflexão moral. Se antes, como vimos, Montaigne pretendia suprimir um suposto desarranjo transitório pelo qual a imaginação mostrava-se incapaz de conter-se em seus limites, agora não faltam passagens que apontam para o modo como a “fantasia” — ainda que num diagnóstico formulado de modo sabidamente provisório — adquire um papel central e relativamente autônomo no seio de nossa condição natural. Ao discutir a experiência dos males, eis, por exemplo, o que ele escreve: [B] Os médicos dobram com freqüência utilmente as suas regras à violência das vontades ardentes que advêm aos doentes. Esse grande desejo não pode ser imaginado tão estranho e vicioso que a natureza não se aplique a ele. E ademais, quanto não é preciso contentar, a fantasia! Na minha opinião essa é a peça que importa, ao menos além de qualquer outra. Os males mais graves e comuns são aqueles dos quais a fantasia nos carrega… (III, 13, 1087)114. E não se trata de uma simples consideração teórica, mas de uma avaliação que se refletirá na prática argumentativa de Montaigne. Em “Da fisionomia” (III, 12), por exemplo, ele retoma o mote cético da metriopathía, criticando o modo como a science imprime em nossa fantasia males diversos daqueles que efetivamente sofremos. A mesma metáfora alimentar que, na “Apologia”, justificava o uso de argumentos demonstrativamente falhos é retomada para destacar o modo como 113. Ver HP I, 28-29. 114. Cf. III, 9, 949B; I, 39, 243A. 477

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o simples contato com as fantasias propostas pela ciência pode impor, por si mesmo, um efeito em nossa imaginação, positivo ou, mais geralmente, negativo115. Descortina-se aqui, portanto, um valor diverso dos argumentos desprovidos de solidez demonstrativa que Montaigne diz semear em seu livro116: ainda que se possa manter em suspenso o juízo sobre a veracidade das fantasias propostas pelos diversos autores, elas podem se revelar propícias pelo modo aparentemente imprevisível e involuntário como acabam por intervir ou se impor à imaginação daquele que as considera. Num acréscimo tardio a um ensaio originalmente inspirado no estoicismo, ele escreve: [C] … [A alma] é variável em toda sorte de formas, e adapta a si e ao seu estado, seja qual for, os sentimentos do corpo e todas as outras eventualidades [accidents]. Entretanto, é preciso estudá-la e inquirir, e nela despertar suas molas todo-poderosas. Não há razão, nem prescrição, nem força que possa contra sua inclinação e sua escolha. De tantos milhares de vieses que ela possui à sua disposição, demo-lhe um que seja próprio ao nosso repouso e à nossa conservação: ei-nos não apenas protegidos de todas ofensas, mas gratificados mesmos, e adulados, se assim lhe parece, pelas ofensas e males. O erro e os sonhos servem-lhe utilmente, como uma matéria válida para nos pôr ao abrigo e nos contentar… É fácil ver que o que atiça em nós a dor e a vontade é o aguilhão de nosso espírito… posto que nós nos emancipamos das regras [da natureza], para nos abandonarmos à liberdade errática [vagabonde] de nossas fantasias, ao menos ajudemos a dobrá-las para o lado mais agradável… (I, 14, 57-58). E ele mesmo declara que não recusará o que, segundo sua experiência, vier a revelar um efeito benéfico sobre sua imaginação, em vista da obtenção da felicidade: [B] Ora, eu trato minha imaginação o mais docemente que eu posso e a desincumbiria, se pudesse, de todo o esforço e contestação. É preciso socorrê-la e adulá-la, e iludir [piper] se for possível. Meu espírito é próprio para esse serviço: não faltam aparências [de verdade] 115. Ver III, 12, 1039C, cf. II, 12, 46C. 116. Ver III, 12, 1037-1040B. 478

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por todo lado, se ele persuadisse na medida em que discursa, ele me socorreria com sucesso… (III, 13, 1090).

Quando lhe aflige a pedra nos rins, Montaigne passa a examinar razões capazes de abreviar o modo como a imaginação amplifica os males: trata-se, por exemplo, de um mal aceitável para sua idade, melhor do que outros que o poderiam acometer etc. (v. ibid.). O mesmo expediente lhe propicia, noutra ocasião, a retomada de uma imagination estóica — dado o encadeamento geral das causas, não é possível intervir num detalhe sem que a seqüência toda se altere — que ele julga, contudo, pertinente em razão do modo como sua imaginação é suscetível ao arrependimento (v. III, 2, 815B). Se o abandono do projeto estóico de conter a imaginação conduziu Montaigne a considerar a maleabilidade da razão e a diversidade da força que os argumentos podem ganhar em contextos diversos, aqui o mesmo olhar cético se oferece em outro ângulo. Eis como Montaigne interpreta a temática do “demônio” que Sócrates alegava por vezes consultar: [B] O demônio de Sócrates era talvez um certo impulso da vontade, que se apresentava a ele, sem esperar o conselho de sua razão [discours]. Numa alma bem depurada como a sua, e preparada pelo contínuo exercício de sabedoria e de virtude, é verossímil que essas inclinações, ainda que temerárias e indigestas, fossem sempre importantes e dignas de serem seguidas. Cada um sente em si alguma imagem de tais agitações [C] de uma opinião imediata, veemente, e fortuita. Cabe a mim lhes dar alguma autoridade, eu que dou tão pouca à nossa sabedoria. [B] E delas houve [C] igualmente fracas em razão e violentas em persuasão, ou antes, em dissuasão, que eram mais comuns em Sócrates, [B] pelas quais eu me deixei carregar tão utilmente e tão felizmente que elas poderiam ser tomadas como possuidoras de alguma coisa de inspiração divina… (I, 11, 44). Certamente a aceitação dessas opiniões eventualmente “fracas”, de um ponto de vista da razão, não se justifica por sua veracidade intrínseca; trata-se, em vez disso, de uma conseqüência particular da mesma transformação que o ceticismo opera sobre a idéia de argumentação, já observada em outros aspectos. O ceticismo, como explica Sexto, consiste numa terapia do “mal dogmático” que autoriza, para esse fim, 479

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o uso de argumentos possuidores de pesos diversos117. Esses textos sugerem que Montaigne interpreta de um modo bastante peculiar esse uso terapêutico de razões, como um expediente para intervir sobre a imaginação — mesmo a sua própria — observada como fonte de uma apreensão virtualmente distorcida ou dogmática das coisas. Tal como certas fantasias sensíveis e involuntárias podem ser aceitas, como parte do phainómenon, a mesma necessidade de agir parece justificar a apropriação fenomênica de certas fantasias racionais ou opinativas em vista de seu poder sobre nossa imaginação. Mais exatamente, trata-se de reconhecer que essas fantasias, além de nossa capacidade de compreender como e por que isso ocorre, podem agir sobre nossa imaginação, segundo nossas diferenças individuais, e produzir efeitos inesperados sobre o modo como experimentamos nossas afecções: “[B] Os homens são diversos em força e em paladar, é preciso conduzi-los a seus bens segundo eles mesmos, e por vias diversas…” (III, 12, 1052). Assim, entre o modo como cada argumento se oferece com força determinada em vista de como cada qual o aprecia e, de outra parte, o modo como a imaginação individual reage amplificando ou moderando uma certa afecção estabelece-se uma relação que não pode ser plenamente abarcada pelo entendimento. Não se trata, assim, de presumir a existência de um vínculo racional entre a veracidade de um determinado argumento e suas conseqüências morais; apenas a experiência individual é que estabelece a relação entre essas instâncias, que se apresenta, nessa medida, de modo casual. Eis como, afinal, a science se subordina à fantasia: involuntariamente, o contato com as opiniões dos diversos filósofos pode conduzir a uma persuasão ou a uma dissuasão relativamente a crenças em que a imaginação obsessivamente se agarra, de um modo que ultrapassa nossa capacidade de compreensão. Isso nos mostra também como, de modo mais geral, emerge da reflexão montaigniana, ao lado da razão (destronada do poder autônomo que o otimismo estóico lhe conferia), uma espécie de província incógnita — a imaginação, dotada de certa autonomia natural e de 117. Examinamos essa passagem conclusiva das Hipotiposes no capítulo II, item 2.4 — “Doença racional e terapia cética”. 480

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meios de operar que escapam à nossa capacidade de compreensão. No que tange à nossa “experiência dos males”, a razão tende mesmo a se converter numa instância subalterna, que se determina pela imaginação de um modo que normalmente tende a passar despercebido. Se, para Sêneca, cabe à filosofia oferecer meios para combater o acaso118, Montaigne recusa-lhe esse papel explicitamente na “Apologia” (v. 489A, 494A), invertendo os termos dessa relação. Agora é a própria razão que se deve reconhecer movida pelo acaso: [B] Eu digo mais, que mesmo a nossa sabedoria e deliberação segue a condução do acaso [hazard]. Minha vontade e meu raciocínio [discours] se movem ora de um ar, ora de outro, e há diversos desses movimentos que se governam sem mim. Minha razão tem impulsos e agitações diárias [C] e casuais… (III, 8, 934)119. Se tais impulsos surgem como “diários e casuais” é porque, possuam ou não alguma lógica própria, esta não pode ser abarcada por nossas faculdades cognitivas. Mas esses “movimentos que se governam em mim” certamente se reportam, pelo que vimos, à ação da imaginação. Isso nos permite vislumbrar, finalmente, uma dimensão positiva nas considerações de Montaigne sobre o caráter “impremeditado e fortuito” de sua nova figura de filósofo. Essa fórmula parecia indicar a um só tempo, como assinalamos no capítulo I, tanto o caráter imprevisto com que ele reconhece a compatibilidade entre sua experiência pessoal e a dos antigos céticos como a valorização especial que ganha essa experiência da impremeditação (descrita pela metáfora do pintor Apeles) como elemento fundamental da prática investigativa permanente, pela qual o cético assume a provisoriedade intrínseca de suas posições120. Em seu viés terapêutico, o ceticismo de Montaigne se con118. Em Epist., I, xxiii, 7, SÊNECA descreve a fonte do verdadeiro bem como proveniente da boa conduta, dos princípios honrados, das ações virtuosas, do desprezo pelo acaso e “de um modo de viver calmo e constante, que se orienta regularmente numa única direção…” (ibid., 7); ver também I, viii, ix, xxvii. 119. Ver igualmente I, 47, 286AC: “[C] Nós raciocinamos ao acaso [hazardeusement] e inconsideradamente, diz Timeu em Platão, pelo que, como nós mesmos, nossa razão tem grande participação do acaso”. 120. Ver capítulo I, item 1.3 — “Um novo cético?”. 481

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verte, como vimos, num exercício auto-retratista capaz de transformar o próprio objeto retratado, ainda que não o possa apreender senão segundo perspectivas sabidamente parciais; notemos agora que, tal como a ataraxía surge para o cético como um resultado inesperado de seu engajamento filosófico, também esse efeito transformador é apresentado por Montaigne como um proveito imprevisto de sua investigação: “[B] Eu sinto este proveito inesperado da publicação dos meus modos de ser [moeurs]: ela me serve nalguma medida de regra… (III, 9, 980; itálico nosso). Caberia mesmo dizer que, na pintura montaigniana de si, feita sobre o fundo da fantasia, essa impremeditação parece ganhar novas cores: ela surge agora não apenas como um elemento constitutivo do próprio retrato, mas também como um aspecto das ações do sujeito retratado que se torna objeto do retrato. Isso porque o registro do modo impremeditado com que as fantasias se sucedem, na mesma medida em que elas assim escapam da esfera de nossa razão, oferece uma possibilidade de transcender a imagem que podemos dispor, racional e conscientemente, de nós mesmos, em dado momento. Assim, os atos que ultrapassam nossa deliberação consciente guardam um potencial representativo estratégico nesse auto-retrato, como se pode ver nestas considerações de Montaigne sobre sua atividade: Eu tomo ao acaso o primeiro tema. Eles me são igualmente bons. E não pretendo nunca pô-los em evidência por inteiro. [C] Pois de nada eu vejo o todo, e não o fazem aqueles que nos prometem fazê-lo… Semeando aqui um dizer, ali outro, fragmentos desprendidos do seu lugar, afastados, sem desígnio e sem promessa, eu não me comprometi em fazer melhor, nem de neles me apoiar eu mesmo, sem variar quando assim me aprouver; assim [posso eu] entregar-me à dúvida e à incerteza, à minha forma mestra [forme maitresse], que é a ignorância. Todo movimento nos revela… (I, 50, 302-303; itálicos nossos). Esse texto, que já examinamos para qualificar o gênero filosófico dos ensaios121, alude em diferentes aspectos ao modo como Montaigne pretende manifestar sua individualidade: de uma parte, ele se refere à 121. Ver final do item 5.1 — “O ceticismo como gênero filosófico”. 482

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particularidade com que sua leitura retoma os caminhos já trilhados por outrem; de outra, alude à sua “forma mestra” — a ignorância — que, segundo essa passagem, se expõe por meio da “variação” opinativa. Podemos agora mirar um outro ponto, aparentemente secundário, à primeira vista, desse quadro: se Montaigne acaba por concluir que “todo movimento nos revela”, não deveríamos incluir a própria escolha casual — impremeditada e fortuita — dos argumentos e temas considerados como alguma coisa que, nessa casualidade mesma, pode revelar algo a seu respeito? Essa não é a única passagem (mesmo entre as já mencionadas) que sublinha o caráter fortuito dos movimentos retratados como um elemento importante do auto-retrato. Logo após reconhecer que não sabe qual o melhor — ele agora ou ele outrora — Montaigne escreve: “[B] É um movimento de ebriedade, titubeante, vertiginoso, disforme; [são] juncos que o ar maneja casualmente como quer…” (III, 9, 964; itálico nosso). Aqui ocorre uma identificação entre a percepção do movimento como casual e a indeterminação de uma identidade que permitira coligir as diversas circunstâncias em que o eu apreende a si mesmo. Essa casualidade apresenta-se na imagem com que esse eu aparece para si mesmo quando se recusa a postular uma identidade imaginária pela qual seu movimento poderia ser reduzido e interpretado. A mesma idéia se apresenta em III, 2, 805B, ao longo da descrição do movimento “turbulento e oscilante, de uma ebriedade natural” do objeto de seu retrato, que ele não consegue fixar: Se a minha alma pudesse tomar pé, eu não me ensaiaria, eu me resolveria. Ela está sempre em aprendizagem e em teste [en épreuve]… As fantasias da música se conduzem pela arte, as minhas pelo acaso [par sort]. Ao menos tenho isto segundo a disciplina: jamais um homem tratou de assunto que ele entendesse ou conhecesse melhor do que eu faço naquele que empreendi… À falta de poder conhecer uma unidade capaz de superar o que aparece por meio dessa percepção casual e oscilante de si, é preciso ensaiar — isto é, registrar fielmente os movimentos das suas fantasias na própria casualidade com que provisoriamente se apresentam, como possuidores de consistência e aparente estabilidade, mas buscando valorizá-los no que possuem de propriamente casual e imprevisto, em 483

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nome da fidelidade do retrato. A incorporação desse aspecto responde à natureza particular da zétesis na forma do ensaio: [A] Não tenho outro sargento de batalha para organizar as minhas peças do que o acaso [fortune]. Tal como meus devaneios se apresentam, eu os amontôo; por vezes eles se apresentam em tumulto, por vezes se seguem em fila. Eu quero que se veja o meu passo natural e ordinário, tão desregrado quanto for. Eu me deixo ir como eu me acho. Não se acham aqui matérias das quais não seja permitido ignorar, e de falar casualmente e temerariamente… (II, 10, 409)122. Em suma, a obra consubstancial ao seu autor, retratando-o e permitindo que ele se transforme por sua leitura, torna-se um meio de obter uma visibilidade privilegiada acerca de si mesmo, além de como ele se imagina ou compreende ser num momento dado — seja pelo distanciamento temporal pelo qual a impressão atual que se tem de si pode ser relativizada, seja trazendo ao primeiro plano certos aspectos do eu que podem se fazer presentes, mas tendemos a encobrir, julgando-os irrelevantes ou pouco importantes na imagem que tendemos a formar de nós mesmos (como os caprichos da imaginação, que nos faz fortuitamente nos ater a um argumento, um exemplo ou um fato). Aqui a imagem produzida segundo as variações do acaso resulta do rigor próprio com que essa investigação cética do homem é concebida por Montaigne: busca-se depurar aquilo que nossa experiência pode nos oferecer acerca de nós mesmos, desde que devidamente auscultada, e desde que nos disponhamos a suspender as crenças prévias e imaginativas pelas quais projetamos no retrato o que esperamos encontrar. Agregar-lhe esse movimento casual é um meio de registrar-se além da imagem de verdade pela qual, a cada momento, podemos nos deixar seduzir. Nossa tendência a forjar-nos uma identidade estável e consciente (a despeito da presença eventual de alguma “forma mestra” que pode ser mais bem conhecida ao longo da investigação) revela, paradoxalmente, um aspecto essencial de como agimos, cujo efeito é o de 122. Ver também III, 9, 963: “[B] … meu intuito é o de representar, ao falar, um total distanciamento [nonchalance], e movimentos fortuitos e impremeditados, como se nascessem das ocasiões presentes…”. 484

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ocultar aquilo que efetivamente somos e pode vir à tona pela espontaneidade e pela casualidade; como se nossa razão operasse, como dizemos hoje, uma “racionalização” acerca de nós mesmos — de nossos desejos e impressões — que tal retrato pretenderia superar, valendo-se do registro da casualidade. Porém, por mais que essa interpretação possa curiosamente aproximar Montaigne de uma concepção de sujeito extemporânea, nossa intenção não é a de “psicanalisar” o texto dos Ensaios: não queremos aqui interpretá-lo com instrumentos alheios, mas apenas tentar esclarecer o sentido com que Montaigne teria pensado sua terapia filosófica sob a égide da retomada das morais antigas — em especial, adaptando sua reflexão cética a elementos que não são diretamente tematizados pelo ceticismo antigo. Não deixa de ser curioso que a imagem produzida nos pareça estranhamente familiar, especialmente se contraposta à que se produz pelo cartesianismo — por mais que essa filosofia, de um ponto de vista histórico, pareça ter contribuído mais decisivamente para os rumos pelos quais a psicologia moderna procurou se constituir como ciência —, assunto esse para uma outra ocasião. Montaigne nos oferece, graças a seu ceticismo, um raro exemplo de filósofo que reconhece um valor especial e definido, para a obtenção de uma imagem mais fiel do homem, no registro daquilo que pertence à imaginação e está além do conhecimento racional. Ademais, importa destacar outra conseqüência dessa valorização do acaso na zétesis auto-retratista, relativa à interpretação do ceticismo por Montaigne. Vimos, nos dois capítulos precedentes, que essa interpretação conduz a uma valorização particular da própria investigação, seja em sua relação com a formação do juízo, seja ao caracterizar o ceticismo como permanente questionamento das crenças que inevitavelmente admitimos. Compreendidas como imagens provisórias das opiniões que um sujeito pode ter de si mesmo, as fantasias registradas são igualmente submetidas a uma investigação virtualmente interminável, sem que se possa apreender, por meio de nenhuma delas, o “ser” que se quer retratar — a despeito de nossa tendência a crer que as opiniões de que hoje dispomos são as corretas e as melhores: “[B] Quem não vê que eu tomei um caminho pelo qual, sem cessar e sem dificuldade, eu irei o quanto houver de papel e tinta no mundo? Eu não posso 485

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manter um registro de minha vida por minhas ações, a fortuna as situa muito baixas; eu o mantenho pelas minhas fantasias…” (III, 9, 945). Essa prática cética, por oposição ao modo como os dogmáticos se aferram à autoridade dos dogmas que aceitam, é a que facultaria ao homem, todavia, um uso pleno de todas as suas faculdades naturais, como homem vivo, pensante e raciocinante. O que diferenciaria o cético do dogmático, desse ponto de vista, seria sobretudo a postura diante do estatuto provisório de suas opiniões. Não corresponde, então, o reconhecimento do caráter “impremeditado e fortuito” com que nossas fantasias se sucedem uma afirmação da própria “liberdade” que, segundo Montaigne, caracteriza a atividade argumentativa cética? Tudo se passa como se a experiência cética da incapacidade de encontrar a verdade, que pode conferir a esse filósofo uma identidade intelectual e lhe propiciar certa tranqüilidade, se convertesse num paradoxal paradigma: ao mesmo tempo em que aí se retrata a condição permanentemente investigativa do cético, anuncia-se a necessidade de refazer a experiência, porquanto ela comporta sempre algo de “impremeditado e fortuito” — como se a própria casualidade com que os eventos se apresentam anunciasse um ganho irredutível na efetividade da ação e da experiência, que não pode estar contido na autoridade do modelo tomado como paradigma filosófico dessa experiência123. Se esse ganho esteve até aqui visível na forma da particularidade com que o juízo se manifesta, podemos ver agora que o rendimento prático desse ceticismo é o de afirmar uma certa autonomia da esfera da ação e da experiência vivida, por oposição ao modo como somos capazes de abarcar essa experiência mediante nossas fantasias racionais: “… ser consiste em movimento e ação, razão pela qual cada um está de algum modo em sua própria obra…” (II, 8, 386-387)124. Eis como o momento da morte deixa de ser a pedra de toque pela qual se há de avaliar o teor do engajamento filosófico: o ceticismo descortina aqui a imagem do ho123. Um eco dessa idéia parece eventualmente ressoar nos Pensamentos de Pascal: “Que não se diga que eu nada disse de novo, a disposição das matérias é nova. Quando se joga a pela, é com uma mesma bola que um e outro jogam, mas um a coloca melhor que outro” (696-22). 124. Ver também III, 5, 842; I, 4, 22A; II, 37, 764. 486

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mem não como “ser” (porque este nos está vedado pela natureza, como o está a experiência direta da morte), mas como “passagem”; um homem essencialmente voltado para a vida, contra a mortificação produzida pelas filosofias dogmáticas. Mas essa investigação potencialmente indefinida aponta paradoxalmente um fim que ela não pode alcançar. Por mais que Montaigne possa colher o movimento surpreendente de suas fantasias e que o registro retomado possibilite a sua transformação, é um aspecto integrante da própria investigação, como dissemos, o abandono de uma fantasia fundamental — a de pretender se evadir absolutamente do próprio terreno da fantasia. Inesperadamente, por essa via, retornamos ao ponto de partida. Pois a confusão dos bibliotecários diante da estante de filosofia e de literatura talvez não se revele agora tão fortuita como nos aparecia num primeiro momento, ainda que por razões impremeditadas. Estamos diante de um autor para quem o preço a pagar pela imagem menos fantasiosa do homem que pode obter a filosofia — mesmo diante daquilo que nossa experiência de nós mesmos mais imediatamente nos apresenta — é o reconhecimento de que ela não pode se situar plenamente fora do terreno da ficção.

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CONCLUSÃO

Ceticismo e subjetividade

Onde reside afinal a novidade do filósofo de “nova figura”? Antes de mais, no fato de ser ele um filósofo cético stricto sensu. Como disse Schiffman1, o ceticismo é a filosofia que se oferece a Montaigne como um espelho em que ele pode reconhecer sua identidade intelectual, e aqui pudemos constatar que esse espelho, embora cético, é muito mais fiel e rigoroso do que se costuma perceber. A tal ponto que, em vez de um retrato intelectualmente intangível ou indecifrável, ele efetivamente nos oferece a imagem de um filósofo. O que não nos impede de constatar que essa imagem, em mais de um sentido, seja pessoal e singular. Fomos postos diante de um ceticismo paradoxal — não apenas pela forma inovadora com que ele se vale filosoficamente do paradoxo, mas também pela maneira como, através de seu próprio engajamento a uma filosofia dada, esse cético se torna consciente da inexorável particularidade de sua reflexão — seja como índice da impossibilidade de obter 1. Ver SCHIFFMAN, 1984, p. 513. 489

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a verdade, seja como resultado do pleno emprego das capacidades humanas, potencializadas por essa naturalização cética. Não será demais repetir que os céticos, como diz ele, pretenderam sobretudo se fazer “homens vivos e raciocinantes”, e empregar plenamente, “em ordem e com retidão”, todas as suas peças corporais e espirituais, renunciando aos privilégios imaginários de determinar a verdade (505AC). A consciência da particularidade é a tal ponto significativa que esse ceticismo reencontra o lema socrático — “conhece-te a ti mesmo” — e se converte num empreendimento de auto-retrato. Não é surpreendente, desse ponto de vista, que Montaigne não tenha produzido uma “seita”, uma posteridade no sentido filosófico mais habitual, mas tenha legado, entre outras coisas, um gênero reflexivo (que deixou de ser compreendido em sua relação com a verdadeira matriz filosófica da qual derivou). De outra parte, ele legou à posteridade problemas filosóficos fundamentais que certamente contribuíram, ainda que indiretamente, para que o tema da subjetividade tenha ganhado a dimensão que ganhou entre os modernos. Tampouco aqui o legado dessa reflexão não mais se reconhece, ainda que na medida restrita que lhe caberia, a partir da matriz de onde proveio, dada a nova configuração que recebeu no debate posterior. Além do que já foi dito, parece-nos oportuno, para concluir, ainda insistir um momento na consideração desse traço historicamente decisivo do ceticismo montaigniano — isto é, sua retomada do ceticismo antigo na forma de uma “filosofia da subjetividade”. Vimos, no capítulo V2, que Montaigne não apenas confere ao próprio discurso o estatuto subjetivo e provisório que marca, já no ceticismo antigo, o uso cético da linguagem, como também reconhece, ao menos implicitamente, a importância da exemplaridade do discurso em primeira pessoa como um expediente retórico importante, tanto para a coerência interna da postura cética quanto para a manifestação de suas opiniões. Mas, na medida em que estamos diante de um discurso cético vazado na terminologia das “faculdades da alma”, que povoam como personagens as reflexões dos Ensaios, quão longe estaríamos do ceticismo antigo e quão próximos da tematização da subjetividade que ocorre 2. Ver item 5.4 — “Exemplaridade, subjetividade e filosofia moderna”. 490

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na filosofia moderna? É freqüente nos Ensaios o emprego do termo “faculdade” para designar capacidades específicas da alma e particularmente no contexto da interpretação ou da produção de uma argumentação cética3. Trata-se de um dos termos de um diversificado vocabulário que Montaigne emprega para designá-las — ao lado de qualidades (qualitez) — ou bem as partes da alma —, peças (pieces), molas (ressorts), movimentos (mouvements) e funções (functions). Essa variedade — aliada ao modo como as faculdades particulares se apresentam, como vimos, sem que se possa definir exatamente seus limites — parece contribuir para caracterizar um traço recorrentemente detectado como “problemático” pelos comentadores: a fluidez e a aparente vagueza com que, a despeito de suas diversas nuances, surgem tais conceitos4. Por esse ângulo, certamente nos afastamos das arquiteturas do sujeito cognoscente que serão produzidas por Descartes ou Kant. Contudo, como também vimos, mesmo que desprovidas de um contorno nítido, tais “peças” são nomeadas por termos que possuem um sentido técnico aparentemente comparável àquele que, no ceticismo antigo, possuem expressões como diánoia, lógos ou phantasía. No caso dessa última, é particularmente nítida a intenção de Montaigne de adaptar seu vocabulário à tradução da expressão pirrônica, ainda que o termo transplantado ganhe eventualmente nova dimensão semântica. Mas podem esses termos, no ceticismo antigo, designar algo análogo às faculdades da alma, tal como Montaigne a elas se refere? Sexto Empírico, ao combater as diversas teorias propostas pelos antigos dogmáticos a respeito, suspende o juízo sobre a natureza e a realidade da alma (e igualmente do corpo), também sobre a realidade do intelecto e sobre o alegado poder que ele teria de se conhecer a si mesmo e à sua substância, assim como sobre as chamadas faculdades (dúnameis) 3. Ver, por exemplo, 503AC, 564A. Por “faculdades”, Montaigne parece indiferentemente se referir às ações da alma e ao seu produto, tal como ocorre no emprego dos termos que, nos Ensaios, designam as faculdades particulares (como o julgamento, a razão ou a imaginação). 4. Sobre o modo “difuso” (blurring) com que Montaigne trata das “categorias psicológicas”, ver, por exemplo: LA CHARITÉ, 1968, p. 1; MCFARLANE, 1968, p. 122; e HOLYOAKE, 1969, p. 502. 491

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da alma5. E Montaigne o segue quando critica, como também vimos, a maneira como os filósofos forjam inúmeras teorias sobre os “mil fragmentos falsos e fantásticos” que eles inventam para explicar as funções e faculdades que sentimos em nós6. Notemos apenas, além do que já dissemos, que isso não o impede de apresentar um julgamento — imediatamente após se apresentar como um filósofo impremeditado e fortuito — sobre a opinião mais verossímil nesse assunto: [A] Para voltar à nossa alma, quanto ao fato de Platão ter posto a razão no cérebro, a ira no coração e a cupidez no fígado, é verossímil que isso tenha sido antes uma interpretação [interpretation] dos movimentos da alma do que uma divisão e separação que ele tenha querido fazer nela mesma, como dividir um corpo em diversos membros. E a mais verossímil de suas opiniões é a de que é sempre uma alma que, pela sua faculdade, raciocina, lembra-se, compreende, julga, deseja e exerce todas as suas outras operações, por diversos instrumentos do corpo (como o piloto governa o seu navio segundo a experiência que dele tem, ora puxando, ora relaxando uma corda, ora levantando a antena ou movendo o remo, por um único poder conduzindo diversos efeitos [effects]), e que ela se situa no cérebro: o que se extrai de que os acidentes que tocam essa parte perturbam de imediato as faculdades da alma… (542). Essa passagem poderia sugerir que, como Descartes, Montaigne sustentasse uma espécie de dualismo ontológico (que incorreria, ademais, nos problemas que aquele pretendeu contornar ao esclarecer que a estreita união entre a alma e o corpo, em face de sua obscuridade para nosso entendimento, exigiria que nos referíssemos ao homem como uma terceira substância). Porém, mesmo que as reflexões cartesianas tivessem em vista essa passagem precisa, tal conclusão seria falsa, por desconsiderar as freqüentes comparações entre a alma e o corpo que buscam, precisamente, neutralizar as ficções abstratas dos dogmáticos e contribuir para que a consideremos em sua efetiva condição natural7. 5. Cf. HP II, 57-58; AM VII, 348 ss. 6. Ver 537A; cf. item 7.4 — “Uma imagem menos fantasiosa do homem”. 7. Diversas vezes Montaigne argumenta contra a idéia platônica de uma alma separada do corpo; ver 519A, 523A; II, 17, 639A, III, 13, 1106B, 1114-1115BC. 492

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Montaigne se recusa a identificar o fato de que constatamos a presença de faculdades diversas (e eventualmente diversas entre as pessoas) à tese de que a alma é efetivamente divisível em partes (como observamos ser o corpo), mas ele não pretende que se possa extrair daí nenhuma tese metafísica, seja sobre sua unidade, seja sobre sua fragmentação. O conteúdo mesmo dessa metáfora será, poucas páginas adiante, embargado pela maneira como aquilo que nos surge como “verossímil” acerca da natureza da alma será contraposto à verdade revelada e reduzido a um testemunho de nossa cegueira (v. 552-553). Como procuramos mostrar noutro texto8, isso não revoga as hipóteses naturalistas esboçadas, desde que tomadas como conjecturas capazes de exibir uma imagem menos fantasiosa de nossa natureza, ressaltando, todavia, o estatuto meramente “imaginativo” que tal conjectura não pode deixar de ter, por mais razoável que nos pareça. A teoria platônica é vista aqui, mais exatamente, como uma “interpretação”, isto é, uma conjectura com base em elementos oferecidos por nossa experiência (a alma parece situar-se no cérebro) sem que, com isso, se pretenda tratar o verossímil por verdadeiro; são conjecturas cuja persuasividade deverá ser averiguada por quem se dispuser a considerar a mesma experiência e as razões que puderem ser oferecidas. E, sobretudo, essa conjectura deve se prender àquilo que podemos mais diretamente constatar sobre as suas faculdades (raciocinar, imaginar, lembrar) — tal como podemos constatar a palidez da face —, sem saber de fato a que isso corresponde além do modo como as percebemos (se são de fato “partes” distintas, se se identificam umas com outras etc.) Mas, mesmo nessa descrição, não se pretende dizer o que sejam, em si mesmas, essas instâncias da alma que podemos, por meio de nosso discurso e de nossa experiência, apreender acerca de nós mesmos. Tal como o cético pirrônico assente ao “guia da natureza”, pelo qual admitimos, como critério para a vida prática, nossa capacidade de pensar e perceber, Montaigne, ao reconhecer a plena conformidade entre o ceticismo e o uso das faculdades corporais e espirituais que temos à nossa disposição, não se furtará a descrevê-las segundo as diferenças pelas quais cada uma delas pode aparecer a nós. 8. Ver EVA, 2004, p. 125-145, bem como 1994a, especialmente p. 33. 493

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Contudo, tal descrição, como dissemos, não almeja ser uma apresentação de sua essência: os nomes, para usar a expressão de Montaigne, são apenas “partes estrangeiras” coladas às coisas, e fora delas (v. II, 16, 618A); nesse caso, especialmente, “jugement”, “raison” e “fantasie” são exemplos de expressões pelas quais se trata de levar adiante essa “espinhosa empresa, e mais do que possa parecer, de seguir um andamento tão incerto [vagabonde] como este do nosso espírito, de penetrar as profundezas opacas de suas dobras internas, de escolher e de fixar [arrester] tantos ares e agitações diminutas…” (II, 6, 378C). Ou, ainda, em “Da vaidade”: “… [as faculdades] possuem divisões e limites difíceis de discernir, e delicados…” (III, 9, 992B)9. Assim, a fluidez semântica do vocabulário epistemológico dos Ensaios pode ser vista como parte da imagem que Montaigne nos ofereceria de uma “unidade” da alma compatível com nossa incapacidade de circunscrever e precisar claramente suas partes. A vagueza desse vocabulário não constitui, nessa medida, uma imperfeição conceitual, mas, ao contrário, é parte da tentativa de descrever a fluidez e a complexidade próprias do phainómenon que se oferece nos movimentos de nossa alma e, mais ainda, de exibir, no detalhe da relação ambígua que se dá entre essas partes, como fracassam nossas tentativas de fixar as condições que propiciariam conhecimento objetivo das coisas. A natureza difusa da caracterização montaigniana é, desse modo, a conseqüência natural do esforço de oferecer uma pintura mais verossímil de nossa condição cognitiva efetiva, além da imagem fantasiosa que surge de nossa tendência a tomar as etiquetas pelas próprias coisas. Parece-nos também relevante assinalar que a dificuldade própria da reflexão montaigniana parece resultar da atenção especial que dedica às considerações céticas sobre a impossibilidade de conferirmos à expressão do que nos aparece um sentido absoluto: ela é apenas relativa ao 9. Trata-se de uma temática na qual igualmente insiste Sanchez: “E sobretudo contemplar a alma, suas faculdades, e suas ações, é algo muito difícil e objeto de muitas perplexidades; é algo tão difícil quanto qualquer estudo o possa ser… Não apenas a investigação da natureza da mente é cheia de obscuridades, mas lamacenta, árdua, abstrusa, sem pistas, por muitos intentada mas por ninguém conseguida, e de uma espécie que ninguém conseguirá…” (QNS, 53, 239-240). 494

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filósofo que a emprega e à experiência que lhe confere sentido10. Não se trata, como dissemos, de relativismo, mas sim de assinalar que a linguagem — em especial, o próprio vocabulário “epistemológico” — ganha sentido conceitual relativamente àquilo que descreve. Ou bem a linguagem se emprega segundo o sentido que possui no filósofo que se trata de refutar, ou bem ela ganha o sentido adequado para descrever os conceitos na medida em que a própria experiência reflexiva pode lhes conferir sentido. Seríamos aqui novamente tentados a retomar uma aproximação entre Montaigne e Descartes (que igualmente pretenderia vincular a efetiva compreensão dos conceitos mobilizados na discussão sobre nossas faculdades de conhecer à sua ação efetiva), mas os resultados extraídos dessas considerações são, de todo modo, bem diversos. Se Montaigne se refere, por exemplo, ao costume como uma espécie de faculdade (de se adaptar à repetição, com os efeitos negativos que isso pode gerar quanto ao conhecimento das coisas), distingui-lo da razão é algo que só parece ganhar sentido na medida em que o emprego dessa última ofereceria uma via para o conhecimento da verdade diversa daquela que, apenas por esse meio, poderá agora ser referida como decorrente da simples autoridade do costume. O costume se “oculta a si mesmo” ao aparecer como idêntico à razão, e nos oferece como uma imagem enganosa, tanto de como as coisas seriam, natural e verdadeiramente, quanto da própria racionalidade, que nos apareceria segundo a imagem relativa ao uso limitado de nossas faculdades cognitivas que não comporta essa distinção. Porém, se o uso da razão nos convida a tal distinção, nossas limitações naturais não nos permitem levá-la plenamente a cabo, mas isso não significa que ela seja desprovida de sentido. Somos forçados a concluir que, na prática, não podemos abandonar o substrato do costume, por mais que ele nos ofereça um material passível de ser observado diversamente, caso arranquemos a máscara que ele projeta, e assumir que tal ação — bem como a própria partilha entre razão e costume — é sempre o resultado de nossa capacidade relativa. 10. Sobre o uso cético da linguagem, ver itens 5.1 — “O ceticismo como gênero filosófico”, 7.3 — “Uma quimera que não cabe na imaginação”. 495

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Mas se compreendemos, além disso, que nossa imagem habitual da razão é dependente do costume — posto que, segundo seu pleno emprego natural, ela pode se revelar uma “xícara de duas asas”, capaz de oferecer subsídios potencialmente equivalentes a toda suposta verdade que se ofereça —, já nesse passo se oferece um grau diverso de aprofundamento no uso de nossas faculdades cognitivas. Não é nesse mesmo passo que a razão também se mostra insuspeitadamente próxima da fantasia? Desse novo ponto de vista, ganha sentido considerar o juízo uma faculdade diversa da razão, mas tampouco essa faculdade escapará da mesma naturalização cética. Por mais que se possa revelar idêntica ao “eu” que avalia e conhece, tal como ele se pode reconhecer no espaço onde recua diante da falibilidade de sua razão, um “eu” que pode se formar em sua singularidade por meio de sua atividade judicativa, o olho do juízo depende, para ver, do ponto cego situado em sua permanente impressão de certeza. E se isso permite a Montaigne traçar o projeto pelo qual se pode recuar dessas impressões de certeza e considerar-se projetado em seu livro, trata-se de reconhecer que o ensaio de seu juízo não deixa igualmente de ser obra da fantasia, sem que, com isso, seja anulado o ponto de vista pelo qual essas distinções permanecem fazendo sentido. A fantasia, por fim, agindo de modo semelhante ao costume, acaba por exibir seu poder de permanentemente imiscuir-se na ação de nossas demais faculdades cognitivas e revelar a dimensão fundamental que efetivamente possui em nossa experiência, num grau igualmente insuspeitado, e finalmente inerradicável, uma vez que a idéia de que poderíamos proceder a sua plena depuração seria, segundo Montaigne, apenas uma fantasia dentre outras. Cabe assim reconhecê-la como parte constitutiva de nossa condição, portadora de uma importância normalmente desconsiderada no que tange à nossa efetiva inserção no mundo. Em suma, diríamos que essa imagem naturalizada do homem, observada pelo eixo dessa dinâmica das faculdades em que se explicita, oferece uma ilustração privilegiada da metáfora dos cães de Esopo diante das miragens que os fazem avançar mar adentro. Como dizíamos, a subjetividade montaigniana não se arquiteta em conceitos claros e distintos, pela perspectiva da justificação dos conheci496

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mentos a que temos acesso, e tampouco segundo a exigência de justificação da Nova Ciência (cujo método experimental se oferece como promessa renovada para a produção de conhecimento, particularmente no que tange às ciências físicas). Mas desqualificá-la sob a alegação de um atraso histórico seria cegar-se para a importância que pode ter essa reflexão sobre a subjetividade no limiar da constituição dessa problemática moderna. Popkin parece ter sido o primeiro a reconhecer que já se encontravam formulados na “Apologia” aqueles que viriam a se tornar os problemas centrais do projeto da epistemologia moderna, tal como os encontramos formulados no Ensaio de Locke — a saber, determinar a origem, a extensão e o grau de certeza de nossos conhecimentos11. Mas o ceticismo antigo já possui, ao menos implicitamente, uma concepção de “sujeito” epistemológico: o “homem”, naturalizado pela crítica cética, não pode corresponder a um sujeito absoluto; ele é apenas, ao lado das demais criaturas, o animal humano, possuidor de recursos cognitivos particulares e limitados de conhecimento, que o impedem de conhecer plenamente essas limitações por meio desses próprios instrumentos12. Montaigne, de sua parte, não busca retratar o homem em vista de uma eventual facilidade metodológica de admitir o nosso acesso às nossas próprias representações como objeto de conhecimento; ao contrário, ele não cessa de sublinhar a dificuldade desse empreendimento investigativo, do qual se vê como um pioneiro (pondo à parte dois ou três antigos dos quais o nome seria hoje desconhecido)13. Podemos aqui reconhecer que seu pioneirismo reside, em parte, na maneira como a imagem mais verossímil do homem que pretendeu oferecer corresponde a uma explicitação dessa subjetividade cética; uma subjetividade cujas “profundezas e dobras opacas” que transparecem através de nossa inserção efetiva no mundo ofereceriam antes a pintura, por assim dizer, de um “sujeito do desconhecimento”, 11. POPKIN, 1988, p. 682. 12. Ver PORCHAT, 1992, p. 102-103. Tratamos desse tema no item 7.3 — “Uma quimera que não cabe na imaginação”. 13. Ver especialmente II, 6, 378A; II, 17, 634A. Cf. item 7.4 — “Uma imagem menos fantasiosa do homem”. 497

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incapaz de obter uma imagem plenamente clara das coisas e de si mesmo. Menos relevância teria ela se, considerada no detalhe e na riqueza argumentativa da sua explicitação, não nos oferecesse, por antecipação, boas razões de desconfiança crítica com relação aos diversos modelos epistemológicos que lhe sucederiam. Não percamos tampouco de vista a especificidade do projeto montaigniano e sua justificação intrínseca: como dissemos, ela não decorre da facilidade da empresa, mas da utilidade que a observação de nossa condição natural poderia propiciar — em vista da plena fruição daquilo que está a nosso alcance, por mais que a imagem resultante possa destoar daquela que desejaríamos que fosse. O modo como sintetizamos e organizamos a relação cambiante das faculdades (de um modo que o próprio Montaigne nunca explicitamente se ocupou) talvez o aproximasse daquilo que se convencionou chamar de “dialética pascaliana”. Todavia, por mais que Pascal tenha em vista a imagem montaigniana de homem como um componente fundamental de sua antropologia, Montaigne nos parece estar mais próximo das exigências próprias da valorização moderna da experiência. Pela sua radicalidade, com que pretende permanecer rente à experiência efetiva, a naturalização montaigniana passa inteiramente ao largo de qualquer dimensão teleológica ou apologética ou de qualquer pressuposto da teologia cristã (divergindo aqui da maneira como a subjetividade será focalizada mesmo pelas epistemologias que a admitirão como instância capaz de garantir conhecimento). Eis-nos diante de um ceticismo singular e mesmo desconcertante à luz da imagem corrente que, não vendo além da articulação cartesiana entre a tematização da subjetividade e a suspensão “cética” de nossa inserção no mundo da experiência vivida, não pode tampouco compreender como uma filosofia autenticamente cética, que assume plenamente a validade dos questionamentos epistemológicos antigos sobre nosso acesso a uma verdade objetiva e reconhece, nessa mesma atitude, um meio de nos expor aquilo que efetivamente somos, pode igualmente nos oferecer a condição da plena fruição da vida em uma dimensão propriamente humana. O cético, à falta de poder se referir a uma verdade objetivamente dada a todos os homens, nada ensina; apenas 498

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narra o seu páthos subjetivo; oferece-se como exemplo, a ser colhido ou recusado no âmbito de outra experiência igualmente pessoal. Se Descartes pretende extrair da exemplaridade da experiência humana uma verdade que subverta o ceticismo, Montaigne se vale da diversidade da experiência humana para examinar mais profundamente a si mesmo, em face da impossibilidade de obter uma imagem definitiva daquilo que pretende retratar. A utilidade da reflexão situa-se não na busca de uma verdade capaz de estancar a investigação, mas numa valorização da própria investigação em seu caráter simultaneamente singular e provisório, capaz de nos oferecer indefinidamente, no que possui de casual e imprevisto, uma transformação do próprio objeto examinado. Se dela emergem, para aquele que investiga, tanto figuras relativamente estáveis daquele que se investiga para si mesmo (formas mestras implantadas pelo costume e pela natureza) como figuras que se possam oferecer aos leitores como imagens da própria experiência humana, ela nos mostra, ao mesmo tempo, que a pretensão de estabelecer uma clara partilha entre o que há de universal e de singular na experiência subjetiva tende a ser apenas uma ilusão a mais, gerada pela incapacidade de irmos além na mesma investigação. Eis-nos afinal diante de um filósofo de nova figura que permanece ainda, em boa medida, a descobrir.

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