A figura do oprimido no século XX e suas estruturas de resistência artística (TEXTO COMPLETO)

June 16, 2017 | Autor: Cauê Almeida Galvão | Categoria: Augusto Boal, Escrita da História, Teatro anarquista
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A figura do oprimido no Brasil do século XX e suas estruturas de resistência artística Cauê Almeida Galvão1 Este artigo busca abordar dois espaços-tempo na historiografia brasileira que se corroboram a partir de seus discursos em relação a condição humana binária no capitalismo do opressor/oprimido. Dessa forma, buscaremos mostrar a estrutura de resistência artística tomada pelo operários anarquistas no início do século com o teatro libertário bem como as ações estruturadas por Augusto Boal e sua teoria do teatro do oprimido, criada no período de exílio durante o período ditatorial na segunda metade do século XX. Com isso, tentaremos mostrar que a ligação entre essas teorias têm sido anuviadas pelas estruturas de poder, que exercem domínio sobre os discursos de massa para a manutenção do estado de torpor social coletivo, aniquilando a todo momento, os cidadãos oprimidos, ou como Bauman2 aponta, os jogadores aspirantes incapacitados para o jogo do capital.

Palavras-chave: Teatro anarquista; Teatro do oprimido; resistência artística.

1 Graduando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Bolsista da base de pesquisa ideia&mímesis do Departamento de Filosofia da UFRN. Bolsista Propesq/REUNI 2 BAUMAN, Zygmunt; Os estranhos da era do consumo: do estado de bem-estar à prisão. In:________ O mal-estar da pós-modernidade; Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.; 1998. p.56

De início, é de extrema importância que possamos perceber por meio de uma análise historiográfica, a relação entre essas duas vertentes da resistência artística no Brasil bem como suas respectivas relevâncias, tendo-se em vista o impacto social causado tanto pelos sindicalistas revolucionários ou anarquistas no interior dos sindicatos e na relação das lutas sociais como pela inserção da Teoria do Oprimido de Boal após sua volta ao Brasil nas comunidades periféricas na intenção de libertar os seres não só da opressão do humano para com o humano, mas também do capital para com o humano. O movimento operário anarquista no Brasil não tem uma data definida de início, entretanto, podemos perceber que os ideais anarquistas começam a surgir no Brasil em um período bastante conturbado da história nacional, quando estava sendo finda a escravidão (de júris falando, tendo em vista que de facto ainda há escravidão) e o Brasil fazia diversas campanhas para receber estrangeiros, não apenas para a utilização da mão de obra desses trabalhadores, mas também para o processo de embranquecimento da população nacional. Esta situação pode ser percebida quando observamos na historiografia, a força do movimento sanitarista-higienista do início do século, e que obteve êxito, pois, ao fim da década de 40 a região centro-sul, a qual recebeu mais estrangeiros, foi a única a inverter nos dados estatísticos a majoração da população branca em detrimento da negra ou “cabocla”. Porém, a estratégia de substituição da mão de obra pelos governantes nacionais não obteve tanto êxito, pois, alguns estrangeiros que para o Brasil rumaram vieram majoritariamente da Itália, Espanha e Portugal e chegaram ao país com o ideal de lutas sociais e benefícios trabalhistas que naquele momento haviam se tornado recentes conquistas na Europa. Dentre esses ideais, o anarquismo e sua vertente mais difundida no brasil, o anarco-sindicalismo, passa a ganhar importância após as forças de produção estrangeiras serem catapultadas para fora do trabalho rural com a decadência da produção cafeeira no centro-sul. Com isso, esses trabalhadores passam a compor as fileiras dos centros urbanos da região. Em especial Rio de Janeiro e São Paulo receberam grande parte destes militantes. Estes indivíduos, através de associações de imigrantes, auxiliavamse mutuamente para que assim pudessem avançar no desenvolvimento individual e coletivo, além de manter as raízes avivadas. Com a força ganha pelo movimento sindical libertário, é realizado o Primeiro Congresso Operário de 1906 onde as diretrizes tiradas desse encontro focam-se em diversas bandeiras defendidas pelo movimento anarco-sindicalista como a autonomia sindical, a liberdade de greve geral entre outras ações e direitos. Após a consolidação dessa força no meio operário, os militantes anarquistas - agora não somente estrangeiros – buscaram consolidar uma estrutura educacional e combatente em relação aos patrões e as imposições governamentais que iniciavam a ação de sufocamento do movimento e das liberdades. Os anarquistas imbuídos da teoria da Escola Racional pautada por Francisco Ferrer y Guardia (1859-1909), fundam escolas e universidades a partir de 1909 (Escola Nova, fundada em 1909 à Av. Celso Garcia, 262, São Paulo), pautadas na autonomia e debates acerca da relação opressores/oprimidos. "Geralmente de caráter experimental, vinculados a sindicatos e jornais libertários, e encontrando grande oposição por parte das autoridades, estes coletivos foram responsáveis pela formação de milhares de crianças em um ensino laico, pacífico, racional e libertário, se contrapondo a tendência dogmática e violenta do ensino tradicional geralmente vinculado a instituições religiosas." (Portal da Anarquia - Wikipedia.org)

Além disso, os sindicatos ganham intensa força com as reuniões que envolviam palestras, teatro operário e ao fim, o baile. Este, um grande gerador de discórdia entre os integrantes do movimento, que mesmo com o sentimento de libertário em relação às mulheres, ao divórcio e as relações sociais, mantinham um puritanismo quanto a diversão social, crendo que o sentido dos bailes poderia levar os militantes a alienação e o descompromisso com a luta de classes. Seguindo o raciocínio de (DE SOUZA, 2003)3, para conhecer melhor os anarquistas e os mitos que os influenciaram, pautamos o estudo no teatro social operário e suas representações libertárias feita por si, da sociedade de sua época, de suas reações frente a esta sociedade e de suas visões de futuro. Neste ponto percebemos a interação entre o pensamento operário e a teoria criada por Augusto Boal (1931-2009), tendo em vista que o mesmo aponta para a mesma relação das representações. “Eu, Augusto Boal, desejo que o Espectador se assuma como Ator e como Artista, que invada o Personagem e o palco, ocupe o seu espaço e proponha caminhos e alternativas.” 4 Como Boal, VARGAS5 aponta em seu estudo sobre o teatro operário em São Paulo a significação do teatro operário anarquista, “Os múltiplos significados coletivos que embasam esse teatro, que dispensa a renovação para completar-se, permitem supor uma comunicação peculiar entre o palco e a plateia sedimentada por anos de convívio. Um diálogo que transcende a comunicação explícita do texto encenado. Não se trata de repetir 'mais de uma vez estória conhecida', mas sim de um ato coletivo de reconhecimento de personagens e situações exemplares a fim de que atuem no comportamento de cada um” (VARGAS, 1977) Nesse apontamento podemos perceber a relação que o teatro operário anarquista tem da abordagem de temáticas relacionadas ao contexto vivido por aqueles operários, como A Greve dos Inquilinos6 de Neno Vasco (1907), onde alguns moradores convivem com o dilema de pagar o aluguel ou emprestar o recurso a um companheiro com a esposa que acabara de chegar de fora. Nessa peça, apresentada inúmeras vezes, sempre se apontava para as problemáticas da propriedade como roubo, do trabalho pouco valorizado entre outros aspectos que serviam para a ampliação da consciência dos trabalhadores frente aos patrões e governos. Também no teatro anarquista, como no teatro do oprimido, há a interação do ator com o espectador. Entretanto, não observamos nas referências pesquisadas a ação dos anarquistas em relação a construção de diálogos a partir do ideal de Teatro fórum, trabalhado por Boal, onde é colocada uma problemática inconclusa para que as pessoas possam pensar e agir em coletivos, fazendo com que as representações sociais sejam criadas pelos atores/espectadores aleatoriamente, e não fixados a temática da propaganda, como podemos perceber nas ações de resistência artística dos militantes operários. Quando observamos a ideia de (SANCTUM, 2011)7 em relação à estética de Boal em seu livro 3 DE SOUZA, Dimas Antônio. O mito político no teatro anarquista brasileiro. Achiamé. 2003. p.18 4 BOAL, Augusto. O teatro como arte marcial, Rio de Janeiro, Garamond, 2009. p.38 5 VARGAS, Maria Thereza et al. Teatro Operário na Cidade de São Paulo/1977. São Paulo. Laboratório Gráfico do IDART 1980. p.35 6 Link para a peça http://mosca-servidor.xdi.uevora.pt/projecto/components/com_library/texts/27_BNP_AHS525.pdf 7 SANCTUM, Flávio. Estética do Oprimido de Augusto Boal Uma Odisséia pelos Sentidos, Dissertação. Rio de Janeiro. 2011. p.12

Estética do Oprimido (2009), podemos perceber as relações com o sentido de um teatro propaganda, “Para Boal, há um grupo determinado de pessoas que se mantém no poder e que controla os meios de comunicação, como televisão, internet, rádios, indústria fonográfica, cinema, etc. Esse grupo, denominado de opressor, se utiliza desses meios estéticos para influenciar a população, chamada de oprimidos, para que se tornem incapazes de criar e produzir arte, repetindo alienadamente o que lhes é oferecido. No decorrer da dissertação, perceberemos que a teoria de Boal está diretamente ligada ao conceito de Indústria Cultural de Theodor Adorno, de Aura de Walter Benjamin e às ferramentas utilizadas pela propaganda.” (SANCTUM, 2011)

Este vislumbre contemporâneo de Boal, traz à tona o debate do teatro social anarquista utilizado como propaganda, demonstrando o contra-ponto importante ao espaço-tempo compreendido por esses anarquistas e anarco-sindicalistas que propunham a organização a partir da autogestão e com vetores sociais8 de impacto coletivo. Por isso, neste momento na historiografia nacional o jornal será o importante vetor de mídia de massa, dada a existência de diversos jornais anarquistas como A Plebe (1908), Novos Rumos (data), A Barricada (data), Ação Direta (data) entre outros. Mas encontramos na concepção anarquista da estética teatral um ponto em comum com Augusto Boal, no sentido que os dois buscam a sensibilidade de uma sociedade antiautoritária que atue e combata este autoritarismo. E a ideia de que o teatro é um ato político, tendo dele que utilizarmos as situações para que obtenhamos respostas e definições. Neste aspecto, o anarquismo clássico contribui a partir de Proudhon e sua teoria da Arte de Situação. Entendendo a arte como uma experiência, os anarquistas colocam em oposição a “arte que sofre” e a “arte que se cria”, tendem a ver em “cada indivíduo um artista criador” e concebem o ato criador como mais importante do que a própria obra. “Proclama [a estética anarquista] a morte da obra-prima, a abolição do museu e da sala de concertos”, bem como condena o “criador genial”. Os anarquistas criticam o profissional da arte, aqueles que fazem da arte o seu ganha-pão. Eles os consideram “o símbolo de uma época passada”. Convocam os artistas a engajarem-se e pretenderem “destruir tudo aquilo que separa a arte da vida”. Defendem uma “arte de situação” (Proudhon. Apud DE SOUZA, 2003) A intenção aqui apresentada por Proudhon pode representar a sensação dos sindicatos revolucionários que apostaram nas teorias filosóficas anarquistas ao apropriar-se das teorias românticas e lhes garantir não somente esses prazeres, anexando ao discurso teatral o contexto político e social. Como (RESZLER, 1977) define bem: A arte será não apenas a arte do povo e para o povo, mas também a arte pelo povo. No Manifesto do Teatro do Oprimido9, temos a sensação de que a mesma metodologia se coloca, como podemos perceber em seu terceiro e quarto ponto: 3. Todo ser humano é teatro! 4. O teatro se define pela existência simultânea — dentro do mesmo espaço e no mesmo contexto — de espectadores e atores. Todo ser humano é capaz de ver a situação e de verse, a si mesmo, em situação. (AITO) 8 Entenda-se como vetor social, uma base social constituída, como Sindicatos por exemplo. 9 http://www.opalco.com.br/foco.cfm?persona=materias&controle=112

Essa ligação entre Boal e o teatro social anarquista também pode ser percebida em sua obra de 198410 Para se determinar quais as possíveis categorias de um teatro popular, será necessário primeiro estabelecer a diferença entre os conceitos de “povo” e “população”. População é a totalidade de habitantes de um determinado país ou região: a todos inclui. Já o conceito de povo é mais restrito, incluindo apenas, aqueles que alugam sua força de trabalho. Povo é a designação genérica dos operários, camponeses e de todos aqueles que ainda temporária ou episodicamente a ele estejam associados – como pode ocorrer, por exemplo, com os estudantes em certos países. Os que fazem parte da população, mas não pertencem ao povo, são os proprietários, a burguesia, os latifundiários e todos aqueles que possam a eles estar associados, os gerentes, os mordomos. Os homens são o povo; população inclui também os senhores. Temos assim três categorias de teatro na qual o povo se envolve; nas duas primeiras, a perspectiva do espetáculo é a perspectiva do povo; na terceira é a dos senhores. Isto é, o mundo pode ser visto e apresentado de duas maneiras: uma procura consolidar as relações existentes, procura mostrar que após tantos séculos finalmente, os homens chegaram ao melhor sistema possível, isto é, o sistema atual, onde os senhores possuem as terras, os meios de produção e onde os homens trabalham, sob a aprovação de Deus. A outra maneira de ver a realidade é mostrá-la em permanente transformação, mostrar suas contradições e o movimento dessas contradições em direção à libertação dos homens. Mostrar que o homem está escravizado ao trabalho, aos hábitos, às tradições – e que tudo é modificável, que tudo é por nós transformável. E tudo está sendo transformado – muitas vezes, por baixo das aparências. (BOAL, 1984 – grifo do autor) Como é perceptível nas análises apresentadas neste artigo, essas duas escolas teatrais tem muito mais ligação e sentidos conexos do que a historiografia de fato apresenta. Em nossa pesquisa na base Ideia&Mímesis do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob a orientação da Professora Sandra Sasseti Fernandes Erickson, buscamos analisar e colaborar na inserção desta análise de extrema importância sobre o teatro anarquista - o resgatando de um enquadramento de memória - e relacionando as teorias criadas por Augusto Boal em uma outra temporalidade no Brasil, porém, com a mesma repressão e autoritarismo de outrora nos tempos anarco-sindicalistas. Nesta intenção, almejamos demonstrar que a arte como forma de resistência tem diversas perspectivas que podem ser apresentadas no Brasil de diferentes formas e fases no espaço-tempo. Entretanto, a manutenção de uma mídia de massa manipuladora, construtora de verdades absolutas e abraçada a uma democracia forjada por um Estado autoritário, silenciam essas vozes, não as deixando ecoar para a transformação social em busca da libertação da relação opressor/oprimido.

10 BOAL, Augusto. Técnicas Latino-Americanas de Teatro Popular, 2ed. São Paulo. HUCITEC. 1984. p.25

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