A filosofia de Montaigne: Introdução ao pensamento renascentista

Share Embed


Descrição do Produto

1

CELSO MARTINS AZAR FILHO

A FILOSOFIA DE MONTAIGNE: INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO RENASCENTISTA

2

Para Gerd Alberto Bornheim In memoriam

3

PREFÁCIO

O escritor e filósofo francês Michel de Montaigne ainda é relativamente ignorado no âmbito da universidade brasileira. Geralmente conhecido apenas incidentalmente, através de citações eruditas, o inventor do ensaio e primeiro filósofo francês ainda não foi “descoberto” como objeto de investigação científica, entre nós. Em que pese ser um dos chamados autores clássicos que mais diretamente nos dizem respeito, em função de ter se servido da realidade brasileira que lhe era contemporânea como matéria de reflexão, através dos índios canibais, o pensamento e a obra de Montaigne aguardam nosso devido reconhecimento acadêmico. Perdemos nós com isso, por não informar e fazer refletir as novas gerações, mostrando-lhes a riqueza de ideias e o pensamento surpreendentemente moderno desde autor renascentista que fascina a maior parte daqueles que tem a oportunidade de lê-lo. Felizmente, este panorama vem progressivamente mudando, graças à produção de algumas dissertações e teses acadêmicas em diferentes universidades brasileiras. Nesse contexto, a contribuição de Celso Martins Azar Filho é significativa. Nos últimos anos, este jovem professor e filósofo carioca tem publicado vários artigos acadêmicos nos melhores periódicos montaignistas, a exemplo do Bulletin de la Société Internationale des Amis de Montaigne. Temos agora a oportunidade de conhecer sua dissertação de mestrado, orientada pelas mãos seguras de Gerd Bornheim, em forma de livro. É com satisfação que a apresentamos e a recomendamos ao leitor. Trata-se de uma instigante introdução às ideias de Montaigne, inseridas no contexto da cultura e da filosofia do Renascimento. Uma das funções de obras dessa natureza – e simultaneamente seu grande desafio – é tornar mais facilmente compreensíveis certas ideias e conceitos do universo não raro árido da filosofia. Nesse sentido, acreditamos que Celso Azar logrou êxito, pois uma das qualidades do seu livro é expor claramente aspectos do pensamento do autor francês. Esta tarefa, diga-se de passagem, não é das mais fáceis, uma vez que o pensamento de Montaigne é complexo, dinâmico, resistente a sistematizações redutoras. Dividido em três capítulos, complementados por um apêndice, o presente livro aborda aspectos importantes dos Ensaios. Os dois primeiros são mais frequentemente

4

tratados na fortuna crítica, uma vez que as questões da natureza e do ceticismo são centrais no pensamento de Montaigne. Ambas são tratadas e reinseridas em seus respectivos contextos históricos e filosóficos com competência e clareza didática. Comparativamente, a questão da imaginação é menos contemplada, mas aqui ela é devidamente enfocada em suas relações com o ceticismo, nos proporcionando uma reflexão oportuna e inspirada. Finalmente, Celso Azar faz um exercício de leitura crítica a partir do primeiro capítulo dos Ensaios, mostrando como este já dá o tom de toda a obra, posto que ele exemplifica talvez a principal característica do ensaio: a de exercitar o julgamento, analisando os diversos aspectos, via de regra contrários, através dos quais uma questão pode ser apreciada e julgada. A publicação deste livro é especialmente oportuna neste Ano da França no Brasil, pois dá sua contribuição para aproximar o público brasileiro desse autor francês que, entre outros méritos, defendeu corajosamente a humanidade dos nossos índios numa época em que eles eram acusados de serem “bárbaros e selvagens”. Nesse sentido, o Brasil lhe deve as devidas homenagens, as quais este livro se desincumbe, à sua maneira. Que outros livros sobre Montaigne e seu tempo venham se somar a este, a fim aprofundar a reflexão e nutrir o debate de ideias, especialmente nos tempos em que vivemos, marcados pela superação ou aparente esgotamento de determinados paradigmas teóricos. Grandes pensadores, como Montaigne, têm sempre algo de novo a nos dizer e nos dão uma dimensão ao mesmo tempo modesta e profunda, sem pedantismo ou arrogância, da humana condição. João Pessoa, julho de 2009.

José Alexandrino de Souza Filho Professor de Literatura Francesa da Universidade Federal da Paraíba Criador do Projeto “Livraria” de Montaigne

5

SUMÁRIO

PREFÁCIO............................................................................................................................ 3

INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 6

I. NATUREZA E LEI NATURAL NOS ENSAIOS............................................................ 13

II. ENSAIO, CONTRADIÇÃO E CETICISMO................................................................. 28

III. IMAGINAÇÃO E VERDADE ..................................................................................... 51

BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA ............................................................................................. 82

APÊNDICE.......................................................................................................................... 83

INTRODUÇÃO

Os técnicos dividem e denotam suas ideias mais especifica e minuciosamente. Eu, que não vejo senão o que o uso me informa, sem regra, apresento de forma geral as minhas, e ao acaso. Como aqui: pronuncio minha sentença por artigos descosturados, como coisa que não se pode dizer de uma vez e em bloco. A relação e a conformidade não se acham em almas como as nossas, baixas e comuns. A sabedoria é um edifício sólido e inteiro, no qual cada peça tem seu lugar e porta sua marca. “Só a sabedoria se contém toda em si mesma” (Cícero, De finibus). Deixo aos artistas, e não sei se chegarão a seu fim em coisa tão misturada, miúda e fortuita, de distribuir em partes esta infinita diversidade de aspectos, e fixar nossa inconstância e a ordenar. Não somente acho difícil ligar nossas ações umas às outras, mas acho, cada uma por sua parte, difíceis de designar propriamente por qualquer qualidade principal, tanto elas são dúbias e heterogeneamente matizadas por diversas perspectivas (Ensaios III, 13, 1076).

7

O pensamento de Michel Eyquem (1533-1592), Seigneur de Montaigne, possui muitas faces, movimentos aparentes e ocultos, enfeixando e possibilitando vasta pluralidade de perspectivas que permitem múltiplos procedimentos de abordagem com resultados diversos. Hoje parecem em geral concordar os comentadores dos Ensaios em considerar seu autor como um “cético”. Devemos, porém, desde o inicio marcar que, com relação à sua filosofia, como é comum acontecer com as obras dos grandes pensadores, as comparações – venham de onde vierem – não serão nunca completamente válidas. Os Ensaios constituem um microcosmo surpreendentemente rico e sugestivo, cobrindo em suas páginas um largo campo da cultura renascentista: eles falam por si. Consequentemente, exorto o leitor a ter o texto ora estudado sempre diante dos olhos: Montaigne cria seu próprio estilo; este, embora aparentemente frequente depois dele, talvez com seu autor tenha morrido. Pois, a noção de estilo, como a compreende o ensaísta, não se limita ao domínio linguístico, mas nomeia a maneira como um homem age e reage – inclusive na linguagem1. No ensaio, a forma está tão intima e estreitamente ligada à sua matéria, que não se pode na maior parte das vezes modificar sua estrutura, trocar a ordem de vocábulos ou frases, sem alterar a mensagem. E a citação inoportuna, fácil frente à virtude dadivosa dos Ensaios, deturpa, limita, muitas vezes abastardando completamente a palavra montaigniana: esta é una e dificilmente pode ser fracionada sem alguma perda de sentido. Emerson dizia do texto de que agora nos aproximamos: “Corte essas palavras e elas sangrarão; são vasculares e vivas” 2. Por isso, a citação, no presente estudo, mesmo tentando certamente determinar em si certo grau de generalização (variável segundo o momento) no que toca ao todo do pensamento em pauta, deverá reger-se mais pelo intuito de ilustrar do que de demonstrar. Creio que assim se corresponderá melhor ao próprio espírito da filosofia ensaística. E é em função deste espírito próprio que a escrita montaigniana apresenta, logo ao primeiro contato, uma dificuldade que deve ser bem discernida: a impressão de atualidade 1

Ver, por exemplo: Ensaios I, 40, 252; II, 17, 653 (a edição referida nas citações é a de VilleySaulnier – Paris: PUF, 1988). Tomei a liberdade de evitar a repetição do nome “Ensaios” nas citações; assim, quando sem referência de título (aparecendo somente o número do livro seguido dos do capítulo e da página), a citação a eles pertence. E, para facilitar o trabalho do leitor, referi também as obras e autores citados por Montaigne (o que ele mesmo não fez), segundo as informações daquela mesma edição. 2 Representative Men, IV. Todas as traduções são de minha responsabilidade (sempre cotejadas com as traduções brasileiras e portuguesas disponíveis).

8

suscitada pela familiaridade do tom coloquial de suas descrições da humaine condition. Isso não nos pode privar do imprescindível senso histórico. Com efeito: ler os Ensaios alienando-os dos problemas históricos de sua constituição é arriscar-se a perdê-los. E, ainda mais, porque estes são palco de acontecimentos decisivos, tanto para a história da filosofia, como para a história da língua e da literatura. Montaigne escreve em um mundo em mutação, em uma época, mais que qualquer outra, inaugural. Lá, o universal partira-se, e as raízes mesmas da realidade social, política e econômica abalaram-se, transformando-se. A redescoberta do saber antigo (que então aparece como um todo autônomo); a Reforma religiosa e as guerras de religião; o descobrimento do Novo Mundo; a peste; a revolução técnico-científica – e a sinergia de todos estes eventos realçada por sua difusão pela imprensa: tal é o cenário das dores de parto da modernidade. Assim, temos, desde já, de nos entender muito bem com relação ao significado do termo 'Renascimento'. A divisão da história em períodos organizados seja sob qual for o ponto de vista, sempre pecará por excessiva generalidade. Certos estudiosos chegarão a dividir o período renascentista em quatro sub-períodos para tentar dar conta da complexidade nãohomogênea do todo de suas obras. De qualquer forma, os limites destes, como dos megaperíodos tradicionais, serão sempre incertos, desde que apenas abstrações úteis. No escopo de nossa investigação não necessitaremos de tão sofisticadas aproximações. Cabe ressaltar, contudo, um ponto muito importante: parece ter sido o colapso da Renascença, e não o alto Renascimento, que ambientou as pré-condições da modernidade. Ou seja, quando o equilíbrio clássico entre o medieval e o antigo, característico do primeiro Renascimento, entra em crise, começa a vir à luz aquilo que, na cultura em geral, podemos propriamente chamar moderno. O que se costuma designar como clássico no Renascimento tem muito da Idade Média, sendo na verdade os movimentos de restauração cultural dos séculos XI-XII (que se reportam, por sua vez, aos séculos VIII-IX) suas grandes fontes. Tendo isto em mente, usaremos os termos 'Renascimento' ou ‘Renascença’ indistintamente, sem deixar, porém, quando necessário, de distinguir o período clássico de fins do século XIV e o XV do período crítico e maneirista do XVI, limiar da modernidade, ao qual pertence Montaigne.

9

Mas, sobretudo não tornemos rígidas estas definições auxiliares: as grandes obras renascentistas – basta nomear Leonardo da Vinci – ultrapassam quaisquer rotulações. Fato também reconhecido por seus contemporâneos, a ideia de uma revivescência sob a influência dos modelos clássicos foi concebida e formulada por Petrarca: este conceito chegaria por volta de 1500 a se difundir por praticamente todos os ramos do saber e da arte. Tal comunicação foi uma diferença decisiva com relação aos renascimentos medievais. Mas o que diferencia o Renascimento dos períodos precedentes é principalmente sua preocupação com a forma; e nada mais natural para um movimento intelectual que se origina nos campos de representação retórica e poética e nas artes visuais: o alto humanismo busca um equilíbrio entre ideia e forma, em uma filosofia de conteúdo mais concreto do que a abstração em geral resultante do divórcio tipicamente medieval entre pensamento e expressão. Muitos elementos da ciência moderna vieram à luz pela mão das belas-artes, e inclusive seu elemento central: o critério experimental quantitativo. Pois, na Renascença, a experimentação de formas, proporções, medidas e perspectivas torna-se meio e condição, não só da reformulação de teorias da arte e da ciência, mas de uma reunificação de sua linguagem, baseada na analogia com a criatividade natural de todos os domínios do saber em seus termos fundacionais. O ensaio é também uma experimentação da forma e, nesse sentido, da própria experiência. Para entendê-lo, voltemos nossa atenção para a composição dos Ensaios. Nós conhecemos vários estados publicados do texto dos Ensaios: As edições de 1580/1582, 1588, 1595 e aquela baseada no Exemplar de Bordeaux (um exemplar da edição de 1588 corrigido pelo próprio autor). A controvérsia linguística acerca da reconstrução do texto mais fiel e completo possível não pode ser resolvida em definitivo: uma vez que nos falta o aval do ensaísta, essa responsabilidade deve recair sobre os organizadores de cada uma das reedições contemporâneas3. A dificuldade de estabelecimento do original é, aliás, frequente nos textos do século XVI, e no caso dos Ensaios, em virtude precisamente da maneira com que foi construído, o problema se torna

3

Por dois motivos: primeiro, o Exemplar de Bordeaux encontra-se bastante mutilado; segundo, a edição de 1595 é póstuma e organizada pelos amigos de Montaigne, ou seja, a “família” à qual ele reserva (no “Aviso ao leitor”) a prerrogativa de interpretar sua obra, e é presumível que eles pudessem ter adicionado algo aos Ensaios no intuito mesmo de lhes serem fiéis.

10

ainda mais complicado: este é composto não apenas pela adição de novos capítulos, mas também pelo remanejamento e acréscimo, nos ensaios já constituídos, tanto simplesmente de palavras, como de frases e até de páginas inteiras (chegando ao montante provável de 1.000 retificações na última fase de quatro anos – da edição de 1588 até a morte do autor – o que aumentará a edição de 1595 em mais de um terço com relação às precedentes). A compreensão deste processo de “aluvionamento”, que dura cerca de vinte anos, é altamente significativa para a interpretação do pensamento montaigniano. No entanto, não devemos nunca esquecer que Montaigne assinou com seu nome o conjunto dos Ensaios, e não quis nem previu que ficassem claras suas modificações. Assim, as considerações sobre a evolução do pensamento ensaístico devem ser apresentadas cuidadosa e raramente para não desfigurarem suas noções centrais, isto é, aquelas que tocam ao fundo de sua concepção sendo atingidas em seu desenvolvimento mesmo. Porquanto, muito embora possamos falar de modificações em certos pontos deste pensamento (ao longo das duas décadas nas quais os três livros são escritos), trata-se mais de um desdobramento (como veremos, decorrente da própria ideia de ensaio e previsto em seu método) que não somente não renega suas contradições, mas parte delas, ensaiando-as. Vejamos o que diz o ensaísta em uma de suas adições tardias: “Meu livro é sempre um. Salvo que eu, à medida que o vão reeditando, a fim de que o comprador não saia de mãos completamente vazias, permito-me incrustar (pois não passa de uma marchetaria mal encaixada) algum ornamento supranumerário. Não são senão acréscimos que não condenam a primeira forma, mas dão algum valor particular a cada uma das seguintes por uma pequena sutileza ambiciosa. Daí, todavia, acontecerá facilmente que se junte aí alguma transposição cronológica, meus contos tomando lugar segundo a oportunidade, nem sempre segundo sua época” (III, 9, 964).

Montaigne é o primeiro autor que chama seu livro de Ensaios. Mas não se encontra aí designada uma categoria literária (como hoje comumente entendemos o gênero ensaístico), mas uma noção de método para a filosofia moral. Explicar como e porque é o intento desta dissertação. Comecemos por identificar a raiz latina de ensaio, exagium, que significa peso e ação de pesar. Com ela ressoa a raiz de pensar. E não é inoportuno lembrar que estudamos aqui a obra de um homem que até os seis anos de idade – graças aos desvelos de um pai fascinado pelos clássicos – não sabia falar senão o latim.

11

As línguas românicas produzirão para ‘ensaio’ e ‘ensaiar' toda uma série de novas acepções concretas. Basta citar: exercício, prelúdio, tentativa, tentação, experimentação, degustação para o primeiro; tatear, verificar, degustar, correr um risco, tentar, induzir em tentação, pesar, tomar impulso, empreender, para o segundo; e todas já correntes na França do século XVI. O título da obra com a qual nos ocupamos refere-se, intencionalmente, à ideia de uma disposição aparentada ao ceticismo, significada por ‘ensaio’: primariamente encontrase aí marcada a atitude investigativa do cético, pondo sucessivamente em causa suas próprias conclusões e contentando-se com uma verdade provisória e aproximativa. “Proponho as fantasias humanas e minhas, simplesmente como humanas fantasias, (...), como as crianças propõem seus ensaios: como quem se instrui, e não como instrutor; (...)” (I, 56, 323). E daí encontra expressão o sentido dominante de ensaio: experiência de si mesmo, de sua força e fraqueza, ou de sua natureza própria: “Quanto às faculdades naturais que estão em mim, das quais está aqui o ensaio, (...)" (I, 26, 146). A modéstia expressa no título ‘Ensaios’ – admirada já por seus contemporâneos – serve de encaminhamento à noção de método nela mesma delineada, e até mesmo por sua acepção ampla, flutuante e polissêmica (característica frequente dos conceitos montaignianos): o ensaio ensaia a si mesmo, congregando unidade e multiplicidade, identidade e alteridade, em seu desenvolvimento. Os Ensaios não formam, pois, um sistema, porém uma rapsódia (I, 13, 48). E isso não significa proceder desordenada ou descuidadamente, mas pôr em jogo uma exigência estética através da qual se projeta a reflexão, unindo tarefa artística e problema moral na escrita e na vida. Com isto, neste texto, a vida humana se tornará complexa, no sentido moderno, pela primeira vez (Auerbach 1987: 275). Tal pensamento não busca a unidade integral, estável e rígida das puras entidades lógicas, todavia realiza a união de maneira implícita, móvel e aberta. Sua ideia de verdade aborda a noção de conhecimento desde a procura de uma veracidade pessoal que só pode se efetivar no tempo e em situação, na obrigação de portar em seu dizer a virtude e a realidade singulares das questões consideradas. “Pois, nisto que digo, não garanto outra certeza senão que é o que então tinha eu em meu pensamento, pensamento tumultuado e vacilante. E à maneira de conversa que falo de tudo, e de nada por modo de conselho. Nunca me envergonhei, como aqueles, de ter

12

confessado ignorar aquilo que ignoro (Cícero, Tusculanas). Eu não seria tão ousado ao falar se me coubesse ser crido; e isto foi o que respondi a um grande personagem que se queixava da aspereza e esforço de minhas exortações. Vós estais inclinado para um lado, eu vos exponho o outro, com toda aplicação que posso, para esclarecer vosso julgamento, não para o obrigar” (III, 9, 1033).

A dúvida é o motor e um elemento constitutivo da razão montaigniana: o ensaio não se dedica a estabelecer a verdade, mas a procurá-la (I, 56, 317). Pois, em meio às metamorfoses naturais a única verdade possível é a da ciência do presente. Por isso trata-se, para o ensaísta, de compor uma rapsódia, uma poética da natureza, realizada pelo ensejo de reconhecer a marcha de suas próprias mutações no tempo (II, 37, 758), cujo fim é o conhecimento da oportunidade e da ocasião propícia, ou a harmonia com a fortuna. E isto é algo que deve ser reconquistado por cada um de nós a cada momento. “Não está aqui minha ciência (doctrine), é meu estudo: e não é a lição de outro, é a minha” (II, 6, 377). É neste estado dubitativo positivo – provocador e estimulante da investigação – que devemos nos acercar da filosofia montaigniana, porquanto o ensaísta exige nossa ação e nosso engajamento para nos permitir acompanhá-lo. E todo cuidado de nossa parte se faz necessário, muito embora não pareça possível evitar, ao interpretar os Ensaios, involuntariamente, traí-los, sistematizando-os e simplificando-os – “(...) e todo resumo de um bom livro é um tolo resumo (...)” (III, 8, 939). Tentei minimizar o prejuízo elegendo o conceito ensaístico de natureza como centro e limite de minhas preocupações: nele se funda a possibilidade de uma moral cética. Enfim, é uma responsabilidade algo inquietante escrever sobre um filósofo que afirmou: “Voltaria de bom grado do outro mundo para desmentir aquele que me formasse outro que não sou, mesmo que fosse para me honrar” (III, 9, 983). Contudo, em outro lugar, este mesmo pensador também escreveu: “Um leitor capaz descobre frequentemente nos escritos de outro, outras perfeições além daquelas que o autor aí pós e percebeu, emprestando-lhes sentidos e aspectos mais ricos” (I, 24, 127). Esperando estar à altura, almejo com este trabalho difundir o conhecimento da obra de Montaigne e aumentar sua influência sobre o homem do nosso tempo.

13

Capítulo I

Natureza e lei natural nos Ensaios

Mas quem se apresenta, como em um quadro, a grande imagem de nossa mãe natureza em sua inteira majestade; quem lê em seu semblante uma tão geral e constante variedade; quem se enxerga lá dentro, e não só a si, mas a todo um reino, como um traço de delicadíssima fineza: só esse estima as coisas segundo sua justa grandeza. Este grande mundo, que alguns multiplicam ainda como espécies sob um gênero, é o espelho ao qual nos devemos mirar, para nos conhecermos ao justo viés. Em suma, quero que seja este o livro de meu discípulo (I, 26, 157).

14

A natureza é o grande princípio. Segui-la, segundo a filosofia dos Ensaios, é o preceito soberano: “Eu tomei, como já disse alhures, bem simplesmente e de maneira crua no que me concerne, este preceito antigo: que nós não saberíamos falhar em seguir a natureza, que o preceito soberano é de se conformar a ela” (III, 12, 1059). A importância do referencial ‘natureza’ para o pensamento o renascentista é facilmente reconhecível: ela serve de ponte entre os sujeitos e os objetos do conhecer, relacionando ser e pensamento pelas vias da analogia, conveniência e semelhança, em um saber cuja estruturação e ordenação mesmas recebem o título de “naturais”. A natureza foi a grande entidade metafísica da Renascença. Pelo menos desde o século XII (em uma tendência que remonta ao século IX) a idéia de natureza começa a sofrer, em suas expressões teóricas e artísticas, transformações substanciais, embora permaneçam geralmente emolduradas pelas disposições extáticas do pensamento cristão medieval. O resultado será o desembocar de concepções bastante divergentes em um vasto confronto que, no outono da Idade Média, resultará em recíprocas remodelagens. E o alto Renascimento alcançará realizar brilhante equilíbrio entre suas várias heranças antigas e medievais. Porém, mais e mais certas contradições básicas se tornarão evidentes, e a sustentação dos paradoxais padrões assim vigentes, problemática. O termo ‘natureza’ será então repleto de significados que se permutam, opõem-se e superpõem-se, pois a própria natureza aparecerá – no esfacelar de sua feição medieval em meio ao reviver do mundo antigo e ao descobrimento de novos mundos – espantosamente móvel e variada em seus “(...) meios infinitamente desconhecidos. Há grande incerteza, variedade e obscuridade no que ela nos promete ou ameaça” (III, 13, 1095). Palavra de múltiplas e complexas significações (e que, no período em questão, poderá chegar a ocupar o mesmo lugar de Deus4), a natureza sofreu ao longo de sua história profundas modificações semânticas, porque por grandes mudanças passou o relacionamento e interação do homem com esta. Evitemos, pois, justificar o passado a partir deste futuro e projetar naquele nossos ideais, ou, ao menos, não fazê-lo de forma completamente inconsciente. Tomemos a sério o fato de Giordano Bruno considerar-se um “delineador do campo da natureza” (Acerca do 4 Em Montaigne ocorrem fórmulas quase assimilativas como “de Dieu et de nature” (460). E, ao longo dos Ensaios, cada vez mais frequentemente se pode substituir um termo pelo outro com prejuízo mínimo para o sentido das frases que os contém.

15

infinito, do universo e dos mundos, epístola preambular): uma vez que os quadros e conceitos transcendentes sob os quais se organizava a ideia de natureza aparecem rompidos e desgastados, a procura de sua ordenação imanente se torna a preocupação primeira. A posição e condição do homem em um universo transfigurado: este é o problema central para a filosofia renascentista. Note-se que, no século de Montaigne, longe estamos da natureza mecânica, à disposição do homem, do século XVII. Aqui ‘natureza’ é uma designação extensa e vaga, cujo peso moral torna ainda mais abstrata. Prenhe de investimentos culturais obscuros e em plena mutação, dada a progressiva falência dos avatares teóricos tradicionais, oferece de si uma imagem muito pouco distinta e bastante instável. No período medieval, discorrer acerca da natureza (em um universo finito, hierarquicamente imóvel, e expresso através do realismo linguístico dominante) é, em geral, falar da necessidade nos termos metafísicos de causa, origem e finalidade. Isto toca diretamente a liberdade e consciência do homem que, inscrito em um universo definitivo, já encontra sua natureza e seu papel dados de antemão. Desde antes do Renascimento estas estruturas começam a ser abaladas por choques sucessivos, se propagando em uma “descrença” mais ou menos difusa – descrença toda especial que não provém ou procede por exclusão, mas por inclusão, e não necessariamente acontece pela falta de fé, mas, amiúde, pelo seu excesso; ou seja, um desacreditar da ortodoxia e das explicações finais em geral. A obra montaigniana é a expressão mais original e acabada do ceticismo daí resultante, reencontrando o antigo sentido do termo em um olhar enriquecedor que, longe da mera negação, reafirma a complexidade da natureza sobre suas sempre imperfeitas interpretações. Assim, tal ceticismo difere bastante, por exemplo, de certo dogmatismo do senso comum o qual, em busca da evidência completa de uma clareza total (talvez a pior ilusão), rejeita absolutamente o que não compreende. Simplifica, ao contrário de Montaigne, cujo ceticismo considera possível mesmo o que escapa ao pretenso bom senso e é todo penetrado de uma espécie de “temor metafísico”: “É preciso julgar com mais reverência esta infinita potência da natureza e com maior reconhecimento de nossa ignorância e fraqueza” (I, 27, 180). Se esta reverência tem a intensidade de um sentimento religioso, ela não é mais a consequência do temor ao Deus criador medieval, mais sim da compreensão ensaística do homem e da natureza.

16

A natureza, nos Ensaios, é o princípio de criação, movimento e diversificação, tanto do desenvolvimento dos seres singulares, como da economia do todo. Como tal, a natura montaigniana – traduzindo muito bem a noção grega de physis, força que gera e sustém – não se opõe ao “espírito” ou à história que são, antes, compreendidos sob seu domínio. Contudo, não está aí em questão a ideia de uma natureza que procedesse uniformemente, acionando sempre o mesmo efeito para cada causa (“Em coisas naturais, os efeitos não se referem senão em parte às suas causas (...)”: II, 12, 531), mas a de uma natura creatrix, variável, mutante e inventiva, que sobrepuja qualquer enquadramento teórico. O conhecimento humano, seus objetos e sujeitos, originados e nutridos pela mesma fonte, são (como todo o resto) arrastados pela mesma corrente natural de infinitas possibilidades de metamorfoses: “Se a natureza encerra nos termos de sua marcha ordinária, como todas as outras coisas, também as crenças, os juízos e opiniões dos homens; se tudo isso tem sua revolução, sua estação, seu nascimento, sua morte, como as couves; se o céu lhes agita e lhes rola ao seu talante, que autoridade segura e magistral lhes vamos atribuindo?” (II, 12, 575)

“(...) todas as coisas estão em flutuação, mudança e variação perpétua” (II, 12, 601). As imagens do fluxo, movimento e mutação da realidade multiplicam-se no texto montaigniano: o escoar incessante do devir universal é uma experiência fundamental para a filosofia ensaística. “O mundo não é senão balouçar perene. Todas as coisas nele se movem sem cessar: a terra, os rochedos do Cáucaso, as pirâmides do Egito, e do movimento geral e do seu particular” (III, 2, 804). Do ponto de vista da consciência individual, trata-se de um mover-se externo e interno, cercado por inumeráveis outros movimentos: “E nós, e nosso juízo, e todas as coisas mortais vão fluindo e rolando sem cessar. (...) e o julgador e o julgado estão em continua mutação e movimento” (II, 12, 601). Esta natureza vertiginosa aparece como diversidade e variação: “A natureza se obrigou a nada fazer que não fosse dessemelhante” (III, 13, 1065); “O mundo não é senão variedade e dessemelhança” (II, 2, 339). Entretanto, mesmo em sua variabilidade a mére nature não perde sua unidade (“É uma mesma natureza que rola seu curso”; II, 12, 467) e, até poderíamos dizer sua “personalidade”, pois Montaigne fala dela como de uma pessoa próxima: nos Ensaios, a

17

natureza discursa, ordena, recomenda, sugere, guia, consola, estende a mão, dá, etc 5. Seu autor não se considerava (e nem pretendia que o homem fosse ou viesse a ser) mestre e possuidor da natureza, mas muito mais seu protegido. O Renascimento retoma o saber antigo que, em geral (e marcadamente na filosofia helenística, através da qual muito frequentemente os humanistas leem os clássicos), prescreve subordinação à medida natural. Prescrição esta que se afigura tanto mais importante conforme percebemos a intenção do vivere secundum naturam implicada com a construção mesma da linguagem ensaística. E nada mais natural, desde que a natureza não é aí apenas algo de exterior ao homem, mas a própria força que constitui sua individualidade (como a de cada ser singular), sendo acessível desde seu interior mesmo. O natural, então, é onde se cruzam liberdade e necessidade, e a perfeição da personalidade (ideal da sabedoria helênica e renascentista, compartilhado por Montaigne) consiste na realização da ligação intima entre homem e natureza: viver a propósito é reencontrar constantemente esta harmonia fundamental. Desde o século V (com o Pelagianismo) esta virtude salutar autônoma da natureza, sinal de resistência da tradição pagã, ocupará Agostinho em sua refutação: ela se opõe a sua doutrina da graça sobrenatural, central no cristianismo, para o qual a natureza é um ens creatum, estritamente separada de Deus e irremediavelmente corrompida pelo pecado original. Este "paganismo", tendo se feito cada vez mais presente desde o século XII, impõe-se nos séculos XV e XVI com força inusitada. Suas fontes, helenísticas, são as mesmas às quais se refere a natureza montaigniana: Deus e natureza são, nos Ensaios, por vezes empregados como quase sinônimos (II, 12; III, 13), e esta é a representante autônoma daquele. A ideia eminentemente grega do crime como ato antinatural, radicalizada pelo estoicismo e reorganizada segundo o sobrenatural universo cristão, atravessou a Idade 5 Se, aparentemente, as inumeráveis metáforas dos Ensaios sobre a natureza contribuem para tornar vaga sua noção e até mesmo realçar certo caráter de transcendência divina, muito ao inverso o que ocorre é a multiplicação dos laços afetivos com ela, através do enriquecimento das tonalidades expressivas da linguagem. A natureza está presente principalmente à visão interior de Montaigne (II, 10, 407). O ensaio exclui deliberadamente tudo que as ciências naturais poderiam fornecer em definições (e tal também pelo emprego retorcido de suas perspectivas e linguagem técnica). Pois, para uma filosofia cujo fim básico é o aperfeiçoamento da personalidade, importa a consideração da natureza enquanto força que organiza a individualidade, ou como a resultante da convergência de forças interiores e exteriores em sua remodelação recíproca no indivíduo; a metáfora é a expressão disto. Ela serve tanto à crítica da definição universal e do conceito como critica a si mesma, evitando o papel de instrumento do conhecimento (atacando implicitamente certos pensadores neoplatônicos: Baraz 1968: 63).

18

Média e o Renascimento: lá, ser criminoso ou pecador era afrontar a ordem moral universal. Mas, no texto montaigniano, além de não mais encontrarmos apelos ao sobrenatural, a compreensão do que seja contra a natureza sofre torção decisiva, tornandose extremamente problemática. Seu ceticismo questiona precisamente a inteligibilidade daquela ordem natural, fazendo ressoar novamente a interrogação incisiva de Sextus Empiricus: “Qual natureza?” (Pyrrhoneiai Hypotyposeis, I, 98). As distinções dogmáticas e teológicas com relação à natureza apagam-se nos Ensaios (ou antes, se multiplicam em confrontos ou combinações de plástico contraste) e o sobrenatural é absorvido pela natural: nada é, senão segundo a natureza, o que quer que seja (II, 30, 713). No entanto, se a natureza é mãe e doce guia, a qual “não saberíamos falhar em seguir” (e rege, assim, o que é e o que deve ser), em vão procuramos ler nos Ensaios o enunciado de alguma lei natural: “Mas eles são divertidos quando, para dar alguma certeza às leis, dizem que algumas há firmes, perpétuas e imutáveis, que eles chamam naturais, que são impressas no gênero humano pela condição de sua própria essência” (II, 12, 579).

Este é um trecho da Apologia de Raymond Sebond: trata-se de uma investigação acerca da natureza do homem e do conhecimento. É neste mais longo dos ensaios (II, 12) que o ceticismo montaigniano exprime-se de forma plenamente consciente de si mesmo, a partir de seu encontro – que parece lhe confirmar suas próprias impressões – com o texto de Sexto Empírico. Esta conjunção será crucial para o desenvolvimento posterior do pensamento moderno. Para os dois séculos seguintes, Montaigne e Sexto Empírico serão os grandes representantes de uma filosofia que nega a existência de leis naturais. Mas na verdade as coisas não se passam tão simplesmente nos Ensaios: o que foi negado na última citação não foi exatamente a existência de leis da natureza (“A natureza as dá sempre mais felizes do que aquelas que nós nos damos”: III, 13, 1066), mas seu conhecimento imediato e seguro: “Se nós víssemos tanto do mundo como nós não vemos, nós perceberíamos, como é de crer, uma perpétua multiplicação e vicissitude das formas. Não há nada de novo e de raro em relação à natureza, mas sim em relação ao nosso conhecimento, que é um miserável fundamento de nossas regras e que nos apresenta provavelmente uma muito falsa imagem das coisas” (III, 6, 908).

19

Em função desta constatação fundamental, as oposições tradicionais natureza x contra/sobre/anti-natureza serão substituídas na filosofia dos Ensaios pela contraposição natureza x arte. Isso traz para o centro da problemática geral do ceticismo ensaístico a crítica do pensamento e do ato humano frente à natureza. Para Montaigne, o homem será o animal que tem o poder, para sua desgraça, de contradizer a natureza através de uma espécie de ilusão ontológica racional: “Pode-se crer que haja leis naturais, como se vê nas outras criaturas; mas em nós elas estão perdidas, esta bela razão humana se metendo a tudo dominar e comandar, embrulhando e confundindo a aparência das coisas segundo sua vaidade e inconstância: Nada resta, portanto, que seja nosso: o que chamo nosso é artificial (Cícero, De finibus)” (II, 12, 580).

Paradoxalmente, o esforço mesmo de compreender e determinar a lei natural, com frequência nos desvia da natureza. “Os filósofos, com grande razão, nos reenviam às regras da natureza; mas elas não têm o que fazer de tão sublime conhecimento; eles as falsificam e nos apresentam sua aparência muito pintada e muito sofisticada, de onde nascem tantos diversos retratos de um objeto tão uniforme” (III, 13, 1073).

Não é nada simples, portanto, seguir aquele preceito soberano enunciado de inicio. Pois, “(...) esta razão que se maneja a nosso talante, (...), não deixa em nós nenhum traço evidente da natureza. Com esta fizeram os homens como os perfumistas com o óleo: sofisticaram-na com tantas argumentações e reflexões chamadas do exterior, que ela se tornou variável e particular a cada um, e perdeu seu próprio aspecto constante e universal, (...)” (III, 12, 1049).

Como, então, seguir a natureza? Por um lado, a via de um quietismo naturalista simplista, que se contentasse em se reunir à espontaneidade instintiva dos animais, recusando a intervenção racional, se encontra, ao menos para nós – homens “civilizados” e distantes da felicidade do antigo Brasil canibal (tal como Montaigne o apresentou no livro I, ensaio 31) – fechada. Por outro lado, persiste o problema de não haver acesso racional direto ou garantido às leis naturais. Mantendo a questão em suspenso, são oportunos certos comentários paralelos. A lei de que Montaigne trata aqui por certo é aquela que nós denominaríamos ‘moral’. Mas, para o Renascimento, lei física e lei moral são apenas extremos, bastante

20

imbricados, do campo de sentido do natural. A noção renascentista de lei, como a de natureza, não corresponde às modernas ou contemporâneas: não nasceu nossa compreensão cientifica (hipotético-dedutiva) do que sejam leis da natureza, e muito menos nossa certeza instintiva no tocante a elas. Para o autor dos Ensaios não parecia possível que qualquer norma humana tirânica pudesse limitar a potência incomensurável de uma natureza animada, providencial, e em incessante metamorfose sob seus olhos. As leis que buscava o Renascimento eram, em uma larga acepção, éticas, principalmente porque, lá, o problema moral adquiriu dramática complexidade, já que então a própria imagem do homem e do que seria o humano foi posta em causa: pela afluência dos novos e antigos mundos, a diversidade histórico-geográfica da natureza humana se torna mais e mais patente e a descoberta de “novos” tipos humanos no século XVI traz à baila a questão de se conviria ou não chamá-los homens. E mesmo do ponto de vista jurídico, a disposição das leis renascentistas poderia nos parecer no mínimo curiosa: por exemplo, sob sua legislação penal estabeleciam-se julgamentos formais mesmo para os animais. Além disso, esta é uma época na qual a natureza pode interferir diretamente, por meio de presságios e sinais, na execução das leis (e tal testemunhado e confirmado por homens, então, famosos por seu saber e habilidade), e onde os reis ainda curam. Fala, nos Ensaios, um moralista. Mas, esta designação tem aqui um significado especial: Montaigne é um estudioso dos mores (costumes). Ou seja, estuda o homem através de uma compreensão empírica de seu modus vivendi, buscando isenção dos juízos de valor rígidos. Trata-se de uma tendência da filosofia helenística que, recomposta, adquire força e formas mais definidas no renascimento italiano, para provar um florescimento mais constante na França (se espalhando também pela Espanha, mais tarde na Inglaterra e, posteriormente, na Alemanha). Não é uma filosofia moral nos moldes antigos, ou um saber das normas morais em um âmbito universal ou metafísico. Interessa aos moralistas, não a criação de cânones éticos ou de pedagogias para a formação e “melhoramento” do homem, mas a observação e a análise da facticidade concreta da condição humana em suas naturezas e costumes diversos (em meio aos quais o “imoral” é apenas uma questão de perspectiva). Esta linha de investigação, que descende do mais puro humanismo (como herdeira direta de Petrarca), recorre de preferência à forma literária aberta (dando papéis importantes para a sátira e a poesia), confrontando a ordem

21

hierárquica e logicamente formalista do discurso tradicional acerca da natureza humana, e evitando toda sistematização metafísica para manter o problema moral em aberto. Ao que tudo indica, foram as relações entre os príncipes italianos que fomentaram e ambientaram o nascimento desta observação tática dos homens e situações. Esta vicejou com vigor, em seguida, nas cortes renascentistas em geral, mas especialmente, logo após Montaigne, na francesa (onde o inchamento e a esclerose da estrutura cortesã absolutista tornarão tal tipo de consideração estratégica das relações humanas quase uma necessidade de sobrevivência). No Renascimento, os limites da natureza, dos seres e dos estados são incertos. A noção de lei é problemática, e mais ainda nos Ensaios do Seigneur de Montaigne, que foi ele mesmo diplomata, prefeito e juiz de muitas causas: há tanta incerteza “em interpretar as leis, como em fazê-las” (III, 13, 1065). Esta conclusão, porém, não é apenas jurídica, mas filosófica: desenvolve-se, aí, uma crítica do universal em geral, que orienta a linguagem ensaística, desde a cunhagem e o emprego de seus termos, até a organização sintática e a disposição de sua argumentação. Contudo, tal não impedirá Montaigne de ser um moralista convicto e resoluto quando julgar necessário (com ecos, sem dúvida, daquela filosofia moral que, como queriam os antigos, deveria ser parte primeira e principal de todo saber). Como o pôde ser? Cético em sua recusa de fundamentação última para leis ou princípios (“Ora, não pode haver princípios para os homens se a divindade não os revelou”: II, 12, 540), o ensaísta buscará apoio, em meio às revoluções do mundo e do homem, no autoconhecimento, através de uma representação pictórica do ‘eu’. Por este caminho, os Ensaios compreenderão um estudo fenomenológico da consciência moral, podendo prescindir, tanto do esquematismo categórico e verticalizante do saber de seu tempo, como da ciência nova emergente, em favor de uma compreensão estética da personalidade que, através de sua capacidade plástica, procura ordenar a fecundidade transbordante da natureza: ele busca, não a lei, mas a atitude correta; não apenas o conceito, mas a imagem sensível; e não compreender racionalmente a natureza – akatalepsia6– mas, mais além, segui-la e realizá-la. “Soubestes meditar e governar vossa vida? Vós realizastes a maior empresa de todas. Para se mostrar e agir a natureza não precisa de fortuna: ela se mostra igualmente em todos 6

“Eu não compreendo”: uma das frases (número 55) gravadas por Montaigne nas traves de sua biblioteca.

22

os níveis e atrás, como sem cortina. Compor nossos costumes é nosso oficio, não compor livros, e ganhar, não batalhas e províncias, mas ordem e tranquilidade em nossa conduta. Nossa grande e gloriosa obra-prima é viver a propósito” (III, 13, 1108).

Montaigne não aspira, ao contrário de certo naturalismo teológico-humanista seu contemporâneo, ao conhecimento no nomotético da natureza humana, mas, em nossos termos, ideográfico: não encontraremos, antes de Montaigne, um estilo tão intensamente figurado. Pintando um quadro de si mesmo, tentando exprimir e compreender o relacionamento de sua natureza individual com a natureza geral, ou sua maneira (seu estilo, onde seu ‘eu’ se materializa), ele se presta, simultaneamente, a estudar o homem: Les autres forment I'homme; je le recite et en represente un particulier bien mal formé, et lequel, si j'avoy à façonner de nouveau, je ferois vrayement bien autre qu'il n'est. Meshuy c'est fait. Or les traits de ma peinture ne forvoyent point, quoy qu'ils se changent et diversifient. Le monde n'est qu'une branloire perenne. Toutes choses y branlent sans cesse: la terre, les rochers du Caucase, les pyramides d'Aegypte, et du branle public e du leur. La constance mesme n'est autre chose qu'un branle plus languissant. Je ne puis asseurer mon object. Il va trouble et chancelant, d'une yvresse naturelle. Je le prens en ce point, comme il est, en l'instant que je m'amuse à luy. Je ne peins pas l'estre. Je peins le passage: non un passage d'aage en autre, ou comme dict le peuple, de sept en sept ans, mais de jour en jour, de minute en minute. Il faut accommoder mon histoire à l'heure. Je pourray tantost changer, non de fortune seulement, mais aussi d'intention. C'est un contrerolle de divers et muables accidens et d'imaginations irresoluës et, quand il y eschet, contraires: soit que je sois autre moy-mesme, soi que je saisisse les subjects par autres circonstances et considerations. Tant y a que je me contredits bien à l'adventure, mais la verité, comme disoit Demades, je ne la contredy point. Si mon ame pouvoit prendre pied, je ne m'essaierois pas, je me resoudrois: elle est tousjours en apprentissage et en espreuve. Je propose une vie basse et sans lustre, c'est tout un. On attache aussi bien toute ia philosophie morale à une vie populaire et privée que à une vie de plus riche estoffe: chaque homme porte la forme entiere de l'humaine condition7.

7

O trecho foi citado no original por ser, tanto esclarecedor com respeito aos objetivos da investigação ensaística, como também representativo de sua disposição formal. Esta é a tradução que propomos: “Os outros formam o homem; eu o descrevo e apresento um particular bem mal formado, e que, se eu tivesse de formar de novo, o faria, em verdade, bem diferente do que é. Mas hoje já está feito. Ora, os traços de minha pintura não deixam de ser fiéis, embora mudem e se diversifiquem. O mundo não é senão balouçar perene. Todas as coisas nele balançam sem cessar: a terra, os rochedos do Cáucaso, as pirâmides do Egito, e do balanço geral e do seu próprio. A constância mesma não é outra coisa senão um balouço mais lento. Eu não posso fixar meu objeto. Ele vai agitado e cambaleante, por uma embriaguez natural. Tomo-o neste ponto, como ele está, no instante em que me entretenho com ele. Não pinto o ser. Pinto a passagem: não a passagem de uma idade para outra, ou, como diz o povo, de sete em sete anos, mas dia a dia, de minuto a minuto. Devo acomodar minha história à hora. Poderei mudar em breve, não somente de fortuna, mas também de intenção. E uma vigilância de diversos e mutáveis eventos e de pensamentos indecisos e, quando calha, contrários: ou porque eu mesmo seja outro, ou porque eu apreenda os objetos por outras circunstâncias e considerações, Tanto que eu talvez me contradiga bastante, mas a verdade, como dizia Demades, eu jamais contradigo. Se minha alma pudesse tomar pé, eu não me ensaiaria, eu me resolveria: ela está sempre em aprendizagem e sendo posta à prova. Eu exponho uma vida inferior e sem brilho, pouco importa. Toda a filosofia moral tanto se refere a uma vida popular e privada como a uma vida feita de matéria mais preciosa: cada homem porta a forma inteira da condição humana” (III, 2, 804-805).

23

A construção deste pensamento é rigorosa. Sua formulação lógica permite viva compreensão do procedimento montaigniano – que já foi descrito, por certos comentadores, como um método experimental, e científico no sentido moderno do termo. Falta à natureza, tal como Montaigne no-la apresenta, uma finalidade pressuposta, uma causalidade fechada, uma ordem natural fixa. Em sua mobilidade e variedade criadoras ela não se deixa apreender em definitivo pela razão humana, também ela inconstante e mutante, como todo o resto. Não é, pois, em função da transcendência inatingível da divindade, ou por uma impotência ontológica da razão humana, que a lei natural não pode ser enunciada, mas, primeiramente, pela imanência de nosso intelecto e de nosso ser ao devir. “Há pouca relação de nossas ações, que estão em mutação perpétua, com as leis fixas e imóveis” (III, 13, 1066). Mesmo porque, sendo as leis, em última instância, produtos também do balouçar natural, com este se movem (II, 12, 579). Isso ilustra muito bem o colapso e a crise dos ideais do primeiro Renascimento, acontecimento do qual a obra montaigniana é uma das primeiras e mais claras demonstrações: todos os valores se tornam relativos e a verdade passa a ter natureza condicional. O ensaísta percebe que, não só se movem a natureza, o homem e as leis, mas ainda, e isto é o decisivo, que a validade atribuída a tais conceitos e os valores daí derivados são de origem humana, logo não sobrenatural (“Seja o que for que nos preguem, e o que for que aprendamos, deveríamos sempre lembrar que é o homem quem dá e o homem que recebe; é uma mão mortal que nos o apresenta, é uma mão mortal que o aceita”: II, 12, 563), e históricos. Contudo, de outro lado, a história é, de certa forma, a própria natureza: o que nos tornamos, somos. Montaigne se empenha, portanto, em descrever este processo ébrio no qual a natureza vem a ser, fazendo com que sua escrita a represente em seu desenvolvimento. Então, os traços cambiantes da pintura de sua própria natureza servirão de espelho para o homem, assim como este se refletirá no quadro montaigniano. Basicamente, porque “As almas dos imperadores e dos sapateiros são fundidas no mesmo molde” (II, 12, 476). Esta frase, que foi utilizada como epígrafe do Journal dos sans-culottes na época da revolução francesa, não prega, porém, a igualdade de todos os homens. Não por acaso, um dos capítulos do primeiro livro se intitula Da desigualdade que há entre nós (I, 42). Neste, Montaigne afirma que “(...) há mais distância de tal a tal homem, do que de tal homem a tal animal: Ah! de um homem a outro, que distância!” (Terêncio, Eunuco). Assim, o ensaísta, como Terêncio, não iguala os homens,

24

mas assinala a unidade da condição humana: “Sou homem, nada do que é humano me é estrangeiro” (frase 22 da biblioteca, referida também no texto dos Ensaios, famosa citação do Heautontimorumenos de Terêncio). Ou seja, a vida de qualquer homem é uma vida a qual todos os acidentes da vida humana concernem: “Gostaria mais de me entender bem em mim que em Cícero. Da experiência que eu tenho de mim, já acho bastante do qual me fazer sábio, se for bom aluno. Quem recorda em sua memória os excessos de sua cólera passada, e até onde essa febre o levou, vê a fealdade desta paixão melhor que em Aristóteles, e lhe concebe um ódio mais justo. Quem se lembra dos males por que passou, daqueles que lhe ameaçaram, das ligeiras ocasiões que lhe removeram de um estado a outro, se prepara por lá para as mutações futuras e ao reconhecimento de sua condição. A vida de César não tem mais exemplos que a nossa para nós; e imperadora, e popular, é sempre uma vida a qual todos os acidentes humanos concernem. Escutemos somente: nós nos dizemos tudo do qual nós temos principalmente necessidade” (III, 13, 1073).

O caminho escolhido por Montaigne para estudar o homem enquanto ser moral visa se ajustar a mobilidade de todas as coisas: não é possível desligar o essencial das circunstâncias, acidentes e causalidades respectivas, e, por isso, o ensaísta renuncia a uma definição última de si mesmo ou do homem; ele deve escutar e experimentar a si e ao mundo sempre de novo, desistindo de uma resolução final em favor do ensaio – meio que porta seu fim em si. A consciência da instabilidade da razão frente à inconstância universal abre ao ensaio a dimensão crítica do juízo: estar consciente da miséria da ratio humana, a qual falta uma luz natural (instintiva ou divina) que esclarecesse suas ideias até a evidência imediata, é afirmar sua dignidade própria. “Pois que aprouve a Deus nos dotar de alguma capacidade de raciocínio, a fim de que, como os animais, nós não fôssemos servilmente sujeitados às leis comuns, mas que nós nos aplicássemos por julgamento e liberdade voluntária, nós bem devemos dar um pouco à simples autoridade da natureza, mas não nos deixar tiranicamente levar por ela' somente a razão deve ter a condução de nossas inclinações. Eu tenho de minha parte, o gosto estranhamente insensível a estas propensões que são produzidas em nós sem a ordenação e a intervenção de nosso julgamento” (II, 8, 387).

Encontramos aqui a resposta àquela interrogação acerca de como seguir a natureza: sequere naturam é seguir a razão. Mas este não era, para o ensaísta, um problema possível de ser resolvido de uma vez por todas. Ou não era a mesma razão, ou um mau uso dela, a culpada de nos termos desviado da natureza? Portanto, antes de suprimir superficialmente a questão, atentemos para o trecho citado: trata-se de passagem significativa, da qual devemos marcar, antes de tudo, a cooperação entre gosto, razão e julgamento – esta

25

inclinação sensível é fundamental no pensamento montaigniano. Em seguida, notemos a liberdade da vontade. O trabalho do julgamento é o ensaio: experimento e tentativa em um discurso que não se fecha; resultado da exigência racional em uma vontade livre, todavia capaz de advertir a razão mesma a respeito da incerteza de suas próprias leis: “Tu não enxergas senão a ordem e o governo deste pequeno porão onde te alojas, se é que as enxergas: (...): é uma lei municipal que alegas, tu não sabes qual é a universal” (II, 12, 523). “No mais, quantas coisas há em nosso conhecimento, que combatem estas belas regras por nós talhadas e prescritas à natureza?” (II, 12, 526). Preservemos, aqui, o paradoxo produtivo entre natureza e razão, ou entre a afirmação e a negação das leis naturais: nos Ensaios, julgamento e dúvida coexistem. Esta última, pertencendo à atividade formal daquele (pois, é ela que, possibilitando a reflexão no pôr as teses e contrapor as antíteses, permite o movimento do julgar), não deve ser abandonada: “Depois de ter estabelecido a dúvida, querer estabelecer a certeza das opiniões humanas não seria estabelecer a dúvida e não a certeza, (...)?” (III, 9, 964). Assim, a dúvida ensaística, momento necessário do exercício da razão montaigniana, não é comparável, nem à dúvida preliminar aristotélica, nem à dúvida metódica cartesiana. É pelo seu concurso, principalmente, que a constituição da subjetividade cética de Montaigne será um evento de singular importância, divergindo da subjetividade racional do espírito científico moderno (que se devotará à dominação técnica da natureza) já em sua proto-história. De uma parte, o destacamento reflexivo da razão frente às normas morais operado pela filosofia dos ensaios, é decisivo para a formação das noções modernas de sujeito e consciência; de outra, mantém sua diferença, experimentando a verdade subjetiva mesma como caminho de uma relação mais completa e autêntica do indivíduo com as coisas. Tendo se colocado de saída no elemento da impermanência universal, Montaigne considera que, nada permanecendo o mesmo, não é possível a visão compreensiva do todo (denominada katalepsis pelos estóicos); o homem somente percebe partes e dados relativos, ou as coisas como inseparáveis da sua reflexão em um olhar – aparências. Dizer, aqui, que nós não saímos do domínio subjetivo não é pressupor um universo objetivo oculto, uma natureza fixa, substancial, ou uma essência das coisas portadora, ela sim, de verdade e subsistindo independentemente de nós (e que, uma vez atingida, dispensasse e dispersasse a subjetividade do pesquisador ante si mesma), mas expor uma visão da interação homem-

26

mundo que entende o aparecimento do sujeito e do objeto como tais somente no interior e no desenrolar deste relacionamento mesmo. O ‘eu’, como toda natureza, sofre influência do tempo em seu ser mesmo; e não é possível, dada nossa condição, nem mesmo distinguir nitidamente nossa própria mudança e movimentos do fluxo das coisas. Não poderia haver isolamento do sujeito: pois, por sua natureza relacional, ele está aberto ao fluir da realidade desde dentro. Diante deste quadro, o mau uso da razão é aquele que exclui a dúvida. “(...), mas me tem ensinado a razão que, condenar assim resolutamente uma coisa como falsa e impossível, é dar-se a vantagem de ter dentro da cabeça os termos e limites da vontade de Deus e da potência de nossa mãe natureza; e que não há no mundo mais notável loucura do que reduzi-los à medida de nossa capacidade e suficiência. Se chamamos monstros ou milagres isto onde nossa razão não pode ir, quantos tais se apresentam continuamente à nossa vista? Consideremos através de que névoas e de que maneira tateante somos levados ao conhecimento da maior parte das coisas que temos às mãos: certamente nós descobriremos que é mais o costume que a ciência, o que nos priva de estranhamento. Cansados, saciados de ver [o espetáculo do céu], já ninguém se digna a erguer os olhos para os templos de luz celestes (Lucrécio), e estas coisas lá, se elas nos fossem apresentadas como novas, nós as acharíamos tanto ou mais incríveis que nenhumas outras, (...)” (I, 27, 179).

A razão que se deixa cegar e enrijecer pelo costume está fora de si: é preciso diferenciar a lei humana da lei natural (ver, por exemplo: I, 27, 180; I, 36, 225) tendo sempre em vista que se afastar da natureza é se afastar da razão por empregá-la mal. “Eu aceito de bom coração, e com reconhecimento, o que a natureza fez por mim, e me congratulo com ela e louvo-a. Erra-se com esta grande e toda poderosa doadora em recusar seu dom, em anulá-lo e desfigurá-lo. Tudo bom, ela fez tudo bom” (III, 13, 1113).

Devemos, pois, engajar-nos nesta busca do natural; sua pré-condição é a dúvida salutar que nos aconselha Montaigne. O objetivo não é a simples afirmação dogmática da inexistência das leis naturais, mas problematizar nossa atitude frente a estas: tal é a função básica desta espécie de naturalismo cético distintivo da filosofia ensaística. E aqui está uma de suas melhores definições: “Se entendêssemos bem a diferença que há entre o impossível e o inusitado, e entre o que é contra a ordem do curso da natureza, e contra a opinião comum dos homens, em não crendo temerariamente, nem também descrendo facilmente, observaríamos a regra: Nada em excesso, ordenada por Quílon” (I, 27, 180).

27

Se Montaigne recusa qualquer acesso racional garantido ao conhecimento do ser (“Nós não temos nenhuma comunicação com o ser, (...)”: II, 12, 601), isto não significa impossibilitar qualquer concordância entre ser e pensamento, porém dar importância primeira à unidade entre vida e pensamento (que se deve realizar a nível pessoal). O ensaísta está muito mais empenhado em viver as leis naturais do que em conhecê-las; e o ‘não’ gnoseológico quanto a elas é parte do ‘sim’ moral. “Eh! Pobre homem, já tens bastantes incômodos necessários, sem os aumentar por tua invenção: e és bastante miserável de condição, sem o ser por arte! Tens fealdades reais e essenciais suficientes, sem forjar imaginárias. Achas que estás demasiado a teu gosto, se o teu gosto não vier a te desagradar? Achas que cumpriste todos os deveres necessários a que a natureza te convida, e que ela em ti fique falha e ociosa, se tu não te obrigas a novos deveres? Tu não temes ofender suas leis universais e indubitáveis, e te vanglorias das tuas, particulares e fantásticas; e quanto mais particulares, incertas e controversas, tanto mais nisso te esforças. Preocupam-te e prendem-te as regras positivas de tua invenção, e as de tua paróquia: as de Deus e do mundo não te tocam. Percorre um pouco os exemplos destas considerações: neles está toda tua vida” (III, 5, 880).

*

*

*

28

Capítulo II

Contradição e ceticismo nos Ensaios

Desagradável moléstia, de se crer tão forte a ponto de se persuadir que não se possa crer ao contrário (I, 46, 320). Por que não nos lembramos de quantas contradições sentimos em nosso próprio julgamento? De quantas coisas nos serviam ontem de artigos de fé, que hoje nos parecem fábulas? (I, 27, 182). Mas nós somos, não sei como, duplos em nós mesmos, o que faz com que aquilo que cremos, não o cremos, e nem podemos nos desfazer daquilo que condenamos (II, 26, 619). As contradições, pois, dos julgamentos, não me ofendem, nem me exaltam; elas me despertam somente e me exercitam (III, 8, 924). Há grande possibilidade de falar a favor e contra (Homero, Ilíada, XX, 249; Ensaios I, 47, 281; frase 30 da librarie).

29

A natureza constitui o principio vital de movimento e transformação cujas leis regem a harmonia sócio-cósmica que sustenta a realidade. Para o homem renascentista esta noção arcaica possuía força e presença para nós perdida. Podemos, ainda, entender o que seria a natureza para um paganus (aldeão)? É nos dado compreender a natura mater renascentista em toda a extensão de sua significação original? Na verdade, nossos padrões científicos, éticos ou estéticos não servem sequer para imaginá-la com precisão, quanto mais para descrevê-la com rigor definitivo. Em torno desta encontrávamos, lá, um saber voltado para o caráter anímico do mundo e da existência, ligado à Terra e seus ritmos por mágica proximidade; uma religião divinatória, investigadora da alma do mundo, e uma ética dos fluxos de consciência e das relações afetivas universais. E tudo isso integrado em um conhecimento que partia frequentemente de experiências artísticas, e onde se misturavam teoria da arte e teoria da ciência: de um lado, o pintor para Leonardo da Vinci, era um investigador da natureza; de outro, Montaigne propunha-se a pintar, através de si mesmo, a natureza humana. A arte constituía, aí, agir, tanto de artífice, como de artista – significações inextrincavelmente ligadas no interior das questões vitais. Assim, o cuidado no uso de certas palavras – em razão, não só da distância histórica, como também das características singularíssimas da filosofia que ora estudamos – afigura-se determinante. Vitalismo, por exemplo, é uma designação que, se empregada irrefletidamente com relação ao pensamento renascentista, pode contribuir apenas para obscurecer a verdadeira envergadura do fenômeno “vida”, expresso pelo conjunto da cultura deste período, desde que a própria distinção entre o vivo e o não-vivo não corresponde aos nossos parâmetros: já a agora renascente mitologia antiga afirmava a vida e a consciência das coisas, a alma do mundo resistirá até o século XVII (e Kepler, como Montaigne, acreditava na vida dos astros), a ciência renascentista concebia geração mesmo entre as pedras, etc. Não é demais, portanto, renovar a advertência contra as generalizações conceituais fáceis: elas não nos podem fazer perder, nem a virtual completude do quadro, nem o valioso detalhe. O Renascimento é o descortinar de novos mundos, tanto exteriores, como interiores: um fecundo, e sem precedentes, enriquecimento, tanto da imagem do universo, como das

30

possibilidades humanas. “Tua razão não tem em nenhuma outra coisa mais verossimilhança e fundamento do que quando te persuade da pluralidade dos mundos” (II, 12, 524). A filosofia de Montaigne busca se orientar em meio a esses vastos e ilimitados espaços naturais, cujas articulações aparecem, então, como imediatamente inconcebíveis. Frente a fantástica liberdade e mobilidade que as noções de natureza, homem e sociedade ora adquirem, a necessidade de ordenação e regulamento é premente; contudo, a absurda e perturbadora complexidade da realidade, agora percebida de maneira extremamente viva, não leva os pensadores renascentistas a uma ciência da natureza (como a entendemos hoje), mas a uma espécie de comunhão mágica e artística com ela: a natureza é, aí, muito mais principio de saúde, prazer e sabedoria do que algo a ser conhecido. Entretanto, mais e mais os acontecimentos desta época dificultarão uma visão harmônica da natureza ou da sociedade: as guerras contínuas (pelas divisões religiosas e pela agressividade inerente a estados de limites incertos), a peste, o saque de Roma (grande capital cultural renascentista) em 1527, o nascimento de novas estruturas sociais e econômicas, etc., favorecem, ao contrário, as imagens de crise e as visões apocalípticas: “(...) quem não clama que esta máquina se transtorna e que o dia do julgamento nos pega pela gola, (...)?” (I, 26, 157). Ora, parece ser justamente a tensão entre este panorama e aquele ideal antigo de equilíbrio e unidade que cria a brilhante e sensual harmonia expressa pelo pensamento e pela arte do Renascimento. O saber medieval, suas instituições, hierarquias e certezas, representam determinações e direcionamentos que, se contrastados com o infinito emergente dos mundos, são sentidos como sufocantes. Com certeza, trata-se de uma época que experimenta o pensamento puramente abstrato como limitante: o que é tanto mais significativo se considerarmos vigoroso impulso que a retórica, a teologia e a lógica conheceram no período imediatamente anterior. Todo o aparato formal das articulações e entidades lógicas, legisladoras do discurso e balizadoras da experiência em geral, fica mais ou menos desacreditado por não dar mais conta dos desdobramentos da realidade em seu violento alargamento dos horizontes. Mas, se a identificação teológica do belo, bom e verdadeiro já aparece vazia, deslocada e questionável, as relações que os ligam persistem nas novas tentativas de estabelecer um acordo entre o conhecimento crescente dos fatos da

31

natureza e a noção diretora do divino, entre o caráter chocante e conflituoso do real e a poderosa vontade de reconciliação. As tensões desta época de grandes mudanças são o motor profundo de suas obras. Do confronto, e da exigência de adequação e conciliação, de imanência e transcendência, cristianismo e paganismo, revelação e razão, teologia e filosofia, nascem seu saber e sua arte. Claro que o conjunto dessas oposições abstratas não poderia descrever sem desvios o clima intelectual real que os pensadores renascentistas experimentaram: as formas da teoria, desde sua linguagem até seus objetivos e questões, não correspondem as nossas. É certo, contudo, que a cultura do Renascimento lidou com cisões, quebras, passagens, ambiguidades: encontramo-las no fundo das obras, e nos atos, como nas falas, dos homens renascentistas. A justificação e/ou superação das contradições constitui o grande vetor temático. “Nossa vida é composta, como a harmonia do mundo, de coisas contrárias, como de tons diversos, doces e ásperos, agudos e baixos, suaves e fortes. O músico que não amasse senão uns, que poderia ele dizer? E preciso que ele saiba deles se servir em comum e lhes misturar. E nós também os bens e os males, que são consubstanciais à nossa vida. Nosso ser não é possível sem esta mistura, e um lado não é menos necessário que o outro. Tentar reagir contra a necessidade natural, é imitar a loucura de Ctesiphon, que empreendeu lutar a pontapés com sua mula” (III, 13, 1089).

Coincidentia oppositorum, coincidência dos opostos, luta e reconciliação dos contrários, concordia discors, discordia concors: para um tempo que tem na imagem o principal meio do conhecimento, uma das mais presentes. A lira e o arco de Apolo; a serpente que, formando um circulo, morde a própria cauda; o bastão de Hermes, com a figura das duas serpentes que se entrecruzam; o hermafrodito da última carta dos arcanos maiores do Tarot (o Mundo). A própria Idade Média é repleta destes símbolos. Mas lá eles eram apenas símbolos, aqui, modelos do conhecimento. São precisamente as obras de “entrelaçamento” de Leonardo que lhe valem as famosas acusações de feitiçaria e provocam os boatos acerca de seu pacto com o demônio: nelas seria manifesta a intenção de reconstituir um mundo em dissolução. Os traços enigmáticos das novas ideias sobre o homem e o cosmos não se devem somente a busca de diferentes possibilidades e formas da compreensão e expressão, mas também a necessidade de defesa em tempos beligerantes e fanáticos: muito já se falou das concepções filosóficas armadas do século XVI.

32

“Pelo juízo alternativo” (judicio alternante – frase 54), diz uma das frases gravadas nos pilares da librarie de Montaigne. Convém colocar, aqui, em destaque, esta que é uma das poucas alusões programáticas do ensaísta com relação à disposição lógica de seu discurso: ela fala não só a respeito da opção alternativa do ensaio, com respeito a intransigência formal

escolástica, mas se refere também a alternância como

encaminhamento próprio ao raciocínio do ceticismo ensaístico e à economia dos Ensaios. A indicação é valiosa: Montaigne, geralmente, por exigências internas ao seu pensamento, como da situação em que viveu, evitará pôr em evidência as articulações lógicas de sua filosofia. “Eu estimo que no templo de Palas, como nós vemos em todas outras religiões, existiam mistérios aparentes para serem mostrados ao povo, e outros mistérios mais secretos e mais altos, para serem mostrados somente aqueles que aí eram iniciados” (III, 10, 1006). “As damas cobrem seu seio com um véu, os padres cobrem várias coisas sagradas; os pintores sombreiam suas obras, para lhes dar mais brilho (lustre); e dizem que o golpe do Sol e do vento é mais forte por reflexão que direto. O egípcio respondeu sabiamente aquele que lhe perguntou: que trazes, aí, escondido sob seu manto? – ‘Está escondido sob meu manto afim de que tu não saibas o que é’. Mas certas outras coisas há que se esconde para se mostrar” (III, 5, 880).

Central nos Ensaios (e parte do que Montaigne, ocultando, exibe) é a preocupação, tipicamente renascentista, com a forma: seu pensamento, ao se expor, cria um novo gênero literário. No entanto, antes de ser uma criação literária, o ensaio montaigniano era um método para a filosofia moral; sua principal característica é que estilo e ideia aí formam um todo. A coexistência dos contrários encontra-se no fundo da concepção filosófica montaigniana, tanto em seu conteúdo e matéria, como em sua forma e ordenação. O pensamento na Renascença busca quase sempre, além da expressão abstrata, uma “materialização” simbólica e gráfica: este é um de seus traços essenciais. Por exemplo, se os Ensaios são um quadro, o primeiro livro é, na própria disposição de seus capítulos, uma composição maneirista cuja simetria coloca em seu centro o extremo e a origem. Além disso, o ensaio é uma experiência de sincronia com o movimento natural, que é uma sintonia com a natureza própria do ensaísta; o ensaio nasce do jogo reflexivo dos contrários (buscando equilíbrio no se mover oportunamente com o tempo), “(...) como na natureza o contrário se vivifica pelo seu contrário” (I, 20, 82). O emblema da balança, que figurou na capa de edição dos Ensaios imediatamente posterior a morte de seu autor, é uma

33

representação imagética excelente do procedimento ensaístico. Montaigne fez cunhar uma medalha no qual se encontrava o desenho da balança e o dístico “Que sei eu?”. Estas divisas expressam alguma coisa de fundamental na filosofia dos ensaios. O mote é uma interrogação que faz convergir uma afirmação impossível, “eu sei”, e uma negação impossível, “eu não sei”. Notemos a irônica contradição: “Diz-se comumente que a mais justa partilha que a natureza nos tenha feito de suas graças, foi a do bom senso: pois não há ninguém que não esteja contente com o que lhe foi distribuído” (II, 17, 657). “Em suma, para voltar a mim, este único por onde eu me estimo qualquer coisa, é isto mesmo em que jamais homem se estimou deficiente: meu louvor é vulgar, comum e popular, pois quem jamais pensou ter falta de bom senso? Esta seria uma proposição que implicaria em si a contradição. E uma doença que não está jamais onde ela se vê; ela é bem tenaz e forte, mas a qual, no entanto, o primeiro raio da vista do paciente rompe e dissipa como o olhar do Sol a um nevoeiro opaco; acusar-se seria escusar-se em tal matéria; e condenar-se seria absolver-se. (...). Nós reconhecemos facilmente nos outros a vantagem da coragem, da força corporal, da experiência, da disposição, da beleza: mas a vantagem do julgamento, nós não a cedemos a ninguém; e as razões de outrem que partem do simples discernimento natural, nos parece que não teríamos senão que olhar daquele lado lá, que nós as teríamos achado” (II, 12, 656).

Outros pensam ser o sens8, algo de imediato e inevitavelmente dado; o ensaísta, ao contrário, trabalha com as oposições internas e externas – que sem cessar se recobrem, se desfazem, se confundem – para manter o equilíbrio do juízo ilustrado pela balança. Esta já havia sido empunhada por Pirro de Élis, lendário fundador do ceticismo, e significava a 8

Em Montaigne, o termo sens possui diversas traduções, mas pode, em geral, ser identificado com a razão. Outros já notaram a semelhança destas passagens com o início do Discurso do Método de Descartes. Contudo, a idéia de um bom senso, de uma razão natural, comum a todos os homens, é encarada com reservas por Montaigne. É como se o ensaísta enfatizasse o que Descartes diz no 1º parágrafo do Discurso: “(...) não é suficiente ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo bem”. Para o pensador renascentista é como se o procedimento correto fosse algo de constitutivo ao caráter ou a consciência e não algo de exterior que pudesse ser ou não empregado desta ou daquela forma: o método é o estilo ou a maneira mesma de ser. Nos Ensaios o uso mesmo do termo ‘comum’ (e seus derivados: comunicação, comunidade, comunicar, etc.) não é unívoco: ele pode ser pejorativo ou laudatório segundo a situação enfocada. Este é um efeito daquela contradição interna ao intento de um uso ótimo do bom senso comum anunciada no trecho citado acima: o simples discernimento natural, apesar de sua obviedade, não tem acesso garantido à verdade. Isso porque o homem, tendo se afastado da natureza, pode chamar de bom senso o mero seguir cegamente o costume e, assim, vai frequentemente contra a própria razão: esta dificuldade (que Descartes vê muito bem) é radicalizada por Montaigne. Segundo Hegel (1970), encontramos aqui a diferença básica entre o ceticismo originário e a orientação posterior (que encontra seu grande sistematizador em Sexto Empírico): o primeiro se define por uma recusa radical do dogmatismo do senso comum; o segundo, a ele retorna, atacando a própria filosofia como guia para a vida. É precisamente porque Montaigne acha lugar em sua filosofia para uma e outra destas opiniões que, tanto defende Pirro da tradição anedótica a seu respeito (falseadora de sua vida no intento de atacar sua doutrina), afirmando que este não quis renunciar ao senso comum das “ações comuns” (II, 12, 505), como também louva Pirro pela indiferença com relação ao usage commun (II, 29, 705). E isso significa “(...) julgar pela via da razão, não pela voz comum” (I, 31, 202): um dos problemas filosóficos centrais dos Ensaios consiste em saber como devemos proceder para realizar tal distinção.

34

suspensão do julgamento. Porém, diferente deste, para Montaigne esta não é apenas a imagem de uma abstenção, mas do funcionamento correto do julgamento: “Nenhuma proposição me espanta, nenhuma crença me fere por mais contrária que seja à minha. Não há ideia, por mais extravagante e frívola, que não me pareça condizente com a produção do espírito humano. Nós outros, que privamos nosso julgamento do direito de sentenciar, consideramos complacentemente as opiniões diversas; e, se nós não lhes cedemos o julgamento, cedemos facilmente a orelha. Quando um prato está vazio de todo na balança, eu deixo vacilar o outro sob os sonhos de uma velha. (...). Todas essas quimeras, que estão em crédito ao nosso redor, merecem ao menos que se escute. Para mim, elas superam somente a vacuidade [imagem do prato vazio], mas a superam” (III, 8, 923).

Notemos, de passagem, como a relação consigo mesmo do ensaísta passa pela relação com o outro (e vice-versa). A alternância do discurso montaigniano não exprime somente o conflito de posições logicamente antagônicas, mas a experiência sucessiva de exigências que se requerem mutuamente; elas se contradizem para se completar e se determinar reciprocamente. “Além do que talvez eu tenha alguma obrigação particular a não dizer senão pela metade, a dizer confusamente, a dizer discordantemente” (III, 9, 996). O que não devemos fazer é hipostasiar a importância da contradição nos Ensaios até considerá-la postulado de um meta-discurso acerca do funcionamento da realidade, tornando-a um “ente” metafísico – isto é exatamente o que Montaigne procurou evitar. A retórica ensaísta (que se apropria dos instrumentos e procedimentos tradicionais para invertê-los) é pictórica porque assume representar a imagem do objeto (e não o objeto em si), desde que este só existe enquanto aparecer, ou em movimento, furtando-se a qualquer representação absoluta. “Eu não pinto o ser. Eu pinto a passagem”; devemos reler aquela passagem do inicio do segundo ensaio do terceiro livro citada atrás longamente no original, na qual este processo é descrito. Não se define aí uma opção: marca-se um reconhecimento, interno ao ensaio, da mobilidade geral da diversidade natural (que também no contraste e na oposição se organiza e compõe), frente ao qual qualquer discurso apofântico torna-se problemático. Montaigne contradiz a si mesmo, mas não a verdade, porque esta é a própria possibilidade de que algo venha a ser verdadeiro no tempo. Isto quer dizer que, ao menos segundo a definição do principio de não-contradição enunciado na Metafísica (IV, 3) de Aristóteles (“É impossível que o mesmo atributo pertença e não pertença ao mesmo sujeito, no mesmo tempo e na mesma relação”), as contradições ensaísticas não são verdadeiras contradições: o tempo não sendo o mesmo, a relação ou o ponto de vista não podem ser os

35

mesmos (“É preciso acomodar minha história à hora...”), pelo simples fato de que nada é o mesmo. Assim, pode haver contrastes aparentes no dizer que são, justamente, frutos da fidelidade ao aparecer (uma vez que as aparências se contradizem: II, 12, 601). Abstrair do tempo, do acontecer que é a natureza mesma em seu vir-a-ser, é absolutizar suas formas e conceitos, e, na sequência, erigir uma Humanitas normativa e modelar a partir da qual se julga o homem e o universo em bloco. Não nos escapou, decerto, naquele mesmo longo trecho citado no original, o tom divergente entre o início “mobilista”, e a frase que afirma a unidade da condição humana em cada homem. Outros leitores também notaram: ninguém se contradiz de maneira tão flagrante sem segundas intenções. Renovemos o paradoxo: por um lado, “Somos todos de pedaços, e de uma contextura tão informe e diversa, que cada peça, cada momento, faz seu jogo. E se acha tanta diferença de nós a nós mesmos, quanto de nós a outro” (II, 1, 337); por outro, “(...): não há ninguém, se se escuta, que não descubra em si uma forma sua, uma forma mestra, que luta contra a educação, e contra a tempestade das paixões que lhe são contrárias” (III, 2, 811). Os homens renascentistas possuíam certamente os sentidos mais ativos que os nossos (com exceção, é claro, da visão). Parte de um esforço de encarnação da realidade no discurso, além de uma forma de materializar e “naturalizar” a linguagem, as metáforas sensuais são bastante importantes na filosofia montaigniana, mormente, a noção de escuta (pois se trata de um sentido que se aplica, tanto ao exterior, como ao interior). Aquela forma mestra de que fala Montaigne não se identifica à consciência: a primeira é a natureza singular de cada homem; devemos escutá-la ou deixá-la falar (mas não como se ouvíssemos aí algo de necessariamente “bom”). Nossa consciência (que nasce do costume: I, 23, 115) adquire na escuta de sua natureza (ou na experiência sensível de suas inclinações) uma função reflexiva que não se limita à introspecção, pois é através dela, em seu movimento constitutivo, que participamos do branloire natural. Por isso, a forma mestra não pode ser completa, direta ou definitivamente expressa: é no decorrer do tempo e em cada situação que ela se exprimirá; tentar compreendê-la de uma vez por todas seria deformá-la e perdê-la. “Nenhuma qualidade nos cinge pura e universalmente” (I, 38, 234). A consciência de si em Montaigne se dá em obra, sua escrita é seu instrumento: ela parte da certeza de que é preciso considerar o moi em sua irredutibilidade a qualquer instrumental conceitual fixo, acabado ou universal.

36

A reflexão identidade-alteridade está intimamente ligada, em sua operação, a natural alternância e coexistência dos contrários no tempo: a este movimento se referem os destacamentos, distanciamentos e cisões que sofre o “eu” no ato do julgamento, função formal unificadora cuja existência só se torna possível no presente vivo, natureza. La force de tout conseil gist au temps (III, 2, 814). A identidade consigo mesmo, pela escuta da forma mestra pessoal, é um estar em obra que acontece no jogo das resistências e conflitos inerentes a realidade. Apreender a forma mestra é aprender a harmonia: o relativo compreende, no tempo, sua disposição relacional. “Não há nada de inútil na natureza; nem a inutilidade mesma; nada se ingeriu neste universo, que não tenha aí lugar oportuno” (III, 1, 790). A natureza, no devir, acolhe em si todas as contradições; nosso ser mesmo, afirma a sequência desta última passagem, é palco de tal reunião. Parece, portanto, que o cético acredita em uma necessidade natural; no entanto, tanto a causalidade, quanto a finalidade desta providência nos escapam, pois suas relações constituintes são contingentes: “Entre nossas disputas, aquela do destino se mistura; e, para ligar as coisas futuras e nossa própria vontade a determinada e inevitável necessidade, se está ainda sobre este argumento do tempo passado: Pois que Deus previu que todas as coisas deveriam assim acontecer, como ele faz sem dúvida, é preciso que elas aconteçam assim. Ao que nossos mestres respondem que o ver que qualquer coisa acontece, como nós fazemos e Deus também (pois, tudo lhe estando presente, ele vê mais do que prevê), não significa obrigar o acontecer: verdadeiramente, nós vemos porque as coisas acontecem, e as coisas não acontecem porque nós vemos. O acontecimento faz o conhecimento, não o conhecimento o acontecimento. isto que nós vemos acontecer, acontece; mas poderia de outro modo acontecer; (...)” (II, 29, 708).

O acontecimento, l'advenement, é soberano, e mesmo Deus parece, aqui, sofrer a influência de sua necessária contingência. Logo, Montaigne se diz cristão, mas não costuma se arrepender: “Em todos os trabalhos, quando eles são passados, seja como for, eu tenho pouco pesar. Pois esta idéia me livra de pena, que eles deviam assim se passar: lá vão no grande curso do universo e no encadeamento das causas estóicas; vosso entendimento não pode, por desejo e imaginação, remover um ponto, sem que se subverta toda ordem das coisas, no passado e no futuro” (III, 2, 815).

Esta passagem perfaz um contraste, a primeira vista, chocante com a tese da contingência apresentada na citação imediatamente anterior. Mas o importante, aí, é que essa necessidade imaginária está a serviço da afirmação da imprevisibilidade da fortuna:

37

“(...) vivemos por acaso” (II, 1, 337). Para compreender tal coexistência de necessidade e acaso, fundamento da filosofia ensaística, é preciso realizar uma primeira abordagem da noção central de fortuna – palavra a qual, principalmente, desagradou a Igreja nos Ensaios. A Fortuna é a grande deusa renascentista; e era já nas suas mãos que o deus dantesco deixava todos os detalhes da condução do mundo. Figura amiúde presente (e, em geral, com grande destaque) nas festividades italianas, ela unia em sua significação o aspecto de sorte enquanto herança devida com o de puro acaso. Para entender a concepção montaigniana de fortuna (“Não tenho nenhum outro sargento de batalha a dispor minhas partes senão a fortuna”: II, 10, 409) – que rompe simultaneamente com a providência (ou a inteligibilidade do governo divino) e com o fatalismo (ou a escravidão à necessidade inflexível do destino) – devemos contrastá-la com a noção vizinha da virtude. Com efeito, elas frequentemente aparecerão lado a lado nas cenas das representações populares e nos palcos mais restritos da teorização humanista; mesclando-se ou opondo-se, as imagens da virtude e da fortuna sempre se encontrarão de alguma forma em relação, ou referidas uma à outra, em figurações acerca da liberdade humana frente à necessidade cósmica (etimologicamente, virtus é a expressão da força natural do homem). Em Montaigne, o sentido do termo ‘virtude’ e sua compreensão sofrem uma “evolução” mais ou menos clara. O problema enfrentado em seu ensaio é outra faceta daquele da primeira parte (natureza ou razão?) e se liga às questões da lei natural e da “forma mestra”. Se, inicialmente, a virtude é definida como o que necessita, por ser uma espécie de vigor, de contraste e oposição para se exercer e crescer, posteriormente, o ensaísta louvará uma virtude doce, fácil e voluptuosa. O ponto de torção é, significativamente, marcado por uma interrogação9: “Será verdade que, para sermos bons de fato, nos é preciso ser por oculta, natural e universal propriedade, sem lei, sem razão, sem exemplo?” (II, 11, 428). Tal equivale a perguntar: a fortuna detém domínio absoluto sobre a vida do homem? Ou regem a razão e a vontade humanas, ao menos individualmente, seu destino? O ensaio destas indagações é recorrente na filosofia montaigniana e na renascentista como um todo; a estas retornaremos. Aqui, 9

A interrogação (já recomendada por Sexto Empírico como alternativa anti-dogmática no enunciado das fórmulas céticas: Hypotyposes I, 189) é um elemento fundamental da atitude crítica frente à linguagem, básica na filosofia montaigniana. E note-se que o problema de uma definição da virtude aparece frequentemente em meio a desenvolvimentos de crítica linguística (por exemplo: I, 37, 230; III, 13, 1069). A virtude, segundo Montaigne, constitui o fim da filosofia (I, 26, 161); mas sua definição envolve uma dupla dificuldade – linguística e moral; pois este é o tema onde geralmente se mostra mais agudamente a discordância entre o dizer e o fazer.

38

cabe negar uma e outra, para afirmá-las em conjunto: a fortuna, a sorte de cada indivíduo, é decorrência de sua vertu, expressão de sua natureza própria; esta, porém, por sua vez, depende da fortuna. A virtude de Sócrates ou Catão resultou de um logo exercício dos preceitos filosóficos se encontrando com uma bela e rica natureza (II, 11, 426). Se a sorte é filha da alma, a alma é filha da sorte. “A inconstância do balouçar diverso da fortuna faz com que ela nos deva apresentar toda espécie de aspecto” (I, 38, 220). Esta proposição, como a anterior, é uma das maneiras de enunciar o cruzamento do predeterminado com o eventual na ação e no pensamento humanos. Repare-se que o autor dos Ensaios usa a mesma palavra para indicar o movimento da natureza e o da fortuna. Isto é altamente significativo, e ainda mais por ser essa a frase inicial de um capítulo que se intitula: La fortune se rencontre souvent au train de la raison. Lidar com a fortuna, segundo o ensaísta, é perceber que ela pode sobrepujar “(...) em regramento as regras da prudência humana” (I, 34, 222) e, se soubermos escutar, corrigir, por vezes, nossos projetos de maneira imprevista (I, 34, 221). Saber obrar de acordo com a fortuna é agir conforme a natureza (guia sábia e justa: III, 13, 1113) e, portanto, viver à propósito. Providência, acaso e fatalidade são, assim, reunidos e recusados pela noção ensaística de fortuna, pois, nesta, o necessário e o casual se excluem, identificando-se como simples reduções discursivas frente ao acontecer, meras abstrações exteriores ou projeções em relação a um fim premeditado. “Assim nos acostumamos a dizer com razão que os acontecimentos e conseqüências dependem, notadamente na guerra, na maior parte, da fortuna, a qual não quer se submeter e sujeitar à nossa razão e sabedoria, como dizem estes versos: E o mal concebido é o primeiro, e a sabedoria engana Frequentemente a fortuna não favorece as causas que o merecem Mas vai sem discriminação errando em meio a todas É que há, uma potência superior que nos domina, nos rege E conduz as coisas mortais segundo suas próprias leis (Manilius, IV, 95) Mas, vendo bem, parece que nossos desígnios e decisões também dela dependem, e que a fortuna empenha em sua perturbação e incerteza também nossa razão. Nós raciocinamos ao acaso e inconsideradamente, diz Timeu em Platão, porque, como nós, nossos pensamentos têm grande participação no acaso” (I, 47, 286).

Nessa aparente digressão acerca da ideia de fortuna não se resolveu completamente a questão do entrelaçamento de necessidade e acaso inicialmente colocada, mas já a esclarecemos em alguma medida, aproveitando para trazer à cena outros problemas e elementos paralelos. Por exemplo, a importância do recurso ao mito no estudo do

39

pensamento renascentista e, especialmente neste caso, onde o detalhe decisivo, que explica a aparência de contradição entre o contingente e o inevitável, é o uso montaigniano dos termos fantasie e imagination (que ocorre também nos trechos já citados). Entenderemos porque mais tarde; para tanto, devemos, antes, examinar outra contraposição fundamental dos Ensaios: fé e razão. Delimitação de extrema importância quando se deseja apreciar o projeto filosófico renascentista (e helenístico) da constituição de uma moral natural (ou seja, através da identificação de leis naturais, qualificar o “soberano bem” para o homem). Tal equivale a tentar de uma vez por todas compreender totalmente a natureza humana em seu relacionamento com o universo. Ao exame desta possibilidade é consagrado o mais longo dos Ensaios: a Apologia de Raymond Sebond. Seu inicio é demonstrativo de suas intenções e conteúdo: “E, em verdade, a ciência coisa importante e útil, aqueles que a desprezam, dão prova de estupidez; mas eu não estimo, entretanto, seu valor até esta medida extrema que alguns lhe atribuem, como o filósofo Herillus, que situava nela o soberano bem, e sustentava que em seu poder estava tornar-nos sábias e contentes: isto não creio, nem o que outros têm dito, que a ciência é mãe de toda virtude, e que todo vicio é produzido pela ignorância. Se isso é verdade, é sujeito a uma longa interpretação” (II, 12, 438).

A ciência não é suficiente para nos tornar sábios: esta é uma das teses centrais da filosofia montaigniana. Recusar aqui o ideal comumente identificado com a perspectiva socrático-platônica é, para Montaigne, atacar tanto a Reforma, como a moral natural teológico-racionalista proposta por Sebond (o que faz deste ensaio uma apologia no mínimo curiosa): ele vê, em ambos os lados, o perigo de uma pretensão exagerada da razão humana. A Theologia naturalis sive liber creaturarum de Raymond Sebond, publicada em 1484 em Lyon, teve várias edições até o meio do século XVII, influenciando, por exemplo, Nicolau de Cusa, Charles de Bovelle e Grotius. Ela aparece em oposição à doutrina da ‘dupla verdade’ do averroísmo latino, formando ao lado da corrente iniciada por Raymond Lulle. Este tentara (a partir, principalmente, das ideias de Santo Anselmo) unir a religião e a ciência, a filosofia e a teologia, em um saber sem discordâncias. E o faz, porque o irracionalismo (no que toca a fé) averroísta, separando ciência e religião, abria espaço para a descrença e o livre movimento da razão; um perigo para a igreja, cuja própria doutrina oficial tomista limitava a competência da razão, ou da luz natural, aos preambula fidei,

40

aparecendo incapaz de oferecer combate ou constranger à obediência dogmática os frutos teóricos do averroísmo (como a Escola de Pádua). Na obra de Sebond, em um dos primeiros atos de nascimento da autonomia moderna do pensamento, o racionalismo surge do interior da própria teologia: a natureza é o livro escrito por Deus, inteligível para o homem (enquanto objeto natural, imanente, de seu conhecimento), ápice da hierarquia dos seres (abaixo somente das “ideias” e de Deus) e fim de toda criação (pois, razão de ser de todos os seres abaixo). Trata-se de uma posição, grosso modo, semelhante às expressões correntes da dignitas hominis nas obras dos teólogos humanistas italianos. No começo de sua Apologia, Montaigne relata como seu pai lhe encarregara da tradução do livro de Sebond (sem deixar de ironizar o mau latim em que a obra fora vertida), presente de um amigo que lá enxergava um bom remédio contra as “novidades” de Lutero. Não tomemos este motivo ao pé da letra (esta tradução interessava pessoalmente a Montaigne), nem aquele outro, galantemente cavalheiresco, pelo qual se justifica a própria Apologia: “Porque muitas pessoas se dedicam à sua leitura, e principalmente as damas, a quem mais devemos serviço, tenho-me achado frequentemente no ensejo de socorrê-las” (II, 12, 440). E não nos deixemos enganar pelo título, aparentemente programático, do ensaio: a Apologia é uma máquina de guerra bastante complexa, que desfere o golpe de misericórdia em todo um mundo intelectual; a intenção real não é apenas defender Sebond. Pois, defendendo-o, Montaigne destruirá a pretensão deste em fundar a fé na razão; mas, mostrará que, pelos mesmos motivos, seus acusadores nada podem lhe opor, desde que esta última, por si só, nada de absolutamente certo pode fundar: “(...) todos os objetos igualmente, e a natureza em geral desaprovam sua jurisdição e intromissão” (449). No entanto, toda a exposição será efetuada por meio da pura e simples razão humana, e sem o recurso a qualquer transcendência: “Consideremos, pois, agora, o homem só, sem socorro estrangeiro, armado somente de suas armas, e desprovido da graça e conhecimento divino, que é toda sua honra, sua força e o fundamento de seu ser. Vejamos quanto há de solidez neste belo equipamento. Que ele me faça entender, pela força de sua razão, sobre que fundamentos erigiu essas grandes vantagens que ele pensa ter sobre as outras criaturas. Quem o persuadiu de que este movimento admirável da abóboda celeste, a luz eterna desses fachos rolando tão altaneiros sobre sua cabeça, os movimentos espantosos deste mar infinito, sejam estabelecidos e se continuem tantos séculos para sua comodidade e para seu serviço? É possível imaginar algo tão ridículo quanto esta mísera e mesquinha criatura, que não é nem mesmo mestra de si,

41

exposta às ofensas de todas as coisas, dizer-se senhora e imperadora do universo, do qual é nem a mínima parte é capaz de conhecer, e muito menos de comandar?” (ibid.)

O que é, então, a razão? “Eu chamo razão a essa aparência de discurso que cada um forja em si: esta razão, da qual pode haver cem contrárias em torno de um mesmo objeto, é um instrumento de chumbo e de cera, alongável, dobrável e acomodável a todas as perspectivas e a todas as medidas: não é preciso senão a habilidade que o saiba contorcer” (565).

Não devemos, porém, tomar o uso do termo ‘razão’ neste ensaio distante da refutação à qual Montaigne havia, de inicio, se proposto. Em função disso, deve-se apreciar o discurso violentamente destruidor da Apologia, em suas marchas e contramarchas através dos diversos níveis da dúvida. Na última vez que o nome de Sebond aparece neste ensaio (e suas teses já terão sido esquecidas bem antes), ainda faltam muitas páginas para seu fim e o ensaísta encerra sua defesa, dirigindo-se, reza a tradição, a Margarida de Valois (futura mulher de Henrique IV): “Vós, por quem eu tomei a pena de estender tão longo texto contra meu costume, não vos recuseis defender vosso Sebond pela forma ordinária de argumentar com a qual fostes todos os dias instruída, e exercereis nisto vosso espírito e vosso estudo: pois este último golpe de esgrima aqui, não se deve empregar que como um remédio extremo. E um golpe desesperado, no qual é preciso abandonar vossas armas para fazer perder a vosso adversário as dele, e uma habilidade secreta, da qual é preciso se servir raramente e moderadamente. É grande temeridade perder a vós mesmas para perder a outro” (557).

Este procedimento aparentemente abortivo, na realidade, parteja. Não por acaso, Montaigne foi considerado um racionalista por boa parte de seus intérpretes. Encontramos, nos Ensaios, uma concepção de razão que faz da arte de lidar com a contradição uma de suas mais importantes habilidades. O nome ‘razão’ aparece 472 vezes nos Ensaios (segundo a Concordance de Montaigne de Leake) e, entre os substantivos, somente ‘homem’ e ‘homens’ têm maior número de ocorrências. Os usos contraditórios, claramente propositais, deste termo e seus derivados, além de serem um efeito e parte da empresa crítica peculiar ao ensaio, obedecem a um desígnio expresso (por exemplo: III, 5, 873) de renovação, enriquecimento e adensamento geral da linguagem pela investigação das suas possibilidades inexploradas. Montaigne evita determinar estreitamente seus termos. Faltava precisão semântica ao vocabulário teórico do século XVI e o ensaísta utiliza exatamente este elemento de imprecisão e mobilidade da língua em proveito da expressão de suas

42

ideias. O termo com o qual isto acontece com maior clareza é também aquele no qual este efeito tem maior importância: razão – “instrumento flexível, contornável e acomodável a toda forma” (II, 12, 539). E quando esta se volta contra si mesma, o faz em virtude de uma exigência crítica que lhe pertence: “Nós o propusemos [o homem] a si mesmo, e sua razão, à sua razão, (...)” (557). Não encontraremos no autor dos Ensaios um irracionalista; ao contrário, ele se pergunta, por que não estender a participação nesta faculdade racional aos animais (tradicional tópico cético desde os gregos) e mesmo aos astros? “Dir-nos-ão que nós não vimos nenhuma outra criatura senão o homem no uso de uma alma racional? Et quoy! Já vimos algo semelhante ao sol? Deixa ele de ser, por que nós não vimos nada semelhante? E seus movimentos de ser, por que não há parecidos? Se o que nós não vemos, não é, nossa ciência é maravilhosamente curta: Tanto são estreitos os limites de nosso espírito” (Cícero, De natura deorum I, xxxi) (452).

O ensaio, como Montaigne o criou e utilizou, toma por motivadora uma intenção moral cujo fim principal não é a investigação epistemológica, mas a formação de sua vida pessoal: “Eu empenhei todos os meus esforços em formar minha vida. aí estão meu oficio e minha obra” (II, 37, 784). E já no Aviso ao leitor somos desencorajados de nos ocupar de matéria tão vã, que nada busca nos ensinar. “Eu não ensino, eu narro” (III, 2, 806). Isto porque, segundo aquele intuito moral e a mirada psicológica a ele subjacente, o problema cognitivo assume um caráter completamente diverso do que teria em uma teoria do conhecimento formal: os desacordos do homem consigo mesmo se evidenciam de maneira chocante (as contradições entre desejo e vontade; as incongruências entre os motivos e os atos; a diversidade dos hábitos e ideias; os problemas da memória, da mentira, do prazer, etc.) como consubstanciais ao seu ser, e a mera teoria não os resolve. “O homem em tudo e em toda parte, não é senão amálgama e miscelânea” (II, 20, 675). A alma humana não é puramente racional – e qualquer outra definição seria igualmente inútil: “Sei melhor o que é homem do que o que é animal, ou mortal, ou racional” (III, 13, 1069) –, mas um concerto de faculdades, para o qual é muito mais importante a harmonia do que o conhecimento (este valendo sempre, em última instância, pela maneira com que é empregado; como em geral nossas faculdades: “(...) eu aumento sempre esta crença de que a maior parte das faculdades de nossa alma, como nós as empregamos, perturbam mais a tranquilidade da vida do que a servem”: II, 37, 760). Daí a dimensão estética dos Ensaios: o ensaísta procura, fazendo de seu texto quadro e espelho, provocar pela sua escrita uma espécie de “pathos harmônico”

43

que materialmente expresse o ideal moral de seu autor, servindo de auxilio (para si, tanto quanto para o leitor) na forja da personalidade. A razão não poderia deixar de ser, aí, fator decisivo (“(...): pois escravo não devo ser senão da razão, ainda que não o consiga bem”: III, 1, 794), mas se trata de uma maneira particular de pô-la em ação. Para bem a discernir, talvez o momento mais oportuno da obra seja quando, na Apologia, a razão é contrastada com outra capacidade humana: a fé. Neste mais longo dos ensaios, a fé, louvada e afirmada, é – como qualquer via transcendental – posta de lado todo o tempo. Ela constitui um domínio não permeável à razão e à lógica humanas: essa é a conclusão racional do ensaio, que não teoriza acerca das possibilidades desta “abertura” não limitada pela razão. A fé funciona, no ensaio, como a forma superior da incerteza, em um nível além da jurisdição racional: como Deus, ela faz parte do indizível. Esse aparente irracionalismo de fundo se motiva, precisamente, pelas exigências da razão. A recusa de interpretar racionalmente os mistérios, revelações e dogmas cristãos foi designada, em tempos posteriores a Montaigne, com o nome de fideísmo. Essa separação do saber e da fé pôde servir, ao longo da história, a diversos interesses. A própria doutrina tomista, reconhecendo certa autonomia à razão, fora já uma abertura na ortodoxia católica; concepções que separavam o saber da fé estiveram lado a lado com a escolástica, desde seus inícios até seu declínio (por exemplo, em Duns Scot, Ockham e Roger Bacon). No momento de Montaigne, a escola de Pádua (que teve grande influência sobre o meio cultural francês) é o maior exemplo do humanismo racionalista de inspiração averroísta. Fende-se, mais e mais, a milenar ordem espiritual da igreja; abre-se espaço para a liberdade crítica da razão sobre si mesma, pelo distanciamento com relação aos seus próprios meios e fins. É certo, também, que uma nova maneira de encarar a religião se faz cada vez mais presente, ao lado do nominalismo, do interesse pela ciência experimental e, o que é de particular importância aqui, do ceticismo pirrônico. Na Itália e na França do século XVI as ideias fideístas se encontram difundidas na poesia e na literatura em geral, mas basta um olhar para as concepções antropomorfas e antropocêntricas de, por exemplo, um paduano famoso como Pomponazzi, para se ter certeza da singularidade da posição montaigniana: o homem está no centro da investigação ensaística (“... neste estudo que faço, do qual o sujeito é o homem, (...)”: II, 17, 634), mas

44

de nenhuma forma no centro do universo. Para Pomponazzi, contudo, Deus é a lei eterna imposta através de uma providência natural voltada para a utilidade humana; cabe à astrologia, e a outras ciências divinatórias, conhecer esta necessidade da natureza que tem por fim o homem. Montaigne, retomando Xenófanes (que sabe, por Diógenes Laércio e Sexto Empírico, ter sido considerado um precursor do ceticismo), ridiculariza os antropomorfismos antigos, medievais e renascentistas: “(...), para nós são os destinos, para nós o mundo; ele luz, ele troveja por nós; e o criador e as criaturas, tudo é por nós. É o fim e o ponto que visa a universalidade das coisas” (II, 12, 533). A conclusão montaigniana é extraordinária em sua época: “Os olhos humanos não podem perceber as coisas senão pelas formas de seu conhecimento” (535). Isso não significa dar crédito àquela presunção da razão humana, mas, bem ao inverso, denunciá-la: “Verdadeiramente Protágoras nos contava belas, fazendo do homem a medida de todas as coisas, o qual jamais nem mesmo a sua soube. Se ele não o soube, sua dignidade não permitirá que outra criatura tenha essa vantagem. Ora, sendo ele em si tão contraditório, subvertendo sem cessar um julgamento por outro, essa favorável proposição não era senão uma gargalhada que nos leva a concluir por necessidade a nulidade do compasso e do medidor” (557).

O fideísmo serviu a muitas causas: Montaigne, é certo, se preocupou com a defesa do catolicismo (mesmo que de uma perspectiva heterodoxa) contra o protestantismo. Porém, sem inclinação fanática (“Nós somos cristãos como perigordinos ou alemães”: 445), mas a partir de convicções políticas (os primeiros parágrafos da Apologia já o demonstram) que encontram fundamentação em sua filosofia. Interessa ressaltar é a coalizão entre fideísmo e ceticismo na Apologia, e, mais precisamente, o encontro de Montaigne com a obra de Sexto Empírico. Cruzamento de importância, não apenas para a filosofia dos Ensaios, mas também para a história da filosofia moderna. Pois, quando a reforma levanta a questão da fé (seu papel e alcance ontológico) acontece aí o movimento inicial de uma crise muito maior, que atingirá seu auge no decorrer dos dois séculos seguintes, com destaque particular para a primeira metade do século XVII, mas cujos ecos serão ouvidos, nitidamente, em pleno Iluminismo. O acidente histórico da redescoberta do texto do médico grego no momento crucial da disputa entre católicos e protestantes é decisivo: a querela em torno da verdade teológica suscitará a interrogação mais fundamental acerca do critério de verdade e conhecimento. Neste campo de batalha, o arsenal cético das Hypotyposes de Sexto será devastador.

45

Pico della Mirandola (de quem Montaigne parece não ter conhecido a obra) é o primeiro a fazer um uso significante da argumentação cética de Sexto; antes dele o ceticismo era conhecido principalmente pelas mãos de Cícero, Luciano, Diógenes Laércio e Galeno. Mas, em Pico, o ceticismo serve para desacreditar toda tradição filosófica pagã (alguns historiadores insistem, aqui, na influência de Savonarola). Com intenção semelhante aparece Cornelius Agrippa von Nettesheim: pela revelação cristã como única fonte da verdade, e contra a filosofia e o conhecimento em geral, fontes das vicissitudes de Adão. A originalidade dos Ensaios é, ao contrário de certas tendências rigidamente antiintelectualistas mais ou menos difundidas no Renascimento, desenvolver a dúvida pelo raciocínio cuidadoso, chegando, com método, a algumas dificuldades filosóficas cruciais. Ceticismo e fideísmo são cronologicamente anteriores, na obra montaigniana, à Apologia; mas, aqui, marcadamente, a crítica da ciência atinge nitidez favorável ao exame. Devemos notar, em primeiro lugar, que tal crítica é, em certa medida, pressuposta, isto é, se desenvolve a partir daquela intenção primeira de provar a virtude como algo diferente (embora não excludente) da ciência. Para tanto, passa a contradizer as certezas do saber renascentista em um discurso cético corrosivo, utilizando praticamente todos os modos da suspensão do juízo, e cuja ponta de lança é formada por dois modelos básicos de argumentação: o ‘círculo’ e o ‘terceiro homem’ (padrões clássicos de argumentação, utilizados, por exemplo, por Platão, pelos sofistas e pelos céticos). Por eles, e pela ironia, pela reductio ad absurdum, e diversas outras figuras, trata-se de demonstrar como qualquer critério de verdade e certeza cai, inevitavelmente, ou em um raciocínio hiperbólico, circular, ou leva a um regresso ao infinito na procura de paradigmas ou bases seguras. Daí que alguns filósofos antigos tivessem a opinião, nos conta o ensaísta, de situar “o soberano bem no reconhecimento da fraqueza de nosso julgamento” (491). Chegamos assim a uma definição completamente oposta àquela de Herillus, que identificava inteiramente virtude, ciência e soberano bem. As contradições formam a tessitura móvel da Apologia: é com pretensa ignorância que Montaigne fala da teologia e da ciência, e discursa acerca da ignorância com indisfarçável ciência. É neste jogo complexo de balanços e contrastes, amplo exercício de lógica e estilo, que se purificará a filosofia montaigniana. Pois este ensaio tem um peso considerável no conjunto da obra: além de sua extensão, ele é como um centro de forças prenhe de possibilidades, que faz o pensamento ensaístico avançar e

46

também recuar, corrigindo-se; uma massa fértil de máximas, aforismos, versos, exemplos, epigramas, reflexões, etc. – solo onde a filosofia dos ensaios finca suas raízes. Lá, a razão é vista como uma espécie de capacidade discursiva que pode ser ludicamente contraposta a si mesma, criando um espaço no qual toda linguagem se torna gesto (454) para a dramaturgia ensaística do pensamento10. Se Montaigne procura a si mesmo nos Ensaios, neste “anti-ensaio” ele parece com prazer se perder: as razões (“chamo razão aos nossos devaneios e sonhos, com a licença da filosofia, que diz que mesmo o tolo e o malvado deliram pela razão, mas que é uma razão de forma particular”: 523) mais contraditórias vêm à cena, desempenhando alternadamente seus papéis. Como espectador parece se deleitar o ensaísta com o desfile dessa miríade de filosofias, ciências, civilizações, costumes, homens, deuses e animais; cada novo personagem, mais um motivo de dúvida e ensaio. Julgar racionalmente não é crer que necessariamente deva nossa razão compreender as razões últimas ou a essência das coisas: esse, na verdade, é o erro, o pressuposto presunçoso (“A presunção é nossa doença natural e original”: 452) que nos leva a empregar de maneira errada esta perigosa lâmina de dois gumes chamada razão (654). Na Apologia se ensaia a justa medida entre o conhecer e o ignorar: “Um personagem sapiente não é sapiente em tudo; mas o homem de talento é em tudo talentoso, e em ignorar mesmo” (III, 2, 806). Uma excelente mediocridade (em grego no original: III, 13, 1103) – que é muito mais inclusão do que exclusão dos contrários – define para o ensaísta aquele antigo ideal da 10

Em Montaigne, as palavras raison e discours (que não por acaso em conjunto traduzem o termo grego logos) são geralmente sinônimas. A razão humana é uma razão discursiva que, quando tenta teoricamente conhecer o que as coisas absolutamente são e disserta acerca das razões do ser, nos engana. Ela encontra seu domínio próprio trabalhando como razão prática (em conjunção com a vontade e subordinada ao julgamento), com “jurisdição privada” (pessoal), formada e baseada em nossa experiência, e voltada para a condução de nossa vida. Deixar de lado a pretensão dominadora da razão, a fantasia filosófica de “(...) que a razão humana é a controladora geral de tudo que está fora e dentro da abóboda celeste, que abraça tudo, que pode tudo, por meio da qual tudo se sabe e se conhece” (541), é usar racionalmente, com o perdão da redundância, a razão: é esta função autocrítica que é realçada nas contradições da Apologia. Ora, para Montaigne, por um lado, o texto constitui uma janela para o mundo e para a alma humana: o ensaio é um espelho, um palco, uma tela, uma forma de intervir na realidade reconstruindo-a na representação. Mas, por outro, a linguagem serve ao pensamento; este fruto da unidade complexa de nossa personalidade pode se exercer além de toda palavra (pois é também, e talvez principalmente, produtor de imagens). Ter consciência do valor subordinado do discurso é tomar posse deste de maneira muito mais segura: é vê-lo como gesto humano particular, enxergando nele o homem e o pensamento por trás das palavras, e poder, através da atenção aos vários discursos, esclarecer nosso próprio julgamento. Assim, a dimensão estética da linguagem será revalorizada, através de sua inscrição no quadro maior dos 'movimentos' (II, 12, 454) de comunicação (da qual também participam os animais, de acordo com sua inteligência própria) no qual as atitudes e o silêncio podem ser mais significativos que uma torrente de palavras.

47

harmonia11. Trata-se de encontrar a medida própria e oportuna entre as discordiae concordes naturais (dor e prazer, sabedoria e loucura, vida e morte, etc.) para que a balança, imagem emblemática do julgamento, possa se equilibrar com justiça. Principalmente, por isso, o autoconhecimento, a experiência da própria natureza, será essencial para a filosofia montaigniana: ela desvela certos desregramentos do pensamento (II, 12, 460), ocasionados pelo uso errôneo da liberdade de nossa imaginação, que poderiam nos levar a uma elevação desmedida, fazendo-nos pretender uma posição privilegiada para o homem no cosmos (“Nós não estamos, nem acima, nem abaixo do resto”: 459) e uma falsa e perigosa certeza para sua razão. O desconhecimento de nossa condição e a avaliação descentrada de nosso ser geram aquela ilusão ontológica à qual já nos referimos: ela resulta do trato descuidada com a palavra ‘ser’, termo fundamentalmente enganador, que tem o poder – se mal compreendido e empregado – de engendrar um esquecimento do caráter temporal da realidade e, por aí, da mobilidade criativa primordial e constitutiva da natureza (na qual não há nada de permanente ou subsistente - II, 12, 603 - e onde nada é igual). A combinação de fideísmo e ceticismo na Apologia parece servir, basicamente, para mostrar que o discurso apofântico cabe somente à fé (e somente a ela deve sua certeza, ainda que devamos sempre apoiar racionalmente sua possibilidade) e assim reconduzir a razão ao que o ensaísta considera seu domínio próprio e seu alcance virtual: aperfeiçoar sua conduta, sua atitude, sua personalidade, favorecendo pelo exemplo, aqueles que buscam o mesmo fim. Não havendo um critério universal definitivo de verdade, dada a variedade e mutabilidade natural de um todo inapreensível, os Ensaios – “(...): matéria de opinião, não matéria de fé; (...)”: I, 56, 323 – pretendem somente ilustrar as opiniões modestamente humanas de seu autor. Deste modo, mesmo se o ceticismo montaigniano nunca é limitado 11

Montaigne usa ‘medíocre’ também como depreciativo (por exemplo: II, 17, 658). Sua noção de equilíbrio moral como coexistência harmônica de opostos se refere tanto à ética socrática como à aristotélica (um bom exemplo é: II, 20, 674). Vejamos como o ensaísta, discorrendo acerca da educação ideal a ser dada a um seu hipotético aluno (no ensaio Da educação das crianças, endereçado à Condessa de Gurson e ao seu futuro filho), louva o discípulo mais famoso de Sócrates, Alcebíades - como modelo: “Que ele [o aluno] possa fazer todas as coisas, e não ame fazer senão as boas. Os filósofos mesmos não acham louvável em Calistenes ter perdido as boas graças do grande Alexandre, seu senhor, por não ter querido beber tanto quanto ele. Ele [o aluno] rirá, caçoará e debochará com seu príncipe. Quero que no deboche mesmo ele ultrapasse em vigor e firmeza seus companheiros, e que não deixe de fazer o mal por falta de força ou de ciência, mas por falta de vontade. Há grande diferença entre não querer e não saber fazer o mal (Sêneca, Cartas). (...). Eu frequentemente notei com grande admiração a maravilhosa natureza de Alcibíades, de se transformar tão facilmente segundo maneiras tão diversas, sem prejuízo de sua saúde: excedendo tanto a suntuosidade e pompa persa, quanto a austeridade e frugalidade lacedemônia: tão puritano em Esparta, como voluptuoso na Jônia” (I, 26, 167; ver também II, 36, 757).

48

por qualquer verdade revelada, ao separar fé e razão (permanecendo no âmbito desta), torna flutuantes as fronteiras entre crença e certeza. Ora, os juízos universais parecem a Montaigne expressar muito mais a impotência do homem do que sua capacidade de conhecer a realidade: pois não há, nesta, substância fixa que lhes sirva de substrato referencial, nem razão universal transcendente imediatamente acessível ao homem que os garanta. A forma ensaística coaduna-se com a ideia montaigniana de natureza. O ensaísta procede como que salientando, em toda tentativa de universalização, a particularidade; o que não significa invalidar toda generalização e conceituação (já que isso, como é óbvio, seria impossibilitar a própria linguagem), mas apontar decididamente o particular, sensível e temporal, como a porta e a via pelas quais se chega ao universal e pelas quais este se manifesta. O ensaio de nosso julgamento (I, 50, 301) deve nos auxiliar a, racionalmente, conservar a liberdade da experiência sensível de sintonia e sincronia com o ritmo do “balouçar” natural segundo a ocasião. Trata-se de fazer incidir sobre o juízo as exigências de medida, proporção e senso (“Isto que opino é ainda para declarar a medida de minha vista, não a medida das coisas”: II, 10, 410), adquiridas pela observação, e expressando serena confiança na natureza e aceitação afirmativa de suas contradições. O projeto ético-estético do ceticismo ensaístico busca reconciliar o homem com o devir e com sua sensibilidade. Ao final da Apologia, após a travessia do oceano balouçante da dúvida, deparamonos com a imagem de um Deus imóvel em seu eterno, incriado e verdadeiro ser: “Pelo que é preciso concluir que somente Deus é, (...) (II, 12, 603). Nós nos enganamos “(...), tomando o que aparece pelo que é, (...)”. Em sua impermanência, natureza e tempo não são realmente; só Deus permanece na eternidade imutável do verdadeiro ser. A função metafísica desta figura divina, pelo rompimento mesmo que esta opera no desenvolvimento do texto, parece ser completamente negativa – “Nós não temos nenhuma comunicação com o ser”

12

–, mas seu peso ético e seu efeito estético não devem ser desprezados. Erro seria

esperar, em consequência deste Deus, instruções acerca da ascensão do homem ao divino, ou esclarecimentos sobre a constituição do mundo pela emanação do Uno (esquemas característicos da época): o que deve ser ressaltado nesta divindade, afora a separação 12

II, 12, 601: Notemos como esta conclusão migra da Apologia, décimo-segundo capítulo do segundo livro da primeira edição, para o terceiro capítulo do primeiro livro na segunda edição (pg. 17): foi este movimento de avanço e recuo característico da escrita ensaística que assinalei há pouco.

49

radical do humano e do divino, é a religiosidade pagã de Plutarco de quem o ensaísta toma este trecho final (“... esta conclusão tão religiosa de um homem pagão...”: II, 12, 603) que, por si só, e em sua situação no conjunto da argumentação da Apologia, ensaia o julgamento através da contradição e coincidência entre movimento e imobilidade, paganismo e cristianismo, imanência e transcendência. Não só a sequência da argumentação e a articulação das suas partes importam nos Ensaios, mas cada elemento vale por si e por seu posicionamento particular no quadro total da montagem deste texto pictórico. Montaigne “dá peso” à sua balança, equilibrando-a com este Deus que além de não ser garantia do conhecimento humano, marca sua impossibilidade mesma, nos moldes, tanto da ciência per causas escolástico-aristotélica, como naqueles do itinerário da mente até o Um da mística neoplatônica. Fica evidente, paralelamente, a disposição icônica do ensaio, segundo a qual quadros menores se inscrevem em quadros maiores formando painéis onde cada detalhe é importante e nos quais cada traço se movimenta se opondo e se compondo com os outros. Outras oposições equilibram “(...) o fim deste longo e enfadonho discurso, que me forneceria matéria sem fim" (II, 12, 603 - grifo meu): a decisiva conclui que o homem deve, e não deve, elevar-se acima da humanidade (604). E a última palavra do ensaísta é metamorphose. Todos estes pontos são significativos, pois, se explicar a natureza, Deus ou a união dos contrários seria exceder o que se pode dizer, a aparência de verdade evocada pela linguagem (como eco de uma atitude moral) possui um valor reflexo de afecção, portadora indireta do verdadeiro, inexplicável, mas sensível. E dada a separação entre humano e divino, só resta ao homem voltar-se para a plenitude de sua experiência sensível: “Nesta universalidade, eu me deixo ignorante e negligentemente manejar pela lei geral do mundo. Conhecê-la-ei suficientemente quando a sentir. Minha ciência não saberia fazê-la mudar de rota; ela não se modificaria por mim. Seria loucura esperá-lo, e maior loucura ainda aborrecer-se, pois ela é necessariamente semelhante, pública e comum. A bondade e capacidade do governante devem pura e plenamente nos descarregar da preocupação com seu governo” (III, 13, 1073).

Esta passagem, tirada do último capítulo dos Ensaios, fala de uma via sensível para a moral, a qual não deve de forma alguma ser vista como uma função emocional opondo-se à racional, porém como a própria razão no uso integral de suas acepções congêneres de senso e sentido. É a luz daquela antinomia entre fé e razão que podemos entender os problemas da lei natural e da fortuna; se conhecêssemos Deus e a Natureza de maneira evidente,

50

alcançaríamos a certeza com relação a estas questões fundamentais; como tal não parece possível a Montaigne, temos no ensaio opinião e crença. Precisamente esta perspectiva abre caminho à sensação: se a verdade não pode ser diretamente fixada em uma fórmula universal, a tarefa da linguagem ensaística é desta obliquamente se aproximar em todas as direções, pintando-a em suas metamorfoses. O deus no final da Apologia mostra como o estilo impressionista de Montaigne não progride de forma apenas logicamente linear, mas também vertical, figurativa, permitindo ao ensaio representar fisicamente o pensamento expresso. Como sabemos, as contradições renascentistas acusam, em geral, a convivência, a luta e a adequação do novo com o antigo. Mas há algo mais em Montaigne: o ser imóvel é a grande moldura da natureza móvel da Apologia; seu fecho denuncia o poeta e o pintor por trás do filósofo. O que faltava ao gigantesco painel montaigniano da dúvida e do deslocamento senão o verdadeiro ser, a completude de um Deus imutável e imóvel, un realement estant, qui, par un seul maintenant emplit le tousjours (II, 12, 603)? Ele tanto é parte do movimento da Apologia, como, por assim dizer, sua moldura; nele, a atomização característica da obra maneirista vem ao encontro de razões filosóficas profundas. Parmênides, sabemos, foi considerado, na Antiguidade, precursor do ceticismo, mesmo tendo entremeado “(...) seu estilo de cadências dogmáticas” (II, 12, 509). Todas as referências a Parmênides na obra montaigniana estão neste ensaio: e não por acaso, já que este é um texto lírico, no sentido antigo. No Renascimento, tanto a filosofia se torna poética, como a poesia filosófica. O ideal do poeta vates como modelo poético do século XVI, e seu parentesco com o filósofo, na busca de compreensão e expressão da harmonia universal, parece ser um centro oculto da Apologia. É sintomático que Montaigne cite de Plutarco (o mesmo de quem o ensaísta tanto toma no final deste capítulo) a afirmação de que a metafísica de nada serve (II, 12, 508). Bem sabe o cético que esta não é toda a verdade, e por isso a pôs na boca de outro. A metafísica não é possível; a metafísica é possível. De qualquer modo, se não nos comunicamos com as essências eternas, estamos ligados ao fenômeno – e, aqui, “(...) ser consiste em movimento e ação” (II, 8, 386).

*

*

*

51

Capítulo III

Imaginação, verdade e ceticismo

Minha filosofia está na ação, no uso natural e presente: pouco na imaginação (III, 5, 842). Eu proponho fantasias informes e incertas, como fazem aqueles que publicam questões duvidosas, para serem debatidas nas escolas: não para estabelecer a verdade, mas para procurá-la (I, 56, 317).

52

A filosofia dos Ensaios não se identifica completamente, e nem pode ser confundida, com o ceticismo antigo (“o mais sábio partido dos filósofos”: II, 15, 612). Mas o método ensaístico, ou, como talvez preferisse seu autor, sua ‘maneira’ de lidar com as questões fundamentais da filosofia, possui inconfundível parentesco com a atitude cética. Vejamos algumas consonâncias básicas. Primeiro, a ideia de uma investigação que não se detém: “Quem quer que procure qualquer coisa chega a este ponto: ou diz que a encontrou, ou que não se pode encontrá-la, ou que está ainda em busca. Toda filosofia se reparte nestes trás gêneros. Seu intento é procurar a verdade, a ciência e a certeza” (II, 12, 502). Skeptikós, sabemos, significa investigador (ou aquele que observa, considera): Montaigne reforça esta citação de Sexto (Hypotyposes I, 1, 4) acrescentando ainda uma definição da própria filosofia como busca ou procura da verdade. Daí a metáfora, frequente nos Ensaios e no Renascimento em geral, da caça à verdade e ao conhecimento como atividade incessante que concerne à nossa natureza mesma: “Pois nascemos para procurar a verdade; (...)” (III, 8, 928). Em outra possível tradução, mais ao pé-da-letra, o sentido seria: nossa natureza consiste em procurar a verdade. Natural que o homem, ser inacabado num mundo inacabado, deseje o conhecimento. A natura, como principio de desenvolvimento dos seres, liga-se na língua latina ao verbo nascor (nascer). Uma relação semelhante encontramos entre physis e phyein (engendrar). “Não há desejo mais natural que o desejo de conhecimento. Nós ensaiamos todos os meios que a ele podem nos levar” (III, 13, 1065). Esta primeira frase do último capítulo dos Ensaios (De l'experience) parece ser uma citação da abertura da Metafísica de Aristóteles (livro I, 1). O ensaio trata de deslocar qualquer definição fechada do homem, ser que não detém, mas busca o conhecimento. Segundo, a aproximação da filosofia como concerto de ideias (e lembremos o valor de fonte primária que possui, para a história da filosofia, a obra de Sexto Empírico), dissociando os sistemas em elementos separados de seus todos. E tanto se os contrapõe um a um (“Não há razão que não tenha uma contrária, diz o mais sábio partido dos filósofos”: II, 15, 612), quanto elabora listas de opiniões dos diversos autores e escolas sobre um mesmo tema ou termo. Tais listas, muitas vezes longos poemas, eram comuns no século XVI: exprimiam o espanto e o maravilhar-se ante todas as possíveis metamorfoses da natureza humana e da realidade, reunindo os antigos e novos mundos para a perplexidade

53

do homem. Para Montaigne, trata-se de um procedimento descritivo consciente, “(...), eu folheio ora um livro, ora outro, sem ordem e sem plano, à pieces descousues; ora devaneio, ora registro e dito, em me passeando, meus sonhos que aqui estão” (III, 3, 828). Não poderá, portanto, e nem o interessa, julgar as teses como deveria, ou seja, a partir da significação que elas adquirem em seus respectivos sistemas. Assim, ele toma ou recusa ideias confrontando-as ou adequando-as segundo seu pensamento (“Não digo os outros, senão para melhor me dizer”: I, 26, 148): sua aproximação assistemática e antidogmática da filosofia não é compatível senão com o ceticismo. Terceiro, o papel da imaginação, noção central na gnoseologia helenística cujo emprego nos Ensaios deve ser considerado com atenção. É a partir da semelhança com o ceticismo antigo que se evidenciará sua singularidade. Montaigne utiliza o termo em seu sentido antigo: a phantasia é uma espécie de instância intermediária entre a percepção e o pensamento, uma mistura entre perceber e julgar, ou ainda uma faculdade mediadora, caracterizada como capacidade imagética (de natureza sensual e intelectual) de impressionar e alterar a alma 13. A imaginação foi o critério de verdade estoico: mergulhando suas duplas raízes na sensibilidade e no entendimento, ela operava a mediação entre sensação e julgamento. Permitia, assim, a síntese do juízo que, através da luz natural nele infundida pelo próprio caráter lógico da realidade (o hegemonikon), detinha um critério seguro do acordo entre exterioridade e interioridade. Para Sexto Empírico, porém, a imaginação permanece um fator de isolamento subjetivo, uma vez que nem ela, nem o julgamento (que age a partir dela) podem garantir a passagem verídica entre o exterior e o interior do sujeito cognoscente (Hypotyposes II, 7078). Notemos, entretanto, que os céticos pirrônicos da linha de Sexto não negam a existência dos objetos exteriores, como não recusam suas afecções (opondo à apathia estoica a metriopathia, ou a habilidade de equilibrar a alma entre as impressões divergentes). Não negam, também, e aqui está o ponto decisivo, o poder da imaginação de formar imagens, verdadeiras, como falsas, e nem pretendem que o juízo verdadeiro seja impossível. Não admitem, isso sim, critério geral, inerente à realidade ou transcendental,

13

Platão trata a phantasia como uma mistura de percepção e juízo no Theeteto (194d-195d). Para Aristóteles, esta serve de intermediária entre aisthesis e noesis (De anima, III, 427b - 429a) – como em Plotino (Ennéades, IV, 4, 12).

54

que possibilite a aferição da verdade universal: todo saber humano é opinião. Analogamente, os Ensaios: “Pois assim estão aqui meus humores e opiniões; eu as dou pelo que está na minha crença, não pelo que se deva crer. Eu não viso aqui senão descobrir a mim mesmo, que serei porventura outro amanhã, se novo aprendizado me muda. Não tenho autoridade para ser crido, nem a desejo, sentindo-me muito mal instruído para instruir outros” (I, 26, 148).

Para Montaigne, como a imaginação (I, 21), “(...) a crença é como uma impressão que se faz em nossa alma” (I, 27, 178). O ensaísta, vimos, separa fé e ciência, mas apaga as diferenças objetivas entre crença e certeza: ambas dependentes da imaginação, e por isso sempre subjetivas e submetidas à regência do tempo, permanecerão relativas. “Se o ser original destas coisas que nós tememos, tivesse o dom de alojar-se em nós por sua autoridade, ele se alojaria parelho e semelhante em todos: pois os homens são todos de uma espécie, e salvo o mais e o menos, se acham munidos de iguais utensílios e instrumentos para conceber e julgar. Mas a diversidade das opiniões que nós temos de tais coisas mostra claramente que elas não entram em nós senão por composição: alguém talvez lhes aloja consigo em seu verdadeiro ser, mas mil outros lhes dão um ser novo e contrário neles” (I, 14, 51).

Fantasia, crença, imaginação e opinião designarão nos Ensaios, não apenas as ideias alheias, mas frequentemente as próprias ideias montaignianas. Se é possível, como fiz atrás, traduzir nos Ensaios imagination por ideia foi porque, por volta do inicio do século XVI, difundiu-se o costume de designar com esta, não apenas o conteúdo de uma representação, mas a própria faculdade desta, identificando-a com a imaginação. A ideia já não é, então, vista como algo constituído a priori na mente do artista, mas – mudança decisiva – a posteriori pela experiência: isso significa que a natureza tem em si mesma seu principio e pode ser vista, em seu curso mesmo, como “(...) sábia e justa” (III, 13, 1113). Este acontecimento de tremendas implicações está na base do ceticismo ensaístico: a ideia é extraída da realidade na experiência; entendendo-se, por realidade a confluência dos movimentos interiores e exteriores, particulares e públicos na imaginação, e por experiência o seu aparecer para a consciência. A fantasie e a imagination terão, na filosofia ensaística, funções de memória, sensibilidade e criação. É pela faculdade, ativa e passiva, da imaginação que o pensamento pode ser modificador de nosso ser e existência, pois é por composição da fantasia que o homem se relaciona com o mundo e consigo mesmo: através dela damos forma à fortuna (I,

55

14, 50-51). Logo, só encontramos a verdade por acaso: “Não, talvez, que alguma noção verdadeira não resida em nós, mas é por acaso. E, porquanto pela mesma via, mesma maneira e conduta, os erros são recebidos em nossa alma, ela não tem com que lhes distinguir, nem com que escolher entre a verdade e a mentira” (II, 12, 561). Somente Deus possui a verdade (III, 8, 928). Verdade que só vem ao homem (excetuados os eleitos da luz divina) pela fortuna e no devir deve ser perdida (II, 12, 553). A fortuna montaigniana combina acaso e necessidade, meras generalizações discursivas acerca do movimento de uma mais alta razão. Esta razão divina do governo do universo é “(...) tanto mais segundo a razão, quanto ela é contra a razão humana” (II, 12, 499); nós, com falsos títulos, roubamoslhe o nome (II, 12, 541). Logo, para Montaigne, a realidade é racional; porém, não há solução de continuidade possível entre a razão humana e a divina: elas são duas, incomunicáveis, tendo somente o nome em comum. É essencial, entretanto, que se perceba de onde Montaigne afirma esta razão superior: “Confessemos ingenuamente que Deus só no-lo disse, e a fé: pois a lição não é da natureza ou de nossa razão. E quem experimentar seu ser e suas forças, e dentro e fora, sem este privilégio divino; quem olhar o homem sem lhe lisonjear, não verá nele bem eficácia, nem faculdade que cheire outra coisa senão a morte e a terra” (II, 12, 554).

No entanto, é justamente da morte e da terra que nos falam os Ensaios. O Deus montaigniano vale mais pela perspectiva axiológica referencial através dele alcançada que como verdade teórica. Deus é garantia da “bondade” da natureza, não de sua inteligibilidade. E se a comunicação entre homem e Deus não é de todo impossível, é perigosa, porque se dá pelo deslocamento de nossa razão na exaltação das paixões, ou por seu entorpecimento nos estados oníricos, e, assim, não é por si mesma confiável desde que irracional e individual (II, 12, 568). Reencontramos, aqui, a exigência de medida racional. Mas, se a razão e o julgamento devem regrar a imaginação, sempre dependem de suas imagens e, por isso, esta determinação racional é difícil de ser formulada abstratamente, pois depende em parte, segundo o tempo e as circunstâncias, daquilo mesmo que ela deve ordenar. “É um preceito salutar, certo e de fácil compreensão: Contentai-vos com o vosso, ou seja, com a razão. A execução, porém, não é para mim, como tampouco para os mais sábios. E um mote popular, mas tem terrível extensão. O que não abrange ele? Todas as coisas tombam em distinção e modificação” (III, 9, 988).

56

A verdade pura, absoluta e estática não é para nós: “É da miséria de nossa condição, que amiúde o que se apresenta à nossa imaginação como o mais verdadeiro, não se apresenta como o mais útil a nossa vida” (II, 12, 512). O homem deve viver, e “A vida é um movimento material e corporal, ação imperfeita por sua própria essência, e desregrada; eu me dedico a servi-la segundo ela” (III, 9, 988). O cético, segundo Sexto Empírico (por exemplo: Hypotyposes III, 2 e 235; Adversus Dogmaticos 165), toma a vida por guia. Não obstante, a maneira como Montaigne segue tal orientação é bastante diversa daquela que Sexto aconselha: a diferença, que se tornará mais clara no decorrer da presente discussão, reside na especificidade, em uma e outra concepções, das noções básicas de filosofia, vida e verdade e suas inter-relações. O ensaísta tem, por oficio e arte, viver (II, 36, 379). Na vida, se É loucura reportar o verdadeiro e o falso a nossa capacidade (I, 27; título), de todo modo, o gosto dos bens e dos males depende em boa parte da opinião que nós deles temos (I, 14; título), ou seja, “(...) nossa opinião dá preço às coisas, (...)” (I, 14, 62). E na avaliação do bem e do mal, “(...) a crença se dá essência e verdade” (ibidem, 67). Significa que nosso julgamento pessoal pode servir de critério e fundamento de uma moral individual, e que, mesmo tendo sido excluído da verdade e do ser uniformes e constantes, o homem participa fisicamente de sua harmonia: “O conhecimento das causas pertence somente àquele que detém a conduta das coisas, não a nós que não temos senão o sofrimento, e que temos seu uso perfeitamente pleno, segundo nossa natureza, sem lhe penetrar a origem e a essência” (III, 11, 1026). “Os homens (diz uma antiga sentença grega) são atormentados pelas opiniões que eles têm das coisas, não pelas coisas mesmas” (I, 14, 50). Dar forma à fortuna, como diz Montaigne, significa compreender que nossa crença, nosso juízo e nossas subsequentes ações, transformam nossa realidade. Na avaliação, no julgar, a imaginação é o elemento primordialmente móvel e mutante, espécie de espelho translúcido onde convergem devir interior e exterior: por um lado, é ela que, em sua inevitável ingerência, torna opostos o bom uso da razão e a certeza (“A impressão de certeza é um testemunho certo de loucura e de extrema incerteza”: II, 12, 541); por outro, a divisão reflexiva da razão é tornada possível pela variação das impressões que a imaginação lhe fornece. “Se filosofar é duvidar, como se diz, com mais forte razão divagar e fantasiar, como faço, deve ser duvidar” (II, 3, 350). É nesse movimento dúbio, e simultaneamente passivo e ativo, que ela

57

faculta ao julgamento a determinação recíproca de vontade – que podemos definir como a afecção mestra de um ser14 – e razão no valor e na ação em geral. Juízo ético e juízo estético não se confundem nos Ensaios, mas no ensaio se configura uma região fronteiriça ambígua entre sensação e intelecção, instaurada pela imaginação, na qual ética e estética não podem escapar de se bordejarem. Entender o que isto significa é compreender algo de central e basilar na concepção filosófica montaigniana. Julgar é (na sua acepção mais ampla) referir o particular ao universal: mas o ceticismo ensaístico questiona, precisamente, a legitimidade dos universais. Segundo Montaigne, o universal representa muito mais uma multidão de seres singulares reunidos através daquilo que eles possam ter de semelhante em função de uma consideração a eles exterior, ou uma coleção de experiências humanas, do que uma substância ou uma essência única. O objetivo primeiro de tal crítica, onde cooperam nominalismo e ceticismo pirrônico, é não permitir que a avaliação se torne simples revalorização das normas tradicionais e da autoridade de sua revelação. Tentando recuar à origem das normas estabelecidas (movimento de extrema importância nos Ensaios e na filosofia renascentista do direito), Montaigne relata: “Outrora, tendo que fazer valer algumas de nossas observâncias, e recebidas com absoluta autoridade bem longe em torno de nós, e não querendo, como se faz, lhes estabelecer somente pela força das leis e dos exemplos, mas pesquisando sempre até sua origem, achei o fundamente tão fraco, que foi difícil não me desgostar, eu que tinha que lhe confirmar para outro” (I, 23, 116).

Autoridade de verdade e razão confere o costume à crença e à imaginação; reificando-as ele forma a consciência (cujos valores lhe aparecem naturais): “As leis da consciência, que nós dizemos nascer da natureza, nascem do costume: cada um tendo em veneração interna as opiniões e costumes aprovados e recebidos em torno de si, não se pode desprender deles sem remorso e nem se aplicar sem aplauso. (...) 14

O governo e a economia do nosso ser, da natureza ou dos estados, acontecem segundo um equilíbrio instável de contrários (por ex.: III, 1, 790, 791) que na luta e na oposição incessantemente se compõe e recompõe (por ex.: I, 28, 234, 235; III, 13, 1106). O símbolo da balança ilustra este equilíbrio natural (por ex.: II, 12, 565). A vontade é precisamente o resultado momentâneo deste confronto entre os contrários no homem; podemos defini-la, conquanto Montaigne não o faça diretamente, como o impulso dominante e a afecção mestra (movimentos vinculados na atividade imaginativa) de um ser, apoiados nas várias passagens nas quais o termo ‘vontade’ pode ser substituído por afecção, sentimento ou intenção, e estes por aquele (por ex.: II, 8, 395; III, 5, 882; III, 5, 862; III, 6, 905; III, 10, 1016). Relacionada à imaginação (por ex.: I, 37, 231; III, 2, 808), a vontade cresce no contraste (II, 15, 612) e se move na oposição. Neste jogo de forcas cósmico das vontades e afecções, noções como sofrimento, gosto, humor, etc, tentam expressar a interação entre os seres e o Ser.

58

Mas o principal efeito de sua potência é de prender-nos e agarrar-nos de tal sorte, que mal nos podemos reaver de sua pegada e reentrar em nós, para discorrer e meditar sobre seus decretos. Deveras, porque nós lhe sorvemos com o leite de nosso nascimento, e porque a face do mundo se apresenta neste estado a nossa primeira vista, parece que nascemos condicionados a seguir esta trilha. E as imaginações comuns, que achamos em crédito em torno de nós, e infundidas em nossa alma pela semente de nossos pais, parecem-nos ser as gerais e naturais. Donde acontece que o que está fora dos gonzos do costume, cremos estar fora dos gonzos da razão: Deus sabe o quão desarrazoadamente, o mais frequentemente” (I, 23, 115).

Talvez o que transforma a crença em certeza, a persuasão em convicção, seja crer que seu conteúdo e forma representam e são fundados em normas relativas à natureza humana. De qualquer maneira, sua pretensão à universalidade objetiva sempre estará, enquanto modo de afirmação específico de uma consciência particular, exposta à contradição. Pois – e isso será cada vez mais evidente para a época renascentista – as crenças mais diversas são passíveis: a imaginação e o costume as multiplicam. “Estimo que não tomba na imaginação humana nenhuma fantasia tão estapafúrdia, que não reencontre o exemplo de algum uso público, e por consequência, que nossa razão não esteie e não funde” (I, 23, 111). A falta de fundamento último ou universal não impede que a vida e a ação requeiram opiniões, crenças e costumes. Não saberíamos não tê-los, a vida os supõe: “Cabe ao costume dar forma à nossa vida, tal como lhe agrada; ele pode tudo nisto: é a beberagem de Circe, que diversifica nossa natureza como bem lhe parece” (III, 13, 1080). Mas, o simples fato da inevitabilidade das crenças e costumes e da impossibilidade de viver sem eles, não serve para legitimar alguns dentre eles (e, se Montaigne, coerente com a tradição cética, confia na autoridade dos costumes de seu país, reserva para si boa margem de escolha com relação à sua participação neles). Paralelamente, o intento abstrato do abandono de todas as crenças, coloca-se em um nível de generalidade tal que somente estancando o movimento vital, ou se supondo fora dele, poderia ser realizado: a única situação real a que corresponde semelhante propósito é a da reflexão. Ora, o ensaísta separa teoria e prática para poder discernir melhor seus entrechoques e intermediações. Tal resulta do reconhecimento, primário para Montaigne, de que a ordem da verdade não deve ser confundida com a ordem do valor, e nem a ordem natural com a ordem política. Mas, atenção, não podem se confundir, mas não é possível isolá-las e evitar suas implicações, desde que têm sempre em comum o serem produções da natureza no universo de reciprocidades montaigniano: o edifício político tem sua economia natural

59

própria, como as árvores, as ações e pensamentos humanos. E todos os seres naturais têm seu fim em si, para o qual não há medida exterior. É a atividade mesma do julgamento montaigniano que lemos no procedimento descritivo e rapsódico do ensaio. Suas descrições, vastas confrontações por vezes, não intencionam classificar ou exaurir seus temas, porém, tornar patentes as diversidades e contradições, “(...) a fim de que tendo na imaginação esta contínua variação das coisas humanas, tenhamos o julgamento mais esclarecido e mais firme” (I, 49, 297). Não se trata aí, de referir o particular ao universal e, sob a clivagem deste, avaliar aquele como bom ou mau, correto ou incorreto, porém de ressaltar os aspectos característicos da particularidade no que ela tem de mais refratário a qualquer comparação com as outras singularidades que a cercam, destruindo toda exigência de conformidade com um esquema ou padrão único. Onde outros imporiam suas normas como absolutamente prescritivas, o ensaísta, consciente da ilusão de universalidade imposta pelo costume (“O hábito adormece a vista de nosso julgamento”: I, 23, 112), refere as normas e valores particulares a seus campos próprios de aplicação, percebendo, então, as ordens em que se instalam e seus funcionamentos diversos. Por exemplo, com relação aos canibais brasileiros, o juízo montaigniano compreende que não se trata de nutrição, mas da significação religiosa ou moral da antropofagia (vingança: I, 31, 208; ou fazer a vida persistir: I, 23, 116; etc.). Deve ser enfatizado, aqui, o fato de que o julgamento não é um costume e não pode ser confundido com um valor. “O julgamento é um utensílio para todos os objetos, e se intromete em tudo. Por este motivo, nos ensaios que dele aqui faço, emprego toda sorte de ocasião” (I, 50, 301). O julgamento é um critério formal, sempre local e contingente e, portanto, não engajado em normas de uma vez para sempre obrigatórias: é precisamente em função desta mobilidade que ele não entra em contradição com a dúvida. “Distingo é o membro mais universal de minha Lógica” (II, 1, 335). Distingo é um dos termos escolásticos invertidos por Montaigne para atacar o corpo mesmo da teoria da qual fazia parte. Se distinguir é a operação mais universal da lógica ensaística, o é porque “(...) não há nenhuma qualidade tão universal nesta imagem das coisas quanto a diversidade e a variedade” (III, 13, 1065). Em meio à continua variação e diversificação das coisas, esclarecer o julgamento é flexibilizá-lo para firmá-lo, tal é o paradoxo da regra do

60

julgamento montaigniano, cuja busca da medida ideal entre tensão e liberdade, natureza e razão, visa a saúde do juízo. A maneira como Montaigne lida com a contradição entre as diversas concepções filosóficas é reveladora de sua própria filosofia. O ceticismo de Sexto Empírico, apesar de se qualificar como pesquisa filosófica no início das Hypotyposes, acaba por se voltar contra a filosofia. A principal preocupação de Sexto, nos textos que dele nos chegaram, era combater o que entendia como dogmatismo; seu método consistia em contradizer e fazer aparecer a contradição entre as filosofias (e isso será levado a efeito até mesmo contra o ceticismo que lhe precedeu). A atitude de Montaigne, conquanto por vezes aparentemente similar, é diferente: se o ensaísta rejeita toda objetividade e realismo dos universais, e desacredita tanto os átomos de Epicuro, como as ideias de Platão e os números de Pitágoras, é porque não se convence de que eles mesmos tenham querido fechar questão: “Eles eram muito sábios para estabelecer seus artigos de fé em coisa tão incerta e discutível” (II, 12, 511). Sabiam, então, como Montaigne, que suas filosofias eram ensaios, tentativas de resolver as insolúveis questões vitais, e conheciam perfeitamente suas dificuldades. “E o mais vasto campo das repreensões dos filósofos uns contra os outros, decorre das contradições e diversidades nas quais cada um deles se acha enredado, ou de propósito para mostrar a vacilação do espírito humano em torno de qualquer matéria, ou, malgrado ele, forçado pela volubilidade e incompreensibilidade de toda matéria” (II, 12, 510).

Por isso, da discordância entre as filosofias, o ensaísta não conclui sua não-verdade; e, frente às grandes obras da antiguidade, afirma: “(...); eu acho que todos têm razão cada um por sua vez, mesmo que se contradigam” (II, 12, 570). Se isso também pode ser um motivo para desconfiar de si mesmo, como deles, não vai aí nenhuma reprovação contra a filosofia, mas uma indicação a respeito de uma maneira especial de filosofar: “Um antigo a quem se reprochava que fazia profissão da filosofia, a qual em seu julgamento ele não tinha, contudo, em grande conta, respondeu que isto era verdadeiramente filosofar” (II, 12, 511). Portanto, quando Montaigne ataca a filosofia, o faz no interesse da própria filosofia. A posição de Sexto com relação a esta é fundamentalmente diferente: “(...) o cético não vive conforme a uma doutrina filosófica (sobre este ponto ele manifesta seguramente uma inatividade filosófica), mas em tomando a experiência e a vida por guia não filosófico, (...)”

61

(Adversus Dogmaticos, 165). A divergência é clara: para Montaigne, a filosofia é a própria arte da vida: viver – é isto que ela propriamente ensina (I, 26, 163; e assim, enquanto “arte de bem viver”, não depende de nenhuma outra arte: I, 26, 168). Mas para entender a ética ensaística, a filosofia moral expressa nos Ensaios, devemos tentar compreender como Montaigne legitima sua própria escolha. Como julga e com que medida estima seus valores? Porque certamente ele julga: “Tenho minhas leis e minha corte para julgar de mim, às quais me dirijo mais que a qualquer outra parte” (III, 2, 807). Esta talvez seja a primeira vez que se apresenta a consciência moral moderna: com que direito ela julga? Antes de tudo, com isenção de todo preconceito, seja moral, religioso ou intelectual. É oportuno notar, porém, que o conhecimento não funda a moral não por seus limites próprios (na verdade, indefiníveis), mas principalmente pelo estatuto de relativismo prático da moral montaigniana, decorrente de sua ideia de natureza. O julgamento e a sabedoria são estritamente pessoais: “Os homens são diversos em gosto e em força; é preciso levá-los a seu bem segundo eles, e por caminhos diversos” (III, 12, 1052). E aceitar a diversidade, aprendendo com ela, já é uma função do julgamento são. A caracterização mais comum das transformações que sofre o conceito de natureza no Renascimento é aquela que destaca sua propensão à imanência. Compreenderemos melhor este processo se percebermos como ele implica um deslocamento na concepção de alma, que então se “encarna”15. A filosofia da natureza renascentista tende ao pampsiquismo, ao pandinamismo e ao panteísmo. Da anima, noção plurivalente (que amarra física, ética e estética), derivam as noções paralelas de paixão, afecção, ânimo, etc, que especificam as relações afetivas universais. Aqui, o cosmos é o embate e a composição,

15

Segundo Montaigne, alma e corpo formam uma unidade indissolúvel (ver, por exemplo, II, 12, 519, 520; II, 17, 639), e se “entre comunicam” suas fortunas (I, 21, 104). Como, porém, se dá esta ligação, como se realiza esta interação entre corpo e espírito, o ensaísta confessa não saber exatamente (II, 12, 539). É interessante notar como a intuição da alma encarnada, em Montaigne, é empírica: ele a procura em suas possíveis manifestações naturais; e mesmo as obscuras relações entre vida e morte poderiam, de certo modo, ser corroboradas pela observação (I, 3, 21). Mas se provam pela razão os Ensaios, não pela experiência (I, 21, 105). Ou seja, o importante aí não é que o conteúdo das referências particulares ao problema, os exemplos, sejam verídicos, mas a maneira como nos é apresentado certo naipe de possibilidades as quais, constituídas por experiências do ensaísta com a linguagem e a comunicação em geral, buscam fazer faiscar o universal no particular através do relampejante jogo das analogias. Aqui os exemplos deixam de serem modelos para se tornarem espelhos (III, 13, 1088). Justamente por isso, as analogias perdem seu caráter dogmático de fatos verídicos e de verdade dos fatos, deixando de definir a essência das coisas pela pura razão: no ensaio, na esteira do ceticismo antigo, já não se trata de demonstrar, porém de constatar as sucessões – história – mas, mais que isso, de trabalhar com as várias formas de constatação, decisão, ou certificação, e interrogá-las em si mesmas.

62

a oposição e a cópula de forças anímicas e volitivas. Sabemos o quanto há nisso de herança medieval, mas já devemos saber, também, do que até aqui foi dito, das profundas diferenças. O universo medieval é, em geral, uma estática hierarquia das animae, no qual o movimento é, exclusivamente, a busca de cada coisa de um pré-determinado lugar “natural” na economia do todo (e Dante é o melhor exemplo). No todo, o mundo é apenas uma figura do além, e organizado de fora e de cima, onde somente reencontrará sua substancialidade verdadeira. Assim, o próprio mundo se torna imaterial e espiritual. No Renascimento, e notadamente nos Ensaios, a alma se incorpora e se materializa como força e ponto de contato entre a necessidade e a liberdade do homem. A natureza não é mais, então, aquilo que resiste ao Deus, mas o próprio meio do divino. Cada vez mais encontraremos, ao longo da Renascença, um conceito de natureza baseado na intuição imediata, sensível, empírica. Para definir, nisto, a posição montaigniana podemos, inicialmente, demarcá-la segundo uma dupla diferença: primeiro, com relação ao ceticismo de Sexto, ao qual o ensaísta concederia ser impossível demonstrar o movimento, como o repouso, mas, seguiria afirmando sua experiência da variabilidade da natureza; segundo, frente à ratio natural medieval, fundada na comunicação sagrada com a natureza divina, cujo reverso perverso é colocar a natureza real, presente, mundana e humana como aquilo que deve ser vencido e abandonado. Para a lírica de Petrarca, porém, como para a filosofia de Montaigne, é o espelho vivo do eu quem fornece a medida da natureza. Pouco a pouco esta afrouxará a relação unilateral que a liga ao homem, mas pelo mesmo caminho, agora aberto, da observação direta e da percepção sensível, tal se realizará. Luta para nascer, aqui, a ideia moderna de experiência; em seu trabalho de parto unem-se teorias da arte e teorias científicas. Da “fantasia exata” de Leonardo ao idealismo matemático de Galileu, não há tanta distância como em geral se pensa: ambas as posições, são oriundas de semelhantes exigências formais em relação à experiência. Contudo, e é isso que interessa ressaltar, a primeira comporta um elemento sensível, uma disposição sensual, que talvez a segunda já não admita. Em Montaigne, a ligação da sensibilidade com o julgamento (através da imaginação) é sempre clara16. Reportemo-nos ao final da Apologia, onde o ensaísta 16

Como no latim sensus (que traduz conjuntamente sensação, pensamento e ideia) e sentire (que une as significações de sentir, pensar e julgar), senso e sentido misturam-se na língua montaigniana. Se o ensaísta põe “(...) em dúvida que o homem seja provido de todos os sentidos naturais” (II, 12, 588), isto também

63

examina a possibilidade da certeza sensível; tão importante quanto o que aí se nega – uma ciência baseada nos sentidos – é o que se afirma: “Ora todo conhecimento se encaminha em nós pelos sentidos: são nossos mestres, a grande via por onde penetra a evidência no mais próximo do coração do homem e no santuário de seu espírito (Lucrécio 5, 103). A ciência começa por eles e a eles se reduz. Afinal, nós não saberíamos mais do que uma pedra, se não soubéssemos que há som, odor, luz, sabor, medida, peso, moleza, dureza, aspereza, cor, polimento, largura, profundidade. Aí estão os alicerces a princípios de toda a construção de nossa ciência. E, segundo alguns, ciência não é outra coisa senão sentimento. Quem quer que possa obrigar-me a contradizer os sentidos, agarra-me pela garganta: ele não saberia me fazer recuar mais atrás. Os sentidos são o começo e o fim do conhecimento humano: (...). Que se lhes atribua o menos que se possa, sempre será preciso conceder-lhes isto, que por sua via e intermédio se encaminha toda nossa instrução” (II, 12, 587).

A adição tardia de Montaigne, por nós grifada, ligando ciência e sentimento, é reveladora (e marquemos que a expressão “segundo alguns” refere-se ao Theeteto de Platão). Sentir é uma condição necessária do julgamento montaigniano: o sentimento consiste em perceber tanto os pensamentos, como as modificações corporais. Em outro lugar, Montaigne diz: “Os sentidos são nossos próprios e primeiros juízes, (...). É sempre com o homem que tratamos, do qual a condição é maravilhosamente corporal” (III, 8, 930). Esta condição corporal faz com que nossos sentidos tenham “(...) todos esta potência de comandar nossa razão e nossa alma” (II, 12, 595). Nossas ideias derivam da experiência de nossos sentidos. Ora, eles nos enganam; mas, se lermos a crítica montaigniana dos sentidos na Apologia, veremos que a nota dominante é de aceitação eivada de ironia para com os filósofos desprezadores das sensações. Lá o mais importante é deixar claro que a necessidade de um critério objetivo para a ciência não pode ser satisfeita: não é possível, em função do processo imaginativo de nossa percepção, determinar sua objetividade. “Nós recebemos as coisas outras e outras, segundo como estamos e como nos parece. Ora, nosso parecer estando tão incerto e controverso, não é mais milagre se nos dizem que nós podemos reconhecer que a neve nos aparece branca, mas estabelecer se de sua essência

significa “provido de todos os sentidos que a natureza comporta”. O sentir se aplica tanto ao exterior como ao interior do homem; e o sentido é passivo e ativo. Por isso, a questão é dar medida ao espírito (III, 3, 821) em relação ao corpo; primeiro, reconhecendo a intermediação inevitável entre senso e sentido, pela qual, se não cessamos de ser subjetivamente singulares, nunca nos tornamos sujeitos puros dotados de puras inteligências, pois tal purificação nem sequer é desejável; e isto porque – segundo ponto, do qual é importante estar consciente – mesmo que fosse possível de ser realizada, esta disposição purificadora não bastaria para nos conduzir à essência das coisas: “Pois não está dito que a essência das coisas se refira somente ao homem” (II, 12, 597). Além disso, Montaigne chega a pôr em dúvida (contra Platão: II, 12, 518-519) que, mesmo após a morte, seja possível a sobrevivência isolada da “parte espiritual do homem” à qual caberia “gozar as recompensas da outra vida”.

64

e na verdade ela é tal, nós não saberíamos responder: e, este começo abalado, toda ciência do mundo se vai necessariamente por água abaixo” (II, 12, 598).

Retomando e aprofundando o antigo argumento cético do sonho (utilizado por muitos antes e depois), Montaigne mostra como as condições de nossa percepção são tais que sonho e vigília aí se confundem: “Estes que têm comparado nossa vida a um sonho, tiveram mais razão, talvez, do que pensavam. Quando sonhamos, nossa alma vive, age, exerce todas suas faculdades, nem mais nem menos que quando vela; mas mais molemente e obscuramente, não tanto com certeza que a diferença seja como da noite para uma viva claridade; mas sim, como da noite para a sombra: lá ela dorme, aqui ela cochila, mais e menos. São sempre trevas, e trevas cimérias. Nós velamos dormindo, e dormindo velamos. Eu não vejo tão claro no sonho; mas quanto ao velar, não o acho jamais bastante claro e sem névoa. Ainda o sono em sua profundidade adormece por vezes os sonhos. Mas nosso velar não é jamais tão desperto que purgue e dissipe totalmente os devaneios, que são os sonhos dos acordados, e piores que sonhos” (II, 12, 596).

As sensações e as paixões se inter-correlacionam nas afecções da imaginação: como separar, então, a aparência do objeto? “(...): são, digo eu, nossos sentidos que talham as diversas qualidades dos objetos, ou será que tais eles as têm? E sobre esta dúvida, que podemos nós resolver quanto à sua verdadeira essência?” (II, 12, 599) “Desta extrema dificuldade nasceram todas estas fantasias: que cada objeto tem em si tudo que nele achamos; que nenhum tem nada do que nele pensamos achar” (II, 12, 591). Mas, a própria imaginação, que torna a razão dependente da opinião17, é também a via do sentimento. E não podemos desprezar, nem os sentidos (quem deles se priva, priva-se de seu ser e de sua vida: II, 12, 595), nem a paixão (vento que impulsiona as velas da alma: II, 12, 567): são a matéria do juízo. E, por isso, desejar um juiz isento de afecção e sem pré-ocupação do julgamento, seria querer um “juiz que não fosse” (II, 12, 600). No universo de reciprocidades dos Ensaios é preciso mesnager sa volonté (manejar, administrar, sua vontade: III, 10, título), ou seja, saber lidar com a paixão e ter senso com os sentidos. A vontade funda as regras do dever: “(...) não há nada realmente em nosso poder senão a vontade: nela se fundam por necessidade, e se estabelecem todas as formas do dever do homem” (I, 7, 30). A moral ensaística é uma moral da intenção; seu problema maior (e resolvê-lo constitui a tarefa fundamental do julgamento) consiste em dirigir a vontade de maneira a pô-la de acordo consigo mesma no indivíduo. 17

“A razão humana é uma tintura infusa, mais ou menos na mesma proporção, a todas nossas opiniões e costumes, de qualquer forma que eles sejam: infinita em matéria, infinita em diversidade” (I, 23, 112).

65

“Em toda a antiguidade, é difícil de escolher uma dúzia de homens que tenham orientado sua vida segundo certa e segura marcha, o que é o principal objetivo da sabedoria. Pois, para compreendê-la toda em uma palavra, diz um antigo, e para enfeixar em uma todas as regras de nossa vida, é querer e não querer, sempre, a mesma coisa; não concederia, diz ele, ajuntar: contanto que a vontade seja justa; pois, se ela não é justa, é impossível que seja sempre una. De verdadeiro, de outra vez aprendi que o vício não é senão desregramento e falta de medida, e, por conseguinte, é impossível lhe aplicar a constância. E um dito de Demóstenes, diz-se, que o começo de toda virtude é reflexão e deliberação; e o fim e perfeição, constância. Se pela razão nós tomássemos certa via, a tomaríamos a mais bela; mas ninguém nisto pensou, O que quis, rejeita; quer de novo o que ainda há pouco deixou; agita-se, e com toda a ordem da vida discorda” (Horácio, Epístolas I, I, 98) (II, 2, 332-333).

Neste primeiro ensaio do segundo livro (Da inconstância de nossas ações) é evidente o processo de desenvolvimento, ou de ensaio, do pensamento montaigniano: se, quando começou a ser composto, era principalmente um elogio do ideal filosófico da constância como o caminho moral que permitiria a irresolução humana convir com a ordem do todo, em sua forma final constitui-se como afirmação da flexibilidade da natureza humana; esta pode se acordar com o todo a partir de si mesma e de seu próprio movimento. É o reconhecimento da mutabilidade da fortuna, e de que é o homem, ser de móvel parecer, quem lhe dá sentido, que permite a Montaigne elaborar uma linguagem capaz de identificar, não subjacente às mudanças, mas na mudança mesma, a “forma mestra” da personalidade (noções expostas à mesma época). Lembremos: cabe à razão a conduta de nossas inclinações, no entanto, estas são algo de anterior em nós, que alcançamos primeiro pelo sentimento: “A dor, o amor, o ódio são as primeiras coisas que sente uma criança: se, a razão sobrevindo, elas se aplicam a ela, isto é a virtude” (III, 13, 1111). Não que a capacidade de raciocínio não seja possivelmente inata, natural no homem (como, em certa medida, nos animais), mas ela se forma no tempo e pela experiência, e pode ser inclusive contrariada. Montaigne fala algumas vezes de uma razão natural comum (por exemplo: I, 16, 70; II, 1, 336; I, 26, 152), mas não define suas regras. Quando o faz é com a intenção de subverter a ideia de uma razão natural imediatamente acessível ao homem como aqui: “Chamamos contra a natureza o que acontece contra o costume: nada é senão segundo ela, o que quer que seja. Que esta razão universal e natural expulse de nós o erro e a perplexidade que a novidade nos traz” (II, 30, 713). Ora, já se viu que a razão natural é criadora, e nunca completamente determinável de antemão pelo homem. “Estes julgamentos universais que vejo tão ordinários não dizem nada. São pessoas que saúdam todo um povo em tropa e em bando. Aqueles que têm

66

verdadeiro conhecimento o saúdam e designam pelos nomes e particularmente” (III, 8, 936). No particular o universal manifesta-se ao homem. “Nós enredamos nosso pensamento no geral e nas causas e condutas universais, que se conduzem muito bem sem nós, e deixamos para trás o nosso caso e Michel, que nos toca de mais perto ainda do que o homem” (III, 9, 952). Em suma, não se trata de discursar acerca da razão natural, mas de ensaiar o acordo com esta. A exigência racional impõe-se por si mesma. Mas porque ela se aplica sobre a matéria imaginativa, e depende em sua aplicação da vontade (o abrasamento da vontade incita a razão: II, 12, 566), a razão deve se reconhecer instrumento. E é este reconhecimento, alcançado pela própria razão, que possibilita ao julgamento um distanciamento precioso com relação a seus juízos ou aos alheios. Justamente porque a razão pode entender as limitações que lhe são inerentes, torna o julgamento livre, ou capaz de escolher as formas e as ocasiões propicias de seu engajamento. Pelo direito da consciência julga a moral montaigniana, sendo, por isso mesmo, fundada na noção diretora da liberdade da vontade (reclamada por uma razão crítica). Tudo isso contribui para esclarecer a disposição da consciência ensaística: porque esta é, antes de tudo, moral, e como, para sê-lo, deve considerar a percepção, o entendimento e o julgamento por uma perspectiva marcadamente ético-estética. “(...) a maior parte das mais belas ações da alma procedem e têm necessidade desta impulsão das paixões” (II, 12, 567). Isso não significa aceitar incondicionalmente os impulsos da paixão, do instinto ou do desejo, mas compreender que não há nada de puramente corporal ou espiritual para o homem (cf. III, 5, 892; III, 10, 1007-1008). E este é um dos primeiros passos para levar natureza e razão a se inter-relacionarem de maneira adequada, regrando a fantasia, para que a vontade se torne una, concordando por si mesma com a razão natural. Não devemos nos prender, como já deixamos entrever, a definições estritas de cada um destes designativos de faculdades ou funções da alma humana, mesmo porque os conceitos montaignianos são, em geral, propositalmente polissêmicos (pois o ensaio é também um experimento com a linguagem): “Nós não sabemos distinguir as faculdades dos homens; elas têm divisões e limites difíceis de discernir e delicadas” (992). Se ainda assim insistirmos em obter pelo menos uma definição de desejo por oposição à vontade, pode-se dizer que o desejo é um impulso-afecção completamente subordinado à imaginação, e a vontade é o “lugar” onde o impulso-afecção dominante pode ser trazido à consciência, e

67

tanto sofrer a ingerência da razão, como a influenciar. Ora, nosso julgamento deve servir à busca da verdade e não ao projeto de nosso desejo (III, 10, 1013), que não sabe achar o que nos falta (II, 12, 576). Contudo, se o corpo não deve seguir seus apetites em prejuízo do espírito, este também não deve seguir os seus em prejuízo daquele (III, 5, 893). Então, para se decidir acerca dos desejos salutares (que nos põem de acordo com as leis naturais), Montaigne – à semelhança do Epicuro (Diógenes Laércio X, 149) e Sêneca (Cartas, XVI) – distingue os desejos naturais dos não-naturais (III, 10, 1009-1011) mostrando como existem dois perigos opostos para o julgamento (um, o desregramento da imaginação; outro, o costume empedernido que se quer chamar razão – por exemplo: I, 23, 116, 117), mas só uma saída: referir-se à verdade e à razão – ou à natureza. Tudo o que foi dito até aqui neste livro trata de tentar explicar como se realiza, através das contradições naturais, esta “reflexão essencial” cujo objetivo é fazer retornar cada um de nós à sua natureza própria. Uma disciplina da ação não deixa de ser, portanto, possível para o cético. Mas, guardemonos de ver, nesta possibilidade de concordância entre homem e mundo, o modelo renascentista do micro e macro cosmos em suas revoluções e relações circulares e concêntricas, acontecendo segundo uma regularidade universal do movimento: talvez, a única “universalidade” que atravessa virtualmente homem e mundo, nos Ensaios, seja a concordia discors. E é por razões vizinhas que devemos evitar tentar definir estritamente os termos montaignianos: assim, em uma página memorável (II, 12, 537), Montaigne ironiza a ideia do homem-microcosmo, como elaborada pelo alto Renascimento, e, na sequência, adverte contra as divisões imaginárias da alma humana. O mais importante nisto tudo é marcar como o julgamento deve permanecer local e contingente, pois depende do contato sensível e passional com a realidade, seguindo o tempo. “Digo mais, que nossa sabedoria mesma e deliberação seguem na maior parte das vezes a condução do acaso. Minha vontade e minha razão movem-se, tanto de uma maneira, como de outra, e há muitos destes movimentos que se governam sem mim. Minha razão tem impulsos e agitações diárias e casuais: Transformam-se as disposições das almas, e os peitos [aqui considerados como sedes da alma, do coração e do pensamento] tomam agora uns movimentos, então outros, como o vento agita as nuvens” (Virgílio, Geórgicas) (III, 8, 934).

Vontade e razão, dada a constituição sensual e relacional da percepção humana, seguem a fortuna: nosso dever não tem outra regra senão fortuita (II, 12, 578). É claro que

68

de outro ângulo, como vimos, vontade e razão são as fiandeiras da fortuna. Pois esta permanece fruto de nossas concepções, ainda que não seja em si mesma metódica (e a partir daí se move a crítica montaigniana ao método experimental científico: II, 37, 782). Se precisamos constantemente reajustar nossos juízos à realidade, o contrário também é verdadeiro. Não obstante, o ponto decisivo é marcado precisamente pela frase que se segue àquela citação: “A verdade deve ter um aspecto igual e universal”. Afirmando a legitimidade da referência ao universal ‘verdade’ ou à verdade como universal, Montaigne confirma, não a inexistência de regra para o dever, mas a devoção deste ao tempo e à situação, ou à natureza. E, assim, o ensaísta abre a possibilidade da verdade ser, e deixar de ser, no devir: se há uma lei universal, esta se edita no presente, e é em nossa vida cotidiana que nós a constatamos e confirmamos. Por exemplo, acerca da avaliação que um homem faz de seu próprio valor, está dito: “O julgamento deve em tudo manter seu direito: é razoável que ele veja neste assunto, como alhures, aquilo que a verdade lhe apresenta” (II, 17, 632). Mas é preciso, sobretudo, ter consciência de que isto não se faz sem dificuldade: “A vista de nosso julgamento se refere à verdade, como o olho da coruja ao esplendor do Sol: assim o disse Aristóteles” (II, 12, 552). Logo, mesmo asseverando, em diversas passagens (I, 9, 37; I, 26, 169; III, 1, 795; etc.), a verdade una, simples, uniforme e constante, Montaigne não nos imporá nenhuma verdade absoluta. “Ferecides, um dos sete sábios, escreveu a Tales pouco antes de expirar: Eu, disse ele, ordenei aos meus, depois que me tiverem enterrado, te levarem meus escritos: se te contentam e aos outros sábios, publica-os; se não, suprime-os; eles não contêm nenhuma certeza que a mim mesmo satisfaça. Também eu não faço profissão de saber a verdade, e de alcançá-la. Abro (J’ouvre) as coisas mais do que as descubro. O mais sábio homem que já houve, quando lhe perguntaram o que ele sabia, respondeu que sabia que não sabia nada. Ele verificava o ditado de que a maior parte do que sabemos é a menor do que ignoramos; ou seja, que isto mesmo que pensamos saber, é uma parte, e bem pequena, de nossa ignorância. Nós sabemos as coisas em sonho, diz Platão, e as ignoramos em verdade” (II, 12, 501).

J'ouvre...: notemos a ambivalência de sentido entre obrar e abrir. Ora, formamos nossa verdade pela consulta e concurso dos sentidos (II, 12, 590) através de nossa imaginação, que tanto serve de ponte como critério; aí se unem em ato o pesquisador e o mundo na sua recriação simultânea por meio da busca de conhecimento. Assim, o caminho para a verdade passa necessariamente pelo autoconhecimento. “Eu me estudo mais que qualquer outro objeto. Esta é minha metafísica, esta é minha física” (III, 13, 1072).

69

Considerar o conhecimento de si como parte integrante de qualquer tentativa de conhecimento em geral constitui uma característica fundamental do ceticismo ensaístico: “E quem não entende de si, de que pode entender? Como se pudesse empreender medir qualquer coisa, quem ignora sua própria medida (Plínio, História Natural, II, 1) (II, 12, 557)”. O ‘conhece-te a ti mesmo’, escrito na fachada do templo do “Deus da ciência e da luz” (III, 13, 1075), é uma necessidade prática que compõe uma exigência gnoseológica inescapável mesmo no domínio das ciências naturais: “Estas pessoas que se empoleiram encavaladas sobre o epiciclo de Mercúrio, que veem tão longe no céu, elas me arrancam os dentes: pois, no estudo que faço, cujo objeto é o homem, achando uma tão extrema variedade de julgamentos, um tão profundo labirinto de dificuldades umas sobre as outras, tanta diversidade e incerteza na escola mesma da sapiência, vós podeis pensar, desde que estas pessoas lá não puderem se resolver acerca do conhecimento de si mesmas e de sua própria condição, que está continuamente presente aos seus olhos que está dentro delas; desde que não sabem como se move o que elas mesmas fazem mover-se, nem como nos pintar e decifrar as forças que eles mesmos têm e manejam, como lhes iria eu dar crédito sobre a causa do fluxo e refluxo do rio Nilo” (II, 17, 634).

Temos sempre que lembrar os objetivos gerais da crítica montaigniana à ciência: primeiro, pôr em questão a concepção renascentista de ciência; segundo, e mais importante, a construção de uma filosofia moral orientada pela assunção primordial da nãoidentificação de ciência e virtude: “Eu vi, em meu tempo, cem artesãos, cem lavradores, mais sábios e mais felizes que reitores de universidade, e aos quais preferiria me assemelhar” (II, 12, 487). Por isso, Montaigne não quis faire mestier d'escrire (III, 12, 1057). “Minha arte e minha indústria têm sido empregadas em fazer valer a mim mesmo; meus estudos, a me ensinar a fazer, não a escrever. Empreguei todos os meus esforços em formar a minha vida. Eis aí o meu ofício e a minha obra. Sou menos fazedor de livros que qualquer outro trabalho” (II, 37, 784).

E daí o conteúdo dos Ensaios: “Digo pomposa e opulentamente a ignorância, e digo a ciência magra e lastimosamente; acessoriamente esta aqui e acidentalmente, aquela lá expressa e principalmente. E não trato justamente de nada que do nada, nem de nenhuma ciência que aquela da insciência” (III, 12, 1057).

No entanto, é preciso esclarecer, novamente, que não se trata de pregar o irracionalismo ou a inconsciência: ao contrário, é pelo autoconhecimento, pelo trazer à

70

consciência, que se regram nossas inclinações. O ensaio constitui-se como um rigoroso e constante exame de consciência. Para Montaigne, afirmar a “insciência” significa atentar acima de tudo à ciência do presente (I, 25, 136) – a sabedoria ou arte sem arte do viver. O julgamento são e equilibrado é aquele que pode se examinar: “Quem quer curar a ignorância, é preciso confessá-la. Íris é filha de Thaumantis. A admiração é o fundamento de toda filosofia, a investigação é o progresso, a ignorância o fim. Verdadeiramente, há certa ignorância forte e generosa que não deve nada em honra e coragem à ciência, e não há menos ciência em conceber esta ignorância que em conceber a ciência” (III, 13, 1030).

Não se trata também, certamente, de confundir estupidez e sabedoria (ver, por exemplo, III, 10, 1014), porém de entender a regra apolínea, não como mero convite à introspecção, mas muito mais como advertência: compreende tua condição humana, diz o Deus (III, 9, 1001). A autoconsciência é uma questão de método e de princípio – e assim um problema – para a filosofia moral montaigniana: “É preciso ver seu vício e o estudar para relatá-lo. Estes que o ocultam a outro, o ocultam frequentemente a si mesmos. E não o têm por bastante escondido, se o veem; eles o subtraem e disfarçam à sua própria consciência. Por que ninguém confessa seus vícios? Porque ainda agora neles está: é preciso estar acordado para narrar seus sonhos” (Sêneca, Cartas) (III, 5, 845). Entre vigília e sonho, já o vimos, não há diferença de natureza, mas apenas de grau: a consciência disso é uma das facetas do conhecer a si. No mais, é importante notar como desta maneira singular de entender o autoconhecimento provém uma definição particular do que chamamos hoje de inconsciente. Este não se encontra fechado à consciência por algum obstáculo psicológico intrínseco (apesar da dificuldade que há por vezes em observar as dobras internas do espírito), mas resulta de uma falha de comunicação: ou seja, não é o desconhecimento de si que falseia ulteriormente a relação com o mundo e os outros homens, porém, é a rigidez presunçosa com relação ao outro e aos acontecimentos, a produtora da ignorância de si. Pois nos conhecemos no mundo e em relação ao outro, e no contato temporal, circunstancial, com estes é que sabemos quem somos. Como vimos, com a intervenção da imaginação (intermediário ativo e passivo entre sensação e juízo) os movimentos internos e externos ao indivíduo nunca se tornam, para este, nitidamente distinguíveis ou completamente independentes: o conhecimento aparece, assim, como relação ambígua e ambivalente na qual nos conhecemos no mundo (“Este

71

grande mundo, (...), é o espelho onde nos devemos mirar para nos conhecermos ao justo viés”: I, 26, 157), e, a este, segundo conhecemos a nós mesmos. O que importa a Montaigne, portanto, não é conceber uma teoria do conhecimento, mas examinar suas próprias opiniões – onde se tocam o eu e o mundo. “Viver e bem me conduzir, eis aí, para mim, a ciência (Lucrécio) Ora, as minhas opiniões, eu as acho infinitamente decididas e constantes em condenar a minha insuficiência. Em verdade, este é também um assunto sobre o qual eu exerço meu julgamento mais que em qualquer outro. O mundo olha sempre face a face; quanto a mim, volto minha vista para dentro, ali a planto, e a entretenho lá. Todos olham para diante de si; eu olho para dentro de mim: não tenho o que fazer senão comigo, considero-me sem cessar, controlo-me, provo-me. Os outros, se pensarem bem nisto, sempre vão para fora, vão sempre para diante, Ninguém tenta descer em si mesmo (Pérsio), eu, porém, volvo-me a mim mesmo” (II, 17, 657).

Descer em si mesmo e se experimentar, julgando nossas fantasias segundo sua consistência e gosto (II, 12, 459), é questionar a rede de relações em que se constitui o eu, através da qualidade de sua experiência. No nível mais básico, somente o sentir tem penetração suficiente para possibilitar tal exame: “Eu não me julgo senão por verdadeiro sentimento, não por raciocínio” (III, 13, 1095). Fazer o contrário, diz a sequência desta passagem, é se arriscar a ser pressionado por imaginações sem corpo. Dito de forma esquemática: há um movimento inicial da sensibilidade neste julgar a si mesmo que não deve, por assim dizer, ser sufocado por uma racionalização desarraigada; um segundo (entendido em sentido, não necessariamente cronológico, mas lógico) movimento, entretanto, traz à consciência: “(...) quase não tenho movimento que se oculte e furte à minha razão, (...)”. A obra montaigniana faz parte de uma corrente de revalorização dos dados sensíveis. Antes da redescoberta dos textos de Sexto Empírico, a contribuição dos filósofos franciscanos – ao conferir certa preeminência ao individuum perante o universalis, rebaixando o conceito ou as ideias gerais, para reafirmar a importância da experiência sensível – parece ter sido decisiva (temos aí Roger Bacon, Ockham, Duns Scot, Rabelais). Mas, a noção de experiência, seja qual for sua fonte renascentista, sempre contém ainda sua disposição acidental muito acentuada em função do caráter inespecífico de sua forma: ela experimenta então a si mesma; seus critérios são vários e vagos. Até que a inspiração matemática de Nicolau de Cusa e Leonardo da Vinci consiga se impor, estabelecendo o padrão científico moderno, a relação intuitiva com a natureza, e o elemento de

72

incompreensibilidade e localidade no dado sensível, persistirão. Montaigne, embora evitando qualquer decreto de necessidade instituído por mão humana, bate-se por esta diversidade. Uma vez que, “O homem não pode ser senão o que é, nem imaginar senão segundo sua capacidade” (II, 12, 520), o que é propriamente seu deve ser avaliado: nisto que ele é está a natureza. “A natureza abraçou universalmente todas as suas criaturas” (II, 12, 456). Sujeito e objeto convergem e divergem continuamente no movimento da imaginação; justamente porque o julgamento está em solução de continuidade com ela, pode adquirir certo distanciamento no considerar seu jogo: examinando seus reflexos e saltos, suas apreensões e expressões, torna-se possível compreendê-la melhor. E isso se faz, não pela isenção de paixões, mas com a moderação (nascida da contemplação e afirmação dos contrários) que impede a corrupção da sede da razão sob a pressão das afecções (I, 12, 46-47). “O julgamento tem em mim um lugar magistral, ou ao menos se esforça cuidadosamente; deixa minhas inclinações seguirem sua maneira de ser, e o ódio e a amizade, e mesmo aquela que dedico a mim, sem se alterar e corromper. Se ele não pode reformar as outras partes a seu modo, ao menos não se deixa deformar por elas: ele faz seu jogo à parte” (III, 13, 1074).

Pela nossa medida própria, em nossa atitude e estilo pessoais, pela forma mestra de nossa personalidade, podemos refletir a medida e a harmonia íntimas da natureza conduzindo-o pela via verdadeiramente plena e vigorosa da saúde (III, 5, 844). A alegria intrínseca à saúde é consequência da “coligação” interativa de alma e corpo (talvez, diferentes apenas do ponto de vista da sutileza de suas substâncias na trama fechada da natureza): tal experiência baseia na consciência o ajuizar-se da salubridade de seus atos e opiniões segundo a medida de sua natureza. Sensualismo pragmático? De maneira alguma: “Para dizer a verdade, não cheguei ainda a esta perfeição de habilidade e galanteria de espírito, de confundir a razão com a injustiça, e meter em derrisão toda ordem e regra que não se acorde com minha inclinação: (...)” (III, 5, 853). Ora, para Montaigne, aquela mesma virtude, cujos sinais distintivos são o prazer e a alegria (III, 5, 845), também busca naturalmente a verdade. A partir da constatação da inexistência de um critério universal de verdade, o discurso de Sexto Empírico assumiu uma perspectiva negativa com relação à verdade filosófica. Basicamente, Montaigne concorda com a inexistência do critério, mas o que se

73

segue daí não pode ser identificado com nenhuma das concepções céticas que lhe precederam. O ensaísta esteve ocupado em construir uma filosofia moral para seu próprio uso e que pudesse também servir de referência a outros homens. E, segundo o mesmo, “O mundo não é senão uma escola de investigação” (III, 8, 928), onde o espírito generoso busca a verdade por sua força natural: “Só por fraqueza particular nos contentamos com o que outros e nós mesmos achamos nesta caça de conhecimento; um mais hábil não se contentaria. Há sempre lugar para um seguinte, sim e para nós mesmos, e rota para alhures. Não há nenhum fim em nossas investigações; nosso fim está no outro mundo. E sinal de encurtamento do espírito quando ele se contenta, ou de lassidão. Nenhum espírito generoso se detém em si: ele pretende sempre e vai além de suas forças; ele tem impulsos além de sua realidade; se ele não avança e nem se apressa e não, se acua e nem se choca, só está vivo pela metade; suas perseguições são sem termo e sem forma; seu alimento é admiração, caça, ambigüidade. E o que bem manifestava Apolo, sempre nos falando duplamente, obscuramente e obliquamente, não nos repassando, mas nos ocupando e empregando. E um movimento irregular, perpétuo, sem padrão, e sem fim. Suas invenções estimulam-se, seguem-se e se entre produzem uma à outra” (III, 13, 1068).

Note-se como este trecho está envolvido (III, 13, 1066-1070) por uma discussão acerca das dificuldades de interpretação e expressão da verdade e da virtude, do direito, do conhecimento, etc, e sobre as relações entre linguagem e realidade de modo geral. Pois, a questão primeira é: como criar um discurso moral, desde a consciência da dificuldade do estabelecimento de leis éticas (III, 13, 1070), pelo reconhecimento radical da mutabilidade da natureza e da imprevisibilidade da fortuna? “Nada de nobre se faz sem risco” (I, 24, 129). A diferença fundamental entre Sexto Empírico e Montaigne, evidente mesmo no contato mais superficial com suas obras, está na maneira como ambos usam a linguagem, estruturando seu discurso. Só chegou até nós a parte destrutiva do ceticismo de Sexto: ela dava lugar, no plano prático, a um saber técnico baseado na experiência; mas, o teorizar acerca e a partir da experiência, já não é tarefa a ser empreendida no campo de sua investigação. Assim, o médico grego nos apresenta o ceticismo como uma espécie de remédio, na forma de uma técnica verbal depurativa, cuja função, purgar os preconceitos dogmáticos, em se cumprindo suprimiria simultaneamente a si mesma. Descrevendo esta imagem em famosa passagem (II, 12, 527), Montaigne alude às dificuldades que teriam os pirrônicos em exprimir sua concepção filosófica: faltava-lhes, nos diz ele, uma nova linguagem, pois a assertividade da linguagem comum lhes era inimiga (já que toda

74

afirmação comporta uma referência do particular ao universal, mas está em dúvida a experiência humana da constituição ontológica deste). Em seguida, o ensaísta confecciona outra imagem para a mesma concepção: “Esta fantasia é mais seguramente concebida por interrogação: Que sei eu? tal como a trago na divisa de uma balança” (II, 12, 527). O ensaio é, sob certo aspecto, a criação da linguagem que faltava aos céticos pirrônicos; linguagem investigadora, de afirmações provisórias, e singular, baseada na verdade pessoal do ensaísta, tendo por fim seu aperfeiçoamento moral. E por isso, diretamente contra Sexto, nos Ensaios, o remédio é a própria filosofia: “No entanto, temos este tão doce remédio que é a filosofia: pois dos outros não se sente prazer senão após a cura, esta aqui agrada e cura ao mesmo tempo” (II, 25, 690). A filosofia ensaística considera secundário todo saber especializado e primordial o bem viver (por exemplo: I, 26, 167; II, 12, 508, 540; III, 8, 926), arte sem arte, apogeu e origem de toda arte, e sem a qual qualquer técnica ou artifício de pouco valem. Não vai aí nenhum desprezo obscurantista contra as artes e as ciências particulares (há proveito em nelas se exercitar: por exemplo, II, 12, 509), porém importa principalmente a maneira como delas nos ocupamos: “(...), e acho melhor dizer que o mal provém da maneira ruim com que se aplicam às ciências; e que, pelo modo como somos instruídos, não é de maravilhar se nem os, estudantes nem os mestres se tornem mais capazes, embora se façam mais doutos. A dizer a verdade, o cuidado e as despesas de nossos pais visam apenas mobiliar nossa cabeça com ciência; quanto ao discernimento e à virtude, poucas noticias. Gritai de um passante ao nosso povo: ‘Oh! homem sábio!’; e de um outro: ‘Oh! homem bom!’. Não faltará quem torne os olhos e o respeito para o primeiro. Faltaria um terceiro gritando: ‘Oh! cabeças pesadas!’ Gostamos de perguntar: ele sabe grego ou latim? Escreve em prosa ou em verso? Mas, se ele se tornou melhor ou mais avisado, que era o principal, isso fica para trás. Era preciso se perguntar quem sabe melhor, e não quem sabe mais” 18.

O ensaio é um instrumento do aperfeiçoamento moral montaigniano: “Sinto um proveito inesperado da publicação de meus costumes, pois isto me serve de algum modo de regra” (III, 9, 980). O ‘eu’ torna-se, nos Ensaios, sua própria obra: modelar a si é modelar o texto. E a comunicação tem, aqui, um papel regulador fundamental: mesmo que o acordo não seja medida da verdade (III, 11, 1028), a relação com o outro é parte da relação consigo mesmo. Deste modo, a verdade é o lugar ao qual deve tender naturalmente o estilo 18

Talvez fosse melhor traduzir sçavant por sabedor, ou sapiente, pois o ensaísta em geral diferencia-o do sage, o sábio; em uma palavra, e para usar uma metáfora montaigniana (III, 3, 819), o último forja sua alma, enquanto o primeiro contenta-se em mobiliá-la. A arte não é senão o controle e o registro da produção das grandes almas dos homens sábios, levada a efeito pelos sçavants (III, 3, 825).

75

ensaístico, porquanto ele é expressão e extensão de uma atitude moral, bem como meio de sua experimentação e apuro. E, desta, a melhor definição é: Je laisse faire nature (I, 24, 127); o que, como já sabemos, significa viver oportunamente ou a propósito (e nada tem a ver com o oportunismo hodierno; por exemplo: III, 1, 792-793; I, 24, 129). Certamente, isto é algo que não dispensa a arte: dela temos necessidade para talhar, segundo a medida conveniente à nossa saúde, os limites da caça à verdade e ao conhecimento (II, 12, 559). Tais limites são encontrados pela arte que nos faz livres: a filosofia. Logo, é com ela que Montaigne ocuparia um seu hipotético discípulo: “Pois me parece que as primeiras reflexões de que se lhe deve abeberar o entendimento devem ser as que regram seus costumes e seu senso, o ensinam a conhecer-se, e saber bem morrer e bem viver. Entre as artes liberais, comecemos pela arte que nos faz livres. Todas e as servem de algum modo à formação de nossa vida e a seu uso, como todas as outras coisas de algum modo servem para isso. Mas escolhamos aquela que para isso serve diretamente e profissionalmente. Se soubéssemos restringir as dependências de nossa vida a seus justos e naturais limites, acharíamos que a melhor parte das ciências que estão em uso, está fora de nosso uso; e que nestas mesmas que usamos, há extensões e profundidades inutilíssimas, que melhor faríamos em deixar lá, e, seguindo o ensinamento de Sócrates, deter o curso de nossos estudos à beira dessas, onde falta a utilidade. Ousa saber, começa: adiar a hora de bem viver é se assemelhar a um camponês que espera que o rio baixe; mas o rio corre e correrá eternamente (Horácio, Cartas)” (I, 26, 159).

A filosofia vista de certa maneira é também arte. Mas, a sabedoria, a arte da vida, por ser o grau mais elevado da arte, é natural, pois segue a natureza – grande artista e grande arte. Lidar com esta – com o movimento, a metamorfose e a fortuna – significa criar: “Nós outros naturalistas estimamos haver maior e incomparável preferência de honra na invenção do que na alegação” (III, 12, 1056). E, se há uma economia do todo e uma providência, ela permanece, e deve permanecer, obscura, sem se expor na claridade de uma ordem natural óbvia e artificial (Vitam regit fortuna, non sapientia: Cícero, Tusculanas; III, 9, 984). Por isso, Montaigne não representa a natureza, mas, ensaiando colocar-se em sintonia e sincronia com esta, cria uma ‘natureza’: os Ensaios. Nem cópia, nem primitivismo, prega o naturalismo montaigniano, porém uma ideia de invenção como expressão da natureza ou da forma mestra da personalidade: assim o tempo da frase ensaística traduz frequentemente a ideia expressa e sua construção mimética permite a Montaigne representar fisicamente seu pensamento. Este fraseado e este tempo não existiam antes dos Ensaios (Gray 1958: 94-95). Uma linguagem sincrônica permeia a disposição diacrônica do discurso adquirindo, para o ensaio, riqueza lírica inusitada.

76

Comparando a natureza a uma poesia enigmática, e a filosofia a uma poesia sofisticada (II, 12, 536), o ensaísta elabora uma prosa poética que não trata de aplicar os valores próprios da poesia à filosofia, porém cria uma poética da natureza que serve à contemplação do paralelismo interativo entre o principio criativo natural e o artístico através de sua transposição metafórica na linguagem ensaística. O ensaísta pinta com palavras: nos seus quadros, nem o mundo, nem o eu, são o que mais propriamente se torna visível, mas sua convergência no estilo ensaístico, na maneira montaigniana de entender e trabalhar a linguagem. O estilo, aí, revela um comportamento, uma atitude, um conduzir-se no cotidiano, que se reflete no discurso e vice-versa: “O verdadeiro espelho de nosso pensamento é o curso de nossas vidas” (I, 26, 168). “Quem tiver valor, que o faça aparecer em seus costumes, em seus propósitos ordinários, ao tratar do amor ou de querelas, no jogo, na cama, na mesa, na condução de seus afazeres, e na administração de sua casa” (II, 37, 784).

A própria ideia de uma linguagem pictórica já é um desenvolvimento tardio de um pensamento orientado, antes de qualquer outra coisa, para a vida pessoal. “Eu louvaria uma alma de diversos andares, capaz de se elevar e de se abaixar, que esteja bem por toda parte aonde a leve sua fortuna, que possa conversar com seu vizinho sobre a sua construção, sobre sua caçada, sobre sua demanda, e entreter com prazer um carpinteiro e um jardineiro; (...)” (III, 3, 821).

Nesta citação, além de encontrarmos mais uma observação montaigniana acerca da conduta natural da sabedoria, também podemos entrever como o ensaio desenvolve toda uma arte literária dos níveis, véus e máscaras da verdade. O moi é exibido em seus valores e julgamentos, mas não lhe é conferido nenhum privilégio em matéria de julgamento: ele desempenha o papel da modalidade do juízo no emprego modulado de sua fala. O critério formal judicativo age, assim, em função de diversos graus de verdade, determinando “em situação” a urgência e a intensidade de seu engajamento. O julgamento deve seguir a natureza; entretanto, Montaigne implode a tradicional moldura metafísica da ideia de natureza, fragmentando-a e reunindo-a para o homem somente em um nível de percepção vizinho ao furor e ao arrebatamento. Nos Ensaios, deparamo-nos com uma natureza liberada de qualquer substrato essencial, de qualquer propósito teleológico racionalmente compreensível. Já houve por isso quem a entendesse como uma anti-natureza, e seu autor como anti-humanista. No fundo, porém, trata-se de

77

uma filosofia que no humanismo teve sua origem e desenvolvimento. O maneirismo, pôde ser, tanto naturalista, como anti-naturalista, e racionalista, como místico: é neste jogo de oposições e composições que se movimenta o ensaio. No Renascimento, a imaginação era o lugar ambíguo onde a continuidade da natureza se ligava à continuidade da consciência. Para Montaigne, no entanto, aquela vive como estas na variação e no contraste: cabe regrála por um julgamento são e natural. Assim, vimos que o ensaísta não se dedica a negar dogmaticamente as leis naturais, porém a questionar nossa atitude, teórica e prática, quanto a estas. Para tanto, deixa de empregar uma linguagem estritamente representativa, do tipo que parte da certeza da apreensão da verdade e da garantia de sua comunicação, e procura uma linguagem conotativa com a qual, pela participação explicita do ‘eu’, misturando narração e reflexão, realiza uma pintura capaz de, através de sua disposição estética, ter um efeito moral pedagógico. A natureza será, então, quadro (I, 26, 157), poema (II, 12, 536), música (III, 13, 1089). E da mesma maneira que o naturalismo montaigniano não se inclina à cópia, mas à invenção, seu maneirismo pode exprimir serenidade e equilíbrio clássicos, mesmo no universo da coexistência fortuita dos contrários. Pois o ensaísta possui confiança na natureza, e a confirma pela alegria, contentamento e prazer inerentes à verdadeira virtude. Ora, se há em sua filosofia algo parecido com um critério prático universal, é este: “Deveras, ou a razão escarnece de nós, ou ela não deve visar senão nosso contentamento, e todo seu trabalho tender, Em suma, a fazer-nos bem viver, e com alegria, como diz a Santa Escritura. Todas as opiniões do mundo concordam neste ponto, que o prazer é nosso fim, conquanto se sirvam de meios diferentes; de outra maneira, seriam repelidas de entrada: pois quem escutaria aquele que estabelecesse como fim nossa pena e mal-estar? As dissensões das seitas filosóficas, neste caso, são verbais. Passemos rapidamente por tão frívolas sutilezas (Sêneca, Cartas). Há, aí, mais teimosia e picuinhas do que convém à tão santa profissão. Mas qualquer papel que o homem desempenhe, sempre joga o seu de permeio. Digam o que disserem, na própria virtude, o último alvo de nossa visada, é a volúpia. Agrada-me bater suas orelhas com esta palavra que tanto os contraria. E se ela significa algum supremo prazer e excessivo contentamento, isso se deve mais à assistência da virtude do que a qualquer outra assistência. Esta volúpia, por ser mais galharda, nervosa, robusta e viril, não será senão mais seriamente voluptuosa. E à virtude deveríamos dar o nome de prazer, mais favorável, mais doce e natural, e não de vigor, como a denominamos. Essa outra volúpia mais baixa se merecesse tão belo nome, deveria ser por concorrência, não por privilégio” (I, 20, 83).

Se lermos a sequência desta passagem, notaremos como, aqui, ao ironizar o neoestoicismo seu contemporâneo, Montaigne o faz a partir de uma ideia que não foi estranha àquele. Jogando com a noção de fim, o ensaísta reconstrói a clássica crítica epicurista ao

78

estoicismo, mas de um ponto de vista que poderia ser também facilmente assimilado a este: ora, para o sábio estoico (como em geral para os filósofos helenísticos), a finalidade, o objetivo, não está em simplesmente chegar ao fim, mas também importa, e principalmente, a maneira de alcançá-lo. Da mesma forma, o ensaísta não deixa de ser cético (e isto mostra como estas proveniências são enfim relativas) ao aceitar o critério epicurista: apenas reafirma, aí, a condição primariamente indispensável da experiência sensível e a necessidade do julgamento independente de cada situação. “O mal é para o homem bem por sua vez (Le mal est à l’homme bien à son tour). Nem da dor deve sempre fugir, nem a volúpia sempre seguir” (II, 12, 493). O prazer e a tranquilidade, atributos consubstanciais da virtude e da sabedoria, devem ser visados segundo um cálculo racional orientado, não simplesmente pelo grau de aproximação da verdade, mas também pela forma de investigála: “(...) a caça é propriamente de nossa alçada: nós não somos desculpáveis de conduzila mal ou impertinentemente; perder a presa é outra coisa. Pois nós nascemos para procurar a verdade: a uma maior potência cabe possuí-la. Ela não está, como dizia Demócrito, escondida no fundo dos abismos, mas antes elevada em altura infinita no conhecimento divino. O mundo não é senão uma escola de investigação. Não se trata de alcançar o fim, mas de fazer as corridas mais belas. Tanto pode ser tolo aquele que diz o verdadeiro, como aquele que diz o falso: (...)” (III, 8, 928).

Que se repita: segundo Montaigne, a filosofia tem por fim a virtude (I, 26, 161) – maneira excelente de agir. Mas, esta não provém do que mais comumente se entende como conhecimento ou ciência, no sentido de não poder ser obtida pelo simples “encher-se” da memória. Logo, os Ensaios não tratam de fornecer uma definição universal de virtude, e não por acaso tal termo vem à cena frequentemente em meio a desenvolvimentos de crítica linguística: pois a discussão desta ideia constitui, para o ceticismo ensaístico, o campo próprio à colocação da questão fundamental da determinabilidade discursiva da verdade e das possibilidades de sua comunicação: “A marca peculiar de nossa verdade deveria ser a mossa virtude, como ela é também a mais celeste marca e a mais difícil, e que vem a ser a mais digna produção da verdade” (II, 12, 442). A virtude procura ser verdadeira, porque busca naturalmente o acordo do dizer com o fazer (“Nenhuma virtude se acompanha de falsidade; e a verdade não é jamais matéria de erro”: II, 6, 379; II, 17, 647-648). Entretanto, justamente na tentativa de defini-la evidenciase, da maneira mais chocante, a distância entre o dito e o feito (cf. III, 13, 1069-1070),

79

porque, aqui, se confundem os domínios lógico, epistemológico, estético e ético, na interrogação primordial acerca da implicação e do abismo entre linguagem e realidade. Para o ensaísta, é em função de um uso pervertido da linguagem (que consiste principalmente em lhe conferir excessiva importância, em detrimento dos atos), sintoma da condição humana, que a virtude acaba se tornando mero jargão escolástico. Mas, apesar de seu nominalismo, Montaigne sabe que a virtude não é apenas uma palavra: “Este século no qual vivemos, ao menos em nosso clima, é tão chumbado que, nem digo a execução, mas a imaginação mesma da virtude falta; e parece que não seja outra coisa senão um jargão de colégio: Eles creem que a virtude não é sendo uma palavra, e em um bosque sagrado veem apenas madeira para queimar (Horácio, Cartas). Virtude que eles deveriam honrar mesmo quando fossem incapazes de compreendê-la (Cícero, Tusculanas). É um penduricalho bom para pendurar em um gabinete, ou à ponta da língua, como à ponta da orelha, por enfeite” (I, 37, 230).

Por isso, o ensaísta ataca os “pedagogismos” de sua época: “Recaio frequentemente neste assunto da inépcia de nossa educação: ela se propôs o fim de nos tornar, não bons e prudentes, porém sapientes: ela o conseguiu. Não nos ensinou a seguir e a abraçar a virtude e a sabedoria, mas ela nos imprimiu a derivação e a etimologia. Se a não sabemos estimar, sabemos declinar a virtude; se nós não sabemos o que é a sabedoria por obra e por experiência, sabemo-lo no jargão e de cor” (II, 17, 660).

Não se trata de falar da virtude, porém de virtuosamente falar: ela não deve ser dita, mas tomar a palavra. Forma e conteúdo devem fazer-se um, assim como pensamento e ação. Daí a advertência montaigniana para não nos preocuparmos estritamente com a forma de sua linguagem (sob o risco de se perder o sentido de suas palavras), mas com a maneira, ou seja, também com o fundo que a anima: “Sei bem, quando ouço alguém se limitar à linguagem dos Ensaios, que preferiria que se calasse. Fazê-lo não é tanto elevar as palavras, como rebaixar o sentido, (...). Voltando à virtude faladeira, não acho grande diferença entre não saber dizer senão mal, ou nada saber senão dizer bem. A afetação não é ornamento para um homem (Sêneca, Cartas). Os sábios dizem que, em relação ao saber não há senão a filosofia, e, em relação à prática, senão a virtude, que geralmente sejam convenientes a todos os graus e ordens” (I, 40, 251).

A filosofia e a virtude são, portanto, úteis a todos e possíveis nos homens de qualquer condição social. Representando a vertu o fundo e a força de nossa natureza, só na medida racional de nossa aproximação desta poderia consistir nosso aperfeiçoamento. A esse movimento são inerentes a saúde, o prazer, a alegria e a tranquilidade: porque a virtude nunca os põe como fins exteriores; erro seria reduzi-la ao gozo imediato. É porque ela se

80

contenta em si mesma (I, 39, 241) que pode julgar tendo como solo sua própria solidez moral, espécie de concordância sempre a ser reconquistada entre razão e vontade, da qual um dos nomes e condição primeira é a saúde. A forma reflete o conteúdo; o pensamento, a ação; o corpo, a alma – e vice-versa. Daí que condenar a vida consagrada ao prazer não seja necessariamente considerálo um mal. E, para o ensaísta, como para Platão, Aristóteles ou Epicuro, o prazer verdadeiro é bom por si mesmo, e um bem. Sabendo-o, Montaigne não está tão preocupado em construir uma ética hedonista, como em recuperar todo um lado da questão que concerne à experiência e à definição do bom e do bem; pois a virtude e a natureza reconciliam os contrários: “Nem a virtude assim simples, que Ariston e Pirro e ainda os estoicos faziam fim da vida, lhes pôde servir sem mistura, nem a volúpia cirenaica e aristipica” (II, 20, 673). Tudo é uma questão de medida, proporção, senso, equilíbrio e ritmo. E Montaigne tenta revalorizar a discriminação sensível na compreensão do bem e do bom, procurando reafirmar a opinião ingênua e natural de que aquilo que faz bem, pelo menos em algum sentido, é bom, e vice-versa. A afirmação do prazer como um bem corre paralela à confiança montaigniana na natureza, cujo motor é uma apreciação positiva da vida que o ensaísta busca reconstituir, e a qual se nos tornou estranha. O sentido próprio da virtude antiga sofre um obscurecimento que principia já na Antiguidade: a identificação de ciência e virtude gera, paradoxalmente, um desgaste e enfraquecimento de seu sentido próprio e originário, acabando por desembocar em uma cisão definitiva entre ‘bem’ e ‘bom’; pois, só em função de uma pretensa completa inteligibilidade da virtude, pode-se definir o dever sem relação com o agradável. Isolando-se o bem “em pensamento”, permite-se a qualificação ética à parte de suas implicações fisiológicas e estéticas. Há aqui uma espécie de armadilha lógica que se arma quando a lógica procura se sobrepor a vida; mas não é esta enfim sua tarefa? E aí está a aporia. Como a gramática com a linguagem, o método na busca de conhecimento, o sistema como caminho de estruturação do pensamento, etc. – e daí o problema da relação entre razão e natureza, ou de sua interação e distinção simultâneas. Quando Montaigne procura recobrar a unidade harmônica da antiga virtude, somente como tarefa de reunião do que se tornou contraditório, adverso e fragmentado, pôde esta se apresentar (e, seguramente, tanto as transformações políticas do período

81

helenístico, como os atos de constituição do indivíduo e estado modernos, ensaiados desde o Renascimento, têm muito a ver com isso). E, no momento em que começam a ser produzidas as condições para o nascimento da moderna tecnologia, urge distinguir desta o verdadeiro conhecimento: ao intuito de possibilitar seu reconhecimento serve o ensaio, o qual, na experiência, forma o julgamento; o objetivo é a harmonia do homem consigo mesmo e com a natureza que Montaigne chama sabedoria. “Gostaria de dizer-lhes que o fruto da experiência de um cirurgião não é a história de suas práticas, e lembrar que curou quatro pestilentos e três gotosos, se ele não sabe deste uso tirar algo com que formar seu julgamento, e se não sabe nos fazer sentir que se tenha tornado mais sábio com o uso de sua arte. Como, em um concerto de instrumentos, não se ouve um alaúde, uma espineta e a flauta, mas uma harmonia em globo, reunião e fruto de todo este conjunto” (III, 8, 931).

O mais importante com relação à ciência é o uso que dela se faz – “Toda outra ciência é prejudicial àquele que não tem a ciência da bondade” (I, 25, 141) –, e nenhum momento mais oportuno do que hoje para dizê-lo. Porquanto, para nós, muito mais do que fora para o ensaísta, tornou-se vital renovar a busca do antigo ideal da harmonia. Seu primeiro passo, como já se assinalou, é o conhecimento de nossa própria condição: “Poderiam ter-me por sábio, mas em tal condição de sabedoria que eu teria por tolice” (III, 5, 847). É esta disposição que nos predispõe ao aprendizado da virtude: antes de tudo uma atitude a ser, diariamente, além de reaprendida, reconquistada. Do verdadeiro conhecimento, como do prazer supremo, não há memória – trata-se de algo que só no presente se ganha ou se perde, e depende de nosso esforço e exercício contínuos. Por isso, o fim deste trabalho, obra de formação e construção de si mesmo e do mundo, é prosseguir (III, 13, 1112), pois tem a extensão do tempo de todos os dias.

*

*

*

82

BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA AUERBACH, E. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 1987. BARAZ, M. L'être et la conaissance selon Montaigne. Tolouse: J. Corti, 1968. BLUM, C. e MOREAU, F., Eds. Études Montaignistes. Paris: H. Champion, 1984. BURCKHARDT, J. A cultura do Renascimento na Itália. Trad. de S. Tellaroli. São Paulo: Schwarcz, 1990. CARRAUD, V. e MARION, J. -L., Eds. Montaigne : scepticisme, métaphysique, théologie. Paris : PUF, 2004. CASSIRER, E. Individuum und Kosmos in der Philosophie der Renaissance. Hamburg: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1994. CONCHE, M. Montaigne et Ia philosophie. Limoges: Mégare, 1987. DIAS, J. S. Os descobrimentos e a problemática cultural do século XVI. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1973. EHRLICH, H. Montaigne: la critique et le langue. Paris: Klincksieck, 1972. FEBVRE, L. Le probleme de l'incroyance au XVI siécle. Paris: A. Michel, 1968. FRAME, D. Montaigne's Essais: a study. Englewood: Prentice-Hall, 1969. FRIEDRICH, H. Montaigne. Bern: Francke, 1993. GRAY, F. Le style de Montaigne. Paris: Nizet, 1958. HAUSER, A. Maneirismo. Trad. de J. Guinsburg e M. França. São Paulo: Perspectiva, 1976. HEGEL, G. W. Verhältnis dos Skeptizismus zur Philosophie, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970 HUIZINGA, J. L’automne du Moyen Age. Trad. de J. Bastin. Paris: Payot, 1975. LANGER, U., Ed. The Cambridge companion to Montaigne. Cambridge: Cambridge U. P., 2005. LANSON, G. Les Essais de Montaigne. Paris: Mellotée, 1958. LEAKE, Roy E. Concordance des Essais de Montaigne. Geneve: Droz, 1981. LESTRINGANT, F. Le Brésil de Montaigne. Paris: Chandeigne, 2005. MONTAIGNE, M. de. Les Essais. Ed. Villey-Saulnier. Paris: PUF, 1988. ---------------------. Seleta dos Ensaios de Montaigne, Rio de Janeiro: José Olympio, 1961. Trad. de J.M. de Toledo Malta. NAKAM, G. Montaigne et son temps. Paris: Gallimard, 1993. NOVAES, A., Ed., A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. PANOFSKY, E. Idea. Columbia: University of South Carolina Press, 1968. ----------------------. Renaissance and Renascences in Western Art. New York: HarperCollins Publishers, 1969. PAYEN, J.C. Les origines de la Renaissance. Paris: Societé d'édition d'enseignement superior, 1969. POPKIN, R.H. The history of scepticism from Erasmus to Spinoza. Los Angeles: University of California Press, 1979. STAROBINSKY, J. Montaigne en mouvement. Paris: Gallimard, 1982. TODOROV, T. Montaigne ou la découverte de l’individu. Tournai: La Renaissance du Livre, 2001.

83

APÊNDICE

O primeiro capítulo dos Ensaios

Amo a modéstia; e não foi por meu alvitre que escolhi esta sorte de falar escandaloso: foi a Natureza que o escolheu para mim (III, 5, 889).

Voicy mes leçons. Celuy-là y a mieux proffité, qui les fait, que qui les sçait. Si vous le voyez, vous l'oyez; si vous l'oyez, vous le voyez (I, 26, 167).

A palavra é metade de quem fala, metade de quem escuta (III, 13, 1088).

84

Para que se possa compreender melhor tudo o que foi dito, impõe-se uma análise mais profunda da maneira montaigniana de investigar e expor ou, se assim se quiser, do seu método: o ensaio. É o que se pretende no texto deste apêndice. Trata-se do resultado, em primeiro lugar, de uma exigência de meu orientador de mestrado, Gerd Alberto Bornheim, que em determinado momento pensou ser necessária uma interpretação ou um comentário corrido de algum capítulo dos Ensaios: fechando a dissertação, este serviria como exemplo do funcionamento in loco do método montaigniano, bem como daria, mais que qualquer outra forma de conclusão, o melhor acabamento ao trabalho – uma exposição sintética dos resultados de minha pesquisa servindo como demonstração da força analítica da metodologia aí empregada. Foi o que tentei fazer. E anos depois, remanejado, ampliado e traduzido, foi publicado pelo Bulletin de la Societé des Amis de Montaigne (8ª série, nº 3738, jan.-jun. 2005, p. 15-30). O republico agora – apenas um pouco modificado – pela primeira vez em língua brasileira, com a licença da Société Internationale des Amis de Montaigne.

*

*

*

Tomemos o primeiro ensaio ('Por meios diversos chega-se ao mesmo fim'): este não por acaso é a porta de entrada dos Ensaios, sendo consenso mais ou menos geral entre seus intérpretes considerá-lo como uma espécie de introdução19. Tendo sido notavelmente enriquecido de edição em edição, e sabendo-se que este provavelmente não foi o primeiro capítulo a ser escrito20, parece correto acreditar encontrar aí apresentadas ideias

19

Por exemplo: segundo Donald Frame (Montaigne’s Essais: a study. Englewood: Prentice-Hall, 1969, p.75), este capítulo seria uma introdução “natural” ao livro I e aos dois livros da edição de 1580; para Hélène-Hedy Ehrlich (Montaigne: la critique et le langue. Paris: Klincksieck, 1972, p. 31) uma introdução ao conjunto dos Ensaios; os quais David Quint (Montaigne and the quality of Mercy. Princeton: Princeton University Press, 1998, p. xi) lê como um extenso comentário do primeiro ensaio; que, segundo Lawrence D. Kritzman (Destruction/Découverte: le fonctionnement de la rhétorique dans les Essais de Montaigne. Lexington: French Forum Publishers, 1980, p. 21), serviria de modelo temático nuclear inicial aos Ensaios; e para Edwin M. Duval (“Le début des Essais et la fin d’un livre”, Revue d’histoire littéraire de la France, nº 5, set.-oct. 1988, p. 900), uma introdução “no sentido estrito do termo” para a edição de 1580. No mesmo sentido, ver também Barbara C. Bowen (The age of bluff, Chicago: University of Illinois Press, 1972, p. 128 e seq.) e Lino Pertile (“L’esordio di Montaigne”, Rivista di letterature moderne e comparate, nº 25, 1972). 20 Ver a introdução ao primeiro ensaio na edição de referência Villey-Saulnier (Paris: PUF, 1988, p. 7). Cf. também de Villey, Les sources et l’évolution des Essais de Montaigne, Paris: Hachette, 1933, vol. I, p. 348.

85

primordiais, que Montaigne julgava fundamentais e indispensáveis à compreensão de sua obra. A interpretação aqui elaborada pretende confirmar esta inferência. Mesmo desde a época em que a opinião dominante sobre os ensaios iniciais limitava-se a lhes atribuir pouca importância, o primeiro dentre estes foi estudado com resultados preciosos. E meu trabalho aqui deve muito às interpretações anteriores, sobre as quais me apoio para abrir caminho em direção a uma nova leitura deste capítulo decisivo. Com efeito, este texto poderia ser comparado à abertura de uma ópera, na qual a maior parte dos elementos ou tópicos a serem desenvolvidos já está presente21. O peso das noções ensaiadas neste primeiro capítulo pode ser ainda aferido pela frequência com que marcam sua presença, e por seu posicionamento estratégico, ao longo dos Ensaios. Não só o primeiro ensaio do segundo livro, porém a própria edição de 1580 (fim do ensaio 37 do livro II), fecha-se sobre matéria semelhante: a dificuldade de julgar a diversidade, contrariedade e inconstância dos atos e opiniões humanas a partir de normas gerais fixas. Além disso, muitas outras passagens, e mesmo capítulos inteiros, têm origem na mesma matriz temática, que é sempre recorrente na filosofia ensaística22. Seguindo de perto a argumentação deste primeiro ensaio, veremos como ele já nos apresenta desde o inicio as grandes linhas da obra, colocando-nos em contato com um novo uso da linguagem ao construir um texto de significação multifacetada e “pluriarticulada”, onde as ideias e sua composição formal completam-se e se auxiliam, perfazendo uma unidade complexa que se desenvolve em um movimento singularíssimo de desdobramentos inesperados.

*

*

*

A questão capital deste ensaio, enunciada no seu título, se concretiza no primeiro parágrafo na dupla proposição posta em jogo: existem duas maneiras de amolecer o 21

Anthony Wilden (“Par divers moyens on arrive à pareille fin: a reading of Montaigne”, Modern Language Notes, vol. 83, 1968, p. 597) chega a dizer que o título da “novel” montaigniana é aquele do primeiro ensaio. E de forma semelhante Michael L. Hall (“Diverse ways: Montaigne’s Ethos and the Rhetoric of Indirection”, Montaigne Studies, vol. XIV, nº 1-2, 2002, p. 73) pensa que, sob um certo aspecto, Montaigne tenta em sua obra demonstrar o que é sugerido no capítulo inicial. 22 Por exemplo, Ann Hartle (“Montaigne and skepticism”, In The Cambridge companion to Montaigne, ed. Ulrich Langer, Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 196-198) vê ainda o primeiro capítulo do terceiro livro partilhando da semelhança assinalada entre os capítulos dos dois primeiros livros por desenvolver um procedimento dialético que será aqui também notado como essencial.

86

coração daqueles que querem de nós se vingar (se é o caso de terem a nós e, portanto, “a vingança, em mãos”); a mais comum é comovê-los pela nossa submissão, inspirando-lhes piedade; no entanto, a bravura e a constância, meios totalmente opostos, operam por vezes o mesmo efeito. O ensaísta começa ilustrando as possíveis atitudes. Seguem-se três exemplos nos quais a virtude, com seu brilho estonteante e sua atração simpática exercida sobre aqueles que participam de seu movimento, salva da vingança. Primeiro dois exemplos que pintam a virtude segundo a acepção mais corrente na mentalidade da nobreza francesa da época – a valentia guerreira – levada ao extremo – o coração heroico que não pode ser vencido. O terceiro exemplo, porém, se destaca, pois não houve lá, nem submissão completa, nem desafio ofensivo, muito embora tenha havido bravura, constância e piedade. Tendo sitiado e forçado à rendição a cidade de Weinsberg em 1140, o imperador Conrado III perdoa somente as mulheres nobres com um salvo-conduto que lhes permitia levar com elas o que pudessem carregar sobre seus ombros; estas decidem então assim carregar seus maridos, seus filhos e mesmo seu governante, o Duque; amolecem desta forma a alma do imperador e obtém seu perdão. O “coração magnânimo” das gentils-femmes (“cavalheiras”, mulheres-nobres) da Baviera, a singularidade desta virtude feminina que não se reduz a mera castidade23, interessa também por romper com o código estoico de conduta militar que alguns creram ler na primeira edição dos Ensaios. Temos aí um excelente exemplo da maneira como o pensamento montaigniano procede por desdobramento do que está presente em germe desde a sua forma primeira: este terceiro exemplo já comporta algo que permitirá de ir além da questão posta no começo. Montaigne, então, em uma adição aparentemente digressiva, examina a si mesmo frente aos dois meios retratados e conclui que se deixaria levar facilmente, tanto por um, como por outro, mas ainda mais naturalmente pela compassion24 do que pela estimation. Nesta primeira adição feita na edição de 1588, vê-se ainda que Montaigne não se posiciona 23

Em geral a única qualidade moral profana atribuída à mulher pela mentalidade medieval mais comum. Esta virtude feminina descrita neste exemplo – a um só tempo amorosa e guerreira – constituía um tópos retórico privilegiado na união dos contrários característica da filosofia moral montaigniana cuja referência mais marcante encontra-se na evocação da figura de Bradamante no De L’Institution des Enfans (I, 26, 162); cf. Carol Clark, “Bradamante, Angelica and the eroticizing of Virtue in Montaigne’s Late Writing ”, Montaigne Studies, vol. VIII, nº 1-2, 1996. 24 Montaigne – a quem a compaixão era natural (III, 13, 1100) – critica, aqui, não só o estoicismo, mas um de seus mestres: Sêneca. É Villey (edição dos Ensaios, p. 1275) quem esclarece: “Não encontrei nenhuma influência do De Clementia de Sêneca: para Sêneca a compaixão é um vício; para Montaigne, é a essência da bondade natural, (...)”.

87

somente no ponto de vista do vencido, mas também no do vencedor. E, no final do parágrafo, a referência ao estoicismo alude à noção de “paixão” (passion), pedra de toque para as filosofias helenística e renascentista e conceito central para a concepção estrutural e formal do ensaio – é sobre o fundo de compreensão principalmente desta ideia, ou no seu ensaio, que os quatro primeiros capítulos parecem ter sido construídos. Na sequência imediata do texto, o autor declara: “Estes exemplos me parecem muito a propósito, porque neles se vê essas almas assaltadas e postas à prova (essayés) por estes dois meios, em sustentar um sem se abalar e curvar sob o outro”. Deixa, assim, claro desde já um dos sentidos mais fortes de ‘ensaio’: a alma, ou a personalidade, experimentada pelas afecções que a perpassam. Os Ensaios procuram pintar e compreender este movimento, pois depende da natureza de quem é afetado, e da qualidade da paixão que o afeta, a reação a certa situação ou determinado ato. Assim, prossegue Montaigne, a compaixão surge mais frequentemente no coração das naturezas mais fracas (como as das mulheres e crianças) e do vulgo. Ao contrário, a alma que desdenha choros e súplicas e só se rende à reverência diante da “santa imagem da virtude” é uma alma forte, nobre, viril. Notemos a ironia característica de Montaigne: ele, aqui, coloca a si mesmo – desde que se define como homem de natural compassivo – entre as naturezas fracas ou vulgares. Essa ironia é um elemento constante na retórica ensaística; desta maneira, o ensaísta denota o apreço e o respeito do qual era alvo, na época, por parte de seus contemporâneos, demonstrando confiança de ser compreendido em uma argúcia de estilo que, como bem se sabe, possui um teor metodológico. Outro ponto digno de atenção: como Montaigne desde o início colocou-se no papel de juiz da atitude daquele que pede piedade, é ele mesmo um vencedor que perdoa e, portanto, segundo seus próprios termos até aqui, um fraco-forte ou vice-versa. Retornemos ao terceiro exemplo: este possui uma coloração diferente dos anteriores e dos que se seguirão. As mulheres, aí, não exibem qualidades guerreiras ou determinação agressiva, porém, mesmo com sua “fraca alma”, fazem sua virtude aparecer de tal modo que até a “alma forte”, por natureza pouco propensa à piedade, rompe em pranto. Note-se a descrição da emoção do algoz: ele é tomado de “grande prazer” ao contemplar a “gentileza [= nobreza] da coragem” das mulheres da cidade vencida. Não se trata da simples oposição de um exemplo aos anteriores. Por meio dele, Montaigne flexibiliza sua posição, alarga seu

88

horizonte de análise: estuda, ensaia. Trabalha de maneira absolutamente única na história da filosofia, colocando em cena motivos, afecções e determinações ímpares, ações e reações de uma qualidade toda especial, que apontam para o potencial oculto e mutante do homem. E é o que há de insuspeito e imprevisível nos indivíduos e nos eventos – em si mesmos resultantes do cruzamento de uma multiplicidade móvel de relações complexas entre ser e não-ser se desdobrando em diversos níveis – que exige esta maneira tão singular de filosofar: sabe-se bem aí que, nem o autor, nem nós, leitores, estamos isolados, postados em lugares neutros, como sentinelas que pudessem observar de fora esta configuração instável de forças que chamamos natureza; e que, dada tal condição, o único meio de aprender, com esta e nesta, é tomando consciência da interação entre os seres, da dinâmica participação universal cujo nome é justamente “natureza”. A invenção do ensaio permite a Montaigne estar simultaneamente dentro e fora disto que se experimenta, permite circular em meio às diversas possibilidades de subjetivação e objetivação, através de uma nova utilização da linguagem que combina diacronia e sincronia, narração e reflexão. Por esta via, o ensaio será a escritura que se dobra sobre si mesma para se reinventar sem cessar. É assim que já parece haver no terceiro exemplo, pela sua ambiguidade mesma, um tom de passagem que prepara a seguinte inversão completa da questão. Nos primeiros dois exemplos, aquele do príncipe Eduardo e o outro de Scanderberg, a virtude reconhece a virtude: trata-se da admiração (estimation) ou a estima do alto valor. No terceiro exemplo, temos a compaixão, porém de um tipo todo especial, partindo da alma “que tem em afecção e honra um vigor másculo” pela virtude feminina a qual, de certa forma, é tão dúbia como dupla, pois tanto se submete (ao decreto do vencedor), quanto é constante e brava (afrontando sua cólera com temperança e sagacidade), preenchendo as duas possibilidades enunciadas no primeiro parágrafo do texto. Mas é no quarto exemplo que encontramos a primeira contraposição virtual face ao real problema do capítulo que só agora começa a ser visível em sua real envergadura: como prova o comportamento do povo de Tebas libertando Epaminondas, também o vulgo (ou seja, as “almas menos generosas”) é capaz do espanto, admiração e perdão perante a “altura” (hautesse) da coragem que o desafia. Frustra-se, portanto, quem esperava de Montaigne algo como uma declaração conclusiva acerca de semelhantes que se atraem e se reconhecem, que levasse a uma apologia da virtude nobre e santa e, por conseguinte, a alguma regra de conduta que estabelecesse, por

89

exemplo, que se deva implorar ao povo e ser bravo face à nobreza. E esta desilusão é um dos efeitos mais constantes da pedagogia ensaística. A verdadeira intenção de Montaigne no tratamento do tema somente no quarto exemplo se deixa perceber, ao mesmo tempo em que se revela a originalidade de seu procedimento: é como se ele preparasse uma armadilha didática para a possível vaidade e presunção de seus leitores. O efeito é de um dar-se conta que faz a atenção do leitor então retroagir ao sub-repticiamente antes afirmado e que só agora pode ser compreendido em sua integralidade. Ao ser surpreendido no beco sem saída do falso problema até o qual foi guiado (em parte, por si mesmo), o leitor é forçado a reexaminar a questão e a si: muitos caminhos, nos Ensaios, conduzem até espelhos – e, através destes, a passagens secretas que conduzem a saídas inesperadas, janelas para novos horizontes. Vejamos, agora, como Montaigne empreenderá os ataques finais contra a “santa imagem da virtude”. No primeiro, aponta a alma de um rei insensível à virtude que mesmo seus soldados podem reconhecer. Porém, o personagem é Dionísio, o Velho (o mesmo que vendeu Platão como escravo25), ele mesmo de duvidosa virtude, não sendo, por isso, um exemplo característico de “alma forte”. Segue-se a famosa passagem: “[A] Certes, c'est un subject merveilleusement vain, divers, et ondoyant, que l'homme. Il est malaisé d'y fonder jugement constant et uniforme” 26.

O homem é vário no julgar e difícil de ser julgado... O cético não conclui de forma definitiva: ele persiste na investigação. Há, aqui, uma espécie de andante dramatúrgico, que trabalha abertamente com nossa percepção de um ponto de vista estético, jogando com nossas afecções27: caminhamos, pode-se pressentir, para um desfecho dramático. O último exemplo é decisivo; ele segue “directment contre” os primeiros: mostranos Alexandre, “o mais corajoso dos homens e tão clemente ao vencidos”, exercendo livremente sua cólera e crueldade contra, precisamente, a virtude combativa e corajosa que 25

Diógenes Laércio, III, 19; Ensaios, III, 7, 920. “Certamente, sujeito prodigiosamente vão, diverso e ondulante é o homem. Difícil é fundar sobre ele juízo constante e uniforme” (I, 1, 9). 27 Montaigne, como Petrônio e outros, compara o mundo a um teatro (III, 10, 1011), e louva seu papel na educação e nos costumes em geral (I, 26, I76-177). No mais, é preciso lembrar também que dramaturgos como Webster, Marston e Shakespeare usaram expressões e textos dos Ensaios em suas peças. 26

90

ele mesmo possuía em alto grau, e a qual, nos dois episódios narrados, não foi suficiente para lhe provocar empatia, solidariedade, admiração ou compaixão. Mas não se trata aqui de simplesmente condenar a atitude cruel de um tirano (ainda que tal seja o caso); é bom marcar que tal mancha na reputação de Alexandre, o Grande, não será suficiente para Montaigne o rebaixar da condição de ser um dos três “homens mais excelentes” 28. Parece claro que está em jogo, não expor uma verdade absoluta, mas uma relativa e circunstancial. E isso é tanto mais evidente se notamos que as dificuldades de fundar um julgamento preciso e definitivo no âmbito do que é humano retornam sobre si mesmas, mantendo a discussão em aberto. Ela permanece simplesmente dada porque a tarefa de discerni-la nitidamente, através de seu ensaio (que é, aí mesmo, ensaio da natureza do autor e de seus leitores) constitui o fim e a origem, a matéria e a forma deste capítulo. Os temas que orientam seu desenvolvimento (que são, aqui, somente aflorados) extrapolam este enquadramento e transbordam para os capítulos seguintes, bem como refluem daqueles para este, traçando as diversas linhas de pesquisa dos Ensaios. Devemos apreciar atentamente a condução da argumentação em um texto que demandou vinte anos para tomar seu presente aspecto: o ensaísta põe um problema e duas maneiras de encará-lo; adianta certos exemplos que inclinam nosso olhar para um dos lados, lidando com nossos preconceitos através de uma ironia velada e, súbito, tira-nos o chão com contra exemplos, fechando o caminho para qualquer dos lados e nos forçando a alcançar uma perspectiva mais abrangente, elevada e aberta; sua ‘não-conclusão’ (“Certamente, sujeito prodigiosamente vão...”) efetua, como em uma peça teatral ou poética, o reconhecimento parcial do verdadeiro problema, preparação para que este, no 28

Essais, II, 36: note-se que este texto, o último na sequência, é cronologicamente o primeiro, uma vez que o exemplo de Alexandre em I, 1 é apresentado somente na edição de 1588. Notemos também que a próxima ocorrência do nome do conquistador nesta segunda edição (I, 6, 29), coloca na boca “deste grande Alexandre” uma citação de Quinto-Cúrcio que cabe muito bem, ainda que em sentido contrário, para o tema do primeiro ensaio: “Prefiro ter que me lamentar da fortuna do que me envergonhar de minha vitória”. Talvez para compreender a atitude de Montaigne diante de Alexandre, seria preciso se lembrar que para o ensaísta a personalidade de cada um de nós consiste em um todo complexo em que a paixão, a razão, o vício, a virtude, etc., coabitam; e esta qualidade inconstante e contraditória de nossa humanidade se encontra por vezes realçada nas almas extraordinárias da Antiguidade (dado o vigor de seu espírito: I, 49, 299), capazes simultaneamente de grandes bens como de grandes males. Com relação ao Alexandre de Montaigne, ver James J. Supple, “Vices and Virtues: Montaigne and Alexander”, Montaigne Studies, vol. XIV, nº 1-2, 2002. Não resisto, por fim, a levantar a hipótese de que Montaigne (cuja filosofia moral é profundamente influenciada por Aristóteles) esboça nisto uma crítica implícita à pedagogia aristotélica visando sua principal produção, Alexandre, a partir da ideia (que se encontra já em Petrarca e é clássica no humanismo) da insuficiência de uma ética que apenas defina logicamente o bem sem convocar retórica e praticamente para ele.

91

final, se mostre inteiramente. O texto nos coloca, assim, diante de um conjunto de problemas: exibe a inconstância humana e seu julgamento impossível e imprevisível; mostra-nos a contradição entre nossas convicções morais ou ideológicas e a realidade observada; leva-nos a considerar o inesperado nos eventos e nas reações humanas, apontando para os móveis meios e resultados não previamente, ou mesmo posteriormente, discerníveis de nossas ações (assinalando, aí, de passagem, o que chamamos hoje de dimensão inconsciente da alma humana) 29. No último trecho do ensaio (produto da última fase da obra montaigniana) assistimos o próprio vulgo, antes aparentemente menosprezado, encarnando a virtude que o que grande Alexandre decide passar pelo fio da espada. As ações do homem não são previsíveis, pois seu julgamento varia: logo, não é possível saber com certeza que conduta – se um dia estivermos à mercê do inimigo – seria a mais eficaz. Se insistirmos em obter uma resposta direta e simples a tal problema prático proposto pelo primeiro capítulo dos Ensaios, poderemos encontrá-la (e posta, aliás, de maneira profundamente significativa), não aqui, mas na frase final de outro ensaio deste mesmo livro (I, 15, 69): “Assim, sobretudo é preciso se guardar, se possível, de cair nas mãos de um juiz inimigo, vitorioso e armado”.

*

*

*

Dito isso, vamos examinar o texto mais de perto.

29

Há aqui evidentemente forte influência da ironia e da maiêutica socráticas, como notou HéleneHedy Ehrlich (op. cit., p. 33) em sua esclarecedora interpretação do primeiro ensaio. O método “(...) consiste em avançar um argumento para refutá-lo em seguida – método no qual se inspirou Pascal e também a pedagogia jesuíta no jogo do pro et contra. A complexidade da questão se descobre a medida que o jogo de contrastes prossegue” (ibid., p. 35). O melhor lugar dos Ensaios para observá-lo é na Apologia (II, 12), onde sofre particular radicalização: voir Fabienne Pomel, “La fonction critique de l’ironie dans l’Apologie de Raimond Sebond”, Bulletin de la Societé des Amis de Montaigne, série 7, n. 35-36, 1994. O ensaísta experimenta colocar-se de maneira a permitir a compreensão de realidades e possibilidades nas coisas, em si mesmo e nos outros que os preconceitos próprios e coletivos bloqueavam. O mais interessante neste procedimento é seu aspecto relacional: o conhecimento de si passa necessariamente pelo conhecimento do outro. Fechar os olhos para si é fechar os olhos para o mundo, e vice-versa. Não se trata de ensinar diretamente, mas de partilhar a natureza essencial (no sentido de um “próprio” que nos une a todos, por caminhos diversos, na condição humana) do autor, do leitor e, por consequência, do homem. A virtude, assim, não é exclusividade dos nobres, e estes não são tão virtuosos como se imagina: para o humanista a verdadeira nobreza é aquela do espírito.

92

É significativa, nas antíteses postas neste primeiro ensaio, a repetição de palavras como toutesfois, quelquefois, peuvent: elas assinalam a passagem da reflexão acerca da universalidade de uma máxima à singularidade dos exemplos históricos 30. Só se conhece a ação humana no caso singular: o padrão formal haurido da analogia com outras ações não dá conta de suas condições e razões particulares. Mas atenção: isto não quer dizer que recusar toda forma de generalização, de referência ou modelo, seja a intenção primeira ou última do autor. Trata-se de examinar, experimentar, ensaiar. Ora este verbo – essayer – destaca-se no capítulo em questão: primeiro tomado na sua acepção mais larga (tentar) é empregado no segundo exemplo em uma construção participial que permite a Montaigne combinar vários planos de ação31: “Scanderberch, (...) suyvant un soldat des siens pour le tuer, et ce soldat ayant essayé, par toute espece d'humilité et de supplication, de l'appaiser, se resolut à toute extrémité de l'attendre l'espée au poing” (I, 1, 7).

Em seguida, é inserido em um jogo fonético (“assaillies et essayés”) que lhe confere o tom violento próprio ao verbo contíguo: “(…) d'autant qu'on voit ces ames assaillies et essayées par ces deux moyens, en soustenir l'un sans s'esbranler, et courber sous l'autre” (I, 1, 8).

Estas são ocorrências que já o texto da primeira edição dos Ensaios trazia. Na sua primeira versão, esse capítulo poderia ser lido como um elogio estoico à coragem, bela mesmo quando, no desenrolar dos acontecimentos, se revela impotente. Esta impotência, tanto quanto a verdadeira vitória conquistada pelo valor daquele guerreiro que mesmo a iminência da morte não detém, encontrarão expressão no último emprego do verbo “ensaiar” neste capítulo: “Nul ne fut veu si abatu de blessures qui n'essaiast en son dernier soupir de se venger encores, et à tout les armes du desespoir consoler sa mort en la mort de quelque ennemi” (I, 1, 10).

30

Hugo Friedrich, Montaigne, Paris: Gallimard, 1968, p.159; Karlheinz Stierle, “L’histoire comme exemple, l’exemple comme histoire”, Poétique 10, 1972, (IV). 31 Floyd Gray, Le style de Montaigne, Paris: Nizet, 1958, p. 55.

93

O brilho desta virtude que não pode ser domada, um dos assuntos principais deste ensaio, continuará a sê-lo da obra como um todo, mesmo se prevalece cada vez mais o tom próprio a Montaigne de uma contemplação serena da trágica condição humana. Consideremos agora as adições da edição de 1588: a primeira (logo após o terceiro exemplo), importantíssima, testemunha um dos momentos da progressiva “personalização” dos Ensaios, marcando a crítica montaigniana da postura estoica. A segunda (o exemplo da conduta de Alexandre em relação a Bétis) realça a incerteza da relação entre os motivos e o caráter de um homem e seus atos (a respeito dos quais o ensaísta suspenderá seu juízo até a última redação do texto). A realidade do ato não pode ser rigidamente interpretada segundo os princípios de alguma moral, mas apenas ser constatada. O homem pode agir, tanto por uma causa, como por outra (e nem ele mesmo pode, boa parte das vezes, reconduzir seus atos aos seus motivos virtuais): nossos prognósticos não esgotam sua imprevisibilidade, nossos julgamentos não o conseguem enquadrar ou resolver. Em 1588, o ensaio acabavase, então, em um problema. A audácia nascida do desespero, ou a coragem que se sustenta até o fim, na situação-limite em que o inimigo nos tem à sua mercê, possui utilidade incerta desde a primeira edição. Mas, lá, ela ainda poderia parecer provável: na nova versão, o julgamento aprofunda-se na aporia. As mudanças que Montaigne traz ao texto em seus últimos anos desembocam, entretanto, em uma meditação acerca do caráter trágico do heroísmo e da ineficácia da grandeza estoica; e o silêncio do narrador-juiz no fim do ensaio ressoará de maneira ainda mais significativa32. Notemos como certa rigidez retórica, presente na primeira edição, se suaviza nos detalhes das modificações estilísticas e na variação dos procedimentos discursivos. Razões estéticas presidem alterações de ritmo e de termos; elas são determinadas, por sua vez, pelas mesmas diretrizes filosóficas que misturam, aí, narração e 32

É um desenvolvimento do que lá se encontrava desde o começo (ver G. A. Pérouse, “Le seuil des Essais”, in Claude Blum et François Moreau (org.), Études Montaignistes. H. Champion: Paris, 1984, p. 215221). As modificações sofridas pelo ideal de sabedoria são paralelas ao desenvolvimento de ensaio ele mesmo no correr do tempo. Nos primeiros capítulos – que “puent un peu à l’étranger” (III, 5, 875) – o sábio estóico, modelo inculcado por sua educação, serve de referência (jamais de maneira estrita, porém, pois que Montaigne já se permite objeções ao estoicismo). Mas a subversão geral dos valores normativos levada a efeito no ensaio acarreta a redefinição de seus próprios parâmetros e ideais. Veja-se que de um ponto de vista histórico, como notou muito bem Geralde Nakam (Montaigne: la manière et la matière. Paris: Klincksieck, 1991, p. 170), esta evolução exprime também a angústia de Montaigne diante da escalada de um perigo: a tirania. Aliás, toda subversão epistemológica, ética e estética empreendida nos Ensaios tem por um de seus alvos mais importantes a questão da atitude conveniente frente à autoridade (e suas consequências) – questão crucial para a época.

94

reflexão; e o ensaio em tela reteve em seu tecido as três conclusões que, ao longo do tempo, lhe deu Montaigne, retratando o movimento de seu julgamento e, por ele, a natureza da “forma mestra” de sua personalidade; em sua sucessão e construção quase musicais, temos excelente introdução à arte poética da filosofia ensaística.

*

*

*

Se o assunto do ensaio é o homem, sua forma reflete a tendência humanista de renovação da linguagem. É preciso ver, no entanto, como o pensamento montaigniano opera uma revolução dentro do humanismo: “Há nos objetos que se manejam partes secretas e imprevisíveis, notadamente, na natureza dos homens, condições mudas, sem mostra, desconhecidas por vezes pelo possuidor mesmo, que se manifestam e despertam por causas sobrevindas” (III, 2, 814).

O título do primeiro capítulo é um “lugar-comum” humanista, enunciando ao mesmo tempo o tema do ensaio e uma espécie de provérbio útil (espécie de guia de conduta). Ora, como se sabe, studia humanitatis é o interesse pelo estudo de gramática, retórica, poesia, história e filosofia, que caminha a par com a renovação da compreensão da Antiguidade. Um humanista é, de forma geral, um homem preocupado com as maneiras de usar a linguagem e de viver – e as implicações entre uma coisa e outra. No alto Renascimento – sob o impacto fascinante da verdadeira amplitude do saber antigo – muitas vezes serão confundidas sabedoria, eloquência e mera repetição dos autores antigos. O colégio em que Montaigne estudou a partir dos seis anos era dedicado à tarefa de ensinar o latim; visava-se a assimilação do estilo e do espírito dos Antigos. Para tanto, a técnica pedagógica central envolvia o uso de cadernos de anotações conhecidos como “livros de lugares-comuns” nos quais o vasto corpo da literatura antiga era gradualmente posto à disposição, filtrada e organizadamente. O lugar-comum servia assim de fio condutor, tanto para a escrita, como para a vida. É uma hipótese plausível a de que o ensaísta tenha composto os Ensaios com a ajuda de seus próprios cadernos de lugares-comuns33. No entanto, seu autor emprega suas 33

Roger Trinquet (La jeunesse de Montaigne. Paris: Nizet, 1972, p. 29, n. 84) pensa que o primeiro ensaio é um resultado bem característico deste procedimento. A forma primeira dos Ensaios seria, pois,

95

anotações menos como recurso mnemônico do que como instrumento de um pensamento no qual teoria e ação, arte e vida, ética e estética não cessam de interagir. “Por caminhos diversos chega-se ao mesmo fim” (Par divers moyens on arrive a pareille fin): porém, no final, Montaigne terá demonstrado que não só por meios opostos chegamos ao mesmo fim, mas também que a fins diversos por meios idênticos somos levados. O ensaísta subverte, assim, o lugar-comum em virtude de uma maneira de argumentar que lhe era peculiar. O texto trabalha com a justaposição de oposições sucedendo-se desde o título (onde “divers” significa mais “opostos” do que simplesmente “diferentes”), arguindo “de ambos os lados” ou “em ambos os sentidos”, in utramque partem34. O resultado final é a transformação, no ensaio, deste instrumento do ceticismo acadêmico no de um ceticismo ainda mais radical, e que possibilita a Montaigne reformular o programa humanista de educação. A inconclusividade e a suspensão do julgamento em muitos dos primeiros ensaios resulta da característica original do modo in utramque partem de raciocínio, cuja principal serventia consistia em ensinar a aplicar normas relativas à conduta humana em situações particulares; metamorfoseando-o, Montaigne irá, em vez de construir lugares-comuns, destruí-los. Em síntese, o ensaísta transforma um instrumento de estabelecimento e exploração de verdades, em uma maneira de procurar a verdade. De forma semelhante ao que fez com o estoicismo, o movimento de crítica e aprofundamento simultâneos que perfaz o ensaio, remodela o ceticismo para fazer deste um instrumento de pesquisa – e assim, ao mesmo tempo em que o reconstrói, o reconduz a sua forma originária. Mas, para além da recepção do ceticismo antigo, há muito mais na criação e aperfeiçoamento do ensaio. Pois este, fundindo diversas correntes de pensamento (como acontece com a retórica humanista em geral) na fundação de um novo método para a filosofia moral, recebe a influência de vários outros saberes, matrizes teóricas e formas culturais; por exemplo, história e poesia, direito e medicina. O ensaio apresenta um caráter investigativo e experimental tal que, dados obtidos como em um processo, tratados como tributária de um gênero de escritos largamente difundido desde a baixa Antiguidade, encadeando citações segundo temas ou palavras-chave – os testimonia (Carlo Ginzburg, Occhiacci di legno, Milan: Giangiacomo Feltrinelli ed., 1998, chap. 4, 1; ver também Pierre Villey, Les sources & l’évolution des Essais de Montaigne, Paris: Hachette, 1933; E. Auerbach, Mimesis, Berna: A. Francke, 1946; Terence C. Cave, The cornucopian text, Oxford: Oxford University Press, 1979). 34 Sobre os loci communes e o modo de argumentação in utramque partem, sua origem aristotélica, sua história, sua voga na Renascença, sua assimilação e transformação por Montaigne, ver Zachary S. Shiffman, “Montaigne and the rise of skepticism in early modern Europe: a reappraisal”, Journal of the History of Ideas, oct.-déc. 1984, vol. XLV, nº 4, p. 163.

96

testemunhos e evidências, são confrontados com os de uma anamnese terapêutica, em uma rapsódia polifônica na qual epistemologia, ética, fisiologia e estética não se separam. O ceticismo ensaístico não permanece encerrado em si mesmo. Criando uma forma de filosofar cujo fim, de certa forma, está nela mesmo, ou em sua própria evolução, mas que precisamente por isso não se fecha sobre si, Montaigne empreende a construção e exposição de um método que permite fazer convergir o conhecimento e a virtude, a busca da verdade e a busca da felicidade. Pondo em questão nossa relação com o mundo – nossa relação com o outro, com a alteridade e alternância, tanto fora, como em nós –, o ensaio é um meio de experimentação e aperfeiçoamento de nossa conduta e personalidade por meio da dúvida. Tal como a verdade não pode ser concebida como simples adequação do discurso aos fatos, a ideia da ação correta, do bem viver que nos levaria à felicidade, tornase problemática, desde que, não apenas a conexão de nossa razão com qualquer razão universal, mas as noções mesmas de razão e universal, de “eu” e mundo, são aí desconstruídas. Sujeitos e objetos dobram-se e se desdobram multiplicando-se ao infinito a partir das inúmeras perspectivas pelas quais apenas se constituem. Faltam os padrões que poderiam servir como critérios ou referências seguras para se julgar da aproximação da verdade porque falta a percepção da verdade ela mesma: e assim muito frequentemente a verdade não se encontra por meio da verossimilhança35. Acreditar nisto seria já partir de algum esquema metafísico pressuposto ou implícito. E mesmo que existisse tal esquema que organizasse os seres em relações ontológicas necessárias, em uma ordem natural das coisas, o homem não disporia de nenhuma garantia de algum critério que lhe assegurasse a compreensão definitiva. “Não temos nenhuma comunicação com o ser, (...)”

36.

O cético

ensaísta – aquele que continua sem cessar a experimentar, a buscar a verdade, e deste modo a se exercitar e amadurecer – não afirma ou nega de maneira definitiva (ou afirma e nega diversas vezes em ocasiões diferentes, o que dá no mesmo) a existência de uma ordem 35

É interessante encontrar no Tristam Shandy de Lawrence Sterne precisamente esta afirmação – ‘La Vraisemblance (as Bayle says in the affair of Liceti) n’est pas tousjours du Côté de la Verité’ (em francês no original: R. M. Hutchins (ed.), Great Books of the Western World, Chicago: Encyclopaedia Britannica Inc., 1952, vol. 36, p. 349) – logo após uma citação de Montaigne. Mas a desconfiança deste em relação ao critério de verossimilhança nada tem a ver com o recusá-la em favor de uma evidência absoluta exclusiva, que negasse todo grau intermediário de certeza entre o verdadeiro e o falso – como o fará, por exemplo, Descartes (Discours de la méthode, Paris, Vrin, 1938, p. 50-51). 36 II, 12, 601. A maneira mais fácil de se desviar de tal ordem universal (abstração feita da questão de sua existência ou configuração) seria crer que nós já a compreendemos: nos Ensaios, a presunção é sempre o grande inimigo. Ver Celso M. Azar Filho, “Montaigne et la justice universelle”, Bulletin de la Société des Amis de Montaigne, 8a. série, nº 21-22, jan.-jun 2001.

97

universal: ele explora suas possibilidades, pesquisa, e nesta pesquisa mesma ensaia criá-la, ensaiando viver de maneira feliz, adequada, harmoniosa, prazerosa, sábia, virtuosa, etc. – em se formando assim, consequentemente, a si mesmo. Esta atitude poderia ser descrita como resultado de um desenvolvimento particular do método dos lugares comuns. Este, procurando delinear as ideias fundamentais que organizam a realidade pelo estabelecer de suas referências cruzadas, tenta restabelecer sobre o papel os modelos da trama natural que constitui e sustenta o universo 37. Aplica-se a tornar, mais que compreensíveis, visíveis, legíveis, as relações mais ou menos sutis que atravessam todas as coisas; como se os seres e os eventos fossem apenas os nós, os pontos de entrelaçamento de linhas de força irradiadas por formas ideais que não pairam mais além das coisas, mas que devem ser reveladas em suas interações, a partir de simpatias e antipatias, humores, arrebatamentos, afecções, influências, virtudes, etc. Em reação a estes esforços renascentistas de confecção dos mapas normativos dos sentidos do ser, na tentativa de revelar uma gramática cósmica, Montaigne acentua sua inerente – histórica – tendência à imanência e rompe com os enquadramentos ideais, realçando o movimento, a multiplicidade, a metamorfose, a instabilidade, em uma palavra, o balanço perpétuo de toda existência. Todo saber absoluto é recusado, porque é percebido como arrogância intelectual cuja condição está em uma compreensão superficial da realidade e uma atitude mecânica ou rígida, desequilibrada e desajeitada, frente à vida. A esta, como à natureza, deve-se tomar por guia, diz o cético, e não querer lhe ensinar sua própria lição. Assim todo pressuposto metafísico é rejeitado na busca de uma metafísica mais fundamental – ou mais bem fundamentada. Esta, por constituir – enquanto experimentar da própria potência vital em suas potencialidades éticas – a fonte e a visada, o solo e o horizonte, o lugar próprio e originário de todo discurso que busca a verdade, não mais poderá ser simples ou levianamente enunciada. Pois se trata de procurar a verdade não só por meio da linguagem, mas na linguagem; o que obriga o ensaísta a retornar a fonte mesma de sua autenticidade – nossa humanidade, com todas as questões que tal conceito suscitava e ainda suscita, para renová-la no frescor das formas restauradoras do dizer verdadeiro. Das suas possibilidades dinâmicas de estruturação surge e se constrói o sentido da existência do homem: descrever 37

Este procedimento forma, aliás, a base conceitual do método indutivo que caracteriza a ciência moderna: cf. Ann Blair, “Humanist Methods in Natural Philosophy : the Commonplace Book”, Journal of the History of Ideas, out.-dez. 1992, vol. LIII, nº 4.

98

o mundo e a si é descrever a conexão, desimpedir e abrir canais de comunicação, ensaiar os nexos que determinam a condição humana. A mais célebre passagem do capítulo estudado apresenta uma conclusão que reflui sobre si mesma: “Certamente, sujeito prodigiosamente vão, diverso e ondulante é o homem. Difícil é fundar sobre ele juízo constante e uniforme”. Como a natureza, o homem é diverso e cambiante, renovando-se constantemente em si mesmo: a natureza humana, por ser fundamentalmente mutante, não permite julgamentos definitivos. E tal conclusão possui um duplo sentido que lhe é natural: se o homem não pode ser julgado de maneira definitiva é porque não pode julgar definitivamente; não é possível estabelecer um juízo firme, único, homogêneo, nem sobre ele, nem, por assim dizer, a partir dele, ou seja, partindo de qualquer perspectiva humana. Daí outra fórmula que parece a melhor para ilustrar o procedimento montaigniano de definição (cuja principal característica é a de unir sem contradição aspectos positivos e negativos) da natureza humana: “Nascemos para procurar a verdade” (III, 8, 928). Como nota P. Villey (ibid., nota 3), isto significa que “nossa natureza é procurar a verdade”. È como se aquilo que Montaigne dá com uma mão, ele tirasse com a outra, sem que se anulasse a positividade da proposição: de um lado, só procura alguma quem considera que esta exista, e o ceticismo montaigniano engaja-se na “caça da verdade” (II, 12, 507); de outro, o homem não é o ser que detém o conhecimento (ou que se define por sua posse), mas aquele que o busca, e nesta busca se constitui como ser, fazendo desta parte de sua natureza: “Não há desejo mais natural que o desejo de conhecimento”

38.

Como bem viu Hugo Friedrich, em sua análise do primeiro ensaio,

“Estudar o homem, para Montaigne, é reconduzi-lo ao seu mistério”

39.

Buscar o

conhecimento é, para o homem, buscar a si mesmo.

*

*

*

O procedimento discursivo que une o positivo e o negativo nas asserções montaignianas é certamente aparentado ao método socrático. Seguindo esta via o ensaio vai

38 39

III, 13, 1065: como se sabe, uma tradução da primeira frase da Metafísica de Aristóteles. Montaigne. Paris: Gallimard, 1968, p. 163.

99

se tornar a “nova linguagem”

40

que faltava aos céticos antigos: esta não será mais pura e

simplesmente dogmática ou cética, mas se constituirá como experiência das possibilidades de verdade por meio da experimentação constante de si mesma, sabendo-se simultaneamente arquiteta, guardiã e transmissora de sentido. Que sei eu? A escrita dos Ensaios procura se ligar estreitamente à vida, dedicando-se a uma meditação constante acerca da interação entre pensamento e ação, e à abertura do filosofar para o viver. E mais além, figurando em seu corpo tal intenção. Assim o ensaio será também – e talvez principalmente – uma solução para o problema do exame e representação das relações entre prática e teoria no domínio ético: o estilo montaigniano apresenta, em sua disposição estética própria, uma espécie de mediação linguística entre a vida e a filosofia. Pela tentativa de exprimir a coexistência e conexão dos contrários 41 em sua dialética dinâmica, trata de aperfeiçoar nossa capacidade de compreensão de nós mesmos, da realidade e nosso lugar nesta. Desta forma a expressão e a compreensão auxiliam-se mutuamente em um processo de feedback, de retroalimentação, no qual frequentemente a escrita conduz e realiza o pensamento por interferência reflexiva da teoria e da prática no espelho linguístico. Em sua força literária, o desenvolvimento do texto subverte as generalidades normativas lógicas, e amiúde os próprios pontos de vista nos quais parecia se apoiar, para se reconciliar com a realidade em um nível mais profundo de apreensão e exposição desta e de suas perspectivas. Que se repita: os Ensaios realizam algo de único em toda a história do pensamento ocidental com a capacidade – graças à maestria filosófica e artística de seu projeto e realização – de trazer os movimentos das coisas para o interior do discurso, de fazer do ensaio uma passagem para o mundo, recriando-o pela palavra. Tornando-se um medium metamórfico entre o pensamento e o real, a filosofia ensaística chegará a tocar mistérios vitais indiscerníveis para o logicismo ingênuo tão em voga à época (e que constitui uma das grandes pragas filosóficas de todos os tempos). 40

II, 12, 527. Para uma análise mais detalhada da relação metodológica entre o pensamento montaigniano, socrático e cético, ver Celso M. Azar Filho, “Montaigne e Sócrates: cepticismo, conhecimento e virtude”, Revista Portuguesa de Filosofia, tomo LVIII, 4, 2002. 41 O melhor exemplo desta dialética singular é a célebre divisa citada acima – “Que sei eu?” – enunciada no centro da importante passagem sobre o ceticismo lembrada na nota precedente. Esta constitui uma modificação do “só sei que nada sei” socrático e da profissão cética do não-saber, propondo uma atitude de dúvida que, ao contrário de todo obscurantismo, pretende justamente servir de estimulante à pesquisa. Convém notar como o ensaísta une aqui a ironia de uma pretensa depreciação de todo saber, com a interrogação que leva ao exame do que realmente se sabe – questionamento cuja finalidade é se preparar para partir em busca do que é preciso com a consciência já voltada para o que se pode e deve saber.

100

O primeiro ensaio é tão importante pelo que diz quanto pelo que cala – como é geralmente o caso na filosofia montaigniana; o não-dito ele mesmo sendo sempre aí bastante significativo. Assim, Montaigne não se detém na mera contemplação do caráter trágico da existência, evidenciado no problema moral que surge no final deste capítulo: faz deste o prelúdio de uma extensa pesquisa, que ele continuará até o fim de sua vida, sobre a maneira correta de agir. Nesta caça à sabedoria e à verdade – do mesmo modo que na caça ao amor, em uma erótica da verdade ou do verdadeiro prazer – o importante é a forma, a maneira, e não somente o fim42. Mas os aspectos artísticos da forma ensaística não têm por razão qualquer veleidade literária: uma intenção filosófica profunda os anima. Tentando discernir de uma vista mais elevada as frequentes contradições nas decisões e ações humanas, o ensaísta volta-se para a consideração dos indivíduos em suas situações particulares, fundando a percepção propriamente moderna da condição humana. Os silêncios de Montaigne anunciam uma nova forma de pensar que, muito além de pretender enunciar as leis universais da natureza, preocupa-se em saber como as encarnar em seu comportamento para poder compreendê-las, não apenas em seu intelecto, mas também em seu corpo e alma; em uma palavra, com todo seu ser, e da única maneira possível – sendo. Reciprocamente, se Montaigne é um artista, ele o é na medida em que é filósofo. Em seu livro, os personagens, as narrações, as lembranças, etc., não são senão os nós, os cruzamentos de linhas de força conceituais, consubstanciação dramatúrgica, pictórica, das ideias – são estas que importam, mas não como formas universais pré-concebidas, derivadas de um sistema qualquer ao qual seria necessário se conformar. Novamente: o ensaio não é somente um modo de expressão, é também um meio de pesquisa. O que faz com que o primeiro ensaio se cale diante da figura de Alexandre, é o se interrogar constantemente diante do que é o humano, interrogação que está na origem do humanismo assim como o espanto diante da realidade gera a investigação filosófica. As palavras e as coisas conectam-se no pensamento, e é esta conexão que lhes atribui sentido segundo a ocasião. Conceitos, personagens, ações são tomadas e avaliadas de maneira diversa ao longo das páginas dos Ensaios; pois tão importantes quanto as ideias tomadas isoladamente, talvez mais, são os numerosos fios que as ligam em uma trama filosófica cuja coerência e envergadura permanecem normalmente invisíveis em um primeiro tempo, 42

Ver, por exemplo: II, 12, 507; 510; 559; III, 8, 928; 13, 1068; sobre a erótica: II, 11, 430; III, 5, 881.

101

por vezes provavelmente para o ensaísta ele mesmo: corrente abissal do pensamento que revela indireta e inconscientemente a economia subjacente das interações entre o balouçar universal e as possibilidades da vida humana e de sua compreensão.

*

*

*

Empenhando-se em inscrever tal pesquisa na linguagem dos Ensaios, seu autor procura atingir uma espécie de acordo harmônico entre sua natureza interior e o mundo, e daí tirar um guia de conduta. A mistura de estilos, formas e gêneros literários que Montaigne realiza em seu livro – baixo/elevado, trágico/cômico, prosa/poesia, etc. –, claramente perceptível desde o primeiro ensaio, corresponde a uma combinação de maneiras de agir aparentemente disparatadas, que tem por fim uma convergência e uma remodelagem das diretrizes morais em uma atitude mais equilibrada e consistente. Este bricolage de disposições estilísticas e opções éticas à primeira vista contraditórias visa também um efeito pedagógico. Examinando e experimentando em si as ações e reações adequadas, refletindo em sua pessoa, na pintura de si mesmo, a justaposição de diferentes circunstâncias possíveis sob ângulos diversos, o ensaísta arrasta consigo seu leitor. E não por acaso o primeiro ensaio foi lido como uma metáfora da confrontação não exatamente, ou apenas, de inimigos (como indica o texto), mas de autor e leitor, evocando as possibilidades de persuasão e resistência inerentes a ambas as situações 43. No ensaio da união e interação dos estilos reflete-se o problema ético basilar da atitude e da atuação corretas – ou da virtude – como reconciliação complexa de elementos diversos e mesmo contrários, de forma a sublinhar a interferência, a confusão, a fluidez, dos limites entre vício e virtude e, por extensão, entre o se elevar e se abaixar na formação e na direção dos espíritos, segundo sua consubstancialidade com o corpo e sua ligação intrínseca com a alteridade ou com a coletividade humana. Ora, a virtude é relacional: ela se realiza na relação com o outro e a sociedade, com o mundo, a fortuna e a divindade, em um contraponto em que se desenha a linha melódica de nossa vida. O “eu” não é senão um efeito de superfície dos diferentes encontros e cruzamentos, um espelhar entre nós e as coisas. Montaigne utiliza a linguagem como um instrumento de seu aprimoramento 43

Robert D. Cottrell, “Croisement chiamastique dans le premier essai de Montaigne”, Bulletin de la Societé des Amis de Montaigne, 6ª série, nº 11-12, 1982 (jul.-dez).

102

espiritual, como um meio de, por assim dizer, refletir sobre a reflexão, de pensar as possibilidades de toda subjetividade segundo sua interação com os eventos, de maneira a reunir e despertar no caleidoscópio da consciência a percepção da plural realidade interior, flutuando com as correntes e marés do ser.

*

*

*

Em conclusão, é preciso recusar de uma vez por todas a leitura que apresenta a filosofia dos Ensaios como expressão de um solipsismo cético simplista. Este desprezo sempre reiterado, que geralmente cita o primeiro ensaio como exemplo de um impasse gnoseológico ou ético, procede de uma má-vontade histórica – resultado de preconceitos intelectuais, políticos, religiosos e outros – com relação ao pensamento renascentista como um todo. O fato é que precisamente a marca distintiva deste – a correlação estreita entre forma e fundo, repousando sobre a exigência fundamental de interação entre teoria e prática – não somente não foi jamais admitida pela história da filosofia ocidental como um de seus momentos decisivos, mas foi mesmo amiúde considerada uma espécie de desvio. Aos olhos de Montaigne, a virtude e o conhecimento devem ser tornados indissociáveis, e é sua integração que normalmente significa no Renascimento o tão presente termo “sabedoria”

44;

que se mostra, em primeiro lugar, no

reconhecimento da impossibilidade de possuir ou mesmo de se definir de uma vez por todas a virtude ou a conhecimento. O ensaísta vê no ceticismo um meio de busca da verdadeira ciência; e no ensaio a forma própria de uma tentativa de superar a ignorância, a finitude humana, a partir de si mesmo, de sua consciência singular, esforçando-se para que as mesmas forças, as mesmas leis que governam todas as coisas, e também o nosso ser, governem o discurso e por este meio nosso entendimento45. O cético renascentista desconfia antes de tudo da presunção ingênua com relação ao saber: a inabilidade do caçador que, para retomar a metáfora da caça, não contente de perder a presa, perseguindo44

Apesar de uma leitura frequentemente errônea da apologia montaigniana da ‘inscience’ (III, 12, 1057 C), não se pode confundir ‘stupidité’ (III, 10, 1014 B) e sabedoria: “Voire dea, il y a quelque ignorance forte et genereuse qui ne doit rien en honneur et en courage à la science, ignorance pour laquelle concevoir il n’y a pas moins de science que pour concevoir la science” (III, 11, 1030 BC). 45 Note-se o sentido de “razão” ou “raciocínio” conferido ao termo “discours” nos Ensaios – duplo sentido que se encontra então em diversas línguas vulgares (no português clássico ou, ainda em nossos dias, no italiano) e que é frequente nos grandes textos da época (por exemplo, no Dom Quijote).

103

a de maneira estúpida, apaga sua pista, confundindo todos os outros que também a buscam. Seu elogio da inocência e da ignorância está ligado à recusa da crueldade e da presunção, procedendo da percepção da interdependência universal – a qual lhe ensina a se manter pacientemente à escuta, na tocaia: o caçador sabe enfim que caça a si mesmo – a presa que se debate na armadilha é o homem.

*

*

*

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.