A Filosofia Africana e o Projeto Identitário: Perspectivas e Desafios da Educação no Contexto da Globalização. In: Trajeto das Africanidades em Educação. pp. 769-792

May 17, 2017 | Autor: Anselmo Chizenga | Categoria: Globalization, Filosofía africana, Identidades sociales
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TRAJETO DAS AFRICANIDADES EM EDUCAÇÃO

JULVAN MOREIRA DE OLIVEIRA Organizador

Educação em Foco

Juiz de Fora – MG – Brasil e-ISSN 2447-5246 ISSN 0104-3293

Ed. Foco

Juiz de Fora

V.21

n.3

p. 531-834

Setembro 2016/ Dezembro 2016

Reitor: Marcus Vinicius David Vice-reitora: Girlene Alves da Silva Diretor da Editora: Dmitri Cerboncini Fernandes Diretor da Faculdade de Educação: Prof. Dr. André Silva Martins Endereço para correspondência: Faculdade de Educação / Centro Pedagógico Campus Universitário da UFJF Juiz de Fora –MG – CEP 36036-330 Telefone/Fax: (32) 2102-3653 / 2102-3656 E-mail: [email protected] Home Page: https://educacaoemfoco.ufjf.emnuvens.com.br/edufoco/index Editora UFJF Rua Benjamin Constant, 790 Centro – Juiz de Fora – MG – CEP 36015-400 Telefone/Fax: (32) 3229-7646 / 3229-7645 MAMM (Museu de Arte Moderna Murilo Mendes) E-mails: [email protected] / [email protected] Home Page: www.editoraufjf.com.br Ficha Técnica Foto capa “Amarelinha” – Gervane de Paula Direito de reprodução gentilmente cedido pelo autor. Técnica: óleo sobre tela Dimensões: 160x100 cm Contatos: Magna Domingos – Comunicação e Gestão Cultural Dom Produções Ltda (65) 9235 4295 - 2127 0373 [email protected] Revisão Geral Paula Trivella

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Ficha Catalográfica Educação em Foco: revista de educação / Universidade Federal de Juiz de Fora, Faculdade de Educação / Centro Pedagógico – v. 21, n. 3, set./dez. 2016 – Juiz de Fora: UFJF, 2016, 304 p. Quadrimestral disponível em: e-ISSN 2447-5246 ISSN 0104-3293 1. Educação – Periódicos. I. Universidade Federal de Juiz de Fora. Faculdade de Educação. Centro Pedagógico. CDU 37 Ficha catalográfica elaborada por Adriana A. Oliveira – Bibliotecária – CRB6/1537

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SUMÁRIO Apresentação...................................................................539 Pedagogias Decoloniais e Interculturalidade: Desafios para uma Agenda Educacional Antirracista...................545 Claudia Miranda Fanny Milena Quiñones Riascos

A Implementação das Leis Nº 10.639/2003 e Nº 11.645/2008 e o Impacto na Formação de Professores.573 Wilma de Nazaré Baía Coelho Nicelma Josenila Brito Soares

Institutional Groundings for Transformative Work with Students and in Schools.........................................607 Kevin Michael Foster

Currículo na Educação Infantil e as Ciências da Natureza: (Re)Educando para a Diversidade Étnico‑Racial..................................................................627 Lucimar Rosa Dias Maria Clareth Gonçalves Reis

Práticas Pedagógicas para a Lei Nº 10.639/2003: A Criação de Nova Abordagem de Formação na Perspectiva das Africanidades.........................................657 Sandra Haydée Petit

À Sombra do Baobá: A Cultura Negra na Educação Etnomatemática..............................................................685 Wanderleya Nara Gonçalves Costa Vanísio Luiz da Silva

Causos do Imaginário e da Memória Negra: Contribuições para uma Antropologia Educacional.....709 Julvan Moreira de Oliveira

Ferro, Ferreiros e Forja: O Ensino de Química pela Lei Nº 10.639/03............................................................735 Anna M. Canavarro Benite Juvan Pereira da Silva Antônio César Alvino

A Filosofia Africana e o Projeto Identitário: Perspectivas e Desafios da Educação no Contexto da Globalização...................................................................769 Gregório Adélio Mangana Anselmo Panse Chizenga

A Experiência Escolar nas Narrativas de Identidade Étnico-Racial: Estudo Retrospectivo de uma Professora Negra do Município de Juiz de Fora, MG......................793 Andressa Lima Talma

Autoras e Autores............................................................817

SUMMARY Presentation....................................................................539 Pedagogies Decolonial and Interculturality: Challenges for Education Agenda Anti-Racist.................................545 Claudia Miranda Fanny Milena Quiñones Riascos

Implementation of Law No. 10,639/2003 and No. 11,645/2008 and its Impact on Teacher Education.......573 Wilma de Nazaré Baía Coelho Nicelma Josenila Brito Soares

Institutional Groundings for Transformative Work with Students and in Schools.........................................607 Kevin Michael Foster

Curriculum in Early Childhood Education and Nature Sciences: (Re)Educating for Ethnic-Racial Diversity.....627 Lucimar Rosa Dias Maria Clareth Gonçalves Reis

Educational Practices for Law 10,639/2003: The Creation of a New Qualification Approach on the Perspective of the Africanities........................................657 Sandra Haydée Petit

The Shadow of the Baobab: Black Culture In Ethnomathematics Education........................................685 Wanderleya Nara Gonçalves Costa Vanísio Luiz da Silva

Stories the Imaginary and Black Memory: Contributions for Educational Anthropology...............709 Julvan Moreira de Oliveira

Iron, Blacksmiths and Forge: Chemistry Teaching Through Law 10.639/03.................................................735 Anna M. Canavarro Benite Juvan Pereira da Silva Antônio César Alvino

African Philosophy and Identity Project: Perspectives and Challenges of Education in the Globalization Context...........................................................................769 Gregório Adélio Mangana Anselmo Panse Chizenga

Experience School in Narrative of Ethnic-Racial Identity: A Retrospective Study of a Black Professor at the Juiz de Fora City, MG...............................................793 Andressa Lima Talma

PRESENTATION APRESENTAÇÃO Uma visão genérica das africanidades pode oferecer aos neófitos no tema que o estudo desse assunto não é uma tarefa simples. Ela abrange campos tão diversos, mas que na Educação se tocam e se complementam. Nessa perspectiva, torna-se importante rever, mesmo que brevemente, trabalhos das africanidades desenvolvidos por diversos pesquisadores e pesquisadoras em áreas tão distintas, porém que nos auxiliam a defrontar-se com tais estudos, procurando consonância entre eles e, nesse sentido, contribuindo para uma reflexão sobre nossa prática educacional, especialmente na área da Educação das relações étnico-raciais. As primeiras autoras desta edição, Claudia Miranda e Fanny Milena Quiñones Riascos, no artigo “Pedagogias decoloniais e interculturalidade: desafios para uma agenda educacional antirracista”, nos apresentam um trabalho que está baseado em uma construção na qual “decolonialidade” é a chave para a consolidação de outros pontos de vista sobre a nossa autoformação e possíveis aprendizados a partir das proposições que saem das configurações de resistência antirracistas. As pedagogias decoloniais obtêm centralidade porque pertencem a uma visão educacional emergente, que será melhor compreendida quando alinhada com estudos desenvolvidos em diálogo com os movimentos sociais. As autoras discutem sobre os aprendizados possíveis que vêm do que é da nossa cultura. Sugerem que enfrentemos os problemas relacionados com as várias operações que facilitaram a criação de um novo universo de relações intersubjetivas de dominação entre a Europa e outras regiões do mundo. Elas compreendem que o pensamento decolonial assume o desafio de atalhos de construção que inspiram rebelião e desobediência. Wilma de Nazaré Baía Coelho e Nicelma Josenila Brito Soares, em “A implementação das Leis nº 10.639/2003

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e nº 11.645/2008 e o impacto na formação de professores”, apresentam um estudo sobre os processos de formação de professores por meio de uma análise de marcos legislativos que regulam os processos educativos em nível nacional. Suas análises se preocupam em apontar em que medida a formação de professores, estabelecida na legislação que rege a educação no Brasil, abordou as formulações elaboradas para a produção acadêmica sobre este campo. Este investimento, inicialmente, vai exigir que raciocinar sobre os marcos regulatórios que moldam o campo educacional, por intermédio da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira [LDB] (Lei nº 9.394/1996) em vigor hoje em dia, concentrando-se as modificações definidas como resultado da promulgação das Leis nº 10.639/2003 e nº 11645/2008. Neste esforço, apontam aspectos que formam a LDB, para depois situarem as produções acadêmicas que deram origem à filiação desta política e, posteriormente, analisam o impacto da formação de professores nas ações de implementação das outras leis mencionadas. Kevin Michael Foster nos aponta, em “Fundamentos institucionais para um trabalho transformador com alunos e em escolas”, que as oportunidades educacionais nos EUA não estão distribuídas uniformemente. Há diversos desafios enfrentados desproporcionalmente por estudantes negros e pobres, o que acaba os levando a resultados irregulares no rendimento escolar. Este ensaio usa o exemplo de um instituto específico de base universitária para mostrar como as parcerias entre faculdades, escolas e comunidades podem melhorar a probabilidade de sucesso escolar entre as populações minoritárias e empobrecidas. Ele também argumenta que o trabalho envolvido na comunidade, com populações de estudantes e famílias carentes, por meio de uma atenção cuidadosa, pode ser necessário para alcançar transformações estruturais que asseguram que todos os estudantes tenham um bom rendimento nas escolas.

Lucimar Rosa Dias e Maria Clareth Gonçalves Reis, no artigo “Currículo na Educação Infantil e as Ciências da Natureza: (re)educando para a diversidade étnico-racial”, analisam as proposições curriculares da Educação Infantil nas cidades do Rio de Janeiro – RJ e de Curitiba – PR, e as habilidades relacionadas às Ciências da Natureza que foram estipuladas nelas. As autoras chamam a atenção para a necessidade urgente de atualização dos documentos da LDB e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil [DCNEI], ao mesmo tempo em que indicam práticas pedagógicas a serem realizadas imediatamente. Essas práticas são necessárias para garantir às crianças da Educação Infantil o direito de aprender conteúdos que pertencem a esta área, tendo uma plural perspectiva, de forma que contemplem a história e a cultura afro-brasileira, cumprindo assim os requisitos legais. Em “Práticas pedagógicas para a Lei nº 10.639/2003: a criação de nova abordagem de formação na perspectiva das africanidades”, Sandra Haydée Petit apresenta algumas experiências de formação de professores, uma nova abordagem para o ensino e a pesquisa-intervenção a partir da perspectiva das africanidades, algo que ela denomina como “pretagogia”. Inicialmente apresenta uma breve discussão baseando a necessidade de uma abordagem de ensino e pesquisa compatível com os efeitos da Lei nº 10.639/2003 e prossegue a sua base teórica e metodológica nas africanidades recriadas no Brasil e no continente americano em geral. Posteriormente, se concentra nos resultados de algumas estratégias de ensino e procedimentos de pesquisa de intervenção, os quais estão contribuindo para a formação de professores. Wanderleya Nara Gonçalves Costa e Vanísio Luiz da Silva, em “À sombra do baobá: a cultura negra na educação etnomatemática”, propõem uma reflexão para os educadores envolvidos com os elementos da africanidade brasileira na educação escolar, relacionando-os com a produção de conhecimento e a adoção de atitudes e práticas de ensino. Com o objetivo maior de contribuir para a realização das resoluções

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das Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008 pelos professores na área de Ciências Exatas, somos guiados por pesquisas e experiências pessoais ligadas ao programa de etnomatemática para enfatizar que o uso da dialética entre a matemática da modernidade com a da africanidade torna possível a criação de narrativa brasileira hegemonicamente diversificada. Assim, os envolvimentos entre etnomatemática e outros campos do conhecimento que apontam aprender os fatores culturais e os direitos fundamentais da pessoa humana nos permite adotar uma perspectiva socioconstrutivista da psicologia da educação matemática – o que nos leva a sugerir que a afeição deve ser tomada como fator relevante para a aprendizagem escolar. Por fim, argumentam que a recepção desta norma, em conjunto com a abordagem pedagógica que considera os elementos estruturais da africanidade, pode contribuir para o surgimento de conceitos e valores relevantes para o estabelecimento de métodos educacionais mais adequados à população brasileira. Julvan Moreira de Oliveira, em “Causos do imaginário e da memória negra: contribuições para uma antropologia educacional”, apresenta um conjunto de conhecimentos presentes na população negra da cidade de Além Paraíba, na Zona da Mata de Minas Gerais. O autor levanta uma série de causos, histórias produzidas por uma memória negra, cujas riquezas de detalhes nos convidam a desconstruir as visões reducionistas, revelando uma realidade permeada por sutilezas conceituais até então negligenciadas pelo pensamento hegemônico. Em “Ferro, ferreiros e forja: o ensino de Química pela Lei nº 10.639/03”, Anna M. Canavarro Benite, Juvan Pereira da Silva e Antônio César Alvino admitem a negação e a invisibilidade de um passado em ciência e tecnologia dos povos africanos e da diáspora. Os autores apresentam uma proposta de um ensino de Química descolonizado, a partir do reconhecimento do hibridismo da sociedade brasileira multirracial. Eles apontam para a rigidez do currículo (muito focada em conteúdos formais), o empobrecimento dos seus recursos e a necessidade

de diálogo com a cultura e história africana e afro-brasileira como um instrumento de articulação desse currículo. Usam o contexto da transformação da matéria (o ferro), a força motriz (os ferreiros), por meio do trabalho (a forja), para romper com a epistemologia curricular e apresentar a Ciência / Química na perspectiva africana. “A filosofia africana e o projeto identitário: perspectivas e desafios da educação no contexto da globalização” é o tema desenvolvido por Gregório Mangana e Anselmo Chizenga. Eles analisam o contexto e as metamorfoses da produção, a (re) significação objetiva e subjetiva da África na filosofia e o seu impacto sobre a afirmação das identidades africanas, com foco na esfera educacional, no que se referem a grandes questões sobre as perspectivas endógenas do contexto da globalização. A metodologia empregada foi a revisão da literatura de autores africanos e não africanos que discutem o tema da filosofia africana, identidade e educação. É possível perceber, a partir deste artigo, que o processo de afirmação da identidade reflete na esfera educacional, que está cheia de desafios e perspectivas. “A experiência escolar nas narrativas de identidade étnicoracial: estudo retrospectivo de uma professora negra do município de Juiz de Fora, MG”, de Andressa Lima Talma, tem o objetivo de compreender a história de vida pessoal e escolar de uma professora negra. O estudo aponta que, mesmo com a ausência da temática africana e afro-brasileira na formação inicial e continuada da professora, seu engajamento em trabalhar com a educação das relações étnico-raciais se deu pelas histórias contadas pela sua mãe, sobre seus antepassados e a aproximação dela com o movimento negro. Esperamos que esse dossiê possa representar uma indicação para aqueles que realizam estudos e desenvolvem pesquisas no campo da Educação.

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PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E INTERCULTURALIDADE: DESAFIOS PARA UMA AGENDA EDUCACIONAL ANTIRRACISTA

Pedagogias Decoloniais e Interculturalidade: Desafios para uma Agenda Educacional Antirracista

Claudia Miranda1 Fanny Milena Quiñones Riascos2 Resumo Esse trabalho se baseia em um constructo no qual a “decolonialidade” é a chave para a consolidação de outras visões sobre nossa autoformação e aprendizagens possíveis a partir das proposições que saem das configurações de resistência antirracista. Ganha centralidade as pedagogias decoloniais por fazerem parte de uma visão educacional emergente e que será mais bem compreendida quando alinhada aos estudos desenvolvidos no diálogo com os movimentos sociais na região conhecida como América latina. O intuito é discutirmos sobre as aprendizagens possíveis a partir do que nos é próprio. Apoiamo-nos em um amplo espectro de aportes que favoreceram o desentranhamento de um conjunto de saberes legitimados socialmente e que têm sustentado a crítica decolonial para propor outros modos de pertencimento. Sugerimos o enfrentamento de problemas relacionados com as diversas operações que facilitaram a configuração de um novo universo de relações intersubjetivas de dominação entre Europa e as demais regiões do mundo. Entendemos, com Catherine Walsh e Aníbal Quijano, que o pensamento 1 Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEdu/UNIRIO).

Trabalha a partir da crítica pós-colonial investigando as agendas dos movimentos sociais e suas propostas no Brasil e na Colômbia. O foco está no cruzamento de temas relacionados ao currículo e à diversidade cultural no âmbito da América Latina. 2 Mestra pela Universidade Pedagógica Nacional/Colômbia, assessora de projetos, professora expedicionária e coordenadora da Rede de Professores dos Direitos Humanos Étnicos da Universidade Pedagógica Nacional.

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decolonial assume o desafio de construir atalhos que inspiram a rebeldia e a desobediência por sugerir opções fronteiriças quando se trata de garantir a pluralidade, bem como outros lugares de conversa.

Claudia Miranda Fanny Milena Quiñones Riascos

Palavras-chave: Pedagogias decolonias. Interculturalidade. Currículo.

PEDAGOGIES DECOLONIAL AND INTERCULTURALITY: CHALLENGES FOR EDUCATION AGENDA ANTI-RACIST

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Abstract This work is based on a theoretical basic where the “Decoloniality” is the key to the consolidation of other views on our self-formation, and possible learning from the proposals coming out of the anti-racist resistance settings. The decolonial pedagogies are at center of the discussion enter for being part of an emerging educational vision and that will be better understood when aligned to the studies developed in dialogue with the social movements. The aim is start the discussion about the possible learning ways from ourselves. We rely on a wide range of contributions that favored the withdrawal of a set of socially legitimated knowledge and that has supported the colonialist criticism to propose other ways of belonging. We suggest dealing with problems related to the various operations that facilitated setting up a new universe of interpersonal relations of domination between Europe and other regions of the world. We understand, with Catherine Walsh and Aníbal Quijano, that the colonialist thought takes on the challenge of building shortcuts that inspire rebellion and disobedience for suggesting border options when it comes to ensuring the plurality as well as ensuring other discussion spaces. 546

Keywords: Decolonial pedagogies. Interculturality. Resume.

PEDAGOGIAS DECOLONIAIS E INTERCULTURALIDADE: DESAFIOS PARA UMA AGENDA EDUCACIONAL ANTIRRACISTA

Pedagogias Decoloniais e Interculturalidade: Desafios para uma Agenda Educacional Antirracista

INTRODUÇÃO

Ao examinarmos o texto da Escola Sarã3 (OLIVEIRA; MIRANDA, 2004), destacamos algumas insuficiências quanto ao modo de representar, em uma proposta curricular, diferentes grupos sociais de Cuiabá (capital do Mato Grosso) – mesmo em um período sócio-histórico marcado pelos debates sobre diversidade e pluralidade cultural, na Educação. Na proposta elaborada como pontapé inicial para a implementação de uma política pública, vimos como seus idealizadores perdem a oportunidade de se apropriar de resultados da produção diretamente relacionada aos componentes étnico-raciais do Centro-Oeste do Brasil. As conclusões do trabalho nos levaram a reconhecer a importância de novas pesquisas sobre a seleção realizada, a partir da(s) cultura(s) para compor diretrizes curriculares. Desde então, outros atravessamentos foram se constituindo e a perspectiva da decolonialidade4 direcionou o interesse para examinar tais processos, dessa vez, pensando com estudiosos (as) de países vizinhos e que têm apresentado conclusões relevantes sobre outras pedagogias e outros currículos. 3 A Escola Sarã é a política educacional/curricular implementada pela Secretaria

Municipal de Educação do Município de Cuiabá (Mato Grosso), no início da década de 2000. 4 Em nossos estudos, optamos pela adoção do quadro teórico desenvolvido no âmbito dos estudos pós-coloniais. Nessa etapa, trabalhamos a partir da perspectiva latino-americana, sobretudo com as teses de Aníbal Quijano (2003) sobre decolonialidade, no sentido de contestar as vias da dominação europeia.

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Ao mesmo tempo, podemos localizar um amplo espectro de aportes para a análise de propostas com ênfase na manutenção de um conjunto de saberes socialmente transformado em referência e que tem suscitado críticas ao instituído. No Brasil, trabalhos desenvolvidos por autores que investem em estudos sobre fontes das pedagogias latinoamericanas (STRECK, 2010), que enfatizam interseções possíveis via a educação popular (ESTEBAN & STRECK, 2013; CARRILLO, 2010; 2007) se constituem como achados para apreendermos traços sobre “outras educações”. Para essa empreitada, realizamos algumas releituras sobre as identidades construídas no projeto europeu de dominação, na América Latina. Salta aos olhos o volume de proposições nascido em processos alternativos e comunitários e que deslocam a fixação colonial dos “Outros” da aventura de dominação europeia que, por sua vez, interferiu na história dos povos originários e deslocou povos africanos via a sua escravização. Uma das pistas que seguimos visando acompanhar processo de autoformação e de colaboração mútua, entre investigadoras (es) do currículo e das pedagogias que chamamos “emergentes”, é de que “raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da população” (QUIJANO, 2003, p. 202). A pergunta que orienta, inicialmente, tais percepções é sobre as consequências desse fenômeno para a transmissão/ transposição cultural realizadas nas escolas, onde, grande parte das populações negras está institucionalizada. Quais currículos movimentamos e quais significados emergem como fundamentais nesse modo de incluir esses estratos, se consideramos as experiências e iniciativas alimentadas para além das instituições do Estado? Quais interseções podem ser concebidas? Nesse sentido, ganhou força a defesa de Aníbal Quijano na qual

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a ideia de raça, em seu sentido moderno, não tem história conhecida antes da América. Talvez se tenha originado como referência às

diferenças fenotípicas entre conquistadores e conquistados, mas o que importa é que desde muito cedo foi construída como referência a supostas estruturas biológicas diferenciais entre esses grupos (QUIJANO, 2003, p. 202).

O autor sugere que problematizemos a formação de relações sociais marcantes, já que essas refletem as inspirações coloniais acima citadas e por garantir consequências que atravessam os séculos com suas marcas devastadoras. Justamente aqui em nossa região, se produziu identidades sociais historicamente novas tais como “índios”, “negros” e “mestiços”, e ao mesmo tempo, outras foram redefinidas. Como destaque nas proposições do autor, esse argumento nos faz rever as escolhas teóricas feitas até aqui objetivando entender América Latina, em termos das especificidades das relações raciais e em termos da divisão que essas provocam. Revela, também, um quadro alarmante se imaginamos que são essas as bases indispensáveis para examinarmos fatores que alavancaram a condenação dos (as) explorados (as) nos seus próprios territórios, conforme a tese de Frantz Fanon em “Os Condenados da Terra” (2001). De certo, Quijano (2003) está em diálogo com a visão fanoniana sobre as doenças coloniais e sobre a multidimensionalidade do racismo. Isso pode indicar brechas para outras análises sobre a invenção da Europa, sobre a invenção da América Latina como “uma região”, e sobre a ideia de raça como um dispositivo para se legitimar as relações de dominação em um desenho imposto pelos países envolvidos nos processos coloniais. Como expõe o autor, foram garantidos: 1) o crescimento do seu modelo de colonialismo para o resto do mundo; 2) a elaboração da perspectiva eurocêntrica de conhecimento; 3) a elaboração teórica da ideia de raça (pensada como naturalização dessas relações coloniais de dominação entre europeus e não europeus). E sob essa orientação, foi importante considerarmos alguns fenômenos como sendo parte da invenção da diferença (colonial). De um lado, o que se vê são grupos estabelecidos

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e que herdaram os lugares de prestígio social e as vantagens desses processos – os chamados euro descendentes –, mas também, aqueles que se forjaram como tal. Do outro lado, os fixados socialmente como outsiders e, consequentemente, impedidos de participar em iguais condições dessas esferas dominadas pelo primeiro grupo. Tal desdobramento serve para entendermos os efeitos das invenções macros (Europa como centro, América Latina como periferia) e micros (euro descendentes como estabelecidos e os racializados como desautorizados). Para entendermos a “colonialidade do poder” como um constructo teórico, é estratégico que consideremos o delineamento causado por esses inúmeros recursos adotados no emprego de ações violentas de ingleses, franceses, espanhóis, portugueses, entre outros. A “colonialidade do controle do trabalho”, por exemplo, determinou a distribuição geográfica social do capitalismo mundial e reposicionou a chamada “Europa” como centro do mundo capitalista. Quijano (Ibidem) considera esse capitalismo como sendo colonial/moderno e eurocentrado, ratificando a necessidade de apoiarmos essas reflexões no conceito de “moderno sistema-mundo”. Localiza um novo padrão de poder mundial, o qual inclui o controle de todas as formas de controle. Da subjetividade, da cultura e da produção do conhecimento. Os aspectos que ressaltamos, anteriormente, nos levam diretamente ao centro do dilema, definido como sendo a falta de “justiça epistêmica”, afetando sobremaneira, a transposição cultural. No contra fluxo dessas tradições e, para forjar outras ambiências de aprendizagens, fazse necessário enfrentar os problemas relacionados às diversas operações que garantiram a configuração de um novo universo de relações intersubjetivas de dominação entre “Europa” e as “demais regiões do mundo” (QUIJANO, 2003, p. 209). Observamos, nos últimos dez anos, as urgências que nos colocam lado a lado das experiências educacionais da Colômbia, Equador, Uruguai, Argentina e Venezuela quando nossas inclinações estão para o entendimento de perspectivas

interculturais que apoiem a transposição do conhecimento escolarizado. O ideal reducionista de escolarização é traço indispensável para quem deseja entender a história da organização dos respectivos órgãos que administram a educação formal. Como consequência, esses refletem um modelo de institucionalização, estando aí, em grande medida, nossos piores desafios. Com isso, a força seletiva, a ideia de transmissão de conteúdos e a manutenção da cultura escolar são alguns exemplos de obstáculos reais para uma experiência de ampliação de paradigmas. Em países como Equador e Colômbia vimos que os avanços alcançados são de responsabilidade de coletivos transgressores e desobedientes que desafiam os limites de instâncias reguladoras.

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Sob essa orientação, entendemos, com Catherine Walsh (2013; 2014), que o pensamento decolonial assume o desafio de construir atalhos que inspiram a rebeldia e a desobediência por sugerir opções fronteiriças quando se trata de garantir a pluralidade, bem como outros lugares de conversa. Isso ameaça as supremacias ideológicas e desestabiliza as tradições, principalmente quando se persegue sentidos mais elásticos para o “pedagógico”. Conforme Miranda (2014, p. 1072), “processos decoloniais podem ser oportunidades de estabelecermos diálogos mais inter, menos hierárquicos nos projetos educativos, nas formas de pensarmos as políticas públicas e no modo de representarmos os outsiders negros”. As desvantagens socioeducativas afetam sobremaneira os afrodescendentes5 da Diáspora Africana e, propor uma aposta intercultural, com foco nessa realidade, demandará um esforço de questionamento da gênesis da diferença colonial. 5 Apesar de adotarmos o termo “afrodescendentes”, pesquisas sobre desigualdades

raciais têm ensinado que, dentre esses, os pretos e pardos (negros) são severamente os mais afetados pelo racismo. Para mais compreensão acerca deste tema, recomendamos a leitura da obra de Oracy Nogueira (1998) sobre preconceito de marca.

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Ao pensarmos com autoras (es) latino-americanos, com coletivos organizados oriundos dos Quilombos e Palenques6, e participarmos de trabalhos em parceira com movimentos antirracistas, podemos provocar interseções para sugerir ambiências de aprendizagens outras para as populações racializadas. Essa visão relaciona-se com a ideia de que “estamos envolvidos com processos que derivam da particularidade da dimensão do ser que é acional, subjetiva e situada [...] e que encontra sua base nas experiências entrelaçadas e vividas da escravidão e do colonialismo” (WALSH, 2014, p. 36). Defendemos, assim, processos de construção e desconstrução de saberes e conhecimentos como fluxo contínuo, sendo apostas que fazem parte de um constructo no qual a “decolonialidade” é a chave para a consolidação de outras visões sobre nossa autoformação e sobre propostas de experiências fluidas, cheias de significado. Optamos por uma definição de interculturalidade na interseção com os saberes múltiplos do legado afrodescendente nos territórios ancestrais que nos unem como herdeiros e consequentemente, como Diáspora Africana. Assim, pensar interculturalmente, significará incluir nas arenas de proposição e de execução dos currículos, aquilo que é próprio das vivências dos(as) negros(as), a começar pela ideia do que é, efetivamente, aprender em seu próprio território e não apenas nas instituições escolares. Em outros termos, provocar a mudança de status dos saberes do cotidiano, dos saberes que carregamos das nossas ancestralidades. Nesse sentido, estamos lado a lado com as abordagens sugeridas por Walsh (2013; 2014) sobre pedagogias decoloniais. Como vítimas da racialização, todos os segmentos “não europeus” são também “não humanos” e facilmente posicionados como grupos de segunda classe, inferiorizados.

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6 Os Palenques são comunidades organizadas na Colômbia desde o século XVII, Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-572, set. / dez. 2016

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que resistiram lutando pela libertação dos africanos e de seus descendentes escravizados. Sua forma de sobreviver incluiu a solidariedade e a dinâmica organizacional que adotaram priorizou a preservação das ancestralidades com a performance de líderes religiosos e políticos orientados a defender os afrodescendentes contrários à sua condição de escravos.

Discutir sobre esse fenômeno demandará a ampliação do quadro interpretativo sobre as relações de inspiração colonial7, com o foco nos projetos e na dinâmica levados a cabo pelos movimentos antirracistas com vistas a tornar mais audíveis as vozes de grupos e de sujeitos fixados à margem das estruturas que forjam os sujeitos da Educação. Em uma espécie de tear africano, reconduzimo-nos pela identidade coletiva e por vias inóspitas, mas objetivando apoiar processos de desmantelamento do ideário da mestiçagem e do discurso de democracia racial, conforme ocorre no Brasil, na Colômbia, Equador, Argentina, México, Venezuela, entre outros. Nossa interlocução aqui privilegia um repertório definido por autores(as) engajados(as) na luta por justiça e pelos direitos das populações fixadas nos processos coloniais. Vimos que assumir uma dinâmica que se volta para esses significados, pode cooperar com projetos de autoformação como vem ocorrendo com a Red Ananse8 (Bogotá)e, com a Rede Carioca de Etnoeducadoras Negras9 (Rio de Janeiro). A parceria estabelecida entre os dois coletivos acima, nos leva a indagar as nossas próprias práticas e tem, no centro de nossas preocupações, as aprendizagens comunitárias e palenqueras. Essa adesão incluiu viagens físicas e mentais nas quais a experiência afro-brasileira é problematizada,

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7 Para Miranda (2006), podemos identificar sujeitos coloniais no mundo

contemporâneo a partir das condições de sua inserção. Como exemplo, destaca a situação de homens e mulheres negros(as) e suas experiências cotidianas. Antes de tudo, essas mulheres são fixadas socialmente como serviçais, prostitutas ou mulatas do Carnaval. Os homens, fixados como alvo, fora da lei, primeiros suspeitos e violentos. Nesse argumento, as microrrealidades estão em uma dinâmica constante. A diferença é construída para manter um ordenamento de inspiração colonial. 8 O artigo de Miranda (2014), “Afro-colombianidade e outras narrativas: a educação própria como agenda emergente”, apresenta resultados da pesquisa da autora sobre o movimento social afro-colombiano, sua agenda política e as interfaces com a luta antirracista no Brasil e a conformação de redes de etnoeducadores/as. 9 A Rede carioca (formada em 2015) é um projeto de extensão (UNIRIO) e agrega um número importante de educadoras negras que atuam na educação básica, a partir de uma agenda antirracista.

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tendo como base a perspectiva de análise comparada. Nesses interstícios, encontram-se argumentos que enfatizam os direitos territoriais, o ementário de uma educação própria, os processos que visam uma contranarrativa e ainda a insurgência de provocações que reivindicam outras rotas. Assim como o Brasil, a Colômbia apresenta uma legislação específica10 para as comunidades negras como se vê no “Artículo Transitório 55” e na “Lei 70” (1993). Com essa dinâmica em ambos os contextos, pensar interculturalmente sugere releituras sobre as desvantagens como, por exemplo, as formas de aprisionamento cultural dos povos inferiorizados pela diferença colonial. Ainda sobre ambos os países, e em termos das políticas educacionais, foi possível entender que o racismo e o etnocentrismo permaneceram afetando, negativamente, os órgãos que administram os respectivos sistemas educacionais. Os levantamentos feitos nesse percurso permitiram que traduzíssemos o que pode ser “existir e re-existir”, frente aos efeitos violentos do colonialismo e, consequentemente, do racismo. A envergadura política e a perspectiva dialógica experimentadas na colaboração entre pesquisadoras(es) e entre coletivos organizados, são condições indispensáveis para a garantia de outros lugares de aprendizagem sobre a luta antirracista. Quando discutimos as vias da interculturalidade a partir da conformação de redes de trabalho – nesse caso, pensando o exemplo da Colômbia e do Brasil –, é indispensável que mudemos o status da vida cotidiana das comunidades negras e de suas visões sobre o que lhe é próprio. Inegavelmente, foi pela força das reivindicações dos(as) insurgentes, aqueles(as) mais prejudicados(as) na colonização

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10 O movimento afro-colombiano foi responsável por uma mobilização nacional

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em torno dos seus direitos. Alcançou as primeiras fundamentações legais e institucionais ao participar efetivamente – com os seus representantes – das diferentes etapas de formulação e elaboração de documentos legais. Destacase a “Lei 70” no ano de 1993, que regulamentou o Decreto nº 1.122, de 1998, que estabeleceu elementos legais os quais reivindicavam direitos étnicoterritoriais, dentre outras demandas.

europeia, que formulamos um conjunto de leis, sobretudo nos dois países, com vistas a diminuir os prejuízos herdados. Ao considerarmos esse problema, da necessidade de justiça na formulação de políticas curriculares, concordamos com o argumento sobre o lugar de importância das estruturas do racismo à brasileira, tendo como suporte as pesquisas sobre as especificidades de suas diferentes faces:

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Suspeitamos que elas possam estar ligadas à história de colonização que caracteriza a própria história do lugar [...]. Isso nos faz indicar a necessidade de se desenvolverem estudos que extrapolem a identificação da existência de etnocentrismos, racismos e regularizações (OLIVEIRA; MIRANDA, 2004, p. 80).

É imperativo retomarmos à trajetória política dos movimentos negros, indo além do Brasil, para localizarmos a crítica aos efeitos da diferença colonial. No argumento de Antônio Sergio Alfredo Guimarães (2003), as identidades negras, nas Américas, especificamente nas ex-colônias espanholas (e portuguesa), cresceram entrelaçadas às ideias de “mestiçagem”: Na América Latina, tinha-se uma sociedade pós-colonial, dominada por uma minoria branca, bastante referida à Europa, e uma vasta população de mestiços, negros e indígenas, vivendo às margens dessa modernidade. [...] tais nações viviam em permanente crise de autoestima. De um modo geral, o projeto que vingou nesses países [...] foi de recriação da nação incorporando como populares, as subculturas étnicas e raciais (GUIMARÃES, 2003, p. 51).

Com isso, um conjunto de expressões próprias daquelas sociedades locais passou a ser rebaixado e incluído como “popular”, desautorizado como cultura. O domínio político e a exploração econômica mantiveram, oficialmente, uma

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doutrina assimilacionista (GUIMARÃES, 2003). Nessas circunstâncias, não apenas o território foi perdido, mas acima de tudo, as referências de humanidade. O fenômeno produziu uma extensa gama de possibilidades de manutenção do princípio da servidão com base na diferença colonial que inferioriza e rearranja os grupos hierarquicamente como se fossem castas. Nas representações construídas ao longo de séculos de dominação europeia, a brancura da pele tornouse uma vantagem e, em termos de acúmulo material, tem garantido vantagens quase absolutas para os representados como euro descendentes. Essas heranças são aqui mencionadas como exemplo de normalidade, ao mesmo tempo em que preserva comportamentos que bestializam os segmentos ditos “estabelecidos”, por acreditarem na sua superioridade.

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Ao considerarmos a questão educacional com o foco tanto no currículo quanto nas práticas discursivas adotadas no exercício da profissão docente, nenhum país com histórico de desmantelamento absoluto – incluindo o genocídio e a violência extrema – , poderá negar as consequências profundas desses arranjos e das suas mutações. A criação exitosa de coletivos como a Frente Negra Brasileira11 (1931-1937), quando da sua expansão nacional, mostrou o quanto é preciso que enfrentemos desafios para dar visibilidade aos fenômenos aqui em destaque. A partir do ideário de manutenção da diferença colonial, ocorreram avanços, forjados por homens e mulheres preocupados com a garantia de suas heranças de vantagens. Coletivos dos movimentos negros e de organizações parceiras, em diferentes lugares do mundo, emergiram em prol da emancipação dos estratos em desvantagem. Ao examinarmos 11 Conforme os estudos de Petrônio Domingues (2007), a Frente Negra Brasileira Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-572, set. / dez. 2016

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teve papel crucial como a entidade negra mais importante na primeira metade do século XX com um tipo de filiação nacional mantendo o mesmo nome (FNB). Arregimentou milhares de associados e converteu o Movimento Negro Brasileiro em um movimento de massa, chegando a ter 20 mil associados.

a tramitação12 de propostas criadas para regulamentar as diretrizes para ações pautadas na diversidade étnico-racial, passou a ser inevitável considerar a agência política desses(as) coletivos nos enfrentamentos junto ao poder público.

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Estamos mencionando, aqui, uma agenda das organizações do Movimento Negro e o papel desempenhado na conformação de parcerias que funcionaram, estrategicamente, na defesa do direito à educação. Por tudo isso, as teses recuperadas nesse estudo apresentam contornos de uma perspectiva negra de descolonização e de denúncia do ranço colonial. No caso do Brasil, faz mais sentido observar as especificidades da luta ancorada no ideário da Negritude perpassando, de modo avassalador, os diferentes coletivos formados, em âmbito nacional, e que têm proposto uma agenda comum em busca de acesso e mobilidade social para os (as) negros (as). Em diálogo com Frantz Fanon e Paulo Freire, Walsh nos estimula a reconhecer “las apuestas accionales arraigadas a la vida misma” (2013, p. 25). Convidando-nos para um passeio epistêmico pautado no “enlace de lo pedagógico y de lo decolonial” por “acreditar en las posturas praxisticas”, suas indagações giram em torno das implicações de pensar o decolonial pedagogicamente e o pedagógico decolonialmente. Em outros termos, isso significa questionarmos as assimetrias vigentes, a colonialidade do poder e do saber: reconhecer e fortalecer o que é próprio; assumir um pensamento próprio, de lá pra cá, experimentar inversões; questionar as identidades e a diferença colonial. A insurgência possibilita a descolonização de si, o que implica novas condições sociais de poder, de saber e de ser. 12 Sobre esse tema, sugerimos consultar o livro Desenvolvimento de lideranças:

reflexões e desafios, de Sílvio Humberto dos Passos Cunha (2012), bem como a tese “Desigualdades raciais e ensino superior: um estudo sobre a introdução das leis de reserva de vagas para egressos de escolas públicas e cotas para negros, pardos e carentes na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2000-2004)”, de Elielma Ayres Machado (2004).

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Consolidar a perspectiva intercultural de educação, para os diferentes segmentos que conformam a sociedade, exigirá uma práxis colaborativa para uma educação concebida também no chão batido de terra e nas associações organizadas para o fortalecimento identitário13 dos racializados, em sentido mais amplo. Sob uma dinâmica própria de coletivos organizados em diferentes partes da América Latina, vimos exemplos de práticas insurgentes que interrompem o silêncio. Dentre as organizações de professores e de educadores populares, existentes na Colômbia, se destacam as Red de Maestros y Maestras Traslos Hilos de Ananse14, Red de Cualificación de Educadores em ejercicio, Red Valle, Red de docentes de Antioquia, Red Orinoquia, Red Guajira, RedChocó, Red Quindío e Red Bogotá. Ao examinarmos suas escolhas retóricas, seus modos de funcionamento, foi possível supor que há, em comum, uma base conceitual ancorada no constructo da interculturalidade – um ideário caro se consideramos as inúmeras proposições existentes que co-existem e que influenciam investigadoras/ es de distintos segmentos, como se vê na iniciativa que se converteu na Expedição Pedagógica Nacional (Colômbia). Por outra parte, é imperativo garantir outro status para as experiências de coletivos como aquelas vivenciadas pela Associación Casa Cultural El Chontaduro já que é revelador o pressuposto educacional popular. Na história dessas instituições, fica evidente a promoção de ambiências pensadas para incentivar outras iniciativas que

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13 Destaca-se o argumento de Petrônio Domingues (2007) quando aponta

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aspectos políticos específicos de mobilização racial para entender as formas identitárias de identificação que foram adotadas ao longo da história de resistência negra no Brasil. O autor inclui aí a visão de organização que nasce, por exemplo, das irmandades negras, dos terreiros de candomblé, da capoeira e das escolas de samba. 14 Conforme descreveu Luiz GuillermoMeza Alvarez (2014) a Red de Ananse é um coletivo de docentes organizados na forma de ‘rede pedagógica e política’ – além de ‘pesquisadores’ – que procura construir conhecimentos e metodologias, assim como outras lógicas de pensamento por meio do resgate, valorização e visibilização das populações negras/afro-colombianas naqueles espaços em que foram historicamente excluídos, como a escola e a academia.

podem servir de escopo para projetos de (des)integração – (re) integração de si, levando-se em conta as vivências comunitárias reinventadas no cotidiano. No âmbito das disputas ideológicas relacionadas às aprendizagens significativas, seus ideários político-filosóficos passam a sugerir a interrupção de fronteiras rejeitando os muros das instituições formais de educação para apostar em projeções mais comunitárias e mais compartilhadas. Ao iniciarmos um levantamento da história de resistência nos países da América Latina, não podemos deixar de reconhecer esse volume de iniciativas, experiências e apostas que serviram/servem para expor e pressionar o Estado e convocar manifestações por parte das populações locais. Na recente abertura que ocorreu em países tais como o Brasil e a Colômbia, entre os anos de 1980, chegando na segunda década do século XXI, no que se refere ao conjunto de legislação para as comunidades negras, o foco esteve em reconhecer uma variedade de estratégias de esmagamento das suas culturas e formas de pertencimento. Nos estudos que privilegiamos sobre pensamento decolonial na América Latina, alguns desprendimentos conceituais podem ser reveladores e, se assim pudermos considerar, assumir tal constructo para localizar as fontes de outras educações – como sugerem alguns autores já mencionados – , demandará desobediência política e epistêmica. No interior das instituições e coletivos criados para combater o racismo, uma das estratégias adotadas foi a internacionalização das pautas, recurso esse que passou a caracterizar a dinâmica organizacional de alguns processos insurgentes. Sobre esse mesmo traço, caberia entender o que Guimarães (2003) chamou de “modernidade negra”. Seria um processo de inclusão cultural e simbólica na sociedade ocidental. Com esse argumento, o autor defende ser necessário caracterizar a singularidade da modernidade na América Latina: Sob a palavra negra se escondem personas muito diversas: o escravo e o liberto das plantações; o africano, o crioulo, o mestiço e o mulato

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das sociedades coloniais americanos; o norteamericano, o latino-americano, o africano e o europeu do mundo ocidental pós-guerra (GUIMARÃES, 2003, p. 42, grifos do autor).

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Pensando com Guimarães, o processo modernizador seria marcado por contatos, trocas e conflitos intensos, ou seja, um estado de coisas que reflete as contingências de um desenho que pode ser avaliado como um fato social total. Podemos supor que as alianças estabelecidas foram no sentido de consolidar uma agenda de resistência. O exame dos obstáculos que legitimaram o ethos da servidão é tarefa certa para quem deseja compreender os efeitos da diferença como uma invenção colonial. Fará mais sentido se pudermos encontrar alguns atalhos que nos conduzam ao que foi proposto pelos coletivos dos movimentos negros em termos das aprendizagens próprias (MIRANDA, 2014). Será preciso indagar sobre quais forças históricas e também contemporâneas sustentam as referências particulares de educação e quais estratégias seriam apropriadas para subvertê-las. Mapas interculturais e pedagógicos dos coletivos negros

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O que o pensamento decolonial apresenta pode ser entendido como uma chance de incorporarmos uma pluralidade de saberes e conhecimentos antes invisibilizados. Queremos situá-lo como parte de um projeto que tem desconstruído, criticamente, a configuração que impera em termos das situações nas quais somos fixados. Nesse caso, a estratégia de interrogar as bases consolidadas pelo Estado (e as circunstâncias específicas que definiram os sistemas com os quais opera) ganha força. O avanço dos estudos sobre as desigualdades raciais faz parte dos resultados das idas e vindas dos(as) agentes que priorizaram reivindicar essas mudanças. No Brasil, localizamos exemplos da intervenção, que resultou no documentário “Ori” (1989) de Beatriz Nascimento (1942-1995). A obra está focada na vivência cotidiana dos

coletivos negros, de suas agremiações e modos de interromper o sofrimento garantido pelo racismo estrutural. Revela etapas decisivas dessa dinâmica, além das interfaces com outros movimentos em marcha, como é o caso do pan-africanismo. Materiais produzidos sobre a memória das lutas antirracistas e os estudos que problematizam aspectos antes deixados de lado, devem ser realocados ganhando novos contornos para reinventarmos os discursos educacionais incluindo as narrativas de resistência intragrupal no período mais aguda do escravismo na América Latina. Aparecem, então, como escopo para novas fontes documentais e, conforme entende Sílvio Humberto dos Passos Cunha (2004), se consolidam nas entrelinhas das fontes oficiais. Para esse autor,

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[...] faz-se necessário um recorte metodológico que visualize essas histórias de vida de forma sistêmica com a institucionalidade, identificando as formas de regulação da sociedade (o racismo entre elas) e como os antigos sujeitos da escravidão e seus descendentes moveramse, movem-se e provocaram os movimentos desse arcabouço institucional (CUNHA, 2004, p. 175).

No empenho por uma espécie de virada epistemológica, esses trabalhos – defendidos com base no levantamento de evidências pouco exploradas – também perpassam o problema educacional. Questionam, diretamente, o discurso sobre o que é o campo científico. Respondem, também, ao objetivo de diminuir as desigualdades e injustiças cognitivas. Voltar-se para essas lacunas inclui a realização de uma crítica contundente sobre os modos de orientar a seleção de saberes a serem ensinados nas diferentes esferas de formação. Ao mapearmos essas produções, aparece, em relevo, a crítica às concepções cristalizadas como as mais válidas que balizaram estudos diversos no campo das Ciências Sociais. O esforço de Oracy Nogueira (1998) merece ênfase nessa produção, tendo em conta suas observações acerca do

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preconceito de marca. Em sua reflexão, o preconceito racial é parte integrante do sistema ideológico do grupo branco e contribui para a manutenção do status quo, nas relações entre os elementos brancos e os que foram representados como “de cor”. Isso se manifestaria da seguinte forma:

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Sobre o conceito e a utilidade dos primeiros em relação aos últimos; e sobre a autoconcepção e o nível de aspiração destes últimos. Já nos primeiros anos de vida, tanto as crianças brancas como as de cor aprendem a valorizar a cor clara e os demais traços ‘caucasóides’ e a menosprezar a cor escura e os demais traços ‘negróides’ (NOGUEIRA, 1998, p. 197).

Os resultados alcançados a partir desse entendimento servem como pistas para problematizarmos modos de identificação com base em uma ideologia à brasileira de subalternização dos segmentos fenotipicamente distantes do “tipo ideal de europeu”. São conformações que se originam de um arranjo pensado para fixar o outro colonial como tal, como sendo o diferente das origens europeias. E se assim for, os privilégios dos participantes do establishment permanecem firmes. Para Guimarães (2003), o processo de formação étnicoracial dos anos 1970 esteve voltado para o exterior (reforço das raízes africanas). Hoje, entende-se que esse movimento de identificação se constituiu nos embates cotidianos e segue em ascensão por privilegiar a garantia do direito à educação formal – o que reflete o posicionamento de organizações comprometidas com denúncias, se consideramos o relato, por exemplo, de Henrique Cunha Junior15 (apud MIRANDA, 2006). Ao mencionar seu encontro com Petronilha Beatriz Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-572, set. / dez. 2016

15 Professor titular da Universidade Federal do Ceará, Henrique Cunha Junior

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se destaca pela sua contribuição como um dos idealizadores da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (2003) e como primeiro presidente do Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros.

Gonçalves e Silva16 e Ana Célia da Silva17 nos anos de 1980, Júnior destaca que coube ao Movimento Negro encontrar seus caminhos, no sentido de aprofundar a crítica feita sobre a qualidade da educação pública:

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O movimento negro dos anos de 1970 fez uma crítica à educação brasileira e quando nós terminamos essa crítica nós notamos que ela tinha que ser aprofundada. O grupo criou o movimento negro dos anos 70; criou várias experiências interessantes de ensino. Uma delas da qual eu participei, por exemplo, foi a Escola do Camisa – Camisa Verde e Branca, é uma escola de samba em São Paulo – a gente estudava os cursos à noite e tudo mais – deu para perceber que a gente tinha deficiência, compreensão do que era a educação brasileira aprofundada (CUNHA JUNIOR apud MIRANDA, 2006, p. 177).

A nosso ver, essa postura tem como referência o legado das instituições que se constituíram como ambiências de promoção de uma crítica, sobretudo acerca das concepções alimentadas pelas Ciências Sociais que, por sua vez, contribuiu para a produção de uma única vertente legitimada como conhecimento científico. Sendo assim, é possível considerar outras propostas educacionais experimentadas nas fronteiras e nas lutas por justiça curricular. Faz sentido insistirmos com a ideia de que os discursos sobre a produção destas desigualdades vêm sendo construídos por diferentes interseções e que os argumentos advindos das bases dos coletivos do Movimento Negro, como observarmos na análise de Cunha Junior (2003), 16 Para os objetivos desse trabalho, é importante ressaltar que se trata da Professora

Emérita da Universidade Federal de São Carlos que em 2011 foi admitida, pela Presidente da República, na Ordem Nacional do Mérito, no Grau de Cavaleiro, em reconhecimento de sua contribuição para a educação no Brasil.  17 Pesquisadora da Universidade do estado da Bahia, Ana Célia da Silva se destacou com o trabalho sobre o estereótipo do negro nos livros didáticos. Foi Membro Titular do Conselho Estadual de Cultura (2007) e referendada pela Assembleia Legislativa para compor a Câmara de Política Sociocultural.

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se constituem como um contradiscurso que orientou os principais fóruns organizados ao longo da sua história. Esses achados dão conta de alguns importantes traços invisibilizados pela história oficial e que foram ratificados por gramáticas sociais racistas: as tensões nos congressos que problematizam essas desvantagens, bem como a luta pela garantia de direitos fundamentais, aumentam na medida em que o país é confrontado com as insistentes pautas em prol de ações afirmativas e de maior mobilidade socioeducativa para as insurgentes. Assim, o que vimos acontecer, ao longo das duas primeiras décadas do século XXI, são embates históricos sobre o racismo à brasileira e as novas urgências sociopolíticas que incomodaram mais diretamente aqueles que não tiveram suas identidades racializadas. Até aqui chamamos a atenção para as estratégias de fortalecimento de uma dinâmica interventiva que pode ser mapeada a partir da legislação específica implementada para garantir esses direitos, como é o caso da implementação do sistema de cotas nas universidades – parte de um conjunto de medidas antirracistas. A nosso ver, no Brasil e em outros países da região da América Latina, se anunciam posturas decoloniais quando se propõe uma perspectiva nascida da experiência da Diáspora Africana. Consequentemente, a orientação monolítica de políticas educacionais é mais um ponto a ser considerado. Desde uma abordagem decolonial de educação, interessa investigar outras fronteiras epistêmicas que nos coloquem para além dos muros das instituições do Estado. Espaços ditos “não formais” mudam de status quando aceitamos a relevância dessas ambiências de formação e de autoformação. Sob esse ideário, adota-se eixos mais flexíveis para mediações interculturais, que se alinham ao pressuposto das pedagogias alternativas, emergentes, decoloniais, conforme nossa interpretação do quadro analítico defendido por Catherine Walsh (2013; 2014). Para conhecermos mais dessas águas, por onde se esconde o ethos da servidão, faz-se necessário um exame dos modos de ordenamento sociorracial já tão bem frisados nas

pesquisas sobre educação e relações raciais. Nas investigações de Andrelino Campos (2010), emergem importantes considerações sobre os ranços de uma supremacia ancorada no extermínio de coletivos que ocuparam morros e favelas, no Brasil. Sem dúvida, é também no exame das localizações geográficas, que encontraremos as pegadas para desenvolvermos estudos acerca do fenômeno da diferença colonial. Campos (Ibidem) reconhece um tipo de aposta na criminalização dos ocupantes desses aglomerados que moveu (e ainda move) um repertório de desumanização, indo além do período no qual se instalou o regime escravocrata. Ao tomar um exemplo da experiência brasileira e da chamada “regulamentação do solo”, a ênfase recai na seguinte questão:

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A Lei de Terras, editada em 1850, que impedia a propriedade de qualquer parcela de solo por negro escravo, continuou a valer em muitos lugares do país, inclusive na província do Rio de Janeiro [...] Ainda sobre a expansão urbana no município do Rio de Janeiro: se os limites das freguesias (urbanas e rurais) era expandido de acordo com a modernização dos transportes, sobretudo, a partir de 1872 [...] é provável que muitas áreas cortadas pelos trilhos e em torno deles, ficassem vazias, espaços que poderiam ter sido ocupados também, por quilombolas. Nesse caso, mais uma vez estamos nos referindo às áreas de quilombagem que, provavelmente foram transmutadas em favelas como Dona Marta, Babilônia, Pavão-pavãozinho, Vidigal, Formiga, Chácara do Céu, Coroado (CAMPOS, 2010, p. 70).

Como consequência, dados recentes apontam para a situação de uma população que engrossa as estatísticas de mortalidade por causa da violência e pela mão do próprio Estado. Esses fenômenos apresentam capacidade de mutação que garante o esmagamento das expressões culturais, mas,

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antes de tudo, do direito de ir e vir, do direito à vida. Esses agravantes afetam diretamente os segmentos racializados e colocados à margem. Por esses aspectos, é importante olhar atentamente para os modos pelos quais se naturaliza essas situações ao longo dos séculos e tentar localizar os efeitos do autorreferenciamento18, um tipo de negação da alteridade, que pode trazer outros elementos para nossa crítica. Fará diferença se retomarmos à pergunta sobre quem ganha e quem perde com a desobediência política e epistêmica. O ideário de uma supremacia ideológica, incluindo o acúmulo de propriedades e práticas que levaram a uma condição patrimonial de acúmulo de poder de seletos grupos, tem como base um desejo de se manter como casta e, no caso do Brasil, a diferença é dada pela brancura da pele ou coisa que o valha. Esse pode ser um dos motes para amplos desdobramentos, de reflexões sobre os riscos sofridos a partir da racialização adotada e mantida. O eu colonial permanece sob a proteção do Estado e o outro colonial é alvo19 do Estado. Certas características de origem geográfica, como a ocupação de zonas periféricas (reconhecidas como favelas, dentre outras marcas sociais e/ou corporais), são, comumente, interpretadas como um conjunto de elementos que levantam suspeitas sobre a ligação desses grupos com atividades criminosas. No cômputo geral, algumas soluções têm marcadas as formas de escapar de tais processos de degenerescência. Outras estratégias são adotadas como escapatória. Um dos mais sérios entre os obstáculos da afirmação da identidade negra

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18 O tema do “autorreferenciamento” faz parte das questões que emergiram em

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nossos estudos sobre a identidade branca nos estudos das relações raciais. Sobre isso, consultar o artigo “Lugares epistêmicos outros para os novos estudos das relações raciais” (MIRANDA; PASSOS, 2011). 19 Aqui, a referência é a ausência de políticas públicas de inclusão da juventude negra que ocupa as comunidades de morros e de favelas. Sem proteção do Estado, aparecem nas listas de “grupos suspeitos”, estão em maior número nas prisões de todo o país e, consequentemente, lideram as listas dos que morrem de causa violenta envolvendo armas de fogo em ações dos órgãos de repressão, quando da abordagem em espaços das periferias, como ocorre diariamente nas grandes metrópoles.

é que a opção por uma “adequação estética” inclui processos de branqueamento de corpos não-brancos e a ocultação das marcas da descendência africana. É mister que aceitemos quão a diferença colonial fomentou o silenciamento de um estado de coisas que coloca o sujeito desautorizado em perigo constante. Sentir-se branco é, acima de tudo, uma oportunidade de sentirse fora do grupo de origem, deixar de estar à margem, já que ser negro é pertencer ao grupo estigmatizado e consequentemente, sem valor. É estar em perigo e herdar desvantagens sociais. Na contramão do ranço colonial acima descrito, podemos pensar que

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[...] talvez o principal fator desencadeador da consciência de raça entre os negros brasileiros tenha sido simplesmente o sentimento étnico nutrido pelos imigrantes europeus do final do século XIX e começo do século XX e o recrudescimento do racismo europeu entre 1920 e 1939. Ou seja, a consciência de raça talvez tenha sido mais uma reação a esses sentimentos, que uma forma alternativa de nacionalismo. Não por acaso foi em São Paulo, onde a imigração estrangeira foi mais importante, que a consciência negra floresceu com maior vigor, tomando a forma xenófoba (GUIMARÃES, 2003, p. 54).

A partir desse pressuposto e, mesmo com os inúmeros obstáculos apontados, avalia-se que a luta antirracista se renova e aglutina negros(as) e segmentos parceiros nos enfrentamentos cotidianos. Portanto, as transversalidades temática e ideológica nos constituem como sujeitos em estado de luta. E é no campo educacional que encontramos um maior volume de experiências e de trabalhos sobre educação para as relações étnico-raciais, conforme indicamos anteriormente. Desde uma perspectiva comparada, e, para um efetivo comprometimento com o pensamento decolonial, entendese como importante as agendas antirracistas que mapeamos.

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É conveniente assumir uma identidade coletiva, bem como alternativas de pertencimento no que se refere às frequências e dinâmicas no contexto da Diáspora Africana na América Latina.

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Outras aprendizagens para uma agenda antirracista

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Defender pedagogias decoloniais faz parte de uma visão educacional emergente e que será mais bem compreendida quando alinhadas aos estudos desenvolvidos no âmbito da América Latina, principalmente no diálogo com os movimentos sociais que lutam contra processos de subalternização. Vistos como “não europeus” ou “desprovidos de brancura”, todos os (as) outros (as) da colonização – nesse caso, da América Latina – , sofrem a degenerescência de suas identidades e passam a ser representados como aquilo que sobra, o “resto do mundo” – como ocorreu com os povos originários de países transformados em colônias de exploração e com os que foram sequestrados escravizados e retirados de seus lugares de origem. As dinâmicas adotadas na contramão do desejo de preservação de assimetrias coloniais produzem novas frequências e, por conseguinte, instalam-se arenas onde a insurgência se define no rompimento de silêncios históricos e em novos embates discursivos. Essas outras vinculações servem de incentivo para propostas que podem estranhar o legado da servidão. Para nossa reflexão, aproximamo-nos das quintas onde os coletivos negros instituem algo que lhe é próprio em termos das suas formas de conceber constructos de saberes antes desautorizados. Qual seria a motivação da documentarista Gilda Brasileiro ao recuperar, em Salesópolis, marcos históricos sobre a Rota Dória, uma via clandestina de tráfico de africanos (as) sequestrados (as) e trazidos para o Brasil? O que tem de significativo para uma pesquisadora negra, empenhada na revisão das fontes históricas que incluíram relatos e histórias das famílias locais? Pensar interculturalmente implica reorientar a escuta de si na medida em que nos afinamos

com as comunidades e grupos que pisam o chão de terra e que se reconhecem nas práticas dos terreiros, no cotidiano dos Quilombos e Palenques, grupos que colocam no centro de suas propostas educativas as ancestralidades. É, sobretudo localizar espaços de convívio onde a roda não é algo proposto eventualmente, mas sim uma prática herdada. Nesse itinerário, vimo-nos diante de um amálgama de manifestações para aglutinarmos saberes e práticas africanas e afrodescendentes variadas e vislumbrar uma práxis educativa de valorização da pertença dos (as) racializados (as), oriundos (as) de África. O acervo existente no Brasil sobre a história da luta antirracista indica um volume de experiências, estratégias de inclusão a partir da formação de novos quadros em diferentes esferas da sociedade. Não obstante, a ordem escravocrata, bem como o ethos da servidão, podem ser interpretados como uma nuvem que paira sobre as possibilidades de inserção efetiva dos(as) negros(as) de toda a Diáspora Africana. As tentativas de “fuga” dos estigmas acionados contra os grupos racializados atravessaram os séculos. O pensamento social negro pode desfrutar de um estudo sobre as formas de reinvenção identitária, sobre a percepção das Negritudes20 e sobre as dinâmicas adotadas para esse propósito a partir da obra Tornarse Negro (1983), de Neusa Santos Souza (1948‑2008). Sobre a aventura colonial europeia, não se pode minimizar os efeitos do confinamento nas senzalas – entre outros arranjos mórbidos – para impor uma sobrevida e impor uma lógica da servidão. Aderimos a um quadro conceitual desenvolvido em conversa com os movimentos sociais de alguns países da nossa região. Dessas oportunidades, saímos hibridizados(as) e certos(as) de que essa aproximação nos traria indagações distintas sobre como se dá a caminhada na oposição do

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20 Em seu livro Negritude: usos e sentidos, Kabengele Munanga (1988, p. 6-7)

afirma que a negritude pode ser definida como uma legítima defesa ou racismo antirracista sem deixar de ser uma resposta racial negra a uma agressão branca de mesmo teor. Por isso, ela “nasceria em qualquer país onde houvesse a presença de intelectuais negros, como também nas Américas ou na própria África”.

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instituído. Ao privilegiar a conversa com outros coletivos organizados fora do Brasil, aprendemos mais sobre a luta que nos coloca lado a lado vislumbrando novos pontos de contado e de proposição. Pensando com Walsh (2013), é preciso explorar os vínculos entre o “pedagógico” e o “decolonial” percebendo a inclusão de experiências que se definem no caminho percorrido. É importante ver a pertinência dos resultados de pesquisas que conversam entre si como pedagogias da re-existência. Assim, será possível reunirmos proposições metodológicas que tendem a promover outras percepções sobre a legitimidade das bases da interculturalidade desde os movimentos sociais. Para localizarmos projetos que apresentam interseções com o pensamento decolonial, é preciso considerar as iniciativas que foram pautadas na solidariedade e na cooperação, na subversão favorecida por práticas comunitárias e desobedientes. Por isso, qualquer proposta educacional terá que partir de uma escuta sensível (no sentido de rever as suas insuficiências em termos do que não conseguimos desnaturalizar nos currículos) – algo que se confronta, que denuncia a violência também epistêmica e que pode gerar proposição de estratégias que nos levem a descolonizar nossos corpos e nossas práticas discursivas.

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A IMPLEMENTAÇÃO DAS LEIS Nº 10.639/2003 E Nº 11.645/2008 E O IMPACTO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

A Implementação das Leis Nº 10.639/2003 e Nº 11.645/2008 e o Impacto na Formação de Professores

Wilma de Nazaré Baía Coelho1 Nicelma Josenila Brito Soares2 Resumo Este trabalho tece uma reflexão inicial acerca dos processos de formação de professores, mediante análise dos marcos legislativos que normatizam os processos educacionais em âmbito nacional. Nosso percurso contemplará em que medida a formação de professores, preconizada na legislação que rege a educação brasileira, tem se aproximado das formulações tecidas na produção acadêmica deste campo. Esse investimento requererá inicialmente que discorramos sobre os marcos regulatórios que estruturam o campo educacional, por meio das Leis de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira vigente na atualidade, mediante enfoque das alterações definidas 1 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte

(UFRN). Professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), atua no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED), Programa de PósGraduação em Currículo e Gestão da Escola Básica (PPEB) e no Programa em Educação em Ciências e Matemáticas (PPGECM) da referida Universidade. Coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Formação de Professores e Relações Étnico-Raciais (NEAB GERA/UFPA). Coordenadora do Curso de Especialização em Relações Étnico-Raciais para o Ensino Fundamental, do GT 21 da ANPED (2015 – 2017) e da Linha Currículo e Escola Básica, do Programa de Pós-Graduação em Currículo e Gestão da Escola Básica (PPEB). Membro da Comissão Técnica Nacional de Diversidade para Assuntos Relacionados à Educação dos Afro-Brasileiros (CADARA). 2 Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPA. Mestra em Educação pelo mesmo Programa (2010). Possui Graduação em Pedagogia pela mesma Universidade (2000). Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Formação de Professores e Relações Étnico-Raciais (NEAB GERA/UFPA).

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em função da promulgação da Lei nº 10.639/2003 e da Lei nº 11.645/2008. Nesta empreitada, delimitaremos aspectos que configuram tal legislação para, em seguida, situarmos as produções acadêmicas que engendraram a adoção desta política, a fim de analisarmos os impactos da formação nas ações de implementação das referidas leis.

Wilma de Nazaré Baía Coelho Nicelma Josenila Brito Soares

Palavras-chave: Formação docente. Processos educacionais. Política educacional.

IMPLEMENTATION OF LAW NO. 10,639/2003 AND NO. 11,645/2008 AND ITS IMPACT ON TEACHER EDUCATION

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Abstract This study comes up with an initial reflection on the processes of teacher education through an analysis of legislative milestones that regulate the educational processes at a national level. Our route will include the extent to which teacher training, set out in the legislation that rules the education in Brazil, has approached the formulations elaborated into the academic production on this field. This investment will initially require that we reason about the regulatory milestones that shape the educational field, through the Laws of Guidelines and Bases of Brazilian Education [Leis de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira] in force nowadays, by focusing the modifications defined as a result of the enactment of Law no. 10,639/2003 and Law no. 11,645/2008. In this endeavor, we will outline aspects that shape such legislation, to then situate the academic productions that gave rise to the adoption of this policy and, subsequently, analyze the impact of the teacher education in the actions of implementation of the mentioned laws. 574

Keywords: Teacher education. Educational processes. Educational policy.

A IMPLEMENTAÇÃO DAS LEIS Nº 10.639/2003 E Nº 11.645/2008 E O IMPACTO NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

A Implementação das Leis Nº 10.639/2003 e Nº 11.645/2008 e o Impacto na Formação de Professores

Uma análise das implicações presentes entre as discussões sobre formação de professores e a adoção de políticas voltadas para esse campo indica uma dinâmica a ser verificada: a relação entre a intensificação da produção acadêmica que se ocupa com essa questão e as políticas educacionais voltadas para os processos formativos. Para análise de tal dinâmica, direcionaremos nossas contribuições para os marcos legislativos que normatizam os processos educacionais em âmbito nacional, com o intuito de verificar em que medida a formação de professores, preconizada na legislação que rege a educação brasileira, tem se aproximado das formulações tecidas na produção acadêmica deste campo. Esse investimento requererá inicialmente que discorramos sobre os marcos regulatórios que estruturam o campo educacional, por meio das Leis de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB) vigente na atualidade, mediante enfoque das alterações definidas em função da promulgação da Lei nº 10.639/2003 e da Lei nº 11.645/2008. Nesta empreitada, delimitaremos aspectos que configuram tal legislação, para, em seguida, situarmos as produções acadêmicas que engendraram a adoção desta política, para analisarmos os impactos da formação nas ações de implementação das referidas leis. OS MARCOS LEGISLATIVOS DEFINIDOS PELA LEI Nº 10.639/2003 E LEI Nº 11.645/2011

Dentre as legislações que estruturam o campo educacional, por meio da LDB (Lei nº 9.394), sancionada em 20 de dezembro de 1996, iremos nos deter nas alterações por meio da inserção do artigo 26-A: a obrigatoriedade de inclusão, no currículo oficial da Rede de Ensino, da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Isso pois constitui um dos

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indicativos a partir dos quais as demandas sociais repercutem nos processos legislativos em nossa sociedade. A primeira, advinda das demandas do Movimento Negro3, é a institucionalização da obrigatoriedade do enfoque à temática e constitui uma realidade “diagnosticada nos estudos e pesquisas sobre o tema e denunciada, há décadas, pelas entidades do Movimento Negro” (SILVA JUNIOR, 2002, p. 12) e que necessitam de “intervenção conscienciosa” (COELHO, 2009, p. 232) com vistas a assegurar a efetividade da promoção do princípio constitucional da igualdade (BRASIL, 1988). Tendo um caráter inicial de coibir manifestações comportamentais de preconceito (GUIMARÃES, 2004), a legislação brasileira transitou entre a proibição de práticas preconceituosas comportamentais ou verbais contra o racismo no período de 1989 a 19974. A criminalização da prática do racismo, instituída no art. 5º da Constituição Federal de 1988, representou um avanço na legislação referente a tais práticas porque possibilitou uma superação do caráter de contravenção imputado às manifestações de preconceito, ao preconizar que “XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais; XLI I – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão” (BRASIL, 1988, n.p.). Com a participação na III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância 3 Cf. GONÇALVES, L. A. O.; SILVA, P. B. G. Movimento negro e educação.

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Revista Brasileira de Educação. São Paulo, v. 15, n. 15, 2000, p. 134158; SANTOS, S. A. A Lei nº 10.639/03 como fruto da luta anti-racista do movimento negro. In: Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. Brasília: MEC; Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005, p. 21-37; GOMES, N. L.; SILVA, P. B. G. (org.). Experiências étnico-culturais para a formação de professores. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. 4 Constituem instrumentos jurídicos voltados para tais proibições: Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989; Lei nº 8.081, de 21 de setembro de 1990; Lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997. Cf. GUIMARÃES, 2004.

Correlata, realizada na África do Sul, o Brasil assume o compromisso de implementar o Programa de Ação da Declaração de Durban, que previa “promoção do ensino, com o intuito de fomentar o ensino, capacitação e atividades educacionais relacionadas aos direitos humanos e à luta contra o racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata” (SILVA JUNIOR, 2002, p. 9). Tal participação representa outro avanço significativo na assunção do combate a tais práticas, por meio de ação educativa promovida pelo Estado dentro do espaço das escolas. Devemos ressaltar, nesse contexto, que a experiência brasileira apresenta uma contribuição “singular” (COELHO; COELHO, 2013) da sociedade civil organizada, no que tange ao advento da Lei nº 10.639/2003: Ela não emergiu do interior do sistema educacional, entendido aqui como as instâncias normativas e operacionais (o Ministério e as Secretarias de Educação – estaduais e municipais) e suas instâncias constituintes e legitimadoras, como o discurso acadêmico e os cursos de formação docente. Ela nasceu da demanda da sociedade civil organizada. Foram os movimentos civis que apontaram uma lacuna na formação oferecida: o sub-dimensionamento da participação do negro na formação da nacionalidade brasileira e uma orientação exclusivamente europeia na compreensão dos processos que conformavam a trajetória histórica brasileira (COELHO; COELHO, 2013, p. 95).

Esse envolvimento da sociedade civil organizada, indicando demandas que lhe são atinentes, pode ser respaldado pelas incursões efetivadas para análise da evolução das assimetrias apresentadas na sociedade brasileira, no que concerne aos quesitos cor e raça. Para mapeamento dessa evolução, foram adotados como parâmetros os “indicadores sociais presentes nas bases de dados que contenham informações estatísticas

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sobre a população residente no país” (PAIXÃO et al., 2010, p. 15). Tais dados informam que, a despeito dos avanços promovidos pelos marcos legislativos que incorporaram as demandas da sociedade civil organizada, uma persistência nos índices desfavoráveis para alguns segmentos populacionais ainda se atrela à experiência de alguns, dependendo de seu pertencimento racial: O racismo, tal como operante na sociedade brasileira, baseado no critério das aparências físicas, tanto nasce no cotidiano das relações assimétricas de poder, na formação de mecanismos de prestígio social, no acesso às oportunidades de mobilidade social ascendente e de direitos sociais, como também verte das estruturas sociais localizadas no plano do aparelho do Estado (racismo institucional), das empresas do setor privado, das escolas, dos meios de comunicação, que legitimam as desvantagens estruturais que terão de ser vividas pelos que portam fenótipos diferentes do grupo hegemônico (PAIXÃO et al., 2010, p. 22).

Nesse cenário, a promulgação em 2003 da Lei nº 10.639 – que institui a obrigatoriedade da inclusão de “História e Cultura Afro-brasileira” nos currículos escolares da rede pública e privada de Ensino Fundamental – constitui um dos encaminhamentos para atender àquela demanda histórica do Movimento Negro, contribuindo para colocar oficialmente discursos e vozes historicamente silenciados nos currículos das nossas escolas. No que tange à Lei nº 11.645, sancionada em março de 5 2008 , Silva (2012) salienta uma dinâmica que a aproxima da experiência mencionada em relação à lei promulgada em 2003: a visibilidade conferida às demandas dos povos indígenas, ocorrida em função de sua mobilização política, concorreu Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-606, set. / dez. 2016

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5 Disponível em: . Acesso em: 20 maio 2015.

para as conquistas de direitos fixados na Constituição Federal de 1988 e para que “a sociedade em geral (re)descobrisse os índios” (SILVA, 2012, p. 3). Esse movimento apresenta-se circundado por uma legislação que contempla as diversidades dos povos indígenas6 no que se refere à educação: um dos marcos, o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, “estabelece enfaticamente a diferenciação da escola indígena das demais escolas do sistema pelo respeito à diversidade cultural e à língua materna, e pela interculturalidade” (BRASIL, 1998a, p. 5). Já a Resolução 3, de 10 de novembro de 1999, fixa as Diretrizes Nacionais para o funcionamento das escolas indígenas e dá outras providências; o Referencial para a Formação de Professores Indígenas (BRASIL, 2002a) contempla processos de formação, atendendo às especificidades dos povos indígenas; os Parâmetros Curriculares em Ação: Educação Escolar Indígena apresentam como seu escopo “ser realizado em um contexto de formação de profissionais da educação, propiciando o estabelecimento de vínculos com as práticas locais” (BRASIL, 2002b, p. 13). Tais aspectos conformam uma dinâmica na qual as mobilizações dos povos indígenas, apontadas por Silva (2012) como elementos desencadeadores da atenção a seus direitos, demarcam a implantação da educação indígena, com peculiaridades que contemplem esses povos, bem como assinalam uma possibilidade de subversão no tocante às representações instauradas em relação a esses povos na sociedade brasileira. Com as inserções oficiais nos currículos, no que diz respeito à cultura e à história afro-brasileira e indígena, 6 “Compreende pessoas etnicamente diferenciadas, que se consideram

descendentes dos povos que habitavam a Amazônia, antes da chegada do invasor europeu, as quais possuem direitos, assegurados constitucionalmente, que conservam usos, costumes e tradições característicos da cultura originária em sua forma de organização cultural e social” (COELHO; SANTOS; SILVA, 2015, p. 27).

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vislumbra-se uma estratégia de alteração nas formulações veiculadas na escola, uma vez que sua efetivação concorre para encaminhar “a formulação de outra trama do processo de formação da nacionalidade, por meio da qual todos os agentes possam identificar-se e orientar-se”. (COELHO; COELHO, 2013, p. 96). Essa “outra trama” anunciada por Coelho e Coelho (2013) materializa a referência à diversidade e ao reconhecimento de identidades pessoais, os quais constituem uma diretriz para a Educação Nacional: nessa direção, atentarmos para o objetivo de “contribuir para a constituição de identidades afirmativas, persistentes e capazes de protagonizar ações autônomas e solidárias em relação a conhecimentos e valores indispensáveis à vida cidadã”7, apontando para uma proposta de educação voltada para a superação de discriminações e exclusões em múltiplos contextos e no interior das escolas, devidas ao racismo, ao sexismo e a preconceitos originados pelas situações socioeconômicas, regionais, culturais e étnicas. A percepção da relevância da escola nesse processo como “uma instância privilegiada de reflexão e problematização” (BRASIL, 1998b, p. 103) remete à necessidade de resgate da autoestima no que se refere ao imaginário negativo e discriminatório construído em relação a alguns dos agentes que protagonizaram os processos de formação da nacionalidade, apontada por Coelho e Coelho (2013). Assim, essa efetivação se conforma mediante a ação do educador e educadora ao compreender o contexto do racismo e como esse fenômeno interfere nessa autoestima, e que sua não subversão “impede a construção de uma escola democrática”, conforme adiantado por Nilma Lino Gomes (2003, p. 77). A assunção desse empreendimento, aos processos de formação de professores, representa um investimento responsável pela pavimentação de outro trajeto para a 580

7 Resolução CEB nº 2 / 1998, art. 3º, III.

compreensão de tais processos formativos em nível macro da sociedade brasileira. Nesse empreendimento, várias iniciativas legais são adotadas com vistas a institucionalizar a implementação de uma educação que atente para a diversidade que pauta as relações étnico-raciais em nossa sociedade, seja por meio de orientação quanto aos conteúdos a serem inseridos e trabalhados ou às alterações curriculares a serem adotadas (BRASIL, 2004a), seja por meio do detalhamento dos papéis a serem institucionalmente assumidos (BRASIL, 2004b) ou de documento pedagógico para “orientar e balizar os sistemas de ensino e as instituições correlatas na implementação das Leis [nº] 10.639/2003 e [nº] 11.645/2008” (BRASIL, 2012, p. 16). Essa demanda explicitada nos marcos legais que fomentam essa alteração de compreensões e de posturas tem se constituído objeto de investigações, as quais se ocupam de revisitar práticas, diagnosticar dificuldades e propor avanços. Nesse aspecto, convém situarmos como as produções acadêmicas representam contributo para essa revisão. A QUESTÃO ÉTNICO-RACIAL ENGENDRANDO PRODUÇÕES ACADÊMICAS

As produções acadêmicas que engendraram a adoção de políticas de combate à discriminação na sociedade brasileira têm sido assumidas, no âmbito de alguns processos de pesquisa, como uma conjugação de “um projeto acadêmico e um projeto social – o fim das desigualdades” (COELHO, 2014, p. 81, grifos da autora). Tal ambição já se esboçava minimamente em documentos oficiais anteriores a 2003: a proposta de que questões sociais (como as questões referentes ao preconceito e à discriminação) fossem tratadas metodologicamente pela transversalidade constituiu, antes da promulgação da Lei nº 10.639/2003 e da Lei nº 11.645/2008, o expediente adotado para o encaminhamento das questões étnico-raciais no interior

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da escola. A despeito das lacunas na definição e na criação de metodologias para o combate à discriminação (SOUZA, 2001), os Parâmetros Curriculares oferecem contribuição para o combate às práticas dessa natureza, representando um avanço na abordagem desse tema na escola. As discussões acerca das relações raciais espraiam-se para a dimensão educacional a partir da década de 80, mencionada como um marco, em nosso país, na discussão das relações raciais em sua interface com a educação8. Essa demarcação decorre da edição nº 63 dos Cadernos de Pesquisa, da Fundação Carlos Chagas, em 1987 (SOUZA, 2001), em que artigos oriundos dos debates promovidos durante o Seminário “O Negro e a Educação” tornaram-se referência para os trabalhos que os sucederiam. A profusão de estudos que se debruçaram sobre a temática educação e relações raciais contemplou as formulações do pensamento racial brasileiro em suas diferentes vertentes, seja na desconstrução do mito da democracia racial, seja na denúncia da conservação da ideologia da superioridade do branco em nosso país, materializando-se no campo da educação por meio do vínculo entre conhecimento, identidade e poder (SANTOS, 2007). Ainda corroboram as discussões acerca das desigualdades raciais (HASENBALG; SILVA, 1992), ao evidenciar que a assimetria das relações raciais9 brasileiras penaliza os negros na escola “seja por inferiorizá-los enquanto grupos, por desvalorizar a sua cultura10 ou por mantê-los 8 Gomes (2011a) indica que a redemocratização do país e a consolidação dos

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cursos de Pós-Graduação concorrem para a inserção de intelectuais negros nas universidades públicas, e uma consequente produção no campo das relações étnico-raciais. 9 Curvier teria sido, assim, conforme Schwarcz (1993), o primeiro a utilizar a nomenclatura raça com o sentido que hoje usamos. O conceito de raça, conforme Guimarães (2002), é uma categoria socialmente constituída. 10 Compartilhamos da compreensão de cultura negra como “particularidade cultural construída historicamente por um grupo étnico/racial específico, não de maneira isolada, mas no contato com outros grupos e povos” (GOMES, 2003, p. 77).

nos estatutos inferiores da hierarquia social” (RIBEIRO, 2005, p. 9). No desencadear desse processo, um levantamento de pesquisas apresentadas no GT 2111, da Associação Nacional de Pós-Graduação (ANPED), voltadas para a dimensão educacional de acordo com o recorte racial, evidenciou em sua abordagem que, a partir da segunda metade da década de 80, quatro grandes campos de pesquisa delineavam-se no estudo da educação e relações raciais: o dos “Diagnósticos”, o dos “Materiais Didáticos”, o da “Formação de Identidades” e o dos “Estereótipos” (SISS; OLIVEIRA, 2007). Nesses campos de pesquisa, as análises dos diagnósticos da situação educacional dos negros no Brasil traziam à baila os “acidentes de percurso” que marcavam a trajetória das crianças negras na escola. Esses estudos possibilitavam a percepção de que o acesso de crianças brancas e negras ao sistema de ensino era diferenciado, com prejuízo considerável para este último grupo: desde o que tange às escolas para as quais eram destinados – geralmente públicas e de periferia – até as atividades educativas executadas por professores não qualificados, os quais as desenvolviam sob o suporte de recursos didáticos “deficientes ou de baixa qualidade” (SISS; OLIVEIRA, 2007, p. 5). Para além das diferentes perspectivas e contextos nos quais ocorriam, os estudos que enfocavam as desigualdades educacionais entre os grupos raciais no Brasil geralmente apontavam as práticas racistas inseridas no ambiente escolar, presentes em falas, comportamentos e conteúdos didáticopedagógicos empregados por professores e por outros agentes institucionais, bem como enunciam o potencial da escola como instrumento gerador de uma nova conscientização quanto às diferenças raciais (BRANDÃO, 2006). 11 O GT 21 é o Grupo de Trabalho que agrega, no presente momento, produções

vinculadas ao tema das relações étnico-raciais e educação.

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Nessa direção, alguns projetos inscritos no Concurso Negro e Educação (PINTO; SILVA, 2000)12, sob chancela da ANPED e da Ação Educativa, com o apoio da Fundação Ford, focalizavam as relações que ocorriam no espaço escolar envolvendo alunos, professores e funcionários, bem como processos de ensino-aprendizagem, conteúdos, percepções, representações e ações dos partícipes do cotidiano da escola. Os estudos voltados para a interface racismo e educação na sociedade brasileira apontam, há muito tempo, para a necessidade de reflexão quanto ao lugar que os debates sobre as questões raciais ocupavam na escola. A falta dessa reflexão apresenta-se, dentre outros fatores, como responsável por uma prática de segregação no espaço escolar que apresentará vários efeitos para os grupos que são alvo deste processo (COELHO, 2009). Os estudos iniciados na década de 8013 contemplando o ambiente escolar e suas configurações, no que tange à perpetuação de desigualdades, anunciavam um panorama que ainda se encontra em processo de enfrentamento. Levantamentos recentes apontam para uma ampliação nas produções em volta da temática racial, com quantitativos orbitando aproximadamente 75,86%, dentre teses e dissertações produzidas a partir de 2000, nas quais, dentre os aspectos verificados, ainda se evidencia a crítica aos elementos sob os quais a escola apresenta-se estruturada: “a) seletiva; b) 12 Pinto; Silva (2000) analisaram 135 projetos submetidos à seleção para o

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Concurso Negro e Educação. Nesta análise, as autoras agruparam os projetos por temas correlatos, a partir da temática principal, classificando-os nos seguintes assuntos: o sistema educacional e as questões étnico-raciais; livros didáticos: análises e propostas; propostas curriculares; políticas/iniciativas com vistas à melhoria da situação educacional do negro; expectativas e aspirações dos alunos; a situação educacional do negro; formação de professores; aprendizagem/aproveitamento escolar; contribuição do negro para o processo educativo e questões de gênero entre os negros. 13 Gomes (2011) indica que a redemocratização do país e a consolidação dos cursos de Pós-Graduação concorrem para a inserção de intelectuais negros nas universidades públicas e uma consequente produção no campo das relações étnico-raciais.

hierárquica; c) fundada nos pressupostos do universalismo e da igualdade abstrata; d) individualista” (REGIS, 2009, p. 197). Para além das denúncias, um aspecto a ser registrado no tocante às produções sobre as relações raciais na experiência brasileira incide na transição de uma posição de meros objetos de investigação para a posição de sujeitos produtores do conhecimento. Dois eventos significativos, responsáveis pela ampliação e disseminação da produção acadêmica brasileira, subsidiam este argumento: o primeiro, por meio das atividades dos Grupos de Trabalhos (GTs) efetivados nas reuniões anuais da ANPED, especificamente no GT 21, “integrado por pesquisadores e pesquisadoras negros e não-negros, cuja produção científica está localizada na área das Relações Étnico/Raciais e Educação” (ANPED, s.d., n.p.), o qual, em levantamento recente efetivado por ocasião dos 10 anos do referido GT (VALENTIN; PINHO; GOMES, 2012), dá conta desse protagonismo assumido por esses intelectuais e dessa ampliação da temática durante a existência desse GT. O segundo evento a ser destacado consiste nos Congressos Brasileiros de Pesquisadores(as) Negros(as) (COPENE), vinculados à Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as) (ABPN), criada em 2000 a partir do I Congresso Brasileiro de Pesquisadores(as) Negros(as), sediado na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Os COPENEs sinalizam um movimento de ampliação dos debates, os quais, desde a versão coordenada pela Prof.ª Dr.ª Lídia Cunha e pelo Prof. Dr. Henrique Cunha Júnior até a última, (ocorrida em 2014 na Universidade Federal do Pará), sob coordenação da Prof.ª Dr.ª Wilma de Nazaré Baía Coelho, vêm efetuando um balanço positivo no que tange à produção de pesquisadores(as) negros(as) e não negros(as) sobre a temática em diversos campos do conhecimento – Quadro 1.

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Quadro 1 – Congressos Brasileiros de Pesquisadores(as) Negros(as) (COPENES) – 2000/2014.

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Versão

I COPENE

Períod.

22 a 25 de novembro de 2000

Munic./Uf

Recife/PE

Públ.

Aprox. 320

Aspectos Registrados

Crescimento numérico; qualidade da produção. Persistência de barreiras e ausência dos meios materiais de suporte ao desenvolvimento de pesquisas pretendidas pelos(as) pesquisadores(as) negros(as). Grande concentração de pesquisadores(as) se deu nas seguintes áreas de conhecimento: educação, saúde, história, sociologia e antropologia.

Versão

II COPENE

Períod.

25 a 29 de agosto de 2002

Munic./Uf

São Carlos/SP

Públ.

Aprox. 450

Aspectos Registrados

Aprovou a constituição da Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as) (não restringindo a participação de pesquisadores não negros). Transparecem na produção os efeitos das mudanças sociais ocorridas na década de 90.

Versão

III COPENE

Períod.

06 a 10 de setembro de 2004

Munic./Uf

São Luís/MA

Públ.

Aprox. 1.000

Aspectos Registrados

Apoio SEPPIR, SECADI e Fundação Cultural Palmares.

Versão

IV COPENE

Períod.

13 a 16 de setembro de 2006

Munic./Uf

Salvador/BA

Públ.

Mais de 1.200

Aspectos Registrados

Participação de docentes e discentes, pesquisadores(as) de várias universidades brasileiras, bem como mestres populares, detentores de conhecimento, mas não necessariamente portadores de títulos acadêmicos – interessados pela temática das relações étnico-raciais.

Versão

V COPENE

Períod.

29 de julho a 01 de agosto de 2008

Munic./Uf

Goiânia/GO

Públ.

Aprox. 1.300

Aspectos Registrados

Atendeu à necessidade de contínua reflexão acerca da produção de intelectuais negros(as), em grande parte “invisíveis” na ciência brasileira e nas sociedades científicas, ainda que tenhamos indivíduos de renome internacional.

Versão

VI COPENE

Períod.

26 a 29 de julho de 2010

Munic./Uf

Rio de Janeiro/RJ

Públ.

Aprox. 2.000

Aspectos Registrados

Apresentou e discutiu os processos de produção/difusão de conhecimentos intrinsecamente ligados às lutas históricas empreendidas pelas populações negras. Possibilitou um crescimento quantitativo e qualitativo da produção científica de pesquisadores(as) negros(as) e sobre populações negras, especialmente no Brasil.

Versão

VII COPENE

Períod.

16 a 20 de julho de 2012

Munic./Uf

Florianópolis/SC

Públ.

Aprox. 1.000

Aspectos Registrados

Incorporou três eventos concomitantes, a saber: o II Seminário Internacional de Pesquisadores(as) Negros(as); o I Seminário de Iniciação Científica da ABPN; o I Encontro Nacional de Pesquisadoras e Pesquisadores em Saúde da População Negra. Oportunizou a diferentes pesquisadores(as) a construção de um balanço da produção acadêmica até aqui e definiu os desafios para os próximos anos.

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Versão

VIII COPENE

Períod.

29 de julho a 02 de agosto de 2014

Munic./Uf

Belém/PA

Públ.

Mais de 1.50014

Aspectos Registrados

Ampliou os eventos efetivados concomitantemente: III Seminário Internacional de Pesquisadores Negros; II Seminário de Iniciação Científica da ABPN; Simpósio da American Educational Research Association (AERA); VI Seminário Nacional; VIII Seminário Regional sobre Formação de Professores e Relações Étnico-Raciais. Tornaram-se inéditos alguns produtos até esta versão: vídeo-documentário em memória dos(as) pesquisadores(as) e lideranças falecidos(as); vídeo-homenagem à condecorada desta edição do evento; produção de 1.200 exemplares dos Anais do VIII Congresso Brasileiro de Pesquisadores(as) Negros(as); produção de 1.200 exemplares do Relatório de Atividades de Preparação do VIII Congresso Brasileiro de Pesquisadores(as) Negros(as); produção de 1.200 exemplares da Programação do VIII Congresso Brasileiro de Pesquisadores(as) Negros(as); produção de 1.200 exemplares do CD-ROM dos Anais do VIII Congresso Brasileiro de Pesquisadores(as) Negros(as); entrega em outubro de 2014 do relatório final à presidência da ABPN; publicação online dos trabalhos completos, apresentados no evento.15

Fonte: Adaptado de ABPN (s.d., n.p.). Disponível em: . Legenda: Períod. = Período. Públic. = Público.

1415

Os dois eventos constituem dois outros indicativos da ampliação das discussões no tocante à temática e podem ser compreendidos como estratégias favorecedoras de novas formulações e compreensões, de revisões de práticas e de ruptura com a dinâmica que se instaura na sociedade brasileira. Tal alteração não pode ser desencadeada por meio de “meia dúzia de frases politicamente corretas” (COELHO, 2007, p. 13, grifos da autora). A ruptura com essa dinâmica 14 Para dados mais específicos referentes à oitava versão do COPENE, o relatório Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-606, set. / dez. 2016

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entregue à Presidência da Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as) constitui a base para apresentação dos aspectos não localizados no site da ABPN (COELHO; SOARES, 2014a). 15 Idem

envidaria uma “intervenção conscienciosa” (COELHO, 2009, p. 232) mediante uma abordagem sistemática da questão racial nos processos de formação – com vistas ao oferecimento de um suporte teórico que subsidiaria práticas docentes que têm se apresentado sob bases do “improviso” (COELHO; COELHO, 2008) e “próximas ao senso comum” (COELHO, 2009, p. 218). Para subsidiar essa argumentação, afluirmos a experiência dos docentes que já se encontram inseridos na escola, analisando como a sua formação continuada de professores contribui para ilustrar o percurso a ser traçado para o alcance do “projeto acadêmico” e do “projeto social” (COELHO, 2014, p. 81) sobre o qual têm se debruçado as investigações produzidas dentro desta temática nos últimos anos. Em face da presença de duas categorias relevantes neste artigo (formação de professores e formação continuada), convém ressaltar que partilhamos da compreensão de Gatti e Barretto (2009): “a necessidade de adoção de uma estratégia de ação articulada entre as diferentes instâncias que formam professores e as que os admitem como docentes” (GATTI; BARRETTO, 2009, p. 255). Essa articulação também é indicada em síntese integrativa sobre as produções acadêmicas dedicadas à análise da formação de professores, na qual a “necessidade de integração entre o Estado, as agências formadoras e as agências contratantes de profissionais de educação” (ANDRÉ, 1999, p. 305) figura como um dos eixos mais focalizados nos trabalhos que investigavam a formação inicial. A compreensão dessa necessidade subsidia a percepção do potencial que a parceria entre a universidade e a escola básica apresenta, como processo estratégico, para reversão de representações e formulações instauradas no imaginário coletivo no tocante a alguns grupos que participaram e participam da organização de nossa sociedade.

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AS AÇÕES PARA IMPLEMENTAÇÃO DA LEI Nº 10.639/2003 E LEI Nº 11.645/2008 E A FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES

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Pesquisas que apresentam a dinâmica das escolas têm indicado possibilidades – em que pese às limitações verificadas – de que nesse espaço sejam vivenciadas práticas voltadas para a subversão da realidade que marca a experiência dos segmentos excluídos e invisibilizados na sociedade brasileira. Esse aspecto é constatado por meio de pesquisa em escolas da Região Norte, na qual o enfoque à temática racial foi localizado em 3 das 6 escolas investigadas, indicando, no tocante aos locais que desenvolvem trabalhos que contemplam a questão étnico-racial, que tais atividades se apresentam como estratégias “muito eficazes para a reversão da autoestima dos estudantes negros e pardos [bem como o estabelecimento de] relações entre o procedimento adotado e a competência desenvolvida junto aos estudantes” (COELHO; COELHO, 2014, p. 26). Para exemplificação a partir de uma das áreas especiais mencionadas na legislação em tela, verifica-se que a ideia do ensino de História como mobilizador da consciência histórica e, consequentemente, um favorecedor do exercício da cidadania que pauta uma expectativa de melhorias para o futuro da sociedade (VALÉRIO; RIBEIRO, 2013). Tal expectativa justifica-se pela possibilidade de instauração de uma nova compreensão, inclusive em termos de participação na formação da sociedade brasileira e, por conseguinte, de uma nova percepção de nacionalidade que inclua todos os segmentos cujas histórias na constituição de nossa sociedade têm sido silenciadas. Essa nova percepção apresenta desdobramentos na revisão da história do negro no Brasil, “em diversos estudos e por diferentes intelectuais e ativistas negros” (MÜLLER; SANTOS, 2014, p. 88) e representa um movimento que tem impulsionado a mobilização dos sujeitos que, ao longo

dos tempos, foram “excluídos da história [com vistas a restituição de] sua condição de agentes históricos” (RIBEIRO, 2007, p. 45). Esse movimento tem na escola e no ensino de História uma estratégia acionadora, em face do que expõem Coelho; Coelho (2013): Em relação aos professores de História, os quais nos interessam particularmente, a nova legislação demanda não apenas o domínio dos saberes historiográficos relativos à África e à Cultura Afro-Brasileira. Ela requer, fundamentalmente, o acionamento de competências que viabilizem o enfrentamento do preconceito e de seus desdobramentos nocivos na formação de crianças e adolescentes, por meio da construção de uma nova forma de se pensar a formação da nação e da nacionalidade (COELHO; COELHO, 2013, p. 97).

As competências a serem acionadas para gerar a subversão dos processos invisibilizatórios que se imprimiram às populações negra e indígena enfrentam entraves que transitam por toda a ordem de fatores, um dos quais, no que tange à prática dos professores de História e à cultura e história afrobrasileira, dá conta de que o “saber histórico escolar relacionado à África e à Cultura Afro-Brasileira necessita amadurecimento” (COELHO; COELHO, 2013, p. 106). Alia-se a esse contexto o fato de que ainda que as pesquisas localizem, no âmbito das escolas, algumas iniciativas para o trato da questão étnico-racial, tal enfoque ainda se apresenta pautado no “voluntarismo docente”, na ausência de conhecimento formal da lei, na vinculação a um teor ético e moral e no fato de que tal enfoque na escola advém de iniciativas pontuais (COELHO; COELHO, 2014). Esse panorama vai concorrer para a situação que se instaura no âmbito educacional brasileiro, na qual a descontinuidade dos projetos gestados na escola matiza o panorama da

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“implementação das diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais” (BRASIL, 2008, p. 13). Uma reversão desse cenário pode ser registrada, mediante a adoção de estratégias que conformem novas representações, a partir de um trabalho a ser desenvolvido na escola. Nesse aspecto, a formação continuada de professores assume relevância em conjunto com outras estratégias a serem adotadas. A efetividade de investimentos para fomento a iniciativas dessa natureza, presentes em balanço elaborado em 2008, identificam algumas ações do Ministério da Educação com vistas a assegurar a implementação da Lei nº 10.639/2003, conforme expomos no Quadro 2 a seguir: Quadro 2 – Estratégias de divulgação e distribuição de material pedagógico sobre a Lei nº 10.639/2003. Ações

Reuniões dos Fóruns de Educação e Diversidade Étnico-Racial

Ano de Origem 2004, 2006 e 2008 Resultados Alcançados

Participação de representantes de 21 UF e articulação de SMEDs, SEEs e Movimentos Sociais. Rearticulação para constituição dos Fóruns Estaduais.

Ações

Diálogos Regionais (5 Regiões, 27 UF)

Ano de Origem 2008

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Resultados Alcançados

Consulta pública sobre o Plano Nacional de Implementação da Lei nº 10.639/2003. Transparecem na produção os efeitos das mudanças sociais ocorridas na década de 90.

Ações

Publicação de 23 títulos sobre a temática da Educação das Relações Étnico-Raciais. Títulos com tiragem acima de 50.000 exemplares: “Superando o racismo na escola” (2005); “Educação anti-racista: caminhos abertos pela lei 10.639/2003” (2005) e Orientações e ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais (2006).

Ano de Origem 2004-2008

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Resultados Alcançados

223.900 de exemplares distribuídos.

Publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (Parecer CNE/CP3/2004, Resolução CNE nº 1/2004 e Lei nº 10.639/2003).

Ações

Ano de Origem 2005 Resultados Alcançados

1.000.000 de exemplares distribuídos. Fonte: Balanço da ação do MEC para a implementação da Lei n° 10.639/03 (MEC/SECAD, 2008).

Tais dados podem exemplificar os investimentos acionados para arcar com o que Padinha denomina de “o custo do racismo” (PADINHA, 2014, p. 97). Nesse aspecto, com direcionamento de ações para os processos formativos com vistas a reversão do panorama instaurado na sociedade brasileira no tocante às questões raciais. Além das ações e investimentos elencados no balanço do Ministério da Educação, ressaltamos a ampliação das estratégias contemplando a formação continuada de professores, por meio de programas distintos, conforme indicamos no Quadro 3. Quadro 3 – Oferta de formação continuada de professores pelos programas do MEC/SECAD. Projetos/ Programas

Uniafro

Uniafro(1)

Período

Carga horária

Metas de formação

Resultados alcançados

20052006

Oferta diferenciada

10.647 professores

Dados não disponíveis

20082010

Nº de professores em: De 80 a 120 Especialização: horas, em 3 1.245. modalidades Aperfeiçoamento: 1.470. Extensão: 3.480.

Em início de execução

593

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Projetos/ Programas

Carga horária

Metas de formação

Resultados alcançados

2006

120 horas

26.054 inscritos, 27 UF, 704 municípios, 4.000 escolas.

6.800 professores da rede pública concluíram o curso.

Oficina cartográfica sobre Geografia Afro-Brasileira e Africana

2005

Oficinas (sem dados de carga horária)

4.000 educadores, em 7 UF

Dados não disponíveis

Projeto Educadores pela Diversidade

20042005

40 horas

Dados não disponíveis

3.121 formandos

Curso Educação e Relações Étnico-Raciais

2005

120 horas

Dados não disponíveis

240 formandos

Programa A Cor da Cultura(2) – Tiragem 2000

20042006

Dados não disponíveis

4.000 educadores, em 7 UF

3.000 professores capacitados

EducaçãoAfricanidadesBrasil

Período

Fonte: Balanço da ação do MEC para a implementação da Lei n° 10.639/03 (MEC/ SECAD, 2008). Legenda: (1) = MEC/SECAD. Seleção de Projetos 2008. (2) = Programa desenvolvido em parceria com a Fundação Roberto Marinho/Canal Futura.

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Dentre os recursos advindos desses programas, o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Formação de Professores e Relações Étnico-Raciais (NEAB GERA/UFPA) foi contemplado com o edital do UNIAFRO, em 2010, para promover um curso de Especialização em Relações Étnico-Raciais para o Ensino Fundamental. A proposta de formação consistiu em “facultar a professores normalmente infensos às oportunidades de formação continuada a competência necessária para o trato com as questões étnico-raciais” (COELHO, 2014, p. 74).

Subsidiado pelos resultados das pesquisas no ambiente escolar, o NEAB GERA/UFPA, por meio da formação em tela, “pretendeu contribuir para a formação dos docentes em termos de formação continuada, visando à modificação de sua concepção e prática no tocante à educação para as relações étnico-raciais” (COELHO, 2014, p. 75). Nesse sentido, a proposta de formação foi concluída por meio da apresentação de um Projeto de Intervenção Educacional, no qual os alunos-professores articularam os aspectos teóricos discutidos nas disciplinas cursadas com a matéria ou o serviço ao qual estavam inseridos nas escolas nas quais mantinham vinculação, para implementação da Lei nº 10.639/2003. Assim, a partir dessa proposta, foram formuladas estratégias didáticas que se constituíram a partir da “intervenção conscienciosa” (COELHO, 2009, p. 232), a qual podemos apresentá-la como sendo a resultante de uma reflexão prévia, de uma compreensão profunda sobre a temática e do domínio das competências necessárias à transformação daquela compreensão em sequencias didáticas que garantissem a transposição do saber acadêmico, adquirido no curso de Especialização em tela, em saber escolar (COELHO, 2014, p. 75).

Essa pretensão envidou a elaboração de 26 Projetos de Intervenção Educacional, responsáveis pela ampliação do enfoque à temática racial em várias escolas da rede pública de Ensino Fundamental no estado do Pará, conforme arrolamos no Quadro 4:

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Quadro 4 – Projetos de Intervenção Educacional advindos do curso de Especialização em Relações Étnico-Raciais, promovido pelo NEAB GERA/UFPA, em 2010. ORD.

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PROPOSTA

1

O corpo marcado em movimento: práticas corporais dialogando com as relações raciais.

2

Relações étnico-raciais: um “olhar” sobre identidade cultural dos alunos da 4ª série.

3

Valorização da identidade negra na escola do Ensino Fundamental.

4

Valorização da identidade afro-brasileira com alunos do 4º ano do Ensino Fundamental.

5

Importância do samba para a identidade dos atores que compõem o processo de ensino-aprendizagem: uma proposta de intervenção na Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio “Vera Simplício”.

6

Relações raciais para o Ensino Fundamental: o trato pedagógico da identidade negra.

7

Re(fazendo) o saber: ações para a inserção da temática étnicoracial no currículo escolar na E. E. E. F. M. Esmerina Bou-Habib.

8

O apelido enquanto identidade pejorativa a partir do âmbito escolar.

9

Escola Santa Sofia: espaço da inclusão racial negra – Barcarena – Pará.

10

Leituras, narrativas e contos africanos no Ensino Fundamental: práticas de respeito e valorização da cultura africana.

11

As interfaces entre educação e representações: identidade e estética do negro no cotidiano escolar.

12

Histórias do quilombo: resgatar e (re)contar para construir identidades negras.

13

Afrodescendentes em imagens e palavras.

14

A educação como ferramenta de transformação.

15

Práticas de leitura: uma experiência de valorização das relações raciais na escola.

16

Um retrato sem moldura: reconhecendo e valorizando a identidade negra na escola.

17

Focus de diferentes olhares: o uso de vídeo e a produção de fotografias como ferramentas para o reconhecimento e respeito às diferenças étnico-raciais.

ORD.

PROPOSTA

18

Uma proposta como trabalhar a cultura e os valores dos africanos e afrodescendentes nas aulas de Língua Portuguesa da Educação de Jovens e Adultos (EJA).

19

Quem sou eu? Contribuindo para a construção da identidade negra na escola.

20

Discutindo a identidade racial da criança na escola.

21

Africanicidades: o estudo da participação africana na formação cultural brasileira.

22

Educação para a diversidade, respeitando a riqueza das diferenças.

23

O uso das novas tecnologias para o ensino das relações ÉtnicoRaciais no Ensino Fundamental e a Lei 10.639/2003.

24

Relações raciais e Educação Básica: proposta pedagógica para a implementação da Lei nº 10.639/2003.

25

Ações afirmativas na sala de aula: a literatura infantil com temas raciais como instrumento de positivação da identidade negra.

26

Os tambores negros do carimbó na sala de aula. Fonte: Arquivos da coordenação do curso de Especialização em Relações ÉtnicoRaciais para o Ensino Fundamental (NEAB GERA/UFPA, 2010).

Essa experiência e esses produtos corroboram com a percepção acerca dos impactos da formação continuada de professores como sendo uma das ações para o enfrentamento das desigualdades por meio do trato da questão étnico-racial no cotidiano das escolas. Em face do que expomos, a proposta foi replicada em 2012, na formação continuada promovida na Escola de Apicação da UFPA, com intervenção do NEAB GERA/ UFPA. Sobrevieram, então, novas propostas a partir de discussões promovidas nessa ocasião – as quais transcrevemos no Quadro 5.

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Quadro 5 – Projetos de Intervenção Educacional advindos da formação continuada na Escola de Aplicação da UFPA, promovida pelo NEAB GERA/UFPA, em 2012. ORD.

PROPOSTA

DISCIPLINA(S)

Identidades: Quem sou eu? Quem somos nós? Diferenças: Nós somos assim!

Educação Infantil e Ensino Fundamental (séries iniciais).

02

Quem sou eu?

Educação Geral e Artes.

03

Tem grupo africano na formação Ensino Fundamental (séries do Grão-Pará: os bantos. finais).

04

Áfricas.

Ensino Fundamental (séries finais).

05

Cartografia cultural afrobrasileira: uma experiência interdisciplinar no Ensino Médio da EA/UFPA.

Geografia, Literatura, Língua Portuguesa, Física, Química, Biologia História (Ensino Médio).

06

As Áfricas Atlânticas do século XIV ao século XVIII.

Ensino Médio.

01

Fonte: Arquivos do Núcleo GERA – Relatório da Formação Continuada na Escola de Aplicação da UFPA. “A Lei nº 10.639/2003 em perspectiva na Educação Básica” (2012).

Se as pesquisas conduzidas por Coelho dão conta de que “África e Cultura Afro-brasileira permanecem como fatores externos ao currículo” (COELHO; COELHO, 2014, p. 35), as experiências indicando os produtos da intervenção mencionada por Coelho (2009) (cuja importância é propositalmente reiterada no decorrer desse texto) apresentam aspectos a considerar no que tange às ações efetivadas na escola, com vistas a assegurar a efetividade da promoção do princípio constitucional da igualdade (BRASIL, 1988). ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

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Os dados das pesquisas indicam que o encaminhamento desta questão apresentam limitações que precisam ser enfrentadas, ainda que já se constatem nas escolas. As propostas de enfrentamento, mediante a formação continuada de professores, acenam como uma das possibilidades para

que o equacionamento das desigualdades vigentes em nossa sociedade constitua como objeto de superação. As experiências obtidas por meio da formação continuada enquanto uma das ações propulsoras na implementação da Lei nº 10.639/2003 corroboram com as constatações de Müller e Coelho (2014) acerca da “associação quase direta entre os desafios de implementação da Lei nº 10.639/2003 e os procedimentos referentes à formação de professores [aliada a um] consenso de ações” (MÜLLER; COELHO, 2004, p. 54). Nesse panorama, o estabelecimento de parceria entre escola e universidade se apresenta como uma estratégia viabilizadora de subversão das realidades detectadas nas produções acadêmicas, instaurando novos cenários, sejam nas escolas, sejam na Academia. Nas primeiras, consolidam-se práticas em curso ou instauram-se aquelas em que a lei ainda não é implementada ou sequer se constitua como objeto de conhecimento dos agentes que nelas se inserem. Na segunda, fomentam-se novas produções que anunciem estratégias de reversão ao panorama instaurado na sociedade brasileira, cumprindo o “projeto acadêmico” e o “projeto social” (COELHO, 2014, p. 81) – gestados no cerne de grupos de pesquisa que têm atentado para a necessidade de subversão do cenário brasileiro. Os avanços decorrentes das ações de implementação da Lei nº 10.639/2003 a partir da formação continuada se evidenciam mediante reconhecimento de instituições fomentadoras de práticas voltadas para o trato com a questão da diversidade em nossa sociedade.16 16 O Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT)

promove anualmente o Prêmio Educar para a Igualdade Racial, evidenciando práticas escolares que tratem a temática racial. Dentre os premiados na 6ª edição do certame, situa-se uma egressa do curso de Especialização em Ralações Étnico-Raciais para o Ensino Fundamental, promovido pelo NEAB GERA/UFPA. Disponível em: . Acesso em: 20 maio 2015. Outro projeto, advindo de ações de formação continuada, foi premiado pelo Fundo Baobá para Equidade Racial. Disponível em: . Acesso em: 20 maio 2015.

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Para além do reconhecimento, o desdobramento das ações efetivadas na escola, na autoestima de estudantes negros e negras tem sido um elemento de constatação das pesquisas. Precisamos situar, nesses avanços, os desafios que ainda se apresentam em superar o caráter de iniciativas pontuais e individuais dos professores na implementação das leis, adotando tal enfrentamento do ponto de vista institucional, mediante compromisso a ser estabelecido entre todos os agentes que integram a escola e inserção no Projeto Pedagógico. Ainda se almeja um trabalho por meio de um enfrentamento pedagógico “enraizado” – tanto na Formação Inicial quanto na continuada – nas instituições formadoras como nas escolas, porém de modo estrutural, no sentido de Nilma Lino Gomes (2012), isto é, à capacidade de o trabalho desenvolvido na escola na perspectiva da Lei nº 10.639/03 e das suas Diretrizes Curriculares Nacionais se tornar parte do cotidiano escolar, ou seja, da organização, da estrutura, do Projeto PolíticoPedagógico, dos projetos interdisciplinares, da formação continuada e em serviço dos profissionais, independentemente da atuação específica de um(a) professor(a) ou de algum membro da gestão e coordenação pedagógica (GOMES, 2012, p. 27).

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Os distanciamentos, recorrentemente alertados pela autora, para a efetivação “enraizada” dessas práticas na escola requerem divisão de responsabilidades para sua efetivação entre todos os agentes envolvidos no processo. Outra dimensão a ser considerada, não menos relevante, é o parco diálogo entre escola e universidade, que também constitui um dos muitos desafios a permearem as limitações de uma formação continuada desprovida de elementos balizadores – tanto do ponto de vista teórico quanto do ponto de vista prático – de uma nova compreensão no tocante às questões raciais, tal como vem conformando, há muito tempo, a realidade brasileira.

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INSTITUTIONAL GROUNDINGS FOR TRANSFORMATIVE WORK WITH STUDENTS AND IN SCHOOLS Kevin Michael Foster1 Abstract Despite local, state and federal funding for compulsory education, educational opportunity is not evenly distributed in the United States. A range of challenges disproportionately face students of color and the poor and lead to uneven achievement outcomes. This essay uses the example of a specific universitybased institute to show how partnerships between universities, schools and communities can improve the likelihood of academic success among minority and impoverished populations. It further discusses an emergent theory of practice that can guide universitybased action-researchers who would hope to harness the resources of the academy and build partnerships that affect sustainable improvements in education. The article discusses purposefully constructing a seamless harmony between teaching, research and service among university faculty in order to facilitate research that directly and positively impacts local communities, generates knowledge, and facilitates the training and development of graduate students. It also argues that community-engaged work with underserved student and family populations includes both contextual and structural dimensions, and that careful attention to both may be necessary for achieving structural 1 Associate professor with tenure at The University of Texas at Austin. Dr. Foster

is an educational anthropologist dedicated to understanding and accounting for the social, cultural and structural factors affecting students’ educational outcomes. He is also the founding director of ICUSP, the Institute for Community, University and School Partnerships.

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transformations that ensure that all students will be served well by their schools. Keywords: Partnerships. Minority populations. Impoverished.

FUNDAMENTOS INSTITUCIONAIS PARA UM TRABALHO TRANSFORMADOR COM ALUNOS E EM ESCOLAS

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Resumo Apesar de haver financiamento local, estadual e federal para a educação obrigatória, as oportunidades educacionais não são igualitariamente distribuídas nos Estados Unidos. Alunos de etnias e condições econômicas não favorecidas encaram uma gama de desafios desproporcionais, o que os conduz a resultados desiguais em se tratando de suas conquistas. O presente trabalho utiliza o exemplo de um instituto de base universitária específico para mostrar como parcerias entre universidades, escolas e comunidades podem aumentar a probabilidade de sucesso acadêmico entre as minorias e a população de baixa renda. Discute-se, em seguida, uma teoria emergente sobre uma prática que pode guiar pesquisadoresatores de base universitária, que poderiam aproveitar os recursos vindos da academia para construir parcerias que representem melhorias sustentáveis na educação. O artigo discute a construção propositada de uma harmonia contínua entre ensino, pesquisa e serviço entre o corpo docente da universidade, a fim de que seja facilitada a pesquisa que promova um impacto positivo e direto nas comunidades locais, que gere conhecimento, e que facilite o treinamento e o desenvolvimento dos estudantes de graduação. Argumenta-se, também, que o trabalho comunitário com estudantes e famílias desfavorecidas inclui tanto dimensões contextuais quanto estruturais e que

uma atenção cuidadosa em relação a ambos pode ser necessária para que se alcancem transformações estruturais que garantam que todos os estudantes sejam bem atendidos por suas escolas. Palavras-chave: Parcerias. Populações minoritárias. Empobrecidas.

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INSTITUTIONAL GROUNDINGS FOR TRANSFORMATIVE WORK WITH STUDENTS AND IN SCHOOLS I. INTRODUCTION

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Over the last decade, public high school graduation rates among African American students in the United States have been around 51% (Education Week 2010; Greene and Forster 2003). This compares to a similar graduation rate among Hispanics (52%), and a rate of around 72% for whites over the same period of time. At the same time, students whose parents attended college are more likely to go to college themselves, and children from wealthier families are more likely to go to college than children who grow up in economic poverty (Kane 2001). A wide range of factors contributes to the quality of life of children, which in turn impacts their likelihood of realizing academic success. Factors include housing quality, child hunger and nutrition, early identification of vision and aural health needs, access to healthcare, community safety, school safety, teacher quality, family stability and family income. In the United States, students of African descent and other students of color are consistently at greater likelihood of lower qualities of life in these areas than are Anglo students (Kraehe, Foster and Blakes 2010). In short, the U.S. education system includes predictable differences in student quality of life, academic opportunities and academic outcomes across racial and socio-economic lines. If we are to provide true educational opportunity to more than just the narrow elite of the U.S. citizenry, the nation needs innovations in schooling practices (contextual interventions), and changes in the circumstances surrounding minority students (structural transformation) so that they are surrounded with the same levels of support as are more robustly supported students. Partnerships between universities,

schools, communities and others with a stake in students’ academic outcomes provide a catalyst for improvements in students’ circumstances and subsequently in their outcomes. Strategic partnerships can be beneficial for diagnosing vision impairments and learning disabilities, inventorying family and community resources, and assessing the status of other factors that contribute to academic outcomes. Partnerships can also be pivotal for identifying solutions to student challenges and providing students and families with critical services and resources. This essay discusses the theoretical framework for an institute that brings university and schools into partnership in order to serve typically underserved African American, Latino and lower-income students. The Institute for Community, University and School Partnerships (ICUSP), which is based in central Texas and housed at the University of Texas at Austin was founded in 2006. It focuses on: 1) supporting and developing the capacity of schools and of student-serving non-profit organization; 2) directly serving students who are typically underserved in existing education institutions; 3) studying and writing about ICUSP projects in order to extend their impacts beyond local contexts; and 4) training and funding graduate students who will carry on communityengaged, student-serving scholarship in their own careers. The broad goal of the institute is to promote the academic success of all students, with particular attention to the needs and success of African American, Latino and economically impoverished students who are routinely underserved and whose needs too often go unmet in U.S. schools. By focusing on the conceptual framework for the Institute and one set of examples of ICUSP’s work, this essay demonstrates two key aspects of community-engaged scholarship on behalf of youth: first, that it is possible to conceptualize and engage action-oriented intellectual work in a way that brings teaching, research, and service into seamless harmony; and second, that community-engaged work with

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underserved populations includes both contextual and structural dimensions, and that careful attention to both can help maximize the immediate and long-term impacts of the projects. II. UNIVERSITY-SCHOOL PARTNERSHIPS

ICUSP collaboratively constructs and subsequently depends upon effective partnerships between universitybased faculty, staff and graduate students on one hand, and central Texas schools and local non-profit organizations on the other. The guiding principles of ICUSP build upon a history of university-school interactions. Thus, it is useful to briefly discuss the broader history of university-community and university-school partnerships in the United States before addressing the work that is designed to address the needs of underserved populations. This positions ICUSP work as part of a larger ongoing intellectual project that many have engaged over the past one hundred and fifty years. The history of United States higher education includes federal legislation that built state-supported institutions to provide collegiate level education, serve regional constituencies, and address challenges facing the nation and its’ people. This history, along with expanded experimentation and research of examples in practice, can help citizens, organizations, and states more effectively meet individual and societal needs. Federal Policy

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In 1862, the United States Congress passed the Morrill Land Grant Act, which set aside public land to fund state universities that would educate the agricultural and industrial classes of citizens, and also engage research that would directly benefit the regions in which the universities were located. The Hatch Act of 1887 extended the service reach of these state universities by placing stations in rural regions “in order to aid in acquiring and diffusing among the people of the United

States useful and practical information on subjects connected with agriculture, and to promote scientific investigation and experiment respecting the principles and applications of agricultural science.” (U.S. Congress 1887). The SmithLever act of 1914 facilitated university outreach through cooperative extension services that placed university outposts in local communities within given states. The purpose of the services would be to ensure that university research findings in such areas as agricultural productivity, technology, and home and community economics would be available to citizens and made applicable to their everyday lives. Along with laws that promoted university engagement of local communities, there have also been federal dollars allocated towards partnerships to improve critical aspects of the nation’s physical and institutional infrastructures. For example, in the 1950’s, with the creation of the National Science Foundation and the systematic support of teacher professional development, the United States Federal Government supported university involvement in the ongoing training of thousands of schoolteachers in order to improve student math and science outcomes (Foster, et al 2010). In addition to funding basic research, the Federal Government has also funded research grounded partnerships that would address regional and national imperatives. University-based initiatives

Along with Federal initiatives to fund sustainable university-school partnerships, individual researchers and academic institutions have theorized and actualized partnerships to emphasize the means by which needs are identified and solutions collaborative forged. Among the longstanding contributors to the academic literature on this area is John Goodlad, who defined partnership as “deliberatively designed collaborative arrangement between different institutions, working together to advance self-interests and solve common

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problems” (Goodlad 1988:13). His work, and those of others, combined theory and practice, and frequently included the development of university sub-units – centers that operated under the umbrella of a university and brought together universities and communities, and that effectively extended the reach and engagement of the universities in ways consistent with 19th and 20th century federal legislation. More recently, university-based centers, institutes, programs and individual faculty members have built bridges between university research and student efficacy and outcomes. In the U.S. southwest, university-based or affiliated centers the serve under-represented students include the Llano Grande Center for Research and Development in south Texas (Guajardo, Guajardo and Casaperalta 2008), The Dana Center in central Texas, The Social Justice Education Project in Tucson Arizona (Cammarota 2009) and ICUSP. All promote partnerships between universities, schools and communities in order to promote student achievement by directly serving students, developing schools, developing school teachers and identifying and helping secure additional resources to meet student needs. III. ICUSP PHILOSOPHY OF PRACTICE Intersectional Intellectual Action

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ICUSP was founded as an effort of a junior faculty member at The University of Texas at Austin to directly serve school children and local communities while fulfilling his requirements to teach university students and conduct research that would result in academic publications. The model that emerged is a variation of the Venn Diagram (Figure 1). It captures and draws attention to the figurative space where areas of interest and action overlap. In this case, the areas that needed to come together were research, teaching and service – the traditional responsibilities of U.S. academics. Each of

these areas can exist in isolation or can overlap. The concept of working in ICUSP is to seek out, design and engage projects that simultaneously: provide opportunities for teaching and learning; serve local communities; and provide the basis for research that generates new knowledge. Service occurs in the sense that ICUSP projects directly serve students in K-12 (kindergarten through 12th grade) settings. Research occurs when the ICUSP team creates programs within a research context – measuring baselines and outcomes, and tracking participant growth throughout the life of a project. Teaching takes place not just at the K-12 level (which is in this context part of service), but also at the undergraduate and graduate student levels. This occurs as university students participate in the projects on different levels, including as researchers or project leaders. ICUSP team members work to produce positive student outcomes – especially among students who are typically underserved in our education system and who are at the greatest likelihood of being figuratively imprisoned by social reproduction that maintains them in positions of poverty and disempowerment. Teaching Service

Research

Figure 1. Intersectional Intellectual Action. The overlap of the three traditional arenas of academic work creates a nexus where all three can be coherently, simultaneously and fruitfully engaged to the mutually reinforcing maximization of each.

Contextual and Transformational Interventions, Structural Transformation

As ICUSP programs have developed, the ideas of “Contextual Interventions,” “Structural Interventions,” and

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“Structural Transformation” have become descriptive of our efforts. Meanwhile, in spaces where we work – spaces where students of color and others are systematically underserved or mistreated – Structural Transformation has emerged as our ultimate goal. Contextual interventions are actions that respond to and account for circumstances in context and include adjustments to action oriented practice and research such that the work responds in real time to inequities and challenges facing students. Structural interventions are new or alternative programs, policies, or practices that address immediate problems. For an example of contextual and structural interventions, we can look at a teacher’s response to persistent physical hunger among children in her or his classroom. In a situation where several of her students are routinely distracted from learning by hunger and malnutrition, a contextual intervention would be for the teacher to keep nutritious snack food in her or his desk and to give it to students who don’t get enough to eat. The intervention interrupts the structural reality of persistent child hunger within society. The intervention does not, however, alter, or even challenge, prevailing structures or problems. A contextual intervention with a structurally resistant dimension would be for the teacher to allow students to take food from the school cafeteria even if it was against the rules. Sometimes, good food is thrown away at the end of lunch periods and children are not allowed to take food with them. If a teacher breaks rules in order to facilitate a contextual response to help solve an immediate problem, and moreover, implicitly teaches students to value their own health above the rules of the state, they embody and are teaching strategies of resistance to structural oppression. This is a contextual intervention with a resistant dimension. Once again, however, the practice is limited in impact, although the training of students to honor and protect their humanity above the governance of the state is important insurgent action.

An example of a Structural intervention in the hunger example would be a local policy change to allow students to bring food from the cafeteria to their classroom or home. A deeper structural intervention would be a funded program to provide free or reduced cost meals to students who suffer from chronic hunger. Such structural interventions constitute reform, but also fall short of fundamentally altering prevailing conceptions and policies unless they are coordinated and carried out in conjunction with complementary structural interventions. For example, the impact of policy changes will be limited if they are not coupled with efforts to change institutional culture (Kutal, Rich, Hessinger, & Miller 2009) such that the changes are embraced and supported by constituents and leaders instead of resisted or openly opposed. Finally, structural transformation is the product of strategic and accumulated structural interventions and constitutes a fundamental change in the material, procedural and cultural landscape. Just how elusive is structural transformation becomes apparent when we consider the persistence of child hunger – locally, nationally and of course, globally. The transformation is incomplete until the day: 1) that child hunger is anomalous to society; and 2) that when individual instances of child hunger do appear society has quick and ready mechanisms to eliminate them. Figure 2 provides a linear, graphic representation of the spectrum from Contextual Intervention to Structural Transformation. Contextual Interven�on • Tac�cal: Requires Competence & Crea�vity to conceive and enact alterna�ve approaches

Structural Interven�on • Strategic: Same requirements as contextual interven�ons, plus • Strategy & Organiza�on

Structural Transforma�on • Tac�cal and Strategic dimensions: Same requirements as Contextual and Strategic Interven�ons, plus • Ability to elicit or build structural and social support throughout the organiza�on for the new reality

Figure 2. The agency and influence required for desired impact is greater with each type of intervention and is greatest for success at affecting transformation.

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IV. ICUSP PHILOSOPHIES IN PRACTICE

So far this essay has discussed university service and partnerships that have informed the existence of ICUSP as an effort to address challenges facing students. It also has provided emergent philosophies of practice that have guided the programs and practices of the Institute. These critical philosophies of practice were Intersection Intellectual Action, and engaging work in terms of contextual and structural interventions in service to the possibility of structural transformation. This section describes the activities of one set of ICUSP activities in order to show examples of these philosophies of practice. The example is that of the birth and development of COBRA and VOICES, which are ICUSP programs that provide direct service to students and that respond to student needs and interests in the communities that ICUSP serves. COBRA, which stands for Community of Brothers in Revolutionary Alliance, was initiated in response to interactions and dialogue with Black community members and leaders in central Texas. The program’s roots go back to an organic process that started with The African-American Men and Boys Conference, a monthly community meeting spearheaded by a local activist to discuss the plight of Black boys and men in society. The collective effort to engage and support Black male students led to a school-university-community Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-626, set. / dez. 2016

partnership and has spurred a number of student academic 618

and leadership development programs in central Texas Title I

schools2. These programs exemplify the synergic roles different groups can play in promoting Black student success. COBRA. The African-American Men and Boys Conference is community-led, and has been supported by many organizations, including ICUSP. It is held monthly during the school year and deals with various issues affecting the Black community, primarily those of boys and men. The conferences include a keynote speaker, lunch, a vendor fair and workshops. The vendor fair features health and human service providers, employers, university recruiters and others. Workshops cover such topics as conflict resolution, preparing for college, handling peer pressure, and balancing sports and school. Events for adults include opportunities to meet school board members, lessons on communicating with teachers, and conversations on helping children avoid peer pressure. The conferences are free and attended by a wide range of community individuals and institutions. Although they do not solve all of the challenges students face, the regularity and focus of the gatherings enhance shared social capital among students, parents, youth-serving adults and school leaders, as well as cultural capital among parents and students, which may enable more effective navigation within the school setting. Additionally, they help connect people to available resources that can have a positive material impact on students’ preparedness and the quality of life for Black families. A recurrent topic that arose out of The African-American Men and Boys Conference was the inadequate supports for 2 “Title I schools” refers to schools that have high numbers of low-income

families and that are thus eligible for federal financial assistance. “Title I” refers to federal provisions for providing “Financial Assistance To Local Educational Agencies For The Education Of Children Of Low-Income Families” as authorized in the original Elementary and Secondary Education Act (ESEA) of 1965 (Public Law. 89-10, 79  Stat.  27, 20 U.S.C.  ch.70 and periodically reauthorized since. The latest ESEA reauthorization is Public Law 107-110 – An act to close the achievement gap with accountability, flexibility, and choice, so that no child is left behind. This law was signed in January 2002 and is commonly known as No Child Left Behind (NCLB).

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students between each gathering. Additionally, a local school principal was deeply disturbed by the disciplinary referral rates, grades and attendance rates of Black boys on his campus. After continued deliberation at the conferences between the ICUSP director and principal, COBRA was birthed. COBRA is an academic and leadership development program that serves students in high poverty, central Texas high schools. The name was chosen by the students and adult founders in dialogue, as was the meeting format and as were the group’s aspirations. Originally held after school, the program now meets weekly during the school day. The group adopted six “coils,” or foundational principles of action, to ground and guide them: 1) Academic engagement 2) Brothers supporting brothers 3) Inter-group solidarity (e.g. racial, ethnic, gendered) 4) Conflict resolution 5) Critical consciousness 6) Self-definition

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COBRA’s meeting format was established in the second year of the groups’ existence and follows that of a college student group that the boys observed during a fieldtrip to UT. During the visit, they observed a group of predominantly Black male college students in professional dress conducting a meeting that included a time to vent their frustrations, a time to hold one another accountable for their actions since the last meeting, a time to engage their business activities, and a closing. When the high school students returned to their school campus, they suggested that COBRA sessions should follow that format, a request facilitators were happy to oblige. Since then, several of the members of the college student group have built strong relationships with COBRA members

and ICUSP and are now COBRA facilitators, as well as tutors and mentors in local K-12 settings. With this groundwork, COBRA today is in several high schools across central Texas, along with VOICES, an all-female group originated by high school students and enabled and expanded by ICUSP. To the extent that COBRA helps low-income students and students of color develop skills that help them navigate school and that prepares them for college to an extent above and beyond that which is normally provided them, the program facilitates contextual interventions. Examples would include students being taught: how to avoid situations where they might get into trouble; how to seek redress if they feel wronged by peers or teachers; and (in settings where college guidance is inadequate) how to think about and apply to college and financial aid. However, as the program becomes institutionalized, it moves towards structural intervention and has the potential to fuel structural transformation. Structural interventions occur as school communities see value in the programs and offer systematic support for the programs and its practices, and as they seek to expand the programs to more students and to more schools. The structural intervention deepens and moves towards structural transformation as the program practices are understood and replicated by other teachers and school leaders. Replication occurs as individual teachers alter their practices, and as schools develop programs that are based upon the COBRA model VOICES. An example of how the idea of one program can influence practices more broadly is the creation of VOICES. Like COBRA, the story of VOICES highlights the organic process by which ICUSP’s programs take shape and provides a parallel example of contextual interventions that lead to structural intervention and the possibility of structural transformation. The narrative also speaks to the need, desire and capability of young people to take a lead role in the development of youth-centered, transformative initiatives.

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VOICES was initiated in spring 2007 after three young African-American women at a local high school took note of their school’s COBRA chapter. Independent of each other, these three students decided to investigate COBRA by visiting the group’s open session. COBRA’s student-centered space of youth empowerment proved to be just the sort of environment that the three had been seeking. Little time passed before the three women decided to establish a comparable female group on campus. In the process, they encountered difficulties in carving out time and space to build purposeful relationships and networks to support females on their school campus. The three also felt that well-meaning teacher-led programs were disconnected from student interests and undermined student agency. As one of the co-founders stated, “In school in order to start something you have to have an adult. And most of the time adults try to get stuff together, like advisory, and they don’t give us enough credit to be young adults.” The push to establish VOICES occurred just as ICUSP was seeking gender parity among its youth programs. In the spirit of organic partnership, ICUSP responded to the desires of the young women by pairing ICUSP project directors with them as adult facilitators. With ICUSP facilitators providing background support, the young women prepared weekly discussion topics and activities for their eager peers. One of the co-founders told us that, “Y’all just sit back and y’all just have that ‘take it away’ attitude, but y’all also help us out and give us suggestions. . . . You’re like guides for us, but y’all don’t overwhelm us. Y’all don’t take over.” The initial contextual intervention by ICUSP was to work to create space for the young women to enact their vision. The work did not involve a policy shift among school campuses, but rather conversations that lead to one school principal agreeing to give students space and a time to meet during the school day. Since VOICES’ conception, the program has expanded to several high school campuses. Its mission, as elaborated by the group, is to “empower each student member to become

leaders in their daily lives and communities.” The principles, or “beams,” by which the program operates are: 1. Peer empowerment 2. Embracing diversity 3. Academic/college preparation 4. Community service 5. Embodying leadership While VOICES’ co-founders exercised leadership qualities, the group was conceived as a space to cultivate collaborative leadership among all participants. When the founders of the group reflected on their school experiences and family histories, they described a culturally rooted and service-oriented understanding of leadership, which had also been shaped in part by negative experiences that they had come through. As with COBRA, through the growing acceptance of the possibility of students as creators and leaders and the replication of VOICES on additional campuses, contextual interventions are moving towards structural intervention. The structural transformation the students seek is to attend schools that systematically and routinely listen to and respond to student voices and that allow space for students to help author programs and practices that will help them grow in ways that are important to them. Excellence in these programs can be measured in the number of students who go on to post-secondary education (113 out of 119 seniors in our programs from 2007-2010) and by indicators of expanded horizons and possibilities for students, including the numbers who have trod unique pathways that have led them to pursue a college education outside the state. Among the schools to which students have been accepted are The Massachusetts Institute of Technology (Massachusetts), The College of William and Mary (Virginia), Pratt Institute (New York), and Dominican University

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(Illinois). Students hve also gone on to The University of Texas at Austin, Texas A&M University, and several other Texas universities. Even as COBRA and VOICES travel the path from contextual to structural intervention, the philosophy of intersectional intellectual action is also threaded throughout. While high school students who engage the programs develop skills and dispositions for academic success and leadership, they are guided by ICUSP project directors and also participate in research projects designed to understand and further develop effective processes and practices among students in schools. For the ICUSP director, his graduate teaching is woven throughout ICUSP’s work. Each ICUSP project director is also a student pursuing a doctoral degree. Through their participation as project directors helping guide COBRA or VOICES they develop critical skills in community engaged scholarship, student empowerment, program design and program evaluation. What they are taught in traditional graduate seminars are embodied in practice through their participation in ICUSP. At the same time, the ICUSP director, the ICUSP project directors (and in some cases, the middle and high school students served by ICUSP programs) conduct action research that (we hope) generates new insights and understandings and leads to publications that impact fields of student learning. In this way, COBRA and VOICES – like ICUSP programs generally, bring teaching, research and community engagement into a seamless harmony that is grounded in community, shared experience and shared knowledge. Challenges and opportunities

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As ICUSP promotes intellectual work that marries teaching, research and service and that operate on contextual and structural levels, the Institute faces challenges that could hinder the work and that must be accounted for if initiatives

are to prove successful. These same challenges, however, are also spaces of opportunity. Successfully addressing the challenges constitute contextual intervention that can lead to structural transformation. Among the challenges that ICUSP faces are: university policies (including tenure, graduate student compensation, and the logistics of travelling to and from campus); publications (including choosing where to publish what content); and community relationships (including building on the symbolic capital of the university, while overcoming it’s history of complicity with the marginalization of minority communities). Such challenges, however, are to be expected. With a solid intellectual grounding the Institute, and other like it, are best positioned to engage actions that concretely benefit traditionally marginalized students while simultaneously advancing knowledge in the same areas. REFERENCES CITED J. Cammarota (2009) The Generational Battle For Curriculum: Figuring Race and Culture on the Border, Transforming Anthropology, Vol. 17(2):117–130. Education Week (2010) Graduation by the numbers. http://www. edweek.org/ew/articles/2010/06/10/34execsum.h29.html K. Foster, K. Bergin, A. McKenna, D. Millard, L. Perez, J. Prival, D. Rainey, 1 H. Sevian, 1 E. VanderPutten, J. Hamos (2010) Partnerships for STEM Education,” Science 329:906-907. J. Goodlad (1994) J. Goodlad, Educational Renewal: Better Teachers, Better Schools (Jossey-Bass, San Francisco. J. Greene and G. Forster (2003) Public High School Graduation and College Readiness Rates in the United States. New York: Manhattan Institute for Policy Research. URL: http://www. manhattan-institute.org/html/ewp_03.htm M. Guajardo, F. Guajardo, and E. Casaperalta, ‘‘Transformative Education: Chronicling a Pedagogy for Social Change,’’ Anthropology and Education Quarterly 39, no. 1 (2008): 3–22.

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T. Kane (2001) College-Going and Inequality: A Literature Review. New York: Russell Sage. http://www.russellsage.org/programs/ main/inequality/050516.322671/ Kraehe, Amelia, Foster, Kevin Michael and Blakes, Tifani (2010) ‘Through the Perfect Storm: Contextual Responses, Structural Solutions, and the Challenges of Black Education’, Souls, 12:3, 232-257. C. Kutal, F. Rich, S. Hessinger, H. Miller, in Increasing the Competitive Edge in Math and Science, J. Kettlewell and R. Henry, Eds. (Rowman and Littlefi eld, Lanham, MD, 2009), pp. 121–134. United States Congress. Hatch Act of 1887 (ch. 314, 24 Stat. 440, enacted 1887-03-02, 7 U.S.C. § 361a et seq.).

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CURRÍCULO NA EDUCAÇÃO INFANTIL E AS CIÊNCIAS DA NATUREZA: (RE)EDUCANDO PARA A DIVERSIDADE ÉTNICO‑RACIAL Lucimar Rosa Dias1 Maria Clareth Gonçalves Reis2 Resumo Neste artigo, analisamos as propostas curriculares da educação infantil dos municípios do Rio de Janeiro-RJ e de Curitiba-PR, e os conhecimentos relacionados às ciências da natureza nelas previstos. Para essa reflexão, tomamos como referência teórica Gomes e Jesus (2013), Dias (2011), Kramer (2007), Silva Junior (2011), Reis (2010), Bento (2011), Silva (2009) e Tiriba (2010). Além dos(as) teórico(as), consideramos a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil (2009). Constatamos que, mesmo com mais de 10 anos da alteração da LDB e cinco anos da revisão das DCNEI, as propostas pedagógicas da educação infantil dessas capitais brasileiras não contemplam as proposições legais que recomendam a oferta de aprendizagem 1 Professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) no curso de Pedagogia.

Atua no Programa de Pós-Graduação em Educação do Setor de Educação na Linha de Políticas Educacionais e coordena o Núcleo de Estudos Afrobrasileiros (NEAB) da UFPR. Doutora em Educação na Universidade de São Paulo (USP) e mestre na Universidade de Mato Grosso do Sul (UFMS). 2 Graduada em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Montes Claros (FAFIL), mestre em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente é professora associada da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) e coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI/UENF).

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relativa às culturas afro-brasileira e africana. Com isso, apontamos a necessidade urgente de atualização desses documentos, ao mesmo tempo em que indicamos práticas pedagógicas a serem realizadas de imediato – a fim de garantir às crianças da educação infantil o direito ao conhecimento dessa área, tomando-a sob uma perspectiva plural e que contemple a história e cultura afro-brasileira e indígena. Dessa forma, as determinações legais serão cumpridas. Palavras-chave: Currículo. Educação Infantil. Ciências da natureza. Diversidade étnico-racial. Práticas pedagógicas.

CURRICULUM IN EARLY CHILDHOOD EDUCATION AND NATURE SCIENCES: (RE)EDUCATING FOR ETHNIC-RACIAL DIVERSITY

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Abstract In this article we analyze the curriculum propositions of early childhood education in the cities of Rio de Janeiro – RJ and Curitiba – PR, and the skills related to the sciences of nature that have been stipulated on them. For this reflection, we take as theoretical references Gomes and Jesus (2013), Dias (2011), Kramer (2007), Silva Jr. (2011), Reis (2010), Bento (2011), Silva (2009) and Tiriba (2010). Besides the theorists, the Law of Guidelines and Bases of Education [Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB] and the National Curriculum Guidelines for Early Childhood Education [Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil – DCNEI] (2009) have also been considered. We observed that even with more than 10 years of the alteration in the LDB and five years of the review of the DCNEI, the educational propositions of early childhood education in these Brazilian cities do not include the legal propositions which recommend

the offering of learning related to African-Brazilian and African cultures. We point out the urgent need to update these documents at the same time that we indicate pedagogical practices to be carried out immediately in order to ensure to children of early childhood education the right to learn contents that belong to this area, taking it in a plural perspective and in a way that contemplates African-Brazilian and Brazilian Indian history and culture, thus fulfilling the legal requirements. Keywords: Curriculum; Early childhood education; Natural sciences; Ethnic and racial diversity; Pedagogical practices.

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CURRÍCULO NA EDUCAÇÃO INFANTIL E AS CIÊNCIAS DA NATUREZA: (RE)EDUCANDO PARA A DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL INTRODUÇÃO

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Apresentamos neste artigo uma reflexão sobre as práticas pedagógicas desenvolvidas com as crianças da educação infantil acerca de conhecimentos relacionados à natureza e o diálogo possível e necessário que essa área pode estabelecer com as questões pertinentes à história e cultura afro-brasileira e indígena. Ele está dividido em três partes: na primeira, localizamos a educação infantil no contexto geral; em seguida, expomos um panorama sobre os temas tratados pelas pesquisas educacionais na interlocução com as relações étnico-raciais; por fim, apresentamos possibilidades de práticas pedagógicas que respondam a essa articulação partindo de duas propostas curriculares. Para essa reflexão, tomamos como referência teórica Gomes e Jesus (2013) nos aspectos que tangem às questões da diversidade e do currículo; Dias (2011), Kramer (2007), Silva Junior (2011), Reis (2010), Bento (2011) na problematização da construção da igualdade racial no âmbito da educação infantil; consideramos que também foram importantes para a reflexão desse tema os estudos de Silva (2009) que, mesmo sem ter dirigido suas reflexões para a educação infantil, tratou das relações raciais e das ciências; por fim, nos orientamos pelas produções Tiriba (2010), ao discorrermos sobre os princípios pelos quais tratamos das relações étnico-raciais, da educação infantil e os estudos da natureza. Para a discussão do tema proposto, além dos teóricos supracitados, consideramos as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) – nas quais está previsto, no art. 8º, o inciso em que as propostas pedagógicas das instituições dessa etapa devem assegurar “o reconhecimento,

a valorização, o respeito e a interação das crianças com as histórias e as culturas africanas, afro-brasileiras, bem como o combate ao racismo e à discriminação” (BRASIL, 2010, p.23). Nosso caminho metodológico foi a análise documental das propostas pedagógicas de dois municípios brasileiros: Rio de Janeiro-RJ e Curitiba-PR. Nelas buscamos identificar os conteúdos referentes às ciências e à natureza e a partir do que se apresentava como proposta curricular. Tecemos nossas considerações sobre as possibilidades de incluir no trabalho com as crianças a perspectiva da diversidade étnico-racial. Tivemos como orientadoras da análise e das proposições as indicações legais e as produções teóricas da área, pretendendo evidenciarmos a necessidade de, nas experiências realizadas com as crianças da educação infantil no campo das ciências da natureza, contemplar aspectos relativos aos saberes afrobrasileiros e indígenas. Sustentaremos, por meio de indicações propositivas, as múltiplas possibilidades de concretizar tal perspectiva, com foco na questão étnico-racial, sem deixar de ressaltar que é muito importante pensar sobre as questões indígenas. 1 CONTEXTO GERAL DA EDUCAÇÃO INFANTIL

Para uma maior compreensão da proposta deste artigo, consideramos importante apresentar aspectos que marcam o contexto geral da educação infantil no Brasil, destacando algumas mudanças ocorridas nos últimos anos. No dia 04 de abril de 2013, foi sancionada a Lei nº 12.796/13, a qual altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação nº 9.394/96 (LDB). Esta nova lei traz no seu 4º artigo a obrigatoriedade de o Estado oferecer a educação básica gratuita dos 4 aos 17 anos de idade, ampliando a oferta do ensino gratuito e obrigatório para a educação infantil e o ensino médio. No art. 6º, é colocado como dever dos familiares matricularem seus filhos na educação básica a partir dos 4 anos de idade.

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A lei diz ainda que a educação infantil, primeira etapa da educação básica, contempla crianças até 5 anos de idade, sendo oferecida em creches para aquelas que têm até 3 anos e em pré-escolas para crianças de 4 e 5 anos de idade. A partir das mudanças mencionadas acima, ressaltamos que a educação de criança de até 5 anos de idade é um direito constitucionalmente assegurado e deve contemplar os aspectos físico, psicológico e social, sendo esta modalidade de ensino complementar a educação advinda da família e da comunidade nas quais a criança está inserida. São grandes os desafios a serem supridos a partir das mudanças previstas na Lei nº 12.796/2013: dentre eles, a oferta de educação inclusiva e o atendimento educacional especializado já no início da educação infantil e a consideração da diversidade étnico-racial também em toda a educação básica. Conforme ainda destaca Salomão Ximenes em entrevista concedida à Organização Não Governamental (ONG) Ação Educativa, no dia 04 de outubro de 2013, Esses são aspectos qualitativos essenciais, pois não é possível conceber um sistema inclusivo e que reconheça e respeite às diversidades mantendo-se frágil o ponto de entrada das crianças no sistema, que também é geralmente a primeira experiência significativa de atuação das crianças no espaço público, neste caso, a creche ou a pré-escola.

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Diante da citação acima, consideramos a educação infantil como um espaço profícuo para a inserção de questões as quais nos fazem refletir sobre a própria sociedade em que vivemos. A formação da criança para a compreensão do mundo, que envolve aspectos da cultura, da natureza e da sociedade, deve partir da mais tenra idade, ou seja, desde os primeiros anos de vida. Os ensinamentos sobre o conhecimento e, especialmente, o respeito à diversidade precisam estar presentes tanto nos planejamentos das creches quanto das pré-escolas. Foi por isso que optamos, neste artigo, pela discussão acerca

da diversidade étnico-racial e educação infantil articulada às ciências da natureza. Percebemos não apenas por meio da nossa práxis, mas também pelos estudos desenvolvidos sobre o tema, o quanto é necessário tratarmos desse assunto. Acreditamos que tal iniciativa poderá contribuir com a ampliação dos conhecimentos de profissionais que atuam na educação infantil, além de propiciar às crianças dessa faixa etária uma educação mais enriquecedora dos valores de solidariedade e respeito para com o outro. Sabemos que as creches e as instituições que oferecem a pré-escola recebem crianças das mais distintas origens, tanto de classe quanto étnico-racial. Isso nos remete a um dos termos tratado neste texto, ou seja, da diversidade, compreendida por nós como expressões e particularidades culturais, na relação entre o “eu” e o “outro” – diferenças e singularidades de cada grupo social (REIS, 2010). Ao tratar de diversidade, é necessário que consideremos as complexidades sociais, culturais e políticas na compreensão das infâncias, extrapolando a ideia universal daquelas concebidas a partir da classe média. Kramer (2007), ao discutir estudos produzidos sobre a educação infantil no Brasil, traz questionamentos importantes a esse respeito, tais como: de que infância e crianças falamos? Para a autora, são infâncias e crianças distintas, pois vivemos em uma sociedade desigual e multicultural (REIS, 2010). Isso nos faz pensar nas crianças que estão na educação infantil: elas possuem origens, classes sociais, cores/raças, gênero etc. diversos. Compreender essas diferenças é imprescindível na construção dos nossos currículos escolares, já que estas crianças recebidas em instituições educacionais trazem consigo histórias vividas em suas famílias, entre amigos e comunidade, sendo marcados, portanto, por tais singularidades. Diante da complexidade de cada um dos aspectos citados (classe, raça etc.), priorizaremos aqueles relacionados ao pertencimento étnico-racial articulados aos estudos das ciências da natureza. Acreditamos na necessidade da inclusão

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dessa temática nos currículos da educação infantil por compreendermos que ela pode colaborar com a construção e a ampliação da educação inclusiva, garantido às crianças de até cinco anos não apenas o acesso às instituições de educação infantil, mas também a uma educação que lhes possibilitem um desenvolvimento pleno e integral. Para melhor explicitar esta afirmação, exporemos alguns marcos legais que sustentam a defesa da importância da presença de conhecimentos das ciências da natureza na educação infantil estarem articulados às culturas afrobrasileiras e africanas. Acreditamos que esta opção nos ajude a compreender a diversidade étnico-racial sob nova perspectiva, desmitificando declarações baseadas em preconceitos ou ignorância. 2 A EDUCAÇÃO INFANTIL E AS RELAÇÕES ÉTNICORACIAIS: BREVE RETROSPECTIVA DOS MARCOS LEGAIS

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Sabemos que as alterações na LDB nº 9394/96 (por meio da Lei nº 10.639/03 e Lei nº 11.645/08, nos artigos 26-A e 79B) provocaram muitas reflexões sobre como a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira, africana e dos povos indígenas seria apropriada pela educação. Outro desafio a partir da alteração foi superar o texto reducionista que não incluiu a educação infantil: “nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira” (BRASIL, 1996, grifos nossos). Reforça-se a exclusão desta etapa quando verificamos, ainda no texto da mesma lei, no parágrafo 2º, as indicações das áreas de conhecimento: “os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras” (BRASIL, 1996, grifos nossos).

Não nos surpreende que a educação infantil e suas especificidades tenham ficado de fora dessas proposições legais. Naquele momento histórico, as bandeiras do movimento negro, de fato, não incluíam a educação infantil. Esse aspecto é perfeitamente compreensível, visto que a luta por políticas educacionais voltava-se para a inclusão da população negra no ensino fundamental e, em seguida, no ensino superior. Em nossa opinião, um dos motivos que explicam esse fato se deve ao próprio caráter que a educação infantil teve até a aprovação da LDB nº 9394/96, ou seja, prioritariamente essa etapa foi entendida como um lugar de cuidados, e não educativo. Portanto, o movimento negro também como parte da sociedade brasileira compartilhou tal perspectiva. Por isso, ao reivindicar uma revisão curricular, centrou-se nas outras etapas da educação básica, já amplamente compreendidas como lócus de disputa de concepções e de conteúdos apreendidos. Pois bem, quando a educação infantil adquire o status de primeira etapa da educação básica, passa a ser objeto de reflexão de setores do movimento negro o tipo de prática educacional desenvolvida. Além disso, o avanço dos estudos sobre infância, a perspectiva vinda com a LDB do educar e cuidar e também os resultados de estudos apontando que já na educação infantil as crianças enfrentam práticas discriminatórias – como foi o caso das pesquisas desenvolvidas por Cavalleiro (2000) e Rosemberg (1999), que constataram que o pertencimento racial influenciava as práticas da educação infantil, sendo que as crianças negras eram penalizadas de diferentes maneiras. Em outra perspectiva, mas na mesma época, Dias (1997) investiga práticas pedagógicas que demonstram a importância de tratar do tema da diversidade étnico-racial nessa etapa. Outros estudos vêm crescendo, trazendo abordagens variadas desde a preocupação com a formação de professores e professoras (SARAIVA, 2009) até suas representações sobre a criança negra (TELES, 2010). Além disso, temos pesquisas sobre os modos como as próprias crianças percebem a dinâmica das relações raciais nessa etapa da educação (TRINIDAD,

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2011) e as políticas desenvolvidas por secretarias de educação que atendam às indicações legais (CARVALHO, 2013), ampliando a compreensão sobre aspectos fundamentais no processo educacional de crianças da educação infantil e as relações étnico-raciais. Essa tematização acadêmica e também dos ativistas acaba por repercutir nas produções das prescrições legais que passam a fazer referência a essa etapa: por exemplo, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DCNERER) do Conselho Nacional de Educação busca “corrigir” a “falha” que deixou de fora a educação infantil. A primeira referência aparece no texto das Diretrizes após a apresentação dos seus princípios e desdobramentos para “[...] a mudança de mentalidade, de maneiras de pensar e agir dos indivíduos em particular, assim como das instituições e de suas tradições culturais.” (BRASIL, 2004, p. 20). Nesta série de recomendações, destaca-se a educação infantil, especialmente quando trata da formação de professores. Segundo as Diretrizes, os sistemas devem garantir a inclusão de discussão da questão racial como parte integrante da matriz curricular, tanto dos cursos de licenciatura para Educação Infantil, os anos iniciais e finais da Educação Fundamental, Educação Média, Educação de Jovens e Adultos, como de processos de formação continuada de professores, inclusive de docentes no Ensino Superior (BRASIL, 2004, p. 23, grifos nossos).

Foram balizadoras as reflexões do jurista Hédio Silva Junior para alargar a incidência da lei e garantir o espaço da educação infantil na aplicação da LDB. A argumentação de Silva Junior dizia o seguinte: Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-656, set. / dez. 2016

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Note-se que os arts. 26-A e 79-B integram as aludidas alterações da Lei 10.639, sendo que os demais artigos transcritos já faziam parte

da antiga redação, mas devem ser, por óbvio, interpretados em conjunto. Vale notar que o art. 26-A situa-se, do ângulo topográfico, no capítulo da educação básica, pelo que abarca a educação infantil, além do ensino fundamental e médio – expressamente referidos, seja do setor público ou privado (SILVA JUNIOR, 2008, n.p.).

As reflexões do jurista e as referências nas Diretrizes foram de suma importância para que o “lapso” do texto da alteração no artigo 26-A da LDB, indicando sua aplicação somente no ensino fundamental e médio, fosse relegado a um segundo plano. Outro aspecto fundamental que contribuiu para a inclusão da educação infantil nas reivindicações da implementação da referida lei foi a articulação entre pesquisadores, pesquisadoras e ativistas que atuavam no movimento negro – assim como pessoas do campo da educação infantil, os quais propuseram que as políticas educacionais contemplassem essa etapa. A partir da compreensão de que a educação infantil como parte da educação básica também fazia jus às mudanças da LDB, foi dado o primeiro salto para se reconhecê-la como espaço legítimo para a inclusão da história e cultura afrobrasileira e africana. No entanto, o marco legal que retira qualquer dúvida sobre a pertinência do tratamento desse tema nessa etapa ocorre após aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para a educação infantil, dado seu caráter mandatário, isto é, são normas obrigatórias para a Educação Básica que orientam o planejamento curricular das escolas e sistemas de ensino, fixadas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE). As DCNs têm origem na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), de 1996, que assinala ser incumbência da União ‘estabelecer, em colaboração com os Estados, Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o

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ensino médio, que nortearão os currículos e os seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar a formação básica comum’ (MENEZES; SANTOS, 2002, n.p.).

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Elas consideram ainda a questão da autonomia e da proposta pedagógica, estimulando-as a organizarem seus currículos, considerando os contextos (locais, regionais etc.) nos quais estão inseridas. As autoras supracitadas explicitam ainda que “as DCNs se diferem dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Enquanto as DCNs são leis, dando as metas e objetivos a serem buscados em cada curso, os PCNs são apenas referências curriculares, não leis” (MENEZES; SANTOS, 2002, n.p.). Acrescentemos a essa explicação que o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) também não tem caráter obrigatório, apenas se constitui como indicativo para a educação se organizar. No entanto, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) são obrigatórias e, de acordo com o art. 8º, inciso IX, as propostas pedagógicas da educação infantil devem contemplar “o reconhecimento, a valorização, o respeito e a interação das crianças com as histórias e as culturas africanas, afro-brasileiras, bem como o combate ao racismo e à discriminação” (BRASIL, 2009, p. 2), suprimindo assim qualquer dúvida sobre a obrigatoriedade de a educação infantil considerar tal temática ao organizar sua proposta. No entanto, se não restam dúvidas sobre essa necessidade, a partir dela as questões que se apresentam são em como as experiências desenvolvidas na educação infantil podem contemplar esses conhecimentos. Para colaborar na construção das possíveis respostas a essa indagação, é necessário investigarmos se o previsto nas propostas pedagógicas contribui de fato com a constituição da identidade das crianças de modo positivo – pois sabemos que as escolhas curriculares possuem uma dimensão cultural, política e científica.

Temos que indagar se tais opções apresentam às crianças as culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas sem reproduzir preconceitos e estereótipos. E mais: podemos nos perguntar se, ao tratarmos das informações relativas à natureza, estamos considerando os saberes desses povos de modo que as crianças passem a considerá-los como possuidores de conhecimentos científicos que fazem parte dos saberes historicamente acumulados pela humanidade. E, se isso não está acontecendo, como poderemos dar início a essas mudanças curriculares, cumprindo uma determinação legal e, sobretudo, reconhecendo esse vazio na educação brasileira e mais especificamente na educação infantil? Procuraremos responder, ainda que parcialmente, a essas questões dialogando com documentos nacionais que orientam as práticas na educação infantil, como o RCNEI e as próprias DCNEI. Utilizaremos ainda as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DCNERER), a Proposta Curricular do município de Curitiba (Diretrizes Curriculares para a Educação Municipal de Curitiba, de 2006) e a Proposta Curricular do Rio de Janeiro (Orientações Curriculares do Rio de Janeiro, de 2010). 3 O CURRÍCULO, A NATUREZA E A PERSPECTIVA DAS CULTURAS AFRO-BRASILEIRAS E AFRICANAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL 3.1. Dialogando com propostas curriculares

O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI), publicado em 1998, é formado por uma coleção de três volumes: o primeiro trata de questões históricas da creche e da pré-escola, situa e contextualiza a educação infantil no Brasil; já o segundo aborda aspectos referentes à formação da identidade e da autonomia das crianças; o volume três apresenta informações sobre a natureza e a sociedade a

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partir do tema “conhecimento de mundo”, formado por seis documentos básicos: movimento, música, artes visuais, linguagem oral e escrita, natureza e sociedade e matemática. Devido à escolha da discussão proposta para este artigo, daremos prioridade aos aspectos tratados no volume 3, especificamente no item Natureza e Sociedade. Os documentos especificados acima trazem a importância da organização de jogos e brincadeiras, bem como experimentos, problemas que possam ser examinados possibilitando a ampliação de conhecimentos relacionados à natureza, às tradições e à cultura. A articulação do ensino de ciências da natureza às questões sociais é fundamental para as crianças desta faixa etária. É a partir dos primeiros anos de vida, fase inicial de sua formação, que a criança começa a conhecer o mundo que a cerca, a estabelecer relações com outras pessoas, a criar vínculos a partir de sua inserção no espaço escolar. Por essa fase de extrema importância e marcada por aprendizagens fundamentais para as crianças, trabalharemos as propostas curriculares já anunciadas, analisando-as e, conforme identificarmos os conhecimentos relativos à natureza, buscaremos proposições de práticas em relação à diversidade étnico-racial. Claro que não temos a intenção de estabelecer prescrições fixas, pois sabemos que o currículo da educação infantil é dinâmico. Como as DCNEI indicam, precisamos articulá-las com as experiências e os saberes das crianças, considerando o patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico de cada região, assim como do Brasil e do mundo. Não nos cabe limitar as possibilidades de aprendizado das crianças nesta faixa etária. De acordo com as DCNEI, as práticas pedagógicas das creches e pré-escolas devem garantir experiências que

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promovam a interação, o cuidado, a preservação e o conhecimento da biodiversidade e da sustentabilidade da vida na Terra, assim como o não desperdício dos recursos naturais; incentivem a curiosidade, a exploração, o

encantamento, o questionamento, a indagação e o conhecimento das crianças em relação ao mundo físico e social, ao tempo e à natureza (BRASIL, 2009, p. 26).

A partir dessas indicações legais, nos perguntamos: como as Diretrizes Curriculares dos municípios incorporam essas perspectivas e, ao mesmo tempo, como é possível entrelaçar essas experiências com conhecimentos oriundos da história e da cultura afro-brasileira e africana? Para responder às nossas perguntas, buscamos, como já anunciado, diretrizes de duas capitais (Curitiba e Rio de Janeiro), pois essas são as cidades nas quais nós, autoras deste artigo, atuamos como professoras universitárias e formadoras de futuros(as) profissionais da educação que poderão atuar nessa etapa da educação básica. Ao analisarmos os documentos, constatamos que as diretrizes de Curitiba datam de 2006, ou seja, três anos antes da revisão das DCNEI; já as do Rio de Janeiro são de um ano depois. Esse fato nos instigou mais ainda a identificar se tais documentos respondiam às demandas das DCNEI relativas ao “reconhecimento, a valorização, o respeito e a interação das crianças com as histórias e as culturas africanas, afrobrasileiras, bem como o combate ao racismo e à discriminação” (BRASIL, 2009, p. 21) ou se simplesmente ignoraram essa recomendação legal. Nossa análise será em torno da discussão da cultura afro-brasileira e africana. Embora saibamos que seja muito importante abordar práticas que contemplem aspectos relativos aos povos indígenas, não iremos fazê-lo nesse momento por dois motivos: a primeira razão se refere aos limites do artigo; a segunda porque ambas temos pesquisas mais densas no campo das relações étnico-raciais. Nosso foco centrou-se nos temas relativos à natureza. Para isso, lemos integralmente os documentos e selecionamos todas as passagens que faziam referências a esse campo do

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conhecimento na perspectiva que as diretrizes lhes dão. Ou seja, os conteúdos que indicavam “[...] conhecimento das crianças em relação ao mundo físico e social, ao tempo e à natureza” (BRASIL, 2009, p. 26) e, à medida que os encontrávamos, fomos apresentando possibilidades de que estes contemplassem uma dimensão da cultura afro-brasileira. 3.2 O que dizem os documentos sobre o trabalho com a natureza

O primeiro documento que analisamos foram as Orientações Curriculares do Rio de Janeiro, por ser o datado de 2010. Nesse material, a questão da Natureza aparece intitulada como Ciências Naturais e Sociais e indica que O trabalho com natureza e sociedade busca, prioritariamente, a exploração do mundo pelas crianças, do próprio corpo, do espaço a que pertencem, do reconhecimento e conhecimento das relações sociais de convivência (casa/rua/ escola/comunidade próxima), das pessoas e dos objetos que estão nele, suas características e usos; dos elementos que compõem seu bairro e cidade, da natureza, plantas, animais, a água, a terra. É um trabalho que se propõe favorecer descobertas das transformações das coisas pela ação da natureza e pelo trabalho do homem (SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DO RIO DE JANEIRO, 2010, p. 24).

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O documento propõe que os profissionais da educação infantil realizem práticas com as crianças, nas quais a aprendizagem sobre a natureza esteja articulada ao campo social, seja sustentada uma perspectiva sobre esse campo do conhecimento, qual seja, de que não existe uma ciência desarticulada do seu contexto social, de culturas que são produzidas e apropriadas por diferentes grupos. Além disso, inclui, por exemplo, o estudo do corpo, dos objetos que são

constituídos nas relações sociais, da relação com as plantas, os animais, os recursos naturais e com a própria terra. Ler tais recomendações abre-nos um leque imenso de possibilidades para incluir a história e cultura afro-brasileira nessas práticas, sem que fazê-lo signifique um trabalho extra ao(à) professor(a). De modo algum contemplar essas experiências é alargar os horizontes em relação às indicações que já estão presentes no currículo da educação infantil. Para sermos mais específicas, vamos tomar como exemplo um dos objetivos gerais e uma das habilidades3 recomendados no documento para esse campo: Objetivo geral: promover situações para a observação de mudanças e transformações, e discussão sobre comparações entre elementos naturais, objetos, pessoas etc.; refletir sobre a intrínseca relação entre o homem e a natureza. Habilidade: comparar características e singularidades das pessoas, objetos/ acontecimentos e fenômenos (SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DO RIO DE JANEIRO, 2010, p. 34, grifos nossos).

Mesmo que não exista uma recomendação direta para o trabalho com as culturas afro-brasileiras e africanas, os objetivos e a habilidade apresentados podem e devem nos levar a pensar práticas que também deem conta desta dimensão. Neste caso, o que seria possível propor? Com crianças da pré-escola pode-se, por exemplo, levar imagens que destaquem a vida das pessoas em situações ambientais distintas para que elas reconheçam as diferenças que se apresentam. Nestas imagens, poderíamos privilegiar uma cidade do sertão do Nordeste e uma da Região Sul. Nelas se apresentariam pessoas de diferentes matizes de pele, de cor de cabelo, de modos de vestir e seria uma oportunidade para ir 3 Estamos utilizando as nomenclaturas que se apresentam nas propostas

pedagógicas, e não necessariamente consideramos o seu uso o mais apropriado.

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destacando as diferenças, de maneira que as crianças aprendam a não hierarquizar as pessoas a partir dessas marcas. Também poderia ser utilizada a mesma perspectiva para trabalhar objetos. O estudo dos tambores é uma ótima forma de promover situações de observação entre os elementos naturais e suas transformações. Investigar como são construídos, do que são feitos e os seus usos criam situações de inestimável aprendizagem para as crianças e estabelece os eixos necessários com a cultura afro-brasileira, uma vez que há manifestações culturais em várias regiões do Brasil de origem africana que têm o tambor como parte importante. Com relação ao segundo objetivo (o qual prevê que se devem levar às crianças uma reflexão sobre a relação do ser humano com a natureza), podemos, por meio de uma pesquisa na internet, apresentar às crianças documentários, filmes e vídeos que tragam esses temas, mostrando-lhes que existem muitas maneiras de se relacionar com a terra e a água com água, muitos modos de plantar e de colher. É uma excelente oportunidade de aproximá-las de realidades diferentes das suas. Além de levá-las a conhecer os povos das florestas, das águas, ribeirinhos e quilombolas ou de crianças de metrópoles. Pode ser apresentada às crianças a herança africana e indígena na relação que os brasileiros têm com as plantas medicinais. Ainda é muito comum o uso de receitas de chás para a cura de pequenas moléstias, sendo ainda cotidiana nas comunidades quilombolas do Paraná, por exemplo, conforme consta no livro intitulado Experiências de alfabetização de jovens, adultos e idosos nos quilombos, no qual apresenta tipos de ervas e para que servem: “[...] arruda: bom para o ‘ar’; bálsamo: cicatrização; carqueja: para emagrecer; casca de quina: diarréia; cipó sumo e milome: gripe e; erva cidreira e marcelinha: dor de barriga” (SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO DO PARANÁ, 2010, p. 66). As crianças poderão não somente conhecer tais práticas, mas experimentálas por meio de atividades propostas pelas professoras e professores, como a preparação de um chá de hortelã, por

exemplo, na qual poderão explorar também o sabor, a textura, as cores etc. 3.3 Continuando a conversa: em foco as Diretrizes de Curitiba/PR

Tendo em vista o exercício de pensarmos propostas de trabalho relacionando-as às questões étnico-raciais e aos conteúdos das ciências da natureza e tomando como ponto de partida duas propostas concretas, daremos prosseguimento a essas reflexões com base nas Diretrizes Curriculares para a Educação Municipal de Curitiba (2006). Para o documento em questão, as experiências oferecidas às crianças no campo das ciências da natureza são tratadas no capítulo intitulado “Relações Sociais e Naturais”. Como verificamos na Proposta Curricular do Rio de Janeiro (2010), essa área, ao ser pensada para a educação infantil, não aparece descolada das relações sociais, pois conforme questiona Tiriba (2010): Numa situação de emergência planetária, não basta que as crianças aprendam os princípios da democracia, da cidadania, do respeito aos direitos e às diferenças entre nós, seres humanos. Também é nosso papel ensiná-las a cuidar da Terra. Mas como ensinar a cuidar numa sociedade que submete os indivíduos, os povos e a natureza aos interesses do mercado, mobilizando as energias sociais para a produção e a acumulação? (TIRIBA, 2010, p. 2).

Sim, não temos como ensinar às crianças relações mais harmônicas com a natureza se ao lado disso não tratarmos da interação social entre os sujeitos e vice-versa. Por isso, concebemos que seja extremamente pertinente trazer à tona, quando trabalhamos com os conhecimentos da natureza, aqueles que são construídos pelos diferentes povos, especialmente pelas populações negras e indígenas. Essa

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correlação entre o Social e o Natural é reconhecida na proposta de Curitiba quando ressalta que: Além de indicar novas conquistas a serem alcançadas pelas crianças num processo contínuo, os objetivos orientam a organização do trabalho pedagógico na instituição, explicitando a sua intencionalidade diante das funções indissociáveis de educar e cuidar. Na Educação Infantil, essas funções constituem bases na formação humana, passando pela Identidade, que é construída nas Relações Sociais e Naturais, permeada pela constituição de Linguagens e de construção do Pensamento Lógico-Matemático, entendendo-se que essas áreas estão imbricadas numa influência mútua e complementar no processo de formação humana (SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE CURITIBA, 2006, p. 52, grifos nossos).

Precisamos nos perguntar, no entanto, como o tratamento de conteúdos sobre a história e cultura afrobrasileira e indígenas se traduzem a partir dessa perspectiva. Para fazermos o exercício propositivo acerca dessa inclusão, buscamos identificar na proposta de Curitiba objetivos que dialoguem diretamente com a temática e, a partir deles, indicarmos ações para contemplar os conteúdos pertinentes. Na Proposta Curricular de Curitiba (2006, p. 63; 64), os itens “2.1 e 2.2 Relações Sociais e Naturais” indicam alguns objetivos para o trabalho de 0 a 5 anos. Vamos a eles: – Vivenciar atitudes de colaboração, solidariedade e respeito, identificando aos poucos diferenças em seu grupo (0 a 3 anos). Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-656, set. / dez. 2016

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– Identificar sua família como um grupo social, aprendendo aos poucos que faz parte de outros grupos (0 a 3 anos).

– Vivenciar atitudes de colaboração, solidariedade, desenvolvendo aos poucos tolerância e respeito pelo outro e suas diferenças (4 a 5 anos). – Reconhecer a existência de diferentes grupos sociais, identificando a quais pertence (4 a 5 anos).

A partir desses objetivos, que possuem um caráter geral, podemos desenvolver várias atividades que dialogam com a história e cultura afro-brasileira e africana: por exemplo, a identificação de diferenças entre o grupo no qual a criança está inserida pode ser trabalhada por meio de uma sequência didática que almeje estimulá-la a apreciar a diversidade presente entre elas. As crianças adoram brincar de imitar os adultos. Por isso, propor uma brincadeira de salão de beleza talvez seja uma boa ideia para trabalhar com elas as diferenças entre grupo, intencionando que elas percebam de modo positivo as distintas texturas dos cabelos. Elas podem ser chamadas a tocarem nos cabelos uma das outras e também a pentearem seus próprios cabelos e vice-versa. É necessário disponibilizar materiais adequados para os vários tipos de cabelo, ou seja, pentes e escovas próprios para cabelos crespos, por exemplo, devem estar presentes – assim como enfeites, presilhas, laços, chapéus, bonés, cremes, gel etc., para que a brincadeira não se restrinja apenas às meninas. A atividade deve ser repetida diversas vezes e a cada vez reforçar os aspectos que se pretende trabalhar, acrescentando novas informações: por exemplo, levar imagens de distintos penteados mostrando a origem de muitos que vemos no Brasil. Escolher um tipo de cabelo e os modos diferentes que as pessoas usam para penteá-los também é uma forma de apresentar às crianças a diversidade humana – consequentemente, a relação entre o cultural e o natural e como as pessoas se modificam ao longo da vida.

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Os(as) professores(as) poderão utilizar livros de literatura que possibilitem a ampliação dos conhecimentos acerca dos cabelos crespos, trazendo textos, desenhos, fotografias etc. Citamos o livro Cabelos de Axé – Identidade e resistência (LODY, 2004), no qual o autor apresenta uma admirável iconografia, com imagens, sobre a criação dos penteados como verdadeiras esculturas, constituídas ao longo do tempo, representando beleza e resistência. Exibe a arte de trançar cabelos crespos como uma identidade cultural entre africanos e afro-brasileiros. Os livros de literatura infantil O cabelo de Lelê (BELÉM, 2012) e As tranças de Bintou (DIOUF, 2010) também poderão ampliar o leque de possibilidades de se trabalhar a construção da identidade com crianças da educação infantil, dando destaque às diferenças entre os grupos sociais, atendendo aos objetivos de se trabalhar relações sociais e naturais. Para Tiriba (2010), precisamos construir uma unidade na abordagem dessa área. Segundo a autora, “o desafio está no fato de que essa construção coloque num mesmo patamar de importância duas dimensões tradicionalmente antagonizadas: a natural e a cultural” (TIRIBA, 2010, p. 5). Concordando com a autora, acreditamos que é possível, com as crianças, explorar os motivos biológicos responsáveis pelo tom de pele das pessoas, sugerindo projetos de pesquisa sobre o que seja a melanina. Embora pareça um tema muito complexo, acreditamos que se respeitando as experiências das crianças e suas indagações acerca do tema seria um trabalho não só adequado, como recomendado. Existe uma curiosidade infantil sobre os motivos pelos quais os seres humanos possuem cores de pele distintas. Além das diferenças físicas, a área e os objetivos comportam também considerações sobre os aspectos culturais. Nesse campo, a riqueza para trabalhar com a cultura afrobrasileira é imensa. O professor e a professora precisam atentar para a cultura na qual está inserida a instituição. Há certamente muitas opções locais que poderão enriquecer a percepção das

crianças sobre seu próprio grupo de convivência e os grupos dos outros: como se divertem, quais são as suas festas, em que elas são distintas das suas etc. É importante investigar associações e organizações que trabalhem com músicas, artesanatos, dentre outras modalidades culturais. Assim como modos de comercializar e cultivar produtos alimentícios são importantes fontes de conhecimentos do outro, eles não podem ficar de fora de um planejamento que se propõe a dialogar com esses conhecimentos. Essas experiências sobre conhecer o outro devem estar articuladas nos seus vários aspectos, e não se limitar a esse outro imediatamente próximo de mim. Também precisamos olhar para o outro que está distante do meu território e reconhecê-lo como um ser humano que divide comigo a presença na Terra. As culturas afro-brasileiras e indígenas têm muito a nos ensinar sobre isso, especialmente no que diz respeito aos modos como lidam com a terra, a fauna e a flora. O objetivo posto na Proposta de Curitiba para que as crianças possam viver atitudes de colaboração e solidariedade para desenvolver o respeito em relação ao outro e suas diferenças é uma porta aberta para que as crianças conheçam culturas quilombolas, ribeirinhas, aldeias indígenas, comunidades rurais, seja in loco – o que seria ideal –, seja por meio de imagens e documentários disponíveis nas redes de comunicação que as instituições já têm acesso. Precisamos romper com a mesmice dos programas tidos como infantis que têm sido oferecidos para as crianças. Elas merecem ter acesso a novas linguagens, e não ficarem submetidas aos mesmos programas anos após anos. Pequenos trechos de documentários que tragam outros lugares e outros povos certamente atrairão a atenção das crianças e as levarão ao levantamento de hipótese sobre como e porque as pessoas vivem daquele determinado modo. Observar a paisagem, os lugares, as diversas soluções que os povos encontram para produzir a vida é levar a criança a se perceber como parte da

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natureza e da humanidade que não está além de si. Como diz Tiriba (2010), Diante de uma cultura que silencia a unidade e valoriza a dicotomia, afirmamos, desde a primeira infância, a importância da Educação Ambiental enquanto processo que religa ser humano e natureza, razão e emoção, corpo e mente, conhecimento e vida. Afirmamos a necessidade de uma educação infantil ambiental fundada na ética do cuidado, respeitadora da diversidade de culturas e da biodiversidade. Educação Ambiental que é política (TIRIBA, 2010, p. 2).

Os valores civilizatórios afro-brasileiros que, de acordo com Trindade (2005), são “[...] inscritos na nossa memória, no nosso modo de ser, na nossa música, na nossa literatura, na nossa ciência, arquitetura, gastronomia, religião, na nossa pele, no nosso coração” (TRINDADE, 2005, p. 30) são ricas fontes para a constituição de experiências na educação infantil e promovem essa interconexão entre a cultura e a natureza. Além disso, pode ajudar bastante na compreensão da educação ambiental na perspectiva que Tiriba (2010) trabalha, pois muitos dos costumes africanos, afro-brasileiros e indígenas não estabeleceram dicotomias entre corpo e terra.

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Estamos cientes de que o apresentado são apenas possibilidades, dentre tantas outras que certamente serão construídas por professores e professoras ao pensarem a diversidade étnico-racial em todos os âmbitos, e que compreende o ensino das ciências – como vem sendo defendido por Tiriba (2010), a partir da perspectiva de que a criança não está olhando de fora para a natureza, mas ela é da natureza – que, por sua vez, é composta por diferentes pessoas, sendo essa a grande riqueza da vida.

4 NOSSAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DO TEMA...

A partir das Orientações Curriculares do Rio de Janeiro (2010) e das Diretrizes Curriculares para a Educação Municipal de Curitiba (2006), tentamos compreender como questões que envolvem natureza e sociedade estão sendo tratadas nos respectivos documentos, tendo como parâmetro as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (2009). Procuramos conhecer os objetivos que permeiam a temática, tentando apresentar sugestões de atividades que poderão contribuir para que a discussão acerca do assunto se intensifique no cotidiano das instituições que oferecem a educação infantil. Percebemos que há um caminho vasto de possibilidades para entrelaçar elementos do mundo físico às questões sociais com ênfase na cultura afro-brasileira e africana, assim como nas culturas indígenas, pouco abordadas aqui, mas não ignoradas. Ao fazer tal exercício, acreditamos que as crianças de 4 e 5 anos são capazes de compreender aspectos da natureza e da sociedade, inclusive apresentando explicações e dúvidas mais elaboradas aos fenômenos do cotidiano. Isso é identificado nas diversas questões que elas apresentam cotidianamente, como: por que a minha cor é diferente da cor do meu colega? Assim, acreditamos na importância de intensificar as atividades de rotina, apresentando situações que possibilitem explorações e investigações referentes ao tema, já que estas são fundamentais para ampliar o conhecimento do mundo físico e social. Constatamos que, mesmo com mais de 10 anos da alteração da LDB e cinco anos da revisão das DCNEI, as propostas pedagógicas da educação infantil dessas capitais brasileiras não contemplam as proposições legais que recomendam a oferta de aprendizagem relativa às culturas afro-brasileira e africana. Com isso, apontamos a necessidade urgente de atualização desses documentos.

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No entanto, procuramos também, durante a análise dos documentos do Rio de Janeiro e de Curitiba, mostrar que é possível trabalhar a temática na educação infantil articulando conhecimentos do mundo físico ao mundo social. Para isso, indicamos práticas pedagógicas a serem realizadas de imediato, a fim de garantir às crianças da educação infantil o direito ao conhecimento dessa área tomando-a sob uma perspectiva plural e que contemple a história e a cultura afro-brasileira e indígena cumprindo, assim, as determinações legais. Embora haja uma legislação que aponte a obrigatoriedade da inserção das questões étnico-raciais nos estabelecimentos de ensino, inclusive aqueles que oferecem a educação infantil, ainda há muito a se conquistar para que esta intenção se torne realmente efetiva. REFERÊNCIAS BELÉM, V. O cabelo de Lelê. 2. ed. São Paulo: IBEP, 2012. BENTO, M. A. S. A identidade racial em crianças pequenas. In: ______. (org.). Educação infantil, igualdade racial e diversidade: aspectos políticos, jurídicos, conceituais. São Paulo: CEERT, 2011. BRASIL. Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afrobrasileira e africana. Brasília, outubro 2004. ______. Presidência da República. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: . Brasília, 1996. ______. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes curriculares nacionais para a educação infantil. Brasília: MEC/SEB, 2009. Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-656, set. / dez. 2016

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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS PARA A LEI Nº 10.639/2003: A CRIAÇÃO DE NOVA ABORDAGEM DE FORMAÇÃO NA PERSPECTIVA DAS AFRICANIDADES Sandra Haydée Petit Resumo A partir de nossa experiência de formação de professores para atuação em quilombos, passamos a criar uma nova abordagem de ensino e pesquisa de intervenção na perspectiva das africanidades e que denominamos de Pretagogia. O presente artigo apresenta inicialmente uma breve discussão fundamentando a necessidade de abordagem de ensino e pesquisa condizente com os propósitos da Lei nº 10.639/2003 e que busque seu embasamento teórico-metodológico nas africanidades recriadas no Brasil e no continente americano em geral. Em seguida, focamos os resultados de algumas estratégias de ensino e procedimentos de pesquisa de intervenção que vêm contribuindo para a formação de professoras(es) nos Institutos de Ensino Superior na perspectiva da referida lei. Palavras-chave: Pesquisa de intervenção. Africanidades. Formação de professoras(es). Lei nº 10.639/2003. Práticas pedagógicas.

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EDUCATIONAL PRACTICES FOR LAW 10,639/2003: THE CREATION OF A NEW QUALIFICATION APPROACH ON THE PERSPECTIVE OF THE AFRICANITIES Abstract From our teacher training experience to work in kilombos, we created a new approach to teaching and research-intervention from the perspective of africanities, something we called black-pedagogy. This article first presents a brief discussion basing the need for a teaching and research approach compatible with the purposes of the Law 10,639/2003, and that pursues its theoretical and methodological basis in africanities recreated in Brazil and in the American continent in general. Subsequently, we focus on the results of some teaching strategies and researchintervention procedures that are contributing to the training of teachers in the Graduation Institutes under the perspective of the mentioned law. Keywords: Research-intervention. Africanities. Teacher training. Law 10,639/2003. Pedagogical practices.

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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS PARA A LEI Nº 10.639/2003: A CRIAÇÃO DE NOVA ABORDAGEM DE FORMAÇÃO NA PERSPECTIVA DAS AFRICANIDADES PALAVRAS INTRODUTÓRIAS

Tratamos, no presente trabalho, a construção em curso da Pretagogia, enquanto referencial teórico-metodológico que pretende potencializar as influências africanas, afro-brasileiras e afrodiaspóricas na nossa educação, transformando-as em contribuições didático-pedagógicas e curriculares. Antes de abordar a Pretagogia, trazemos à memória as conquistas que contextualizam o surgimento e importância da Lei nº 10.639/03, que institui a obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas, e que motivou os NEABs (Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros) a produzirem subsídios para a sua implementação. Em seguida, fornecemos exemplos e breve discussão sobre formas de pesquisa de intervenção que a Pretagogia propicia e o que pode resultar em termos de práticas de produção didática facilitadoras de apropriação do pertencimento afro. BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO

Em 9 de janeiro de 2003, a Lei nº 10.639 alterou a Lei de Diretrizes e Bases (LDB nº 9.394/96) nos seus artigos 26 e 79, tornando obrigatória a inclusão no currículo oficial de ensino as temáticas “História e Cultura Afro-brasileira”. O texto da lei é incisivo e claro quanto aos objetivos da mudança. Os parágrafos explicitam: § 1º – O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e

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o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil; § 2º – Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.

A lei também estabelece que o calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como “Dia Nacional da Consciência Negra”. Também se constitui como marco nas leis educacionais a aprovação unânime em 10/3/2004, pelo Conselho Nacional da Educação, das “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico Raciais”, sob coordenação da professora Petronilha Beatriz Gonçalves da Silva (2004). A Lei nº 10.639/2003 será seguida em 2008 pela Lei nº 11.645, a qual acrescenta a obrigatoriedade do ensino da história e cultura indígena nas escolas.

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Podemos dizer que ambas as leis fazem parte das políticas educacionais de integração, atendendo às reivindicações originadas nas lutas dos diversos movimentos sociais étnicos. No caso da afrodescendência, são resultados da mobilização dos movimentos negros (desde o período escravagista, com as diversas insurreições): a luta abolicionista, os movimentos quilombolas, as múltiplas formas de resistência cultural dos afrodescendentes, a atuação dos diversos grupos de feministas negras. Todos esses movimentos ganharam maior notoriedade pública a partir da década de 1980, com a articulação com outros movimentos sociais que foram levados a transversalizar a questão negra a partir da insistente luta dos movimentos e de seus mediadores (RIBEIRO, 2014). Desde então, se constituiu uma área de educação afroreferenciada, notadamente a partir do final do século XX.

Foram muitas as experiências pedagógicas preocupadas com o combate ao racismo e a promoção de outro conteúdo e metodologias, tais como os movimentos de Educação Popular Afrobrasileira, o projeto Irê Ayó (MACHADO, 2013) e a educação pluricultural africano-brasileira Oba Biyi (SANTOS; LUZ, 2007). Podemos acrescentar a isso o grande avanço nos subsídios criados, com a revisão dos livros didáticos, a formação e material do programa A Cor da Cultura e a multiplicação de livros infantojuvenis que retratam personagens negros e o mundo das africanidades de modo positivado, como as obras de Kiusam Oliveira, Heloisa Pires Lima, Joel Rufino, Rogério Andrade e Edimilson Pereira. A questão étnico-racial ultrapassa o âmbito estrito do rechaço ao racismo e à discriminação racial, a partir do marco histórico da Constituição Federal de 1988, que torna relevante a intervenção na educação. Nesse contexto, o artigo 210 reconheceu o direito à educação indígena diferenciada, bem como o princípio da autonomia. Tal ação permitiu o reconhecimento das escolas indígenas diferenciadas criadas nas aldeias, o Magistério Indígena Diferenciado em nível médio e logo também em nível superior. Os índios conseguiram seu próprio Referencial Curricular Nacional da Educação Indígena, afinal não bastava assegurar o direito à terra: era necessário garantir o direito à educação e à cultura. No campo dos avanços voltados para a população negra, a Lei nº 10.639/03 foi um marco histórico de suma importância como política de reparação, valorização e afirmação, promovendo transformações muito significativas no âmbito educacional em treze anos de sua promulgação. Nessa política de integração, são seguidos os direitos dos quilombolas, que têm sua ênfase educacional nas Diretrizes Nacionais para a Educação Quilombola, Resolução nº 8, de 20 de novembro de 2012, bem como, no âmbito das universidades, a Lei das Cotas nº 12.711/12, bastante atacada pelos setores mais conservadores e reacionários da Educação por favorecer um aumento significativo da proporção de

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negras(os) nas universidades públicas, atingindo inclusive os cursos elitizados. O REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO PRETAGOGIA E SEUS PRINCÍPIOS

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Mesmo com esse quadro de avanços importantes, se pensarmos nas mentalidades preconceituosas forjadas em mais de 500 anos de racismo virulento, notamos que são muito recentes para a nação essas conquistas. Essa constatação tem levado a nos ocupar em grande parte com a formação de professoras(es), pelo papel central que essa categoria profissional ocupa no repasse de valores para a vida. Assim, nossos(as) pesquisadores(as) têm atuado tanto no ensino básico com os docentes em serviço, como na formação inicial universitária. O nosso grupo de pesquisa e intervenção, o NACE, para além de preencher as lacunas das formações escolares e universitárias, tem se destacado em trabalhar concepções diferenciadas afroreferenciadas inovadoras. Consideramos o corpo todo fonte e produtor de conhecimento, e não apenas o cérebro, envolvendo os cinco sentidos (visão, paladar, audição, tato e olfato). Desse modo, os docentes em serviço que participam das atividades do NACE enquanto formandos, assim como os estudantes universitários, têm tido a oportunidade de experimentar, pelo próprio corpo, abordagens teóricas que se inspiram na filosofia africana. O termo filosofia abrange aqui não apenas o pensamento de acadêmicos especialistas, e sim também fontes e saberes perpassados de oralidade, o que significa lidar com diversas linguagens da literatura oral, notadamente os ensinamentos milenares que nos são repassados em mitos, contos, provérbios e simbologias adinkras (ideogramas tradicionais da cultura acã em Gana). Aproveitamos muito esses diversos suportes de literatura oral ultrapassando a comum concepção eurocêntrica que a filosofia se constrói essencialmente a partir da escrita alfabética.

Se na própria Europa a linguagem escrita só começou a ser divulgada com o advento da imprensa no século XV até ter preponderância no século XX, como considerar a filosofia estritamente atrelada à escrita alfabética greco-romana? Seria uma forma de negar as mais variadas filosofias milenares existentes no planeta em diversas categorias e classes de gente, como as múltiplas tradições africanas, asiáticas e ameríndias. Ora, essas filosofias são baseadas em complexos sistemas que não segmentam os conhecimentos, pois interligam sabedoria, espiritualidade e ciência, tais como o Ifá iorubano, o I-Ching chinês (ambos oráculos) e a Ayurveda indiana. Como afirma Hampâté Bâ (1982): A tradição oral é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos. Pode parecer caótica àqueles que não lhe descortinam o segredo e desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas. Dentro da tradição oral, na verdade, o espiritual e o material não estão dissociados. Ao passar do esotérico para o exotérico, a tradição oral consegue colocarse ao alcance dos homens, falarlhes de acordo com o entendimento humano, revelarse de acordo com as aptidões humanas. Ela é ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história, divertimento e recreação, uma vez que todo pormenor sempre nos permite remontar à Unidade primordial (BÂ, 1982, p. 183).

Reforça Oliveira (2006, p. 117): “Na visão de mundo africana tudo está em tudo, isto é, tudo se complementa. [...] A integração possibilita a conjugação das diferenças. [...] O que há são possibilidades diferenciadas de arranjos sociais, culturais, etc.”. Oliveira (2006) dá como exemplo a forma como essa cosmovisão considera a doença e o meio ambiente: a doença está ligada à saúde, não somente do corpo, mas a desequilíbrios

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sociais, políticos, econômicos e culturais. Está relacionado principalmente à dimensão espiritual, daí a importância de cuidar da espiritualidade, garantindo as devidas oferendas e agradecimentos para, em troca, receber saúde. O meio ambiente se interliga necessariamente à doença/saúde, pois este afeta não somente o corpo material, mas também a vida espiritual. Assim, a ecologia não é uma questão restrita ao ambiente natural: O problema ecológico atinge todas as esferas da vida humana e de seu mundo [...]. Ou seja, a esfera da ecologia toca transversalmente todas as outras esferas, e como elas estão interligadas, seus efeitos se comunicam, seja positiva ou negativamente. É importante ressaltar que quando falamos em integração não é possível falar de uma espécie de elevação de um elemento como o mais importante. [...] Tudo é importante, na medida em que tudo está interligado com o todo (OLIVEIRA, 2006, p. 118).

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A integração envolve necessariamente lidar com a diversidade: “A integração supõe uma abertura, uma flexibilidade, uma vez que seu modo operacional é dinâmico e não estático” (OLIVEIRA, 2006, p. 118). Podemos notar isso no modus operandi, tanto do africano como do afrodiaspórico: tratam-se de povos que funcionam pela adaptabilidade, flexibilidade e multiplicidade. A aceitação da diferença é intrínseca à cosmovisão africana porque ela é inclusiva. É por isso que o outro é bem-vindo e bem tratado, o que gera um sentido de hospitalidade. Considera-se que sempre há espaço para todos, mais um, não é problema, pelo contrário, o outro é desejado: “[...] percebemos que para o africano o mais importante é estabelecer contato com o outro e que é nesta troca que se aprende a lidar com as diferenças que são a base para se exercer a complementaridade” (BERNAT, 2013, p. 31). Dessa forma, o diálogo com o outro instaura

mais uma vez uma adaptabilidade, um convívio, uma troca. A homogeneidade não é o tom, e sim a convivência com o diferente: Em um sistema integrado não é a homogeneidade que dá a tônica da organização social, mas a heterogeneidade. Percebe-se assim, que o distinto é contemplado; o diferente é desejado e não apenas aceito. A diversidade é mãe da flexibilidade. É neste sentido que podemos dizer que a diversidade possui uma grande capacidade de adaptação e de re-significação, características facilmente identificadas nas religiões de matriz africana (OLIVEIRA, 2006, p. 119).

Denominamos de pretagogia a abordagem teóricometodológica que parte de referências das filosofias que atravessam as tradições africanas e os estudos embasados em Bâ (1982), Munanga (2009), Sodré (1988; 2012), Cunha (2007), Oliveira (2006; 2007), Silva (2013), Cruz (2011), Meijer (2012), Videira (2010), dentre outros, para propor uma pedagogia que atualiza seus princípios nas culturas afrobrasileiras e afrodiaspóricas em geral a partir dos seguintes fundamentos: 1) o autorreconhecimento afrodescendente; 2) a tradição oral; 3) a apropriação dos valores das culturas de matriz africana; 4) a circularidade; 5) a religiosidade de matriz africana entrelaçada nos saberes e conhecimentos; 6) o reconhecimento da sacralidade; 7) o corpo como produtor espiritual, produtor de saberes; 8) a noção de território como espaço-tempo socialmente construído; 9) o reconhecimento e entendimento do lugar social atribuído ao negro. A pretagogia prioriza a experiência de si e de outros(as) no mundo por meio do autorreconhecimento e dos valores das culturas africanas, articulando-os à transversalidade e à transposição didática. Como nas tradições africanas, o corpo é o principal vetor do conhecimento, incorporando natureza e mundo espiritual de forma integrada.

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Então percebemos que necessitávamos também de um modo de aproximação transversal das temáticas das africanidades (MUNANGA, 1984; SILVA, 2003). Para tanto, era primeiro indispensável identificar e afirmar a conexão que nós, afrodiaspóricas(os), temos com o continente africano – algo que o racismo secular institucionalizado ofusca, deprecia e mantém em um apagamento histórico. Dessa forma, notamos que para professoras(es) a descoberta e a afirmação de seu pertencimento afro se constituía um imenso desafio, por vezes uma barreira aparentemente instransponível, perpassado de medos e receios. Essa atitude se manifestava no distanciamento e na negação nas falas, com frequente uso da terceira pessoa do plural, ao se tratar de pessoas e elementos africanos ou afrodescendentes: “por que eles lá são...”, “porque eles sofrem preconceito”, “eles têm suas tradições”. Como trazer para si as africanidades? Como gerar essa apropriação de si mesmo? Consideramos que o caminho inicia na relação autobiográfica com a africanidade, pelo que Luz (1998) chama de porteira de dentro. Abrir a porteira de dentro, em um conceito da tradição africana, significa conhecer sua história, situando-se em uma linhagem biológica e/ou simbólica/ espiritual e possui grande importância. Assim, o(a) sábio(a) africano(a), na figura do griot ou griote, ressalta sempre esse plano do existir, que une passado, presente e futuro. Bâ (2003) ressalta que, segundo a tradição africana, toda pessoa só se apresenta ao mundo a partir da história de suas linhagens materna e paterna. Incorporar esse ensinamento nos leva a buscar conhecer de onde viemos, quem eram nossos antepassados e suas histórias. E mesmo para nós, afrodiaspóricos, nem sempre bem inteirados dessa história, se torna importante realizar a busca das histórias africanas que nos envolvem e marcam nosso pertencimento, seja ele biológico ou não, já que se trata fundamentalmente de relação de ancestralidade cultural, algo que todos nós possuímos.

Diz Bernat (2013), a propósito do que aprendeu com o griot Sotigui Kouyaté, sobre a importância de partir de si ao criar uma obra de teatro: Uma das coisas que mais impressionou os atores que participaram dos estágios com Sotigui foi o incentivo constante da parte dele para que cada um, antes de tudo, levasse em consideração as suas raízes, tradições, história familiar, ou seja, a compreensão de que não está fora de nós o início de qualquer jornada, de qualquer trabalho, não só como artistas, mas como homens e mulheres também (BERNAT, 2013, p. 192).

A partir da sistematização dos estudos e intervenções do NACE, e fundamentalmente das minhas próprias experiências e análises, levantei 30 temáticas possíveis de identificação das africanidades nas nossas vidas, que não pretendem ser exaustivas das influências africanas na brasilidade, mas que reúnem, a meu ver, um escopo relevante de atravessamentos afro no nosso sistema cultural. Chamei tais elementos de marcadores das africanidades, isto é, marcas daquilo que nos conecta, desde membros da nossa linhagem, práticas religiosas e espirituais, artísticas, de saúde, culinárias, arquiteturas, presentes no cotidiano e na memória familiar e coletiva de todos os brasileiros, independentemente de sua cor de pele. Eis os marcadores, tais como descrevemos recentemente em artigo escrito em coautoria com Maria Kellynia Farias Alves (ALVES; PETIT, 2015): 1- História do meu nome 2- Histórias da minha linhagem, inclusive agregados 3- Mitos / lendas / o ato de contar / valorização da contação 4- Histórias do meu lugar de pertencimento / comunidade / territorialidades e desterritorialidades

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negras (movimentos de deslocamentos geográficos, corporais e simbólicos) 5- Sabores da minha infância – pratos, modos de comer e valor da comida 6- Pessoas referências da minha família e da minha comunidade e pessoas negras referências do mundo, significativas para mim 7- Simbologias da circularidade / tempos cíclicos e da natureza 8- Práticas e valores de iniciação / ritos de transmissão e ensino 9- Mestras(es) negras(os) – da cultura negra 10- Escrituras negras 11- Curas / práticas de saúde 12- Cheiros “negros” significativos 13- Festas da minha infância e festas de hoje 14- Lugares míticos e territórios afromarcados (investidos pela negritude) 15- Músicas / cantos / toques / ritmos / estilos afro 16- Danças afro 17- Cabelos afro (encaracolados / cacheados / crespo) – práticas corporais de afirmação e negação dos traços negros diacríticos 18- Representações da África / relações com a África 19- Negritude – força e resistência 20- Artesanatos 21- Outras tecnologias 22- Valores de família / filosofias 23- Racismos (perpetrados e sofridos) 24- Formas de conviver / laços de solidariedade / relações comunitárias 25- Relação com a natureza

26- Religiosidades pretas 27- Relação com as mais velhas e os mais velhos / senhoridade (respeito aos mais experientes) 28- Vocabulário afro / formas de falar 29- Relação com o chão (vivências e simbologias) 30- Outras práticas corporais (brincadeiras tradicionais, jogos e outras) Montamos várias técnicas e diversos dispositivos que nos permitissem suscitar ou fortalecer o pertencimento afro, o qual conceituamos como o autorreconhecimento e a valorização da sua conexão com o legado africano, presente em maior ou menor grau no nosso corpo-memória, queiramos ou não, pela inegável influência africana na brasilidade, ao mesmo título que as culturas indígenas e europeias. Veremos a seguir um exemplo extraído de pesquisa intervenção defendida na Academia, com abordagem pretagógica e utilizando-se dos marcadores das africanidades como um dos motes. Exemplo de trabalho voltado ao fortalecimento do pertencimento afro realizado com os marcadores das africanidades e as estações de aprendizagem

Na escola do quilombo da Serra do Juá (CaucaiaCeará), Cláudia Oliveira da Silva (2015) estudou, sob a minha orientação enquanto professora universitária, o tema “pertencimento afroquilombola”. Fez isso a partir dos marcadores das africanidades identificados: primeiro na história de vida da pesquisadora, mediante a narrativa de sua relação com as africanidades desde a infância, pois ela é filha desse território quilombola; em seguida, foram identificados marcadores apontados pela comunidade em atividades anteriores em uma investigação sobre o ser negro quilombola, retratado a partir de um personagem montado coletivamente:

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o Pai José. O grupo-alvo foi intergeracional e composto de professoras, alunos, pai de alunos e comunidade em geral – em torno de 15 pessoas, em média, em vários ciclos de oficinas. Em outro momento foram realizadas oficinas sociopoéticas (SILVA, 2014), abordagem que envolve o corpo todo na produção de dados. Naquela abordagem, o objeto cabaça foi usado para o grupo interagir em círculo e suscitar suas associações com as africanidades. Em uma oficina ulterior, os copesquisadores conseguiram trazer suas lembranças e associações imaginárias a partir de uma narrativa produzida com os resultados da vivência da cabaça, fazendo-os percorrer de olhos vendados um caminho onde encontravam lugares marcados pelas africanidades. Graça a essa técnica sociopoética intitulada de lugares geomíticos, foram surgindo espaços da ou na natureza como poço, cachoeira e mato. Nesses lugares significativos ao grupo, eles associaram lendas e vivências de forte interação com a natureza – mas também formas de convivência comunitária. Da Silva (2015), então, agrupou os marcadores e os retrabalhou distribuindo-os, ao que denominamos estações de aprendizagem, no caso cantinhos com materiais relativos a diferentes subtemas do tema gerador pertencimento afroquilombola. Foram organizadas cinco estações: A primeira delas teve como assuntos o congraçamento e a culinária do subtema geral Relações Comunitárias. Ela possuía, dentre seus materiais instrutivos, objetos (pilão de madeira, panela de barro, livros, mapas, imagens de pessoas negras) e alimentos (melancia, gengibre, açafrão, banana, inhame, ervas frescas, rapadura, castanha de caju). Na estação, foram apresentadas receitas de moqueca de banana e inhame, dois elementos típicos daquela comunidade. Também foi sugerida a leitura de trechos do livro Sabores da África, da autora ganense Dorinda Hafner (2000). Nele, a autora trata dos significados do ato de comer, contextualizando culturalmente o valor desse ato como forma de congraçamento. O livro Ewé Orisá (BARROS, 2007) foi aproveitado para trazer as

propriedades terapêuticas e usos litúrgicos desses vegetais nos terreiros de candomblé de filiação Kêtu-nagô (etnia iorubana – Nigéria). Toda estação exige que os participantes se apropriem dos materiais colocados, para depois realizarem uma tarefa, a qual chamamos de produto didático – um artefato ou obra artística que o grupo elabora permitindo promover uma transversalidade de conhecimentos (literatura oral com suas diversas linguagens, história, geografia, ciências, tecnologias), sempre dentro da cosmovisão africana. Nessa estação, foram realizadas as receitas de moqueca de banana e de cozimento do inhame, para depois ser pilado de modo tradicional. Sabemos que, além dos valores trabalhados de congraçamento e espiritualidade, essa culinária também permite relacionar com aspectos de ciências como nutrição, física e química. Na segunda estação, a pesquisadora tratou das relações de solidariedade, que contou com o apoio pedagógico de ideogramas adinkras relativos a esse valor, bem como a partir do livro infantojuvenil Os Sete Novelos, de Angela Shelf, que traz uma história ganense de sete irmãos que ficaram órfãos de seu pai e tinham uma grande herança, mas que devido à desunião não conseguiam evoluir, até que perceberam que poderiam juntar seus dons de tecelãs e produzir belos Kenté (panos tradicionais da nobreza, repletos de simbologias.). A estação tinha também novelos e imagens de adinkras, retalhos e croché. Para o produto didático, esse subgrupo foi estimulado a levantar as relações comunitárias de solidariedade e lembraram do passado quando desciam a pé a serra com enfermos deitados na rede para levar até o doutor. Hoje essa prática caiu por fazerem uso de motocicletas. A terceira estação abordou as temáticas da intergeracionalidade e mestria. O principal material foi o livro Olelê, de Fábio Simões e Heloisa Pires, que retrata, dentre outros aspectos, a relação entre jovens e velhos. Sobre o assunto mestria, a pesquisadora apresentou um documentário sobre a história de Mestre Vitalino em

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Pernambuco, que fazia objetos de barro conhecidos no Brasil todo. O documentário de meia hora mostra como ele aprendeu e se iniciou nesse ofício e como esse ensinamento vem sendo repassado. O produto didático trouxe os paralelos encontrados na comunidade, com a produção em argila de figuras e objetos que retratavam mestras(es) daquele quilombo, como a costureira Dona Socorro, que faz colchas de retalhos, e Seu Zé da Lourdes, o sanfoneiro. Assim, contaram suas histórias e formas de aprender e repassar seus ensinamentos, com aspectos de iniciação. Explica da Silva (2015, p. 88): Na temática da Ancestralidade, o documentário do mestre Vitalino, inspirou os(as) nossos(as) mestres(as) para que representassem suas artes através de objetos feitos com argila e com eles refloresceu a memória. Maria do Socorro falou que sua mãe trabalhava com barro e que esses objetos eram bem conhecidos pelas pessoas da comunidade, tendo em vista que há quarenta anos eram os vasilhames mais comuns nas casas, assim como as cabaças e cuias. Maria do Socorro representou sua arte. Fez de argila uma máquina de costura e um alguidar de barro, porque lembrou da arte de sua mãe que era louceira e fazia objetos para vender e utilizar em casa. O aspecto da oralidade fica bem visível nessas ações[,] pois ela aprendeu a fazer observando mãe trabalhar e[,] além disso, conhece muito bem como viveu seus antepassados.

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Aqui, procuramos valorizar os mestres e mestras da comunidade. O mestre da sanfona[,] José Antonio da Silva do Nascimento[,] é quilombola, nascido em 13 de junho de 1963, na Serra do Juá. Desde muito jovem teve que trabalhar para ajudar sua mãe a sustentar a família, depois que seu pai foi assassinado. Continuou por algum

tempo militando no movimento social da comunidade de Porteiras, assim como seu pai fazia, lutando pela Reforma Agrária. Participava também em outros município com o grupo que fazia parte e[,] em uma dessas viagens do Movimento, conheceu um padre e externou seu desejo de ser sanfoneiro. Ganhou de presente de um sacerdote uma pequena sanfona, que lhe motivou a praticar, então aprendeu a tocar sozinho e hoje está sendo reconhecido pelo seu trabalho de músico. José Antonio transparece a vontade de repassar seu aprendizado para os jovens da comunidade, mas sente a desmotivação deles(as). A sanfona[,] para ele[,] é sua riqueza e a representação de sua história de resistência. É conhecido pelo apelido de Zé da Lourdes, pois adquiriu esse nome por ser o filho que esteve sempre ao lado de sua mãe (Lourdes) para ajudar no sustento e na educação de seus irmãos.

Na quarta estação, com a temática geral ancestralidade, da Silva (2015) colocou de novo adinkras, como vemos abaixo – dessa vez, relativos a essa dimensão da cosmovisão africana.

Owo Foro Adobe A cobra sobe a palmeira ráfia.

Sesa Wo Suban

Sankofa

Mude ou transforme seu caráter.

Nunca é tarde para voltar e apanhar o que ficou para trás.

Figura 1 – Representação dos adinkras. Fonte: Da Silva (2015).

Okodee Mmowere As garrafas da águia.

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Os livros apresentados foram: Orukomi, da autora Esmeralda Ribeiro, sobre o ritual de atribuição do nome na etnia Yorubá na Nigéria; Epé Layié – Terra Viva, escrito pela Mãe de Santo Stella de Oxóssi, relacionando educação ambiental e orixás, e O Comedor de Nuvens, de Heloísa Pires Lima, que mostra também a relação com a natureza e os perigos das atitudes depredadoras e egoístas. O produto didático trouxe a reminiscência por meio da pintura dos antigos mutirões, pois também foi exibido um documentário sobre a comunidade quilombola Morro Seco/Iguape em São Paulo, que volta a realizar mutirões agrícolas após redescobrir sua importância no fortalecimento do senso de ancestralidade e pertencimento. Por fim, na quinta estação, o tema foi brincadeiras e vivências quilombolas. Além de um artigo de livro acadêmico sobre quilombo, a investigadora colocou o livro infantojuvenil Falando Banto, de Eneida Gaspar (2011), mostrando algumas palavras brasileiras de origem bantu, instigando a se relacionar com termos usados no quilombo da Serra do Juá.

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Para a dimensão brincadeira, foram realizadas como produto didático bonecas de pano que trazem memórias de brincadeiras antigas. No entanto, o produto que teve maior destaque foi o que reuniu todos os achados em uma obra só: o pano de pente afroquilombola. Partindo da referência da guineense Semedo (2010), foi realizada uma analogia com esse objeto, o qual originariamente tem um valor místico e ancestral muito forte de pertencimento cultural: a produção de um pano de pente pintado, e não produzido no tear (como seria o tradicional). Cada banda do pano de pente foi pintada por um subgrupo de copesquisadores, juntando crianças, adultos e idosos, alunos, professoras e moradores em geral nessa produção. O resultado foi lindo, permitindo que a comunidade quilombola se visse retratada com uma bela obra de pertencimento afroquilombola.

Alguns produtos didáticos de outras pesquisas intervenções pretagógicas

Um exemplo foi a pesquisa de Alves (2014), que trabalhou com o tema gerador resistência negra, na busca de investigar as potências afro de um grupo composto por professores e alunos do Projovem Urbano com alunos da pedagogia, alguns deles também professores do ensino básico. Inicialmente, montaram árvores de seus afrossaberes, lembrando vários marcadores das africanidades presentes em suas vidas. Em seguida, os quatro subgrupos compuseram os produtos didáticos: um deles retratou as histórias de pertencimento afro de um dos subgrupos, com a montagem de um jogo de mímicas que fazia referência à visão de meio ambiente no culto aos orixás; outro criou um jogo de tabuleiro, com saberes relacionados à história e geografia envolvendo tipos de tecelagem afro; o terceiro produziu uma loa de maracatu (canto de maracatu, manifestação cultural do Nordeste brasileiro) com as histórias da comunidade; o último realizou uma crônica de autorretratos para trabalhar letramento (língua portuguesa). Na pesquisa de intervenção pretagógica de Maria Eliene Magalhães da Silva (2015), a qual teve como grupo-alvo professoras, rezadeiras e demais moradoras de quilombo, um dos múltiplos produtos de destaque foi a inspiração nas capulanas (pano e vestimenta usada pelas mulheres em Moçambique), que partiu do livro Um pano estampado de histórias, de Heloisa Pires Lima e Mario Lemos (2014) – um breve documentário sobre o significado iniciático da capulana e a contação de um mito sobre a relação com o mundo das ervas, favorecendo entender também a dimensão da oralidade africana. Assim, as copesquisadoras pintaram suas histórias e seus afrossaberes de quilombo em panos os quais usaram depois na forma de capulana, amarrados na cintura. Esse produto permitiu fortalecer, em muito, o senso de pertencimento afro de seu grupo de copesquisadoras, no caso composto por

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professoras e demais moradoras, que possuem em comum praticarem o ofício da reza, em diversos estágios de iniciação. A capulana forneceu uma analogia importante e motivadora pela sua dimensão iniciática e relação com a oralidade africana, disparando as memórias dos afrossaberes das mulheres copesquisadoras rezadeiras. Já na pesquisa de Rafael Ferreira da Silva (2015), sobre as africanidades no ritual das ladainhas de capoeira, realizada com um público de quilombolas envolvendo professoras, alunos e moradores da comunidade, o produto didático que se destacou também foi a síntese de várias atividades, gerando a invenção pelos copesquisadores de letras de ladainhas a partir da apropriação de conhecimentos acerca dos significados de mestria e da musicalidade das ladainhas na capoeira, com depoimentos de mestres(as) de capoeira, curtas documentários, músicas de CD, livros infantojuvenis – como o Olelê, de Fábio Soares e Heloisa Pires Lima (2014), a partir dos marcadores das africanidades relativos à ancestralidade africana, às práticas e aos valores de iniciação, à espiritualidade (religiosidades pretas), à musicalidade e às práticas corporais. CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Os fatores que distinguem a Pretagogia nas pesquisas intervenções realizadas pelos membros engajados nesse referencial são principalmente: • A busca de conexão com sua própria história das africanidades: tudo parte necessariamente da própria história do proponente da pesquisa intervenção que depois incentiva os participantes a também descobrirem suas histórias familiares e comunitárias, incluindo-se em uma rede de pertencimento afro. • A busca de referenciais afro em todas as etapas do estudo propiciado ao grupo-alvo com materiais de grande diversidade de gênero e apelo a diversas linguagens: depoimentos de pessoas entrevistadas

previamente, textos acadêmicos, livros de literatura (com ênfase na literatura infantojuvenil selecionada com critérios de qualidade informativa, ética e estética), músicas e letras do enorme repertório afrobrasileiro, músicas de outros países (africanos ou da afrodiáspora), objetos simbólicos, artesanatos, curtas documentários e ficcionais, mapas, panos, dentre outros elementos identificadores dos temas geradores. • O favorecimento da autoria, criatividade, ludicidade, inventividade e metaforização filosófica da vida, na hora da produção didática, sem nunca perder o elo com o tema gerador e as dimensões propriamente informativas. • A aproximação com as tradições orais africanas ressignificadas pelas analogias feitas com a cultura local e o contexto da aprendizagem, como a tradução de sentidos feita sobre as capulanas e o pano de pente, reelaboradas para fins pedagógicos em ambiente brasileiro. • A transversalização das áreas de conhecimento trabalhadas nas estações de aprendizagem e no produto didático, muitas vezes síntese das apropriações de vários subgrupos. • A quebra da hierarquização e do distanciamento entre as categorias envolvidas na pesquisa, sendo que todos os copesquisadores participam da realização do produto didático, independentemente de categoria profissional, faixa etária ou outra distinção social. O resultado final dessas pesquisas intervenção tem sido muito positivo, pois fortalecem pela co-autoria, o pertencimento afro enquanto afirmação de nossa relação cultural com a ancestralidade africana, favorecem a relação comunitária e quebra de barreiras entre os grupos sociais e, sobretudo, promovem, em maior ou menor grau, a superação de posturas preconceituosas herdadas da nossa recente história de

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resistência e dor, ainda tão viva entre nós. Sobretudo, gera uma apropriação pedagógica de grande importância, com produtos didáticos cheios de significância. Daí é que surgem novas práticas pedagógicas cada vez mais instigantes, perpassadas da poética herdada dos saberes de nossos antepassados. REFERÊNCIAS ALVES, M. K. F.; MACHADO, A. F.; PETIT, S. H. (org.). Memórias de Baobá II. Fortaleza: Imprece, 2015. ALVES, M. K. F. Resistência negra no circulo de cultura sociopoético: pretagogia e produção didática para a implementação da Lei nº 10.639/03 no Projovem urbano. 159 f. Dissertação (Mestrado em Educação Brasileira). Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira, Fortaleza, 2015. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2016. BÂ, A. H. A tradição viva. In: ______. História geral da África. São Paulo: Ática, 1982. ______. Amkoullel, o Menino Fula. São Paulo: Pallas; Athenas: Casa das Áfricas, 2003. CUNHA JÚNIOR, H. Afrodescendência e espaço urbano. Fortaleza: UFC, 2007. DA SILVA, C. O. Construindo o pertencimento afroquilombola através das contribuições da Pretagogia no quilombo de Serra do Juá-Caucaia. Dissertação (Mestrado em Educação Brasileira). Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2015. http://www. repositorio.ufc.br/handle/riufc/20842 LEMOS M.; LIMA, H. P. Capulana: um pano estampado de histórias. São Paulo: Scipione, 2014.

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MEIJER, R. de A. S. Valorização da cosmovisão africana na escola: narrativa de uma pesquisa-formação com professoras piauienses. Tese. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2012. Disponível em: .

MUNANGA, K. O que é africanidade? In: Revista Biblioteca Entrelivros – Vozes da África, São Paulo, edição especial, 2007, n. 6, p. 8-13. OLIVEIRA, E. D. Cosmovisão africana no Brasil – Elementos para uma filosofia afrodescendente. Fortaleza: LCR, 2003. ______. Filosofia da ancestralidade: corpo e mito na filosofia da educação brasileira. Curitiba: Gráfica Popular, 2007. PETIT, S. H. Pretagogia: pertencimento, corpo-dança afroancestral e tradição oral africana na formação de professoras e professores. Contribuições do legado africano para a implementação da Lei nº 10.639/03. Fortaleza: UECE, 2015. PETIT, S. H.; SILVA, G. C. (org.). Africanidades caucaienses: saberes, conceitos e sentimentos. Fortaleza: EUFC, 2013. SEMEDO, M. O. da C. S. As Mandjuandadi: cantigas de mulheres na Guiné-Bissau – da tradição oral a literatura. Tese (Doutorado em Letras). Programa de Pós-Graduação em Letras. Belo Horizonte: Universidade Católica de Minas Gerais, 2010. SILVA, M. E. M. da. Marcadores das africanidades no ofício das rezadeiras de quilombos de Caucaia-CE: uma abordagem pretagógica. 206 f. Dissertação (Mestrado em Educação Brasileira). Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2015. Disponível em: . Acesso em: 10 maio 2016. SILVA, G. C. Tese (Doutorado em Educação Brasileira). Pretagogia: construindo um referencial teórico-metodológico, de base africana, para a formação de professores/as. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2013. Disponível em: . SILVA, R. F. Africanidades no ritual das ladainhas de capoeira angola: pretagogia e produção didática no Quilombo. 132 f. Dissertação (Mestrado em Educação). Centro de Humanidades, Programa de Pós-Graduação em Educação. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2015. Disponível em: . Acesso em: 10 jun. 2016.

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ANEXOS – PRODUTOS DIDÁTICOS

Figura 1 – Mulheres quilombolas Zuila e Dalva: preparando a moqueca de banana. Fonte: arquivo Cláudia de Oliveira da Silva.

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Figura 2 – Apresentação do Parangolé – Pano de Pente no Quilombo do Juá construído pelos quilombolas copesquisadores. 680

Fonte: pesquisa Claudia Oliveira da Silva (2015) / acervo da autora.

Figura 3 – Apresentação do Parangolé – Pano de Pente no Quilombo do Juá Dona Socorro fazendo seu personagem. Fonte: pesquisa Claudia Oliveira da Silva (2015) / acervo da autora.

Figura 4 – Mulheres quilombolas: Dalva e Maria José: confeccionando a banda da culinária. Parangolé – Pano de Pente. Fonte: arquivo Cláudia de Oliveira da Silva.

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Figura 5 – Capulana dos Marcadores das Africanidades da Rezadeira Quilombola Dona Maria dos Prazeres. Fonte: pesquisa Maria Eliene Magalhães da Silva (2015) / acervo da autora.

Figura 6 – Rezadeiras construindo o produto didático Capulanas dos Marcadores das Africanidades nas suas vidas. Fonte: pesquisa de Maria Eliene Magalhães da Silva (2015) / acervo da autora. Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-684, set. / dez. 2016

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Figura 7 – Rezadeira iniciante dona Maria Luiza de porteiras. Mulheres desfilando suas histórias de reza em pano capulana. Fonte: pesquisa de Maria Eliene Magalhães da Silva (2015) / acervo da autora.

Figura 8 – Produto didático: Livro das Africanidades no ritual da Ladainha. Fonte: Pesquisa de Rafael Ferreira da Silva (2015) / acervo do autor.

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Figura 9 – Produto didático: Livro das Africanidades no ritual da Ladainha. Fonte: Pesquisa de Rafael Ferreira da Silva (2015) / acervo do autor.

Figura 10 – Jogo de tabuleiro: ‘Jogo da Resistência Negra’. Fonte: pesquisa de Maria Kellynia Farias Alves (2015) / acervo da autora.

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À SOMBRA DO BAOBÁ: A CULTURA NEGRA NA EDUCAÇÃO ETNOMATEMÁTICA1 Wanderleya Nara Gonçalves Costa2 Vanísio Luiz da Silva3 Resumo O presente ensaio tem como objetivo contribuir com o cumprimento das determinações das Leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08 por parte dos docentes da área de Ciências Exatas. Pautamo-nos no Programa Etnomatemática e em uma perspectiva socioconstrutivista da Psicologia da Educação Matemática para sugerir que a afetividade seja tomada como fator relevante para a aprendizagem escolar. Argumentamos que a adoção deste referencial, em conjunto com uma postura pedagógica que considere os elementos estruturantes da africanidade, pode colaborar com a emergência de conceitos e valores 1 “Diante da matemática (M) desenvolvida nas universidades pelos especialistas e a

matemática (m) enraizada nas práticas cotidianas dos ambientes socioculturais, surge a Educação Etnomatemática como uma proposta que respeita a alteridade e se debruça sobre os processos cognitivos, psicoemocionais, comportamentais das situações vivenciais do saber matematizante” (VERGANI, 2007, p. 38). 2 Graduada em Licenciatura Plena em Matemática pela Universidade Federal de Goiás (UFG, 1988), mestra em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp, 1997) e doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP, 2007). Atualmente é professora adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e tutora do Programa de Educação Tutorial (PET) – Matemática Interdisciplinar. 3 Doutor em Educação (Matemática) pela USP, membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Etnomatemáticas Negras e Indígenas da Universidade Federal de Mato Grosso (GEPENI/UFMT), membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Etnomatemática da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (GEPEm-FE/USP), professor de ensino fundamental e médio na rede municipal de São Paulo.

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relevantes à constituição de posturas e estratégias pedagógicas mais adequados à população brasileira. Palavras-chave: Africanidade. Ciências exatas. Tecnologias. Etnomatemática. Afetividade.

THE SHADOW OF THE BAOBAB: BLACK CULTURE IN ETHNOMATHEMATICS EDUCATION Abstract This essay aims to contribute towards the fulfillment of the Laws 10,639/03 and 11.645/08 by the teachers of exact sciences. We propose ethnomathematics program and a social constructivist perspective of the psychology of mathematics education to suggest that affectivity should be taken as a relevant factor for school learning. We argue that the adoption of this perspective, together with a pedagogical approach that considers the structural elements of “Africanism”, may contribute to the emergence of concepts and values relevant to the establishment of more appropriate attitudes and pedagogical strategies to the Brazilian population. Keywords: Africanism. Exact sciences. Technology. Ethnomathematics. Affectivity.

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À SOMBRA DO BAOBÁ: A CULTURA NEGRA NA EDUCAÇÃO ETNOMATEMÁTICA PREPARANDO O SOLO

No Discurso do Método, Descartes utilizou a metáfora arbórea para ilustrar o conhecimento humano. A imagem leva a pensar em uma unidade do conhecimento, na existência de uma hierarquia entre as áreas de saber e, sobretudo, que as ciências todas se relacionam com seu “tronco comum”, mas que não relacionam entre si. Atualmente, dispomos de ferramentas teóricas para a superação desta imagem: segundo Deleuze; Guattari sugerem, a ciência pode ser compreendida segundo uma imagem na qual a árvore dá lugar ao rizoma, pois os saberes se entrelaçam e se nutrem uns dos outros. A etnomatemática se desenvolve tal como um rizoma e, a partir do seu entrelaçamento com várias áreas de saber, destaca que o conhecimento matemático está intimamente relacionado às diferentes matrizes culturais. A assunção e valorização deste relacionamento nos levam a regiões insuspeitas e nos predispõem à adoção de novas posturas na formação de professores e na sala de aula, notadamente quando nos dispomos a analisar e destacar alguns dos vínculos presentes entre ela e a psicologia cognitiva e cultural. Esta possibilidade aqui se manifesta na busca do diálogo com educadores envoltos com as representações culturais da população negra e suas repercussões no ensino-aprendizagem das chamadas Ciências Exatas. Mas, neste texto, os rizomas aos quais nos propomos explorar serão discutidos “à sombra do baobá”, que é hoje uma das imagens mais emblemáticas da África e que, em geral, representa a ideia de conectividade entre os mundos imanente e transcendente. O baobá também representa a íntima relação entre cada pessoa e uma memória coletiva que se dá a partir de uma herança cultural e/ou biológica que remete à África e, por

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esta razão, constitui-se como uma imagem que contribui para destacar e solidificar os traços culturais dos filhos da diáspora africana. Assim, o uso da metáfora do texto/árvore é por nós justificado porque os argumentos e as sugestões a serem apresentados pretendem, de algum modo, contribuir para que se estabeleça uma maior conexão da prática educativa dos docentes da área de Ciências Exatas com as determinações das Leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08.4 Na próxima seção, remetemos ao Programa da Etnomatemática para ressaltar que a dialética entre o matema da modernidade com o da africanidade torna possível a constituição de uma narrativa de nação brasileira diversa da hegemônica. Em “preparando o solo”, por exemplo, argumentamos que os entrelaçamentos da etnomatemática com a perspectiva socioconstrutivista da Psicologia da Educação Matemática sugere que a afetividade seja tomada como fator relevante para a aprendizagem escolar. “Regamos as sementes”, ao afirmar que a adoção do referencial assim elaborado, em conjunto com uma postura pedagógica que considere os elementos estruturantes da “africanidade”, pode colaborar com a emergência de conceitos e valores relevantes à constituição de posturas e estratégias pedagógicas mais adequadas à população brasileira. O SEMEAR: AFRICANIDADE E ETNOMATEMÁTICA

Os elementos estruturantes da “africanidade” – oralidade, força vital, religiosidade, corporeidade e outros – constituem hoje o referencial mais relevante para os educadores envolvidos com a inserção digna do ser negro na educação escolar, visto 4 Neste texto, tecnologias e ciências exatas serão usadas como sinônimos, Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-708, set. / dez. 2016

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afinal, o termo tecnologias tem origem na palavra grega “tekhne” e significa técnica, arte ou ofício empregado na resolução de problemas e na geração de conhecimentos e, portanto, harmoniza-se com as discussões aqui propostas, pelo entendimento de que, no contexto da africanidade, as ciências exatas se desenvolvem de modo integrado.

que eles têm o potencial de reestabelecer os vínculos com a história do continente negro e ressignificar a contribuição dessa população na narrativa histórica da nação brasileira, além de propor conceitos e valores relevantes à constituição de estratégias pedagógicas. No tocante à africanidade, Silva (2008) – a exemplo de Munanga (2007); Munanga; Gomes (2006); Romão (2005); Oliveira (2003); Cunha Junior (2005) – assume que ela marca o próprio sentido de existência para a população negra e suas instituições e, por isso, representa um modo de leitura com potencial de atender aos seus anseios de sobrevivência e transcendência. Nos lugares e instituições onde a cultura negra é percebida de forma mais evidente, como nos terreiros de candomblé, rodas de capoeira, congadas, entre outros, a africanidade constitui movimentos que definem modos próprios de estar no mundo, revelando o seu matema, isto é, maneiras próprias de explicar e compreender orientadas por uma herança cultural. O “matema da africanidade” é cotidianamente reelaborado e ressignificado no contexto da diversidade cultural brasileira, de modo a se integrar às repercussões socioculturais consequentes da dinâmica do encontro proporcionada pelo colonialismo eurocêntrico no Brasil. A etnomatemática é capaz de descrever e compreender este matema, uma vez que a análise dos trabalhos apresentados nos Congressos Brasileiros de Pesquisadores Negros (COPENE) sugere que a sua adoção seja “um solo fértil para propostas de inserção da cultura negra e o ensino de matemática e nos currículos escolares” (SILVA, 2008, p. 204). Das suas relações com a filosofia, o Programa Etnomatemática – liderado por D’Ambrosio – tem destacado reflexões e críticas surgidas no bojo do próprio pensamento moderno, mas que tomam como proposta questionar a realidade hegemônica. Ao fazê-lo, nos revela que a nossa realidade cotidiana, além de ser comprometida com o colonialismo eurocêntrico, não foi competente no

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atendimento dos anseios e das particularidades de grupos e indivíduos. Por isso, a população negra brasileira – em seu processo de escolarização – é marcada pela dicotomia entre globalização e globalizados, cisão que é descrita por algumas correntes da filosofia moderna, como é o caso do humanismo russeano e da complexidade. Nesta aproximação da etnomatemática com a filosofia, outro ponto a ser destacado é a teoria de Oliveira (2003), na qual a formação dos três grandes impérios subsaarianos entre os séculos VII e XV foi constituinte do pensamento africano. Ele argumenta que o fato dos impérios se constituírem e declinarem sob o signo de grandes confederações que faziam frente à expansão e ao domínio dos árabes e do Islã sobre a região deu a eles um caráter de resistência constituída a partir de elementos culturais estruturais tomados por Munanga (2007, p. 13) como descritores da africanidade, visto que a África ao sul do Saara é culturalmente uma. Essa comunidade cultural é a africanidade, ou seja, a configuração própria à África de diversos traços que podemos encontrar separadamente alhures. [...], mas a combinação desses traços idênticos é que forma o rosto único. A africanidade é esse rosto cultural único que a África oferece ao mundo.

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Os elementos da africanidade incorporam princípios e valores que vão da conotação dada à palavra e ao gesto até a concepção de morte, passando pela produção, propriedade, família, poder e religiosidade, entre outros. No caso da população negra brasileira, o “rosto cultural” ou a africanidade se expressa nas maneiras de ser/estar/agir/pensar que se manifestam cotidianamente em instituições, comunidades e indivíduos – mas, por não estarem alinhados com o pensamento hegemônico, muitas vezes, não são devidamente considerados nas representações e narrativas históricas acerca da Nação ou mesmo na constituição de propostas para a educação escolar.

Em paralelo, os estudos d’ambrosianos revelam que as concepções e visões sobre a realidade interferem não só no modo de pensar o presente, o passado e o futuro, mas principalmente nas práticas cotidianas e nos modos de entender e de explicar a realidade (matemas), inclusive no modo de pensar e aprender matemática não só nas escolas, mas também em outras atividades do dia a dia. Contudo, enfatiza o Programa Etnomatemática, a modernidade apresenta uma proposta de leitura da matemática fundamentada exclusivamente no modelo cartesiano-comtiano que foi transformado pelo colonialismo em modelo, não só para as ciências, mas como padrão universal de humanidade. Este pressuposto leva à afirmação de que, no ensino das ciências exatas, estão presentes juízos tendenciosos sobre os outros modos e olhares acerca da realidade. Este fato compromete a concretização de um ideal de educação que reconheça e valorize a diversidade do povo brasileiro e o cumprimento das determinações das Leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08 pelos educadores da área. Decorre daí a importância de se adotar posturas pedagógicas que, ao considerar os elementos estruturantes da africanidade, colaborem para com a emergência de conceitos e de valores relevantes à constituição de estratégias mais adequados à população brasileira. REGANDO A SEMENTE: A PSICOLOGIA NA EDUCAÇÃO ETNOMATEMÁTICA

Ao se nutrir de estudos da psicologia (da educação matemática) em seus vínculos com a aprendizagem e o ensino, a etnomatemática se apropria de pesquisas sobre afetividade que asseguram que a cultura age não só como potencializadora de identidade e autoestima, mas principalmente por organizar o pensamento pautando-se em lógicas, muitas vezes distintas, ao cartesianismo proposto pela modernidade. Tais perspectivas imprimem grandes desafios aos educadores matemáticos, especialmente para as relações entre:

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aprendizagem-ensino; professor-aluno e aluno-aluno, dentro e fora da sala e do ambiente escolar. Neste contexto, três aspectos são centrais: a clara preocupação com a atividade mental de um sujeito humano real, ou seja, inserido em contexto histórico-cultural específico, onde exercitará diversas atividades de aprendizagem, [...] movido por motivações variadas e diversamente impregnadas de afetos; em segundo, [...] dado a fato de que a abordagem da conceptualização em termos genéricos, como propõem alguns setores da psicologia geral, não dá conta da agenda de problemas da comunidade de educação matemática; em terceiro, [...] o compromisso com a construção de conhecimento científico, o que demanda a explicitação de um determinado conjunto de premissas epistemológicas e teóricas que dão apoio à montagem e interpretação das situações de pesquisa propostas (FALCÃO, 2003, p. 16).

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Segundo Falcão (2003), a emergência da psicologia da educação matemática brasileira enquanto área de estudo teve como foco central a aprendizagem e foi marcada por estudos que se deslocavam em torno de três eixos: a matemática dos matemáticos, a matemática extraescolar e a matemática escolar. À matemática dos matemáticos filiaram-se estudos de matemáticos profissionais e de pesquisadores que se voltam para as atividades de conteúdo a partir de uma perspectiva epistemológica. Apenas alguns casos apareceram vinculados à transposição didática. A matemática extraescolar concentrou os estudos voltados para práticas matemáticas cotidianas de grupos culturalmente diferenciados. Neste grupo, o Programa de D’Ambrósio destacou-se pelo fato das pesquisas se concentrarem na complexidade que envolve formulação, acumulação e difusão de conhecimentos, além de processos cognitivos que foram interpretados como propriedades de cada grupo.

A matemática escolar concentrou os estudos sobre contratos didáticos. Também congregou atividades e conteúdos pensados e propostos para o contexto escolar, inclusive os que incorporavam aspectos externos, mas que repercutiam na aprendizagem escolar. Por isso, são interpretados como manifestações da afetividade humana na escola. A classificação que expomos acima favorece discussões sobre o entrelaçamento da matemática escolar (sala de aula) com a matemática extraescolar (manifestações culturais). Neste sentido, destacamos a contribuição da PEM por meio da “proposição de uma abordagem integrada do indivíduo humano que se dispõe a aprender matemática como alguém possuidor de uma subjetividade sempre embebida em um contexto cultural específico” (FALCÃO, 2003, p. 39). De um ponto de vista mais voltado para ato políticopedagógico, consideramos que as diferenças entre a organização e a sistematização do pensamento, conforme proposto pela escola, e os conhecimentos trazidos do cotidiano do educando devam ser usados de maneira construtiva nos processos da educação escolar. Neste caso, a “educação [que é concebida] como prática da liberdade, ao contrário daquela que é prática da dominação, implica a negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim como uma realidade ausente nos homens” (FREIRE, 2006, p. 70). Cabe, então, refletirmos mais intensamente sobre posturas e práticas escolares que levam em conta as racionalidades orientadoras dos processos e modos existentes nas instituições de resistência cultural. Em especial, lembramos a racionalidade com origem na africanidade e que deve ser tomada como fundamental para o atendimento das Leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08, uma vez que esta interação entre a psicologia da educação matemática – em suas vertentes cognitiva e cultural – e a etnomatemática leva-nos a firmar a convicção de que manifestações culturais da africanidade brasileira fornecem indícios acerca de processos pedagógicos mais adequados

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às pessoas submetidas à inclusão perversa no nosso sistema educacional. Este fato destaca a “interação entre o acervo de conhecimentos socioculturalmente constituídos, que tem na escola um dos vetores de transmissão, e o indivíduo singular que amplia a cada dia seus conhecimentos” (FALCÃO, 2003, p. 40) e ressalta a possibilidade de as manifestações culturais serem mais bem aproveitadas na educação escolar. Sugere ainda a emergência de abordagens que aproximem os conteúdos matemáticos escolares dos saberes e conhecimentos produzidos na dinâmica sociocultural do grupo em referência – revelando, portanto, modos diferenciados de relacionamento com a natureza e seus consequentes matemas. Para isso, as abordagens devem considerar que os conceitos são sempre modelos mentais, construídos pelo sujeito a partir de suas experiências ao longo de seu processo de desenvolvimento, e não súmulas de dados empíricos acumulados basicamente via percepção e memória [...] conduzem à consideração de conceitos socialmente significativos e específicos (no sentido de conectados a determinado domínio de conhecimento socialmente compartilhado) (FALCÃO, 2003, p. 39).

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Decorrem daí: a) o pressuposto que os matemas organizam e estruturam o pensamento; b) a tendência de considerar a afetividade como aspecto explicativo relevante para as habilidades cognitivas em geral, para as competências escolares e, particularmente, para o desenvolvimento da competência em matemática escolar (FALCÃO, 2003, p. 41). Assim, o autor destaca a importância de “se buscar a integração de processos cognitivos e afetivos na explicação de habilidades escolares (e, especificamente, habilidades matemáticas na escola)” (FALCÃO, 2003, p. 42).

O GERMINAR DA SEMENTE: AFETIVIDADE E EDUCAÇÃO ETNO(MATEMÁTICA)

As análises de Falcão (2003) acerca da possibilidade de o conceito de afetividade ser objeto da educação matemática oferecem elementos relevantes ao Programa Etnomatemática e à proposta de inclusão das tecnologias africanas e afrobrasileiras na educação escolar. Complementarmente, Leme; Arantes (2003) registram a preocupação da psicologia cultural com o resgate filosófico dos conceitos de “significado” e de “subjetividade” na experiência humana, em contextos histórico-culturais, tendo em vista o fato de tais conceitos terem sido obscurecidos pela objetividade técnica na primeira metade do século XX e que a psicologia se fundamenta em concepções e princípios, segundo os quais: o funcionamento psicológico é constituído de processos que são mediados culturalmente, desenvolvidos historicamente, especificados contextualmente, inerentes à e emergentes da atividade prática. É, ainda preciso salientar que, nessa perspectiva, não se concebe o ser humano como determinado pela cultura, como um ser passivo, nem a cultura como condicionada por disposições psicológicas, o que seria uma visão simplista dos dois fenômenos (LEME; ARANTES, 2003, p. 89).

É certo que a complexificação da sociabilização é responsável pelo prolongamento do período de desenvolvimento, de formação dos estados mentais e dos processos cognitivos humanos, de modo atender às exigências e aos vínculos afetivo-sociais – responsáveis pelo desenvolvimento psíquico e pela capacidade de abstração. Isto porque deles são construídos conhecimentos de diversas maneiras, e cada uma destas produz estruturas de conhecimento ou representações, [...] conquistadas gradualmente, ao longo do

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desenvolvimento, até que na vida adulta se reconhece a existência de múltiplas perspectivas de mundo possíveis (LEME; ARANTES, 2003, p. 93).

Portanto, a afetividade resulta da constituição cultural do indivíduo em seu grupo, com reflexos óbvios nas representações sobre si mesmo. E, na educação escolar, pontuam os autores (LEME; ARANTES, 2003), a afetividade repercute na autoestima; no autoconceito; nas atitudes; nas crenças, nas representações individuais e sociais; nas relações entre professor-aluno e aluno-aluno; nas maneiras de resolver problemas matemáticos, inclusive. Deste posicionamento, surge o esforço da psicologia da educação matemática no sentido de explorar: emoções relacionadas à experiência matemática escolar; transferência e contratransferência no âmbito da relação professor-aluno; autoestima, autoconceito, padrões de interação e desempenho escolar; atitudes e crenças em relação à atividade escolar; relação entre traços de personalidade e estilos cognitivos e atividade de resolução de problemas em matemática (FALCÃO, 2003, p. 41). Diante disto, compreendemos que a afetividade é parte constitutiva dos símbolos e das práticas cotidianas de pessoas oriundas de grupos culturalmente situados e que tal manifestação pode levar a uma melhor compressão da aprendizagem enquanto fenômeno sociocultural. É ela que organiza o pensamento, elabora visões sobre mundo e define modos mais adequados para sentir e agir. Uma percepção que levou Leme; Arantes (2003, p. 95) a concluírem:

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as emoções só podem ser definidas em termos dos sistemas simbólicos como parentesco, classe social, grupo de referência etc. Nesse sentido, portanto, é que os componentes do funcionamento psicológico, cognição e afeto, e sua expressão na conduta não podem ser vistos como separados, mas sim como partes

interdependentes de um todo maior, que atinge sua integração apenas dentro de um sistema cultural.

Se tomarmos como exemplo as emoções, temos que, do mesmo modo que outras manifestações de afetividade, elas assumem caráter positivo ou negativo de acordo com as especificidades culturais do indivíduo ou grupo, de modo que as categorias agradável e desagradável apresentam variações e diferenciam processos cognitivos, segundo a “concepção de identidade, individualidade ou representação de si mesmo” (LEME; ARANTES, 2003, p. 96). Esta representação, enquanto consequência de processos culturais, não é consensual entre os psicólogos, pois alguns entendem que ela é determinista e propositora de um modelo parcial de investigação. Entretanto, Kitayama (2000); Leme; Arantes (2003) afirmam que este modelo possibilita distinções entre independência e interdependência. Eles apresentam análises reveladoras de que as pessoas respondem às situações de acordo com seus contextos e valores constituintes, o que demonstra que elas enxergam: atos e situações sociais de diferentes modos. Algumas enfatizam o si mesmo como fonte da ação. Outras enfatizam o ajustamento. Assim, as primeiras são mais congruentes com modelos de si mesmo independente, enquanto as segundas o são com o interdependente. Em consequência, as primeiras podem ser mais encontradas em culturas que se organizam em termos de modelos independentes. Em segundo lugar, situações que enfatizam o si mesmo como fonte de ação trazem à consciência o poder do si mesmo para controlar o seu ambiente (LEME; ARANTES, 2003, p. 100).

Internamente à Psicologia, os debates sobre cultura e afetividade ocorrem predominantemente em torno de duas

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tendências: a cultural e a intercultural. A primeira enfatiza aspectos sociais e relacionais, além de oferecer uma visão interpretativa da formação social da pessoa. Para Leme e Arantes (2003), o indivíduo é produto das situações em que se encontra, mas tem a capacidade de se voltar para o passado e alterá-lo à luz do presente, concebendo alternativas para a ação e o pensar. Assim, o indivíduo se centra nas narrativas de alguém que conta a própria história e a de outros “com o intuito de estabelecer continuidade, sentido e coerência à própria existência [...] porque [a narrativa] conserva a experiência, imprime ordem, estabelece vínculos causais entre os eventos de uma vida, que sem eles pareceriam aleatórios” (LEME; ARANTES, p. 97). Além disto, a narrativa também confere a sensação de controle, principalmente sobre o futuro em situações de mudança, pois sua previsão leva em conta decisões tomadas no presente. Já a psicologia intercultural orienta uma proposição segundo a qual “diferentes culturas ensejariam representações diferenciadas de si mesmos, independentes ou interdependentes, em função dos sistemas de valores em que foram construídas, individualistas ou coletivistas” (MARKUS; KITAYMA, 19915 apud LEME; ARANTES, 2003, p. 98). Os conceitos individualista e coletivista de análise do si mesmo foram herdados da antropologia, sendo que o individualista foi desenvolvido a partir da revolução de independência norteamericana, em reação ao domínio britânico, veria como ideal para a existência humana a liberdade de pensamento, crenças e valores, resultando na autonomia e responsabilidade de cada um forjar o próprio destino (LEME; ARANTES, 2003, p. 98).

Já o coletivista pressupõe como Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-708, set. / dez. 2016

5 MARKUS, H. R.; KITAYAMA, S. Culture and the self: implications for

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cognition, emotion and the self. Psychological Review, v. 98, n. 2, 1991, p. 224-253.

ideal da existência humana a relação harmoniosa com o outro, sendo a liberdade para ser e escolher ‘naturalmente’ limitada pelas necessidades e desejos do outro. Tal sistema de valores estaria fundado no modo de organização socioeconómico do grupo, que quão mais agrícola, mais coletivista. Tais diferenças nos sistemas de valores revelar-se-iam nos domínios afetivo e cognitivo (MARKUS; KITAYAMA, 1991 apud LEME; ARANTES, 2003, p. 98).

Tais diferenciações resultaram na Teoria da Construção Coletiva, a qual define a subjetividade como uma experiência humana que é vivenciada individualmente, mas sob a influência direta das normas e condutas sugeridas pela cultura, pois elas e as demais predisposições psicológicas estimulam experiências nas quais as diferenças culturais na representação do si mesmo são resultado de uma interação complexa de fatores que definem dada situação social na cultura, criando contextos de interação social específicos. Tais contextos favorecem mais determinadas experiências do que outras, ensejando, assim, representações de si mais “salientes” do que outras, menos significativas, naquela cultura. Essa ênfase dada pela teoria aos contextos de interações sociais que criam predisposições nos indivíduos para determinadas experiências e representações de si (LEME; ARANTES, 2003, p. 98).

Este entendimento levou à conclusão de que pessoas oriundas de culturas independentes, ou seja, aquelas em que as narrativas enfatizam a plena liberdade de expressão e ação individual enquanto ideal de existência humana, têm a representação do si mesmo como fonte de ação. As respostas dadas por estas pessoas sofrem uma grande influência da consciência de poder, da autoeficácia, da autonomia e de responsabilidade individual com relação ao

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próprio destino. São manifestações especialmente anotadas entre as pessoas originárias da América do Norte e da Europa. No entanto, tais termos não se referem à personalidade das pessoas em suas respectivas regiões do planeta, nem aos valores pessoais que defendem. Pelo contrário, eles devem ser vistos como descrições de pessoas em contextos culturais vigentes. Isto é, a independência e eficácia encontradas entre europeus e norte-americanos resultam da sinergia de fatores pessoais e contextuais (LEME; ARANTES, 2003, p. 99).

Por outro lado, estão as culturas cujas narrativas enfatizam o si mesmo como elemento de interdependência e, por isto, a liberdade de escolha e ação das pessoas é delimitada pelas necessidades e pelos desejos de outras. Este tipo de resposta resulta de um sentimento de ajustamento à coletividade, é predominantemente obtida de pessoas cuja origem é oriental, árabe ou latina e está também vinculada aos modos de produção – quanto mais agrárias e solidárias, mais interdependentes. As características das culturas interdependentes são mais condizentes com os elementos da africanidade; isso em função das manifestações e estruturas socioculturais – conceitos, valores e normas, tais como religiosidade e poder; família e sociedade; cooperativismo e Estado – que no Brasil foram herdadas das civilizações africanas e reelaboradas pela população negra e alimentam as instituições de resistência cultural. Reafirmando que

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a interdependência e o ajustamento ao outro, encontrados entre latinos e orientais são, também, resultado da sinergia entre fatores pessoais e contextuais. Isso significa que quando se estudam diferenças culturais do si mesmo, deve-se considerar plenamente o contexto cultural (LEME; ARANTES, 2003, p. 99).

Para ilustrar tais considerações e demonstrar diferenciações entre as respostas dadas por pessoas orientadas pelo modelo de si mesmo autônomo e o de ajustamento ao outro, reproduzimos uma experiência descrita pelos autores em destaque e comparamos com um relato de Jesus (2007). Leme; Arantes (2003) narram que foram realizados três estudos para verificar como o processo de percepção e atribuição é realizado em diferentes culturas: no primeiro, foram comparadas reportagens de jornais japoneses e estadunidenses sobre escândalos financeiros semelhantes ocorridos nesses países no mesmo período (cinco anos da década de 1990); no segundo e terceiro estudos, universitários norte-americanos e chineses avaliaram histórias que descreviam comportamentos de indivíduos em grupos cujas ações teriam dado prejuízo para outras pessoas. Os autores afirmam que, em todos os estudos sobre as situações descritas, foram verificadas diferenças no processo de atribuição entre americanos e orientais, de modo que entre norte-americanos verificou-se maior tendência a atribuir causalidade à disposição pessoal do agente, enquanto entre orientais a causalidade foi atribuída às características do grupo envolvido na trama descrita. A explicação para tais diferenças deriva da premissa de que culturas diferem nas teorias implícitas sobre o grau de autonomia dos atores sociais (LEME; ARANTES, 2003, p. 103-104).

No contexto brasileiro, a experiência vivenciada por Jesus (2007) na comunidade quilombola Kalunga do Riachão objetivava refletir sobre os processos cognitivos que envolviam os modos de quantificar tempo, espaço e forma no contexto da produção de mandioca. A tarefa, “área de 30 x 30 varas – unidade que tem o tamanho de um homem de braço esticado” – foi um artefato desenvolvido para atender à necessidade prática daquele contexto de definir a quantidade de mandioca a ser arrancada em um dia de trabalho. Esta solução engendrada

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para atender às demandas cotidianas do local tem em torno de si uma trama de habilidades e conhecimentos que relacionam tempo, espaço e o desempenho desejado para um dia de trabalho. Entretanto, devido às variações do tamanho do braço do trabalhador, existem diferenças entre o tamanho de uma vara e outra. Tal diferença foi justificada pelos atores como uma forma de compensação e tolerância que é própria dos sistemas solidários, como os encontrados entre os japoneses e chineses do estudo descrito por Leme; Arantes (2003) – considerados indivíduos de culturas interdependentes. Semelhantemente, no caso dos kalungas, também ficou indiciado que a afetividade é mediadora das respostas, gestos e atitudes das pessoas, o que revela uma representação do si mesmo bastante diversa dos estadunidenses, representantes de uma cultura independente – argumentação que desenvolveremos na seção seguinte. FLORES E FRUTOS: UM MATEMA CRIOULO6

Os exemplos nos permitem detectar a existência de relações entre as culturas independentes e interdependentes com os matemas da modernidade e o da africanidade brasileira, respectivamente. Nas respostas, nos gestos e nas atitudes de pessoas oriundas das culturas de interdependência, a afetividade é tomada como um instrumento de mediação que conduz a um ajustamento ao outro, ou seja, as pessoas têm uma compreensão de que a sua liberdade de escolha e ação é delimitada pelas necessidades e pelos desejos dos outros, e suas respostas resultam em sentimento de ajustamento à coletividade. Este aspecto das culturas interdependentes se revela em algumas características da africanidade brasileira – nos moldes Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-708, set. / dez. 2016

6 “[...] crioulo, nascido na terra nova, racialmente puro ou mestiçado, este sim,

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sabendo-se não africano [...] nem branco, nem índio e seus mestiços, se sentia desafiado a sair da ninguendade, construindo sua identidade” (RIBEIRO, 2015, p. 53).

descritos por Oliveira (2003, p. 53) –, visto sua consideração de que “a pessoa é resultado da interação entre o sagrado e a natureza, é no meio ambiente social que ela encontra sua identidade”. Nestas condições, valores e conceitos como a solidariedade e o coletivismo, herdados das tradições ancestrais, propõem estruturas sociais nas quais o individual e o coletivo interagem complementarmente, como demostrou a comunidade quilombola Kalunga do Riachão (JESUS, 2007). Daí são apontadas relações constitutivas entre as concepções dos povos sobre o si mesmo, as comunidades independentes e interdependentes e os diferentes matemas, conforme sintetizamos o quadro abaixo: Quadro 1: Relações dos matemas e concepções de si mesmo em diferentes povos e culturas. Povos

Americanos e Europeus

Africanos e Afro-Diáspora

Orientais, Latinos e Árabes

Autônomo

Solidário

Ajustamento

SOCIEDADE

Independente

Coletivista

Interdependente

MATEMA

Modernidade

Africanidade

Outros

SI MESMO

Fonte: Elaborado pelos autores (2017).

Retomemos os fundamentos deste artigo que, pautando-se no Projeto Educação para Todos, compreende o atendimento às necessidades básicas de aprendizagem como direito fundamental da pessoa humana. Ressaltamos, a partir da etnomatemática, que a tensão entre o matema da modernidade ocidental e o matema da africanidade repercute na concretização do ideal de uma educação matemática para todos. Por sua vez, a psicologia da educação matemática (PEM) apontou que a afetividade é relevante à aprendizagem da matemática escolar e por extensão em toda a área que aqui designamos como tecnologias. A PEM também destacou a importância do atendimento, incorporação e respeito às

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especificidades culturais, bem como as representações do si mesmo, individual e coletivo, nas abordagens educacionais. A conjugação destas proposições nos leva à conclusão que, em atendimento às determinações das Leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08, é necessário que os docentes da área de tecnologias incorporem o matema da africanidade na educação escolar, não somente como referência histórica, mas, sobretudo, como estratégia de atendimento das especificidades desta população. Para tanto, sugerimos que as estratégias pedagógicas incorporem e tornem concretas as referências socioculturais dos estudantes como uma forma de ser/estar no mundo, o que gera conhecimentos matemáticos específicos – como demonstram Guimarães (2008)7; Kalenga (2006)8; Menezes (2006)9; C. J. Santos (2008)10; E. C. Santos (2008)11; Forde (2008)12; Guimarães (2008)13; A. M. C. Santos (2008)14; 7 GUIMARÃES, C. A. Matemática das casas africanas: aprendendo com outros

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ângulos. Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, 5, 2008, Goiânia, Anais... Goiânia: UFG, 2008. 8 WA KALENGA, M. D. Tatuzinho comilão: o videogame da gente/estudo matemático sobre o jogo de búzios. Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, 4, 2006, Salvador, Anais... Salvador: UFRB, 2006. 9 MENEZES, M. dos S. Tecer, tingir, estampar, bordar: a tecnologia expressa nos panos africanos. Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, 4, 2006, Salvador, Anais... Salvador: UNEB, 2006. 10 SANTOS, C. J. dos. Africanidades no ensino da matemática – um estudo de caso da família mancala. Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, 5, 2008, Goiânia, Anais... Goiânia: UFG, 2008. 11 SANTOS, E. C. Uma etnomatemática com base no tecido de Gana. Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, 5, 2008, Goiânia, Anais... Goiânia: UFG, 2008. 12 FORDE, G. H. A. A presença africana na história e no ensino da matemática: do Egito faraônico a Grécia helênica. Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, 5, 2008, Goiânia, Anais... Goiânia: UFG, 2008. 13 GUIMARÃES, C. A. Matemática das casas africanas – aprendendo com outros ângulos. Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, 5, 2008, Goiânia, Anais... Goiânia: UFG, 2008. 14 SANTOS, A. M. C. Etnomatemática e educação infantil: contribuição para uma abordagem racial. Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros, 5, 2008, Goiânia, Anais... Goiânia: UFG, 2008.

Ossofo (2006)15; Leão (2005)16; Silva (2005)17; Neves (2011)18; Castro (2005)19; Melo (2006)20. Finalmente, expressamos nossa compreensão de que a inclusão dos saberes etnomatemáticos gerados a partir da africanidade brasileira em ambiente escolar implicará a incorporação do corpo, do gesto, da palavra, do imaginário e da sacralidade, entre outros instrumentos intelectuais mediadores do processo de aprendizagem. Então, para que se dê um passo adiante na narrativa de nação brasileira e contribua para que haja uma reversão na inclusão perversa do negro ao sistema educacional no qual não vê refletida sua identidade, há de se adotar uma perspectiva rizomática acerca do conhecimento. Como tal, as tecnologias na educação escolar passam a ser abordadas em uma perspectiva contextual e afetiva de aprendizagem, na qual contém objetos e premissas constantemente negociadas e que, por isso, se contrapõe ao matema da modernidade por meio do qual se julga e valoriza o conhecimento. Assim, estaremos construindo uma 15 OSSOFO, A. A. As configurações geométricas dos artefactos culturais

emákhuwas: um estudo sobre as possibilidades do seu uso didático nas aulas de matemática – Caso do 1º Ciclo do Ensino Secundário Geral. 2006, 129 f. (Dissertação de Mestrado). São Paulo: PUC, 2006. 16 LEÃO, J. P. P. Etnomatemática Quilombola: as relações dos saberes da matemática dialógica com as práticas socioculturais dos remanescentes de quilombo da Mola-Itapu/PA. 2005, 157 f. (Dissertação de Mestrado). Belém: UFPA, 2005. 17 SILVA, L. M. A cerâmica utilitária do povoado histórico Muquém: a etnomatemática dos remanescentes do Quilombo dos Palmares. 2005, 121 f. (Dissertação de Mestrado). São Paulo: PUC, 2005. 18 NEVES, E. P. A etnomatemática dos remanescentes da comunidade quilombola Urbana Tia Eva. 2011. (Dissertação de Mestrado). São Paulo: Uniban, 2011. 19 CASTRO, L. R. C. de. Narrativas sobre a matemática escolar produzida por alunos de um curso noturno de Educação de Jovens e Adultos. 2005. (Dissertação de Mestrado). São Leopoldo: Unisinos, 2005. 20 MELO, R. M. de. É a cor da pele que faz a pessoa ser discriminada: narrativas sobre o negro e a discriminação racial produzidas em uma experiência pedagógica de educação matemática. 2006. (Dissertação de Mestrado). São Leopoldo: Unisinos, 2005.

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abordagem diferente, a partir de um matema fluido e no qual o conhecimento está em constante deslocamento, sendo este decorrente de pesquisas que permitem a constituição de uma nova narrativa, não só sobre a história da evolução dos conhecimentos, ou mesmo da educação escolar, mas também da própria nação brasileira. REFERÊNCIAS BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, 1996. Disponível em: . Acesso em: 24 jun. 2013. ______. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, 2008. Disponível em: . Acesso em: 24 jun. 2013. CUNHA JÚNIOR, H. Africanidade, afrodescendência e educação. Educação em debate, Fortaleza, v. 2, n. 42, p. 5-15, 2005. FALCÃO, J. T. Psicologia da educação matemática: uma introdução. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. 33. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006. JESUS, E. A. As artes e as técnicas do ser e do saber/fazer em algumas atividades no cotidiano da comunidade Kalunga do Riachão. 2007. 119 f. (Dissertação de Mestrado). Rio Claro: Unesp, 2007. KITAYAMA. Culture psychology of the self: a renewed look at independence and interdepedency. International Journal of Psychology, v. 35, n. 3-4, 2000, p. 204. Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-708, set. / dez. 2016

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CAUSOS DO IMAGINÁRIO E DA MEMÓRIA NEGRA: CONTRIBUIÇÕES PARA UMA ANTROPOLOGIA EDUCACIONAL Julvan Moreira de Oliveira1 Resumo Este trabalho apresenta um conjunto de conhecimentos presentes pela população negra da cidade de Além Paraíba, Zona da Mata de Minas Gerais. As inquietantes perspectivas e clivagens que são abordadas ultrapassam as buscas essencialistas por um modelo africano vulgarmente idealizado. O levantamento de uma série de histórias, os causos produzidos por uma memória negra, como as que envolvem os moleques d’água, cuja riqueza de detalhes convida-nos a desconstruir as visões reducionistas e a descortinar uma realidade permeada por sutilezas conceituais até então negligenciadas pelo pensamento hegemônico. Palavras-chave: População negra. Causos. Imaginário. Memória.

1 Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do

Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), líder do ANIME – Grupo de Estudos e Pesquisas em Antropologia, Imaginário e Educação, vice-coordenador do GT-21 da ANPED (2015-2017), diretor de Ações Afirmativas da UFJF, membro e articulista da Red Iberomericana de Investigación en Imaginarios y Representaciones.

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STORIES THE IMAGINARY AND BLACK MEMORY: CONTRIBUTIONS FOR EDUCATIONAL ANTHROPOLOGY. Abstract This paper presents a set of knowledge present in the black population of the city of Alem Paraiba, Zona da Mata of Minas Gerais. The unsettling prospects and cleavages that are addressed beyond the essentialist search for an African model commonly conceived. The survey of a series of stories, the stories produced by a black memory, such as those involving boys water, whose wealth of detail invites us to deconstruct the reductionist views and to unveil a reality permeated by conceptual subtleties hitherto neglected by hegemonic thinking. Keywords: Black population. Stories. Imagination. Memory.

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CAUSOS DO IMAGINÁRIO E DA MEMÓRIA NEGRA: CONTRIBUIÇÕES PARA UMA ANTROPOLOGIA EDUCACIONAL INTRODUÇÃO

O presente trabalho se inscreve em um momento no qual é crescente o debate nacional acerca das políticas identitárias, especificamente aquelas voltadas para a população negra. A nossa preocupação inicial esteve voltada para a realidade das identidades negras presente na cidade de Além Paraíba, MG. Às margens do Atlântico Negro, tantas histórias à margem da narrativa oficial. As revoltas, as insurreições, a insurgência e a rebeldia, por vezes, fetichizam-se no papel, marcos emudecidos em uma linha crivada de datas, mas emergem cotidianamente, revisitadas e revividas no imaginário de seus sujeitos. Por intermédio da mediação da cultura, ponto de partida e de chegada das trajetórias negras no Brasil, a denúncia contra sociedades que, embora complexas, se recusam a assumir sua pluralidade constitutiva, articula-se em diversos níveis de formação discursiva: político, mítico, científico e simbólico. As múltiplas tradições implicadas na religiosidade afro-brasileira, como o candomblé2 e a umbanda3, também participam dessa teia cultural. Quando nos referimos à tradição religiosa afro-brasileira, vislumbramos não uma chamada “cultura originária”, mas sim uma semântica existencial 2 Candomblé é uma corruptela de candombe, tambor utilizado em Angola. Da

língua quimbundo, falada pelos bantos, -ndonbe é derivado do verbo “rezar, louvar”. Candomblé é termo utilizado cotidianamente para as três principais religiões de matrizes africanas no Brasil: a que cultua os inkises, dos negros bantos (angolas, congos); a que cultua os orixás, dos negros nagôs (yorubás); a que cultua os voduns, dos negros fanti-ashanti (jêje). 3 Umbanda, de origem brasileira, é sincrética, apresentando elementos das religiosidades africanas, do catolicismo popular português, das religiosidades indígenas e do kardecismo.

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diaspórica, isto é, um conjunto de práticas, representações e sentidos não meramente perpetuados no tempo, mas reconstruídos por sujeitos forçosamente postos no exílio. A ressignificação, já não nos resta dúvida, é fenômeno patente em qualquer tradição, porém, no caso específico dos conteúdos da matriz africana, isso traz uma série de desdobramentos e exige outro tanto de vigilância do observador, porquanto as formas culturais do candomblé e da umbanda ganham sentido apenas em perspectiva, ou seja, como uma espécie de reorganização sociopolítica de comunidades e territórios em espaço alheio. Trata-se de um movimento não apenas diacrônico, mas, sobretudo, diatópico, uma vez que a dinâmica da escravidão trouxe para o Brasil habitantes das mais variadas partes do continente africano, aportando consigo culturas, hábitos, idiomas, crenças, formas de ser distintas. No que tange à religiosidade afro-brasileira, colocar em evidência essas institucionalidades (re)inventadas revela o próprio caráter móvel, histórico e político dessas tradições, implica operar um “sistema de referências” que toma a África como metáfora, como direção simbólica para configurar as identidades afro-referenciadas. É sobre esse suporte imagético que se constrói a tradicionalidade da umbanda e do candomblé no Brasil, na medida em que instauram efetivamente espaços diferenciais no seio de uma sociedade supostamente homogênea, não como produtos de preservação, mas de resistência, interação e de inovação cultural. Essas institucionalidades negras ensejam formas de organização social encarnadas em territórios que têm ênfase na diferença, aliás, é o que permite a esse imaginário mitológico de justiça fundamentar uma contracultura negra na diáspora ou um discurso político contra hegemônico, denominado por Gilroy (2001, p. 33) como a “contracultura da Modernidade”. Ela se coloca como alternativa e em oposição à tradição ética da civilização ocidental, a qual perdeu sua legitimidade filosófica “[...] pela cumplicidade óbvia que

tanto a escravidão da plantation como os regimes coloniais revelaram existir entre a racionalidade e a prática do terror racial” (GILROY, 2001, p. 98). Foi pensando assim que iniciamos a presente caminhada, procurando levantar e compreender algumas narrativas presentes em negros(as) da cidade de Além Paraíba, iniciados em religiões de matrizes africanas. Ao ouvir as narrativas dessas pessoas, procurávamos colocar a escrita a serviço dessas outras expressões de linguagem, mesmo reconhecendo as restrições que ela possui: “ser o retrato do saber...”. E a angústia que nos levou a pensar tal contribuição se deu quando observamos que nos dados do último Censo, não há um único morador de Além Paraíba que tenha se declarado de religião afro-brasileira (candomblé ou umbanda), contraditoriamente com o que conhecemos na cidade (IBGE, 2010). Assim, apresentaremos um corpus de narrativas orais que recolhemos, obtidas na sua totalidade de pessoas negras, cuja forma de transmiti-las sugere sua inserção no universo do que se denomina oratura (NUNES, 2009). Infelizmente, levantamos muitas narrativas e nenhuma referente aos mitos das religiosidades de matrizes africanas, nos mostrando o quanto a repressão às culturas e religiões de matrizes africanas se fizesse presente nos silêncios e nas invisibilidades dos vissungos, mukixes, inkises, orixás, voduns e aruanda em Além Paraíba. A conclusão que podemos observar é que, apesar da importância da palavra falada como elemento de formação e informação de um grupo social dado, para os afro-brasileiros essa palavra (referente às nossas tradições sagradas) está ausente no cotidiano da sociedade alemparaibana. O CORPUS DAS NARRATIVAS ORAIS

Como afirma Tieno Bokar (apud BÃ, 2011, p. 181), tradicionalista do Mali:

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a escrita é uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o saber em si. O saber é uma luz que existe no homem. A herança de tudo aquilo que nossos ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo o que nos transmitiram, assim como o baobá já existe em potencial em sua semente.

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Esta afirmação toca fundo as nossas inquietações. Estamos educados pela fala para que respeitemos, às vezes exageradamente, a língua escrita e todas as suas exigências. Entretanto, mesmo a língua escrita também segue os caminhos da memória, só que em forma de registros congelados. E nós sabemos que os caminhos da memória são, na verdade, expressos pelos sons, cheiros e gestos que emprenham o “em torno”, o contexto. As nossas falas estão carregadas de lembranças: familiares, étnicas, humanas e, por que não dizer, históricas. Estamos acreditando que a palavra falada, a memória, a lembrança, os gestos, os cheiros e os sons são partes constitutivas daquilo que se chama oralidade, instrumento vivo da história. Mas é importante ressaltar que, para nós, existe um interesse restrito dentro dessa oralidade e/ou palavra falada como um todo. E foi assim que, tendo a lembrança como sombra, polemizamos sobre várias questões, dentre elas a nossa: a questão da religiosidade afro-brasileira na cidade de Além Paraíba. Relembro que ouvia os tambores ressoando à noite em algumas noites da semana, em um “terreiro” situado ao final da Braulino Silva (então Carolina Maria), rua em que eu morei durante minha infância e adolescência. Minha memória também me leva para outra “casa”, na Rua da Mangueira, que liga o bairro que morei, Vila Caxias, com a Santa Rita, próxima à entrada para o Jardim Paraíso. Nesta ainda guardo a imagem de seu nome pintado em letras garrafais em sua fachada: “Caboclo Sete Flechas”.

Dessas “casas” que marcaram minha infância, tenho lembranças das narrativas sobre suas religiosidades, a gestualidade de seus membros, a musicalidade e uma visualidade que energizavam um corpo histórico, impregnado de informações vivas de uma ancestralidade muitas vezes pouco conhecida. Ao separar a discussão sobre a situação do negro da visão economicista, ou melhor, da discussão classe ou raça, fomos à busca de um apoio mais abrangente, capaz de propiciar uma leitura coerente a quem buscava entender mais o todo, relacionando-o com a parte, aliás, procedimento que a oralidade, embora pelo tempo, nos ajude a compreender. De um modo geral, o corpus das narrativas orais se compõe basicamente da palavra falada, acompanhada de outros componentes – como gestualidade, sons, cheiros, entonações de voz, expressões de surpresa, medo e pavor. O gesticular das mãos e o acessório de apoio do corpo fazem parte deste universo de significações, efetivamente a essência da mensagem comunicada. Os olhares, as pausas e as onomatopeias se embaralharam com o conteúdo da narrativa e servem como elementos de apelo e atenção para o que está sendo contado. Por isso mesmo todos os detalhes que constituem o ambiente físico interagem como elementos de linguagem, pleno total, imediato presente. Esses fatores chamarão sobre si, de diferentes maneiras, a atenção e a percepção dos ouvintes, que reterão para si o detalhe mais sútil e representativo daquele momento. Esse detalhe agirá como um comutador da lembrança de quem, em um futuro qualquer, dependendo das necessidades e interesses daquele momento, acionará a memória e esta, assim como um arquivo, exporá o que se quer ou não. Um cheiro qualquer, uma palavra dita diferentemente, uma canção, um pássaro, um detalhe de vestuário, uma cor, enfim, um signo social qualquer, é capaz de resgatar uma história, um caso, uma canção.

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Por serem do jeito que são, as narrativas orais não se apresentam como muito longas ou, quando isso acontece, estabelecem articulações internas, como repetições de palavras e situações estratégicas capazes de estabelecer e manter as informações principais que serviram de parâmetro de continuidade da narrativa. Portanto, a redundância e a elipse (a omissão de palavras, o não dito) são elementos fundamentais da narrativa oral enquanto realização social da linguagem como um projeto da e para as relações da cultura (entendida aqui como arcabouço civilizatório). Difícil seria distinguir, ao modo das estruturas sintáticas, os termos essenciais, integrantes e acessórios das orações, uma vez que para além da formulação fonológica que tem seu sentido próprio, outros sentidos são produzidos socialmente nas relações que a linguagem mais ampla estabelece. OS CAUSOS NA MEMÓRIA NEGRA

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As histórias que envolvem moleques d’água são frequentes, principalmente na região rural de Além Paraíba, com referências a situações inexplicáveis envolvendo crianças, afogados e aparições de moleques d’água. As explicações do fenômeno são dadas nas versões mais variadas: uma delas é que os moleques d’água são as almas de crianças que morreram afogadas no rio; outra conta que, como na região durante muito tempo teve bastante gado leiteiro, este era cuidado por crianças que o levava para pastar durante o período de seca, nas silhas que se formavam no rio. O que acontecia então era que, de repente, começava a chover na cabeceira do rio e o volume de água aumentava, provocando as enchentes, tão comuns como às vezes devastadoras do Rio Paraíba do Sul, bastante conhecidas na região. Isso pegava as crianças e os animais de surpresa, ocasionando tragédias. Tais acontecimentos não são de fácil aceitação em uma comunidade. Por isso mesmo, com o tempo, tendem a aparecer de maneira

mítica, ou quase mítica, uma vez que envolve a morte de crianças. Também é interessante ressaltarmos que o uso dessa história como arquétipo educacional se enquadra naquelas práticas populares que enfocam a tragédia inicial como modelo a não ser seguido. Por outro lado, cabe destacarmos o perfil dos moleques d’água: garotos negros, carecas, que andam pelados e que surgem de repente, próximos a pedras e ilhas do rio. Eles, segundo se acredita, moram no fundo do rio e servem, por isso mesmo, como exemplos ameaçadores para que as crianças nunca fiquem sozinhas na beira da água, pois podem ser sugadas para dentro, por meio da sombra dos moleques d’água. Eis o que nos narrou Efigênia4, 76 anos, negra: Eu sempre morei nesta casa aqui, desde pequena. Por isso mesmo, eu e meus irmãos ficamos acostumados a ouvir histórias que as pessoas da vizinhança contava. A gente ouvia falar de muitas histórias de assombrações, mulas sem cabeça, saci e moleques d’água e caboclo d’água. A casa da gente é muito distante de Simplício5 e as pessoas que moram aqui por perto não moram tão perto assim. Antigamente, a distância entre as casas era maior. Então, a criançada saía pelo mato brincando ou, quando o Paraíba tava vazio, a gente ia lá nadar. Um dia, depois do almoço, a gente tava na cozinha da casa quando de repente começamos a ouvir uma algazarra muito grande na prainha que tinha perto de casa, e ainda perguntei a alguém que também tava na cozinha se a molecada não podia passar mal, indo tomar banho de rio depois do almoço. 4 Todos os nomes utilizados são fictícios. 5 Simplício se localiza na zona rural de Além Paraíba, a aproximadamente 15 km

da zona urbana.

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A minha madrasta saiu para ver o que estava acontecendo, saiu no quintal, desceu devagar a pequena ribanceira que dava para o rio e viu uma porção de moleques tomando banho de rio, pelados. Achou aquilo estranho, porque nunca tinha visto aqueles moleques por ali. Como eram crianças conhecidas e sabiam nadar, ela subiu de novo até a cozinha e me perguntou se eu conhecia aquelas crianças que estavam tomando banho. Muito curiosa fui ver. E chegando lá, vi também a molecada brincando e nadando no rio, de vez em quando um saía da água e vinha para a prainha e depois mergulhava de novo. Como eu tava um pouco escondida atrás de uma moita de bambu, deu pra ver os moleques tomando banho por um tempo, de repente, sem mais nem menos, eles sumiram. Aí eu subi desesperada, gritando que os moleques tinham afogado. Todo mundo foi lá pra ver, mas não tinha nem sobra dos moleques d’água que aparecem de repente na beira do rio e puxam as crianças que ficam sozinhas na beirada do rio para dentro d’água. Dizem que eles sugam quem tá na beira do rio, pela sombra.

Outra história ligada às águas, muito ouvida pelas crianças nessa região, é contada por pessoas mais velhas que também dizem, escutaram contar, sem, no entanto, ser conhecida a pessoa que a possa comprovar por já ter participado de algum acontecimento similar. É o caso da “mão cabeluda”, nos contada por Elesbão, negro, 82 anos:

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Certa noite, um grupo de pescadores resolveu fazer uma pesca noturna no Rio Paraíba do Sul. Quando chegaram a uma das partes mais fundas do rio, perceberam que o bote estava parando. Assustados com o fato, puseram-se a remar todos com mais força e nada do bote sair do lugar. Sem saber o

que estava acontecendo, pois estava muito escuro, os pescadores perceberam, após algum tempo, que algo ou alguma coisa segurava o bote naquele lugar. Acenderam uma lanterna e, assustados, viram uma enorme mão cabeluda que segurava a parte de trás do bote. Um deles, desesperado, pegou de um facão e cortou de um só golpe a mão. Dizem que um grande barulho foi ouvido e logo depois o barco já se encontrava na outra margem do rio. No dia seguinte, o grupo de pescadores expôs em praça pública a mão amputada como troféu da pesca da noite anterior.

Essas histórias fazem parte do universo rural banhado pelo Rio Paraíba do Sul, com suas secas e enchentes que criam o humus necessário para que dela a comunidade ribeirinha retire não só o pescado, mas também representações culturais capazes de povoar o imaginário6 da população, bem como servir de modelo de aprendizado. É interessante ressaltarmos que essas histórias eram e geralmente são contadas dentro de um contexto envolvente, no qual as pessoas que contam e as pessoas que ouvem parecem comungar de uma linguagem plena de significado e rica em possibilidade interpretativas, o que, de certa maneira, permitiu uma reinstauração da história toda vez que ela é recontada e, portanto, retomada. Segundo Câmara Cascudo (1947, p. 20), “é profunda a impressão da pegada africana nas nossas histórias”. Além Paraíba é constituída por uma população majoritariamente de pessoas negras e mestiças, ausentes e invisíveis, mas que há muito tempo busca um espaço na sociedade (PEREIRA, 2007). Em outra região da cidade, Angustura7, entramos em contato com o seu Benedito, quase 80 anos. 6 Compreendemos o imaginário como “o conjunto de imagens e das relações de

imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens” (DURAND, 1997, p. 41). 7 Angustura se localiza a aproximadamente 18 km da zona urbana.

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Negro, esbelto e muito mulherengo, segundo ele mesmo diz, trabalhou como peão em muitas cidades, ouvindo por isso mesmo muitas histórias que conta e reconta. Fala que sabe muitas histórias, mas que gosta mesmo é de uma muito conhecida a qual, segundo diz, acontece lá para os lados do Rio São Francisco: Nas minhas viagens aí pelo interior eu ouvi muita gente falar de um tal negro d’água. Eles contavam que em determinados lugares do Rio São Francisco, onde as águas estão mais calmas e dá para pescar melhor, aí nesse lugar, aparece o tal negro d’água. Ele aparece e cobra as coisas dos pescadores. Então, os pescadores levam cachaça para pode pescar e não acontecer nada com eles e com o bote, né? Porque depois que eles dão pinga pro negro d’água, aí pode pescar à vontade, que ninguém mais incomoda e a pesca fica muito boa. Agora, se acontece dos pescadores não dá a tal cachaça, aí a coisa fica feia, porque o negro d’água faz rodamoinho e balança a barca até ela virá com os pescadores e tudo. Assim, quando o pessoal vai pescar lá no São Francisco, eles levam coisas pro negro d’água. Aí dá tudo certo. Ninguém sabe dizer da onde vem o negro d’água e tem gente que diz que isso é tudo conversa de pescador... Mentira, né? Mas eu já ouvi muitas vezes essa história, mesmo quando o pessoal diz que isso é conversa, eu ainda acredito. Muita gente acredita. Eles ficam rindo quando eu falo (aponta para as pessoas próximas), mas eu não ligo, não, sabe? Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-734, set. / dez. 2016

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É óbvio que a transcrição das histórias retira o que elas têm de essencial, ou seja, o que se denomina oratura ou

oralitura8, o momento narrativo que não se repete e, portanto, é único e diverso pela sua própria natureza (LEITE, 2012). Conhecemos também Clementina, 78 anos, mestiça, natural de Palma9, tendo vivido parte da infância e juventude em Volta Grande10, residindo há 52 anos em Além Paraíba. Embora conheça as religiões de matrizes africanas, dona Clementina é católica de ir à missa todos os domingos. Com todas as entonações e expressividades verbal e corporal possíveis, ela nos conta, na varanda de sua casa, dos seus encontros com o Saci Pererê, também denominado por ela de ‘coisa ruim’: Certa vez, quando eu vinha da fazenda, com Fatinha grávida e Miguel ainda no colo, a gente ouviu uma barulheira no meio do mato. Como era noite e chovia, a gente continuou andando e o barulho atrás. Aí, mais na frente, eu vi uma moita de erva de lagarto e de lá vinha um assovio forte que parecia estalar nos ouvidos da gente e então ele assoviava e seguia a gente. Aí a gente começou a querer saí de perto do barranco e seguir pela estrada. Aí eu falei que aquilo tava parecendo cobra brava, para não assustar ela que estava grávida e podia cair desmaiada ali. Mas não adiantou muito não, ela desconfiou que não era, porque já tava demais, né? Aí, então eu falei: ‘é aquele ordinário, sem vergonha, filho da puta, vai atentar a tua mãe’. Aí então que ele fazia estripulia de um lado, fazia do outro, tudo bem perto do meu ouvido. 8 Expressões sinônimas para a “arte verbal cuja transmissão se concretiza e

difunde pela via oral – contada, cantada ou recitada – de geração em geração. Os registros desta arte verbal fazem-se no decorrer do processo de transmissão natural; contudo, antes de tomarem a forma escrita, permanecem vivos pela memória coletiva oral” (NUNES, 2009, p. 35). 9 Palma é um município da Zona da Mata mineira e se localiza a 94 km de Além Paraíba. 10 Volta Grande é um município da Zona da Mata mineira e está a 34 km de Além Paraíba.

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Sabe o que eu falei? Era uma noite escura, não era uma noite enluarada, só tinha chuva e vagalume. Aí eu peguei e falei assim: ‘te desconjuro esse que tá ali é batizado, pecado da comadre com compadre, cruz credo, ave Maria, filho da puta, que eu não tenho pecado da comadre com compadre’. Aí eu comecei... aí que ele danou mesmo... ‘te desconjuro sete léguas, sete cabos de machado pelas ondas do mar sagrado... pela força de um cristão batizado, cruz credo, ave Maria, vai-te por fundo do mar sagrado’. Aí ele ligou? Ligou nada, para ele era a mesma coisa. Aí eu falei: ‘ah, filho da puta, vem pra me atentar, mas força tu não há de ter para dar pancada em ninguém... tu podes fazer psiu, mas força tu não há de ter pra dar pancada em ninguém... eu não tenho pecado de comadre com compadre’. Aí, quando chegou na... [tá fervendo, Maria], aí quando chegou mais pro meio do mato... ele foi acompanhando, acompanhando, a gente tinha que passar num lugar que fazia um túnel assim... de árvore fechada... dava aquele túnel assim... quando chegou numa encruza, onde tinha um pé de figueira, ele ficou.

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Aí eu ouvi uma conversa que parecia que tinha acendido uma [minha filha, apaga essa luz que eu não sou sócia da light, não. Você não sabe o sacrifício que é o fim do mês para paga a luz? É pouco dinheiro e muita conta. (risos) A da sala também apaga, minha filha]. Aí eu fui e falei assim: ‘quem é que vai aí na frente?’ [desliga a televisão, tem alguém vendo? – tem, responde uma criança da casa. – Quem é? Ahn, pensei que não tinha ninguém]. Aí ele foi e eu perguntei quem é que tá mais na frente? – Sou eu. – Eu quem? – Sou eu, sou eu dona Clementina. – Era o filho de um conhecido, um moço bonito. – Sou eu, dona

Clementina. – E ele falou assim, vou esperar a senhora. Ele me esperou. Aí ele veio me contando um caso... do garoto. Eu contei a ele o que tinha acontecido. – Ele é o desesperado, todo dia ele dá uma coça naquele moleque que tá lá em casa, todo dia. O menino já vivia com a camisa rasgada de coro, pegava a criança assim e dava nela com aquele chicote de couro bem grosso, assim... não sei como aquela criança aguentava tanta pancada... a troco de nada. – A troco de mão sem vergonha que paria e jogava na casa de fazendeiro. É isso, jogou com fazendeiro, pode contar, fazendeiro é bicho do cão. Aí ele tava me contando, aí eu vim embora.

Quando observamos a estrutura da narrativa da história, percebemos que a contadora mistura elementos de possibilidades diversas que indicam, por exemplo, a complexidade que é hoje em dia se contar histórias disputando espaço com os aparelhos de TV e a interação com o meio. Além dessa mistura, a própria narrativa apresenta certa confusão com relação aos personagens. E, nesse caso, a pessoa que narra se confunde com a que participa dos acontecimentos: dona Clementina narra o seu encontro com ele (Saci), usando o desafio como forma de prender a atenção. Ao ouvirmos a história que ela nos conta, temos a nítida impressão que estamos diante de uma narrativa clássica, na qual os tons de voz, as interferências externas, as longas pausas na narração, além, é claro, dos adjetivos mais fortes e populares que dão à narrativa um formato muito próximo do real, uma vez que ela fala, discute, esconjura, xinga e, por que não dizer, desmoraliza, com base moral, aquele ente que ela denomina de “ele”. Na conversa com dona Clementina, aconteceram intromissões de pessoas que junto ouviam as histórias. E curioso foi a participação de seu neto Manoel, que se mostra

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conhecedor de quase todas as histórias que sua avó conta e, em um intervalo, ele nos deu uma curiosa informação: – Vó, ele (apontando com a cabeça para um senhor que passava em frente) a senhora sabe? Vira lobisomem nas sextas-feiras e em noite de lua cheia. – Que isso, menino? Deixa só ele ouvir isso. – É sim, vó, todo mundo sabe disso.

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Dona Clementina demonstra conhecer a natureza dos males que atraem o Saci: “pecado de comadre com compadre”, ou seja, adultério, coisa que ela fez questão de frisar não lhe afetar, mas nos pareceu ser comum, na visão dela, entre os fazendeiros com as mulheres. Cabe salientarmos os diversos recursos de memória de que ela lançou mão para ir amarrando o encadeamento interativo que a sua narrativa demonstra, sem contar aqueles de quadras populares, as quais informam sobre a sua crença cristã para se livrar dos males e das coisas desconhecidas. Mesmo nos casos e histórias contados em primeira pessoa, a preocupação em se estar transmitindo ensinamentos está sempre presente de forma implícita ou explícita. É sempre muito perigoso andar sozinha à noite e na escuridão. Durante quase duas horas de conversa, houve muita interferência de crianças e adultos presentes no espaço, ora complementando-se histórias e casos com detalhes específicos, ora interrompendo a narrativa com perguntas sobre o funcionamento da casa, onde estava isso ou aquilo. Perguntamos sobre o caboclo d’água, e ela nos informa que dizem que ele é cabeludo, que já atacou o Chico, que ele vive dentro do Paraíba, dentro das pedras do fundo do rio. Os caboclos d’água, segundo ela, são mais vistos perto de um pontilhão do Rio Paraíba do Sul. Segundo dona Clementina,

as pessoas que atravessam o rio à noite para fazer macumba, geralmente, dizem ver os caboclos d’água. AS HISTÓRIAS NO IMAGINÁRIO NEGRO

Em Além Paraíba, conhecemos também uma senhora, dona Perpétua, 91 anos. Após as apresentações e da troca de informações sobre as amizades comuns, demos início à entrevista sobre casos que ela conhecia. Ela nos faz uma narrativa que reforça a posição de dona Clementina ligando a aparição do Saci com o adultério: Quando foi um dia, o maldito fazendeiro andava com a comadre dele na casa de dona Francisca. Ah, menino! Eu não quero sair daqui, de sexta pra sábado, o moleque de perna só levava a cachorrada e coro (pancada), os cachorros uivava debaixo do soalho. Ele de coro nos cachorros, coro nos cachorros, de coro nos cachorros. A cachorrada gritando e ele pancada nos cachorros. Isso tudo porque o maldito do homem tava na casa da amante, da comadre chamada Francisca.

A diferenciação entre caso e história se dá especificamente pela extensão narrativa e pela pouca preocupação com o espaço narrativo. Daí compreendemos que, em muitos momentos, um se confunde com o outro, quando ocorrem empréstimos circunstanciais de uma estrutura narrativa com relação à significação dos conteúdos narrados. Outra história que nos foi contada por dona Perpétua foi a de um fazendeiro que na quinta-feira santa se deitava em cima de um formigueiro e lá ficava até o sábado de aleluia, após o toque do sino da igreja e o encerramento do terço, quando ele se trocava colocando uma roupa toda branca e servindo uma mesa de comida enorme para as pessoas do lugar. Parece que alguns dias são especiais: Em relação aos dias especiais para benzedura, notamos a preferência pela sexta-feira, enquanto

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o domingo é terminantemente recusado, pelo tabu do repouso dominical. [...] A sextafeira santa exerce um fascínio sobre o homem religioso: dia da morte, da culpa, da dor e, ao mesmo tempo, dia da esperança nascente, para uma ressureição que se anuncia certeza, no próprio momento em que a morte se comprova. O dia da sexta-feira santa se marca no interior de Minas pelo preceito do jejum e do descanso. [...] Esses costumes marcam o passado mineiro e estão presentes em livros de memórias, na lembrança dos mais velhos (PEREIRA; GOMES, 2004, p. 79-80).

Dona Perpétua, que na época era criança e morava nas proximidades da fazenda, diz que as pessoas achavam que o fazendeiro tinha trato como o “coisa ruim”. É importante salientar que, além das histórias e dos casos que apresentam uma estrutura narrativa de sequência simples, dona Perpétua, a pedido de outros presentes no espaço, informou sobre uma cobra enorme a qual, aliás, segundo as pessoas presentes, assusta e assombra as pessoas. Conta-se inclusive que a cobra come gente. Sobre esse detalhe, dona Perpétua diz desconhecê-lo e completa afirmando que isso é conversa, embora demonstre saber o local onde a tal cobra se esconde. Sobre os caboclos d’água, que assustam, mas também comem pessoas que se aventuram à noite nas proximidades das águas do rio, ela diz que “não sei disso, não”. Mas nos conta outra história do Saci: Um belo dia, José foi levar... José tava com seis anos... foi levar milho lá num lugar com nome de linha de ferro para fazer fubá. Ele saía de lá cinco horas, era tão pequeno, coitado, com seis anos, na estrada que era um deserto, ele voltava cantando. Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-734, set. / dez. 2016

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Quando foi uma sexta-feira, nossa casa ficava como aqui lá perto do meio do rio e a estrada passava lá em cima daquele morro, no alto daquele morro

[faz referência com a mão e com a cabeça, além de alongar a pronúncia da palavra morro, tentando mostrar a ideia de distância]. – Uai, me acode, Perpétua, me acode, Luiza... Ai, ai, ai, ai, ai... – Eu falei, Luiza, tão batendo no José, mas nós tinha dois córregos para saltar, né? Tinha o córrego que era uma largura como daqui lá na parede, que era córrego que tocava os muros e tinha outro grande, o outro como daqui lá no muro, tinha que saltar umas pedras e não dava jeito. Então, ele invés de dar uma volta assim, então nós fomos correndo, nós duas. Nós chegamos lá, José tava todo machucado, todo machucado. Camisa tava com uma camisinha velha, olha, nem a manga... ele deu tanta nele de vara de guaximba, tanto, tanto, tanto de vara de guaximba nele, que José ficou ensanguentado, cada vergão que era isso, ó. Eu não sei se foi vara de guaximba, eu não sei se foi coro que apanhou em alguma fazenda e trouxe pra bate. O cavalo disparou com o saco de milho que ninguém viu mais. Escuro como breu, ninguém viu mais. Joaquim chorando e José chorando. Chegando em casa... – O que é Joaquim? – É moleque de uma perna só, tá com chapéu vermelho que me atacou, quando ele viu que você vinha, ele me largou e correu. Levamos o José, tiramos aquele pedaço de trapo, ele só procurou bater nas costas, ele tem um sinal até hoje. Luiza tá pra chegar aqui agora, pergunta a ele se é verdade. Pergunta a ela que marca é essa que José tem no seu corpo. – Eu sempre soube que o Saci-pererê protege as crianças, eu disse.

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– Protege, pois sim que protege [respondeu, entre o incrédulo e o irônico].

De maneira geral, as crianças que ouvem tais histórias ou casos parecem pactuar com a narrativa, imprimindolhes um estatuto de verdade, muito próximo do fantástico. Os mais velhos sempre falam de uma história que ouviram falar, exceção feita aos contadores ou às contadoras, que não se arriscam a empreender uma narrativa própria, procurando sempre conferir valor aos contadores conhecidos. Muitas histórias parecem ter o único objetivo de assombrar as crianças, tendo, portanto, a função de educar, principalmente aquelas relacionadas ao “bicho-papão”. Outras, talvez, surgiram no período escravagista, como observa Bezerra-Perez: [...] assim que a noite chegava e “o sol se escondia atrás das montanhas”, no momento do dia oportuno para tecerem seus segredos, os negros podiam falar o que se queria falar, dizer o que não poderia ser dito às claras. Conversavam sobre o mundo a sua volta e as pessoas e os objetos adquiriam vida própria e designações próprias para aqueles que eram iniciados naquele universo (BEZERRA-PEREZ, 2012, p. 76-77).

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Tivemos contato também com senhor Acácio, 68 anos, que se disse da umbanda e nos contou da dificuldade de reconhecimento dessa religião. Assim como das outras pessoas com quem conversamos, apesar de nos apresentarmos e darmos algumas referências pessoais comuns, nossa filiação e nosso local de nascimento, o silêncio relacionado com a prática de iniciado na religião de matriz africana ficou manifesto. Talvez estivessem pensando que gostaríamos de aprender alguma coisa e, por isso, o silêncio. O sistema de transmissão do conhecimento nas religiões de matrizes africanas não se faz de maneira da didática ocidental: o conhecimento vai passando de geração em geração com as pessoas que convivem, assim

as pessoas que sabem não explicam muita coisa. As pessoas aprendem imitando o que o outro faz, olhando o que o outro está fazendo. A força que tem as formas de comunicação não verbal, em culturas de tradição oral (como é o caso da afro-brasileira), parece ficar bastante nítida quando ouvimos alguém acostumado ao registo gráfico falando sobre o assunto. Esse silêncio também pode ser uma forma de se preservar, a qual foi adquirida durante as perseguições sofridas pelas religiões de matrizes africanas, principalmente das batidas policiais e da demonização que o ocidente fez das culturas negras (OLIVEIRA, 2000). E não faltam casos de perseguições a negros, como essa narrada por Mestre Didi (apud SANTOS, 1976, p. 28-29): Um pobre e pequeno negrinho era escravo de um rico e avaro fazendeiro. Este fazendeiro tinha um filho que era tão malvado quanto ele, porque maltratavam muito o negrinho, davam trabalhos que só um homem podia fazer. Um dia encarregaram o negrinho de vaquejar umas novilhas. O negrinho, cansado de tanto trabalhar, adormeceu enquanto as novilhas pastavam. Os ladrões aproveitaram, fazendo estourar a boiada, e o pequeno vaqueiro se perdeu do gado. Por isso ele foi pisado e espancado pelo fazendeiro, e mandado a procurar o perdido. Sua madrinha, Nossa Senhora, foi quem lhe valeu, restituindo-lhe todo o gado. Mas, o filho do fazendeiro, perverso, enxotou de novo as novilhas para bem longe, e o negrinho perdeu novamente o guardado. O fazendeiro, quando procurou saber do negrinho pelas novilhas, ele disse que não sabia onde estavam. O fazendeiro, louco de

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raiva, retalhou o negrinho com um chicote, e jogou-o como uma posta de sangue dentro de um formigueiro. Passaram-se dois dias e duas noites. Na manhã do terceiro dia, o ordinário fazendeiro, passando por perto do formigueiro onde tinha jogado o negrinho, foi dar uma espiada para ver como ele estava. Quase desmaiou quando viu o pobre negrinho vivo, de pé, lindo e sereno saindo de dentro do formigueiro e se encaminhando para a mata com a sua madrinha Nossa Senhora, que o abençoava. Diz o povo que esse negrinho até hoje ainda existe por aí, pelos campos e caatingas. Uns dizem que ele se transformou no Saci, outros dizem que é o Caipora, e ainda têm muitas pessoas que julgam ter ele um anjo bom e generoso, porque é quem ajuda a achar e descobrir os animais e objetos perdidos nas matas. E assim o pobre negrinho paga depois de morto, beneficiando aos outros, o que sofreu durante toda a sua vida.

Se atentarmos para essa narrativa, percebemos que ela guarda muitas coincidências com as histórias sobre maustratos contra negros escravizados no Brasil, além de explicar a presença da figura do fazendeiro e os causos que justificam as suas atitudes, geralmente autoritárias, encontrando ressonâncias nas histórias do Saci, explicitando as relações sociais e sexuais comuns durante certo período da sociedade brasileira. CONSIDERAÇÕES FINAIS Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-734, set. / dez. 2016

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Das histórias e dos casos que ouvimos, procuramos congelar, por meio de imagens da memória, acontecimentos que guardam, nas suas respectivas narrativas, informações

fundamentais para compreensão do valor daquilo que Hampatê Bã denomina “Tradição Viva” e que nós entendemos como o passado que se reatualiza no presente e se realiza no futuro. As histórias e os casos dos quais nos valemos como ilustração, exemplos mesmos do que a partir desses trabalhos chamamos oratura, devem ser pensados a partir das suas estruturas arquetípicas que estão relacionadas ao modo de produção, à produção e à construção da relação pensamentolinguagem que se interpenetram e abrangem os grupos afrobrasileiros. Observamos nas estruturas narrativas da oratura a presença de alguns elementos originários de visões de mundo diferentes, em princípio, como é o caso das datas e dias preferenciais para se contar determinadas histórias e casos, não só para as crianças, mas também aos adultos: as noites das sextas-feiras e durante a quaresma, especificamente na semana santa. A escolha dos dias e das horas parece estar relacionada com o imaginário que cada cultura tem acerca da morte e da vida após a morte. Neste caso, vemos a interpenetração da ressurreição de Cristo, ideia central do catolicismo, com a noção de ancestralidade e força vital nas matrizes africanas. O período em que se comemora o nascimento, a vida, a morte e o renascimento de Jesus de Nazaré, que vai do Natal até a Páscoa, passando pelo Carnaval, é o espaço narrativo preferencial de casos e histórias sobre seres sobrenaturais e assombrações, ampliando, enriquecendo e fortalecendo a ideia de ancestralidade que subjaz no imaginário dos grupos sociais afro-brasileiros, principalmente os estruturados nos cultos aos eguns (ancestrais). Outro aspecto importante que percebemos aqui foi a presença do elemento água como veículo e lugar privilegiado de ocorrência dos fatos. Afogamentos e desaparecimentos de crianças e de adultos, lendas pessoais que mantêm na sua estrutura elementos vitais como a “sombra”, por exemplo,

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vinculada à questão do “duplo” africano e o próprio lugar dos mais velhos no grupo social. Contar histórias é, muitas vezes, retomar ao passado transfigurado ou transformado para explicar ou prevenir sobre acontecimentos presentes e futuros. Não é à toa que os dos polos preferenciais do espaço narrativo sejam as crianças (presente e futuro) e os mais velhos (passado e presente). Aliás, dadas as condições materiais em que se deu a escravidão no Brasil, foi a palavra falada, vivenciada em espaço restrito, o instrumento privilegiado de comunicação entre os grupos sociais que amargavam aquela condição. Uma prática social milenar, vivida pelas culturas negras, no continente africano como na diáspora, conforme nos mostra Galeano (1994, p. 21): No Haiti, não se pode contar histórias de dia. Quem conta de dia merece desgraça: a montanha jogará uma pedra em sua cabeça, sua mãe só conseguirá andar de quatro. Os contos são contados de noite, porque na noite vive o sagrado, e quem sabe contar conta sabendo que o nome é a coisa que o nome chama.

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Essa característica das culturas africanas, o momento melhor para se contar as histórias, se apresenta nos negros e nas negras da cidade de Além Paraíba: geralmente à tardinha, quando as pessoas retornam de mais um dia de trabalho. A simplicidade das pessoas que ouvimos nos despertou a memória individual, por meio da compreensão do que significavam os conselhos que recebíamos na infância: “Desvira o chinelo, porque senão a sua mãe morre”; “Não ande de costas para não agourar a sua mãe” etc. Finalmente, uma preocupação inicial importante que não foi plenamente explicitada refere-se às histórias principalmente das religiões de matrizes africanas: ainda permanece um silêncio, por parte dos negros e brancos iniciados, e uma

invisibilidade presente na sociedade alemparaibana, como se estas não existissem na cidade. Todos os nossos interlocutores são pessoas invisíveis para a sociedade alemparaibana. São pessoas que exerceram profissões sem nenhum valor social. Pensamos que, principalmente o movimento negro, poderia recolher ao máximo essas histórias presentes no imaginário afro-alemparaibano. Deveria auxiliar, principalmente, os estudos dessas histórias em nossa educação, pois elas também constituem a marca de nossa identidade – além de trabalhar para que os iniciados nas religiões de matrizes africanas possam sair de seus silenciamentos, assumindo suas identidades. Isso tudo ao mesmo tempo em que a população da cidade possa se possa ser conscientizada, visando romper com o racismo que impera contra as culturas africanas, a fim de que elas deixem de ser invisíveis na cidade e ocupem os diferentes espaços, seja da cultura, seja da educação. REFERÊNCIAS BÃ, A. H. A Tradição Viva. In: ______. História geral da África: metodologia e pré-história da África, v. I. São Paulo: Cortez, 2011. BEZERRA-PEREZ, C. dos S. Saravá Jonqueiro Velho: memória e ancestralidade no jongo de Tamandaré. Juiz de Fora: UFJF, 2012. CASCUDO, L. C. Geografia dos mitos brasileiros. Rio de Janeiro: José Olympio, 1947. DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. São Paulo: Martins Fontes, 1997. GALEANO, E. Palavras andantes. Porto Alegre: L&PM, 1994. GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Rio de Janeiro: 34 / Centro de Estudos Afroasiáticos, 2001. IBGE. Censo 2010. Brasília: IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), 2010. Disponível em: . Acesso em 11 ago. 2015.

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FERRO, FERREIROS E FORJA: O ENSINO DE QUÍMICA PELA LEI Nº 10.639/03 Anna M. Canavarro Benite1 Juvan Pereira da Silva2 Antônio César Alvino3 Resumo Neste trabalho, discutimos as relações entre a ciência/ química, o trabalho, o surgimento e a manutenção das sociedades e como estas afetam a química que ensinamos na escola: ahistórica e descontextualizada. Admitimos a negação e a invisibilidade de um passado em ciência e tecnologia dos povos africanos e da diáspora e apresentamos uma proposta de ensino de química descolonizada a partir do reconhecimento do hibridismo da sociedade brasileira multirracial. Nossos resultados denunciam a rigidez do currículo, o empobrecimento de seu caráter conteudista e a necessidade de dialogar com a cultura e a história africana e afro-brasileira como instrumento de articulação deste currículo. Utilizamos o contexto da transformação da matéria – o ferro, pela causa motriz – os ferreiros, por meio do trabalho – a forja, para 1 Doutora em Ciências pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ,

2005), mestra em Ciências (Química Inorgânica) pela UFRJ (2001), licenciada em Química e graduada em Química – Habilitação Tecnológica pela UFRJ (1998). Atualmente é professora associada da Universidade Federal de Goiás (UFG). 2 Doutorando em Química pela UFG, desenvolve sua tese no tema de formação de professores de Química em disciplina experimental com abordagem cultural. Mestre em Química pela UFG (2005) e bacharel em Química pela UFG (2000). 3 Licenciado em Química pela UFG (2014), atualmente é aluno do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Química da UFG e integrante do Laboratório de Pesquisa em Educação Química e Inclusão (LPEQI-UFG).

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romper com a epistemologia curricular e apresentar a ciência/química de matriz africana. Palavras-chave: Ciência/Química. Tecnologia. Currículo.

IRON, BLACKSMITHS AND FORGE: CHEMISTRY TEACHING THROUGH LAW 10.639/03 Abstract In this paper we discuss the relations between science/ chemistry, work and the emergence and maintenance of societies and how they affect the chemistry taught in school: non-historical and decontextualized. We admit the denial and the invisibility of a past in science and technology of the African people and the diaspora and present a proposal of a decolonized chemistry teaching, from the recognition of the hybridism of multiracial Brazilian society. Our results denounce the rigidity of the curriculum, the impoverishment of his features, too focused on formal contents, and the need to dialogue with African and Brazilian-african culture and history as an instrument of articulation of this curriculum. We use the context of the transformation of matter – the iron, the driving force – blacksmiths, through work – the forge, to break with the curricular epistemology and present the science/chemistry of African origin. Keywords: Science/Chemistry. Technology. Curriculum.

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FERRO, FERREIROS E FORJA: O ENSINO DE QUÍMICA PELA LEI Nº 10.639/03 SOBRE CIÊNCIA, A INVENÇÃO DO RACISMO E A QUÍMICA QUE ENSINAMOS NA ESCOLA

O racismo não é um fenômeno contemporâneo de raízes fincadas na escravização dos povos africanos pelos europeus a partir do século XVI, mas sim uma realidade social e cultural pautada exclusivamente no fenótipo. É um fenômeno histórico ligado a conflitos reais ocorridos nas histórias dos povos (MOORE, 2012). Deste modo, não por acaso os meios acadêmicos – séculos XVII ao XX – gestaram ideologicamente as noções raciais que predominam até hoje. O conhecimento científico é construído socialmente: ele desenvolve modelos para compreender os fenômenos naturais e entende que esses fenômenos se complexificaram lentamente a partir de inúmeras transformações/mutações que deram origem aos organismos que se fixaram pela seleção natural, o que constitui um corpo de conhecimento acumulado. Concordamos com Moore (2012) que extensos são os limites impostos a uma interpretação que seja capaz de retratar corretamente o lugar dos seres humanos na história da vida. Para compreender esta situação: É necessária a reconstituição de um passado obscuro por fatores diversos, não apenas de natureza física. Por exemplo, as constantes transformações geoclimáticas que a Terra vem sofrendo. Só um aspecto parece estar fora de questão, a saber, a posição sui generis da África no longo e lento processo que deu origem aos humanos (MOORE, 2012 p. 29). Os grandes achados paleontológicos no Chade, na Etiópia, no Quênia e mais recentemente em Bomblos (África do Sul) revogam por que se reconte a pré-história da humanidade (HENSHILWOOD et al., 2009; M’BOKOLO,

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2009, I e II). Por sua vez, Gyllensten et al. (2000) analisaram o DNA mitocondrial (DNAmt) de 53 pessoas de diversas localidades do mundo. A análise foi realizada em todas as sequências do DNAmt e permitiu estabelecer com precisão os laços de parentesco de várias gerações por meio da identificação das sequências que sofreram mutações. Os resultados apontam que o ancestral comum do homem modernoviveu na África há 171.500 anos e parte de sua descendência começou a emigração. Corroborando com esses dados, uma pesquisa sobre o estudo de variações genéticas globais e medidas cranianas de diferentes regiões do mundo demonstra que o homo sapiens teve origem única: a África (MANICA et al., 2007). Adams III (1986) defende que existe uma rica história de conhecimento científico, descobertas e invenções que antecedem o surgimento da civilização europeia: a descoberta do tempo, o controle do fogo, o desenvolvimento de ferramentas tecnológicas, a linguagem e a agricultura. Quem lucra com a invisibilidade de um passado em ciência e tecnologia dos povos africanos e da diáspora? Como esse constructo social, político e ideológico se originou? O que a química tem com isso? Todas as vezes que uma sociedade começa a se organizar, a organização acontece por interesses comuns, por linhas gerais de importâncias e legitimam as práticas culturais. A organização de uma sociedade está diretamente ligada aos modos de como esta interage e transforma a realidade em que habita. Por sua vez, esta organização parte das necessidades materiais dos indivíduos (e não do sujeito cognoscente), tais como fome ou abrigo, e é marcada por processos de transformação da matéria, ora, pelo trabalho realizado. Assim, toda sociedade – das “consideradas” mais primitivas às mais complexas – produz trabalho e, portanto, cultura. “A cultura é uma produção. Tem sua matéria-prima, seus recursos, seu trabalho produtivo” (HALL, 2009, p. 43). Assim,

existe sobre diferentes sistemas e recortes de realidade: cultura religiosa, cultura popular, cultura científica, cultura musical. Cabe ressaltar que não há comparação entre esses diferentes sistemas produtivos, pois todos são modelos e apresentam limites e abrangências. A crítica aqui só cabe ao corpo de conhecimentos inerente ao próprio processo produtivo. Porém, o “elitismo cultural” (a cultura do colonizador) habita nos discursos midiáticos e políticos invadindo o senso comum, do qual é frequentemente evocado como patrimônio intelectual das ciências. A filosofia “universalista” elaborada no Ocidente, no entanto, “teve como alicerce a história da Europa, a evolução socioeconômica e as instituições culturais e políticas que seus povos criaram” (MOORE, 2010, p. 59). A expansão incontrolada do Ocidente levou a um desenvolvimento sem precedentes da ciência e da tecnologia (CT) no século XIX: o progresso material veio acompanhado de um fenômeno piscocultural peculiar – a supremacia branca (do colonizador). “Assim, domínios de CT serviram não apenas para oprimir e modelar fenômenos naturais, mas também para legitimar, de um modo científico, a hegemonia do Ocidente e a supremacia do colonizador” (MOORE, 2010, p. 63). Estava, assim, legitimada a supremacia da cultura científica como caráter de produção de verdades. As ciências afirmam que a fonte de toda a riqueza é o trabalho, o qual converte a natureza, que é a fonte de matériaprima, em riqueza. Defendemos que o trabalho é muito mais que isso: “é a condição básica e fundamental de toda a vida humana. E em tal grau que até certo ponto podemos afirmar que o trabalho criou o próprio homem” (ENGELS, 1876, p. 269). Todavia, o trabalho começa com a elaboração de instrumentos, a julgar pela historiografia das civilizações, pelas atividades de caça e pesca, pela alimentação no continente africano, o homem aprendeu a comer de tudo (alimentação vegetal e animal) e, da mesma forma, a viver em diferentes climas. O trabalho, assim, se diversificou e a caça e pesca se

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juntaram à agricultura, tecelagem, olaria, navegação, entre outras atividades. Os homens interagiram e modificaram o meio ambiente pela sua presença, transformando a matéria e produzindo culturas. Ora, e não é a transformação da matéria o cerne da Química? As sociedades gregas e romanas construíram seus impérios sob a distinção dos seres humanos em inferiores versus superiores, bárbaros versus civilizados, escravos versus senhores, em uma conotação puramente racial. Segundo Moore (2012, p. 45), “gregos e romanos eram profundamente xenófobos, considerando como bárbaros todo e qualquer estrangeiro”. Essas sociedades, a princípio, existiram como impérios estritamente europeus e essas distinções eram aplicadas às populações brancas. Mas no começo da dominação do mundo africano, que acontece no primeiro momento pelo Egito e Catargo e depois se estende pelo Oriente Médio e África do Norte, pode-se detectar a visão raciológica nos textos produzidos (pela ciência). No que concerne às bases do pensamento helenístico e romano sobre a natureza humana, o texto da Ilíada, de Homero, registra enigmáticas referências a lutas violentas pela posse do Mediterrâneo, entre “xantus” (cor clara) e “melantus” (cor preta), que supostamente se referem aos autóctones (pelasgos) e aos invasores arianos (aquéos e dórios). Com toda probabilidade, trata-se de uma simbologização (transformação em mitologia e fantasmas) de confrontações reais entre povos autóctones e sedentários de pele negra, por uma parte, e de invasores arianoeuropeus nômades provindos dum berço frio euro-asiático (MOORE, 2012 p. 46).

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Não por acaso, os gregos – uma das sociedades que mais se valeu do processo de escravização como domínio e manutenção de sua cultura – estão entre os povos pioneiros na desqualificação dos processos de trabalho.

Na tentativa de explicar toda e qualquer alteração da realidade, ou seja, o trabalho, o filósofo Aristóteles enunciou a teoria da causalidade. São quatro causas que permitem explicar a permanência e/ou o movimento. Segundo Chaui (2001, p. 10, grifos da autora): Uma causa material – responsável pela matéria de alguma coisa; a causa formal –responsável pela essência ou natureza da coisa; a causa motriz ou eficiente –responsável pela presença de uma forma em uma matéria; e a causa final – responsável pelo motivo e pelo sentido da existência da coisa.

A teoria da causalidade hierarquiza as causas e a menos valiosa é a operação de fazer a causa material receber a causa formal, ou seja, o trabalho; já as mais importantes são a causa formal (a essência) e a final (a finalidade da existência). Portanto, essa teoria faz uma distinção entre as atividades humanas: a atividade técnica (poiésis) e a atividade ética e política (práxis). O trabalho é uma rotina mecânica, já a práxis é a atividade própria de homens livres, dotados de razão para deliberar sobre uma ação. Por isso, a práxis (ética e política) é superior à poiésis (o trabalho, a transformação da matéria, a química). Superiores são os homens livres e inferiores os escravos, os trabalhadores (CHAUI, 2001). Em uma sociedade multirracial baseada na servidão, vemos nascer a base da ideologia, na qual as ideias são consideradas independentes da realidade histórica e social. Mas essa não é a ciência que ensinamos na escola: ahistórica e descontextualizada? Vivemos atualmente sob a égide da sociedade tecnológica. Por sua vez, a tecnologia é fruto de produção do conhecimento científico e, deste modo, é preciso ensinar ciências a todos os indivíduos para que estes possam participar ativamente do mundo em que vivem, atuando na tomada de decisões e se tornando cidadãos. Mas que ciência é essa que ensinamos na escola? Que química ensinamos nas instituições escolares?

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Bordieu e Passeron afirmam que “o currículo da escola está baseado na cultura dominante: ele se expressa na linguagem dominante, ele é transmitido através do código cultural dominante” (apud SILVA, 1999, p. 35). Se utilizarmos qualquer ferramenta de busca em internet com as palavras “cientista” e “ciências”, as imagens mais frequentes (1) caracterizam o sujeito universal: o homem branco em seu laboratório.

Figura 1 – O sujeito universal. Fonte: Disponível em: . Acesso em: 28 maio 2015.

Outro fato bastante interessante diz respeito à maior agência de fomento à pesquisa no Brasil: o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que é uma instituição ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e se destina a promover e estimular o desenvolvimento da ciência. O CNPq foi criado em 1951 e lançou em 2012 a Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-768, set. / dez. 2016

primeira edição do painel “Pioneiras da ciência” (figura 2), 742

baseado em trabalho de Melo; Rodrigues (2006).

Figura 2 – “Pioneiras da Ciência no Brasil”. Fonte: CNPq. Disponível em: . Acesso em: 28 maio 2015.

Somente 61 anos após sua criação, a instituição que forma e qualifica pesquisadores no país e no exterior traz um painel com a questão de gênero e apresenta a mulher na figura de cientista, porém a questão racial ainda não foi contemplada: não há mulheres negras ou pardas no painel. A escola está em crise e o ensino de ciência hegemônica, europeia e branca ajuda a reforçar atitudes e crenças inadequadas, tais como: a) A ciência proporciona um conhecimento verdadeiro e aceito por todos – concepção individualista e elitista. b) O conhecimento científico está na origem de todos os descobrimentos tecnológicos e deve substituir todas as outras formas de saber – visão descontextualizada. c) A ciência traz consigo melhoras para a vida das pessoas – visão rígida e infalível. d) O conhecimento é neutro e objetivo – visão aproblemática e ahistórica (POZO, 2009), que lhe é ensinado na introdução aos estudos de Química. A maioria dos livros de Ciências do 9º ano do Ensino Fundamental e da 1ª série do Ensino Médio inicia estes estudos com a evolução dos modelos atômicos (essencialmente europeus e datam do início do século XIX, com os postulados do modelo atômico de Dalton).

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Os autores destes livros esquecem, ou propositadamente ou por ignorância, que o africano, por exemplo, já dominava a técnica de fundição dos metais há cerca de 3000 anos a.C. e que, ao fazer isso, estava realizando transformações químicas. Ou seja, os(as) alunos(as) negros(as) e pardos(as) são apresentados(as) a uma química que surge na Europa no início dos anos de 1800 e ao fato de que os seus ancestrais não contribuíram em nada para a evolução dessa ciência. Quanto mais se democratiza o direito à educação, maior é a presença no espaço escolar de sujeitos desconsiderados como sujeitos do conhecimento. Essa presença questiona os nossos currículos colonizadores. Assim, pensemos no estudante do Ensino Médio e no Coletivo Negro CIATA (cujos autores são atores) do Laboratório de Pesquisas em Educação Química e Inclusão (LPEQI) do Instituto de Química da Universidade Federal de Goiás (CIATA/UFG – o qual realiza investigações sobre as relações étnico-raciais na formação de professores de Química e sobre a implementação da Lei nº 10.639/03. Defendemos que esta não é tarefa fácil e, para tal, será “preciso entender e considerar a importância da articulação entre cultura, identidade negra e educação. Uma articulação que se dá nos processos educativos e não escolares” (GOMES, 2003, p. 169). O CIATA advoga que uma das primeiras alternativas nessa direção deve ser a inserção, nos cursos de formação de professores e nas disciplinas de Química oferecidas aos outros cursos de graduação, de debates e discussões que privilegiem a relação entre a cultura e a educação. Deste modo, apresentamos neste artigo estudos sobre planejamento, design e desenvolvimento de uma Intervenção Pedagógica (IP) desenvolvida em uma disciplina de Química Geral Experimental para uma turma de Física com alunos pertencentes a diferentes modalidades (Engenharia Física, Física Médica, Bacharelado em Física e Licenciatura em Física) em uma instituição de Ensino Superior do estado de Goiás.

SOBRE O PERCURSO METODOLÓGICO

Este trabalho se caracteriza como sendo uma pesquisa participante com enfoque de investigação social por meio da qual se busca a participação da comunidade na análise de sua própria realidade, tendo como objetivo promover ações coletivas para o beneficio da comunidade escolar. Trata-se, portanto, de uma atividade educativa de investigação e ação social (BRANDÃO, 1984). Cabe esclarecer que a participação em uma pesquisa, segundo Demo (2004), está para além de pertencer a essa comunidade, mas dar voz a ela. Neste caso, assumimos as duas posições: representamos os professores de ciências que ensinam para a sociedade brasileira (multicultural e multirracial) e também os membros desta sociedade, isto é, representamos a sala de aula de ciências condicionada pela heterogeneidade de sua constituição identitária, a partir de posições definidas e legitimadas nesta estrutura social. Ainda conforme Demo (2004), a pesquisa participante alia simultaneamente o conhecimento e a participação, buscando dar autonomia e capacidade de emancipação cidadã aos envolvidos no processo, especificamente no trato com o “situar-se dentro de uma sociedade composta por diferentes etnias” (grifo nosso). Foram sujeitos dessa investigação (SI) os autores desse trabalho, membros do CIATA (PF1 e PF2), o professor da disciplina (PQ) e treze alunos (A1, A2...A13). A IP intitulada Transformações Química e os Saberes Tecnológicos dos Ferreiros Africanos versou sobre o papel do ferreiro africano no Brasil Colônia e abordou os conteúdos de transformações químicas, ferritas, reações de óxido redução, corrosão, separação de misturas, fenômenos físicos e químicos e a forja do ferro. Importa ressaltarmos que a discussão proposta na IP foi desenvolvida em um curso de nível superior, porém entendemos que ela possa ser realizada, com algumas adaptações, em nível médio.

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A IP foi desenvolvida na disciplina de Química Geral Experimental, de natureza obrigatória, pertencente ao núcleo comum dos cursos que citamos, e oferecida pelo Instituto de Química com uma carga horária de 2 horas/aula semanal, perfazendo um total de 32 horas/aula semestral. Seu Projeto Pedagógico do Curso (PPC) apresenta a seguinte ementa: A matéria e seus estados físicos. Transformações da matéria: reações químicas. Mol e estequiometria das reações. Termoquímica e espontaneidade das reações. Equilíbrio químico: ácido-base e eletroquímico. Propriedades das soluções: unidades de concentração e propriedades coligativas. Modelos atômicos de Bohr e orbital. Periodicidade química. Ligação química: geometria molecular e teorias de ligação. Introdução aos procedimentos de segurança no manuseio e descarte de produtos e resíduos (UFG, 2013, p. 33).

A IP foi realizada no 2º semestre de 2013 em um laboratório de graduação, gravada em áudio e vídeo, perfazendo um total de 80 minutos de gravação. Após transcrição, os dados obtidos foram agrupados por unidades de significado e analisados segundo a técnica da Análise da Conversação (AC) (MARCUSCHI, 2003). Para o autor, a AC procede pela indução e inexistem modelos a priori, possui uma vocação naturalística com poucas análises quantitativas, prevalecendo as descrições e interpretações qualitativas. Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-768, set. / dez. 2016

RESULTADOS E DISCUSSÃO 746

A Tabela 1 apresenta o mapa de atividades realizadas na IP.

Tabela 1 – Mapa de Planejamento das atividades realizadas na IP. Etapas

Tempo utilizado

80 minutos

Desenvolvimento

No primeiro momento, buscou-se entender a constituição identitária dos sujeitos da investigação. Para isso, os contextos utilizados para iniciar o diálogo foram os dados do Censo do IBGE de 2010 sobre a cor e a raça do brasileiro. Foi perguntado aos(às) alunos(as) como eles(as) se autodeclaram em relação à sua cor ou raça e suas respectivas opiniões sobre a política de cotas recentemente implantadas nas instituições de ensino superior brasileiro. No segundo momento, foram apresentados e discutidos os saberes tecnológicos de matriz africana e a importância desses saberes na economia do Brasil Colônia. No terceiro momento, o contexto da discussão mediada foi mostrar a relação entre o saber do ferreiro africano e as transformações químicas realizadas no processo da forja. No quarto momento, sintetizamos e caracterizamos um material ferrimagnético.

Objetivos

Discutir o racismo no Brasil e desconstruir a ideia de ciência apenas branca, masculina e europeia, ou seja, apresentar a ciência de matriz africana a partir da compreensão do conceito de transformações químicas. Introdução da temática como questão de avaliação na prova escrita.

Estratégia de Avaliação

Nesta IP foram produzidos 377 turnos (T) de discurso e, por motivo de espaço, vamos apresentar somente quatro deles.

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Extrato 1 – Sobre a constituição identitária da sala de aula. T*

SI**

Transcrições da fala

1

PF1

No Censo do IBGE em 2010, tinha uma pergunta sobre cor, raça, enfim. Eu gostaria de saber como que vocês se declararam ou como declarariam se lhes fossem feita essa pergunta quanto às opções são: brancos indígenas.

2

PF2

Pardos, pretos.

3

PF1

Alguém de vocês se considera racista?

4

PF1

Nenhum aluno se manifesta. E quem acha que existe racismo no Brasil? Todos os alunos levantam a mão. 5

PF1

O que vocês acham da Lei das Cotas?

6

A5

Eu sou a favor da Lei das Cotas, mas cotas baseadas no social e no econômico. Situação social e econômica.

A10

Eu particularmente vejo as cotas pra negros, por exemplo, acho que talvez como uma forma de discriminação. [...] Acho que discrimina, porque de certa forma, eles querem acabar com o preconceito dizendo que essas pessoas não podem concorrer de uma forma universal, que elas precisam do que é delas, algo só pra elas.

A5

Mas a gente tem que ver que tem todo um contexto social, a gente num pode ser hipócrita e se esquecer da história anterior. O que aconteceu, o antecedente do povo negro... ele é a base da sociedade mesmo. Ele tava ali no trabalho escravo, ele tava ali. Então a gente não pode dizer que só porque ele é negro, não precisa de cotas, claro que precisa. Por quê? Não porque ele é negro, mas por causa do histórico dele.

7

8

Legenda: *T: Turno; ** SI: Sujeito da Investigação Fonte: Elaborado pelos autores (2017).

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Respondendo aos questionamentos feitos nos turnos 1 e 2: A5 e A13 se autodeclaram negros; A2, A3, A4, A8 e A9 pardos; A1, A6, A10, A11, A12 brancos. O aluno A7 preferiu não se manifestar. Importa dizer que a escola é um microcosmo da sociedade e, como tal, repete os seus processos de estratificação sociorracial. Dos 13 alunos cursando a área de exatas, 7 se autodeclaram pretos e/ou pardos. E o que isso de fato significa? “Identidade é um lugar que se assume,

uma costura de posição e contexto, e não uma essência ou substância a ser examinada” (HALL, 2009, p. 15). Certamente, há uma dificuldade das universidades diante do mundo moderno, já que existe uma contradição entre a convocação pela igualdade da modernidade e a composição da universidade. Este é um elemento ainda não incorporado à sua existência (SANTOS, 1995). Apoiamo-nos em Fonseca (2007, p. 167) para afirmar que No mundo moderno, sobretudo no século XX, houve uma pressão social em relação ao acesso às universidades, e isto resultou em um desenvolvimento contraditório, que ocorreu pela incorporação de grupos sociais historicamente excluídos destes espaços, mas sem uma alteração efetiva do padrão de elitismo dessas instituições. Desse modo, a universidade procurou satisfazer as exigências de democracia sem com isso incorporar plenamente a ideia de igualdade.

É preciso compreender que a estratificação das universidades acontece, segundo o tipo de conhecimento produzido, às existências de universidades distintas: cursos de grande prestígio (Direito, Medicina e Exatas) e aqueles historicamente desvalorizados. Assistimos às divisões que são construídas a partir da composição e origem social dos estudantes universitários, porém, quando nossos resultados refletem que mais da metade dos sujeitos investigados são autodeclarados pretos e/ou pardos, esses nos parecem dialogar com algumas medidas que o Estado brasileiro tem adotado desde o final dos anos de 1980 para a contenção dos desníveis sociorraciais, tais como: criminalização do racismo em 1989, adoção de políticas públicas de ações afirmativas em 2000 e a Lei nº 10.639 em 2003. “O Brasil tem sinalizado aos olhos do mundo possibilidades de transformações importantes” (MOORE, 2012, p. 21).

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Hall (2009, p. 73) discorre sobre as relações sociais em sociedades diaspóricas multiculturais do mundo pós-colonial e as perspectivas destas em termos da caracterização de suas culturas como híbridas: “Hibridismo não é uma referência a composição racial mista de uma população, mas trata-se de um processo de tradução cultural que nunca se completa [...]”. Vivemos um momento de transição que acompanha qualquer modo de transformação social, sem a promessa de um fechamento celebrativo (BHABHA, 1997). No Turno 3, quando PF1 pergunta se algum dos sujeitos da investigação se considera racista, não se percebeu nenhuma manifestação. No entanto, no Turno 4, quando PF1 pergunta se eles acham que existe racismo no Brasil, todos concordam que sim, apesar de não se reconhecerem como tal. Esses resultados corroboram com Ciconello (2008, p. 1): Uma pesquisa de opinião realizada pela Fundação Perseu Abramo em 2003 demonstra que 87% dos brasileiros/as admitem que há racismo no Brasil, contudo apenas 4% se reconhecem como racista. Podemos extrair duas consequências desses dados: a primeira é que o racismo existe não pela consciência de quem o exerce, mas sim pelos efeitos de quem sofre seus efeitos. A segunda consequência é que o racismo no Brasil, embora perceptível, se localiza sempre no outro, nunca nas práticas cotidianas de seus agentes, o que torna ainda mais difícil sua superação.

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Nossos resultados apontam para o fato de que “o brasileiro tem preconceito de ter preconceito” (FERNANDES, 1972, p. 42). Por sua vez, quando essa situação é observada no contexto escolar brasileiro, o que vemos é o preconceito desvelado em todas as suas nuances. De acordo com a pesquisa “Preconceito e discriminação no ambiente escolar”, realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), a pedido do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), 94,2% dos brasileiros têm preconceito étnico-racial.

Figura 3 – Preconceito e Discriminação no Ambiente Escolar. Fonte: MEC (2009).

Quando perguntamos (Turno 5) sobre sua posição em relação à política de cotas como uma estratégia para inclusão de grupos historicamente alijados de acessar ao ensino superior, os resultados revelam discursos contrários: o de A5, nos turnos 6 e 8, revela que para se compreender a política de cotas racial é necessário entendermos que a marginalização dos negros da escola foi socialmente construída e, para isso, podemos citar aqui o início desta construção legal. A Constituição Política do Império do Brasil de 1824 foi a primeira constituição brasileira e traz em seu “2º ato que pela legislação do império os negros não podiam frequentar escolas, pois eram considerados doentes de moléstias contagiosas” (BRASIL, 1824). Quase meio século antes da Lei Áurea (1888), esse documento tratou de delegar ao negro a exclusão do sistema educacional. Apesar de apenas a instrução pública primária estivesse legalmente assegurada às camadas populares, ao segmento negro da população nem a isso foi garantido: O Decreto nº 1.331, de 17 de fevereiro de 1854, estabelecia que nas escolas públicas do país não seriam admitidos escravos, e a previsão

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de instrução para adultos negros dependia da disponibilidade de professores. Mais adiante, o Decreto nº 7.031-A, de 6 de setembro de 1878, estabelecia que os negros só podiam estudar no período noturno e diversas estratégias foram montadas no sentido de impedir o acesso pleno dessa população aos bancos escolares (BRASIL, 2004a, p. 7).

No turno 7, o A10 apresentou um discurso universalista de que a política de cotas poderia prejudicar a imagens dos estudantes nas instituições de ensino e futuramente isso, no mercado de trabalho, poderia estimular mais preconceito, porque estão sendo favorecidos, serão sempre mal-vistos por terem entrado por uma porta diferente dos demais. Contra esses argumentos, apoiamos em Munanga (2003, p. 126) para afirmar que [...] ninguém perde seu orgulho e sua dignidade ao reivindicar uma política compensatória numa sociedade que, por mais de quatrocentos anos, atrasou seu desenvolvimento e prejudicou o exercício de sua plena cidadania. Desde quando a reparação de danos causados por séculos de discriminação prejudica a dignidade e o orgulho de uma população?

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Entendemos que se seguirmos adotando políticas universais tratando igualmente pessoas desiguais não haverá mudanças significativas no corpo docente e discente de nossas universidades. Soma-se a isto o fato de que a política de cotas se apresenta como uma ferramenta de transformação nas instituições de ensino superior, sendo cota racial ou socioeconômica. O racista combate de maneira fervorosa qualquer proposta que tende interferir no status quo da invisibilidade sociorracial, usando dos mais diversos tipos de argumentos universalistas, integracionistas e republicanos. “Essa barreira de insensibilidade, incompreensão e rejeição ontológica do

outro encontrou na América Latina a sua mais eleborada formulação no mitoideologia da democracia racial” (MOORE, 2012, p. 25). Extrato 2 – Transformações Químicas (TQ) e o conhecimento científico em África. T

SI

Transcrições da fala

O que é isso aqui? Dá pra ver?

9

PF1

Estátua de cobre de Pépi I (Antigo Império). Museu do Cairo. Fonte: Vercoutter (2010, p. 831). 10

A5

Estátua de cobre

11

PF1

É, aqui tem uma foto de uma estátua do século V antes de Cristo. Uma estátua de cobre. Essa foto foi retirada da Enciclopédia História da África.

753

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T

SI

Transcrições da fala

E isso aqui é o quê?

12

PF1 Navalha, Mirgissa, Sudão (Foto Missão Arqueológica Francesa no Sudão). Fonte: Vercoutter (2010, p. 827).

13

A2

Navalha. Me parece de ferro.

14

PF1

Isso é uma foto de uma navalha de ferro do século V a.C.

15

PF1

Como que o cobre e o ferro são encontrados na natureza?

16

A9

Na forma de óxidos, no caso do ferro, na forma da hematita. Quais os conhecimentos que os africanos deveriam ter para que a partir dessas duas rochas construírem essa estátua e a navalha?

17

PF1

Esquema de representação da transformação de óxidos em metais.

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754

18

A5

Químico.

19

A7

Separar os materiais, separar o ferro, a brita.

20

PF1

Esse conhecimento químico de operações unitárias, quais seriam?

21

A1

Métodos de separação.

T

SI

Transcrições da fala

22

A2

Óxido redução.

23

PF1

Quando você fala de óxido redução você fala do quê?

24

A2

Reações.

25

PF1

Reações, ótimo.

26

PF1

Uma reação é o quê? Pode falar, gente...

27

A2

Transformação química.

28

PF1

Qual o estado de oxidação do ferro na hematita e na lâmina?

29

A2

Na lâmina é zero.

30

PF1

E na hematita é 3+.

31

PF1

Então vocês concordam que para chegar a essa navalha e a essa estátua os africanos precisavam saber tratar o mineral, refinar, separar e transformá-lo quimicamente?

32

PF1

E como eram realizadas essas transformações, alguém tem noção?

PF1

E como é realizado hoje? Vocês não têm noção de como é extraído lá na Serra dos Carajás, por exemplo, o ferro na forma de minério e é transformado em ferro zero assim como faziam os ferreiros africanos?

33

Naquela época, essas transformações eram realizadas em fornos como estes, da mesma maneira que é hoje. Só que hoje estes são mais sofisticados. Vocês sabem que a África, assim como a América, foi colonizada pelos europeus. A historiografia da África mostra que os africanos já dominavam esses conhecimentos e técnicas bem antes da chegada do europeu naquele continente.

34

Semelhança entre forno de fundição africano e esquema de um alto forno siderúrgico moderno. Fonte: Childs (1991, p. 342).

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T

SI

Transcrições da fala

Existiam diversos tipos de fornos. Esse aqui, por exemplo, é bem maior do que um homem.

35

PF1

Foto de um ferreiro africano na Tanzânia. Fonte: Childs (1991, p. 346).

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756

36

PF1

Quem dominava essa tecnologia eram os ferreiros, eles tinham status de reis. O ferreiro era o líder da comunidade. E foram esses reis ferreiros que vieram aqui para o Brasil para ser escravizados.

37

PF1

As etapas do trabalho com o Fe se dividem de um modo geral: 1- Em garimpar o minério. Esse fenômeno é físico ou é químico?

38

A2

Físico.

39

A5

Físico.

40

PF1

2- Reparar o arenito. O arenito é o minério onde se encontra a hematita, por exemplo.

41

A5

O que é reparar?

42

PF1

Reparar é tratar, separar.

43

A5

Físico.

44

A10

Físico.

45

PF1

3- Fabricar o combustível, como o carvão. Isso é físico ou químico?

46

A11

Químico, já.

47

PF1

Químico, né?

48

PF1

Vocês sabem como é fabricado o carvão?

T

SI

Transcrições da fala

49

PF1

O carvão que vocês usam para assar carne, por exemplo.

50

A3

Eles colocam um forno. Eles pegam a tora, coloca no forno, deixa queimar lá e depois tira.

51

PF1

E em termos de reações química, vocês sabem?

52

PF1

É a transformação da celulose, que é a madeira em carvão.

53

PF1

É igual A3 falou ali. É colocado no forno, é uma combustão incompleta, daí forma o carbono.

54

PF1

Então, é a celulose reagindo com o O2 gasoso numa combustão incompleta, formando carbono (carvão) e gases: monóxido e dióxido de carbono e vapor de água.

55

PF1

Então concluindo, na etapa de fabricação do combustível, tem transformação química.

56

PF1

4- Construir o forno é químico ou físico?

57 Todos Físico. 58

PF1

5- A fundição em si. É físico ou químico?

59

A5

Químico.

60

PF1

É aquilo que falei para vocês. É sair do ferro dois ou três e ir a ferro zero.

61

PF1

6- E por fim a forja dos utensílios, a manipulação que é?

62

A5

Físico. Fonte: Elaborado pelos autores (2017).

O africano foi o responsável pela introdução da fundição do ferro no Brasil na virada do século XVII para o XVIII: Os ferreiros africanos, além de dominar técnicas de fundição e forja do ferro trouxeram consigo outros atributos de profundo significado cultural. Na região do reinado do Congo (Século XVII), os ferreiros eram líderes espirituais e militares respeitados (associados á nobreza). Eles criavam todos os tipos de ferramentas armas e utensílios domésticos e eram considerados intermediários entre os homens e os espíritos, ocupando sempre um papel central nas cerimônias tradicionais das comunidades (PENA, 2004, p. 1).

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Ensinar uma química descolonizada significa admitir a “força das culturas consideradas negadas e silenciadas nos currículos” (GOMES, 2012, p. 102), pois a “negação de um passado em CT dos povos africanos e a exacerbação se seu ‘caráter lúdico’ foi uma das primeiras façanhas do eurocentrismo [...] Continente bárbaro, pré-histórico [...]” (NASCIMENTO, 1994, p. 33). Desta forma, remontamos ao contexto de desenvolvimento/exploração do Brasil Colônia a partir das contribuições dos povos africanos, contexto selecionado para a IP em aula prática de Química Geral (turnos 17 ao 62). A equação química (I), não balanceada, representa a transformação ocorrida que é significada (como símbolo da ciência apresentada – a linguagem científica) nos discursos de A3 no Turno 50 e PF1 no Turno 54: (C6H10O5)n + O2 → C + CO2 + CO + (CH)n H2O (I) A equação química (II) representa a transformação ocorrida que, novamente, são significadas nos discursos de PF1, A5 e A11 nos Turnos 45 a 62. Nossos resultados mostram que estudantes e professores integram a ação mediada mobilizando a linguagem científica com seus símbolos e sua interação sinérgica – palavras, símbolos, gráficos, tabelas (BENITE et al., 2015) – a partir de contexto contra hegemônico, ou seja, a ciência de matriz africana. Fe2O3 + 3CO → 2Fe + 3CO2 (II)

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Nos Turnos 30 a 35, o PF1 insere a discussão de que os ferreiros africanos já realizavam transformações químicas e, portanto, questiona o mito de que as grandes transformações surgiram na Europa na Revolução Industrial (M’BOKOLO, 2009, I e II). Soma-se a isto o fato de que nossos ancestrais dominavam também conhecimentos de arquitetura e engenharia mobilizados na produção dos fornos:

Os tamanhos dos fornos variavam de acordo com a demanda de metal que se desejasse produzir, tendo em conta algumas variáveis colocadas pela natureza. A principal delas era a qualidade do minério para ser fundido encontrado nos chapadões ou jazidas. Os arenitos com baixo teor de ferro necessitavam de fornos maiores para que uma maior quantidade de minério fosse despejada em seu interior a fim de que se produzisse a quantidade de metal desejada. Outro fator ponderado pelo mestre fundidor para se atingir uma determinada quantidade de metal era a duração do tempo da estação da seca, época propícia para a fundição (PENA, 2004, p. 3).

Os discursos produzidos nos Turnos de 32 a 64 discorrem sobre as etapas necessárias para se chegar à fundição e à forja do ferro. Importa ressaltarmos que “o domínio dessas técnicas por algumas sociedades africanas é conhecida desde o século I a. C.” (VERCOUTTER, 2010, p. 827). Apoiando-nos em Sherby; Wadsworth (2001) para dizer que o ferreiro africano se utilizava de alguns métodos para criar uma compreensão sobre o comportamento do ferro: a) a observação da cor do ferro, uma vez que é aquecido para forja e por tratamento térmico – esta é a base de um bom trabalho de forja (figura 4); b) a determinação do teor de ferro, caracterizado pela facilidade de forjagem, o que é uma função da temperatura; c) a determinação da força e a dureza de ferro à temperatura ambiente. Essas propriedades podem ser determinadas por raspagem ou pelo processo mecânico de dobrar o ferro e são dependentes da temperatura da forja e da velocidade de arrefecimento após o forjamento; d) o uso de magneto para medir as propriedades magnéticas do ferro (magnetita é o óxido de ferro magnético mineral); e) a projeção de que o ferro tem duas estruturas internas distintas: uma compacta e uma menos compacta.

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Figura 4 – Os dois principais conhecimentos que norteavam o trabalho dos ferreiros. Fonte: Sherby; Wadsworth (2001).

No extrato 3 a seguir, PF1 coordena a preparação da ferrita que, nesse caso, é a magnetita (Fe3O4), um mineral ferrimagnético que contém ferro em dois estados de oxidação, o Fe2+ e o Fe3+:

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É uma fonte importante de minério de ferro, que é um óxido de ferro misto com FeO e Fe2O3, apresentando estrutura semelhante à montmorilonita, de espinélio invertida, com os íons O2- coordenados tanto a íons Fe2+ e Fe3+, nos interstícios octaédricos, quanto a íons Fe3+ em interstícios tetraédricos. Como os íons Fe3+ são divididos igualmente entre as posições

tetraédricas e octaédricas, não existe momento magnético resultante de presença destes íons. Entretanto, todos os íons Fe2+ residem nos interstícios octaédricos, sendo estes íons responsáveis pela magnetização de saturação ou, ainda, pelo comportamento magnético do material (OLIVEIRA et al., 2012, p. 127). Extrato 3 – Síntese de ferrita. T

SI

66 PF1

Transcrição da fala

Tal como os ferreiros africanos, iremos hoje fazer algumas reações envolvendo o ferro.

Você, A11, pese 2,04 g de sulfato de ferro e amônia, com auxílio de espátula. A5, pese para mim 1,2 g de sulfato ferroso. 67 PF1 A3, mede aqui pra mim 10 mL de hidróxido de amônio com auxílio de proveta. Agora, retire 2 mL com auxílio de pipeta da solução preparada 68 PF1 por A5, 2 mL da solução preparada por A11 e 10 mL da solução medida por A3 e misture. 69 PF1

Vamos passar um ímã em cada tubo para verificar se existe um comportamento magnético.

Agora vamos discutir a formação da magnetita. Foi medida uma massa de: 70 PF1 FeNH4(SO4)2 . 12H2O e de FeSO4 . 7H2O. Pessoal, pra gente fazer aquele material ali (aponta para a magnetita) nós juntamos dois sais de ferro. 71 PF1 Qual é o estado de oxidação do ferro nesses dois sais? 72

A9

No primeiro 3+, e no segundo 2+.

Então, para eu fazer a magnetita, eu parti de um sal de Fe com 73 PF1 NOX 3+ e de um sal com o NOX do Fe = 2+, e A3 mediu uma solução de hidróxido de amônio. 74 PF1 Para que esse hidróxido de amônio serviu? 75

A5

Catalisador?

76

A5

Num sei.

Não. Vocês lembram lá do Ensino Médio quando falava sobre a 77 PF1 solubilidade dos hidróxidos? Os hidróxidos de metais alcalinos são solúveis (Li, Na, K, Rb, 78 PF1 Cs). Esses hidróxidos são todos solúveis, tanto é que vocês pegam lá o hidróxido de sódio e dissolvem rapidinho.

761

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T

SI

79 PF1

Transcrição da fala

Os de alcalinos terros (Mg, Ca, Sr, Ba) esses aqui são todos parcialmente solúveis, quem não conhece o leite de magnésia ?

80 PF1 E os dos metais de transição são insolúveis. Então, quando eu pego um metal de transição e coloco na 81 PF1 presença de uma base ele é insolúvel. Então, a função do hidróxido de amônio aqui é precipitar esses dois sais. 82 PF1 Concluindo e voltando para os ferreiros: Os ferreiros africanos tinham status de reis, eram senhores de 83 PF1 suas comunidades e dominavam uma certa tecnologia para a época? 84 PF1

Sabem como o ferreiro africano veio aqui para o Brasil? Alguém já contou isso para vocês?

A mão de obra africana que veio para o Brasil era uma mão de obra altamente especializada para a época. Quando os lusos brasileiros descobriram jazidas auríferas e minas de ferro no 85 PF1 interior de Minas e no interior do Rio de Janeiro, o que eles faziam? Mandavam os traficantes irem lá à África e buscar os povos que dominavam a forja do ferro. Fonte: Elaborado pelos autores (2017).

Verificamos o comportamento magnético, tal como os ferreiros, por meio da utilização de ímã. A figura 5 mostra as partículas da ferrita sintetizada atraídas por ímã.

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Figura 5 – Avaliação do comportamento magnético da ferrita sintetizada. Fonte: Arquivo dos autores (2017).

A ação mediada é espaço de negociações de significados, de manipulação dos instrumentos próprios da ciência e do estabelecimento do diálogo. A mobilização de símbolos, tais como número de oxidação (Turnos 72 e 73); equações (Turnos 60 e 67); instrumentos como balança, pipeta, espátula e proveta (Turnos 67 a 69); linguagem especializada com termos próprios: catalisadores (Turno 75), metais de transição (Turno 80) e precipitar (Turno 81) são resultados que caracterizam a ação mediada desenvolvida nesta IP como válida. Soma-se a isto o fato de que se pode negar a historiografia pobre delegada à África nos livros e na ciência ensinada. É preciso reconhecer que os proprietários escravistas, por não dominarem muitas técnicas associadas com a exploração da colônia brasileira, buscavam mão de obra especializada: Os conhecimentos técnicos da metalurgia do ferro, acumulados pelas tradições centroafricanas e pelos povos da África Ocidental, eram fundamentais para a produção não apenas das ferramentas agrícolas, dos utensílios domésticos e dos apetrechos de transporte (tropas e carretos) da Minas colonial, mas, sobretudo, para a elaboração dos instrumentos necessários à mineração de jazidas auríferas. Boa parte da recente historiografia sobre revoltas e quilombos no Brasil Colônia destaca a atuação dos ferreiros como líderes religiosos e militares (PENA, 2004, p. 1).

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Vivemos um momento ímpar no ensino de ciências no país. Este momento revoga pela articulação entre as precárias condições materiais vividas pelos sujeitos da escola e as dinâmicas culturais, identitárias e políticas desta sociedade multirracial. A demanda de introdução do ensino da história da África e das culturas afro-brasileiras nas instituições de ensino trazidas

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pela Lei nº 10.639/03 exige o questionamento das omissões e dos silenciamentos dos currículos em ciências/química. Neste contexto, planejamos, produzimos e desenvolvemos a IP aqui apresentada como uma proposta de descolonização de tal disciplina. A introdução da temática no instrumento de avaliação usual, a prova escrita (Tabela 1), permite afirmar que o formato de avaliação engessada das IES não foi modificado. Estamos falando de aula de Química Geral para turmas iniciais, aulas de laboratório que seguem roteiros predeterminados para aquisição de habilidades científica, ou seja, não houve modificações nesses moldes que apoiem ou justifiquem resistências frente à implementação da Lei nº 10.639/03. Nossos resultados permitem dizer que esta iniciativa denuncia a rigidez do currículo da IES, o empobrecimento do caráter conteudista e a necessidade do diálogo com a cultura negada por este modelo. Deste modo, a mudança estrutural proposta pela lei abriu caminhos para construir uma intervenção baseada em uma educação antirracista que rompe com a epistemologia curricular no momento em que apresenta a ciência de matriz africana. As articulações entre passado, presente e futuro sobre as construções, experiências e produções do povo negro são uma alternativa para apresentar uma Química não branca e eurocêntrica. Ora, a Química é a ciência da transformação da matéria e toda sociedade, quando se organiza culturalmente, é pelo trabalho e, consequentemente, pela transformação. AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem ao CNPQ e à FAPEG. REFERÊNCIAS Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-768, set. / dez. 2016

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A FILOSOFIA AFRICANA E O PROJETO IDENTITÁRIO: PERSPECTIVAS E DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO Gregório Adélio Mangana1 Anselmo Panse Chizenga2 Resumo O presente artigo analisa o contexto e as metamorfoses da (re)produção do significado objetivo e subjetivo da África na filosofia e suas repercussões na afirmação das identidades africanas, tendo como foco a esfera educacional, sobre a qual incidem grandes indagações sobre as perspectivas endógenas no contexto de globalização. A metodologia empregue foi a revisão bibliográfica por intermédio dos autores africanos e não africanos que debatem a temática da filosofia, identidade e educação africana. Pode-se perceber, a partir deste, que o processo da afirmação identitária repercute-se na esfera educacional – a qual está repleta de desafios e perspectivas, denominados de processos de marcha e contramarcha. 1 Professor de Filosofia na Universidade Pedagógica de Moçambique, Licenciado

em Filosofia pela Universidade Pedagógica de Moçambique, Mestrando no programa de pós-graduação em sociologia da Universidade Federal de Pernambuco-Brasil, membro do grupo de pesquisa Sociedade Brasileira Contemporânea: cultura, democracia e pensamento social da Universidade Federal de Pernambuco. Correio eletrónico: [email protected] 2 Licenciado em Filosofia pela Universidade Pedagógica de Moçambique. Estudante bolsista, PEC-PG/CNPq, do mestrado no Programa de PósGraduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na linha de pesquisa Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade (TEMAS) e membro do da Rede Interdisciplinar e Multidisciplinar de Pesquisas (RIMPs) em Estudos Africanos, do Instituto Latino Americano de Estudos Avançados (ILEA-UFRGS).

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Palavras-chave: Filosofia. África. Educação.

AFRICAN PHILOSOPHY AND IDENTITY PROJECT: PERSPECTIVES AND CHALLENGES OF EDUCATION IN THE GLOBALIZATION CONTEXT Abstract This article analyzes the context and the metamorphoses of the (re)production of Africa’s objective and subjective meaning in the philosophy and its impact on the assertion of African identities, focusing on the educational sphere, on which concern big questions about the endogenous perspectives in the context of globalization. The methodology employed was the literature review through African and non-African authors who discuss the theme of African philosophy, identity and education. It is possible to perceive, from this, that the process of identity affirmation reflects in the educational sphere, that is full of challenges and perspectives, and that we call play and counterplay processes. Keywords: Philosophy. Africa. Education.

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A FILOSOFIA AFRICANA E O PROJETO IDENTITÁRIO: PERSPECTIVAS E DESAFIOS DA EDUCAÇÃO NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO 1 O GENITIVO “ÁFRICA” NA FILOSOFIA: (DES)MARCHAS DA FILOSOFIA AFRICANA Os africanos entram na “história universal” como escravos, colonizados e hoje globalizados. Severino Elias Ngoenha (2011)

Para falar de filosofia africana e sua relação com o processo de construção de identidade, é indispensável partirmos de duas categorias fundamentais no debate filosófico africano, nomeadamente: a concepção objetiva e a subjetiva, em torno da qual o significante “África” está em volta. De acordo com Dismas Masolo (1994, p. 1, tradução nossa), A origem do debate filosófico africano está associada a dois principais eventos: o discurso ocidental sobre a África, e a resposta africana a essediscurso, no centro deste debate está a concepção da razão, valor que grandemente divide estados civilizados e não civilizados, o lógico e o mítico […] e [...] passando por dois campos: Ocidental e não ocidental3.

Afiguramos importante recorrer a este autor, não só pelo fato deste conceber que a particularidade da filosofia africana é a busca da identidade, mas pela distinção conceitual provida 3 “The birth of the debate African philosophy is associated with two related

happenings: western discourse on Africa, and the African response to it… At the center of this debate is the concept of reason, a value which is believed to stand as the great divide between the civilized and the uncivilized, the logical and mystical… and... Passed between the two camps: western and nonwestern” (MASOLO, 1994, p. 1, transcrição original).

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de historicidade africana em dois âmbitos: primeiro, o discurso ocidental sobre a África (a África como objeto) e o segundo, intimamente vinculado à filosofia africana como reação dos africanos a objetividade ocidental. Essas gramáticas se resumem em dois genitivos específicos nos quais o significante “África” é a referência, o genitivo objetivo e o genitivo subjetivo. Se no primeiro o discurso filosófico é sobre África, em que o africano constitui objeto de produção ocidental, no último os africanos são eles próprios sujeitos do discurso filosófico, configurando um esforço endógeno de reflexão. O primeiro momento, vinculado ao genitivo objetivo, pode ser caracterizado como momento de produção exótica da África, que consiste na negação da condição humana aos africanos. Aqui se dá a invenção de África como objeto do olhar e da interpretação alheia. Para legitimar essa concepção, as humanidades, em particular a filosofia, constituem um instrumento fundamental na produção e legitimação de gramáticas tendentes à inferiorização dos africanos, mobilizando um conjunto de variáveis como crença, pensamento, espaço e tipo de ser humano. É nesse sentido que se inserem as reflexões de filósofos como Kant, Hegel e outros. Kant (1724-1804), em sua obra, Observação sobre o sentido do belo, ao estabelecer um conjunto de traços caraterísticos dos povos de diferentes nacionalidades europeias, refere-se aos africanos nos seguintes moldes:

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Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um negro tenha mostrado talentos, e afirma: dentre os milhões de pretos que foram deportados de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre os brancos, constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa, adquirem

no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes. Tão essencial é a diferença entre essas duas raças humanas, que parece ser tão grande em relação às capacidades mentais quanto à diferença de cores. A religião do fetiche, tão difundida entre eles, talvez seja uma espécie de idolatria, que se aprofunda tanto no ridículo quanto parece possível à natureza humana. A pluma de um pássaro, o chifre de uma vaca, uma concha, ou qualquer outra coisa ordinária, tão logo seja consagrada por algumas palavras, tornam-se objeto de adoração e invocação nos esconjuros. Os negros são muito vaidosos, mas à sua própria maneira, e tão matraqueadores, que se deve dispersá-los a pauladas (KANT, 1993, p. 75-76).

Para Kant, as dinâmicas socioculturais no continente africano se resumiam no caráter bizarro dos negros. O mesmo percurso será trilhado por Hegel (1770-1831), para quem o que constitui a essência do ser africano é o constrangimento a que a África está mergulhada, desde a sua configuração geográfica até as diferenças de carácter espiritual. O caráter da África é adverso à cultura e a realidades europeias, daí o africano será definido como oposto ao valorativo, sem religião, estado, lei moral e eticidade: “o negro representa o homem natural em toda a sua selvajaria e barbárie, se pretendemos conhecê-lo devemos deixar de lado todas as representações europeias” (HEGEL, 1995, p. 180). É devido a uma característica comum de ausência de axiologia humana e empobrecimento antropológico que “a escravatura constitui a relação jurídica fundamental”, na medida em que conduziu este grupo social à consciência de liberdade que eles próprios passaram a disputar (HEGEL, 1995, p. 187). Na visão de Hegel, a África não é única, mas dividida em três partes distintas e cada uma sem qualquer relação com a outra: uma é a que se situa ao norte do deserto, a África

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europeia, no dizer de Hegel, que inclui atuais territórios de Marrocos, Argel, Túnis, Trípoli, toda esta parte não pertence à África, mas sim à Espanha e é por isso que ela partilha o destino dos grandes, que é decidido em outras partes; a segunda seria a região fluvial do Nilo, o único vale da África que se une à Ásia, a região que se estende até o Egito; por último, encontramos a “África propriamente dita”, que se situa ao sul do Saara, a que constitui a parte característica deste continente, razão pela qual todas as adjetivações antes apresentadas confinam-se a uma região específica. A partir dos enunciados acima, observa-se que o primeiro momento de aparição filosófica da África e dos africanos é a afirmação de uma identidade e alteridade africana, uma produção exógena toldada de pressupostos eurocêntricos e racistas em voga. Isso não surpreende, tendo em conta as circunstâncias históricas, o panorama ideológico e intelectual da época moderna: o evolucionismo, o racismo e a pretensão de transformar a humanidade para fins ideológicos. E é esse o espírito da colonização, escravatura e racismo que as posições anteriores são bastante esclarecedoras. Como observa Mveng (1999), essa concepção é o corolário “pauperização antropológica” ligada à invenção de categorias sociais tendentes à coisificação do outro, com base nos estereótipos como localização geográfica, traços socioculturais em uma escala hierárquica de valores (na qual os africanos se encontram em posições inferiores). Portanto, a ciência e a religião viram-se para legitimar o ideal expansionista, negando a humanidade do africano. O sociólogo francês Wieviorka (1998, p. 170) entende que esses fatos tinham por objetivo

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a destruição dos que parecem constituir um obstáculo económico, político e cultural à progressão do homem branco; a dominação dos outros, necessariamente subordinados em nome da raça, seja elas populações autóctones

[...] ou populações deslocadas no quadro da escravatura.

Em seguida do processo de produção acadêmica de matriz eurocentrista, na qual a filosofia africana figura como “objeto” de miragem alheia, inicia-se o segundo momento no qual, segundo Masolo (1994), é da resposta ou réplica africana ao discurso sobre a África. Este momento é caraterizado como o da construção endógena, em que os próprios africanos procuram assumir as rédeas da produção intelectual, configurando, deste modo, o momento da subjetivação e intersubjetivação, ou seja, o da colocação do próprio africano no centro e como sujeito do discurso intelectual. Para efeitos didáticos, podemos afirmar que os momentos da produção filosófica e constituição das identidades endógenas africana são abrangidos por seis grupos divergentes em termos de conteúdo semântico de suas reflexões filosóficas: a diáspora e a vertente política; a escola etnológica; a escola crítica; a escola crítica da crítica; a escola hermenêutica; a escola autonomistaintersubjetivista. De forma sucinta, destacaremos aquilo que foi o principal conteúdo de três perspectivas da filosofia africana. Não obstante a diferença epistemológica substancial entre distintas correntes, o grosso modo dessas incursões converge na materialização do esforço endógeno fundada na cultura e valores “eminentemente” africanos, envolvendo um conjunto de operações críticas (discursos e ações), mobilizando conceitos (dos quais a razão), referencial teórico, objeto empírico e metodologias específicas, de modo a afirmar a identidade africana na marcha existencial com base em repertórios e experiências vivenciadas que orientam suas cosmovisões – é o momento da construção “reinvenção da África”, inaugurando um debate em torno das identidades africanas. No que tange à escola etnológica, a partir da segunda metade do século XX, sobretudo na década de 1970, iniciamse a produção intelectual e um debate de ideias variadíssimo,

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com posições contraditórias e abordagens polêmicas entre os teóricos africanos. O âmbito do debate gira em torno da possibilidade de se fazer filosofia no contexto africano, tendo em conta a especificidade de tradições, culturas, contos e lendas. Para Ngoma Binda (1982 apud NGOENHA, 2014), a publicação em 1945 da obra La philosophie Bantu, do missionário belga Placide Tempels (1906-1977), marca a gênese do debate filosófico4 escrito. Nesta obra, o autor procura se contrapor a Lévy-Bruhl, segundo o qual a filosofia bantu era pré-lógica (para Tempels, a filosofia bantu deve ser percebida como lógica, mas com uma lógica menor, apegada à sua ontologia com um sistema de princípios e um conjunto de ideias do homem, das coisas que o circundam, da existência, da vida, da morte e da vivência). Ou seja, o sistema ontológico negro já foi elaborado há tempos, mas escapa ao pensamento dos bantu, adverte o autor, para quem Não pretendemos reivindicar que os Bantus são capazes de formular um sistema filosófico acabado com um vocabulário adequado. Nosso objetivo é desenvolver e sistematizar esse pensamento. É graças a nossa própria preparação intelectual que ele irá sendo desenvolvido de forma sistemática. Cabe-nos fornecer-lhes um quadro preciso de concepções das entidades de forma a que eles se reconheçam nas nossas palavras e concordem dizendo: Vós percebestes-nos, agora conhecei-nos completamente, “conheceis” da mesma forma 4 Uma análise detalhada sobre o porquê em torno da filosofia africana, mais Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-792, set. / dez. 2016

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do que qualquer outra disciplina das ciências humanas, cf. Appiah (1996); Hountondji (2010) e a monografia cientifica intitulada Os desafios da filosofia africana na construção das identidades africanas em Kwame Anthony Appiah, de Chizenga (2011).

que nós conhecemos (TEMPLES, 2006, p. 17, tradução nossa).5

Uma das repercussões do trabalho de Tempels é a aparição de um conjunto de trabalhos científicos – teses, dissertações, artigos, obras, entre outros de autores africanos contestando ou seguindo a mesma direção, marcando assim distintas correntes cujo eixo de reflexão ou prescrição normativa das formas de produção intelectual africana e seu conteúdo. Na senda de Tempels, outros autores seguiram a mesma abordagem: descrever/ reconstruir apenas a cosmovisão dos seus antepassados e os pressupostos coletivos das suas tradições. Os mais destacados destes foram Alexis Kagame, em seu trabalho A filosofia bantu-ruandeza do ser, e John Mbiti. Em seus trabalhos, estes autores referem que a essência africanidade e da possibilidade da sua cientificidade reside nas suas línguas, tradições, contos, lendas, religião. Ou seja, advogam em torno duma ontologia eminentemente africana. Segundo os críticos, esses autores empreenderam esforços regressivos, pois fazem uma filosofia sem filósofos, ou seja, centrada na visão coletiva e irrefletida do mundo. Contrapondo-se à perspectiva etnográfica, a primeira geração da escola crítica é marcada por figuras como Crahay, Hountondji6, Wiredu e Eboussi Boulaga. Em suas incursões, estes autores questionam o substrato epistemológico de uma ontologia africana, por meio da oralidade e do pensamento coletivo na produção do saber científico: até que ponto os 5 Versão original: “We do notclaim, of course, that the Bantu are capable of

formulating a philosophic altreatise, complete with in adequate vocabulary. It is our job to proceed to such systematic development. It is we ho will be able to tell them, in precise terms, what they’re in most concept of beingis. They will recognize them selves in our word sand will acquiesce, saying, “You understand us: you now know us completely: you “know” in the way we know”. 6 Hountondji abandonou esta perspectiva ao longo da sua carreira. Cf. SANTOS; MENEZES (org.). Conhecimento de África, Conhecimento de africanos: duas perspectivas sobre os estudos africanos. Coimbra: Contraponto, 2009. p. 119-132. Cf. CASTIANO. Referenciais da filosofia africana: em busca da intersubjectivação. 1. ed. Maputo: Ndira, 2010.

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saberes locais, os contos, as lendas transmitidas oralmente são dignos de um tratamento científico, até que ponto a tradição oral e seus dogmatismos servem na consolidação do saber científico prementes na oralidade? Isso significa dizer que, para estes autores, não há produção científica onde domina a cultura oral e um horizonte histórico voltado para o passado, problematizando deste modo o papel das tradições na produção do saber. A definição da filosofia africana como um conjunto de texto serve para prevenir que elementos da tradição oral servem como ponto de referência da especulação filosófica, ou seja, “trata-se de demonstrar que os nossos contos morais, as nossas lendas didáticas, os aforismos, os nossos provérbios, aos quais normalmente se faz referência, não exprimem uma investigação” (NGOENHA, 2014, p. 98). Segundo Elisio Macamo (1998), as respostas à invenção de África acabam sendo ela mesma o arcabouço teórico da produção intelectual na qual os acadêmicos africanos são levados a assumir responsabilidades intelectuais próprias, em um contexto plural, tendo noção das contradições, dos debates internos e das tensões intelectuais que retroalimentam a produção cientifica no continente. Este momento, longe de constituir consenso entre filósofos africanos, constitui um problema filosófico, pois está em volta de debates e posições polêmicas internas, o que sob o ponto de vista de debate de ideias é interessante, mas analisando a agenda e as circunstâncias em que são produzidas e continuam sendo produzidas até hoje é bastante complexo. Isso pois os intelectuais, longe de produzirem e proporem desafios e alternativas teóricas e empíricas, tendem a viciar sua produção intelectual com distorções e ficções sobre a África – introduzidas pelos teóricos ocidentais a influência dos próprios cientistas que, nas suas análises, reproduzem e usam categorias essencializadas, mesmo de forma inintencional, o que se repercute no processo de educação com valores e perspectivas identitária endógenas (MUDIMBE, 1989; APPIAH, 1996).

DEBATE SOBRE IDENTIDADE E SUAS REPERCUSSÕES NA ESFERA EDUCACIONAL

O debate em torno das identidades africanas assume diferentes perspectivas e sentidos distintos. Geralmente, fala-se de identidades africanas quando se pretende ajuizar de como a vida social e orgânica da África foi influenciada pelo desenvolvimento econômico, industrial e social da colonização e influências socioculturais de outros povos (CHIZENGA, 2011). Nestes moldes, o discurso sobre as identidades africanas toma a dianteira, na medida em que o continente, como uma invenção da ciência do século XIV-XIX, estava destinado a servir os seus “predadores” em nome da superioridade racional e racial dos navegadores europeus em relação aos autóctones. O processo de construção e afirmação das identidades africanas visava desconstruir o mito da inferioridade dos africanos evocando uma série de categorias e valores endógenos – raça, cultura e cosmologias – de modo a promover a sua afirmação, exaltando uma releitura do passado visando estimular o significado e a essência de ser africano em um mundo marcado pelo pluriculturalismo, multiracismo e, acima de tudo, pelo diálogo intercultural. Appiah (1997, p. 242-243) define identidade como a “coalescência de estados de conduta, hábitos de pensamentos e padrões de avaliação mutuamente correspondentes”. Esta definição, a priori, evidencia a identidade como estando associada ao “mesmo”. Nesta ordem de ideias, a identidade nos remete a um conjunto de atributos e qualidades fixas partilhadas pelos membros do mesmo grupo. Entretanto, a identidade, além de remeter para aquilo que é idêntico, também o faz para o que é distinto, a diferença em relação às outras identidades, distinguindo-se uma qualidade idêntica e específica da alterna – qualidade do outro. Não se pode falar de identidade social sem inteiração social, processo pelo qual os indivíduos adquirem traços

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distintivos que são específicos à sociedade em que foram criados, o que constituirá certa forma de identificação com base nos domínios culturais, geográficos, políticos e sociais que contribuem para a solidificação da identidade como grupo ou traços de referência nas relações humanas, pois “a identidade é um modo historicizado e dinâmico de categorização simbólica usada por indivíduos e grupos nas suas trocas sociais” (SERRA, 1998, p. 10). Além do território e de outros recursos de identificação, Liesegang (1998) refere que as semelhanças, como características naturais e experiências adquiridas, fundamentam as identidades. Com base em atributos e semelhanças partilhadas, encontramos dois âmbitos de identificação: a autoidentificação e a exoidentificação. Portanto, o premente no processo de construção das identidades africanas é a autoidentificação. A DIÁSPORA E A VERTENTE POLÍTICA NA CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE NEGRO AFRICANA

Um dos elementos agregadores de mobilização em torno das identidades africana tomou uma matriz racista, a partir da suposição da identidade negro africana. Essa afirmação identitária se difundiu na diáspora. A construção de uma identidade negro africana, além de ser uma legítima luta contra a alienação cultural7, figura como uma tentativa de autorreabilitação e de assumir uma cultura africana perante a negação axiológica. Os vínculos identitários avançados por esses autores têm a ver com o que supunham ser um destino comum aos povos da África. E esse destino provinha não pelo fato de partilharem um território, mesma experiência histórica ou enfrentarem Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-792, set. / dez. 2016

7 Para Fanon (1961), o colonialismo e a escravatura se propunham a arrancar os

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negros da noite e libertá-los da barbárie, aviltamento e animalização, o que ao invés de fazerem-no, perpetuaram-no.

todos os ameaça da Europa imperialista, mas sim por serem todos negros e a África ser a sua pátria. Para esses autores, era indiscutível que as raças têm uma individualidade. Esta individualidade está sujeita, em todas as épocas, às leis da vida racial. Essa vida racial, em todo o globo, mostra uma invariável propensão, na totalidade dos casos, à integração do sangue e à permanência da essência (DU BOIS, 1964 apud APPIAH, 1997, p. 29).

A concepção de uma identidade africana com base na raça deve-se ao fato de a raça, em relação a outros vínculos componentes identitários, não ser manipulável, pois apesar da inteiração e dinamismos social em que os elementos identitários possam ser negociáveis e confundidos, no caráter biológico de diferença racial permanece a essência, ou seja, o conteúdo e o valor da raça permanecem constantes. Para esses autores, a afirmação da personalidade africana com base na raça emerge como uma força estimuladora para a exaltação do ser negro como uma perspectiva na edificação de uma nova sociedade não alicerçada no passado, mas voltada para o futuro. Esta era uma forma enérgica de emergir e de se afirmar na convivência universal. Há quem diga que esses pensadores tinham, apesar das elevadas esperanças em relação aos negros, opiniões muito negativas a respeito de suas línguas, religião e cultura africanas, portanto não é de admirar que, em face da tentativa de se afirmar como africanos, também se achavam mais civilizados e desejavam civilizar a África e os negros continentais (APPIAH, 1997). Alguns consideram que, por obrigações históricas, os pensadores e idealizadores das identidades africanas tiveram que racializar as suas reivindicações, pois, mais do que nunca, era preciso regressar às raízes para evitar mutilações psicoefetivas extremamente graves. A concepção de uma identidade negro

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africana emerge como uma força enérgica de criatividade interior, face ao desconforto da exclusão social e das amarguras da descriminação racial por eles vivenciados. No que diz respeito à diáspora africana e a perspectiva política, movimentos emancipatórios organizados por afrodescendentes na América do Norte, e a primeira geração de intelectuais africanos, formada nas academias ocidentais instruídos com base nas teorias etnocêntricas do Ocidente, empreenderam um esforço no sentido de se emancipar das objeções falaciosas nas quais eles eram referenciados8 marcando, assim, o primeiro esforço endógeno. Uma passagem rápida dos principais teóricos afrodescendentes do século XX, cujas reflexões orientaram para uma matriz identitária e a personalidade africana, para estes a “raça” e a suposição de origem geográfica constituíam um elemento agregador de mobilização social: é com base na “raça” que esses grupos se organizam e reclamam o devido reconhecimento. Nesta perspectiva, destacam-se figuras como Alexander Krummel (1819-1898), Booker Washington (1856-1915), Edward Blynden (1832-1912), Marcus Garvey (1887-1940), e W. E. B. Dubois (1868-1963); outro grupo de afrodescendentes e intelectuais africanos de primeira geração formados na diáspora, que se ocuparam da questão político, são: Joseph B. Danquah (1895-1965), Kwame Nkrumah (1909-1972), Léopold Senghor (1906-2001), Aimée Césaire (1913-2008), Frantz Fanon (1925-1961), Julius Nyerere (1922-1999), entre outros. Estes pensadores, com um cunho pan-africano e nacionalista, constituem os primeiros esforços de produção intelectual africano (HALLEN, 2001; MACEDO, 2014). 8 O erudito ganês Kwasi Wiredu conta em uma das suas obras ter ficado surpreso Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-792, set. / dez. 2016

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ao perceber, em idade e formação avançada, tempos depois, o significado e o alcance real das teorias em fora instruído as pejorações sobre os africanos que dominavam, daí começou a dedicar grande parte de suas reflexões para descontruir a concepção que lhe ajudaram a construir sobre si.

FILOSOFIA E IDENTIDADE AFRICANA: UMA PERSPECTIVA EDUCACIONAL

Não nos parece fácil falar sobre identidades africanas sem fazer menção às questões fundamentais que sustentam esse debate, os contextos históricos sociais e os desafios específicos em que elas visavam responder, coadjuvada a noção de africanidade e experiências concretas que os africanos partilham e acreditam ser a essência da africanidade. Segundo refere Liesegang (1998, p. 119), “procura-se identidade para adquirir uma maior dignidade, mas também para normalizar uma situação considerada anormal […]. A recuperação de uma tradição talvez seja uma maneira de ocupar um espaço maior numa sociedade multicultural”. A reflexão avançada por Liesegang afigura-se essencial para percebermos a temática e a razão de ser de algumas identidades que hoje reclamam seu espaço, e a nossa reflexão o faz no âmbito do debate sobre as identidades africanas, nas quais, na sua territorialidade e perante os poderes dominantes, lutam por se desidentificar como identidades subalternas que lhes foram impostas pelos poderes exógenos que a dominaram e hoje sob forma de desenvolvimento e globalização tomam a dianteira (CHIZENGA, 2011). Sobre as identidades africanas e as questões do seu surgimento, o filosofo queniano Dismas Masolo afirma: Por razões óbvias, um dos temas dominante na teoria pós-colonial é a temática sobre as identidades, nas suas diversas e variadas formas […]. Isto se justifica devido a ocorrências coloniais e o seu impacto histórico, político e cultural nas sociedades que durante séculos de décadas sucumbiram na dominação colonial, e compreenderam as implicações significativas

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de se libertarem desta dominação9 (MASOLO, 1997, p. 283, tradução nossa).

Com base nessa afirmação, é evidente que a temática identitária que atravessa largamente a literatura africana é uma reação ao domínio colonial. Assim, para perceber o atual projeto da África, é indispensável partirmos do impacto do desenvolvimento da Europa na época moderna. É nesta época que se inicia a colonização e exploração legal, em nome da razão vinculada à ideia de “povos” superiores e inferiores, como motor de desenvolvimento econômico das sociedades capitalistas – a venda de pessoas e força de trabalho –. Para tal, havia os destinados a serem objetos de tal desenvolvimento, pois, segundo as teorias racistas e eurocentristas dominantes, os não ocidentais – para fazer menção aos países centrais da Europa e a América do Norte – tinham uma deficiência de capacidades morais e intelectuais. É isso que fundamentava uma desigualdade natural entre os homens. SABERES ENDÓGENOS NA EDUCAÇÃO CONTEMPORÂNEA AFRICANA

O debate sobre a educação em África nos leva à partida, às peripécias da colonização africana e às perspectivas póscoloniais em prole da valorização, preservação das culturas e identidades africanas, por um lado, e por outro, aos ditames em prole da legitimação dos saberes ditos locais ou endógenos e a sua integração nos distintos programas de ensino ou currículos específicos em escolas e universidades. Esse debate perpassa perspectivas controvérsias entre o dito tradicional e o moderno. 9 “For quite good reasons, one of the dominant themes of postcolonial theory is Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-792, set. / dez. 2016

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the issue of “identity”, in most if not all its various forms […]. Its justification lies in the very heart of historical occurrence of colonialism and its political and cultural impact on those societies which perceived many centuries and decades under colonial domination and in the perceived meaning and implications of the removal of this domination.”

Em qualquer temporalidade histórica as sociedades são incitadas a pensar, e o que os motiva a tal situação é sempre o encontro traumático, violento, com uma realidade externa que se impõe brutalmente, colocando em causa as suas formas rotineiras de pensar (ZIZEK, 2006). A situação em África, concernente a grandes reflexões sobre a educação, não foi diferente. O que leva os intelectuais a cogitar no status quo da educação em África é a facilidade de influências externas que afetam o seu espaço geográfico e que põem em causa os seus diversos sistemas de conhecimento. Os debates sobre a educação em África apresentam posições paradigmáticas conflitantes. Algumas são apologistas na eliminação do velho pelo novo (na eliminação de todos os desígnios da tradição africana), umas com uma posição oposta a esta (na eliminação de tudo que é estranho a africana), e outras, mais moderadas, são apologistas na articulação conjunta, do que é essencialmente africano e do que é externo à África. Os argumentos são vários, os primeiros alegam que o africano tem que se desfazer da sua tradição, porque esta faz com que se atrase na entrada ao mundo globalizado; os segundos acreditam que toda a riqueza ou legado da tradição é a essência do africano e da África, daí a importância da sua valorização; os últimos tentam unir os dois tecidos, defendendo maior riqueza do terreno educacional africano ao fazer dialogar as diversas formas de conhecimento. O debate entre o tradicional e o moderno tem ganhado grande interesse por parte dos intelectuais africanos. A grande inquietação é se as nossas tradições devem, de fato, se tornarem modernas e essa realidade vem se manifestando com muita intensidade no campo de educação. Entretanto, a questão em si é polêmica, pois, como nos assegura o filósofo ganês Kwame Gyekye (1997), do ponto de vista da essência e do fundamento da tradição, podemos dizer que toda a sociedade em nosso mundo moderno é tradicional quando ela abona os

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valores, as práticas, as perspectivas e as normas legadas pelas gerações anteriores. O facto de que toda sociedade no mundo moderno herda valores culturais ancestrais, implica que a modernidade nem sempre é uma rejeição do passado. Diante disso, é crucial desmistificar todo o discurso que apela a tradição como algo de África e de africanos e a modernidade como sendo algo do ocidente. É importante ainda frisar que, mesmo em tais ditas “sociedades tradicionais”, tem uma proporção de crenças e práticas herdadas do passado. No entanto, essa mesma sociedade verifica uma variedade de experiências de mudanças ao longo do tempo, isto é, não é estática e inalterável. Isso porque valores culturais, crenças e normas legadas por uma geração podem ser rejeitados e repudiados por uma geração posterior. Como refere Gyekye (1997), as tradições não são inconciliáveis com a modernidade eliminando-se, desse modo, a percepção de oposição entre a tradição e a modernidade. Para Gyekye, algumas características da modernidade ocidental podem não ser apropriadas para as sociedades e culturas africanas e talvez para outras culturas não ocidentais. Pensadores como Stuart Hall, Hountondji, Masolo, Sousa Santos, entre outros, já alertavam sobre este fato. Hall (1997, p. 3), por exemplo, refere que Há, certamente, muitas consequências negativas […] em termos das exportações culturais do ocidente tecnologicamente superdesenvolvido, enfraquecendo e minando as capacidades de nações mais antigas e de sociedades emergentes na definição de seus próprios modos de vida e do ritmo e direção de seu desenvolvimento.

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Os saberes endógeno, mesmos que tenham sobrevivido à temporalidade histórica pela utilidade que se revela para os povos que os detém, eles precisam doravante que sejam resgatados porque encontram-se ainda subalternizados

em nossas sociedades. É necessário, como dizem Gyekye e Hountondji, apropriá-los. Como sugere Hountondji (2006), antes de ser bem aplicado, o conhecimento tradicional deveria ser testado constantemente pelas pessoas, as quais deviam reapropriá-lo para que torne possível a sua ligação indispensável com o avanço da ciência e da tecnologia. É preciso ajudar as pessoas na administração e na capitalização do conhecimento endógeno. Os saberes que são legados pelas sociedades servem como um vínculo de orientação para o seu povo, quer de forma coletiva ou individual. Este facto se reflete como um retrato à temporalidade histórica africana, mesmo em termos de busca de um ideal educacional, é sabido que as experiências póscoloniais dos povos africanos são em grande parte comuns. De acordo com Masolo (2006), os elementos que constituem ou determinam a personalidade de um indivíduo são acreditados no seu meio sócio-ontológico. Para este autor, na educação tradicional africana, as crianças, por exemplo, eram treinadas para levar mensagens entre aldeias aos parentes e amigos da família. Esse ato era bastante benéfico no aprendizado e desenvolvimento de outras habilidades sociais para as crianças, pois incutia a elas virtudes de obediências e serviços mútuos e, sobretudo, a capacidade de ouvir atentamente, compreender, lembrar e precisamente transmitir mensagens verbais. A educação moral, por exemplo, que era adquirida nos ritos de iniciação, um pouco por todas as sociedades africanas, e a educação cultural que se dava na maioria das sociedades africanas, em um período de reclusão na floresta, proporcionava na pessoa fundamentos éticos e o ideal do bem comum. Os debates filosóficos contemporâneos sobre a legitimação dos saberes endógenos nas escolas e universidades ocupam em grande parte as mentes de intelectuais africanos. Castiano, em seu trabalho Os saberes locais na Academia: condições e possibilidades da sua legitimação (2013), trás um discurso de preservação e valorização, abrindo o horizonte para que

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estes saberes tenham o devido espaço nos círculos acadêmicos e nos programas de ensino em escolas e universidades. Segundo Castiano (2013), é comum em grande parte de filósofos profissionais africanos a atitude de rejeição em integrar/considerar os saberes locais/endógenos ao nível das academias/universidades. De acordo com esta abordagem, há um esforço sobretudo de filósofos profissionais africanos contemporâneos em trazer e legitimar os saberes endógenos nas universidades. A rejeição, acreditamos, é geralmente, fundamentada e alimentada pelas entidades que estão à frente das definições de políticas educativas. Aliás, o próprio Castiano (2013) reconhece que os filósofos profissionais concordam sobre o papel das tradições e do conhecimento endógeno em relação ao futuro da África. A crítica, que pode levar a um doravante debate sobre o saber endógeno nas escolas e na universidade, deve ser realizada e direcionada às entidades definidoras de políticas educativas e aí os filósofos têm um grande papel. Todavia, temos que concordar com Castiano (2013) a respeito da necessidade de legitimação dos saberes endógenos no contexto das academias africanas e, para este autor, a legitimação só poderá se efetivar por meio de um diálogo entre sujeitos epistémicos (intersubjetivos). O futuro da África se resume, efetivamente, na motivação em apreendermos de forma substancial os nossos conhecimentos. Os nossos paradigmas epistemológicos precisam de ser salvaguardados, todavia, vale frisar que esta reivindicação, dos saberes endógenos, não significa a rejeição dos outros tipos de saberes, mas sim a sua valorização pela sua utilidade social. Desta forma, podemos dizer que os diferentes tipos de saber podem partilhar o mesmo espaço e dialogarem, trazendo vários pontos de vista em relação à realidade circundante, identificando e reconhecendo, entre eles, seus limites e possibilidades (MANGANA, 2014).

A questão que se coloca na África hoje já não é entre a africanização e a ocidentalização (posta por pensadores ao longo da história africana, como Horton, Blyden, Carr etc.) e nem o dilema segundo o qual devemos ou não levar os nossos filhos à nova escola, a estrangeira, o qual Kane aborda no seu romance A Aventura Ambígua. A educação contemporânea africana em tempos atuais impera por um diálogo entre realidades epistemológicas diversas, a fim de buscar valorizar os diferentes sistemas de conhecimento existentes no mundo. REFERÊNCIAS CASTIANO, J. P. Referenciais da filosofia africana: em busca da intersubjectivação. 1. ed. Maputo: Ndira, 2010. ______. Os saberes locais na Academia: condições e possibilidades de sua legitimação. CEMEC: Universidade Pedagógica, Maputo, 2013. CHIZENGA, A. P. Os desafios da filosofia africana na construção das identidades africanas em Kwame Anthony Appiah. (Monografia cientifica). Maputo: Universidade Pedagógica, 2011. ESCOBAR, A. Más allá del tercer mundo: globalización y diferencia. Bogotá: s./ed., 2005. GYEKYE, K. Tradition and modernity: philosophical reflections on the African experience. New York: Oxford University Press, 1997. HALLEN, B. A short history of African philosophy. USA: Indiana University Press, 2002. HOUNTONDJI. P. Conhecimento de África, conhecimento de africanos: duas perspectivas sobre os estudos africanos. In: SANTOS, B. de S.; MENESES, M. P. (org.). Epiatemologias do Sul, Almedina, Coimbra, 2009, p. 119-132. KANE, C. H. Aventura ambígua. São Paulo: Ática, 1984. KANT, I. Observações sobre o sentimento do belo e do sublime. Campinas: Papirus, 1993.

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A EXPERIÊNCIA ESCOLAR NAS NARRATIVAS DE IDENTIDADE ÉTNICO-RACIAL: ESTUDO RETROSPECTIVO DE UMA PROFESSORA NEGRA DO MUNICÍPIO DE JUIZ DE FORA, MG Andressa Lima Talma1 Resumo Este artigo se baseia em minha dissertação de mestrado, na qual o objetivo foi compreender a trajetória de vida de uma professora negra que tem o trabalho reconhecido da rede municipal de educação de Juiz de Fora por valorizar o ensino étnico-racial. Utilizei-me da pesquisa narrativa para acompanhar a prática pedagógica da professora e sua trajetória. A pesquisa se apoiou na Antropologia do Imaginário, que busca o equilíbrio entre razão e emoção. Nesse sentido, o imaginário busca a compreensão de um segundo sentido das imagens. No decorrer da pesquisa, pude perceber nas narrativas iniciais da professora a valorização do elemento-ponte, que na perspectiva do imaginário faz a ligação dos contrários e é dessa forma que a professora realiza o seu trabalho. Faz uma ponte para que a cultura negra chegue até sua sala de aula. Ela embasa o seu trabalho em histórias de seus antepassados e no saber materno recebido. No entanto, algumas falhas em relação ao seu planejamento nos apontam a falta da formação acadêmica inicial e continuada para um aprimoramento do seu trabalho. 1 Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação,

especialista em História e Cultura Afro-brasileira e Africana: Educação para as Relações Étnico-raciais, pela Universidade Federal de Juiz de Fora, graduada em Pedagogia pela Faculdade Metodista Granbery. Coordenadora pedagógica da rede municipal de Juiz de Fora.

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Palavras-chave: Ensino étnico-racial. Professora negra. Formação docente.

EXPERIENCE SCHOOL IN NARRATIVE OF ETHNIC-RACIAL IDENTITY: A RETROSPECTIVE STUDY OF A BLACK PROFESSOR AT THE JUIZ DE FORA CITY, MG. Abstract This article is based on my dissertation, in which the aim was to understand the life story of a black teacher who has recognized the work of the municipal of Juiz de Fora education for valuing the ethnic-racial education. I used me from the narrative research to follow the teaching practice of the teacher and his career. The research was supported in Imaginarium of anthropology that seeks a balance between reason and emotion. In this sense, the imagination seeks to understand a second sense of the images. During the research, I could see in the early narratives of teacher appreciation bridge element, which in the imaginary perspective makes the connection of opposites and that is how the teacher performs his work. It is a bridge to the black culture reaches your classroom. It underlies their work histories of their ancestors and know mother received. However, some failures in relation to its planning, point to the lack of initial and continuing academic training for improvement of their work Keywords: Ethnic-racial education. Black teacher. Teacher training.

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A EXPERIÊNCIA ESCOLAR NAS NARRATIVAS DE IDENTIDADE ÉTNICO-RACIAL: ESTUDO RETROSPECTIVO DE UMA PROFESSORA NEGRA DO MUNICÍPIO DE JUIZ DE FORA, MG INTRODUÇÃO

Este artigo se baseia na proposta de compreender as experiências profissionais de uma professora que tem o trabalho reconhecido na rede municipal de educação de Juiz de Fora, por valorizar o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Nosso objetivo será compreender a trajetória de vida pessoal e escolar dessa professora e os fatores que a levaram a ter uma prática diferente de grande parte dos educadores do cenário educativo brasileiro, negros e não negros, que não se preocupam em propor ações que desnaturalizem práticas racistas e valorizem as identidades étnico-raciais de seus estudantes por meio de diversas atividades no cotidiano educacional. Muitos educadores se mantêm arraigados aos ensinos de um currículo eurocêntrico, em que prevalece a valorização da cultura europeia como padrão social. Este cenário é baseado em um paradigma clássico racionalista que valoriza a heterogeneidade, exclui e inviabiliza a valorização e o ensino-aprendizagem de outras culturas diferentes da cultura europeia, que continua a ser valorizada. É necessário haver o rompimento com essa concepção colonizada de ensino e cultura por grande parte dos educadores. O desconhecimento cultural e a invisibilidade de outras culturas, como a africana e a indígena, que também fazem parte da constituição do povo brasileiro, acontecem devido aos anos de colonização do Brasil, um dos últimos países a promover a abolição. Houve a independência do país, porém o currículo

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escolar e as relações sociais permaneceram colonizadas, ou seja, vinculadas ao padrão europeu. Isso tem comprometido o cumprimento de uma lei nacional, a Lei nº 10.639/20032, que ainda conta com alguns entraves para sua implementação. Acompanhamos a prática pedagógica de uma das poucas professoras indicadas por trabalhar a temática étnicoracial de forma sistematizada na rede municipal. Ela é negra e trabalha em uma escola da região norte da cidade. Por meio do acompanhamento de algumas aulas e entrevistas semiestruturadas, procuramos analisar o motivo pelo qual esta professora se diferencia do restante do grupo docente de seu meio escolar com a utilização de metodologias e práticas de ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana no Ensino Fundamental. Houve dificuldade em localizar profissionais que se destacam no trabalho com a temática étnico-racial, pois não há uma sistematização desse trabalho da rede municipal juiz-forana e isso vem acontecendo em algumas escolas de forma precária e limitada. Dessa forma, as crianças negras não se identificam com a escola e tendem ao desinteresse e fracasso escolar. Essa questão do fracasso escolar é antiga: podemos observar na historiografia da educação dos negros no Brasil como foi a escolarização no período da escravidão, em parte do século XIX. Segundo os estudos de Fonseca (2007), alguns autores escreveram que os negros não tinham direito a educação nesse período e, portanto, não frequentavam a escola. “As conexões entre educação e a escravidão são pouco consideradas pela historiografia brasileira” (FONSECA, 2013, p. 37). Em contrapartida a esses estudos, após anos de invisibilidade e silenciamento, Fonseca (2013) contribui significativamente com o cenário acadêmico, por meio de Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-816, set. / dez. 2016

2 Atualmente, a Lei nº 11.645/2008 vigora como modificação atual da Lei de

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Diretrizes e Bases da Educação, porém, por questões políticas, utilizaremos a nº 10.639/2003, que trata a História e Cultura Africana e Afro-Brasileira.

seus estudos sobre a educação escolar do negro, diferentes das anteriores pesquisas generalistas que não tiveram o interesse em estudar a valorização da história do negro e partem de uma perspectiva colonial, contemplando a cultura do colonizador. Destacamos o desenvolvimento de estudos que identificam, na escola, a presença, em grande quantidade, de pessoas negras no distrito de Cachoeira do Campo, que pertencia à cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais. Ele baseia seus estudos em documentos oficiais do censo daquela época. Em outro trabalho, Fonseca (2011) também estuda os documentos publicados por Primitivo Moacyr e observa que, apesar de haver documentos sobre algumas províncias em que os negros libertos ainda eram impedidos de frequentar a escola, havia leis de outras províncias que permitiam que a frequentassem à noite ou até durante o dia. Portanto, houve a invisibilidade, o esquecimento de um dado tão importante na historiografia da educação dos negros. Há duas formas de se falar sobre o negro: falá-lo de fora, com um distanciamento, como o antigo escravo, desprovido de direitos e reproduzindo um estereótipo e posteriormente marginalizado; uma segunda forma é mencioná-lo como agente, sujeito de sua cultura, de forma próxima e valorizando sua história e cultura, em um caminho de superar as desigualdades (BARROS, 2006). Há estudos em que os autores tratam a educação do negro e a sua cultura na atualidade de forma valorativa. Esses autores possuem uma visão pós-colonial ou culturalista do negro e o tratam como sujeito histórico, enquanto outros inviabilizam esse estudo excluindo o tema e não o contemplando, ou o fazem de forma pejorativa, em uma concepção de fora, trazendo-o como objeto, em uma perspectiva ainda colonizada e desvalorizando-o em vários aspectos. Buscaremos essa perspectiva de valorização cultural. Para análise, utilizaremos a Antropologia do Imaginário, de Gilbert Durand (1997), referência teórica desta pesquisa. Apesar de Durand não falar especificamente sobre a parte

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educacional, contribui para o campo da educação a partir de suas reflexões sobre os símbolos e sua importância em nossa sociedade (ARAÚJO; TEIXEIRA, 2011). Durand define o ser humano como um animal simbólico e, por essa ser uma dimensão fundamental, o faz diferente dos outros animais, buscando unir natureza e cultura. A Pesquisa Narrativa foi o método de investigação adotado, pois atende à perspectiva antropológica para este trabalho. Por intermédio da Pesquisa Narrativa, foi possível compreendermos um pouco da história de vida, da formação profissional e da metodologia de ensino que busca contemplar a educação étnico-racial e trabalhar a História e Cultura Africana e Afro-Brasileira na prática cotidiana de ensino da professora estudada. Buscamos algumas imagens que emergem das narrativas da professora, não somente o que está patente, porém o que está latente, em uma dimensão simbólica também nos interessa: o instituído e o instituinte. É necessário analisar a totalidade do discurso para compreender o que levou a professora a se destacar no trabalho com a temática. Em alguns trechos das entrevistas pré-estruturadas e notas de campo que foram analisadas, notamos uma forte influência da família, que repassa pelas gerações as histórias de resistências de seus antepassados escravizados que vieram da África. A família teve influência fundamental, principalmente a mãe, no seu empoderamento e no apoio à escolha da professora pelo magistério. Ainda podemos perceber, no entanto, pela pesquisa que ela não estudou nenhum conteúdo referente à valorização da cultura negra enquanto estudante no Ensino Fundamental e nem em suas formações inicial e continuada. Sua pós-graduação foi em Psicopedagogia. Além das histórias familiares repassadas a ela e que muito a influenciaram, a professora afirma que o envolvimento com o movimento negro de Juiz de Fora, a militância e suas pesquisas autônomas sobre a temática são a base de sua prática pedagógica de ensino.

No decorrer de nossa pesquisa, observamos que há momentos de conflitos e generalizações por conta dos referenciais informais utilizados pela professora para conseguir informações sobre a África. Porém é importante destacarmos essa iniciativa que ela tem em trabalhar os conteúdos étnicoraciais e a consciência que a professora necessita: uma formação continuada para ensinar melhor os conteúdos que propõe. EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

A partir de algumas pesquisas, percebemos que tem havido pequenos avanços em relação à educação emancipatória para as relações étnico-raciais em nosso país, pois anos atrás, no período da escravidão e pós-escravidão, não havia nenhum tipo de educação formal e acadêmica voltada para o respeito e convívio entre os diferentes povos e etnias no espaço escolar. Dizia-se que não havia preconceito no Brasil, pois não havia a segregação racial como em outros países, porém os negros eram ignorados. A história e a cultura dos africanos escravizados e de seus descendentes foram completamente desprezadas, pois não se reconheciam a importância e a contribuição para a formação do povo brasileiro. Atualmente tem se buscado alternativas para estabelecer as relações dos negros em nossa sociedade, marcada por preconceitos e racismo. Essas questões levam ainda hoje ao sofrimento pessoas negras, que continuam a ser tratadas de forma desigual em nossa sociedade. Muitas vezes são mal-tratadas sem motivo, simplesmente por sua cor de pele, em virtude dos reflexos dos mais de 300 anos de escravidão que seus antepassados foram submetidos, por uma sociedade que se mantém presa a valorizar tudo o que vem do ocidente, dos nossos antigos colonizadores, desde o padrão estético ao espiritual (religiosidade). Permanece a desvalorizarização, a ignorância das demais culturas, principalmente a cultura africana, que no período da escravidão nos proporcionou grande influência

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cultural, com populações dizimadas em alguns países e trazidas para o Brasil. Tem havido crescimento em relação às pesquisas sobre o negro na educação. É importante destacar a grande influência do movimento negro por meio de sua participação e contribuição nas lutas e conquistas pelos direitos da população negra. Atualmente é de fundamental importância o papel do movimento negro nas propostas de reivindicações e implantações de direitos junto ao plano político, pela criação e manutenção de políticas públicas em diversas áreas. Com documentos e materiais desenvolvidos pelo governo, percebese um potencial diálogo entre ambos: o movimento negro e os Direitos Humanos. Não podemos deixar de destacar o papel do movimento negro após a abolição, auxiliando a integração do negro na sociedade, em que era grande o preconceito de cor. Nesse momento, surgem muitos jornais impressos que se tornam um importante instrumento de resistência e expressão do movimento negro, por intermédio de uma imprensa negra que denunciavam a segregação e a injustiça que os negros sofriam. O movimento negro foi muito importante naquela época e continua sendo, tendo um papel de destaque na vida da professora que estudamos nesse artigo. É preciso criar estratégias para o cumprimento das diretrizes nacionais da Lei nº 10.639/03. Nesse sentido, não podemos deixar de falar da formação do professor: peça fundamental na formação do aluno desde a educação infantil à universitária, ele tem o poder de ensinar conteúdos docentes e profissionais de acordo com a sua formação, com o que acredita ser importante, que influencia. É necessário desconstruir um imaginário social que permeia como o negro sendo uma pessoa feia, suja, ladra, perigosa, assustadora. Essas imagens negativas sobre ele são criadas nas pessoas por diversos mecanismos simbólicos e há vários meios que transmitem a elas, assim como transmitem a imagem positiva do homem branco. Como podemos ver em

Souza (2015), a presença do etnocentrismo é grande em nossas escolas e esse fato se deve ao modelo de representação sobre os padrões de beleza que são apresentados às nossas crianças e jovens nas imagens dos livros paradidáticos, desenhos e mídia de forma geral. AS DIVERSIDADES CULTURAIS NA PERSPECTIVA DO IMAGINÁRIO

A Antropologia do Imaginário é o campo teórico que embasa o nosso olhar. Desenvolvido por Gilbert Durand, “é o conjunto das imagens e relações de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens” (DURAND, 1997, p. 18). É uma encruzilhada antropológica que esclarece uma ciência humana pelos aspectos de outra. Durand (1997, p. 47-51) faz uma convergência entre os três reflexos dominantes, estudados pela escola de Leningrado, e faz correspondência, por meio da simbologia, com os padrões culturais e com as características comuns presentes nas diversas culturas. O primeiro regime de imagens é denominado de “diurno” (DURAND, 1997, p. 65-190), por valorização da luz em oposição às trevas; o segundo é o regime conhecido como “noturno” (DURAND, 1997, p. 191-370), pois não se encontram gestos de oposição. No regime diurno há uma estrutura, denominada esquizomorfa ou heroica, ou seja, protocolo normativo, regido pela lógica da exclusão e da contradição, pelo princípio do corte, da distinção, da separação. As características dessa estrutura são a idealização e a antítese. E são várias as narrativas míticas de divindades heroicas, como Apolo, na mitologia grega, Ogum, Iansã e Xangô, nos mitos dos orixás, representantes desse arquétipo guerreiro. No regime noturno há duas estruturas: uma é denominada de antifrásica ou mística, regida pela lógica da analogia e de similitude, cujo gesto é o da valorização da

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descida. Esta estrutura é regida pelo princípio da participação, da imbricação, do estar junto, característica da imbricação, do realismo sensorial e da compreensão. Como exemplo, temos as narrativas míticas de Dioniso, na mitologia grega, Oxum e Iemanjá na cultura nagô, representantes desse arquétipo do acolhimento, do refúgio, do festejar, do comer e do beber. A outra estrutura do regime noturno é a dramática ou sintética. A lógica é a causalidade e correspondência. Os gestos são os das transformações cíclicas, da união dos contrários. As narrativas míticas de Hermes, no mito grego, Exu e Iroko na mitologia afro-brasileira de origem yorubá representam esse arquétipo da conflitorialidade, da união dos opostos, da dialética sistematizada na historização. Dessa forma, o Imaginário que existe há bastante tempo, mas não com essa nomenclatura, se mostra importante para contribuir com os nossos estudos. Segundo Estrada (2004), passamos por uma crise do paradigma clássico, que compreende várias correntes reducionistas e há emergência de outros paradigmas com visões mais integradoras, contemplando a diversidade cultural presente em nosso mundo. Dessa forma, o “paradigma holonômico” vem se destacando. Dentro dessa concepção, os estudantes que não se enquadram nesse ensino homogêneo, linear fracassam, são reprovados e dessa forma o sistema também fracassa. Na escola atual podemos ver essa reprodução de um padrão de comportamento, pois pouco se modificou na escola com o passar dos anos. Portanto, para analisar o trabalho de Ensino da História e Cultura Africana e Afro-brasileira que são desvalorizadas e não ensinadas pela maioria dos professores, utilizaremos o imaginário, na perspectiva de Durand (1997), para compreensão do trabalho de uma professora que se diferencia de grande parte dos educadores, ensinando conteúdos que ela considera importantes, observando a complexidade do grupo de professores da escola em que está inserida.

A Antropologia do Imaginário procura compreender a pessoa humana em toda sua complexidade, considerando que nós nos constituímos humanos no caminho de nossa existência. Considerando que o ser humano é um animal simbólico, os símbolos são constituídos por dois planos em relação ao seu significado: um sentido manifesto, patente e superficial e um segundo sentido, latente, oculto. Portanto, nenhum símbolo tem apenas uma dimensão. E toda narrativa na perspectiva do imaginário é simbólica, pois é carregada de representações míticas. Logo, todos os elementos se tornam bivalentes ou polissêmicos (DURAND, 1997). É nessa perspectiva do imaginário que se procura compreender os aspectos internos que influenciam a constituição da pessoa, ou seja, suas características biológicas (ex: macho ou fêmea) e psíquicas (ex: introvertido ou extrovertido; racional ou afetivo), denominado como “pulsões subjetivas”, assim como os aspectos externos que também marcam a constituição da pessoa, ou seja, a sociedade em que ele vive (ex: classe social ou econômica) e o meio natural, cósmico (ex: zona rural, sertão ou zona urbana, litoral), denominado como “determinações objetivas”. O imaginário pode nos auxiliar a compreender a trajetória de vida pessoal e escolar do sujeito dessa pesquisa. O IMAGINÁRIO DE UMA PROFESSORA NEGRA

A presente pesquisa procura se inserir no campo em que é crescente o debate acerca das políticas identitárias, especialmente às que são voltadas para a população negra. O nosso olhar está voltado especificamente para a mudança implementada na educação, por meio da implementação de políticas de promoção da igualdade racial e de políticas afirmativas, especialmente com a introdução da obrigatoriedade do ensino de cultura e história africana e afro-brasileira na educação básica.

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E para desenvolver nossa reflexão sobre a construção da identidade negra, fizemos a escolha de identificar uma professora que desenvolve um trabalho sobre a educação das relações étnico-raciais, por intermédio da luta por reconhecimento e das políticas identitárias, e compreender, em sua trajetória de vida pessoal e escolar, os fatores que contribuíram para que ela se comprometesse com esse trabalho, diante de uma invisibilidade ainda sobre o tema no cotidiano das escolas. A professora nasceu na região sul do país e se formou durante o período do regime militar. Seu pai trabalhava na Empresa Cotege, na área de construção civil, na época da ditadura. A professora fala com muito orgulho da profissão do pai, quem, segundo ela, exercia um trabalho muito importante para o Brasil: “Não construía casas, construía pontes”. (Ayodele3 – trecho da entrevista concedida em 11 de novembro de 2014). Na perspectiva do Imaginário, a ponte é um símbolo de união de duas margens que estão separadas. A união dos contrários ou a harmonização das contradições remete à estrutura dramática ou sintética. Ela foi alfabetizada em acampamentos que moravam os familiares dos profissionais das obras na região sul, pois segundo ela havia cidades que a equipe não permanecia por mais de seis meses. A esposa de um dos trabalhadores alfabetizava as crianças do acampamento, pois se mudavam constantemente. As imagens da casa e da ponte, apontada pela professora, nos remete ao regime noturno das estruturas antropológicas. Enquanto a casa está na estrutura mística ou antifrásica (DURAND, 1997, p. 199-280) sendo símbolo da intimidade, pois é lugar de refúgio e repouso, a ponte já é da estrutura sintética, dramática ou disseminatória (DURAND, 1997, p. 281-374), símbolo da união dos opostos, uma unificação tensorial, que mantém os opostos unidos sem conflito. Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-816, set. / dez. 2016

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3 É um nome fictício dado à professora. É uma a palavra de origem Yorubá e

significa: a alegria voltou a casa.

Ayodele é uma mulher negra, que se orgulha de contar histórias de seus antepassados que vieram da África. Diz que sua mãe sempre contava a história de seus familiares e antepassados que vieram da África, pois havia escutado de seus pais, avós e dessa forma as histórias eram repassadas de geração em geração, por meio da contação de histórias. “Verifica-se que há ‘estilos’ de histórias que as pressões culturais vêm enxertar na seiva universal. [...] Dumezil mostrou de um modo convincente o que diferenciava o estilo romano do estilo hindu” (DURAND, 2012, p. 352). Qual é o estilo de histórias dessa professora? É o romano, é o hindu? Segundo ela, essas histórias foram muito importantes para a sua formação como pessoa, contribuíram para fortalecê-la na luta por seus objetivos de vida e ter orgulho de suas origens e desta forma ensinar a história e cultura de seus antepassados e, consequentemente, de todos os brasileiros para seus alunos. A professora nos relatou que nunca sofreu preconceito em sua escolarização no sul: A professora era novinha, usava um rabo de cavalo e sentava em cima da mesa e a sala era muito aberta, e não tinha nada de africanidades, nada relacionado à África, não havia nada da minha raça, nenhuma coisa foi citada em especial com relação a me destacar. Mas eu não me sentia diferente em momento nenhum (Ayodele – trecho da entrevista concedida em 11 de novembro de 2014).

Os elementos de conflito aparecem, mas de forma latente ou censurados, pois apesar de perceber a ausência da cultura africana na educação que recebera, diz que não se sentia diferente. Porém há um sério problema nessa escola, situada no estado do Rio Grande do Sul, que recebeu na época da escravidão muitos negros que foram escravizados: a escola possui muitos habitantes descendentes de escravizados, portanto se configura uma falha muito grande a falta de

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elementos culturais referentes à cultura africana e afrobrasileira. A professora Ayodele relata que em sua vida escolar nunca estudou nada referente ao conteúdo de História e Cultura Africana e Afro-brasileira. Ela define como africanidades os conteúdos que se referem à África. Diz ainda que não viu nada referente à sua “raça”, que é o termo que ela utiliza para definir as pessoas negras. Ela afirma que, no sul, era a única pessoa negra na escola e que sua professora era alemã, mas em nenhum momento se sentia diferente, nunca foi discriminada. Apesar de evidenciar a existência de dois polos culturais, há a manifestação de uma coesão, de uma sincronização entre esses dois lados, com a invisibilidade de um deles. A calma, o bem-estar e o conforto manifestado pela professora negra como estudante em uma escola alemã pode representar a não percepção da negação e da invisibilidade de sua cultura, o que representa, de forma latente, uma violência, pois nessa omissão há a destruição da cultura e de sua identidade negra. Ela disse que estranhou muito a escola de Minas Gerais: a sala de aula era mais escura do que no sul, a forma de falar da professora e os colegas, inclusive os negros, havia muitos negros na sala de aula mineira. Ela estranhou, pois não se via sendo negra e acabou repetindo de série no primeiro ano que frequentou a escola em Minas Gerais:

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De primeira aluna lá aqui eu tomei pau... a professora daqui dizia “as pessoas com a pele escura” (se referindo aos alunos negros, que haviam muitos), porque lá no sul, só eu tinha pele escura. Você acredita que estranhei isso? Eu tomei um choque com a cor da pele das pessoas, estranho né? Não é estranho? Eu tinha pele escura, mas eu não me enxergava como negra não, porque eu estranhava a cor da pele de outras pessoas. Isso não me causou nenhum bloqueio, só achava isso muito estranho (Ayodele – trecho da entrevista concedida em 11 de novembro de 2014).

Por quê? O que leva uma pessoa negra a estranhar outras pessoas negras? Uma criança negra estranhar os seus colegas de escola? O racismo implementado no Brasil e a ideologia da democracia racial estão de tal forma introjetados que há uma negação da identidade negra, que é no fundo a negação de uma humanidade. Para Carvalho (1994, p. 181), o etnocentrismo consiste em privilegiar um universo de representações propondo-o como modelo e reduzindo à insignificância os demais universos e culturas “diferentes”. De fato, tratase de uma violência que, historicamente, não só se concretizou por meio da violência física contida nas diversas formas de colonialismos, mas, sobretudo, disfarçadamente por meio daquilo que Pierre Bourdieu chama “violência simbólica”, que é o “colonialismo cognitivo” na antropologia de De Martino.

Neste caso, percebe-se que a aluna negra já tivera incorporado a cultura ocidental como superior a ponto de considerar estranha ou “diferente” à própria cultura negra. Após nos relatar brevemente sua trajetória escolar, é necessário falar sobre o início de sua carreira profissional. A professora nasceu em 1967 e começou a lecionar com 18 anos de idade, ou seja, em 1985, quando se formara no curso normal. Sua infância e os anos que antecederam a sua formatura no nível de segundo grau (magistério) aconteceram no período da ditadura militar no Brasil. Após mudanças políticas e econômicas que afetaram a economia, houve uma mudança no perfil do professorado brasileiro: permanece feminino, porém muda em relação à classe social das professoras atuantes e a sua formação passa de 4 para 8 anos de escolarização do profissional, ou sejam o perfil da classe se modifica. Antes, essa profissão atraía moças das classes altas e médias, agora passa a predominar mulheres

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das classes mais adversas, inclusive as mais baixas da sociedade e que necessitavam trabalhar, semelhante aos trabalhadores operários. Ayodele faz parte do novo grupo de professoras que estavam começando a surgir naquele cenário. De acordo com Oliveira (2013, p. 55): A profissão docente passa por mudanças de identidade, de status, de identificação, provocada por forças sociais que se apresentam, tanto na diversidade sociocultural dos alunos quanto nas demandas sociais que cobram dela a formação de profissionais adequados para o terceiro milênio.

Portanto, para se conhecer o profissional que está sendo construído e se denomina professor das séries iniciais do Ensino Fundamental em nossa atualidade, além desses aspectos históricos é necessário conhecer o que está subjetivo, por trás de sua vida escolar, acadêmica, os motivos que o levaram a essa profissão, como os fatores familiares e socioeconômicos são fundamentais para sabermos quem é esse professor? Quais os saberes que fazem parte de sua vida e que relevância tem no ato de ensinar? Que saberes o professor julga importante ensinar para o aluno? É preciso fazer um estudo abrangendo esses aspectos não só profissionais, como também pessoais, sobre a vida do professor para fazermos uma análise sobre como se embasa sua prática de ensino. Sua mãe a apoiava nos estudos e a ensinava sobre valorização de sua identidade. Para Ayodele, as afirmações de sua mãe não lhe saíram da cabeça e segundo ela foram fundamentais para a formação e valorização de sua identidade:

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‘Ser preto não é defeito, defeito é ser burro’ (mãe de Ayodele). E era para eu me preparar: ‘Você não vai ser considerada a primeira, por você ser negra, mas a última você também não vai ser’. Ela me apoiava nos estudos... E não me ensinou nada que lembre serviço doméstico, ‘para você

não se acostumar e virar empregada doméstica...’ (Ayodele – trecho da entrevista concedida em 11 de novembro de 2014).

Na perspectiva do imaginário, a valorização de uma profissão em detrimento de outra nos remete a uma imagem de ascensão. A sociedade em que se excluem alguns e incluem outros, no caso brasileiro, negros e índios foram excluídos e as profissões que são ligadas ao trabalho braçal são associadas à escravidão e a esses excluídos. A mãe de Ayodele, por influência dessa estrutura heroica do Imaginário, compreende essa exclusão, fruto de nossa cultura escravocrata, em que se valorizou os trabalhos de cunho mais intelectuais. A contradição não está no exercício de atividades intelectuais ou braçais, mas na incorporação da valorização de um deles e na desvalorização do outro sem a compreensão de que a mesma pessoa pode exercer os dois trabalhos. Segundo Oliveira (2013), esses novos educadores continuam a reforçar o fracasso escolar, pois o sistema de ensino continua o mesmo. A estrutura do curso de magistério mudou, porém os mecanismos de avaliação continuam iguais, seja para as crianças pertencentes à classe social sem nenhuma dificuldade econômica, seja para aqeuelas pertencentes às famílias com dificuldades financeiras. A professora Ayodele veio de uma família pobre e busca, em sua prática de ensino, promover mudanças na vida das crianças pobres que educa, porém de uma forma diferenciada dos outros professores, por meio de uma prática pedagógica diferente, que ela traz de sua bagagem familiar, e não profissional. Segundo Ayodele, as questões de valorização da identidade e autoestima são importantes para proporcionar a transformação e a mudança na vida das crianças. Ela aprendeu isso com a sua família, e tenta reproduzir nos seus filhos e alunos. São valores referentes aos seus antepassados africanos

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e conhecimentos sobre a história e cultura africana e afrobrasileira que sobreviveu ao tempo, por meio dos ensinamentos de sua avó e mãe – e também de seus antepassados africanos que foram escravizados no Brasil, uma cultura rica na preservação de valores, respeito aos mais velhos, valorização da oralidade e da diversidade e circularidade, baseada em emoções e sentimentos, na compreensão do ser humano como um todo, diferente dos ensinamentos ocidentais, baseados no racionalismo que recebemos. Dessa forma, a professora busca se aproximar desse tipo de educação e abaixo ela relata algo em comum nas crianças negras de sua escola: chegam com a autoestima baixa: A autoestima tem que ser estimulada. A maioria tem uma autoestima baixa (Ayodele – trecho da entrevista concedida em 25 de agosto de 2015).

Sabemos que é um problema complexo. O que está gerando essa baixa autoestima é fruto da invisibilidade cultural dessas crianças, de sua cor de pele, seu cabelo. Fruto da falta de humanidade anteriormente mencionada e que gera racismo, preconceito e outras questões bem sérias e que se iniciam no espaço escolar. Portanto, torna-se coerente a discussão sobre os conteúdos objetivos e subjetivos repassados aos alunos, pelo professor, referentes às questões de teoria e prática de ensino. O professor ensina não somente o conteúdo objetivo apreendido nos cursos de formação, como também os conteúdos subjetivos que a ele foram repassados e que acredita ser importante repassar para a formação pessoal e profissional de seus alunos, de acordo com o contexto que está inserido. CONSIDERAÇÕES FINAIS Educ. Foco, Juiz de Fora, v.21, n.3, p. XXX-816, set. / dez. 2016

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Durante as nossas observações e entrevistas com a professora Ayodele, percebemos que ela busca uma identidade mais humana em seus alunos, valorizando o respeito e a

educação para as relações étnico-raciais no contexto escolar. Muitos dos problemas encontrados em sua prática pedagógica que compreende improvisações, generalizações e senso comum em relação ao continente africano decorrem da questão de a professora não ter tido uma formação continuada adequada na área que se identifica e se propõe a trabalhar. Falta um maior embasamento teórico e científico que a leva aos problemas citados acima em sua prática profissional. Após ter feito o curso magistério a nível técnico, se formou em pedagogia e posteriormente se especializou em psicopedagogia. Ela afirma nunca ter feito curso na área da educação para as relações étnico-raciais, mas tudo o que sabe e ensina é fruto de ensinamentos repassados no seio familiar, em seus estudos independentes e junto ao movimento negro. Ela mesma nos afirmou que reconhece sentir a necessidade de estudar mais sobre o tema: Eu gostaria muito de me aprofundar nisso, é por isso que tenho muita vontade de fazer um mestrado nesse assunto, muita vontade para poder me aprofundar e passar para os professores que estão formando, pois eu não aprendi isso na escola e essa foi uma falha muito grande (Ayodele – trecho da entrevista concedida em 25 de agosto de 2015).

A professora tem consciência de que necessita da formação continuada em educação para as relações étnicoraciais. Há uma grande dificuldade existente no diálogo entre a universidade e a escola. Falta a visão dos pesquisadores em relação à escola, tendo os professores como sujeitos do conhecimento e produzindo pesquisas que irão contribuir com esses profissionais, em uma linguagem para os professores que trabalham com a prática docente, e não somente para o ambiente acadêmico, de difícil acesso. Há outra questão a respeito de teoria e prática que não podemos desconsiderar: quando falamos sobre saberes profissionais, não significa que estamos falando de saberes apreendidos no ambiente acadêmico, pois na prática profissional

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os educadores se apoiam em conhecimentos especializados e formalizados por meio das disciplinas referentes à ciência da educação, aos conteúdos das disciplinas que ministram e que obtiveram conhecimento em seu processo de formação científico, porém nem sempre esses conhecimentos são exclusivamente adquiridos na universidade. Há também um limite para o saber de cada professor, assim como qualquer outro profissional e, nesse contexto, ele é um profissional que, quando não sabe de algo, necessita pesquisar, se informar, para repassar a informação para o seu aluno que tem a dúvida e que anseia pela aprendizagem. Ayodele faz boa utilização dessa autonomia, no sentido de ter a iniciativa de contemplar saberes necessários aos alunos, porém ainda falta agregar à sua prática pedagógica, diante dessa complexidade de elementos que necessita ter o professor, a importância da formação continuada e da constante participação em cursos de reciclagem. Isso porque o mundo é dinâmico e as informações são infinitas, ao mesmo tempo em que precisamos analisar a fonte e comprovar a sua veracidade pelas pesquisas, que também são profundamente necessárias. Este trabalho visou refletir sobre a prática pedagógica de uma professora, a qual vem se destacando por ensinar a cultura negra e proporcionar a formação identitária das crianças no espaço escolar, a valorização da diversidade e abordagens culturais diferentes da etnocêntrica. Observamos que ainda há poucos professores trabalhando nesse sentido. Acompahamos a sua prática e, com as entrevistas semiestruturadas que compõem nossa pesquisa narrativa, buscamos compreender o motivo pelo qual essa professora se destaca em meio a um cenário escolar que prevalecem a ausência e a invisibilidade da cultura negra. Apesar desse grande interesse da professora, que deve ser considerado, identificamos alguns problemas em relação à sistematização e alguns planejamentos do conteúdo repassado. Generalizações e erros na prática pedagógica nos evidenciam

a falta de uma formação inicial e continuada, acadêmica, em relação à temática étnico-racial, que é de fundamental importância para o aprimoramento de um bom trabalho. REFERÊNCIAS ANDRÉ, M. Formação de professores: a constituição de um campo de estudos. Educação, Porto Alegre, v. 33, n. 3, p. 174-181, set./dez. 2010. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2015. ARAÚJO, A. F.; SANCHEZ TEIXEIRA, M. C. Gilbert Durand: imaginário e educação. Niterói: Intertexto, 2011. BRASIL. Plano Nacional de Educação. Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001. Disponível em: . Acesso em: 9 nov. 2015. BITTAR, M. A ditadura militar e a proletarização dos professores. Educação e Sociedade, Campinas, v. 27, n. 97, p. 1159-1179, set./ dez. 2006. Disponível em: . Acesso em: 10 set. 2015. BRASIL. Constituição (1824). Constituição Política do Império do Brazil. Rio de Janeiro, 1824. Disponível em: . Acesso em: 17 jul. 2014. CARVALHO, J. C. de P. Etnocentrismo: inconsciente, imaginário e preconceito no universo das organizações educativas. In: Interfaces: comunicação, saúde, educação, v. 1, n. 1. Botucatu: UNESP, p. 181185, jan.-mar. 1994. Disponível em: . Acesso em: 22 dez. 2015. CERTEAU, M. de; GIARD, L.; MAYOL, P. A invenção do cotidiano 2: morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 2009. _______. A pesquisa educacional entre conhecimentos, políticas e práticas: especificidades e desafios de uma área de saber. Revista Brasileira de Educação, v. 11, n. 31, jan.-abr. 2006.

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AUTORAS E AUTORES ANDRESSA LIMA TALMA

Currículo: Mestra em Educação pelo Programa de PósGraduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (PPGE/UFJF). Especialista em História e Cultura Afrobrasileira e Africana: Educação para as Relações Étnico-raciais, pelo NEAB-UFJF, e em Gestão Escolar Integrada e Práticas Pedagógicas pela Universidade Cândido Mendes. Graduada em Pedagogia pela Faculdade Metodista Granbery. Atua como coordenadora pedagógica da rede municipal de Juiz de Fora. Membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN). Membro do Grupo de Pesquisas e Estudos em Antropologia, Imaginário e Educação (ANIME). ANNA MARIA CANAVARRO BENITE

Currículo: Doutora em Ciências pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, 2005). Mestra em Ciências (Química Inorgânica) pela UFRJ (2001). Licenciada em Química e graduada em Química – Habilitação Tecnológica pela UFRJ (1998). Atualmente é professora associada da Universidade Federal de Goiás (UFG). Ativista do Grupo de Mulheres Negras Dandara no Cerrado. Coordenadora do Laboratório de Pesquisas em Educação Química e Inclusão (LPEQI/UFG). Coordenadora da Rede Goiana Interdisciplinar de Pesquisas em Educação Inclusiva-l (RPEI). Membro da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros e da Associação Brasileira de Pesquisa em Ensino de Ciências. Assessora da Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de Goiás. Atua na área de Ensino de Química com foco nos seguintes temas: cultura e história africana no ensino de ciências, ensino de ciências de matriz africana, ensino de ciências e as necessidades educativas

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especiais, cibercultura na educação inclusiva e pesquisa em formação inicial e continuada de professores de Química. ANSELMO PENSE CHIZENGA

Currículo: Docente na Universidade Pedagógica de Moçambique, delegação de Maputo departamento de filosofia, atuando na disciplina de Filosofia Africana e Lógica. Mestrando, bolsista do CNPq/PEC-PG no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Membro do grupo de pesquisa Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade e da Rede Interdisciplinar e Multidisciplinar de Pesquisas (RIMPs) em Estudos Africanos, do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados (ILEA-UFRGS). Licenciado em ensino de Filosofia pela Universidade Pedagógica de Moçambique (2011). ANTÔNIO CÉSAR BATISTA ALVINO

Currículo: Licenciado em Química pela UFG (2014). Atualmente aluno do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Química da UFG, Laboratório de Pesquisa em Educação Química e Inclusão (LPEQI/UFG), associado na Sociedade Brasileira de Química, Associação Brasileira de Química e da Associação Brasileira de Pesquisa em Ensino de Ciências. Atua na área de ensino de Química com foco nos seguintes temas: cultura e história africana no ensino de ciências e ensino de ciências de matriz africana. CLAUDIA MIRANDA

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Currículo: Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNIRIO. Coordenadora do projeto de pesquisa Intercâmbio Colômbia – Brasil: experimentos afrolatinos e diálogos interculturais na produção do conhecimento refletida nas políticas curriculares, desenvolvido na perspectiva dos estudos comparados. Faz parte da rede de etnoeducadores

Los Hilos de Ananse na Colombia e da rede carioca de etnoeducadoras negras. Coordenadora do projeto Formação de Professores, Pedagogias Decoloniais e Interculturalidade: Agendas Emergentes na Escola e na Universidade. Editora da Revista Interinstitucional Artes de Educar e parecerista do GT 21 da ANPED. Suas pesquisas incluem: crítica póscolonial, educação e interculturalidade, narrativas subalternas, descolonização do conhecimento, estudos críticos da branquitude, afrolatinidade e diálogos educacionais na diáspora africana. Foi professora adjunta da Universidade Federal Fluminense (UFF, 2008-2010), consultora da Fundação Palmares/MinC (2007-2010) no projeto de cooperação com os países da América Latina intitulado Processo de mapeamento das dimensões da cultura. Foi coordenadora em 2008 do curso de férias de Metodologias de Pesquisa em Angola (Universidade Agostinho Neto) para estudantes retornados no pós-guerra em Luanda. Graduada em Letras (português-espanhol, em 1992) pela UFRJ. Mestra em Educação (UFRJ). Doutora em Educação (PROPEd/UERJ). GREGÓRIO ADÉLIO MANGANA

Currículo: Docente da Universidade Pedagógica de Moçambique, lecionando as disciplinas: Filosofia da Interculturalidade, Filosofia Africana e Epistemologia. Licenciado em Filosofia pela Universidade Pedagógica de Moçambique. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), pesquisador associado no Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, na área de Ciências Sociais. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Filosofia Africana. JULVAN MOREIRA DE OLIVEIRA

Currículo: Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Departamento de Educação da UFJF. Doutor

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e mestre em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Ciências Sociais (Antropologia, Sociologia e Política) pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP-SP). Licenciado em Filosofia pela Universidade São Francisco (USF-SP). Vice-coordenador do GT-21 da ANPED (Educação e Relações Étnico-raciais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação), na gestão 2016-2017. Membro do conselho fiscal da ABPN nas gestões 2012-2014 e 2014-2016. Diretor de Ações Afirmativas da UFJF. Membro e articulista da Red Iberomericana de Investigación en Imaginarios y Representaciones. Líder do ANIME. Membro do Grupo de Pesquisa Formação de Professores e Políticas Educacionais (FORPE). Membro do Fórum Municipal de Educação de Juiz de Fora. Atua na área de Antropologia Educacional e Filosofia da Educação, com interesse nos seguintes temas: africanidades, filosofia africana, socioantropologia do cotidiano e imaginário. JUVAN PEREIRA DA SILVA

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Currículo: Mestre em Química pela UFG (2005). Bacharel em Química (UFG, 2000). Doutorando em Química (UFG). Desenvolve tese no tema de formação de professores de Química em disciplina experimental com abordagem cultural, sobre a orientação da Prof.ª Dr.ª Anna Maria Canavarro Benite. Paralelamente ao doutorado, fez a complementação em licenciatura em Química, quando desenvolveu pesquisas na área de cultura e história africana no ensino de Ciências/ Química. Tem experiência na área de Química, com ênfase em Química Inorgânica na recuperação de metais nobre de catalisador automotivo exaurido. É técnico nos laboratórios de graduação do Instituto de Química da UFG e exerceu a atividade de docência superior na Universidade Estadual de Goiás (UEG) em regime de contrato temporário (2005-2009).

KEVIN MICHAEL FOSTER

Currículo: Professor associado da Universidade do Texas em Austin, EUA, na área de Antropologia Educacional. Doutor e mestre em Antropologia pela Universidade do Texas, em Austin. Pesquisa sobre desempenho escolar de grupos minoritários. Entre 2009 e 2010, trabalhou na Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS). LUCIMAR ROSA DIAS

Currículo: Professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) no curso de Pedagogia. Atuante no Programa de PósGraduação em Educação do Setor de Educação na Linha de Políticas Educacionais. Trabalhou na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS – Campus de Três Lagoas) de 2009 a 2013. Doutora pela USP. Mestra pela UFMS. Sua experiência em docência começou nas séries iniciais do ensino fundamental em redes públicas e privadas. Suas pesquisas e atividades de extensão enfatizam a diversidade étnico-racial e práticas promotoras da Igualdade Racial na Educação Infantil, Formação de Professores(ras) e Currículo. Consultora desde 2003 em diversos programas desenvolvidos pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) e MEC. Coautora da coletânea Outras Histórias ... Culturas Afro-brasileiras e Indígenas e a autora do livro infantil Cada um é de um jeito, cada jeito é de um. Possui vários artigos publicados em revistas, periódicos e jornais sobre políticas de educação infantil e a diversidade étnico-racial. MARIA CLARETH GONÇALVES REIS

Currículo: Professora associada da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). Coordenadora de extensão do Centro de Ciências do Homem. Coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI – UENF). Professora do Programa de Pós-Graduação em

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Sociologia Política da UENF. Graduada em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Graduada em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Montes Claros. Mestra em Educação pela UFJF. Doutora em Educação pela UFF. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Relações Raciais e Educação; Formação de professores; Quilombo; Identidade Étnico-Racial; Educação Infantil, Artes Cênicas (expressão corporal e teatro). NICELMA JOSENILA BRITO SOARES

Currículo: Doutoranda em Educação pelo PPGE/UFPA. Mestra em Educação pelo mesmo programa (2010). Graduada em Pedagogia pela UFPA (2000). Integrante do Núcleo de Estudos sobre Formação de Professores e Relações ÉtnicoRaciais (GERA/UFPA), sob coordenação da Prof.ª Dr.ª Wilma Baía Coelho. Membro da Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as) (ABPN). Experiência na área de Educação, com ênfase em Orientação Educacional, Formação de Professores e Relações Étnico-Raciais. SANDRA HAYDÉE PETIT

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Currículo: Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC). Coordenadora do Núcleo das Africanidades Cearenses (NACE), que se constitui em um núcleo de estudos afro-brasileiros atuante na implementação da Lei nº 10.639/2003, tanto na formação continuada de professores e professoras nas escolas como na formação inicial na universidade. Atua também em quilombos no fortalecimento do pertencimento afroquilombola. Participa da criação de abordagens que buscam renovar as práticas pedagógicas de modo afrorreferenciado.

VANÍSIO LUIZ DA SILVA

Currículo: Professor da rede municipal de São Paulo. Doutor em Educação pela USP. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnomatemática (GEPEm-FE/USP) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnomatemáticas Negras e Indígenas (GEPENI/UFMT). WANDERLEYA NARA GONÇALVES COSTA

Currículo: Professora da UFMT. Doutora em Educação pela USP. Membro do GEPEm-FE/USP e do GEPENI/UFMT. WILMA DE NAZARÉ BAÍA COELHO

Currículo: Professora associada II da UFPA. Atua no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED), Programa de PósGraduação em Currículo e Gestão da Escola Básica (PPEB) e no Programa em Educação em Ciências e Matemáticas (PPGECM). Doutora em Educação pela UFRN (2005). Mestra em Educação pela UNAMA (2000). Licenciada em Pedagogia pela UNAMA (1987). Coordenadora do GT 21 da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED – 2015-2017). Integrante da Comissão Técnica Nacional de Diversidade para Assuntos Relacionados à Educação dos Afro-Brasileiros – Ministério da Educação (CADARA – 2015-2017). Vice-coordenadora nacional do Consórcio Nacional dos Núcleos de Estudos Afro-brasileiros (CONNEABS – 2012-2014). Pró-reitora de graduação da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia AfroBrasileira (UNILAB – 2013-2014). Membro da Diretoria da Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as) (ABPN – 2014-2016). Membro do Corpo Editorial e/ou Científico da Revista da ABPN; Revista de Ciências Humanas (coleção cadernos NEABs/UFPR); Revista Estudos Amazônicos (UFPA); Revista Instrumento (UFJF), Revista Cocar (UEPA); Coleção Contextos da Ciência. Parecerista ad hoc de diversas

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revistas científicas: Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Currículo sem Fronteiras, Revista Unisinos, Revista Acta Scientiarum Education, Revista Tempo, Revista Atos de Pesquisa, Revista Educação PUC/RS, Revista Educação e Filosofia, Educação e Cotidiano, Educação & Realidade, entre outras. Consultora ad hoc CNPQ e CAPES. Coordenadora do curso de especialização Relações Étnico-Raciais para o ensino fundamental (2015-2016/MEC/UNIAFRO). Coordenadora da linha de pesquisa Currículo e Escola Básica, do Programa de Pós-Graduação em Currículo e Gestão da Escola Básica (PPEB). Líder do Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Formação de Professores e Relações Étnicoraciais (GERA/UFPA) Bolsista Produtividade CNPq – Nível 2 CA ED, desde 2010.

Normas para publicação e demais informações: acesse o endereço da Revista .

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INFORMAÇÕES GRÁFICAS Formato: 16 x 23 cm Mancha: 13,3 x 18,5 cm Tipologia: Adobe Garamond Pro Regular – AlbertaLight Regular Papel: Offset 90 g/m² (miolo) – Cartão Supremo 250 g/m² (capa) Acabamento: Laminação fosca Tiragem: 300 exemplares

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