A FILOSOFIA DO DIREITO CONTEMPORÂNEA E A SOCIEDADE CIVIL-BURGUESA EM FACE DO DEBATE COM A FILOSOFIA HEGELIANA: HABERMAS, LUHMANN E LUKÁCS

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REVISTA CRÍTICA DO DIREITO Só leia se estiver seguro para abandonar o conforto de suas certezas

ISSN 2236-5141 QUALIS B1

NÚMERO 4 - VOLUME 63

Manifestação pelos 43 estudantes mexicanos assassinados, com forte suspeita de envolvimento policial

06 de outubro a 1o. de dezembro de 2014

FICHA CATALOGRÁFICA

Revista Crítica do Direito nº 1, vol. 9 São Paulo, 2011 Mensal ISSN 2236-5141 QUALIS B1 Vários editores 1. Teoria do Direito - produção científica CDD 341.1 Índice para catálogo sistemático 1. Teoria do direito 341

EDITOR RESPONSÁVEL Vinícius Magalhães Pinheiro CONSELHO EDITORIAL Alysson Leandro Barbate Mascaro Daniel Francisco Nagao Menezes Júlio da Silveira Moreira Roberta Ibañez Thiago Ferreira Lion Tiago Freitas Vinicius Magalhães Pinheiro

Sumário

EDITORIAL ....................................................................................................................................4 O CONCEITO DE MULHER NO DIREITO: ANÁLISE CRÍTICA DA LINGUAGEM JURÍDICA E SEU IMPACTO NA CONFORMAÇÃO DOS SUJEITOS DE DIREITO ..........................................................5 DEFINIÇÃO E NATUREZA JURÍDICA DO PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE ..........................................17 A FILOSOFIA DO DIREITO CONTEMPORÂNEA E A SOCIEDADE CIVIL-BURGUESA EM FACE DO DEBATE COM A FILOSOFIA HEGELIANA: HABERMAS, LUHMANN E LUKÁCS ..............................26 A VIOLAÇÃO DE NORMAS PÁTRIAS EM NOME DOS DIREITOS HUMANOS: UMA LEITURA DO CASO EDWARD SNOWDEN. ........................................................................................................50 A CONDIÇÃO HUMANA E O RESPEITO À DIGNIDADE NA PROTEÇÃO DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE SAUDÁVEL PREVISTO PELO ARTIGO 225 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL .....................62 A DIVERSIDADE COMO SINTAXE JURÍDICA DE SUPERAÇÃO DA IGUALDADE FORMAL. Interfaces Críticas entre Direito e Sexualidade. ..........................................................................................74 LEON TROTSKY E O DIREITO .....................................................................................................104

EDITORIAL A Revista Crítica do Direito publica sua 63ª edição dando continuidade aos seus objetivos de aglutinar e publicar o pensamento crítico sobre o direito e a sociedade – cuja necessidade continua evidente diante da situação política do país. Apresentamos uma novidade nesta edição. Agora, além dos link´s para os artigos, o leitor ainda possui a opção de baixar o arquivo no formato ".pdf", podendo fazer, com mais precisão, uso da revista em referências bibliográficas. Passado o período das eleições, resta claro que se tentou mais uma vez iludir o povo brasileiro com toda a parafernália ideológica de “festa da democracia” – feita a partir de mercadorias políticas (promessas trabalhadas numa lógica de mercado tentando comprar o eleitorconsumidor a partir de sua sensibilidade imediata - afinal, é o marketing eleitoral e os compromissos com os financiadores que define os resultados das eleições). Nenhuma discussão sobre os grandes problemas do país, como a concentração da terra e a dependência do sistema financeiro. Nesse jogo, muitos iludidos embarcam na onda do “voto útil”, na escolha do “menos pior”, crentes de que são eles – e não as máfias - legais ou ilegais, locais ou internacionais - que decidem o processo. A nova composição do Congresso Nacional – reacionária como nunca não demonstra verdadeiramente uma “derrota do movimento popular”, demonstra apenas o quanto corrupta, podre e pró-fascista é essa estrutura de poder, e o quanto o povo não deve jamais se iludir com ela. O segundo turno mostrou algo mais, ao colocar a opção entre Dilma e Aécio. Pois foi adicionado um novo ingrediente ao carácter plebiscitário – aquele em que o eleitor votaria sim à reeleição de Dilma se estivesse satisfeito e não se não estivesse satisfeito. Pois, a contar pelo índice de rejeição de Dilma antes de desatar o processo eleitoral, ao ritmo das Manifestações de Junho de 2013, seria evidente - se houvesse democracia – que esse governo não passaria. Mas, ao surgir como única alternativa – dentro do mesmo saco de farinha – uma saída à direita, o público votante, em vez de assumir uma opção em escolher um candidato, escolheu qual candidato rejeitar com maior veemência – deixando manifestar aí, é claro, as posições de classe existentes na sociedade. Diante do contexto eleitoral, é evidente que a sociedade brasileira está mais polarizada. Com a onda de fascistização, a polarização se concretiza entre quem apoia o fascismo – que não aparece dessa forma na consciência social, mas sim como racismo, preconceito, ódio aos pobres, dentro de uma reafirmação de uma posição de classe burguesa ou pequeno-burguesa amedrontada pela crise e que teme perder sua posição e não mede consequências para protegê-la – e quem repudia esse fascismo. Porém, na lógica da “democracia da urna eletrônica”, o repúdio ao fascismo implica um silenciamento para todas as políticas igualmente anti-povo e repressivas que têm sido aplicadas pelo mesmo Estado nos últimos 12 anos, durante as gerências petistas. Mas, como “tudo que é sólido se desmancha no ar”, essa democracia não resiste a um dia sequer ao seguir tais políticas de Estado, não é preciso mais do que a prática para que o povo continue se revoltando e protestando contra os governos corruptos e gerentes do grande capital financeiro, das máfias empresariais locais e do latifúndio – ainda mais num contexto – mais explícito que nunca - de agravamento da crise econômica. As verdadeiras promessas do governo são: ajuste fiscal, retirada de direitos sociais, aumento da tributação, desemprego, inflação e aprofundamento da dependência ao capital financeiro parasitário. De que lado o leitor está? A imagem, foto de manifestação pelo desaparecimento (e agora, sabe-se, assassinato) de 43 estudantes mexicanos, é nossa singela homenagem e memória por todos que lutam.

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O CONCEITO DE MULHER NO DIREITO: ANÁLISE CRÍTICA DA LINGUAGEM JURÍDICA E SEU IMPACTO NA CONFORMAÇÃO DOS SUJEITOS DE DIREITO Marina França Santos

Procuradora do Município de Belo Horizonte. Graduada e mestra em Direito pela UFMG, e doutoranda em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-RIO. Última publicação: SANTOS, Marina França ; LOPES, Mônica Sette . O tempo no processo, a colusão e a ação rescisória na Justiça do Trabalho. Revista Magister de Direito do Trabalho, v. 53, p. 37-51, 2013. Assunto de interesse: análise crítica do direito.

Resumo O presente trabalho problematiza o conceito de mulher como sujeito de direito a partir da discussão sobre linguagem no direito e a noção de “textura aberta” proposta por Waismann. A análise crítica feminista do sistema sexo-gênero levanta o problema da essencialização, segmentação e hierarquização de identidades no direito, cuja construção de sujeitos supostamente neutra quanto às questões de gênero – demonstra-se servir à perpetuação de um sistema sexista e excludente. Conclui-se, assim, pela necessidade de desconstrução das noções de objetividade e de fixidez das identidades de gênero perpetuadas pela linguagem jurídica e aponta-se para possibilidades de concretização do direito que reconheçam o caráter livre e plural das identidades subjetivas.

Palavras-Chave: Gênero; Direito; Linguagem

“That man over there says that women need to be helped into carriages, and lifted over ditches, and to have the best place everywhere. Nobody ever helps me into carriages, or over mudpuddles, or gives me any best place! And ain't I a woman? Look at me! Look at my arm! I have ploughed and planted, and gathered into barns, and no man could head me! And ain't I a woman?” (TRUTH, 1851). “Não existe natureza, somente efeitos da natureza: desnaturalização ou naturalização.” (DERRIDA, 1991, p.216).1 “A construção do gênero é tanto o produto quanto o processo de sua representação.”(LAURETIS, 1994, p. 212). 1 – Direito, linguagem e feminismo: um entroncamento necessário. Se a dependência da linguagem em relação ao direito é questão tranquila, inequívoca que é a condição desta de meio pelo qual o direito naturalmente se expressa e se realiza, as consequências desse truísmo, no entanto, nem sempre mereceram a exploração da/do jurista, que, por vezes, ignora o reconhecimento de que "as limitações da linguagem vão refletir diretamente na possibilidade de concretização dos propósitos do direito” (STRUCHINER, 2001, p.6). A adequada compreensão e aperfeiçoamento dessa prática social linguisticamente mediada que é o direito não pode prescindir de se ter em conta as posições que, em cada situação normativa, são sustentadas, entre linguagem e mundo, pelo direito, assim como o modo como ele sobrepõe à realidade a sua leitura e a conforma às suas disposições. A linguagem é, pois,

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“Il n'y a pas de nature, seulement des effets de nature; dénaturation ou naturalisation”.

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o ponto de partida e o ponto de chegada do direito e como tal requer do(a) estudioso(a) a sua mais acurada atenção. O objetivo do presente trabalho consiste em, com base na discussão sobre a linguagem no direito, mais especificamente, da noção de “textura aberta”, proposta por Friedrich Waismann e a ele trazida por H.L.A. Hart (STRUCHINER, 2001, p.5), problematizar o conceito de mulher no direito, utilizando, para tanto, a análise crítica construída pelos estudos feministas2. A escolha da mulher como foco de análise se justifica por se tratar de conceito cujo significado ainda não mereceu consideração profunda pelo direito brasileiro, especialmente no que diz respeito às críticas às noções de unidade e de essencialidade “da mulher” que vêm sendo proficuamente levantadas pelo feminismo. Na Constituição da República Federativa de 1988, a escolha do termo “mulher”, a indicar, de modo isolado, um sujeito especial de direitos3, deu-se em três momentos: a exigência de que o Estado proteja, mediante incentivos específicos, o mercado de trabalho “da mulher”4, a faculdade de se aposentar com menor idade e menos tempo de contribuição “se mulher”5, e a dispensa de realizar serviço militar obrigatório em tempo de paz, conferida aos eclesiásticos e 6 às “mulheres” . Há, ainda, disposição em que aparece em sua relação com o “homem”, no reconhecimento da união estável entre “o homem e a mulher” 7. Para além disso, são diversas as disposições normativas por todo o ordenamento jurídico que dependem ou se relacionam com a definição do que é mulher, como as relativas ao registro do nascimento, ao casamento, à família, às relações trabalhistas e às modalidades de violência específicas que têm a mulher como sujeito passivo ou ativo. A discussão que ora se propõe não consiste em verificar a correção ou não do uso desses termos, investigar a justificativa dada pelo legislador à sua escolha ou mesmo o impacto que tem a sua existência normativa na realidade brasileira. O que se objetiva é suscitar essa pergunta, que não é nova para as/os teóricos(as) feministas, mas não tem sido investigada, com igual profundidade, no direito: a quem se refere o direito ao nomear a “mulher”? Objetiva-se, pois, sem desconsiderar que o direito jamais será capaz de refletir, em suas 2

O termo “estudos feministas”, obviamente, constitui uma seleção amplíssima, que inclui teóricas das mais variadas vertentes – divergentes, inclusive – e das mais diversas áreas do conhecimento, razão pela qual não se pretende aqui abordar todas as suas contribuições e anotar todos os seus matizes, mas, sim, valer-se, em um plano mais geral, de algumas de suas contribuições a um estudo crítico do direito. 3

E não em referências genéricas com pretensão de abranger todos os seres humanos, como em “art. 5º: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. 4 “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...) XX - proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei”. 5 Art. 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo. § 1º Os servidores abrangidos pelo regime de previdência de que trata este artigo serão aposentados, calculados os seus proventos a partir dos valores fixados na forma dos §§ 3º e 17 (...) III - voluntariamente, desde que cumprido tempo mínimo de dez anos de efetivo exercício no serviço público e cinco anos no cargo efetivo em que se dará a aposentadoria, observadas as seguintes condições: a) sessenta anos de idade e trinta e cinco de contribuição, se homem, e cinquenta e cinco anos de idade e trinta de contribuição, se mulher; b) sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta anos de idade, se mulher, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição e “Art. 201 (...) § 7º É assegurada aposentadoria no regime geral de previdência social, nos termos da lei, obedecidas as seguintes condições: I - trinta e cinco anos de contribuição, se homem, e trinta anos de contribuição, se mulher; II - sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta anos de idade, se mulher, reduzido em cinco anos o limite para os trabalhadores rurais de ambos os sexos e para os que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, nestes incluídos o produtor rural, o garimpeiro e o pescador artesanal. 6 Art. 143. O serviço militar é obrigatório nos termos da lei. (...) § 2º - As mulheres e os eclesiásticos ficam isentos do serviço militar obrigatório em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei lhes atribuir. 7 Art. 226. (...) § 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

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regras, toda a multiplicidade da vida, contribuir para que esta ponte entre linguagem e mundo, que sustenta algo tão relevante quanto o reconhecimento dos sujeitos de direito, se dê da forma mais equânime e menos excludente possível.

2- A textura aberta da linguagem: o sujeito de direito mulher

A noção de “textura aberta” da linguagem traz ao direito o reconhecimento dos limites da linguagem na representação da realidade, revelando que os conceitos jurídicos, assim como os padrões de comportamento que ele prescreve, “não estão delimitados, de forma a priori, em todas as direções possíveis"(STRUCHINER, 2001, p.10-11). Como ensina Hart:

Qualquer que seja a estratégia escolhida para a transmissão de padrões de comportamento, seja o precedente ou a legislação, esses padrões, por muito facilmente que funcionem na grande massa de casos comuns, se mostrarão imprecisos em algum ponto, quando sua aplicação for posta em dúvida; terão o que se tem chamado de textura aberta (HART, 2009, p.166).

Trata-se do reconhecimento de que a definição exaustiva de um conceito jurídico ou a previsão exaustiva das hipóteses fáticas abrangidas por uma hipótese normativa constitui pretensão obstada ao direito pelo próprio fato de se valer, para existir, da mediação da linguagem. A certeza, a completude, a transparência do direito configuram, pois, postulados inalcançáveis:

(...) enquanto a vaguidade pode ser corrigida por meio do fornecimento de regras mais claras sobre o uso do conceito, a textura aberta, que representa uma potencial vaguidade, não pode ser resolvida, já que sempre poderão surgir casos em que o uso do conceito não foi previsto e não sabemos ao certo se ele deve ou não deve ser aplicado (STRUCHINER, 2001, p.12).

São, sob essa perspectiva, duas as esferas de análise a serem consideradas em um conceito jurídico: o seu núcleo, zona determinada, que ocorre, como sintetiza Waismann, "quando o tipo de situação em que ele deve ser usado é descrito"(WAISMANN, 1978 apud STRUCHINER, 2001, p.12), e as regiões fronteiriças, zonas cinzentas, em que se encontram os casos imprevistos ou imprevisíveis, nas palavras de Hart, “o preço a pagar pelo uso de termos classificatórios gerais em qualquer forma de comunicação referente a questões factuais”(HART, 2009, p.166). O termo mulher, pelo simples fato de se tratar de um conceito empírico, já atrairia, para si, a noção de textura aberta, daí derivando sua natural incompletude. Afinal, por se tratar de realidade material, já se espera que as possibilidades da experiência sejam mais ricas do que as pretensões da linguagem ao nomeá-la. É o que apresenta o próprio Waismann, em exemplo que, por analogia, também se aplicaria à mulher: "suponha que eu me depare com um ser que se parece com um homem, fala feito um homem, se comporta como um homem e tem só um palmo de altura - devo eu dizer que se trata de um homem?”(WAISMANN, 1978 apud STRUCHINER, 2001, p.11). Isto é, partindo do pressuposto assumido por Waissmann de que podemos descrever o que é

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mulher (“um ser que se parece com... [uma mulher]...”), estas características inequívocas que nos permitem reconhecê-la no mundo físico constituiriam o núcleo do seu conceito (“fala feito” mulher, “se comporta como” uma mulher), enquanto características dele destoantes (ter “só um palmo de altura”) estariam na zona de dúvida. Esta aplicação perfeita da noção de textura aberta da linguagem, no entanto, não parece se adequar ao conceito de mulher. Tal se deve, precisamente, à dificuldade, ou à impossibilidade, de se descrever, exaustivamente, a mulher, ainda que se dispense o recurso à fantasia como no caso da pessoa de um palmo de altura. O que se identifica, partindo da oposição entre núcleo certo e fronteiras dúbias da textura aberta da linguagem, é o problema de, no que diz respeito a identidades, estabelecerem-se características essenciais, segmentá-las e hierarquizá-las.

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Embora se trate de conceito jurídico fundante, já que diz respeito diretamente a um sujeito de direito, a mulher apresenta-se, paradoxalmente, como um construto pouco discutido na interpretação e aplicação judicial do direito brasileiro, sendo tida, frequentemente, como um a priori, que exige do julgador, em um exercício aparentemente autômato, a simples verificação da existência da pessoa (esse ser que fala, comporta-se, parece e é, para o direito, uma mulher) no caso concreto e a subsequente declaração/constituição/condenação, ou não, do direito que a norma lhe atribui. Tal postura pode ser associada a um histórico discurso da neutralidade do direito quanto às questões de gênero que esconde, na verdade, como tem demonstrado a crítica feminista do direito, uma atuação voltada à conservação da hegemonia tradicional da sociedade, que é masculina (DAHL, 1993, p.18), isto é, construída a partir da perspectiva do homem, “aquele ser que não é animal, bárbaro ou mulher, aquele ser que é o autor de um cosmo chamado história” (HARAWAY, 2009, p.49):

Ao criar essa imagem de imparcialidade, o Estado de Direito mostra-se cego ao fato de que opera no sentido de reforçar as desigualdades estruturais que preexistem ao apelo ao direito, e que também são intrínsecas à jurisprudência do direito. Porque, se os sujeitos do direito a ele vêm na condição de cidadãos, como criaturas portadoras de direitos na modernidade, o sujeito da mulher enquanto portadora de direitos é de identificação e construção masculinas. Reivindicar a proteção da lei é reivindicar a proteção de alguma coisa já estabelecida no ponto de vista masculino - aplicar o direito abstrato é aplicar aquilo que foi construído segundo a perspectiva do homem (MORRISON, 2012, p.585).

Ir além da suposta neutralidade do direito, buscar o que dizem e o que não dizem seus conceitos, é, portanto, uma aposta no sentido de expandir identidades e de permitir a livre e concreta vivência dos sujeitos a que o direito reconhece como dignos de seu predicado, os sujeitos de direito. A elaboração (ou pressuposição) de um conceito pelo direito e, conseguintemente, as prescrições e proscrições nele fundadas, não se fazem sem produzir saberes e verdades que permeiam, no que diz respeito “à mulher”, a conformação do seu corpo, do seu gênero, dos seus papéis sociais, do que deve ser normal e anormal.

O conceito de direito, conforme esteja aplicado ao campo da geometria, da moral ou da técnica, qualifica respectivamente como

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torto, tortuoso ou canhestro tudo o que resiste à aplicação do referido conceito (CANGUILHEM, 2009, p.109).

A análise do que se diz e do que se omite ao se determinar e indeterminar é, assim, de caráter fundamental para se verificar quais saberes enquanto verdades são produzidos pelo discurso jurídico. As normas, como mostrou Michel Foucault, estão inscritas em um jogo de poder e não somente regulam, mas também configuram, marcam, reiteram e dão forma, valendo-se de uma violência que não é física, mas estabilizadora, normalizadora e capaz de tornar invisível seu objeto (FOUCAULT, 1979, p.139) à inteligibilidade da identidade.

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O exemplo de Waismann sobre a textura aberta da palavra homem, legando à indeterminação saber se um homem de um palmo de altura é homem, pode ser usado como um símbolo do desconhecimento da complexidade real existente na representação, pela linguagem, dos sujeitos de direitos e, mais especificamente, das mulheres. O que as discussões trazidas pela teoria feminista mostram, a partir da problematização das categorias homem/mulher, gênero, sexualidade, corpo e identidade, é que a exemplificação e as dificuldades de definição são mais cotidianas e concretas e que é preciso desvelar o que se afirma como zona determinada do conceito de mulher de modo a reduzir a faixa nebulosa de suas indefinições, a tornarem-se, assim, fatores de expansão do núcleo dos sujeitos de direito. Do que se trata é reconhecer que a simples afirmação, pelo direito, da “mulher” como sujeito– ainda que realizada com o propósito real de inclusão e como forma de superar históricas desigualdades -, tem um pequeno potencial de transformação se não se fizer ao lado de uma reflexão sobre os significados compartilhados e subversivos referentes à sua identidade, pluralidade e autonomia. A imediata e acrítica correlação entre mulher e sujeito de direito oculta, na verdade, a complexidade das questões identitárias, âmbito que relaciona uma pluralidade de fatores (sexo, gênero, classe, raça, etc) que precisam ser revolvidos para a compreensão do que determina e do que indetermina o ato de nomear a mulher pelo direito.

3 – Mulheres, definições e indefinições

Entre as grandes contribuições dos estudos feministas está o desenvolvimento de um olhar crítico sobre as representações e a posição das mulheres na sociedade (MORRISON, 2012, p.572).

Em suas melhores formas, o feminismo fala à política do “outro”, ou daquele que o direito frequentemente serviu para constranger e condenar ao silêncio. A questão que se coloca é a luta por aquela humanidade que se encontra para além do passado que nós fomos, e que ainda está por desenvolver num futuro que poderia ser. Nesse sentido, seja o que for que pensemos sobre qualquer pensadora feminista, o feminismo atua como uma exigência de considerar quem somos, e qual seria um “nós” verdadeiramente social; ele nos pede que nunca deixemos de levar em conta o que é que pode unificar e embasar nossas verdadeiras diferenças (MORRISON, 2012, p.613).

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Se o ato de conceituar algo, e, no caso, alguém, é “sempre uma tarefa de redescrição de algo em termos mais abstratos”(STRUCHINER, 2011, p.125), o que o feminismo traz à análise do direito é a crítica quanto ao modo como essa tarefa de descrição da mulher tem sido feita historicamente, ressaltando a problemática de uma abstração baseada no binarismo, na essencialidade do conceito de sexo e gênero e no desprezo dos processos de produção da verdade pelo discurso e pelo poder, bem como da exclusão que é imediatamente produzida a partir deste ato de descrição abstrata de sujeitos concretos e multifacetados que são as mulheres (HARAWAY, 2009, p.47). O primeiro aspecto para uma discussão adequada do conceito de “mulher” é o reconhecimento da noção de gênero, proposição elaborada em estudos feministas no fim do século XX como contraponto à explicação pretensamente natural dada às identidades subjetivas a partir do sexo. A ideia de que os seres humanos detêm sexo e gênero veio rejeitar o determinismo biológico considerado implícito na sexualidade (SCOTT, 1995, p. 72) e provocar a discussão, como a realizada por Joan Scott, quanto à “criação inteiramente social de ideias sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres”(SCOTT, 1995, p. 75). A nova categoria analítica tornou imperativa a consideração de uma série de fatores constitutivos da pessoa como “os símbolos culturalmente disponíveis” (SCOTT, 1995, p. 86) e suas representações, os “conceitos normativos que expressam interpretações dos significados dos símbolos” (SCOTT, 1995, p. 86), as instituições, a organização social e política e a “identidade subjetiva” (SCOTT, 1995, p. 86). Isto é, a construção do gênero feminino 8, “diferença localizada socialmente, historicamente e semioticamente” (HARAWAY, 1995, p.35), está marcada, entre outros, por referências religiosas, científicas e jurídicas, pelo parentesco, pelo mercado de trabalho, pelas instituições de educação e pelo sistema político.

Como fenômeno inconstante e contextual, o gênero não denota um ser substantivo, mas um ponto relativo de convergência entre conjuntos específicos de relações, cultural e historicamente convergentes (BUTLER, 2003, p.29).

Tal compreensão, em seguida, veio a ser estendida – e este é o segundo ponto a ser considerado na discussão do conceito jurídico de “mulher” - também ao sexo, confrontando-se à sua percepção como simples materialidade biológica imutável, fundada na crença cartesiana em uma suposta condição fixa de natureza córporea da pessoa e passando-se a notá-lo, igualmente, como produto cultural de interpretação social (NICHOLSON, 2000, p.10-11). Falar da mulher, a partir do sexo, é também considerar as normas regulatórias e o poder reiterativo do discurso que incidem, demarcam, diferenciam, governam e dão significado aos corpos femininos:

O “sexo” é um constructo ideal que é forçosamente materializado através do tempo. Ele não é um simples fato ou a condição estática de um corpo, mas um processo pelo qual as normas regulatórias materializam o “sexo” e produzem essa materialização através de uma reiteração forçada destas normas. O fato de que essa reiteração seja necessária é um sinal de que a materialização não é nunca totalmente

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Butler prefere a concepção de materialização, no lugar de construção: “Yo propondría, en lugar de estas concepciones de construcción, un retorno a la noción de materia, no como sitio o superficie, sino como un proceso de materialización que se estabiliza a través del tiempo para producir el efecto de frontera, de permanencia y de superficie que llamamos materia. Creo que el hecho de que la materia siempre esté materializada debe entenderse en relación con los efectos productivos, y en realidad materializadores, del poder regulador en el sentido foucaultiano.” BUTLER, Judith. Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y discursivos del “sexo”. 2ª ed. Buenos Aires: Paidós, 2008, p. 28.

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completa, que os corpos não se conformam, nunca, completamente, às normas pelas quais sua materialização é imposta. Na verdade, são as instabilidades, as possibilidades de rematerialização, abertas por esse processo, que marcam um domínio no qual a força da lei regulatória pode se voltar contra ela mesma para gerar rearticulações que colocam em questão a força hegemônica daquela mesma lei regulatória (BUTLER, 2000, p.111).

Até mesmo a biologia, trabalhando com os elementos tidos como “naturais” na definição do sexo (anatomia, cromossomo, hormônio), tem demonstrado que a ideia de que há apenas dois sexos (homem/mulher), o que, em tese, permitiria conceituar a mulher como não-homem, vai de encontro ao que se observa na própria natureza. Anne Fausto-Sterling demonstra em seus estudos que há diferentes matizes e combinações dos tradicionais marcos biológicos para o reconhecimento de macho e fêmea que levam, na verdade, a uma infinidade de possibilidades de categorias de sexos que ultrapassam largamente o binarismo típico do direito 9.

Mas se o Estado e o sistema legal têm interesse em manter um sistema sexual binário, eles estão desafiando a natureza. Biologicamente falando, existem muitas gradações que vão do feminino ao masculino, e dependendo de como são chamados os marcos, pode-se argumentar que ao longo do espectro existem pelo menos cinco sexos – e talvez ainda mais. (…). De fato, eu argumentaria além, que sexo é um vasto, infinito continuum maleável que desafia os limites até mesmo de cinco categorias (FAUSTO10 STERLING, 1993, p.21).

Rebecca Jordan-Young, examinando centenas de publicações científicas que justificam diferenças de sexo e gênero com base em diferenças cerebrais, revelou a existência, em todas elas, de graves problemas, como deficiências metodológicas, pressupostos questionáveis, definições inconsistentes, lacunas entre resultados e conclusões e, mesmo, situações em que os próprios pesquisadores ressaltaram os limites de seus estudos mas esses foram ignorados pela comunidade científica e pelos veículos responsáveis pela sua divulgação. A pesquisadora demonstrou também que praticamente nenhum dos estudos utiliza a mesma definição, ao tentar explicitar alguma ao invés de legar a um suposto senso comum, das palavras feminino e masculino(JORDAN-YOUNG, 2010). Em suma, não sendo possível eleger elementos pacíficos para uma conjecturada matriz identitária natural (HARAWAY, 2009, p.49), não se pode, facilmente, estabelecer qual seria o núcleo conceitual pelo qual se poderia determinar ou descrever juridicamente a identidade feminina. Em outras palavras, se o que é “a mulher” é o produto de uma série de fatores tão complexos, incontornáveis e incontroláveis quanto a cultura, a política e a economia, e não há 9

Em trabalho posterior, Anne Fausto-Sterling aperfeiçoa seu entendimento a partir da crítica de Suzanne Kessler (KESSLER, S.J.Lessons from the intersexed. New Brunswick: Rutgers University Press, 1998), que cita: “La limitación de la propuesta de Fausto-Sterling es que la legitimación de otras contexturas genitales … sigue otorgando a los genitales una significación primaria e ignora el hecho de que en el mundo cotidiano las atribuciones de género de hacen sin acceso a la inspección genital … Lo que tiene primacía en la vida diaria es el género que se ejerce, con independencia de la configuración de la carne bajo el vestido”. Mais adequado que criar categorias sexuais, reconhece, é abandonar a clivagem de seres humanos em função de seus genitais, admitindo-se uma francamente aberta variedade de homens e mulheres. FAUSTO-STERLING, Anne. Cuerpos sexuados: La política de género y la construcción de la sexualidad. Barcelona: Melusina, 2006, p.137 10 “But if the state and the legal system have an interest in maintaining a two-party sexual system, they are in defiance of nature. For biologically speaking, there are many gradations running from female to male; and depending on how one calls the shots, one can argue that along that spectrum lie at least five sexes – and perhaps even more. (…) Indeed, I would argue further that sex is a vast, infinitely malleable continuum that defies the constraints of even five categories”. Tradução livre.

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sequer consenso quanto aos marcos corpóreos de seu reconhecimento biológico, qualquer combinação de características representativas de um arquétipo é fruto de uma escolha, e, como tal, parcial, política e excludente. A perspectiva construcionista social feminista, diretamente influenciada por Foucault11, torna inevitável considerar, para a nomeação da mulher, que tanto o sexo quanto o gênero femininos são, em primeiro lugar, formas de saber, não sendo possível fazer referência a um “‘dado’ sexo ou um ‘dado’ gênero sem primeiro investigar como são dados o sexo e/ou gênero e por que meios”(BUTLER, 2003, p.25). Assim, quando Donna Haraway afirma que “não existe nada no fato de ser “’mulher’ que naturalmente una as mulheres” ou que “não existe nem mesmo uma tal situação - ’ser’ mulher” (HARAWAY, 2009, p.47), está se chamando a atenção para o que Teresa de Lauretis denominou “tecnologia de gênero”, que são os efeitos das práticas discursivas “das autoridades religiosas, legais ou científicas, da medicina, da mídia, da família, da religião, da pedagogia, da cultura popular, dos sistemas educacionais, da psicologia, da arte, da literatura, da economia, da demografia, etc”(PINAFI, 2011, p. 270) que produzem os significados sociais do masculino e do feminino:

(...) também o gênero, como representação e como autorepresentação, é produto de diferentes tecnologias sociais, como o cinema, por exemplo, e de discursos, epistemologias e práticas críticas institucionalizadas, bem como das práticas da vida cotidiana (LAURETIS, 1994, p.208).

E se não é possível estabelecer, a partir do sexo e do gênero, o que é “a mulher” definida, "a mulher como a diferença do homem, com ambos universalizados ou a mulher como diferença pura e simples e, portanto, igualmente universalizada”(LAURETIS, 1994, p.207), a abstração do conceito de mulher entra em choque, ainda, com o fato da interseccionalidade, que acrescenta à crítica a constatação de que a identidade das mulheres não pode ser compreendida sem o reconhecimento da atuação simultânea e da interação mútua de características biológicas, sociais e culturais que resultam em uma sobreposição de novas formas de opressão. Kimberle Crenshaw, propositora do conceito, demonstrou, nesse sentido, por exemplo, como a posição das mulheres negras, na interseção de raça e gênero, torna a experiência da violência doméstica e do estupro qualitativamente diferente das mulheres brancas(CRENSHAW, 1991, p.1245) , como as políticas feministas e antirracistas tem paradoxalmente ajudado a marginalizar a violência contra mulheres negras(CRENSHAW, 1991, p.1245), e como controvérsias relativas à representação das mulheres negras na cultura popular podem também se tornar uma fonte de desempoderamento intercesional(CRENSHAW, 1991, p.1245). A análise também resvala para a questão das mulheres lésbicas, das transmulheres e das travestis, que não só confrontam o binarismo sexo/gênero como sobrepõem categorias de diferenciação também usualmente mal compreendidas pelo direito, tradicionalmente preocupado em “alinhar” elementos da anatomia, identidade de gênero, relação afetiva e sexual e comportamento social:

A matriz cultural por intermédio da qual a identidade de gênero se torna inteligível exige que certos tipos de ‘identidade’ não possam 11

A discussão vem desde a investigação sobre corpos dóceis, nas primeiras obras de Foucault, mas pode ser traduzida neste trecho da História da Sexualidade: "a sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder" (FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade – A vontade de saber. Rio de Janeiro, Graal, 2005, p. 100).

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‘existir’ – isto é, aquelas em que o gênero não decorre do sexo e aquelas em que as práticas do desejo não ‘decorrem’ nem do ‘sexo’ nem do ‘gênero’(BUTLER, 2003, p.39).

Todas essas mulheres reivindicam o reconhecimento de suas multiplicidades e de suas diferenças irredutíveis à figura incontingente conceituada pelo direito (reivindicação essa que atua como pressão a uma abertura ainda mais rica e profunda a ser enfrentada pela ordem jurídica: o acesso a direitos que independa de categorias identitárias) e transitam pelas determinações e indeterminações da linguagem e dos significados socialmente partilhados. As mulheres como sujeitos de direito respeitadas em todas as suas possibilidades e potencialidades só poderão ser conhecidas a partir de um movimento, “para dentro e fora do gênero como representação ideológica”(LAURETIS, 1994, p.238), que percorra “a representação do gênero (dentro de seu referencial androcêntrico) e o que essa representação exclui, ou, mais exatamente, torna irrepresentável”(LAURETIS, 1994, p.238) e transite em atos de nomeação e de ocultamento, entre “o espaço discursivo (representado) das posições proporcionadas pelos discursos hegemônicos e o space-off, o outro lugar, desses discursos”(LAURETIS, 1994, p.238), traduzindo-se, enfim, não em síntese, em harmonização ou em superação, mas sim na “tensão da contradição, da multiplicidade, da heteronomia”(LAURETIS, 1994, p.238). A discussão quanto ao gênero, que é também a discussão sobre a construção do significado de sexo, de mulher e do feminino, está dentro de um só contexto, a reflexão sobre as identidades, inviabilizando, de plano, falar-se em uma/na mulher, como ser humano representado de forma única, inequívoca e inconfundível.

Seria errado supor de antemão a existência de uma categoria de ‘mulheres’ que apenas necessitasse ser preenchida com os vários componentes de raça, classe, idade, etnia e sexualidade para tornarse completa. A hipótese de sua incompletude essencial permite à categoria servir permanentemente como espaço disponível para os significados contestados. A incompletude por definição dessa categoria poderá, assim, vir a servir como um ideal normativo, livre de qualquer força coercitiva (BUTLER, 2003, p.36).

O reconhecimento da fragmentação e da pluralidade de identidades serve, no âmbito prático, a aprofundar a efetividade do próprio direito, impelindo-o a uma justificativa crucial: de quem e para quem fala e a quem e por que se exclui. Num âmbito teórico, tal avanço na crítica da linguagem do direito talvez venha ao encontro da proposição de Haraway - de se construir “não apenas uma consciência histórica que assinala o colapso sistemático de todos os signos de Homem nas tradições “ocidentais”, mas também, a partir da outridade, da diferença e da especificidade, uma espécie de identidade pós-modernista”(HARAWAY, 2009, p.48).

4 – Conclusão: identidades e subjetividades libertas

Analisando as incertezas da linguagem, Hart combate a ingenuidade dos teóricos do direito ao demonstrar que “mesmo quando se utilizam normas gerais formuladas verbalmente, podem surgir, em casos concretos específicos, incertezas quanto ao tipo de comportamento por elas exigido”(HART, 2009, p. 163). Sintetiza:

As situações de fato, particulares, não esperam por nós já

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diferenciadas entre si e rotuladas como exemplos da norma geral cuja aplicação está em pauta; nem a norma geral pode se adiantar para demarcar seus próprios exemplos (HART, 2009, p.163-164).

Haverá, sempre, para Hart, muito embora a atividade interpretativa tenha que lidar sempre com as indefinições, traduzidas como espaços de incerteza, os casos “familiares”(HART, 2009, p.164), “geralmente incontroversos”(HART, 2009, p.164), “nos quais os termos gerais não parecem carecer de interpretação e o reconhecimento de exemplos parece pouco problemático ou ‘automático’”(HART, 2009, p.164). A representação das identidades pelo direito e as subsequentes tarefas de interpretação e aplicação das subjetividades serão equivocadas se dedicarem a tais casos, complexos, o raciocínio linguístico dispensado ao trato de casos familiares. A expectativa de se deparar com uma zona ampla de definição circundada por zonas limítrofes de incerteza é desbancada pela perspectiva crítica feminista que revela a superficialidade de qualquer menção e normatização relativa a mulheres que desconsidere sociedade, cultura, política, valores, símbolos e hierarquias sociais. Em suma, não é possível falar-se em sujeitos de direito desconhecendo-se o sistema sexo-gênero de que fazem parte e não é possível tratar de sexo-gênero com a pretensão de se estabelecer um modelo claro, imune à pluralidade e cego às diferenças. O sistema de sexo-gênero, enfim, é tanto uma construção sociocultural quanto um aparato semiótico, um sistema de representação que atribui significado (identidade, valor, prestígio, posição de parentesco, status dentro da hierarquia social etc) a indivíduos dentro da sociedade (LAURETIS, 1994, p.212). A adoção de um arquétipo para a seguida tomada de decisões adicionais “sobre quais são os elementos mais fundamentais que podem servir como notas características do exemplar analisado”(STRUCHINER, 2011, p.125-126) não é adequada quando o que se pretende é a elaboração do conceito de algo tão fundamental quanto a identidade de um ser humano. Essa falsa ideia de abstração e univocidade por vezes se dará às custas da imposição de padrões de mulheres que são concretas (de determinada cor, classe social, orientação sexual, religião, identidade de gênero etc) e indefinidas (quanto à anatomia, aos cromossomos, aos hormônios, ao desejo, ao comportamento etc). A crítica à possibilidade ou à desejabilidade da definição de mulher pelo direito não remete, contudo, à inação, ou à impossibilidade de se compreender e de normatizar a identidade a partir da lente posta pelo sistema sexo-gênero. Ao que a crítica remete, isso sim, é ao desvelamento de um ponto de partida e de um caminho. Ou, nas exatas palavras de Haraway, "precisamos do poder das teorias críticas modernas sobre como significados e corpos são construídos, não para negar significados e corpos, mas para viver em significados e corpos que tenham a possibilidade de um futuro"(HARAWAY, 1995, p.16). Cabe-nos – impõem-se-nos -, como aponta Judith Butler ao relacionar os debates teóricos concernentes às questões identitárias com as tarefas políticas relacionadas, a tarefa relevante de indagar: “que possibilidades políticas são consequência de uma crítica radical das categorias de identidade? Que formas novas de política surgem quando a noção de identidade como base comum já não restringe o discurso de políticas feministas?” (BUTLER, 2003, p.9). O mesmo vale para as normas: o reconhecimento da falibilidade de seus conceitos não gera a adoção de um ceticismo em relação a elas, ou, como Hart chamou, à posição de um absolutista frustrado(HART, 2009, p.180). Bem recordado por Tamar Pitch, se as normas são símbolos, os atores que exigem a sua mudança têm objetivos não só de natureza prática, mas também simbólica (PITCH, 1998 apud LORETONI, 2006, p.498). É preciso reconhecer que o conceito de mulher, dada a estrutura social historicamente patriarcal ainda presente, é ainda insuficientemente problematizado pelo direito, que, no entanto, é marcado pela “existência de arranjos que, embora aparentemente neutros, servem, na verdade, para excluir ou colocar em desvantagem um desproporcional número de mulheres”

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(KNOP, 2004, p.15) 12 e está calcado na pretensão de cognoscibilidade e controle do que é, pode e deve ser “mulher” no mundo material e na repulsa a qualquer região de significado onde não se pode “determinar com segurança se a palavra se aplica ou não”(STRUCHINER, 2001, p.5). O feminismo, como instrumento de crítica ao direito, serve como denúncia do compromisso da cultura jurídica com uma estrutura sexista, mas mais ainda, como “exigência de que o saber jurídico seja capaz de desvelar aquilo que nele está oculto, principalmente no que concerne ao sujeito que o pratica”(RABENHORST, 2011, p.20). O equilíbrio entre a pretensão normativa e a complexidade da realidade não se encontra em um dilema – falso dilema, como sustentou Hart – entre a exigência de grilhões ou a completa ausência do direito(HART, 2009, p.180). A representação da mulher pelo direito, no entanto, é tarefa que exige, no mínimo, o reconhecimento de que “a ‘unidade’ da categoria das mulheres não é nem pressuposta nem desejada”(BUTLER, 2003, p.36) e de que “sexo/gênero não é anatomia ou destino, mas é algo que se constitui enquanto prática através de normas que ao mesmo tempo lhe dão inteligibilidade”(RABENHORST, 2011, p.20). A definição e a fixação jurídica da identidade feminina exclui previamente o surgimento de novos conceitos de identidade e impede a transformação e a expansão dos conceitos de identidade existentes(BUTLER, 2003, p.36). Ao contrário, o que o feminismo requer do direito é o reconhecimento do caráter particular e localizado das identidades subjetivas, o abandono do binarismo, do reducionismo, da homogeneização e do universalismo silenciadores e a assunção de uma linguagem que fale a indivíduos livres, múltiplos, vários, na plenitude de suas concretas relações sociais. Bibliografia BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, pp. 151/166 _____________. Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y discursivos del “sexo”. 2ª ed. Buenos Aires: Paidós, 2008. _____________. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003. CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. CRENSHAW, Kimberle. A Intersecionalidade na Discriminação de Raça e Gênero. Disponível em: . Acessado em: 22 de janeiro de 2014. DAHL, Tove Stang. O direito das mulheres. Uma introdução à teoria do direito feminista. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993. DERRIDA, Jacques. Donner le temps. 1. La fausse monnaie, Paris: Galilée, 1991. FAUSTO-STERLING, Anne. The five sexes: why male and female are not enough. The sciences. Nova York: New York Academy of Sciences. March/April 1993, pp.20/25. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade – A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2005. ________________. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: TADEU, Tomaz (Org.). Antropologia do ciborgue: As vertigens do pós-humano. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, pp. 33/118. 12

“ (…) existence of arrangements which, though facially neutral, in fact serve to exclude or disavantage a disproportionate number of women (or indeed men)”. Tradução livre.

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_____________. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, n. 5, 1995, pp.07/41. HART, H.L.A. O formalismo e o ceticismo em relação às normas. In: O conceito de direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, pp. 161/199. JORDAN-YOUNG, Rebecca. The Flaws in the Science of Sex Differences. Cambridge: Harvard University Press, 2010. LACEY, Nicola Feminist legal theories and the rights of women. In: KNOP, Karen(Ed.). Gender and human rights. Collected courses of the Academy of European Law (XII/2). Oxford: Oxford University Press, 2004, pp. 13/56, LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. pp. 206/242. LORETONI, Anna. Estado de Direito e diferença de gênero. In: COSTA, Pietro. ZOLO, Danilo (Orgs.). O Estado de Direito: História, teoria, crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006. MORRISON, Wayne. Compreender a filosofia do direito feminista. In: Filosofia do Direito: dos gregos ao pós modernismo. 2.ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. NICHOLSON, Linda. Interpretando o gênero. Estudos feministas. Florianópolis: UFSC, vol.8, n.2, 2000, pp.9/41. PINAFI, Tânia et all. Tecnologias de gênero e as lógicas de aprisionamento. Revista Bagoas. UFRN – CCHLA. vol.5, n.6, jan./jun. de 2011, pp. 267/282. RABENHORST, Eduardo Ramalho. Encontrando a teoria feminista do direito. Prim@ Facie, vol. 09, 2011, pp. 07/24. SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Porto Alegre: vol. 20, n. 2, 1995, pp. 71/99. STRUCHINER, Noel. Indeterminação e objetividade – quando o direito diz o que não queremos ouvir. In.: BARBIERI, Catarina Helena Cortada e MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto (Orgs.). Direito e Interpretação: racionalidades e instituições. São Paulo: Direito GV/Saraiva, 2011, pp. 118/152. ________________. Uma análise da textura aberta da linguagem e sua aplicação ao direito. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de janeiro, 2001. TRUTH, Sojourner. Ain't I a woman? Discurso. Women's Convention, Akron, Ohio, 1851. Disponível em . Acessado em 22 de janeiro de 2014

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DEFINIÇÃO E NATUREZA JURÍDICA DO PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE Danilo Porfírio de Castro Vieira Mestre em Direito pela UNESP Professor de Direito Civil pela UNIP, IDP e UniCeub Ultima Publicação A Inocência da Modernidade: Os Limites entre a Liberdade de Expressão e o “Sagrado” Religioso e Civil in Diversitates, Vol. 5, N° 2 : 133 – 149

Resumo Em função do novo paradigma de família tratado no contemporâneo direito civil, caracterizado pela desierarquização estrutural e pluralidade dos modelos, é necessário entender qual a natureza do artefato jurídico constitutivo e vinculante deste novo modelo: a afetividade. Em discursos teóricos ou em argumentos jurídicos, o princípio jurídico da afetividade é tratado de diversas formas e conceituado de diversas maneiras, o que demonstra uma indefinição substancial e uma carência de critérios jurídico-racionais para a sua devida aplicação. A afetividade seria a tutela do amor? A afetividade seria a tutela do cuidado? De que tipo de cuidado? A afetividade é o estado de posse de vulnerável? Ou a afetividade abarca e transcende essas concepções? A resposta pode estar no próprio fundamento do projeto filosófico da modernidade, recentemente apresentado a uma instituição jurídica que nunca foi liberal: a autonomia da vontade, a considerar um senso de autorresponsabilidade inerente. 1. O Direito Liberal e a família tradicional e o novo paradigma de Direito de Família Observa-se na doutrina e jurisprudência recentes a formação de um novo discurso sobre Direito de Família e instituição familiar, apresentando novos mitos e alguns enganos. O engano refere-se ao grande estandarte de que o “novo” direito de família vem superar o então vigente modelo liberal. Em verdade o modelo liberal não está sendo superado, pois nunca existiu. Factualmente, o que ocorre é que, finalmente, o modelo tradicional de família, último baluarte da pré-modernidade na sociedade laica, parece ter se esgotado, e em seu lugar firma-se um projeto emancipacionista de organização familiar. 1.1. Fundamentos da modernidade: emancipacionismo, primitivismo e secularismo A essência da modernidade, que pautou os ideais e ações ao longo dos séculos XVI a XVIII, sendo parte do imaginário coletivo ocidental, é o emancipacionismo. Trata-se sobre reivindicação da autodeterminação do indivíduo, a exigência da soberania da pessoa. Uma autodeterminação comprometida com a autossatisfação, com a felicidade gozosa e patrimonial. A emancipação pressupõe o primitivismo, o desprendimento do indivíduo de padrões impositivos valorativo-morais. O desprendimento requer a ascensão da autonomia da vontade, cujas decisões estariam atreladas a regras individuais fundadas na razão (nobre selvagem). Inicialmente, o primitivismo e o emancipacionismo modernos estavam voltados à questão da liberdade religiosa, tendo como objeto de reivindicação a autonomia interpretativa e liberdade de credo e expressão em uma Europa dogmático-religiosa. Antes, porém, da discussão sobre as questões de credo, o marco emancipacionista se faz presente no século XV, com o desenvolvimento do conceito de dignidade da pessoa, elaborado por Pico della Mirandola (MIRANDOLA, sem ano.). Para o autor italiano, a dignidade é uma competência dada por Deus (IBIDEM, p. 49), inerente, portanto à condição humana, que se afirma em função do talento individual e da capacidade de modificação, de evolução do próprio homem. No século XVI, na Reforma Religiosa, Lutero e Calvino foram responsáveis pela formação de um modelo de fé subjetivado, tendo o homem o papel de seu autossacerdote, afirmando assim a autoconsciência (“self-awareness”) e dessacralizando o cristianismo pela desritualização mediadora institucional-tradicional (LUTERO, 1998, p. 31, 87; CALVINO, 1985, p. 109; TAYLOR, 2007, p. 20,30;74-75). Mas se o emancipacionismo tem sua essência no princípio da liberdade, este tem como pressuposto de exigibilidade a Igualdade. A igualdade como isonomia, dá ênfase na questão da impessoalidade formal (fator nivelador), como forma de garantia da individualidade,

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e da meritocracia e da propriedade, como expressão realizadora e concretizadora da autodeterminação e da auto-realização. Juridicamente o princípio que acompanhava a liberdade e a igualdade foi a propriedade. O ideário moderno reconhece a propriedade como princípio indispensável à dignidade das pessoas. Com a constituição da Modernidade e sua institucionalização por meio do Estado liberal, tanto a aquisição, como a manutenção da propriedade tornaram-se garantias sacralizadas, previstas na Constituição Norte-Americana, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na Constituição de 1793 e nas cartas normativas de direito civil (Código Napoleônico; Bürgerliches Gesetzbuch, devidamente fundamentadas no Direito Romano). 1.2. O Código Napoleônico e a antítese do Direito Civil liberal O Código Napoleônico, em grande parte, foi uma expressão jurídica liberal, mas sobre as disposições sobre família adotou a pré-modernidade. Contrariamente a um direito negocial fundado na individualidade, na autonomia da vontade, na isonomia e na mínima intervenção do Estado, o direito de família adotou um modelo originário das tradições jurídicas romana e canônica: a) Matrimonializada, pois a família é constituida pelo casamento; b) Patriarcal, pois a autoridade moral e econômica do pai é mantida, na condição magister da família, tendo autoridade sobre filhos (de vida e morte) e sobre a esposa; c) Hierarquizada, sendo a família um espaço de papéis, de competências definidas, tendo um chefe, um senhor, ou seja, o pai; d) Necessariamente heteroparental, não permitindo qualquer manifestação homoafetiva, sendo um tabu, algo antinatural, uma perversão; e) Biológica, reconhecendo prioritariamente a filiação natural dentro dos laços do matrimônio. Logo, os filhos adotivos não possuiam a mesma proteção (primazia da linhagem germânica / categorização dos filhos); f) Indissolúvel, mantendo a tradição católica, o que Deus, e mais a frente o Estado, une, o homem não separa; g) Institucional: a família era uma instituição jurídica e social, possuidora de certa sacralidade, indissolúvel e perene, berço formador da sociedade, onde a pessoas organizavam-se como pertença (BEVILÁQUA, 1973, p.586-635;832-861) . A justificativa provável é que se entendia que a sociedade não estaria preparada para pluralismo absoluto, podendo colocar em risco a ordem social. A Europa estava rompendo com sua tradição comunitária e sua ordem moral, de natureza religiosa, que eram fortes elementos de agregação coletiva. Uma transição acelerada rumo aos valores da modernidade poderiam acarretar na inviabilização do projeto. Percebe-se que se formularam duas formas de agregação coletiva intermediária entre o comunitarismo e o societarismo: o desenvolvimento conceitual de nação e a manutenção da família tradicional. As pessoas recebem ininterruptamente os valores da modernidade, mas se agregam em torno de um povo, vinculado a uma história (mesmo sendo forjada), a uma etnia ou preso a terra, constituindo uma noção de pertença moral coletiva (identidade coletiva). Essa sociedade de nacionais reconhecia que seu pilar encontrava-se na família tradicional, rigidamente organizada e, acima de tudo, sagrada, enfatizando o sentido de identidade coletiva, porém, sob tutela jurídica de um Estado secular (ANDERSON, 2011, p.71-84). Esta mentalidade será seguida pelos outros Códigos Liberais, inclusive o brasileiro de 1916. 1.3. Características do novo modelo de direito de família Com o neoconstitucionalismo, no século XX, a dignidade da pessoa humana transcende a natureza individual e autônoma da pessoa, sendo tratada como um bem difuso, própria do gênero humano. Esta nova concepção de dignidade repercutirá no direito civil, submetendo-o materialmente aos princípios constitucionais (normatividade dos princípios / direito civil constitucional). Dentro deste contexto constitucionalizador, o Direito de Família desprendeu-se do modelo tradicional e pré-moderno de instituição familiar, não dando, porém, um salto aos direitos difusos contemporâneos ou pós-modernos, mas sendo apresentado aos princípios moderno-liberais de dignidade, autonomia da vontade e isonomia plural, até então impenetráveis na estrutura familiar ocidental. Logo, o paradigma moderno de família basicamente é: a) pluralizada, pois o matrimônio deixa de ser a única fonte de família; b) igualitária, pois o pátrio-poder é substituído pelo poder de família, onde homens e mulheres coabitam em condição de igualdade; c) democrática, dando fim a hierarquização das relações, inclusive entre pais e filhos; hetero ou homoparental, podendo ser constituídas por uniões ou matrimônios entre pessoas de sexos distintos ou do mesmo gênero; d) biológica ou socioafetiva, onde a filiação deixa e ter hierarquia e não se restringe aos laços de sangue ou à adoção, mas a relação pública de

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afetividade; e) dissolubilidade dos vínculos, fazendo com que os integrantes da família deixam de ser sua pertença (GAGLIANO; PAMPLONA, 2008). O novo paradigma de Direito de Família, portanto, dá fim a uma concepção finalística de família, assumindo papel de meio, um mecanismo de proteção de seus integrantes. A família torna-se assim um instrumento a serviço da dignidade da pessoa, submetendo-se a autonomia da vontade, por meio da afetividade, como condição existencial. Surge a noção de Família Eudemonista, que tem como fim a viabilização da felicidade de seus componentes, da realização pessoal do ser humano. Salienta-se, porém, que termo eudemonismo é inapropriado etimologicamente, pois eudemo reporta-se a felicidade como boa vida, no sentido de viver razoavelmente, conciliando o servir com o gozar, o individual com o comunitário, uma vida feliz é uma vida virtuosa. O significado dado na modernidade é de uma vida gozosa, satisfativa. Exemplo disto é que está exposto na súmula 364 do STJ: “o conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas”. Com a instrumentalização da associação familiar, o Direito de Família acolhe uma nova tese, a do direito de família mínimo, priorizando a autonomia da vontade e, consequentemente, exigindo uma postura interventiva estatal mínima sobre questões familiares (GAGLIANO, 2008). Exemplos da mínima intervenção são: a mudança do regime de bens no casamento, onde o STJ entendeu pela possibilidade da mudança voluntária do regime de bens (STJ REsp. 730.546/MG); a abolição dos prazos para o divórcio e a excepcionalidade da intervenção judicial (EC 66/2010); a consideração da vontade do menor, como dita a nova redação do art. 28, §2º do ECA. Outro ponto do novo paradigma encontra-se na promessa de despatrimonialização da família e de seu direito, em prol da dignidade da pessoa e da afetividade, o que parece ser uma promessa utópica, abstrata, demagógica, pois todos os problemas de família possuem motivação ou consequência patrimonial. As questões como abandono afetivo, filiação afetiva, reconhecimento de famílias paralelas a motivação dos litígios ou é sucessória, alimentícia ou indenizatória (FARIAS; ROSENVALD, 2011). 1.3.1. Dos princípios do Direito de Família Com a Constitucionalização do Direito Privado e o processo de principiologização do Direito, o novo direito de família atrelou-se aos preceitos constitucionais fundamentais como: a) o princípio da Dignidade (art. 1º, III, CF), como fundamento máximo de proteção dos direitos de personalidade a exemplo disto do Tribunal de Alçada de Minas Gerais, 7ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível 408.555-5. Decisão de 01/04/2004; b) princípio da Solidariedade Familiar (art. 3º, I, CF), não se reduzindo uma corresponsabilidade patrimonial, mas psicológica e afetiva; c) princípio da Igualdade, que não se reduz aos papéis entre homem e mulher (ar. 226, Páragrafo V, e 227, parágrafo, VII, CF), mas entre companheiros e cônjuges e entre filhos (art. 227, parágrafo VI, CF); d) princípio da Liberdade (art. 5. CF, art. 1513CC), alinhado a instrumentalização da família e a teoria do direito de família mínimo, ninguém é obrigado a constituir ou pertencer a uma família, mas ao constituir livremente, deve assumir as consequências dos seus atos; e) princípio do melhor interesse da criança (art. 227 caput CF, arts. 1583 e 1584 CC, art. 3º. ECA), onde mostra-se a função social da família, como berço de amparo e formação da criança; f) princípio da função social da família, o art. 226, caput, da Constituição Federal de 1988 afirma que a família é base da sociedade. Deve-se, neste contexto analisar a relações familiares dentro de perspectivas locais e temporais de uma sociedade; g) princípio do pluralismo, alinhado ao instrumentalismo da família e do direito de família mínimo, reconhece o fim de um único modelo de família. Com a quebra da rigidez da formação da família no direito ocidental, várias formas de família podem ser identificadas (FARIAS, 2011). Entres as espécies de família, existem: a) Família Matrimonial, resultando do casamento. Seu surgimento é religioso, ritualístico, litúrgico, reportando-se a tradição romanocanônica; b) União Estável , trata-se de uma união informal entre homem e mulher desimpedidos, que não necessita ser registrada, amparado no reconhecimento público da relação, como determina o artigo 1723 CC . O desimpedimento abrange a parte ainda casada de direito, mas separada de fato (artigo 1723, §1º); c) Família Paralela, modelo ainda polêmico, que afronta a monogamia, sendo considerado, também forma de concubinato; d) Família Monoparental, é a relação familiar pautada no vínculo de parentesco de ascendência e descendência (art. 226, §4º CF). Identifica-se apenas um dos pais e sua descendência; e) Família Anaparental, é a relação familiar cujos vínculos de parentesco não são em linha reta, a exemplo de uma família composta de irmãos, ou sobrinho e tio; f) Família Pluriparental ou

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Recomposta, consiste na entidade familiar que surge com o desfazimento de anteriores vínculos familiares e reorganização de novos vínculos; g) Família eudemonista ou sócio afetiva é a oriunda do afeto; h) Família ou União Homoafetiva, decorrente da união de pessoas do mesmo sexo (DIAS,2012). 2. Sobre o entendimento do princípio da afetiva na doutrina e na jurisprudência brasileiras Quando se aborda o princípio da afetividade no direito civil brasileiro, a doutrina e jurisprudência brasileiras persistentemente atrelam-na às relações afetivas, aos sentimentos, ao amor familiar (PESSANHA, IBDFAM). Mesmo se reconhecendo, teoricamente, a distinção entre a afetividade e o afeto, na prática o princípio jurídico é tratado como resposta à carência de vínculos sentimentais, uma retaliação à ausência de afeto nas relações interpessoais (TARTUCE, IBDFAM). È, portanto, tratado como um imperativo vinculado aos sentimentos de proteção e ternura. Exemplo disso encontra-se nas considerações de Paulo Lobo sobre filiação afetiva: A fortiori, se não há qualquer espécie de distinção entre filhos biológicos e filhos não-biológicos, é porque a Constituição os concebe como filhos do amor, do afeto construído no dia-a-dia, sejam os que a natureza deu, sejam os que foram livremente escolhidos. Se a Constituição abandonou o casamento como único tipo de família juridicamente tutelada, é porque abdicou dos valores que justificavam a norma de exclusão, passando a privilegiar o fundamento comum a todas as entidades, ou seja, a afetividade, necessário para realização pessoal de seus integrantes (LOBO in FARIAS, 2004, p.8). Mesmo desenvolvendo uma definição aproximada ao verdadeiro sentido da afetividade, Luiz Edson Fachin parece não se desvencilhar da inviável tutela do sentimento, considerando a importância do afeto familiar na viabilização da felicidade da pessoa: na transformação da família e de seu Direito, o transcurso apanha uma ‘comunidade de sangue’ e celebra, ao final deste século, a possibilidade de uma ‘comunidade de afeto’. Novos modos de definir o próprio Direito de Família. Direito esse não imune à família como refúgio afetivo, centro de intercâmbio pessoal e emanador da felicidade possível [...]. Comunhão que valoriza o afeto, afeição que recoloca novo sangue para correr nas veias do renovado parentesco, informado pela substância de sua própria razão de ser e não apenas pelos vínculos formais ou consangüíneos. Tolerância que compreende o convívio de identidades, espectro cultural, sem supremacia desmedida, sem diferenças discriminatórias, sem aniquilamentos. Tolerância que supõe possibilidade e limites. Um tripé que, feito desenho, pode-se mostrar apto a abrir portas e escancarar novas questões. Eis, então, o direito ao refúgio afetivo (FACHIN, 2003, p. 317 e 318). Quando a abordagem da afetividade na filiação, as considerações tomam um sentido mais lúcido, porém incompleto, associando o principio a posse de estado do filho. Maria Berenice Dias afirma que a noção de posse de estado de filho: não se estabelece com o nascimento, mas num ato de vontade, que se sedimenta no terreno da afetividade, colocando em xeque a verdade jurídica, quanto à certeza científica no estabelecimento da filiação... a filiação socioafetiva assenta-se no reconhecimento da posse do estado de filho: crença da condição de filho fundada em laços de afeto. A posse do estado de filho é a expressão mais exuberante do parentesco psicológico, da filiação afetiva. A afeição tem valor jurídico (DIAS, 2009, p. 337 e 338).

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A afirmativa é lúcida, pois distancia a afetividade da afeição, aproximando-a do verdadeiro objeto do Direito, ou seja, a vontade, a ato de liberalidade, a autonomia moraldecisória e suas consequências normativas-vinculadoras. Reportando-se a Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias, o papel preponderante da posse do estado de filho é conferir juridicidade a uma realidade social, pessoal e afetiva induvidosa, conferindo, dessa forma, mais Direito à vida e mais vida ao Direito (FARIAS;ROSENVALD, 2008, p. 481). A jurisprudência segue esta tendência doutrinária, a exemplo da decisão do Recurso Especial nº 1.159.242 – SP (2009/0193701-9), sobre a responsabilidade por danos morais em abandono afetivo. O relatório da ministra Nancy Andrighi assim trata sobre a afetividade: Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos. O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes legais, situando-se, pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização, no universo meta-jurídico da filosofia, da psicologia ou da religião. O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas: presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais filhos – quando existirem – , entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes. Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever. A comprovação que essa imposição legal foi descumprida implica, por certo, a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão, pois na hipótese o non facere que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa em vulneração da imposição legal. Fixado esse ponto, impõe-se, ainda, no universo da caracterização da ilicitude, fazer-se pequena digressão sobre a culpa e sua incidência à espécie. Quanto a essa monótono o entendimento de que a conduta voluntária está diretamente associada à caracterização do ato ilícito, mas que se exige ainda, para a caracterização deste, a existência de dolo ou culpa comprovada do agente, em relação ao evento danoso. É importante enfatizar que o princípio da afetividade não se confunde com a socioafetividade, sendo institutos jurídicos distintos, mas complementares. A socioafetividade é a publicidade da afetividade, é a emergência do animus constitutivo familiar, no caso em questão a filiação, ao mundo dos fatos. A perenidade e publicidade da relação familiar mostram-se de forma clara nos pressupostos da paternidade socioafetiva, defendidas por Fachin: comportamento cotidiano, sólido e duradouro, cessão do nome familiar e tratamento pater-filial recíproco (FACHIN, 1996, p.37). A posse de estado de filho, especificamente seus efeitos jurídicos, só é existente, válido e eficaz com a exteriorização e perenidade da escolha. Exemplo disso é a tutela de direitos do filho de criação, uma relação que não é biológica, nem solene, como no caso da adoção (filiação por afinidade), mas pode ser pública e perene, reconhecida recentemente, para fins sucessórios, pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina: “DIREITO DE FAMÍLIA. DEMANDA DECLARATÓRIA DE PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA CUMULADA COM PETIÇÃO DE HERANÇA. INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL POR IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO E AUSÊNCIA DE INTERESSE DE AGIR. EQUIVOCADA EXTINÇÃO DA DEMANDA. CONDIÇÕES DA AÇÃO QUE, CONTUDO, NO CASO, REVELAM-SE PRESENTES. PLEITO

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QUE, EM TESE, SE AFIGURA POSSÍVEL, INOBSTANTE O FALECIMENTO DOS SUPOSTOS PAIS SOCIOAFETIVOS. INTELECÇÃO DOS ARTS. 1.593 DO CC E 227, § 6º, DA CRFB. SENTENÇA CASSADA. RECURSO PROVIDO. A pretensão ao reconhecimento da parentalidade socioafetiva tem ressonância no art. 1.593 do Código Civil, segundo o qual a filiação origina-se do laço consaguíneo, civil ou socioafetivo. Nada obsta o reconhecimento da filiação após a morte dos pretensos pai e mãe socioafetivos. Se ao filho biológico é franqueado o acesso à justiça na hipótese de investigação de paternidade ou de maternidade post mortem, ao filho socioafetivo, por força do princípio da igualdade entre as filiações (art. 227, par. 6º, da Constituição da República), deve ser assegurado idêntico direito de ação. De mais a mais, ao contrário do que se consignou na sentença, o fato é que, independentemente da expressa e específica manifestação de vontade dos pais socioafetivos quanto à filiação se comprovado, no processo, por todos os meios de provas admissíveis em direito, haverem eles assumido, de fato, a recorrente como filha, para todos os fins e efeitos de direito (tractatus, nominatio e reputatio), a declaração revelar-se-á inolvidável. Saliento, aliás, que a própria assunção já consubstancia, em princípio, a exteriorização da vontade dos pais socioafetivos. Do contrário, não fosse essa a intenção deles, jamais haveriam de tratar como filha, diante de seus pares na sociedade, uma criança que não o é. Portanto, parece irrecusável admitir que, abstratamente considerado, o pedido encontra suporte no direito positivo vigente. Agora, se a pretensão tal qual deduzida vai ser acolhida, ao final, quando do julgamento de mérito, após a necessária dilação probatória, isso somente a sentença irá dizê-lo. De se sublinhar, ainda, que circunstância de haver, nos assentamentos civis da apelante, o registro do nome de sua genitora biológica, não constitui óbice ao reconhecimento da filiação socioafetiva. De fato, fosse assim, só poderia pleitear o reconhecimento do vínculo socioafetivo a pessoa que não tivesse absolutamente ninguém registrado como pai e mãe nos assentos civis! Não é isto, porém, o que sucede. Tanto é assim que na Justiça pululam casos que versam sobre a dissociação entre os laços biológicos e afetivos, a respeito dos quais o Poder Judiciário é instado a decidir qual deles deva prevalecer. O registro público compraz-se, tão-só, com a verdade real - seja a biológica ou a socioafetiva-, de sorte que, na hipótese de se revelar equivocado, a sua alteração é medida que se impõe, até mesmo como simples consectário da sentença de acolhimento do pedido. Ante o exposto, pelo meu voto eu dou provimento ao recurso, para o fim de, cassando a sentença, determinar que o processo, na origem, prossiga como de direito” (TJ-SC Apelação Cível : AC 640664 SC 2008.064066-4) Porém, a definição de afetividade em análise é incompleta, pois a afetividade não pode ser reduzida a posse do estado de filho. Afirmar do contrário seria um retrocesso, pois se reduziria a afetividade apenas as relações de filiação, desconhecendo, assim, as famílias que não constituíssem prole, a exemplo da família unipessoal, uniões homoafetivas, famílias anaparentais, casamentos e outras uniões sem a presença de filhos. Logo, a afetividade e os efeitos normativos de sua publicidade atingem todos os elos interpessoais familiares, pois a afetividade nada mais é que a autorresponsabilidade e a alteridade produzidas pelas deliberações livres e públicas dos indivíduos, que optaram pela vinculação solidária na criação de um núcleo familiar.

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3. Da natureza jurídica da afetividade: a autorresponsabilidade na relação familiar A afetividade, independente de questões sentimentais, é a inserção da autonomia da vontade dentro do direito de família, seja na concepção de uma crianças, nas três constituições de filiação (biológica, adotiva ou afetiva), na constituição de uniões solenes ou tácitas, os agentes constituidores assumem responsabilidade sobre seus efeitos (autorresponsabilidade). A vontade, como expressão deliberativa decisória, para Kant é regida pela razão prática, de natureza epistêmica, força fundamentadora da moralidade. As leis práticas, pelo seu escopo racional, possuem natureza objetiva, incondicional e universal. A lei moral independe, portanto, da contingência, pressupondo uma vontade boa autossuficiente, não vinculada ao mundo dos fenômenos (ao caráter empírico). Trata-se de uma moralidade formal, sem conteúdo, um conjunto de critérios, uma fórmula decisória que orienta a vontade. Como afirma Kant: "Um ser racional não deve conceber as suas máximas como leis práticas universais, podendo apenas concebê-las como princípios que determinam o fundamento da vontade, não segundo a matéria, mas sim pela forma" (KANT, 2005, p.37). Logo, a vontade esta desvinculada dos fenômenos, sendo uma expressão autêntica de liberdade. A lei moral é, portanto, um imperativo categórico, incondicional e universal de conteúdo formal, que segue o primado: "Age de tal forma que a máxima de tua vontade possa valer-te sempre como princípio de uma legislação universal" (IBIDEM, p. 40). Como ser racional, o homem reconhece a lei como dever, aonde "a autonomia da vontade é o único princípio de todas as leis morais e dos deveres correspondentes às mesmas" (IBIDEM, p.43). O homem, assim, pelo livre-arbítrio, delibera pela ação e assume a responsabilidade total pelos seus atos. Não se deve confundir a autonomia da vontade com a autonomia privada, também tão alardeada no “novo direito de família”. A autonomia privada é uma potestas, a capacidade individual de deliberar, ou melhor, a liberdade de iniciativa. Pela autonomia privada o agente identifica, estabelece e regula interesses, recorrendo ao contrato. Ratificando nas palavras de Betti, a autonomia privada deve ser entendida "como pressuposto e causa geradora de relações jurídicas, já disciplinadas, em abstrato e em geral, pelas normas dessa ordem jurídica. É, portanto, reconhecida como atividade e potestas, criadora, modificadora ou extintora de relações jurídicas entre particulares" (BETTI, 1969). A autonomia privada garante a supremacia decisória do homem, enquanto sujeito de direito (facultas agendi) na disposição de seus interesses, independente de sua posição ou reconhecimento social (emancipacionismo). Francisco Amaral define como autonomia privada “o poder que os particulares têm de regular, pelo exercício de sua própria vontade, as relações que participam, estabelecendolhe o conteúdo e a respectiva disciplina jurídica” (AMARAL,2003, p. 347-348). Na concepção liberal, a autonomia privada, é capacidade deliberativa e autorreguladora do homem, exercida na constituição de acordos, de contratos. Josserand, inspirado na tradição jusromana, afirmava “que dizer contratual é dizer justo”("qui dit contractual, dit juste"), pois o equilíbrio entre as partes e o senso de justiça emergiriam do próprio exercício racional liberdade dos agentes (norma é fruto da liberdade). A liberdade pressupõe igualdade, fazendo dos manifestantes juízes comutativos de suas ações. Essa mentalidade foi superada com supremacia da ordem pública e dos princípios sociais, que mitigaram a capacidade deliberativa das pessoas. A exemplo da função social do contrato, Pablo Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho afirma que “é, antes de tudo, um princípio jurídico de conteúdo indeterminado, que se compreende na medida em que lhe reconhecemos o precípuo efeito de impor limites à liberdade de contratar, em prol do bem comum” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2006, p. 48). Logo, na autonomia privada, a norma resulta diretamente da deliberação, do consenso, pela estipulação livre, capaz (pressupõe racional) e legítima das partes igualmente reconhecidas. Os deveres e excludentes nascem conscientemente da vontade, que automitigam a vontade. Na autonomia da vontade o dever é um pressuposto racional, a autorresponsabilidade é inerente a deliberação, e seus efeitos vinculantes nem sempre são previsíveis e aceitáveis pelas partes, mas devem ser assumidas. A noção de autorresponsabilidade pode ser justificada para além do solipsismo kantiano, a exemplo da alteridade levinariana. A Alteralidade de Emmanuel Levinas encontrase na relação intensa de amor e entrega entre as parte (“Amar é existir”/ “intersubjetividade do amor”). Os agentes não se comportariam como interlocutores apenas, mas se colocariam como

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objetos de mútua compreensão (construção dos rostos), ocorrendo, pela mediação da linguagem, a mútua incorporação da alteridade na identidade, ou seja, a alteridade seria uma forma de incorporação à identidade do “eu”. O “outro” representa a liberdade, pois escapa ao domínio do “eu” (“sobre ele não posso poder”). O “eu”, no intuito de atingir o “outro”, seria inserido à totalidade, mas não é absorvido. O telos desse modelo seria a constituição de uma cultura de expressão e responsabilidade “para-o-outro” e a limitação do “si-autônomo” (LEVINAS, 2005, p. 43 / 1980, p.21,27). Na hospitalidade de Jacques Derrida há uma continuidade da alteralidade, voltado à linguagem (“linguagem é hospitalidade”), porém com certa inspiração no modelo kantiano. A hospitalidade seria estabelecida na partilha, compromisso e amizade (amor), mediante o acolhimento incondicional e infinito, cuja linguagem apresentaria importância moral mediadora. Deve-se entender a incondicionalidade como “acolher o outro na sua estranheza, isto é dissociado de toda e qualquer pertença, no registro do instituído ou da condicionalidade”. A ética nova, essência da lei da hospitalidade, não é, portanto, fixa e nem pré-estabelecida, sendo procedimental e mutante, reinventando-se no processo histórico, exercida solitariamente por quem acolhe, expondo o sujeito à vinda do outro e possibilitando a publicidade do espaço público. O modelo derridariano apresenta características da alteridade levinariana, ao tratar o hóspede como o libertador do senhorio (crise do sujeito – Grundmotiv da pluralidade e da diferença). Encontra-se aqui a concepção de amor fraterno (philia), mas em uma condição radicalizada de entrega unilateral (projeção do “eu” no “outro”/ amar para depois ser amado), sem que haja, necessariamente, a proximidade (reconhecer sem conhecer/ “amigos da solidão” / DERRIDA, 1994, p.110-113). O hóspede ao ser hospedado vem em direção ao hospedeiro assumindo seu lugar, inserção do “outro” no “eu”/ senhorio do senhorio). Logo, como já observado, o “outro” não deve ser considerado estrangeiro, mas o “chegante absoluto” (evidenciação da alteridade / o visitante está livre para vir ou não / DERRIDA, 2003, p. 35-38, 55). Entretanto, o “eu” e sua autonomia não são negados, pois, para Derrida, a liberdade é um atributo essencial no espaço público e democrático. Na democracia, o eu autoafirmativo, identitariamente soberano é indispensável no exercício dos direitos políticos, da liberdade de expressão. Logo, mesmo na relação alterizante, o “eu” não perde seu rosto e sua vontade (ipseidade / IBIDEM, p. 82, 86, 90-92). É no sentido de uma autorresponsabilidade voltada ao “outro”, que Luc Ferry entende a afetividade. A afetividade é expressão privada do valor sagrado maior da modernidade, a Dignidade da pessoa. O sagrado deve ser tratado como expressão de racionalidade mítica voltada para o auto-entendimento, uma experiência numinosa que dá sentido a vida (CALLOIS, 19??, p. 1820) constituindo coletivamente sentidos éticos de prudência e solidariedade. É, portanto, de forma simultaneamente uma experiência subjetiva e alterizante (OTTO, 19??, 40), está comprometido o “Outro Absoluto” (entidade inefável), sendo um mediador entre o indivíduo e o coletivo. A sacralidade não é apenas um fenômeno exclusivamente religioso, mas secular. Timothy Crippen (CRIPPEN,1988) a Luc Ferry (FERRY, 2012, 90-91; 92-118) defendem a existência de valores sagrados na sociedade moderna, mesmo em um mundo da vida desencantado. Isso já não é novidade, pois já se observa isso no culto aos símbolos nacionais (BOUDIEU,2012, p. 140). A questão é Luc Ferry identifica na sociedade pós-nacional, um novo paradigma de sacralidade já existente no iluminismo, mas toma uma conotação difusa, é individual, mas ao mesmo tempo transpessoal, interssubjetivo, alterizante: a Dignidade. Há a divinização do Homem, seja em sua individualidade e em seu espaço privado, seja no gênero e no espaço público. A divinização do homem encontra-se na proteção de sua integridade, dos direitos fundamentais, de sua diversidade, seja no pluralismo ou no multiculturalismo, e da tutela das deliberações, no exercício decisório, na manifestação de vontade, sejam em seus efeitos gozosos ou obrigacionais. Da mesma forma a Dignidade e o exercício da liberdade são protegidos no espaço privado, por meio dos direitos de personalidade e pela constituição da família, primeira experiência coletivizante, formadora dos valores de caráter, espaço de acolhimento e, quando há vulnerabilidades dos integrantes, de proteção. A família não deve ser tratada como uma instituição tradicional acima do homem, mas a consequência vinculante e nem sempre calculada, mas possível, das escolhas, das deliberações em prol da plenitude e felicidade de

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seus integrantes (FERRY, 2007, p.76-98). A família constituída pela vontade de seus integrantes livres e capazes gerará, pela força da autorresponsabilidade e da alteridade, gerará efeitos vinculantes, inclusive patrimoniais. Essa força vinculante é a afetividade, uma das vertentes privadas da dignidade da pessoa, que só é tutelável quando se torna pública, ou seja, a sócio-afetividade. Bibliografia Amaral, Francisco. Direito Civil: Introdução. 5.ed. rev. atual. e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2003 Anderson, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Cia das Letras, 2011 Betti, Emilio. Teoria Geral do Negócio Jurídico. Coimbra : Coimbra Editora, 1969 Beviláqua, Clóvis.Código Civil Comentado dos Estados Unidos do Brasil. Edição Histórica. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1973, vol.1 Calvino, João.As institutas. São Paulo: Editora Presbiteriana, 1985, vol. 2 Derrida, Jacques. De Da hospitalidade. Viseu: Ed. Palimage, 2003 Derrida, Jacques. Políticas da Amizade. Porto: Ed. Campos das Letras, 2003. Dias, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: RT, 2012 Farias, Cristiano Chaves de; Rosenvald, Nelson. Curso de Direito de civil: família. 4.ed. Salvador: Juspodium, 2011 Fachin, Luiz Edson. Da Paternidade: Relação biológica e afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. Farias, Cristiano Chaves de. Temas atuais de direito e processo de família, Primeira Série, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004 Ferry, Luc. Família, amo vocês. São Paulo: Objetiva, 2007 _______. A revolução do amor: por uma espiritualidade laica. São Paulo, 2012 Gagliano, Pablo Stolze; Pamplona Filho, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil: Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2011, vol.6 ________. Novo Curso de Direito Civil: Contratos. São Paulo: Saraiva, 2006, vol.4 Kant, Immanuel. Crítica da razão prática. São Paulo: Ícone, 2005 Levinas, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteralidade. 2 ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2005 Levinas, Emmanuel. Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70, 1994 Lobo, Paulo. Direito Civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2012 Lutero, Martinho. Da liberdade dos cristãos. São Paulo: Edunesp, 1998 Mirandola, Pico della. Oratio de hominis dignitate. trad. Discurso sobre a dignidade do homem. Lisboa: Edições 70 Pessanha, Jackelline Fraga. A afetividade como princípio fundamental para a estruturação familiar. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/artigos/detalhe/788. Acesso em 26/10/2013. Tartuce, Flávio. Direito Civil:direito de família: São Paulo: Método, 2012, vol. 5 ________. O princípio da afetividade no Direito de Família. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/artigos/detalhe/859. Acesso em21/10/2013 Taylor, Charles. A secular age. Harvard: Belknap Press, 2007

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A FILOSOFIA DO DIREITO CONTEMPORÂNEA E A SOCIEDADE CIVIL-BURGUESA EM FACE DO DEBATE COM A FILOSOFIA HEGELIANA: HABERMAS, LUHMANN E LUKÁCS

Vitor Bartoletti Sartori Graduado em Direito pela USP, mestre em história pela PUC/SP e doutor em teoria geral e filosofia do Direito pela USP. É autor do livro Lukács e a crítica ontológica ao Direito e professor de Ciência política e teoria do Estado na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo.

Resumo: Partindo de debate estabelecido na filosofia do Direito, procuraremos mostrar que mesmo um embate contemporâneo, como aquele entre Luhmann e Habermas, traz consigo questões que remetem ao tratamento dispensado por Hegel a temas importantes do pensamento ocidental. Partindo do embate mencionado, buscaremos traçar a atualidade da noção de contradição, que traz consigo a relação dialética entre identidade e diferença e, na atualidade, é tratada de modo coerente tanto pela filosofia hegeliana propriamente dita quanto pela filosofia marxista que, na figura de Lukács, estabelece um diálogo de grande interesse com a posição adotada por Hegel face à sociedade civil-burguesa, o Estado e o Direito. Palavras-chave: Habermas, Luhmann, Hegel, Lukács, Direito Abstract: We intend to show that, even taking in account the contemporary debate on philosophy of Law, as it appears in Habermas and Luhmann for instance, matters discussed carefully by Hegel are still very important. As long as we deal with the Habermas-Luhmann debate, we intend to prove that the notion of contradiction (which is inseparable from difference and identity) is of great use nowadays. We will deal with this issue confronting different positions towards modern civil society, Law and State. Hegelian philosophy and Marxism will be confronted as we analyze Lukács work, which opposes to Hegelian philosophy of Law. Key-words: Habermas, Luhmann, Hegel, Lukács, Direito 1 Aqui, partindo da problemática colocada na filosofia do Direito contemporânea, procuraremos tratar da complexa relação entre Direito e sociedade, mostrando que o modo como compreendemos o primeiro tem ligação indissolúvel com a historicidade da sociedade civil-burguesa (bürguerliche Gesellschaft). Ela traz consigo, de um lado, a totalização do capital, enfocada por István Mészáros (Cf. MÉSZÁROS, 2002), doutro o sujeito de direitos universal, que alberga os direitos fundamentais em seu conceito (Begrieff) (Cf. SALGADO, 2006). Ao tratar do tema, assim, são importantes apontamentos de cunho metodológico, referentes, de um lado, ao “paradoxo” enfocado por Luhmann (Cf. VILLA BOAS e GONÇALVES, 2013) e, doutro, à valorização da “contradição” que se conforma na dialética entre identidade e diferença, elas mesmas

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determinações reflexivas (Reflexionsbestimmungen).13 Com isso em mente, há grande destaque a ser dado ao “acerto de contas”, mesmo que implícito, com Hegel por parte de pensadores influentes na atualidade, como Luhmann (Cf. LUHMANN, 1983) de um lado e Habermas (Cf. HABERMAS, 2002) por outro: de um lado, tem-se a valorização da autopoiesis e do fechamento dos subsistemas (como o Direito), doutro, a porosidade do Direito à moral e à argumentação calcada na ética do discurso (Cf. HABERMAS, 2003), que muito influencia um importante autor da teoria do Direito como Robert Alexy na conformação de seu “constitucionalismo discursivo” (Cf. ALEXY, 2011 b). Habermas e Luhmann, como se pretende mostrar, tratam da relação entre Direito e sociedade na medida em que tematizam a questão, respectivamente, com recurso à teoria dos sistemas e à teoria da ação comunicativa, as quais, entretanto, vem a deixar de lado, em nossa opinião, uma compreensão rigorosa das determinações reflexivas, compreensão essa que reflita sobre a conformação da história mundial (Weltgeschichte), principalmente, tendo em vista os desdobramentos que remontam ainda à Revolução Francesa, a qual fora tematizada como central por importantes autores como o húngaro György Lukács em seu O jovem Hegel (Cf. LUKÁCS, 1963), texto que enfoca o caráter antagônico da sociedade civil-burguesa. No Brasil, mais especificamente na filosofia do Direito, o tema foi apreciado por Joaquim Salgado, que traz a reconciliação (Versöhnung) hegeliana para tematizar a realização da ideia de liberdade no Estado Democrático de Direito. (Cf. SALGADO, 2006). Aqui, traçaremos este panorama tendo enfocado o acerto de contas com Hegel. Procuramos compreender a relação entre Direito e sociedade mostrando que a autonomização (relativa) do Direito frente à sociedade só aparece efetivamente como um fruto da relação do primeiro com a sociabilidade que emerge com a consolidação da sociedade civilburguesa. Com Lukács (Cf. LUKÁCS, 2012), entendemos que a separação mesma das esferas do ser social (gesellschaftlichen Seins) não é fruto senão da indissociabilidade entre o indivíduo, a natureza e a sociedade (considerada em sua complexidade) (Cf. LUKÁCS, 1963). Assim, são o trabalho abstrato

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, a propriedade, o Direito, os direitos fundamentais e o Estado

inseparáveis, podendo somente ser compreendidos, por assim dizer, dialeticamente, tendo-se em conta “a forma originária da contradição hegeliana, a identidade da identidade e da não identidade.” (LUKÁCS, 2012, p. 242) Ou seja, desde o início, percebe-se que questões, por assim dizer, “metodológicas” aparecem por centrais no debate acerca da relação entre Direito e sociedade na medida em que a identidade e a diferença, que aparecem de modo mais concreto na contradição (Cf. LUKÁCS, 2012), não só conformam um todo indissolúvel, como também conformam um todo em que as categorias não são conceitos congelados, mas, mesmo que se tenha na forma do espírito absoluto hegeliano uma sistematização, formas expressas também na própria realidade histórico-social, presentes – em movimento - naquilo

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Para a crítica ao tratamento hegeliano da questão, Cf. HEIDEGGER, 2006; para uma abordagem que vê nas determinações reflexivas algo essencial à filosofia pós-hegeliana, Cf. LUKÁCS, 2012. 14 Como diz Fortes, o trabalho abstrato “aparece como elemento que dissolve o humano, como atividade inibidora do pleno desenvolvimento dos indivíduos – a alienação (Entfremdung).” (FORTES, 2012, p. 76)

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que Hegel chamou de espírito objetivo (momento esse da dialética histórica em que está a sociedade civil-burguesa, o Direito e o Estado).15 O modo de lidar com as categorias mencionadas (o trabalho abstrato, a propriedade, o Direito, os direitos fundamentais e o Estado) - que são constitutivas da própria sociabilidade atual,

que

são

“formas

de

ser

(Daseinformen),

determinações

de

existência

(Existezbestimmungen)” (MARX, 1993, p. 106) - traz consigo uma posição sobre a sociedade, de modo que, no limite, a esfera jurídica, mesmo que, por vezes, apareça na cotidianidade (Alltaglichkeit) eivada pela reificação (Verdinglichung), e, assim, como essencialmente “técnicojurídica” (Cf. SARTORI, 2010), tem consigo um substrato social que lhe é determinante. Isso se dá, seja considerando, como quer Lukács, ser preciso “afirmar, teórica e praticamente, a prioridade do conteúdo político-social em relação à forma jurídica” (LUKÁCS, 2007, p. 57), seja considerando que no Estado Democrático de Direito (impensável sem a centralidade do Direito) pode encontrar-se suprassumidos (aufgehoben) o antagonismo social e a política, essa última que teria sido valorizada na filosofia (mesmo em Hegel) em detrimento do aspecto jurídico (Cf. SALGADO, 2006). Em ambos os casos, tratar do Direito significa tratar da sociedade ao mesmo tempo, de modo que, aqui, buscar-se-á percorrer o traçado delineado acima de modo a mostrar, em um primeiro momento, a insuficiência das abordagens de Luhmann ou de Habermas quanto à relação entre o Direito e a sociedade, para, então, mostrar a diferença existente entre as posições de Lukács e do hegelianismo, aqui, analisado na figura do jurista nacional Joaquim Salgado. 2 Trataremos as questões metodológicas mencionadas principalmente com referência ao autor dos Princípios da filosofia do Direito; isso se dá não só por Lukács tê-lo colocado em lugar privilegiado da história da filosofia (Cf. LUKÁCS, 1959), ou por Habermas estipular que o discurso moderno começa com o autor (Cf. HABERMAS, 2002), nem mesmo por Joaquim Salgado ter sido fortemente influenciado pelo autor, principalmente mediante os ensinamentos do Pe. Henrique Vaz (SALGADO, 1996). Começaremos pelo autor na medida em que o que está em tela ao se tratar da relação entre sociedade e Direito passa obrigatoriamente pela compreensão da relação entre identidade e diferença, que conformam uma unidade contraditória, segundo Hegel. (Cf. HEGEL, 1982) Vejamos como a questão se coloca, por assim dizer, “metodologicamente” para que, então, se possa falar de Luhmann e Habermas. Certamente Hegel manifestou um apego sem precedentes pela totalidade, categoria fortemente criticada pelo chamado pós-modernismo (Cf. JAMESON, 1997). Para o autor da Fenomenologia do espírito, “o verdadeiro é o todo. Mas o todo é somente a essência que se implementa através do seu desenvolvimento.” (HEGEL, 2003 a, p. 36) Também se tem que, para este pensador, o conceito mesmo é totalidade

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de tal feita que o momento sistemático

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Marx e Lukács bebem muito na compreensão de Hegel acerca das determinações reflexivas. No entanto, isso não quer dizer que haja concordância total. Para uma crítica ao tratamento hegeliano da questão, Cf. LUKÁCS, 2012, 2010, 1963, 1966. De modo mais modesto, Cf. SARTORI, 2013. 16 Segundo Hegel “o conceito é o [que é] livre, enquanto potência substancial essente para si, e é totalidade, enquanto cada um dos momentos é o todo que ele [mesmo] é, e é posto com ele como unidade inseparável; assim, na sua identidade consigo, o conceito é o determinado em si e a para si.” (HEGEL, 2005, p. 292)

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da filosofia hegeliana contém em si tanto a historicidade (Geschichtlichkeit) e a consideração da mudança (que tem consigo a consideração da contradição)

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quanto a prevalência do todo

que se manifesta quando “a filosofia é a inteligência do presente e do real, não a construção de um além” (HEGEL, 2003 b, p. XXXV) enquanto “o racional é real e o real é racional” (HEGEL, 2003 b, p. XXXVI). Ou seja, talvez se possa apontar, como fez Engels (Cf. ENGELS, 1962), uma contradição entre sistema e método18 no autor da Ciência da lógica (Cf. LUKÁCS, 2012), no entanto, há de se considerar que Hegel nunca pode ser reduzido a um dogmático (Cf. ARANTES, 1982) mesmo que aponte Marx que “em sua forma mistificada, a dialética foi à moda alemã porque ela parecia tornar sublime o existente.” (MARX, 1988, p. 27) . Aqui não trataremos da pertinência das críticas de Marx nesse momento da exposição, restando só apontar que, em Hegel, procura-se compreender em sua real tessitura a realidade efetiva (Wirklichkeit) enquanto algo processual, racionalmente apreensível, contraditório, e voltado a uma conformação racional. Metodologicamente, pois, a dialética hegeliana se coloca como aquela que busca o “racional em-si e para-si”, tendo-se a processualidade histórica expressa no conceito somente na medida em que se tem, juntamente com a valorização da razão (Vernunft) e a categoria da reconciliação (Versöhnung), um realismo digno de elogios (com as devidas mediações) de alguém como György Lukács.

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Assim, em Hegel, “a missão da filosofia está em conceber o

que é, porque o que é, é a razão.” (HEGEL, 2003 b, p. XXXVII), sendo que o autor nada mais buscou em seu Princípios da filosofia do Direito que “conceber o Estado como algo racional em si”. (HEGEL, 2003 b, p. XXXVII) – se é verdade que, como indica Ranieri, “ao procurar apreender aquilo que é, Hegel abre-se à imanência da história.” (RANIERI, 2011, p. 35), tem-se também que a sociedade civil-burguesa é vista como um palco que não pode ser material e efetivamente transformado e suprimido (aufgehoben) no sentido de Marx20, podendo somente aparecer como suprassumido no Estado por meio do Direito, sendo a sociedade existente, ao menos em sua estrutura produtiva, segundo Hegel, algo que já alcança a sua realidade enquanto conceito.21 Tratar do Direito, assim, para o autor da Fenomenologia do espírito, implica em tratar do todo, de tal feita que justamente a mediação entre a sociedade civil-

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Para o autor: “há de se pensar a mudança pura, ou a oposição em si mesma: a contradição" (HEGEL, 2003 a, p. 128) 18 Em outro texto, aponta Engels sobre Hegel: “com efeito, sua filosofia padecia ainda de uma grande contradição interna incurável, pois que, se, por um lado, considerava como suposto essencial da concepção histórica, segundo a qual a história humana é um processo de desenvolvimento que não pode, por sua própria natureza, encontrar solução intelectual no descobrimento disse que se chama verdades absolutas, por outro, se nos apresenta precisamente como resumo e compêndio de uma dessas verdades absolutas. Um sistema universal e compacto, definitivamente plasmado, no qual se pretende enquadrar a ciência da natureza e da história, é incompatível com as leis da dialética.” (ENGELS, 1990, pp. 22-23) 19 Veja-se o que diz o pensador húngaro: “esta reconciliação é, por um lado, uma mistificação idealista de contradições irresolúveis; mas, por outro lado, ela expressa ao mesmo tempo o sentido realista de Hegel, sua proximidade da realidade social concreta de sua época, seu profundo conhecimento da vida real da sociedade humana, seus esforços de descobrir as contradições do progresso no seu verdadeiro campo de batalha que está na vida econômica do homem.” (LUKÁCS, 1963, p. 413) 20 É bom lembrar que em Marx a “configuração racional” da dialética “não se deixa impressionar por nada e é, em sua essência, crítica e revolucionária.” (MARX, 1988, pp. 20-21) 21 Assim, em Hegel, o solo da sociedade civil-burguesa, suprassumido (aufgehoben) no Estado, aparece na medida em que “o progredir do conceito não é mais [o] ultrapassar nem [o] aparecer em Outro, mas é desenvolvimento, enquanto o diferenciado é imediatamente posto ao mesmo tempo como idêntico, um com o outro e com o todo; [e] a determinidade como um livre ser do conceito completo.” (HEGEL, 2005, p. 293)

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burguesa e Estado (em que o Direito é essencial), deve ser vista com cuidado. Tal questão figura como algo de grande relevo. Seria, pois, um disparate falar da esfera jurídica sem tratar da sociedade, conformada na realidade efetiva, como um todo complexamente estruturado. Hegel, pois, estabelece algo que será essencial tanto aos marxistas como aos hegelianos, chegando mesmo o jovem Lukács (ainda eivado por algum hegelianismo) a dizer que “não é o predomínio de motivos econômicos na explicação da história que distingue de maneira decidida o marxismo da ciência burguesa, mas o ponto de vista da totalidade.” (LUKÁCS, 2003, p. 105) Tem-se, assim, uma questão que se coloca de modo pungente àqueles engajados, ao mesmo tempo, no debate filosófico e no debate jurídico, como Hegel (Cf. SALGADO, 1996) e Lukács (Cf. SARTORI, 2010). Ocorre, entretanto, que justamente esse ponto (a valorização da categoria da totalidade) é colocado em xeque, mesmo que de modo reflexo, por autores importantes da filosofia do Direito contemporânea, como Luhmann e Habermas, os quais, aliás, traçaram um debate interessante justamente sobre o Direito. (Cf. VILLAS BOAS, 2008) No que, neste momento, vale analisarmos algumas questões importantes trazidas por esses autores. Isso se dá até mesmo porque o debate “jurídico”, talvez pela primeira vez na história da filosofia, aparece como central aos filósofos, como o autor da Sociologia do Direito e de Direito e sociedade. Após tratar deste embate, voltaremos a uma análise que privilegia a categoria da totalidade, retornando ao hegelianismo e a Lukács. 3 Um primeiro aspecto a ser trazido à tona é ser preciso ver a questão com cuidado na medida em que tanto não há uma fetichização dos subsistemas em Luhmann (Cf. CAMPILONGO, 2011 a) quanto não há uma recusa absoluta da totalidade em Habermas (Cf. BLOTTA, 2009). Ou seja, é preciso escapar de críticas rasteiras aos autores mencionados. O autor da Sociologia do Direito reconhece que “o direito reflete-se direta ou indiretamente em todas as esferas da vida, sendo, portanto, dificilmente isolável, em termos empíricos, como um fenômeno específico.” (LUHMANN, 1983, p. 8) Já no autor de Direito e democracia, após colocar o “discurso filosófico da modernidade” ao lado da razão prática e daquilo que chama de “filosofia do sujeito”, diz que, ao final, “a filosofia prática da modernidade parte da ideia de que indivíduos pertencem à sociedade como os membros a uma coletividade ou como as partes a um todo que se constitui através da ligação de suas partes.” (HABERMAS, 2003, p. 17) A razão prática, assim, teria sido central à modernidade na medida mesma em que teria levado, juntamente com a “filosofia do sujeito”, a aporias (segundo Habermas, relacionadas à ausência de um conteúdo normativo defensável nos termos dessa forma de razão, que teria se ligado, mesmo que de modo reflexo, à “razão instrumental” (Cf. HABERMAS, 2007), de modo que o autor de Direito e democracia decide “encetar um caminho diferente, lançando mão da teoria do agir comunicativo: substituo a razão prática pela comunicativa.” (HABERMAS, 2003, p. 19). Ou seja, deve-se destacar aqui que, em dois sentidos precisos, os autores mencionados neste momento não abandonam a noção de totalidade: primeiramente, ao buscarem elaborar um

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construto categorial ordenado e coerente (de um lado a teoria dos sistemas, doutro a teoria do agir comunicativo), em segundo lugar, ao relacionarem na prática a atividade social (vista aqui na prática jurídica) com o todo social. Neste sentido preciso, admitem que o Direito não pode ser tratado sem se ter em conta as outras esferas da sociedade. No entanto, o modo como isso ocorre passa por uma compreensão muito diferente da totalidade, a qual é entendida de modo peculiar por cada pensador. Enquanto Habermas tem uma relação dúbia com essa, deixando de ter por central Hegel (e também a noção segundo a qual “o verdadeiro é o todo”) razão prática kantiana

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e buscando amparar-se em uma releitura comunicacional da

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, Luhmann procura enfatizar o lado, por assim dizer, “oposto”:

enquanto o autor de O discurso filosófico da modernidade procura resguardar o máximo possível a possibilidade da “comunicação orientada para o entendimento recíproco” (HABERMAS, 2001, p. 101), que, tendo-se em conta a distinção entre trabalho e interação (Cf. HABERMAS, 2007) poderia estar presente nas mais distintas esferas do todo social, o autor da Sociologia do Direito busca justamente a linguagem específica, o código, de cada subsistema, sendo que tais códigos exerceriam funções precisas e marcadas por uma forte diferenciação (Cf. VILLA BOAS e GONÇALVES, 2013), havendo perturbações nos subsistemas quando, por exemplo, os códigos da política (governo/oposição) fossem levados aos tribunais, que operariam no código lícito/ilícito. Isso não necessariamente levaria à desdiferenciação social (Cf. CAMPILONGO, 2011 a), mas isso poderia ocorrer, o que faria com que, no caso do Direito, aquilo que Luhmann chama de contingência e de complexidade do mundo

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não pudessem

ser tratadas de modo que houvesse ensejo ao convívio social com o mínimo de estabilidade, propiciado, segundo o autor da Sociologia do Direito, somente com recurso ao Direito. E, neste sentido, é bom dizer: para o autor, “toda convivência humana é direta ou indiretamente criada pelo Direito.” (LUHMANN, 1983, p. 7) Habermas, assim, aposta na dimensão universal da linguagem, ao passo que Luhmann enfatiza, de certo modo, o lado oposto da questão. O autor da Sociologia do Direito define o Direito como “estrutura de um sistema social que se baseia na generalização congruente de expectativas comportamentais normativas” (LUHMANN, 1983, p. 121), sendo estas últimas, em parte, contrafáticas, devendo elas, em verdade, permanecer como expectativas mesmo que sejam frustradas; aquilo que Luhmann 22

Já Adorno, que influencia Habermas no começo de sua carreira, diz que “todo é o inverdadeiro” (ADORNO, 1951, p. 46), tendo-se na sociedade civil-burguesa a “inverdade da totalidade dominadora” (ADORNO, 2006, p. 72) 23 Diz Habermas: “a razão comunicativa distingue-se da razão prática por não estar adstrita a nenhum ator singular nem a um macrosujeito sociopolítico. O que torna a ação comunicativa possível é o médium linguístico, através do qual as interações se interligam e as formas de vida se estruturam.” (HABERMAS, 2003, p. 20) Depois, ao tratar da relação entre Kant e sua teoria, afirma haver clara relação: “- entre a ‘ideia cosmológica’ da unidade do mundo (ou da totalidade das condições do mundo sensível) e a suposição pragmática de um mundo objetivo comum (1); - entre a ‘ideia de liberdade’ como um postulado da razão prática e a suposição pragmática da racionalidade dos atores imputáveis (2); - entre a alteração totalizadora da razão que, enquanto ‘capacidade das ideias’, transcende todo o condicionado na direção de um incondicionado, e a incondicionalidade das exigências de validez levadas no agir comunicativo (3) - finalmente, entre a razão como ‘capacidade de princípios’, que assume o papel de ‘tribunal supremo de todos os direitos e exigências’ e o discurso racional como fórum não previamente viável de justificação possível (4).” (HABERMAS, 2002, pp. 36-37) 24 Vê-se que o construto luhmanniano não é essencialmente estático na medida em que a contingência mesma e a complexidade aparecem como constitutivas do mundo na medida em que pela prática dos homens tem-se que “existem, além dos demais sentidos possíveis, outros homens que se inserem no campo de minha visão como um ‘alter ego’, como fontes eu-idênticas da experimentação e da ação originárias. A partir daí introduz-se no mundo um elemento de perturbação, e é tão-somente assim que se constitui plenamente a complexidade e a contingência.” (LUHMANN, 1983, p. 46)

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chama de expectativas normativas diferencia-se das cognitivas, não tanto em termos semânticos, mas funcionais;

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como diz o autor alemão: “ao nível cognitivo são

experimentadas e tratadas as expectativas que, no caso de desapontamentos, são adaptadas à realidade. Nas expectativas normativas ocorre o contrário: elas não são abandonadas se alguém as transgride.” (LUHMANN, 1983, p. 56) Neste sentido, justamente por termos expectativas - que não seriam senão o resultado de um sistema com ineliminável contingência e complexidade oriundas de “perturbações” (o homem é o ambiente para o sistema, em Luhmann) – seria necessário deixar de lado uma contraposição muito cara a Habermas: “a contraposição convencional do fático ao normativo deve [...] ser abandonada. [...] O oposto adequado ao normativo não é o fático, mas o cognitivo.” (LUHMANN, 1983, p. 57) O próprio tema do texto do autor de Direito e democracia é visto como viciado de uma perspectiva epistemológica equivocada: ao tratar do Direito não se deveria tanto passar pela relação entre facticidade e normatividade, mas - partindo da contingência e da complexidade ineliminável do mundo - seria preciso buscar a estabilização das expectativas normativas, mesmo que as normas sejam, segundo Luhmann, “expectativas de comportamento estabilizadas em termos contrafáticos.” (LUHMANN, 1983, p. 57) No caso de Luhmann, parte-se, pois, não só de um mundo contingente: tem-se no autor da Sociologia do Direito a necessidade de um subsistema que se coloque impessoalmente, transformando, em termos operativos, em “personas” 26 os homens (Cf. LUHMANN, 1983), e aparecendo como um mediador que, com o uso de “programas condicionais” (e não ligados à realização de uma finalidade política), vá manter as expectativas dentro dos parâmetros do “sistema”. No entanto, se a crítica de Luhmann a Habermas vai contra a teoria do discurso utilizada pelo último e também vê como equivocada a pretensão de relacionar a facticidade com a normatividade, apontando pretensos equívocos epistêmicos nos próprios termos habermasianos, o autor de Direito e democracia não deixa também de criticar o pensador da Sociologia do Direito. Jürgen Habermas diz que Luhmann, ao tratar do Direito do modo que como o faz, vem a deixar de lado a dimensão normativa da esfera jurídica (Cf. VILLAS BOAS, 2008), consequentemente, sendo levado a uma posição que deixa de lado qualquer forma de racionalidade, inclusive a comunicativa, esta última a qual, por sua vez, como mencionado anteriormente, o pensador do Discurso filosófico da modernidade não pode deixar de valorizar. Com isso, no limite, Luhmann viria a dar ensejo a uma análise decisionista do Direito

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e a uma concepção atomista e, inclusive, hobbesiana da sociedade: O Estado passa a formar um subsistema ao lado de outros subsistemas sociais funcionalmente especificados; estes, por sua vez, encontram-se numa relação configurada como ‘sistema-mundo circundante’, o mesmo acontecendo com as pessoas e a sociedade. Partindo da ideia hobbesiana da autoafirmação naturalista 25

Como diz Luhmann: “nesta acepção [...] a diferença entre o cognitivo e o normativo não é definida em termos semânticos ou pragmáticos, [...] mas sim em termos funcionais, tendo em vista a solução de um determinado problema. Ela aponta para o tipo de antecipação da absorção de desapontamentos, sendo assim capaz de fornecer uma contribuição essencial para o esclarecimento dos mecanismos exemplares da formação do Direito.” (LUHMANN, 1983, p. 56) 26 Em outro trabalho procuramos mostrar que esse aparecer como “persona” no Direito é indissociável da conformação objetiva da reificação na sociedade civil-burguesa. Cf. SARTORI, 2010. 27 Para uma defesa de Luhmann, Cf. Cf. VILLA BOAS e GONÇALVES, 2013.

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dos indivíduos, Luhmann elimina consequentemente a razão prática através da autopoiesis de sistemas dirigidos auto-referencialmente. (HABERMAS, 2003, p. 18) O autor da Sociologia do Direito teria uma visão objetivista e essencialmente antihumanista

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na medida em que o fechamento dos subsistemas faria com que um código

próprio se impusesse (no caso do Direito, o código lícito/ilícito), o que não daria espaço para a razão prática, cujo caráter normativo seria eclipsado pela autopoiesis. Retirar-se-ia de campo, juntamente com o acerto ao se pontuar algumas críticas ao “absolutismo da razão” que teria prevalecido no esclarecimento (Aufklärung), a relação entre a vontade e a razão, presentes na razão prática.

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A relação teria sido reduzida a um esquema que oscila entre o objetivismo do

homem conformado enquanto o ambiente do sistema e o “irracionalismo”, para que se utilize um termo caro a Lukács, do decisionismo. Deste modo, com o caráter autopoiético dos subsistemas haveria efetivamente relação entre eles, no entanto, se a preservação da diferenciação social (Cf. CAMPILONGO, 2011) é algo importante para Luhmann, seria necessário para o autor, do ponto de vista interno do sistema, que se evitasse a desdiferenciação dos subsistemas, os quais poderiam deixar de ser funcionais, de tal feita que em Luhmann a diferenciação social aparece como um processo (Cf. CAMPILONGO, 2011 a) mas, ao mesmo tempo, pode aparecer como uma petição de princípio que, com o caráter autoreferencial dos subsistemas, traria pela porta dos fundos uma espécie de conteúdo normativo amparado pela posição segundo a qual a complexidade social traz consigo uma forma de insegurança (hobbesiana, segundo Habermas) que precisa ser refreada pela estabilização congruente das “expectativas normativas”. Justamente por separar o código político do código moral e do código jurídico, com referência à autopoiesis, Luhmann teria deixado de lado uma teorização coerente da razão prática a qual, segundo o autor da Teoria do agir comunicativo, exigiria que fosse trazida à tona a teoria do discurso, amparada na razão comunicativa (Cf. HABERMAS, 2003). Veja-se, como Habermas, por outro lado, justamente partindo de suas conclusões sobre o Direito se coloca: “de acordo com o resultado de nossas considerações sobre a teoria do direito, o processo da política deliberativa constitui o âmago do processo democrático.” (HABERMAS, 1997, p. 18) 4 Se não é verdade que exista um fechamento absoluto nos subsistemas luhmannianos, é certo que a diferenciação social faz com que eles, mesmo que com a interferência de perturbações externas, operem de acordo com seus próprios códigos. Habermas, por outro lado, enfatiza justamente que pode haver uma linguagem potencialmente universal, a qual poderia estar voltada ao entendimento (Verstehen) na medida em que não se conforma seja

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Aqui também, para a defesa de Luhmann, Cf. Cf. VILLA BOAS e GONÇALVES, 2013. Nesse ponto, é interessante notar que justamente aquilo que Kelsen vê como uma falha de Kant é elogiada por Jürgen Habermas: “um dualismo do ser e dever-ser, já por causa disto, não pode ser encontrado na Filosofia de Kant, porque segundo esta norma moral, o dever-ser moral, a lei da Moral, parte da razão como razão prática, que é a mesma razão, cuja função é conhecimento do ser: pois que razão prática, o legislador moral, e a razão teórica, são no fundo uma, diz Kant.” (KELSEN 1986, p. 99) Depois, continua o autor sobre a relação entre vontade e razão: “o conceito kantiano de razão prática é, assim, o resultado de uma inadmissível confusão de duas faculdades do homem, essencialmente diferentes uma da outra e também por Kant mesmo diferenciadas.” (KELSEN, 1986, p. 101) 29

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como um macro-sujeito seja como um indivíduo mônada (Cf. HABERMAS, 2002), antes, voltando-se ao consenso (Cf. HABERMAS, 2002 a). Neste sentido, segundo o autor de Direito e democracia, poder-se-ia relacionar essa forma de entendimento, típica da razão comunicativa, com a prática diuturna, seja no campo político, seja no campo jurídico, tudo, a partir do que o autor chama de ética do discurso (Cf. HABERMAS, 1999), a qual vem a dar fundamentação tanto aos direitos fundamentais quanto ao Estado democrático de Direito.

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Isso se dá na medida em que Habermas não silencia sobre os limites de uma concepção liberal de Estado, buscando conciliar tanto as virtudes de uma concepção republicana quanto aquelas de uma concepção liberal: Na perspectiva liberal, o processo democrático se realiza exclusivamente na forma do compromisso de interesses. E as regras da formação do compromisso, que devem assegurar a equidade dos resultados, e que passam pelo direito igual e geral ao voto, pela composição representativa das corporações parlamentares, pelo modo de decisão, pela ordem dos negócios, etc. são fundamentais, em última instância, nos direitos fundamentais liberais. Ao passo que a interpretação republicana vê a formação democrática da vontade realizando-se na forma de um auto-entendimento ético-político, onde o conteúdo da deliberação deve ter o respaldo de um consenso entre sujeitos privados, e ser exercido pelas vias culturais; essa precompreensão socialmente integradora pode renovar-se através da recordação ritualizada do ato de fundação da república. Ora, a teoria do discurso assimila elementos de ambos os lados, integrando-os no conceito de um procedimento ideal para a deliberação e a tomada de decisão. Esse processo democrático estabelece um nexo interno entre considerações pragmáticas, compromissos, discursos de auto-entendimento e discursos de justiça, fundamentando a suposição de que é possível achar resultados racionais e equitativos. (HABERMAS, 1997, p. 19) Segundo Habermas, “quem, de modo sério, empreende a tentativa de participar numa argumentação, admite implicitamente pressupostos pragmáticos gerais de teor normativo.” (HABERMAS, 1999, p. 16) Assim, o autor da Teoria do agir comunicativo vem justamente a valorizar a possibilidade do consenso formado no processo argumentativo, em que se tem uma posição performativa por parte dos “sujeitos” – dado que, tanto quanto em Luhmann, não haveria um possível ponto “externo” àquilo que é tratado: não admite Habermas uma muralha entre conhecimento e interesse (Cf. HABERMAS, 2007), sendo importante somente que possa haver compromissos de interesses, os quais poderiam aparecer de modo democrático na medida em que se adota uma concepção procedimental de democracia segundo a qual “todas as normas em vigor teriam de ser capazes de obter a anuência de todos os indivíduos em questão, se estes participassem num discurso prático”. (HABERMAS, 1999, p. 34) O autor, assim, busca justamente o conteúdo normativo da razão na ética do discurso, a qual somente seria possível em uma “situação ideal”, não eivada pelos ímpetos instrumentais e estratégicos advindos daquilo que chama de sistema. Tratar-se-ia de preservar o “mundo da vida”, marcado pela intersubjetividade e pela possibilidade do consenso entre os atores sociais, da colonização 30

Neste sentido específico Habermas e Alexy concordam. Veja-se o que diz o jurista alemão: “a ideia de discurso somente pode ser realizada em um estado constitucional democrático, no qual direitos fundamentais e democracia entram em uma união inseparável, apesar de todas as tensões. A teoria do discurso permite, por conseguinte, não só uma fundamentação dos direitos fundamentais e do homem, ela também se mostra como teoria de base do estado constitucional democrático.” (ALEXY, 2010, p. 127)

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realizada pelo “sistema” (principalmente por meio a “razão instrumental” que teria vigor no trabalho e no campo produtivo em geral, bem como no campo do agir estratégico do Estado). (Cf. HABERMAS, 1997). O Direito, assim, adquire uma função essencial para o autor de Direito e democracia: “a linguagem do Direito pode funcionar como um transformador na circulação da comunicação entre sistema e mundo da vida, o que não é o caso da comunicação moral, limitada à esfera do mundo da vida.” (HABERMAS, 2003, p. 112) Em parte substancial, portanto, aquele que iria garantir a existência de condições discursivas para a vida democrática seria o Direito. Para Habermas, em um mundo pós-metafísico (Cf. HABERMAS, 2002 a), não haveria como se apoiar mais em qualquer forma transcendente de legitimação, de tal modo que “o processo democrático de criação do Direito constitui a única fonte pós-metafísica de legitimação do Direito.” (HABERMAS, 1997, p. 308) E esse processo, como resta claro pela passagem citada acima, teria consigo tanto os benefícios da concepção liberal, fundada – segundo o autor - no apego aos direitos fundamentais, quanto aquilo de melhor da tradição republicana, tratando-se de uma democracia que o autor chama de “radical” na medida em que supõe a participação: “a legitimidade do direito positivo não deriva mais de um direito moral superior: porém ele pode consegui-la através de um processo de formação de opinião eu se presume racional.” (HABERMAS, 1997, p. 319) Essa racionalidade só seria possível com a conformação de uma democracia participativa, a qual se coloca como indissociável da ética do discurso, da mediação do Direito e da legitimação do último por meio da conciliação das virtudes do paradigma liberal e do paradigma republicano. Percebe-se, pois, que, tal qual para Luhmann, o Direito é central. Isso se dá de tal modo que em seu Comentários à ética do Discurso Habermas diz: A teoria da moral tem de deixar essa questão em aberto e transferi-la para a teoria do Direito; a unidade da razão prática só pode ser uma realidade de modo inequívoco no plano de uma rede de formas de comunicação e práticas públicas, nas quais a formação racional da vontade coletiva ganhou uma consciência institucional. (HABERMAS, 1999, p. 117) A importância atribuída à filosofia do Direito pelo autor é grande. Isso se dá, no entanto, somente na medida em que a consciência institucional mencionada não é fruto senão do processo de deliberação embasado na ética do discurso. Ou seja, em grande parte, justamente a busca em preservar a especificidade do “mundo da vida” (e das relações intersubjetivas voltadas ao entendimento mútuo ligado ao consenso) frente à colonização do “sistema” são vistos como centrais por Habermas. Neste sentido, o autor de Direito e democracia define o Direito também em termos que poderíamos ver como funcionalistas (embora num sentido distinto daquele que propõe Luhmann) na medida em que a esfera jurídica se relacionaria justamente à ligação (efetiva) entre “sistema” e “mundo da vida”, procurando evitar a colonização do segundo pelo primeiro. Assim, “nesta linha, a razão prática passa dos direitos humanos universais, ou da eticidade concreta de uma determinada comunidade para as regras do discurso e as formas de argumentação.” (HABERMAS, 1997, p. 19)

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Os direitos humanos, pois, são valorizados pelo autor, certamente; no entanto, seria possível criticar a postura habermasiana na medida em que ele parece procurar sua teoria do discurso na teoria do Direito, sendo a consciência institucional mencionada não tanto aquela que é se apresenta na realidade efetiva, mas um dever-ser estabelecido para que exista uma confluência entre aquilo que Habermas valoriza e o Direito – as pretensões normativas da teoria do autor, destacadas em sua teorização sobre a razão comunicativa (Cf. HABERMAS, 2012) e sobre a ética do Discurso (Cf. HABERMAS, 1999), no limite, acabariam dando base a uma espécie de wishful thinking, em que, da possibilidade da legitimação do Direito pelo processo democrático (e não pelo procedimento entendido de modo mais estrito, como em Luhmann (Cf. LUHMANN, 1985)) e da busca por colocar a esfera jurídica como mediação racional entre “sistema” e “mundo da vida”, retira-se a centralidade do Direito na real e efetiva conformação racional da sociabilidade humana sob o modo de produção capitalista. No que se deve apontar certo aspecto, por assim dizer, “oposto”. Luhmann faz algo muito distinto de Habermas, dizendo que o Direito aparece na medida em que “seja imprescindível para a manutenção de um sistema de ação funcionalmente diferenciado e altamente interdependente.” (LUHMANN, 1985, p. 59) E, neste sentido, o autor alemão certamente diz haver relação entre os subsistemas (CF. CAMPILONGO, 2011 a); mas dá um enfoque claro na diferenciação funcional, o qual se dá, no caso do Direito, com a positivação do Direito na modernidade.

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E, neste sentido, a noção de

expectativas luhmanniana, em contraposição ao que se dá em Habermas, tem reflexos claros na natureza autopoiética do subsistema jurídico, como se vê na passagem: “a legitimidade institucional não reside em uma derivação valorativa nem na disseminação factual do consenso consciente, mas sim na possibilidade de supor-se a aceitação.” (LUHMANN, 1985, p. 64) O Direito seria funcionalmente diferenciado da moral e daquilo que busca o autor de Direito e democracia (o consenso e a preservação do “mundo da vida” frente à “colonização do sistema”) na medida em que não teria em si uma legitimidade com pretensões essencialmente normativas, mas, por outro lado, funcionais e pensáveis somente em termos de diferenciação social. No que se deve dizer que, mesmo que Luhmann pense a esfera jurídica em termos de autopoiesis, isso não significa que ele seja dissociável de outros subsistemas específicos, havendo acoplamento estrutural entre o Direito e a economia, com os contratos, e entre Direito e política, com o constitucionalismo. (Cf. LUHMANN, 1983) E isso seria essencial, havendo também programas finalísticos (típicos da política, como visto) relacionados ao Direito na medida em que “a positividade, isto é, o princípio da variabilidade estrutural do Direito, só se torna compreensível quando se vê o presente como consequência do futuro, ou seja, como decisão.” (LUHMANN, 1983, p. 168) E, assim, ao não tratar da questão da legitimidade do poder em termos normativos, Luhmann, até certo ponto, está, como quer Habermas, suscetível a certo decisionismo (pelo menos nos termos de uma teoria do Direito); para o autor, no entanto, “a positividade do Direito não desemboca na tão 31

Como diz sobre a positivação: “a introdução de possibilidades de mudança exige a introdução de possibilidades de aprendizado no Direito, e isso significa: a introdução de estruturas de expectativas cognitivas ou, em termos mais precisos, de estruturas de expectativas cognitivas normatizadas, em uma complexão de expectativas que, em princípio, é normativa.” (LUHMANN, 1985, p. 63)

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temida arbitrariedade da ordem de comando.” (LUHMANN, 1983, p. 177) Nesse sentido, se há decisionismo, trata-se de algo, por assim dizer, mitigado, o qual decorre do modo como se relacionam a autonomia dos subsistemas a autopoiesis. 5 Percebe-se, assim, que tanto um autor quanto outro não deixam de tratar da sociedade (e da relação dessa com a natureza) como um todo. Porém, não se trata, certamente, daquele todo que “é somente a essência que se implementa através do seu desenvolvimento” – não se tem tanto determinações reflexivas, que, passando pela identidade da identidade e da não identidade conformam a contradição que albergue a tessitura da sociedade como um sua totalidade; essa compreensão é deixada de lado por Luhmann na medida em que a autonomização dos subsistemas coloca códigos próprios a cada esfera da sociedade, deixando-as, ao menos do ponto de vista interno, em situações que vem a ser vistas como um paradoxo (e não como uma contradição, por assim dizer, dialética) (Cf. CAMPILONGO, 2011). Habermas, por sua vez, busca evitar justamente a conformação clássica da contradição hegeliana: aquela relativa à oposição entre sociedade civil-burguesa e Estado (Cf. BLOTTA, 2009), em sua forma “clássica”, que alberga a conformação total da sociabilidade. Procura o autor de Direito e democracia escapar da posição presente em Hegel, e de certo modo, em Marx, segundo a qual a primeira é “o espetáculo de devassidão bem como o da corrupção e da miséria.” (Hegel, 2003, p. 169); se Hegel procurou “conceber o Estado como algo racional em si” (HEGEL, 2003 b, p. XXXVII) de modo a reconciliar as contradições da sociedade civilburguesa e se Marx procurou a supressão (Aufhebung) desta última, eles procuraram, no caso de Marx, a superação da sociabilidade presente como um todo, no de Hegel, o desenvolvimento histórico que culmina no presente como “o que é, porque o que é a é a razão.” (HEGEL, 2003 b, p. XXXVII) Hegel procurou defender a racionalidade da da realidade efetiva que se conforma racionalmente como um todo, ao passo que Marx procurou criticá-la em seus alicerces, estruturados na totalidade totalizadora e efetiva no modo de produção capitalista. (Cf. MÉSZÁROS, 2002). Voltemos por mais um momento a Luhmann e Habermas. Ao se falar de totalidade, pois, há uma tensão inevitável ao relacioná-la à sociedade civil-burguesa. A separação entre sistema e mundo da vida, preconizada por Habermas, busca tomar as contradições da realidade efetiva de tal feita que as relações intersubjetivas presentes na última possam ser preservadas enquanto um campo em que não se tem dominação (relacionada aos imperativos instrumentais do sistema). Luhmann, por seu turno, ao dizer que “o direito reflete-se direta ou indiretamente em todas as esferas da vida” percebe que, na realidade, não é possível separar os subsistemas e nem mesmo o sistema e seu ambiente, de tal modo que, dessa relação mesma, de modo paradoxal, surge o caráter autoreferencial e autopoiético do subsistema jurídico (que se relaciona, inclusive, com algo destacado, com base em Luhmann com muito vigor por Tércio Sampaio Ferraz Jr. no Brasil, a vedação do non liquet). O fechamento, o caráter sistemático e a própria autopoiesis do Direito referem-se a esse aspecto dogmático (CF. FERRAZ Jr., 2003) inevitável ao se colocar como operador do

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Direito. (Cf. CAMPILONGO, 2011 a) Luhmann, pois, busca um fator inerente à prática dos juristas, a vedação ao non liquet, para tratar de algo que é normalmente tomado como um dogma (Cf. BOBBIO, 2006) ou é visto enquanto algo equivocado, como em um Dworkin, por exemplo, na medida que o Direito não se assemelharia tanto a um jogo de xadrez, mas à práticas cujo significado pode ser questionado em meio à própria atitude performativa dos atores, como a cortesia. (Cf. MACEDO Jr., 2011) Neste sentido, percebe-se um processo presente em dois dos grandes autores contemporâneos: a valorização da esfera jurídica. De um lado, em Luhmann, ela aparece como central à própria sociabilidade na estabilização das expectativas (algo inerente à própria complexificação social); doutro, em Habermas, ela parece poder incorporar aquilo de mais importante para a formação de um consenso efetivamente democrático. Assim, mesmo que a esfera jurídica apareça relacionada com as outras esferas do ser social, como acontece em Hegel e Lukács, isso se dá de forma dúbia tanto em Luhmann quanto em Habermas: no primeiro, na medida em que a especificidade do Direito conforma um código próprio, que só pode ser trabalhado nos seus próprios termos (fora os casos em que se tenha “perturbações”); no segundo, a questão se dá na medida em que o campo jurídico parece incorporar no nível institucional os imperativos da ética do discurso. Se Luhmann enfatiza a não-identidade do Direito em face dos códigos da política, da economia, da arte, etc., o oposto se dá no autor da Teoria do agir comunicativo, que busca, com as mediações que traz em sua ética do discurso e ao tratar da situação ideal de fala, a identidade do Direito com um campo que, não obstante realizasse a mediação entre sistema e mundo da vida, pudesse albergar em si a “comunicação orientada para o entendimento recíproco”. Ou seja, nota-se que enquanto um enfatiza a diferença, a não identidade, outro busca a identidade – claro que em ambos há uma relação entre identidade e não identidade, não se pode simplificar demasiadamente as coisas. No entanto, é preciso que se veja que a relação real e efetiva entre esses momentos constitutivos do real (Cf. LUKÁCS, 2012) é vista de modo unilateral por ambos os autores. Luhmann vê a contradição, que, em verdade, liga-se à dinamicidade do real e à historicidade da mesma, como um paradoxo (nos termos da teoria dos sistemas), ao passo que Habermas vem justamente a evitar a relação tensa e a indissociabilidade, em termos abstratos, entre trabalho e linguagem e, em termos mais concretos, entre as relações intersubjetivas e a atividade produtiva dos homens. (Cf. LESSA, 2002) Hegel mesmo já havia colocado essa indissociabilidade, segundo Lukács (Cf. LUKÁCS, 1963) desde a juventude e, segundo Habermas (Cf. HABERMAS, 2002) depois de sua obra “juvenil”. O autor da Ciência da lógica, justamente buscando uma compreensão totalizadora do real, vem a conceber a natureza como exteriorização (Entäusserung) da ideia – mesmo que trace panoramas de grande profundidade, Hegel continua um idealista, pois. Diz que “o que eleva o homem acima do animal é a consciência de que tem de ser um animal, e essa consciência implica uma outra, a da sua participação no espírito. Ao saber que é um animal, o homem deixa de o ser.” (HEGEL, 1999, p. 104) E isso se dá na medida em que o

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reconhecimento mesmo de uma situação levaria à conclusão de que a situação narrada anteriormente já está suprassumida real e efetivamente quando, em verdade isso não necessariamente ocorreria na efetividade (Wirklichkeit). (Cf. MARX, 2004) No entanto, o modo como a totalidade aparece no autor mostra justamente que na identidade já se tem a diferença, mesmo ao se tratar de algo basilar como a relação entre o homem e o animal, entre o ser social e o ser natural. Na Enciclopédia das ciências filosóficas, Hegel ainda diz algo de relevo sobre o tema: Sejam quais forem as forças que a Natureza desenvolva e desencadeie contra o homem, freio, animais ferozes, água, fogo – ele conhece meios contra elas, e mais! – retira esses meios da natureza, utiliza-os contra eles mesmos; astúcia da razão faculta ao homem jogar contra coisas naturais outras coisas da natureza, entrega estas àquelas para serem aniquiladas e assim se protege e conserva. (HEGEL, 1997, p. 16) Ao passo que Habermas acredita que a relação do homem com a natureza seja essencialmente instrumental e eivada pela reificação (Verdinglichung) (Cf. HABERMAS, 2007), em uma concepção que apreenda a identidade da identidade e da não identidade, resta claro que não se pode buscar separar, a partir de um dever-ser, aquilo que na realidade efetiva é uno. Assim como não seria possível separar o trabalho da interação, como aliás, também destaca Lukács32, seria impossível separar a existência do homem enquanto “animal” de sua existência enquanto ser social e, pode-se dizer, comunicativo. Um autor que também valoriza as determinações reflexivas, como Marx, sobre o tema diz: “fome é fome, mas a fome satisfeita com carne cozida e comida com garfo e faca é diferente da fome daquele que devora carne crua, com ajuda das mãos, das unhas e dos dentes.” (MARX, 1993, p. 92) 33 O processo pelo qual a fome (ligada à natureza e distinta da existência propriamente social do homem) se mostra como inseparável do desenvolvimento social é essencial para o autor de tal modo que, novamente, diferença e identidade aparecem ligadas a uma totalidade contraditória. 6 No que, por fim, vale a pena averiguar como que dois autores que valorizaram o modo hegeliano de tratar da relação entre identidade e diferença (embora não se identifiquem totalmente com ele, como demarcam em suas obras) e que buscaram albergar a relação entre Direito e sociedade. Trataremos, nesse momento final de nosso texto, da mencionada relação a partir Lukács, que busca realizar uma crítica ontológica ao Direito, e de Joaquim Salgado, autor hegeliano, que procura enxergar na esfera jurídica a suprassunção das potencialidades e das tensões que emergem na sociedade civil-burguesa, principalmente, em sua conformação posterior à Revolução francesa. Ambos procuram evitar dois equívocos conexos: a subsunção do Direito a algo distinto dele (o discurso e a razão prática, por exemplo) e a fetichização da particularidade do

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Para o autor, seria essencial ao marxismo “o descobrimento de que o homem produziu a si mesmo mediante seu próprio trabalho (mediante a linguagem, necessária à realização do trabalho), ou seja, o descobrimento de que o homem levou a cabo seu salto desde o reino animal com suas próprias forças, sem mescla de poderes ultraterrenos. (LUKÁCS, 1966 b, p. 558) 33 Para a diferença entre o tratamento de Marx e de Hegel da questão, Cf. LUKÁCS, 2012.

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fenômeno jurídico (de seu código, por exemplo). Neste sentido, adotam uma postura que procura encarar o complexo jurídico em sua especificidade ao mesmo tempo em que consideram que ela, afinal, somente é compreensível tendo em mente a própria totalidade social conformada na sociedade civil-burguesa. Tal como ocorre na Fenomenologia do espírito de Hegel e em obras como Sobre a questão judaica de Marx, tem-se uma ênfase que recai sobre a sociedade civil-burguesa na medida em que esta última configura-se enquanto fruto de uma época revolucionária, mas, ao mesmo tempo, traz consigo contradições que não conseguem ser resolvidas tendo em conta os parâmetros estipulados na época de sua aurora. Com isso, Marx e Hegel em um primeiro momento, e depois Lukács e os hegelianos albergaram a Revolução Francesa com cuidado. Esta última, certamente, é um marco importante ao tratar a história, tendo ressonância, inclusive, no modo como se tratou a revolução no século XX (Cf. ARENDT, 2001), conturbada época em que aparecem tanto possibilidades inimagináveis, como entraves gigantescos à realização efetiva dessas potencialidades. (Cf. HOBSBAWN, 1995) Ressalta-se, pois: não se trata de um assunto relegado a empoeirados livros de história; antes, autores importantes como o marxista Domenico Losurdo apontam que, hoje, ao se tratar da teoria política, há um grande embate acerca do significado da democracia, buscando-se averiguar qual evento privilegiar, a Revolução Americana ou a Revolução Francesa. (Cf. LOSURDO, 2004) Grosso modo, isso se dá enquanto poder-se-ia dizer que a primeira vem a se ligar à conformação da tradição liberal e a segunda à tradição democrático-revolucionária (Cf. LOSURDO, 1997), estando um autor como Hegel, em que bebem tanto Lukács quanto Salgado, certamente ligado à última tradição. Ou seja, o resgate da Revolução Francesa pelos autores que tratamos não é fortuito – ele se dá na medida em que a tensão colocada entre esferas distintas aflora de modo pungente. O Direito, por exemplo, aparece na mencionada revolução não só na medida em que juristas foram, muitas vezes, revolucionários. Ele ganha proeminência na medida em que os direitos do homem são, à época, vistos como algo revolucionário. No que, para esclarecer o que mencionamos, vale a pena relacionarmos algumas passagens de Lukács e de Joaquim Salgado. Ver-se-á: não obstante ambos considerem a contradição enquanto algo que conforma a própria realidade, o modo como tratam da questão é essencialmente distinto, sendo preciso buscar a diferença específica de cada um. Lukács enxerga na Revolução Francesa um evento que dá uma conformação essencialmente política às lutas sociais (sem reduzi-las à política, claro), trazendo à tona a noção de cidadania, a qual, à época, pesava-se poder conciliar as tensões sociais presentes na sociedade civil-burguesa; neste sentido, é expresso o marxista: “a Revolução Francesa pôs a tensão entre o citoyen e bourgeois no seio do povo livre.”(LUKÁCS, 2007, p. 30) Tal revolução tem uma base social, ao passo que seu significado é essencialmente político. Para que digamos com Marx, com quem Lukács concorda, “o período clássico do intelecto político é a Revolução Francesa.” (MARX, 2010, p. 62) A política, no entanto, viria a se mostrar

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insuficiente na reconciliação das contradições sociais, até mesmo porque, caso se pense como não dissociada das relações de produção, tem-se, segundo Marx, o seguinte:

Quando mais unilateral, isto é, quanto mais perfeito é o intelecto político, tanto mais ele crê na onipotência da vontade e tanto mais é cego frente aos limites naturais da vontade e, consequentemente, tanto mais é incapaz de descobrir a fonte dos males sociais. (MARX, 2010 b, p. 62) A incapacidade de enxergar a reais e efetivas fontes dos males sociais faria com que aquela classe que emerge como hegemônica em meio à revolução perdesse também seu caráter essencialmente “heroico” e transformador e, assim, em verdade, segundo Lukács, “a Revolução Francesa implica [...] no fim do período heroico do desenvolvimento burguês.” (LUKÁCS, 2011 b, p. 56) A distinção entre o cidadão e o homem, uma relação contraditória presente nas declarações de direitos (Cf. MARX, 2010) não seria tanto a expressão da possibilidade da política se sobrepor às vicissitudes da sociedade civil-burguesa, mas, segundo Lukács e Marx, a confissão de impotência (a ser averiguada depois, com o fim do processo revolucionário) da cidadania frente ao particularismo do burguês.34 Assim, aparecem como inseparáveis o cidadão e o burguês, os quais somente podem ser vistos em uma relação essencialmente contraditória. Segundo Lukács, se a cidadania expressa um ímpeto ativo que procura a modificação consciente das condições de vida dos homens, ela, ao mesmo tempo, depende da existência daquilo que não consegue negar, dos interesses particulares conformados na dominação classista, esta última a qual, daria base real à noção de cidadania e ao intelecto político (Cf. CHASIN, 1999). Ao passo que se tem a separação entre burguês e cidadão, conforma-se o que Lukács chama de democracia burguesa (Cf. LUKÁCS, 2008) e as revoluções que se baseiam neste modelo: assim, dão-se as coisas “como ocorreu na Revolução Francesa e nas que vieram depois, todas elas condenadas a terminar por estabelecer o domínio do bourgeois sobre o citoyen.” (LUKÁCS, 2008, p. 339) Ou seja, o cidadão e o Estado não poderiam trazer a suprassunção do caráter unilateral da liberdade da sociedade civil-burguesa. Cidadania e política apareceriam como o outro da sociedade civil-burguesa somente na medida em que são inseparáveis e conformam uma totalidade contraditória. Para o marxista Lukács essa vitória do bourgeois sobre o citoyen significa nada menos que a emergência do liberalismo, sendo que, em verdade, “a ideologia liberal tem [...] uma falsa universalidade enquanto idealização da práxis da burguesia: pretende explicar todos os fenômenos da sociedade em forma abstratamente política ou abstratamente moral.” (LUKÁCS, 2011 b, p. 178) Lukács, assim, não vê o liberalismo como um momento essencialmente revolucionário; antes, esta figura da política burguesa aparece com o fim do potencial revolucionário presente na oposição contraditória entre a cidadania e a sociedade civil-burguesa – o liberalismo consolida a derrota das forças populares nas revoluções políticas burguesas. Uma posição democrática só poderia ser contra o liberalismo. (Cf. LUKÁCS, 2008)

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Segundo Lukács, na democracia burguesa, “o cidadão tinha como fundamento, na vida cotidiana, o homem material da sociedade civil [-burguesa], que atua segundo seus interesses egoístas.” (LUKÁCS, 2008, p. 153)

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Lukács critica a própria sociedade civil-burguesa. Para um autor de influência hegeliana, por outro lado, as coisas são muito diferentes na medida em que não se trataria tanto de crítica a conformação objetiva da sociedade - já em Kant, diz o hegeliano brasileiro, “a liberdade, que é direito fundamental de cada um, só pode existir na sociedade civil (e só nela é a liberdade garantida), se a limitação imposta ao arbítrio de cada um pelo pacto social for igual para todos.” (SALGADO, 2012, p. 167) Ou seja, para a posição hegeliana, a sociedade civilburguesa não é tanto vista enquanto o problema em si, até mesmo porque o Estado poderia trazer consigo a reconciliação das tensões presentes nesta esfera. Para Lukács, as coisas são opostas. Diz o autor: “com a conclusão da Revolução Francesa, termina o papel histórico da ideologia que constituiu sua preparação, o iluminismo dos séculos XVII e XVIII: seus ideais foram realizados, mas ao mesmo tempo foram refutados por sua realização.” (LUKÁCS, 2011 b, p. 107) Para um hegeliano como Salgado, a noção mesma de liberdade, em sua forma moderna, ligada também ao movimento iluminista, não teria podido se realizar efetivamente por um enfoque equivocado: “é ao direito que a política deve adequar-se, e não o contrário.” (SALGADO, 2012, p. 249) Assim, a política e o Estado não aparecem, por si, como capazes de reconciliar as tensões mencionadas, tal qual admite Lukács. E, neste sentido específico, aproximam-se o hegeliano brasileiro e o marxista húngaro. No entanto, as diferenças devem ser enfocadas. Lukács se permite uma crítica à sociedade civil-burguesa e ao Direito (Cf. SARTORI, 2010), ao passo que um hegeliano vê a questão de modo oposto: “a liberdade é a condição de toda a vida moral e, portanto, também do direito. Nenhum direito e nenhum dever tem origem noutra coisa senão na liberdade.” (SALGADO, 2012, p. 167) Para o autor hegeliano, a realização da ideia de liberdade estaria na esfera jurídica, pois, e não na esfera estatal, ou na transformação revolucionária dos alicerces mesmos da sociedade civil-burguesa:

Não o político, o Estado, tem a primazia do conceito ou momento de chegada do processo ético. [...] O político é ação mediadora da realização do ético que se consuma no direito; tem racionalidade procedimental, portanto, instrumental. Hegel não pôde assistir à evolução plena do Estado Democrático de Direito nascente na Revolução. [...] O Estado Democrático de Direito contemporâneo é o resultado do processo ético que dá primazia ao direito, ao pôr como seu fim sua realização. O Direito é o momento da verdade ética, em que o processo se conclui, a partir do momento da moralidade, mediante o momento político. (SALGADO, 2006, p. 15) Segundo o autor hegeliano, o espírito objetivo não teria seu ponto culminante no Estado, pois. Na medida em que do ponto de vista adotado por Salgado “a filosofia é a inteligência do presente e do real, não a construção de um além” – o autor é coerente ao tratar da conformação do Estado em sua época, e não na época do autor dos Princípios da filosofia do Direito. Certamente há uma conformação distinta da politicidade e do próprio Estado; mas, se o próprio Lukács vê nesse processo, depois de 1848, mas principalmente depois da repressão à Comuna de Paris, a “transformação [...] da democracia revolucionária em um liberalismo covarde e de compromisso, que flerta com qualquer ideologia reacionária”

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(LUKÁCS, 2011, p. 391), o mesmo não pode se dar com Salgado para quem o momento presente contém em si reconciliada a figura da razão enquanto conceito, sendo que, seguindo Hegel, “o conceito é o [que é] livre, enquanto potência substancial essente para si”. Assim, na posição hegeliana, hoje, não seria tanto a política o momento culminante da eticidade, mas o Direito já que se tem atualmente a figura do Estado Democrático de Direito, e não a forma de organização política da época do autor da Fenomenologia do espírito; seguindo este raciocínio, a verdade do intelecto político só poderia aparecer efetivamente na medida em que se encontra suprassumida no intelecto jurídico e, assim, para Joaquim Salgado a eticidade está expressa na esfera jurídica na medida em que “o direito não é o mínimo ético; deve realizar totalmente o ético na sua esfera.” (SALGADO, 2012, p. 202) Há, nesta posição, pois uma suprassunção da política (esfera essa insuficiente, tanto para Lukács, como para Salgado), a qual passaria a ser instrumental em relação ao Direito. (Cf. SALGADO, 2006) E isso tem íntima relação com a posição de Salgado quanto à importância da Revolução Francesa para o desenvolvimento do espírito objetivo, ao passo que conforma uma posição que, é preciso que se admita, hipertrofia o papel que o Direito tem ou pode ter, não sendo acidental Joaquim Salgado estar ligado à área jurídica de modo íntimo. Diz este autor: O homem (animal racional) na cultura grega, a pessoa de direito na cultura romana, cindida na concepção de pessoal moral na cultura cristã, e o sujeito de direito a partir da cultura moderna, operando a síntese dialética no cidadão ou indivíduo livre detentor de direitos fundamentais declarados ou positivados como vontade universal e valores universais na Revolução Francesa. (SALGADO, 2006, p. 23) O processo de desenvolvimento do conceito aparece no autor citado na medida em que há um silogismo (que dá ensejo a certo logicismo negado por Lukács [Cf. LUKÁCS, 2012]) a ser estabelecido entre a noção de animal racional, de pessoa de direito e, por fim, de sujeito de direito e, para o autor brasileiro, não é tanto na cidadania que está aquilo essencial à Revolução Francesa. Segundo Salgado o central é justamente o sujeito de direito: É no sujeito de direito que se realiza a sua singularidade, o universal concreto, em que a particularidade do indivíduo diante da lei e a universalidade abstrata da lei se ultrapassam na unidade concreta da fruição do direito pelo sujeito universal de direito. (SALGADO, 2006, p. 57) O sujeito do Direito conteria em si o cidadão suprassumido, de tal modo que os direitos fundamentais não seriam um momento somente “jurídico”, em sentido estrito. Tratar-se-ia da juridicidade somente ao passo que ela expressaria a possibilidade de realizar as tarefas impossíveis com uma visão unilateral da política.

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Se o marxismo sempre tratou de criticar a

figura do sujeito de direitos (Cf. PACHUKANIS, 1989), em Salgado se dá o oposto. O desenvolvimento social que Lukács enxerga como a emergência de uma política de conciliação com as camadas reacionárias da sociedade, uma aliança covarde, é visto por 35

Segundo Joaquim Carlos Salgado, “a ideia de justiça no mundo contemporâneo deve ser buscada a partir da teoria do Estado Democrático de Direito, portanto, dos direitos fundamentais, como resultado dos vetores dialeticamente opostos na história do Ocidente: o poder como liberdade unilateralizada e o direito como liberdade bilateralizada (ou plurilateralizada).” (SALGADO, 2006, p. 1)

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Salgado como a superação de uma posição liberal, que o autor brasileiro enxerga na suprassunção do burguês e do cidadão na figura jurídica do sujeito de direito. A justiça, assim, não aparece como uma questão essencialmente político-social no hegelianismo do brasileiro: “na verdade, a justiça era de ser tratada no direito, pois é um valor jurídico. O direito, mais propriamente a filosofia do direito é que trata do tema, ou melhor, da ideia de justiça.” (SALGADO, 2006, p. 50) E, assim, os elementos, por assim dizer, “incômodos” da esfera jurídica, como a sanção, a manipulação econômica presente na esfera, e outros, não aparecem tanto enquanto um momento jurídico, mas enquanto algo de instrumental (e político) em face do Direito: “a coerção não é [...] categoria de essência do direito, mas condição de sua eficácia, portanto da existência do direito.” (SALGADO, 2006, p. 79) E mais, em verdade, os direitos fundamentais não seriam liberais: uma interpretação mais atualizada deles, que partisse de Hegel, por exemplo, traria à tona um momento “social”, de grande relevo para a conciliação das tensões e antagonismos presentes na efetividade da sociedade civil-burguesa: “diferentemente de Kant, Hegel introduz na esteira do seu pensar o elemento novo do trabalho, que, seguindo os princípios da igualdade e da liberdade, constitui o direito social fundamental do indivíduo na organização do Estado.” (SALGADO, 1996, p. 506) Trata-se de uma construção elaborada, certamente, mas que, é preciso que se diga, parece “tornar sublime o existente”. Tal posição do hegelianismo, neste sentido, é a antítese direta daquela trazida pelo marxismo, que busca a supressão da própria sociedade civil-burguesa. Se há em ambas as tradições certa valorização da totalidade e da contradição, isso se conforma de modo essencialmente distinto. No que é preciso, por fim, que se volte a Lukács novamente: a racionalidade da realidade efetiva seria justamente o ponto de partida de Salgado, sendo que o marxista húngaro vê no elemento essencial para a posição de Salgado (o Direito) de modo crítico, não sendo possível buscar qualquer tipo de amparo nesta esfera quando se trata de buscar uma resolução real e efetiva dos problemas trazidos na sociedade civil-burguesa: Quanto mais o Direito se torna regulador normal e prosaico da vida cotidiana tanto mais vai, em geral, desaparecendo o páthos que o havia envolto no período de sua formação, e tanto mais força adquirem nele os elementos manipulatórios do positivismo. (LUKÁCS, 1981, p. XCVII) Na emergência da Revolução Francesa, o jusnaturalismo teria proeminência, havendo um ímpeto voltado à transformação real e efetiva da sociedade (ímpeto esse incorporado na figura da cidadania); a busca por direitos, assim, confluía na luta política das classes subalternas, entre elas, a própria burguesia. No entanto, isto não se dá para todo o sempre. Havia, pois, uma união indissociável entre o momento político e o jurídico; assim, a conformação do Estado enquanto uma forma de universalidade que buscava se opor ao particularismo da sociedade civil-burguesa ligava-se intimamente com a valorização da politicidade e, pode-se mesmo dizer, do intelecto político, que Marx viu como incapaz de encontrar as raízes dos males sociais. Com a concepção jusnaturalista (em que confluíam a justiça e o ímpeto político) tem-se, pois, o elogio da prática racional enquanto algo capaz, sob as bases da sociedade emergente, de dar um viés mais, inclusive, revolucionário, à sociedade

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presente, que ainda se encontrava no caminho de sua efetividade. Para Lukács, justamente a conformação da realidade efetiva desta sociedade faz com que o Direito se torne um regulador prosaico da vida cotidiana (algo elogiado por Salgado, como visto acima). E, assim, aquilo que o autor da Ideia de justiça em Hegel vê enquanto a suprassunção da visão liberal (a busca pela conciliação das contradições da sociedade civil-burguesa) é visto pelo autor da Ontologia do ser social como uma solução de compromisso, como a figura real e efetiva do liberalismo: “a ideologia liberal tapa o abismo de classe da sociedade civil-burguesa através da política entendida de forma idealizada, através da moral abstrata, etc.” (LUKÁCS, 2011 b, p. 176) 36 Para que tratemos da questão em termos jurídicos: a emergência ao primeiro plano do “Estado Democrático de Direito” e da centralidade do sujeito de direito (em oposição ao cidadão) marca não tanto uma suprassunção dos ímpetos particulares na universalidade do Direito, mas a conformação do positivismo, com seus elementos manipulatórios – aquilo que certo hegelianismo vê como a solução para as vicissitudes da sociedade civil-burguesa, pois, é parte do problema. Seguindo o autor da Ontologia do ser social, tal solução não pode ser outra coisa que a mistificação das relações sociais da sociedade civil-burguesa. Segundo Lukács, O Direito sequer seria capaz de albergar em si, suprassumidas, a política e as tensões da sociedade civil-burguesa (Cf. SARTORI, 2010) – o próprio complexo jurídico, depois do momento em que a burguesia deixa de ser uma classe progressista, passa a ter uma conformação essencialmente ligada aos elementos manipulatórios do positivismo, de tal feita que, diz Lukács sobre a relação entre o Direito e a sociedade: “o sistema de fato, não se desenvolve como reflexo desta, mas como sua manipulação que a homogeneíza em termos abstrato-idealistas.” (LUKÁCS, 1981 b, p. CI) O Estado Democrático de Direito, pois, não só não é capaz de ser resolutivo – ele é uma parte essencial do problema a ser resolvido e é uma forma política essencialmente manipulatória. O Direito traz consigo uma busca da reconciliação (forçada) das tensões sociais; reconhece-as, assim, como sua base real e efetiva e, neste sentido, o autor marxista não pode deixar de valorizar a passagem de Marx segundo a qual “o Direito, nada mais é que o reconhecimento do oficial do fato”. (MARX, 2004 b, p. 84) Se autores como Salgado buscam a efetividade da ideia de liberdade, supostamente presente na justiça (uma questão jurídica, para o autor) enquanto conceito, Lukács mostra que a as questões políticas não se encontram subordinadas ao Direito, depois de um determinado momento, com campo jurídico, “nasce assim um sistema, tendencialmente compacto, de enunciados, de determinações de fatos (reconhecimento), cuja tarefa é regular os contatos sociais dos homens segundo os propósitos do Estado monopolista.” (LUKÁCS, 1981 b, pp. XCIX e C) Ou seja, seria preciso não só um Direito crítico e eivado pela valorização dos Direitos humanos; isto seria essencialmente insuficiente para uma posição crítica. Caso se reconheça a insuficiência da dimensão política na atualidade, é preciso uma crítica ao Direito e, com ela, à própria sociedade civil-burguesa. Esta última não pode deixar de ser considerada 36

Para Lukács, as consequências deste fato devem ser ressaltadas: “a democracia formal do liberalismo privatiza o homem. O desaparecimento do cidadão não apenas corresponde ao empobrecimento e a uma desmoralização da vida pública [...], mas ao mesmo tempo significa uma mutilação do homem como indivíduo e como personalidade. É claro que o individualismo burguês, que surgiu sobre esta base social – pouco importa se afirmando-a, mostrando-se indiferente a ela ou a ela se opondo -, não se interessa por tal mutilação.” (LUKÁCS, 2007, p. 30)

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como “o espetáculo de miséria e devassidão”, sendo preciso, segundo Lukács, nada menos que “afirmar, teórica e praticamente, a prioridade do conteúdo político-social em relação à forma jurídica.” (LUKÁCS, 2007, p. 57) Se Luhmann, Habermas e Salgado dão ênfase ao momento jurídico, uma posição como a de Lukács, procurando ultrapassar a superfície dos fenômenos sociais, considera o Direito enquanto algo importante a ser estudado, no entanto, vê a esfera na medida em que ela não é a essencial na luta emancipatória, sendo preciso um enfoque muito mais “político-social” que jurídico (mesmo que se trate de uma abordagem jurídica “crítica”). O autor húngaro, no melhor da tradição marxista, procura uma crítica radical e, para isso, ao tratar do Direito é preciso ter a coragem de negá-lo enquanto esfera resolutiva. Conclui-se, pois, que, não obstante autores hegelianos e marxistas, por vezes, possam confluir em questões essenciais, como aquela que diz respeito à valorização da totalidade e da contradição, suas posições podem ser opostas. Ambas as posições podem ser coerentes ao buscar uma relação que não enfoque seja na diferença ou na identidade entre Direito e sociedade e entre especificidade do Direito e de outras esferas do social. No entanto, o modo como se concatenam essas diferentes esferas é o essencial. Talvez isso se dê, inclusive, na medida em que uma posição hegeliana, que valoriza o Estado Democrático de Direito, continua, como na época de Marx, a “tornar sublime o existente.” Não se trata somente, pois, de uma defesa da dialética e da totalidade, questões que, como pretendemos mostrar resumidamente, acabam sendo eclipsadas em um Luhmann ou um Habermas. Trata-se de diferenciar a “forma mistificada” da dialética de sua “configuração racional” que “não se deixa impressionar por nada e é, em sua essência, crítica e revolucionária.” Uma posição radical como essa última talvez somente seja possível na medida em que se critica o próprio Direito.

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A VIOLAÇÃO DE NORMAS PÁTRIAS EM NOME DOS DIREITOS HUMANOS: UMA LEITURA DO CASO EDWARD SNOWDEN. 37 Aloísio Krohling38 e Gustavo Martinelli39

RESUMO O artigo pretende analisar o histórico acerca da denúncia feita por Edward Snowden sobre o programa de monitoramento global. Após isso, analisar-se-á as intenções de mapeamento e de análise das informações pessoais em busca de terroristas ou suspeitos em potencial, demonstrando o quão frágil é essa técnica. Em seguida, os possíveis limites ao poder do Estado para realizar esse monitoramento são abordados, inclusive, pela ótica de alguns filósofos de forma a se compreender os riscos do surgimento de um Estado de Exceção Permanente. Além disso, analisa-se outrossim, a questão do inimigo que se tenta criar com o mapeamento de informações pessoais. Por fim, a questão motivadora deste trabalho retorna para que se verifique a possibilidade de violação de leis nacionais em nome dos Direitos Humanos.

Palavras chaves: Direitos Humanos. Monitoramento Global. Estado de Exceção. PRISM.

The violation of national laws on behalf of the Human Rights: a study about the case of Edward Snowden. ABSTRACT This article aims to analyze the history from Edward Snowden' compliant about the global surveillance program. After this, the mapping and analysis with personal informations looking for terrorist or potential suspect are made, demonstrating how weak is this technique. Thus, the possible limits to the State' power to execute this monitoring program are treated, including, from some philosophics' ideas to understand the risks for a Permanent State of Exception. Furthermore, the attempt to create the idea of an state's enemy is studied from personal information mapping. Therefore, the main question is returned to verify if it's possible to violate national laws on behalf of the Human Rights. 37

Artigo desenvolvido para o Grupo de Pesquisa: O múltiplo retórico e dialético: ética, interculturalidade e Direitos Humanos realizado na Faculdade de Direito de Vitória – FDV.

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Pós-doutor em Filosofia Política, professor de Sociologia Política no Programa de Mestrado em Sociologia Política da Universidade de Vila Velha (ES) e dos programas de Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória (FDV), pesquisador da sublinha de pesquisa "Múltiplo dialético na historiografia filosófica da democracia brasileira e latino-americana sob a perspectiva ética e intercultural dos direitos humanos e fundamentais". E-mail: [email protected]. Endereço: Av. Antônio Gil Veloso, 800, apto. 702; Bairro Praia da Costa; 29101-011Vila Velha (ES).Tel.: (27) 3329-2262.

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Mestrando em Direitos e Garantias Fundamentais, pós-graduando (lato sensu) em Direito da Tecnologia da Informação, graduado em Ciência da Computação e em Direito, membro da banca elaboradora de questões do Instituto Nacional de Concurso Público. Professor do curso de Engenharia Elétrica. E-mail: [email protected]. Endereço: Rua Juiz Alexandre Martins de Castro Filho, 779; Bairro Santa Lucia; 29.056-919 Vitória (ES). Tel.: (27) 3329-2262; Cel.: (27) 99747-0322.

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Keywords: Human Rights. Global Surveillance. Exception State. PRISM. La Violación de las leyes nacionales a favor de los Derechos Humanos: un estudio sobre el caso de Edward Snowden. RESUMEN Este artículo tiene como objetivo analizar la historia de Edward Snowden 'cumple sobre el programa de vigilancia global. Después de esto, el mapeo y análisis con datos personales en busca de sospechosos de terrorismo o potencial se hacen, lo que demuestra lo débil que es esta técnica. Por lo tanto, los posibles límites al poder del Estado para llevar a cabo este programa de monitoreo son tratados, incluyendo, desde uma idea de los filósofos para entender los riesgos de un estado de excepción permanente. Por otra parte, el intento de crear la idea del enemigo de un estado se estudia de cartografía información personal. Por lo tanto, la cuestión principal se devuelve para verificar si es posible violar las leyes nacionales en favor de los Derechos Humanos.

Palabras clave: Derechos Humanos. Vigilancia Global. Estado de Excepción. PRISM. 1. INTRODUÇÃO

Em junho do ano de 2013, o mundo observou uma revelação que traria grandes alterações na forma como a Internet e a computação eram entendidos. Após saber, em 2007, do programa de monitoramento global dos Estados Unidos da América, o então agente da Agência Nacional de Segurança americana, Edward Snowden, se surpreendeu e decidiu que era preciso revelar esse programa de forma que ele fosse interrompido. Assim, aguardou a eleição do Presidente norte-americano Barak Obama na esperança de ver o fim desse projeto. Contudo, após a sua vitória, esse esquema foi priorizado, fazendo com que Snowden, trabalhando na cidade de Genebra, na Suíça, aceitasse receber um salário menor sendo contratado pela empresa Booz Allen Hamilton.

Nessa empresa ele teve acesso a lista de todas as máquinas no mundo as quais aquela agência havia violado (THE GUARDIAN, 2013). E quando conseguiu reunir todas as informações necessárias, bem como, documentos classificados como secretos, ele se dirigiu para a cidade de Hong Kong, onde se encontrou com Glenn Greenwald e Laura Poitras, dois jornalistas que o ajudaram a investigar e divulgar publicamente o programa de monitoramento global estadunidense.

Esse projeto, chamado de Planning Tool for Resource, Integration, Synchronization and Management – PRISM, nasceu com a publicação, em 2001, durante o governo do Presidente George Bush, de uma lei americana conhecida como Ato Patriota (JUSTICE.GOV, 2001), cujo objetivo era adotar medidas contra o terrorismo em nome da segurança nacional.

Ocorre que, uma das medidas previstas era, justamente, o monitoramento dos todos os meios de comunicação, em especial, da rede mundial de computadores.

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De forma a compreender a arquitetura desse programa, todo o tráfego de dados, como: conversas em vídeo, áudio, e-mails, fotografias, logs de acesso e de conexão, e, documentos eram controlados permitindo, inclusive, a busca por termos ou palavras-chaves em tempo real (THE WASHINGTON POST, 2013). Além disso, também foi verificado que empresas norteamericanas, como, por exemplo, o Google, a Microsoft, a Apple, dentre outras, auxiliavam o governo a realizar esse rastreamento. Snowden também revelou que o governo brasileiro e a Petrobras estavam sendo monitorados (EBC, 2013). Após ter divulgado o esquema de vigilância global que os EUA faziam, Snowden não pôde voltar de Hong Kong, dirigindo-se assim, para Moscou, na Rússia, onde recebeu asilo político. Após se estabelecer, ele se pronunciou, publicamente, informando ao mundo sob qual princípio ele havia se baseado para denunciar as ações americanas de monitoração das comunicações.

Em sua carta, Snowden fundamentou sua atitude no princípio de Nuremberg erigido no ano de 1945, oriundo do histórico julgamento dos líderes nazistas após a Segunda Guerra Mundial na cidade de Nuremberg, na Alemanha, o qual afirma que todo indivíduo possui deveres internacionais que ultrapassam as leis nacionais quando se verificam crimes contra a paz e a humanidade (THE GUARDIAN, 2013), podendo ser entendido aqui como os crimes contra os Direitos Humanos.

Como o princípio elencado foi construído após se observarem as atrocidades contra os Direitos Humanos por conta do Holocausto nazista, Snowden traz uma questão que logra a atenção dos órgãos internacionais desses direitos, porquanto fragiliza a soberania do Estado, uma vez que, põe em discussão uma ação específica que esteja sendo realizada por ele. Logo, é preciso entender se o que os EUA fizeram, realmente habilitou Snowden a utilizar o princípio mencionado acima, em outras palavras, é possível violar direito pátrio em nome direitos humanos? Da mesma forma, pende uma análise mais ampla do monitoramento global visando identificar se a lei do Ato Patriota fere direitos e garantias fundamentais sob a luz dos Direitos Humanos. Ainda nesse sentido, a questão da segurança nacional é uma justificativa válida para ações do Estado como a que aqui se estuda?

Também é necessário entender a real utilidade e os riscos das informações coletadas pelo monitoramento global. A intenção é utilizar os padrões de comportamento, cultura, religião, aparência, dentre outros para se mapear terroristas em potencial? A coleta e o armazenamento de dados pessoais com retenção permanente gera riscos para o indivíduo? Em face disso, possui o Estado esse direito, e até mesmo, esse dever de realizar qualquer ação pautando-se na segurança nacional?

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Para proceder com essas análises neste trabalho, será adotado o método do múltiplo dialético40 como balizador das verificações de contradições e contraposições existentes.

2. A IDEIA DO INDIVÍDUO COMO SUSPEITO EM POTENCIAL

Quando se armazena as informações pessoais de um indivíduo, isso se reduz na criação de um perfil pessoal para ele. Porém, utilizando-se critérios analíticos, também é possível interpretar que esse mesmo indivíduo pertença a uma categoria já existente.

Desse modo, por exemplo, partindo-se da premissa acima, uma pessoa de religião islâmica do sexo masculino trajando vestimentas árabes poderia ser tida, sob determinada categoria, como um terrorista. Insta ressaltar a precariedade de um método como esse que, com informações mínimas, colocou um indivíduo nessa qualidade.

Obviamente, esse exemplo simplório não tem o condão de demonstrar como a análise dos dados é realizada, mas apenas asseverar o quão frágil é utilizar-se de critérios objetivos quando se pretende encontrar padrões existentes de sujeitos terroristas. Percebe-se que o exemplo acima deriva de uma ideia estereotipada e de senso comum. Contudo, estimando-se a quantidade de dados por indivíduos e a quantidade de indivíduos, verifica-se que não é possível realizar essa triagem por intervenção humana. Logo, é preciso automatizar esse processo. O que o torna ainda mais precário, pois utilizará critérios lógicos, ou seja, matemáticos, para encontrar arquétipos e, então, encaixar determinado indivíduo em algum grupo existente. Outras questões que se colocam, cercam as fontes das informações coletadas. Pois é preciso saber qual o grau de confiabilidade dos dados acumulados e armazenados para saber se a análise feita partiu de uma base segura, fidedigna. E como citado no item anterior, uma das fontes dessas informações é a Internet, sendo o seu maior fator de risco, aquele que advém da característica de que qualquer internauta41 pode postar qualquer informação, verídica ou não, sobre alguém e sobre si mesmo. Prontamente, questiona-se se essa referência será tida como válida e autêntica ou haverá algum critério que a elimine.

Pela impossibilidade de realização da avaliação dos dados por pessoas, é preciso tratar quais seriam as possíveis técnicas existentes de consolidação dessas informações. Para a coleta desses dados, pode-se utilizar de um conceito conhecido como Big Data, justamente pelo grande volume de elementos armazenados. E para processá-los, é empregada uma concepção chamada de Data Mining, que, como o próprio nome informa, se trata de uma mineração de

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O Múltiplo Dialético é o método ensinado por Alísio Krohling em seu livro Dialética e Direitos Humanos. Múltiplo Dialético: da Grécia à Contemporaneidade. Curitiba: Juruá, 2014.

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Internauta é o termo utilizado para designar a pessoa que utiliza a Internet.

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dados. Desse modo, utilizando-se das técnicas referidas é possível estabelecer padrões seguros de classificação de indivíduos? Na verdade, existem padrões seguros?

Outra técnica temerosa que também é empregada em análises de dados são os algoritmos preditivos, ou seja, programas que, com base em informações alimentadas no sistema, calculam probabilidades sobre vários acontecimentos futuros aleatórios. Pode-se dizer que esses aplicativos tentam “prever o futuro”. Caso uma situação possua um alto grau probabilístico de ocorrência, este induzirá a pessoa que lê o resultado a achar que aquele é, certamente, e evento futuro que estaria prestes a ocorrer.

Correlacionando o monitoramento global com a ideia de Orwell (2009, p.13), tem-se o estabelecimento de uma verdadeira Polícia Norte-americana das Ideias, a qual monitora a tudo e a todos com a finalidade de encontrar sujeitos que fugiriam a um padrão de indivíduo civilizado que não representa ameaça para o Estado. Ainda sobre isso, na perspectiva do referido autor, a Internet se torna uma teletela 42 americana com a capacidade de fornecer uma constante observância das ações de indivíduos, empresas e outros Estados. O maior problema é permitir a criação do Pensamento-crime (ORWELL, 2009, p. 29), que se manifesta como um crime que engloba todos os outros, ou seja, o mero pensar em desobedecer o ordenamento, habilita o Estado a tomar as medidas que entender serem prudentes para a garantia da segurança nacional.

Orwell (2009) não analisa um elemento importante, que é o de se manter, sem nenhuma data de eliminação, todos os dados acerca de um indivíduo, empresa ou Estado. Se esse ponto for analisado sob a égide da Constituição Federal brasileira de 1988, pode-se ter como exemplo, a problemática do Recurso Extraordinário número 625263 que trata da possibilidade de se renovar sucessivamente a autorização da interceptação telefônica para fins de investigação criminal sem limite de prazo. O ponto central da controvérsia foi a existência de grampos com a duração de dois anos ininterruptos que foram anulados pela Supremo Tribunal Federal, justamente pela sua duração.

Apenas para ressaltar, no Estado de Direito brasileiro, a Lei 9.296, de 24 de julho de 1996, autoriza a duração da escuta telefônica pelo período de quinze dias, renováveis, justificadamente, por apenas mais um período de mesma duração. Como exceção, tem-se que no Estado de Defesa brasileiro, poderão ocorrer restrições a direitos como o de sigilo das comunicações. No entanto, apenas pelo período de trinta dias, renováveis por igual período. Verifica-se assim, que o egrégio tribunal invalidou os dados de escuta telefônica por terem ultrapassado a duração legal. Decisão essa que assegura os direitos e garantias fundamentais e, por conseguinte, o Estado Democrático de Direito.

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Instrumento presente no romance de George Orwell (2009, p. 12) caracterizado como um espelho na parede utilizado para monitorar de forma ininterrupta todos os cidadãos do país Oceânia. Cada casa possui uma teletela por cômodo. É possível regular o volume do aparelho, mas nunca desligá-lo.

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Outro exemplo pertinente se encontra no art. 8º da Constituição do Estado do Espírito Santo que proíbe o armazenamento em banco de dados governamental ou de caráter público de dados sobre a convicção política, filosófica ou religiosa, e, até mesmo as que reportem a filiação partidária ou sindical do indivíduo. Diante disso, verifica-se, pelos exemplos no direito brasileiro, que um Estado Democrático de Direito deve respeitar a garantia individual de sigilo das comunicações e da privacidade, apenas autorizando a sua quebra por motivo justificado e por período delimitado. Contudo, isso não foi observado no programa estadunidense conhecido como PRISM.

Pergunta-se então, se a ameaça de terrorismo e a segurança nacional seriam uma justificativa válida para os desrespeito dos direitos e garantias fundamentais.

Em seu estudo sobre a tentativa de se encontrar o inimigo do direito penal, analisando a questão do terrorismo, Zaffaroni (2007, p. 186) alerta que a “[…] intervenção de burocracias e as reformas penais por elas impulsionadas, além de provocarem um avanço do Estado de polícia ou autoritário – com o consequente debilitamento do Estado de direito –, costumam ter efeitos paradoxais […].” Nesse ponto, entende-se que o monitoramento global, sob a alegação da manutenção da segurança é incoerente, como é o caso do desrespeito de direitos e garantias fundamentais, ainda que não se verifiquem, explicitamente.

Para o referido pensador, ainda sob o enfoque do terrorismo, “a melhor garantia de eficácia do direito penal – até onde ela pode ser exigida – é o respeito aos direitos fundamentais.” (ZAFFARONI, 2007, p. 187). Por esse motivo, não é possível aceitar que as garantias mínimas como o do sigilo das comunicações e a privacidade sejam quebradas, pois quando se armazenam todos os dados de um indivíduo para que sua utilização ocorra a qualquer momento, tem-se o que se pode chamar de suspeitos em potencial, ou seja, todo aquele que possua seus dados gravados pode se tornar suspeito no momento em que uma palavra-chave ou termo é verificado ou, simplesmente, quando uma nova forma mineração nos dados é assumida.

Monitorar um indivíduo, uma empresa ou um chefe de Estado por todos os meios de comunicação vinte e quatro horas por dia sete dias na semana é validar o que Jeremy Bentham (2000), filósofo utilitarista, chamou de panóptico. No entanto, armazenar os dados pessoais deles e utilizar as técnicas de mineração de dados e de algoritmos preditivos para a sua análise faz com que o panóptico se aperfeiçoe tornando-se atemporal, porquanto terá a capacidade de perpassar o passado, o presente – em tempo real, inclusive –, e o futuro desses indivíduos.

3. OS LIMITES AO PODER DO ESTADO: IMPEDINDO A CRIAÇÃO DO ESTADO DE EXCEÇÃO PERMANENTE.

De mesmo entendimento, Krohling, Tessarolo e Pertel (2013, p.15 e 17) afirmam que "em nome da nova panaceia da segurança nacional se aceitam excessos impensáveis antes contra

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a liberdade individual.” Sendo assim, é preciso questionar sobre as possibilidades que o indivíduo tem para frear essa atuação estatal intrusiva ou se seria possível assumir que o Estado não possui limites para a sua atuação, principalmente, quando se tratar da segurança nacional.

Agamben (2004) recorda-se que, após o ocorrido em 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, o então presidente George Bush referiu-se sobre si mesmo como o Comandante encarregado do Exército. Segundo o referido autor, Bush estava “[…] procurando produzir uma situação em que a emergência se torna a regra e em que a própria distinção entre paz e guerra (e entre guerra externa e guerra civil mundial) se torne impossível.” (AGAMBEN, 2004, p. 38) Em outras palavras, a intenção do Ato Patriota é gerar um Estado de Exceção permanente onde o monitoramento global o convalida. Além do que todas as medidas que o presidente dos EUA entender serem necessárias para se garantir a segurança estarão aptas e, sob esse discurso, legitimadas a serem adotadas. Agamben (2007, p.14) lembra também que o Ato Patriota anulou “ […] radicalmente todo estatuto jurídico do indivíduo, produzindo, dessa forma, um ser juridicamente inominável e inclassificável.”

O discurso estatal da segurança nacional não se afirma como um medida assegurada pelo Estado, mas sim, como uma troca entre ele e o Cidadão. De um lado aquele quer “garantir a paz” e de outro este deve abrir mão de certos direitos e garantias individuais. Com isso, segundo Friedrich Müller (2010, p. 54), “o Estado Constitucional possui o monopólio do exercício legítimo da violência, não o monopólio do exercício ilegítimo da mesma.” A preocupação com esse tipo de pronunciamento é a criação de um povo que concorde em abrir mãos desses direitos não pela tutela estatal, mas pela sua mera promessa de proteção. Este povo é chamado por Friedrich Müller (2010, p. 55) de povo ícone, que, “[…] erigido em sistema, induz a práticas extremadas.” Essa relação do Estado com o povo ícone também se verificou na Alemanha Nazista com o discurso da Raça Ariana de Hitler, bem como, na Itália com a ideia da Grande Pátria de Mussolini. Daí, depreende-se a necessidade de se impor limites à atuação estatal, ainda que sobre a alcunha da segurança nacional.

Como fato que corrobora com esse acordo tácito entre Estado e Cidadão, tem-se que o Ato Patriota permitiu buscas e apreensões sem mandado judicial, ou seja, sob essa previsão legal, policiais entram e saem das casas, consideradas até então asilos invioláveis, no momento em que, simplesmente, suspeitarem de alguma situação ou alguém.

Sobre a monitoração das comunicações em busca de terroristas, ou melhor, de inimigos, Zaffaroni (2007, p. 117) aborda a questão ensinando que

“quando os destinatários do tratamento diferenciado (os inimigos) são seres humanos não claramente identificáveis ab initio (um grupo com características físicas, étnicas ou culturais bem diferentes), e sim pessoas misturadas ao e confundidas com o resto da população e que só uma investigação policial ou judicial pode identificar, perguntar por um tratamento diferenciado para eles importa interrogar-se acerca da possibilidade de que o Estado de direito possa limitar as garantias

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e as liberdades de todos os cidadãos com objetivo de identificar e conter os inimigos. Isso é assim porque, por exemplo, ao se permitir a investigação das comunicações privadas para individualizar os inimigos, a intimidade de todos os habitantes será afetada, pois esta investigação incluirá as comunicações de milhares de pessoas que não são inimigos.”

Em sua comparação entre Hobbes, filósofo que não permite resistência ao poder do soberano43, Locke, que entende haver um estado de natureza e uma lei natural onde, por consequência, se verificam direitos, e Schmitt, que encontrou uma contradição no pensamento de Hobbes afirmando que isso “[…] destruiu de dentro para fora o poderoso Leviatã […]” conclui que, até mesmo Hobbes “[…] diante do foro interno, fazia distinção entre o privado e o público, e seu Leviatã chegava até o limite do privado, mas não penetrava nele. Deste modo, deixava a salvo a liberdade de consciência religiosa das pessoas.” Zaffaroni (2007 p. 134-135) Logo, até mesmo quem defende o poder absoluto do soberano, em determinado momento lhe impõe resistência. Dessa forma, fica claro que é preciso impor limites para a atuação do Estado. Contudo, como seria possível estabelecer esses limites? Quando um país monitora todas os seus meios de comunicação, e vigia também, outras nações, como foi o caso revelado por Snowden sobre o governo brasileiro, tem-se um Estado do Exceção permanente que não garante direito algum, pois “o estado de exceção não é um direito especial (como o direito de guerra), mas, enquanto suspensão da própria ordem jurídica, define seu patamar ou seu conceito limite.” (AGAMBEN, 2007, p. 15)

Conforme abordado anteriormente, no momento em que o presidente dos EUA, George Bush, se colocou como Comandante encarregado do Exército por conta do Ato Patriota, ele buscou autorização dos demais poderes para operar essa força sem restrições e, através dela, executar as ações que entendeu necessárias. Uma crítica feita por Agamben(2007, p. 18) à Tingsten se funda nessa questão onde o poder executivo tem seus poderes estendidos por meio de promulgações de decretos e disposições feitas pelo legislativo, que foi o caso do já mencionado Ato Patriota. Sendo assim, aquilo que deveria ser um poder constitucional a ser utilizado em casos excepcionais se torna regra e não a exceção. (AGAMBEN, 2007, p. 21) E isso se opõe ao Estado Democrático de Direito.

5. A VIOLAÇÃO DE NORMAS PÁTRIAS EM NOME DOS DIREITOS HUMANOS

Objetivando-se responder se é possível violar norma nacional em nome dos direitos humanos, antes, é imperioso abordar uma questão que chocou o mundo e deu origem a observância sobre como outros países procedem a respeito dos Direito Humanos, que foi o Holocausto nazista.

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O termo Soberano deve ser entendido aqui como Estado.

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Um dos pontos que merecem atenção, segundo Krohling (2011), foi a ascensão do nazismo e a omissão do Papa Pio XII e dos Estados Unidos. Vale mencionar que não se sabia sobre a ideologia nazista da raça pura ariana e do antissemitismo. Para isso, seria preciso um apelo interno de grandes proporções para que o mundo externo soubesse dos planos dos alemães sobre a “limpeza étnica” que eles tentariam realizar. Um contraponto a isso é o de que, na França, o antissemitismo era superior ao da Alemanha. “Um exemplo disso é o nacionalismo integral e o racismo de Gobineau e Charles Maurras que, como representantes da direita raivosa da época pregavam a exclusão dos metecos ou estrangeiros, dos franco-maçons, dos protestantes e dos judeus.” (KROHLING, 2011, p. 75-76) A diferença entre esses países se pauta na vitória de Hitler que mobilizou a máquina estatal em função das ideologias já mencionadas. O que demonstra o risco do surgimento de um discurso que legitima um líder que concentre o poder do Estado. O exemplo do holocausto se exibe tão importante, pois, dentre várias das perguntas feitas por Hannah Arendt (2010, p. 15) sobre esse evento, ressaltam-se três: qual o papel das outras nações? Os Aliados não foram omissos em denunciar os acontecimentos? Até que ponto vai a responsabilidade dos Aliados? Com essas perguntas, Hannah Arendt chama a atenção para a responsabilidade dos demais países de forma que estes são responsáveis por intervirem em questões que versem sobre direitos humanos. Numa análise histórica, Piovesan (2013, p. 113-117) lembra que, antes da Segunda Guerra Mundial, ocorreram três marcos de internacionalização dos Direitos Humanos, foram eles: o Direito Internacional Humanitário, a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Contudo, após a Segunda Guerra Mundial, em especial em 1948 com o surgimento da Organização das Nações Unidas – ONU, é que se constata “[…] uma nova consciência ética dos direitos humanos, que vai além da formação da ONU e organização dos estados em busca de uma paz duradoura. Existe uma reação coletiva em forma de rede que reage contra a barbárie e as atrocidades cometidas.” (KROHLING, 2011, p. 79-80) Além do Organização das Nações Unidas – ONU, ainda citam-se os sistemas de Direitos Humanos latino-americano, o europeu e o africano.

Krohling (apud Rosana Rocha Reis, 2011, p. 82) explica a importância da

“[…] institucionalização dos Direitos Humanos no plano internacional e de que maneira ela contribui ou não para a paz mundial é bastante rica e tem alimentado uma extensa produção ao longo dos últimos anos, centrada, sobretudo, na interpretação das obrigações internacionais em conflitos violentos que envolvem a violação sistemática de Direitos Humanos fundamentais, em função não somente do comprometimento legal que muitos países assumiram com o regime internacional de Direitos Humanos, mas também em função da pressão da opinião pública, cada vez mais sensível ao tema.”

Portanto, ainda que não exista previsão em nenhum tratado ou convenção internacional, mas tão somente no princípio erigido pelo Tribunal de Nuremberg, que afirma que todo indivíduo possui deveres internacionais que ultrapassam as leis nacionais quando se verificam crimes contra a paz e a humanidade, é essencial, para a manutenção dos Direitos Humanos, que isso

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seja aceito. Além disso, se faz necessário criar mecanismos de proteção internacional que vão além do asilo político para indivíduo que queira proceder dessa forma. Por conseguinte, Edward Snowden agiu dentro do que se esperava e não deveria responder por crime algum, uma vez que, o monitoramento global fere fatalmente os Direitos Humanos.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao revelar o programa norte-americano de vigilância global, Edward Snowden prestou um serviço á humanidade – mesmo que com sacrifício próprio, pois não pode mais retornar ao seu país de origem – o que possibilitou aos demais países que repensassem sobre a segurança de seus meios de comunicação.

No momento em que soube da espionagem, o Brasil estabeleceu medidas legais44 para a adoção de equipamentos e programas que possibilitem canais seguros de comunicação de dados da administração pública direta, autárquica e fundacional. Mas esse foi apenas o primeiro passo. É preciso, também, garantir a seguranças do dados dos demais entes federados, como estados, municípios e territórios. Além disso, cumpre orientar as empresas nacionais para que elas também protejam suas informações de modo que não sejam fragilizadas no momento em que se vejam numa negociação com empresas norte-americanas, por exemplo.

Entretanto, a maior preocupação aqui é com os dados pessoais dos indivíduos, pois, como visto, seu armazenamento fere os Direitos Humanos e propicia a insegurança quanto ao que será feito com as suas informações, uma vez que, transformar a todos em suspeitos em potencial é iniciar um processo permissivo de violação dos direitos e garantais fundamentais. E isso pode levar a novas barbáries, pois armazenar os pensamentos e opiniões pessoais, políticas, filosóficas e religiosas já pode ser entendida como tal.

Outras medidas também carecem serem adotadas, como a proteção aos indivíduos que violarem as normas de suas pátrias em nome dos Direitos Humanos. Não obstante, os órgãos e sistemas internacionais de proteção dos Direitos Humanos devem se insurgir contra esse tipo de monitoramento estabelecendo regras e sanções para a sua constatação e punição. 7. REFERÊNCIAS AGAMBEN, G. Estado de Exceção. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2004.

ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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Fala-se aqui do Decreto 8.135 de 04 de novembro de 2013 que dispõe sobre as comunicações de dados da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, e sobre a dispensa de licitação nas contratações que possam comprometer a segurança nacional.

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A CONDIÇÃO HUMANA E O RESPEITO À DIGNIDADE NA PROTEÇÃO DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE SAUDÁVEL PREVISTO PELO ARTIGO 225 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL Ana Cristina Bacega De Bastiani45 e Mayara Pellens46

Resumo: O trabalho visa analisar a condição humana a partir dos ensinamentos de Hannah Arendt, com um enfoque no processo de evolução, do qual o homem, como agente transformador da realidade, é responsável. Um breve estudo a respeito da evolução dos direitos fundamentais no Estado Democrático Brasileiro também será realizado, para perceber a importância da evolução na proteção dos direitos, diante de cada momento histórico. Demonstrar-se-á que atualmente o momento é de um olhar especial a respeito da proteção a um meio ambiente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida, protegido expressamente pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 225. Com a ratificação deste direito, que pode ser chamado de um direito à sustentabilidade, o respeito ao homem se mostra efetivo, pois com esta efetiva proteção ambiental desejada é possível potencializar ao homem uma vida com dignidade, em um caminho de transformação do enfoque de proteção, mas que reflete no próprio homem. Com a proteção deste direito, o homem pode continuar sua caminhada para o futuro, de maneira sadia, com qualidade de vida e respeito à sua dignidade (Fundamento do Estado Democrático de Direito). Por isso, demonstra-se além, a importância das ações humanas, participativas e cotidianas para este novo momento democrático e jurídico que se pretende. Palavras-chave: evolução, equilíbrio, dignidade.

Introdução O presente trabalho analisa a Condição Humana e o respeito à dignidade humana na efetivação de uma proteção a um direito ao meio ambiente saudável para uma sadia qualidade de vida diante dos ditames constitucionais do Estado Democrático de Direito vivenciado no Brasil na atualidade. O respeito à dignidade da pessoa é analisado especialmente a partir do artigo 225 da Constituição Federal, em que pode-se dizer que prevê em seu texto o direito a sustentabilidade, para a promoção de uma qualidade de vida a partir da proteção do meio ambiente, essencial para a preservação de condições de vida digna e da própria vida. “A Condição Humana” expressa nos ensinamentos de Hannah Arendt serve como base ao estudo, já que existe como uma máxima ao princípio da dignidade humana que se satisfaz quando condições de vida digna se concretizam para o homem. Para que o Estado Democrático de Direito possa ser permanentemente construído, neste estudo se mostra relevante a análise a respeito da previsão de direitos por meio da Constituição, bem como o estudo a respeito das ações humanas no sentido da consciência de suas ações reflexivas. O ser humano pode exigir seus direitos sem esquecer que sua 45

Mestranda em Direito pela Faculdade Meridional, Linha de pesquisa Fundamentos Normativos da Democracia e da Sustentabilidade. Pós-Graduada em Direito Processual Civil pela Faculdade Anhanguera de Passo Fundo. Advogada. E-mail: [email protected]. 46

Mestranda em Direito pela Faculdade Meridional, Linha de pesquisa Fundamentos Normativos da Democracia e da Sustentabilidade. Pós-Graduada em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade Meridional. Advogada. E-mail: [email protected].

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participação é de extrema importância para este processo de construção do modelo de Estado que se vivencia e que se quer cada dia mais consolidado. Neste caso, as ações humanas implicam diretamente para a promoção da sustentabilidade que se quer construir a partir da previsão do artigo constitucional supra citado. Referido artigo não prevê o direito à sustentabilidade especificamente, por isso a relevância da consciência humana para a sua construção. Analisando os direitos fundamentais de uma maneira geral, em específico o direito a sustentabilidade, voltado à análise da participação humana neste desenvolvimento, a presente pesquisa visa demonstrar os desafios jurídicos e sociais para a concretização deste direito fundamental que hoje encontra-se em construção. Este direito é proclamado, mas necessita de uma construção na visão da sustentabilidade, já que a previsão é a respeito da proteção ao meio ambiente equilibrado para que ocorra a sadia qualidade de vida. Portanto, este processo de evolução humana, que visa melhores condições de vida precisa ser desenvolvido no sentido da sustentabilidade ambiental e humana. Num primeiro momento, a pesquisa se destina ao estudo específico da Condição Humana, do desenvolvimento humano e sua influência para que o princípio da dignidade humana seja protegido de maneira real. Posteriormente, delimitam-se os direitos fundamentais de uma maneira geral, para, em um terceiro momento dar ênfase ao direito a um meio ambiente equilibrado voltado à promoção da qualidade de vida, analisando um possível direito à sustentabilidade no Estado Democrático de Direito, em que as ações humanas são o cerne para a construção de um meio ambiente melhor para se viver. É um ambiente democrático, que exige a participação humana para a transformação da realidade e busca pela preservação de um ambiente adequado para a perpetuação da vida humana no planeta, que este trabalho tem por objetivo estudar.

1 A Condição Humana como Valor Base à Dignidade da Pessoa Humana As teorias elaboradas por Hannah Arendt (2007) contribuíram muito ao mundo contemporâneo, pois refletiram sobre o homem e sua colocação no mundo social em que vive. Ao estudar o homem, percebe-se que este vive em sociedade, mas houve uma evolução histórica de sua convivência para que se chegasse a tal estado, haja vista que nem sempre o homem conviveu da maneira social como hoje, passando este por vários estágios. A Condição Humana é neste estudo um ponto de partida, na medida em que no caminho para a evolução o homem não pode esquecer que são as suas ações que vão levar ao futuro da humanidade, haja vista que todos os homens participam deste processo e devem agir com consciência diante disto. Arendt explica que “a condição humana compreende algo mais que as condições nas quais a vida foi dada ao homem. Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma condição de sua existência.” (2007, p. 17) Hannah Arendt (2007) refletiu a respeito do homem enquanto ser e quais as qualidades que o igualam e o diferenciam de outros seres vivos. Destacam-se explicações sobre o papel do homem em relação ao mundo e a si próprio, estudo este relevante para que se entenda que as ações do homem são determinantes para sua sobrevivência, a da espécie humana, a da sociedade e para a promoção de seus direitos e a afirmação da Democracia. Em A condição humana, Hannah Arendt (2007) reflete sobre aquilo que o homem está fazendo no mundo, explicando, assim, as três atividades que correspondem às condições básicas da vida humana, quais sejam: trabalho, labor e ação. Estas condições são elementos importantes para estudar a evolução do homem bem como a proteção de seus direitos que visam proteger o homem e sua dignidade. A consagração da dignidade da pessoa humana considera o homem como o centro do universo jurídico, sendo que a pessoa humana é o fim de si mesma. Isto se justifica na medida em que a dignidade é decorrente de o ser humano ser respeitado enquanto tal, ou seja, a dignidade é algo que pertence ao ser humano em si, mas sem condições de vida adequadas ela não se realiza perfeitamente. Ingo Wolgang Sarlet, conceitua dignidade da pessoa humana

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como sendo uma “qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existentes mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.” (SARLET, 2007 p. 62). Nesse sentido, Kant explica que o que caracteriza o ser humano e o faz dotado de dignidade especial é o fato de nunca poder servir de meio para outro ser humano. As pessoas não existem em função das outras e não podem servir como objeto, pois a pessoa humana encontra sentido em si mesma (KANT, 1995), e o princípio da dignidade humana, como expressa Flávia Piovesan, transcende os limites do positivismo, justamente por seu fundamento ser o próprio ser humano (PIOVESAN, 2003). Com relação à dignidade no Brasil, esta hoje é protegida expressamente depois das histórias de lutas pelos direitos da pessoa humana. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, elaborada para ratificar a democracia, consolidou-se o Estado Democrático de Direito47. O texto constitucional trouxe estampados os direitos fundamentais, sendo um de seus fundamentos basilares a dignidade da pessoa humana. É importante ressaltar que os princípios constitucionais são dotados de normatividade, gerando um direito subjetivo ao cidadão que pode exigir do Estado que os efeitos esperados dos princípios sejam concretizados. O tema ora versado é de extrema atualidade, já que versa sobre o próprio homem. Não há como entender e exigir direitos e princípios se não se chegar próximo, ao menos, do entendimento daquilo que o homem é, faz e da influência de sua condição. Só assim é possível entender o valor que a dignidade exerce sobre a existência humana bem como a necessidade de proteção de seus direitos. Sarlet explica que “em se levando em conta que a dignidade, acima de tudo, diz com a condição humana do ser humano, cuida-se de assunto de perene relevância e atualidade, tão perene e atual for a própria existência humana.” (SARLET, 2007, p. 27). Valendo-se do progresso humano no sentido de desenvolver novas técnicas de vida, que visam preservar não somente a espécie humana, mas uma vida melhor, o homem também deve continuar buscando a ratificação de seus direitos fundamentais que objetivam proteger aquilo de mais íntimo que existe no homem: sua dignidade. A dignidade, na condição de valor intrínseco do ser humano, gera para o indivíduo o direito de decidir de forma autônoma sobre seus projetos existenciais. Mesmo onde esta autonomia lhe faltar, o princípio deve ser considerado e respeitado pela sua íntima relação com a condição humana (SARLET, 2007, p. 52). A condição humana é a base para que o princípio da dignidade da pessoa humana seja reconhecido. Esta e seus desdobramentos exercem um papel que dá unidade, sentido e coerência aos direitos fundamentais previstos no sistema jurídico. Assim, protegida a condição humana como um valor base à dignidade do homem, pode-se ter a certeza de que os outros direitos fundamentais pertencentes ao homem terão condições de serem ratificados, pois sem o devido respeito às condições intrínsecas ao homem, não há princípio e nem direito que seja confirmado no plano real. Como explica Figueiredo “a dignidade da pessoa humana, ademais, é pré-jurídica, não existindo apenas quando e na medida em que corroborada pelo Direito, já que possui um dado prévio, um 47

“Destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias” (BRASIL, Constituição Federal, 1988). Nesse sentido, prevalece o princípio da soberania popular, ou seja, em um regime democrático, o soberano é o povo. Há uma harmonia entre o representante do poder soberano nas tarefas do governo com o poder decisório do povo. (COMPARATO, 2006, p. 86).

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conceito a priori. Portanto, não se cogita nem de pretensão jurídica, nem tampouco de direito fundamental à dignidade humana; o que há são pretensões jurídicas a direitos subjetivos decorrentes da dignidade da pessoa humana, ou ainda uma pretensão de respeito e proteção que dela pode decorrer. Não há direito fundamental à dignidade da pessoa humana – embora se possa pensar num direito à existência digna”. (2007, p. 53). Pode o homem, assim, ter reconhecido algum direito, mas caso não tenha sido respeitada a sua dignidade não há a sua efetivação. Pode-se dizer, então, que a condição humana é a base para o entendimento da evolução do homem e de seus direitos. Assim, é preciso respeitar a dignidade humana e os direitos que dela decorrem para que o homem possa perceber que sua evolução enquanto homem e também enquanto sociedade surte resultados no sentido de buscar sempre um maior entendimento e proteção a respeito de sua condição e seus direitos. Dessa forma, o conjunto das características e atividades humanas faz com que o homem, a partir de sua razão e consciência, perceba que é um ser diferenciado dos demais e, portanto, merecedor de tratamento particular, mas que ele também possui deveres na busca pela ratificação de seus direitos, bem como de preservar o meio para que também as futuras gerações possam usufruí-los com qualidade.

2 Delimitação Teórica dos Direitos Fundamentais Para Bobbio, os direitos do homem, “por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas” (2004, p. 5). Acrescenta o autor que “o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político” (BOBBIO, 2004, p. 23, grifo nosso). Dimoulis e Martins concordam e explicam que os direitos fundamentais também possuem esta aproximação com a política. Para eles, “os direitos fundamentais mantêm uma grande proximidade com a Política. Não se pode ignorar que foram impostos politicamente no meio de ferozes lutas, de revoluções, de guerras civis e de outros acontecimentos ‘de ruptura’.” (DIMOULIS; MARTINS, 2007, p. 17). Em face da problemática acerca dos direitos do homem, pode-se afirmar que para sua realização é preciso vontade política, ou seja, a atuação do Estado por meio de escolhas democráticas que fazem toda a diferença nas suas prioridades de realização de direitos, aparecendo as barreiras a serem ultrapassadas pela sociedade na busca pela efetivação de seus direitos. Para Steinmetz, “os direitos fundamentais são direitos positivos, constitucionalizados” (2001, p. 19). Entendido que várias são as definições encontradas para delimitar o que são os direitos fundamentais, ainda é preciso delimitar o âmbito de atuação destes direitos, haja vista que estes foram surgindo de modo gradual. Partindo-se dos direitos de limitação do poder, exigência do Estado ainda liberal/individualista, no nascedouro dos direitos fundamentais até os dias de hoje, de um Estado com uma efetiva interligação com o ente privado, houve uma trajetória percorrida por estes direitos, quando tiveram que superar a ‘crença que teriam uma dimensão puramente axiológica, ética, sem eficácia jurídica ou aplicabilidade direta e imediata’, a fim de conquistar o status de norma jurídica. (REIS, 2007, p. 2033). Acontece que os direitos fundamentais nem sempre tiveram esse status normativo. Esses direitos possuem uma caracterização subjetiva, tendo em vista serem dotados de valores implícitos. Os direitos fundamentais são resultado da vontade de positivar valores básicos e

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com isso acabam sendo a base da estrutura normativa do Estado. Sarlet, nesta senda, explica que “Os direitos fundamentais, como resultado da personalização e positivação constitucional de determinados valores básicos (daí seu conteúdo axiológico), integram, ao lado dos princípios estruturais e organizacionais [...] a substância propriamente dita, o núcleo substancial, formado pelas decisões fundamentais, da ordem normativa.” (2009, p. 61). Assim, em um Estado Democrático de Direito, a proteção aos direitos fundamentais é essencial. O conhecimento de seus direitos por parte dos cidadãos também mostra suma importância, pois conhecendo os direitos, eles tornam-se mais possíveis de efetivação, já que cada um saberá o que pode e como exigir. Como dito anteriormente, os direitos fundamentais são frutos de processos históricos e lutas humanas para sua proteção. A história demonstra que conforme o tempo passa, e a sociedade vai se modificando, as propostas de proteção a direitos também vão se transformando. Após as grandes guerras ocorridas durante o século XX, por exemplo, fora necessária uma especial atenção para a proteção dos direitos humanos, já que àquele tempo o homem tornara-se um instrumento para alguns outros homens detentores de maiores poderes. Guimarães a respeito dos direitos fundamentais, acrescenta que eles “compõe-se de um conjunto de direitos e garantias do ser humano que buscam a implementação do respeito a uma vida digna, sadia, com a perspectiva de desenvolvimento geral, com liberdade, solidariedade e igualdade” (2013, p. 102). De acordo com os ensinamentos de Guimarães e, conforme o que já fora dito sobre como os direitos surgem de maneira gradual e em conformidade com as transformações da realidade social, o que se pretende demonstrar com o decorrer do texto é que embora a proteção dos direitos do homem demonstre ser o cerne para uma vida digna, chega-se o momento de olhar e dar uma maior atenção aos direitos a um meio ambiente saudável, para que a vida do homem e sua própria dignidade sejam respeitadas, já que com a preservação do meio ambiente é possível que o homem possa continuar seu caminho de evolução, vivendo em um ambiente saudável e que propicie uma sadia qualidade de vida, que respeita a condição e dignidade humana, seus direitos e sua própria vida, que poderá continuar se perpetuando.

3 O direito fundamental a um meio ambiente equilibrado essencial à sadia qualidade de vida O direito a um meio ambiente saudável está previsto na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 225 caput48, e é elevado a status de direito fundamental. Está intimamente ligado à proteção de outros direitos fundamentais. É preciso analisar como o referido direito deve ser entendido e protegido para que os demais direitos que dele decorrem também sejam efetivados. Este artigo da Constituição Federal demonstra que além dos direitos fundamentais do homem, é preciso também que um direito a um meio ambiente saudável seja perseguido, já que a própria condição humana importa ao homem um desenvolvimento que preserve sua qualidade de vida. Guimarães explica que “a ligação do homem com o meio ambiente, com seu meio natural guarda uma simbologia […] que deve ser compreendida sob o enfoque da necessidade de se identificar a natureza antropológica e social do homem com seu espaço

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Art. 225 caput CF – “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preserva-lo para as presentes e futuras gerações”. (BRASIL, Constituição Federal, 1988).

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ecológico, indissociáveis”. (2013, p. 101). Portanto, o homem, que é dotado de dignidade e possui diversos direitos protegidos, deve atuar no sentido de desenvolver-se protegendo os recursos naturais que proporcionam essa existência digna, já que para preservar sua existência, mostra-se necessária também a proteção ao meio em que vive e se desenvolve. Para que o homem possa continuar seu processo de evolução é preciso o respeito ao meio ambiente para que tal desenvolvimento seja sustentável, continuando a preservar a dignidade humana. Isso apenas ocorre a partir de ações sustentáveis e condições de vida saudáveis proporcionadas por estas condutas, pois isso é a condição humana e demonstra a importância do Estado Democrático de Direito no sentido da garantia de direitos aliado a participação do homem neste processo de evolução. Demonstra-se assim, que o homem está diretamente ligado neste processo de preservação do meio e construção de um direito fundamental à sustentabilidade que seja efetivamente respeitado. Medeiros e Petterle explicam que “à luz da temática ambiental, urge realizar a transferência da proteção ao ambiente do terreno dos direitos fundamentais para o âmbito dos deveres”. (2005, p. 34) E acrescentam que se trata de ”uma necessidade de se ultrapassar a euforia dos direitos fundamentais sob a ótica do individualismo e de se alicerçar o conceito de uma comunidade responsável em face de problemas ambientais coletivos.” (2005, p. 34) A influência entre o respeito a direitos fundamentais e o dever do homem no que tange a realidade ambiental demonstra ser uma nova maneira de encarar os problemas ambientais, causados pelo próprio homem. É por isso que como Estado Democrático de Direito que é, o Brasil, protege em sua Lei Maior, condições para que este modelo possa se concretizar. A Constituição prevê direitos fundamentais, tem a dignidade da pessoa humana como um de seus fundamentos, e dentre o amplo catálogo de direitos protegidos, está o direito a um meio ambiente saudável para a essencial qualidade de vida de seus integrantes. Isso implica dizer que os homens tem amplamente direitos protegidos, que devem ser conhecidos por ele, mas também implica que como ser participativo do modelo de Estado que possui, o homem também tem o dever de preservar estas condições para que a dignidade humana possa continuar a ser respeitada perante as futuras gerações, já que a qualidade de vida prevista pelo artigo 225 está intimamente ligada ao respeito da dignidade humana a partir da preservação de um meio ambiente equilibrado. Aqui aparece a importância das ações sustentáveis para a preservação do meio. Germano Schwartz explica que “ o artigo 1 o da Constituição de 1988 estabelece o Brasil como um Estado Democrático de Direito, o que implica algumas características/princípios vinculantes ao modelo estatal que se quer implantar, todas elas ligadas a uma reestruturação/transformação da sociedade. É um vínculo jurídico-ético-político do qual o Brasil não pode se desapegar”. (SCHWARTZ, 2001, p. 49). E por ser um Estado Democrático de Direito que se funda em valores e princípios relevantes para uma sociedade livre, tendo sempre como objetivo a busca por justiça social, no que concerne o direito a um meio ambiente equilibrado, “vale dizer que o Estado Democrático de Direito impõe a todos os componentes da sociedade brasileira o dever de se buscar a transformação da realidade” (SCHWARTZ, 2001, p. 50). Diante do modelo adotado pelo Estado brasileiro, existe o dever de tutelar a preservação do meio ambiente saudável para que ele possa continuar sendo um recurso importante para continuação da vida humana com dignidade, que caracteriza a condição humana. “Resta evidente que o Estado Democrático de Direito supera o império da lei, típico do Estado de Direito” (SCHWARTZ, 2003, p. 123). O que acontece é que a proteção deste direito a um meio ambiente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida do homem depende, muitas vezes, da consciência do homem de que ele é o ser condicionante desta preservação e também da vontade e atitude de implantar políticas para esta preservação. Quando isso acontece começam a aparecer os problemas inerentes ao tema tratado. Schwartz observa que a concretização de um direito tão importante, do qual muitos outros direitos decorrem e implicam proteção, implica várias consequências inimagináveis e não pode estar condicionada “a discursos vagos, promessas políticas e ideologias cambaleantes. A condição primordial para o desenvolvimento de qualquer regime democrático

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é a vida do ser humano, que não pode ser colocada em segundo plano por distorções ideológicas que têm como grande objetivo disfarçar os reais e egoísticos interesses implícitos em ditas falas” (2001, p. 161). Diante do que está sendo dito, importante esclarecer que há algo que deve ser considerado nesta questão ambiental. Primeiro, o Estado deve prever na sua Lei Maior a proteção a um meio ambiente saudável, essencial à vida humana e promover mecanismos para a efetiva proteção. Porém, a relevância da consciência humana e ações conscientes para preservar o meio é extremamente relevante para que a preservação do meio seja uma realidade, pois preservar o meio ambiente, do qual o próprio homem depende se trata de uma responsabilidade da comunidade. Explicam Medeiros e Petterle, que “o ser humano, ao mesmo tempo em que necessita explorar os recursos naturais, é também completamente dependente deles, o que o torna imprescindível para uma boa vida, para uma vida digna” (2005. p. 34). Impõe-se além, uma limitação ao comportamento do agir humano. A responsabilidade pela preservação está em cada um e na comunidade. Não basta somente neste caso exigir do Estado que ele tome as providências necessárias para a efetivação deste direito. O homem é o responsável direto pela degradação ou preservação do meio em que vive e depende para sobreviver. Como bem advertiu Schwartz, é preciso que o cidadão tenha a consciência de seus deveres e busque seus direitos, pois um dos “princípio[s] do Estado democrático de direito é a busca da justiça social,” (SCHWARTZ, 2003, p. 122, grifo do autor). Desta forma, tem o Estado o dever de fazer tudo o que for possível para implantar condições de efetivar este direito fundamental, entretanto o homem não pode apenas esperar, neste caso, a atuação do Estado, já que o homem, como agente transformador da sociedade, tem o poder em suas mãos e precisa utilizá-lo com a devida consciência. É por meio de suas ações pequenas e diárias que pode permanecer no processo de evolução, do qual trata a condição humana, preservando o meio em que vive, sendo efetivamente o agente transformador da realidade, visando a melhoria de suas condições de vida com respeito a sua dignidade, ou seja, são ações que tem em vista um sentimento de “solidariedade, de sobrevivência conjunta” (GUIMARÃES, 2013, p. 98) A busca desenfreada pelo progresso, tem desvirtuado as ações humanas. Isso tem gerado graves consequências, que podem afetar profundamente a vida humana e enfraquecer o próprio regime democrático, já que o progresso é uma de suas vertentes, todavia, não a única. Como se sabe, o importante é o equilíbrio entre as condições 49. Neste caso, o homem é o responsável por atuar na mudança das ações para que referida busca pela evolução possa respeitar suas condições de homem não afetando os recursos que ele próprio depende para sua existência. Jonas esclarece que “se o dever em relação ao homem se apresenta como prioritário, ele deve incluir o dever em relação à natureza, como condição de sua própria continuidade e como um dos elementos da sua própria integridade existência.” (2006, p. 230) Para Moraes, a preservação do meio ambiente juntamente a promoção da qualidade de vida pode ser vista como um “direito subjetivo, mas como a concretização de um princípio a ser referendado pela atuação jurídico-política do Estado [...] Isso requer que o conjunto das relações sociais se dê com vistas ao reordenamento da qualidade do cotidiano das pessoas, a

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“Os perigos inerentes à própria ideia democrática surgem quando um dos ingredientes dela é isolado e absolutizado. O que reúne esses diversos perigos é a presença de uma forma de descomedimento. O povo, a liberdade, o progresso são elementos constitutivos da democracia; mas se um deles se emancipa de suas relações com os outros, escapando assim a qualquer tentativa de limitação e erigindo-se em único e absoluto, eles transformam-se em ameaças.” (TODOROV, 2012, P. 18)

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sua adequação ao objetivo de promover – dar impulso, trabalhar a favor, favorecer o progresso, fazer avançar, fomentar – a vida”. (2003, p. 24, grifo do autor). Figueiredo (2007, p. 82), nesse sentido, acrescenta que a vida digna é equiparada a uma vida saudável. O autor aproxima os conceitos de qualidade de vida e dignidade da pessoa humana, entendendo que o completo bem-estar densifica o princípio da dignidade humana, pois é inimaginável que condições de vida insalubres em um ambiente inadequado, sejam aceitas como conteúdo de uma vida com dignidade. A condição humana serve como uma máxima a dignidade humana e para seu respeito, o homem deve viver em condições ambientais equilibradas e adequadas. A conquista da positivação e exigência de tutela desses direitos nada mais é do que fruto das próprias lutas e do conhecimento humano, fazendo com que o homem se modifique e também transforme o mundo, preservando e melhorando o ambiente ao seu redor para conquistar uma melhor qualidade de vida e, assim, a efetivação de seus direitos previstos pela Constituição Federal de 1988 especialmente o artigo 225. O direito fundamental à um meio ambiente equilibrado, a partir de ações humanas sustentáveis ainda é um direito em constante construção. Como há a previsão constitucional, é preciso continuar desenvolvendo e justificando este direito sob este aspecto, visto que se ratificado nesta perspectiva protegerá intimamente a condição humana e a dignidade da pessoa humana, já que aquela é um valor base desta. Como a dignidade é um dos fundamentos deste Estado Democrático de direito, torna-se necessário buscar a promoção de uma consciência humana sustentável para a busca de uma qualidade de vida humana que depende de suas próprias ações para acontecer. Para que uma qualidade de vida ocorra, muitos direitos fundamentais devem ser ratificados, proporcionando ao homem uma vida em um estado de bem-estar. Medeiros e Petterle falam até mesmo em uma “qualidade e sustentabilidade de vida” (2005, p. 6) Portanto, a redefinição de alguns conceitos e direitos importa na base para a construção de um direito à sustentabilidade a partir do artigo 225 da Constituição Federal brasileira. Parte-se da ideia da defesa dos direitos pelo Estado e das ações do homem como transformador da sociedade e agente direto, responsável pelas consequências geradas por suas ações perante o meio ambiente. É neste sentido então que Medeiros e Petterle esclarecem a importância de “uma ação de inclusão vinculada à tematização de uma ética ambiental que faz retomar dimensões para tratarmos o meio ambiente também como um dever fundamental, correspondendo a uma liberdade acompanhada da devida responsabilidade social do indivíduo.” (2005, p. 6, grifo do autor). A proteção a um meio ambiente equilibrado a partir de ações sustentáveis é o caminho certo para que o homem possa continuar o caminho do progresso. Não será possível continuar esta caminhada desrespeitando os recursos naturais, dos quais o próprio homem necessita para sobreviver. Aqui, a palavra adequada é realmente “sobrevivência”. Quando se fala em qualidade de vida, da qual o artigo 225 da Constituição Federal se refere, esta é um plus às condições de vida existenciais. Mas não se sabe se será possível falar em qualidade de vida se as condições ambientais não forem efetivamente respeitadas, pois sem um meio ambiente equilibrado e adequado para a vida humana, futuramente não se sabe se será possível a preservação da existência humana, quem dirá sustentar que haverá uma vida digna com a sadia qualidade de vida que se está ostentando. Por isso ressalta-se a importância da consciência humana a respeito do quanto suas ações influenciam para este processo de desenvolvimento, sustentável, que preserve a vida com qualidade e dignidade.

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Considerações Finais O Estado Brasileiro hoje é um dos mais avançados no que tange à proteção e respeito aos direitos de seus cidadãos. Ao longo dos tempos, no Brasil, houve avanços gradativos jurídicos e políticos nessa proteção. Hoje, este Estado encontra-se em um momento importante no que se refere à previsão constitucional dos direitos fundamentais, todavia estes ainda carecem de uma real efetivação. A busca pela confirmação dos direitos ainda ocorre e a cada dia de maneira mais intensa. Entretanto, para essa ratificação é necessário que esses direitos sejam tratados com a seriedade que merecem. O Estado brasileiro deve proporcionar aos seus cidadãos além da certeza de proteção jurídica de seus direitos, a percepção real de tais direitos. No entanto, não se deve esquecer o dever humano de atuar de maneira sustentável para que seus direitos possam ser e continuar a ser exercidos. O respeito a dignidade humana a partir da qualidade de vida em um meio ambiente saudável depende sim das ações humanas. Como já se disse, são as ações humanas cotidianas que transformam suas condições ambientais e portanto de vida. Assim, para que a democracia, que exige a participação dos homens no processo de evolução possa ocorrer, demonstra-se a importância desta participação humana no processo de desenvolvimento. Em um Estado Democrático de Direito, o Estado, neste enfoque, deve atuar para a promoção de políticas de desenvolvimento econômico sustentável, enquanto o homem, agente da transformação, deve conscientizar-se de que suas ações individuais é que fazem a diferença para a preservação do meio em que vive e o aperfeiçoamento das condições de vida que leva. Cada ser humano deve fazer sua parte na questão sustentabilidade para preservar e até mesmo melhorar o meio ambiente e as suas condições de vida, ocorrendo assim, a realização da dignidade da pessoa humana, possibilitando uma qualidade de vida em um meio ambiente equilibrado e adequado à preservação da vida e manutenção de um Estado Democrático, onde todos participam deste processo de desenvolvimento exercendo seu papel de cidadão, livre e igual, mas consciente de seu papel de responsabilidade participativa. O homem, atendendo à condição humana, segue o caminho da evolução. Evolui enquanto ser que transforma o mundo, buscando melhores condições de vida. Se a Condição Humana é um valor base para o princípio da dignidade e esta se satisfaz quando a qualidade de vida acontece, certo é que a condição humana também é observada quando da proteção da qualidade de vida, porque demonstra na prática o progresso humano. A continuidade deste progresso depende da conscientização e das ações humanas. Um caminho para isso transpassa pela construção de um direito mais amplo, um direito à sustentabilidade, que pode ser interpretado a partir do artigo 225 da Constituição Federal de 1988. O Estado brasileiro vive um momento importante no que tange a proteção de direitos, portanto, é relevante o estudo para perceber que enquanto Estado Democrático de Direito, o Brasil possui uma carta com uma ampla proteção de direitos aos cidadãos. Mas ainda carece de uma real concretização. No que toca ao direito a sustentabilidade de que se fala neste trabalho, existem algumas questões a tratar: O Estado Democrático de Direito é muito mais do que simplesmente respeitar o império da lei, do qual se trata o Estado de Direito. Significa dizer que enquanto Estado Democrático de Direito, exige a participação popular no processo de construção deste Estado e por tal todos os homens devem agir sustentavelmente para que a sustentabilidade que aqui se fala e as boas condições de vida que a humanidade tanto busca possam ocorrer. Ainda, como Estado Democrático de Direito, exige a proteção aos direitos previstos em suas leis. Importante o conhecimento dos direitos outorgados pela Lei Maior para que estes possam ser exigidos. Assim, demonstra-se a relevância do estudo, pois o Estado brasileiro vive um momento avançado de proteção, mas carecedor de efetividades. Este direito à sustentabilidade é algo relativamente novo, mas demonstra sua importância a medida em que será um possibilitador da ratificação de muitos outros direitos fundamentais. E também demonstra que a evolução continua, mas que as bases para que ela permaneça estão asseguradas.

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Diante de tudo, a condição humana serviu como base para o estudo, pois ela demonstra o caminho do homem para sua evolução, buscando melhores condições de vida. Ao ter melhores condições de vida, o princípio da dignidade humana, fundamento da Constituição Federal, se realiza. A proteção a um direito a um meio ambiente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida, que é versado no artigo 225 da mesma Constituição, então, unifica toda a pesquisa, já que o homem depende de boas condições ambientais para sua sobrevivência, para a vivência com qualidade de vida e portanto para continuar seu caminho de evolução. O progresso humano, desta forma, continuará ocorrendo se estas condições ambientais forem respeitadas. O homem é o principal agente e por isso depende dele a perpetuação de uma qualidade de vida, a partir de condições ambientais equilibradas e adequadas, que realizem a dignidade humana possibilitando condições de evolução do qual a condição humana se refere.

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e

princípio

da

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A DIVERSIDADE COMO SINTAXE JURÍDICA DE SUPERAÇÃO DA IGUALDADE FORMAL. Interfaces Críticas entre Direito e Sexualidade. THE DIVERSITY AS JURIDICAL SINTAX OF OVERCOMING OF THE FORMAL EQUALITY. Critical Interfaces between Law and Sexuality.

SANTOS, André Leonardo Copetti Mestrado em Direito (1999) e doutorado (2004) em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2004). Professor e pesquisador do corpo permanente do Programa de PósGraduação em Direito da UNIJUÍ, IJUÍ, RS e do Programa de Pós-Graduação em Direito da URI, Santo Ângelo, RS. Coordenador Executivo do PPGD/URISAN. Editor da Revista Científica Direitos Culturais. Membro do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Avaliador "ad hoc" do Ministério da Educação. Membro fundador da Casa Warat Buenos Aires e da Editora Casa Warat. Livros e artigos publicados nas áreas de direito penal, direito constitucional, teoria do direito e ensino jurídico. Advogado criminalista. E-mails: [email protected]; [email protected] Site: www.andrecopetti.net

RESUMO No presente texto interessa-me, especialmente, referir-me a algumas questões em torno da relação entre as subjetividades sexuais e as possibilidades de intervenção do Direito no mundo da vida, com a finalidade de melhorar as condições existenciais de parcelas da população que, pelo seu modo-de-ser, têm sido vítimas históricas de sistemas de dominação, cuja problematização principal e cuja instrumentalização de controle têm sido a sexualidade distinta de padrões heteronormativos. Neste sentido, tratarei de focalizar minha análise nos possíveis aportes da articulação entre o Direito, a filosofia e os estudos de gênero, em relação com vários dos desafios que se nos apresentam no campo jurídico na atualidade, para enfrentar novas questões e demandas para as quais o conhecimento jurídico tradicional-dogmático não está funcionalizado para o atingimento de desideratos democráticos.

PALAVRAS-CHAVE Diversidade. Identidade. Direito. Cidadania. Libertação.

ABSTRACT In this text interests me especially refer me to some questions around the relationship between sexual subjectivity and the possibilities of intervention of law in the world of life, in order to improve the existential conditions of portions of the population, by their way-of-being, have been victims of historical systems of domination, whose main problematization and control instrumentalization have been the sexuality distinct of heteronormative patterns. In this sense, I will try to focus my analysis on the possible contributions from the articulation between law, philosophy and gender studies, in relation to several of the challenges that present themselves in the legal field today, to face new issues and demands for which the traditional legal-dogmatic knowledge is not functionalized for achieving democratic desiderata.

KEYWORDS Diversity. Identity. Law. Citizenship. Libertation.

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1.

Disposição Investigativa

A sexualidade, palavra que, conforme Foucault, surge tardiamente, no início do século XIX (2012, p. 9), tem sido objeto de problematização e controle desde os gregos antigos. Ao longo da história constituíram-se saberes que a ela se referem, sistemas de poder que regulam sua prática e formas pelas quais os indivíduos podem e devem se reconhecer como sujeitos dessa sexualidade. Uma questão que Foucault colocou como central em seu intento investigativo desenvolvido na História da Sexualidade refere-se às razões pelas quais o comportamento sexual, as atividades e os prazeres a ele relacionados, são objetos de uma preocupação moral: “Por que esse cuidado ético que, pelo menos em certos momentos, em certas sociedades ou em certos grupos, parece mais importante do que a atenção moral que se presta a outros campos, não obstante essenciais na vida individual ou coletiva, como as condutas alimentares ou a realização dos deveres cívicos?” (2012, p. 16). As propostas investigativas de Foucault permanecem atuais, pois inúmeras situações que envolvem a experiência da sexualidade vieram à tona contemporaneamente, reclamando novas problematizações, novas configurações dos sistemas de poder e, em muitos casos, recolocando a relação entre sexualidade e subjetivação, até mesmo em patamares de rechaço da sexualidade como fator de construção identitária. Entretanto, quase trinta anos atrás (1984), ano de sua morte e de publicação do terceiro volume da sua História da Sexualidade, não poderia Foucault imaginar, apesar de sua capacidade visionária de filósofo, a complexidade que novas situações ligadas à sexualidade trariam ao mundo da vida, inclusive para desorbitar um conjunto tradicional de saberes sobre o qual se sustentaram discursos e práticas sobre a sexualidade. Entre essas novas situaçõesdesafios contemporâneos podemos, exemplificativamente, arrolar os seguintes: a) As mudanças produzidas na configuração das feminilidades e das masculinidades, em seus róis, ideia e conformações desejantes, que estabelecem conflitos historicamente específicos; b) As transformações nas relações de poder entre os gêneros na vida cotidiana, que têm criado maiores liberdades, mas também novos modos, seja de sofrimento como de prazeres; c) O surgimento de uma multiplicidade de configurações e situações familiares que põem em questão a relação entre a formação de casal e parentalidade (LEBOVICI, S.; SOLIS-PONTON, 2004): as famílias montadas (os meus, os teus e, às vezes, os nossos), o impacto das novas tecnologias reprodutivas, as decisões de separação no curso de uma gravidez, separações e guardas compartilhadas de filhos muito pequenos (inclusive menores de um ano), a monoparentalidade por opção, a homoparentalidade, a parentalidade compartilhada sem constituir casal, entre outras; d) A visualização do campo das práticas da diversidade sexual, que inclui as práticas de sexualidade por fora do heteronormativo e da bipartição identitária em gêneros; e) O novo panorama que se abre no âmbito da procriação na articulação entre as possibilidades das novas técnicas reprodutivas (fertilização assistida, barriga de aluguel, doação de óvulos e esperma entre outras) e as decisões reprodutivas: alargamento da idade da procriação em mulheres, a opção pela monoparentalidade e que, no campo da diversidade sexual, permitem separar o desejo de filhoa da existência de um casal baseada na diferença sexual (TAJER, 2013). A análise desses processos e relações revelam-nos, sem qualquer esforço, que as perspectivas patriarcais de aproximação/problematização da sexualidade, foram, ao longo da história - excluídos, aproximadamente, os últimos trinta ou quarenta anos -, produzidos e reproduzidos por homens e mulheres. Esta situação estabeleceu uma diferença bem marcada em relação a quaisquer outras possíveis manifestações de sexualidade, consideradas como totalmente marginais em relação a essa binariedade heterossexual normalizada/naturalizada. Ocorre que a partir das últimas décadas do século passado, essa diferença passou a ser fustigada pela emergência política de novas sexualidades que passaram a disputar lugares nesses espaços de significação, de poder e de construção da subjetividade. Estamos diante da emergência de expressões sexuais e de gênero na contemporaneidade que até fins da década de setenta se mantinham na invisibilidade eou restritas a espaços privados. Problemas de dissidência sexual e de gênero que, em sua expressão empírica, não eram capturados cognitivamente em sua complexidade positiva pelo sistema de controle social heteronormativo (formação de saberes e os sistemas de poder), ou por ele capturados

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negativamente de modo totalmente direcionado ao controle repressivo e excludente. A partir desta última perspectiva de abordagem, foram e continuam sendo problematizados no campo teórico a partir de categorias tradicionais construídas binariamente (homem-mulher, heterossexual-homossexual), o que tem conduzido, por consequência, à formulação de razões práticas estruturadas sobre essa mesma base epistemológica, e que em termos de adequação democrática ao nosso estágio civilizatório está ainda distante de padrões humanisticamente aceitáveis. Essa deficiênciainsuficiência cognitiva não permitiu uma cartografia mais apurada e detida de diversos processos de estigmatização, discriminação, violência e exclusão vividos por essas pessoas, tendo permitido a permanência de intensos sofrimentos psicossociais, violações de direitos sexuais e humanos, destituindo-as do direito à cidadania e, portanto, de participação social e política nos processos de tomada de decisão política. Essa mesma deficiênciainsuficiência cognitiva não permitiu a percepção de que há pessoas felizes que se sentem bem em sua condição bio-psico-social e que não têm nada que ver com enfermidades mentais, crimes nem pecado, senão que são produtoras de estéticas existenciais que criam singularidades, que ampliam seus universos de existencialização e que põem em evidência experiências positivas de emancipação psicossocial, política e cultural vividas tanto no plano pessoal como no coletivo. Podemos observar que houve, historicamente, a determinação de modelos de verdade impostos com a colaboração poderosa do biopoder e da biopolítica. Disciplinam-se os corpos, regulam-se os prazeres e promovem-se as modalidades de gestão de si mesmo. É dizer, em outras palavras, os modos de cuidado de si comprometidos com a reificação das práticas e dos discursos que dão manutenção aos padrões morais impostos pelas leis, pelos contratos e pelas instituições disciplinares e de contenção, guardiões da propriedade privada, da família nuclear burguesa, dos preceitos religiosos mais ortodoxos. Não podemos evitar reconhecer a existência de um sistema disciplinar e regulador a serviço do biopoder e da biopolítica, que funciona como importante ferramenta de produção e manutenção de crença na heterossexualidade como obrigatória (RICH, 1986), caracterizando-se como processos de subjetivação que determinam que uma pessoa, ao nascer com sexo biológico macho, seu gênero será masculino, seu desejo heterossexual e sua prática sexual ativa; da mesma forma, se uma pessoa nasce com sexo biológico fêmea, seu gênero será feminino, e seu desejo heterossexual e sua prática sexual, passivos. Qualquer expressão sexual eou de gênero que escape destas determinações não será reconhecida por esse sistema, ou, em caso de que seja reconhecido, o fará através da classificação, do diagnóstico, da patologização, do crime, do estigma, da exclusão e até da morte. Esse novos processos de subjetivação formulam novas perguntas, novos subcampos de problematização dentro do grande âmbito da sexualidade, já problematizado desde os gregos antigos. Esses novos processos de subjetivação reclamam novos lugares no mundo, dão passagens para “devires” outros que confirmam as armadilhas nas quais se constituem os conceitos universais e os pensamentos binários e sedentários que cristalizam modelos de identidade absolutos. A ideia central que aqui proponho fundamenta-se na hipótese de que a salvaguarda política e jurídica dos interesses de grupos minoritários e socialmente vulnerabilizados em função de seus modos-de-ser diversos aos prescritos pelo sistema heteronormativo, não pode ser eficazmente funcionalizada a partir de categorias ou institutos que embasaram razões práticas próprias à proteção de maiorias, mas, num sentido diverso, reclama uma redefinição funcional do Direito que tome como móvel gerador a consolidação categorial da diversidade, e não uma busca impossível por uma igualdade que tem se mostrado ao longo da história como uma grande ficção. Uma das angústias que me foi deixada pelas leituras de Nietzsche e de Warat diz respeito à igualdade, considerada como um dos elementos funcionalizadores centrais da política e do Direito modernos. Deslocando a análise da igualdade para o universo de problemas relativos aos grupos sociais mencionados anteriormente, intui inicialmente que esta unidade funcional da modernidade não é adequada para a abordagem e tratamento hermenêutico dos direitos, cuja tutela demande o reconhecimento da diferença em sua multiplicidade caleidoscópica, a que podemos nominar como diversidade. Ou seja, no plano instrumental, no estágio civilizatório em que nos encontramos, a adoção de soluções diferenciadas que aparentemente

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impliquem em discriminação, para a tutela de direitos cuja concretização fundamenta-se no reconhecimento da diversidade, não somente deve ser tolerada, mas, mais do que isto, estimulada. E para isto, o deslocamento categorial em direção à diversidade é fundamental.

2.

Sobre a necessidade de uma nova decisão filosófica para a contemporaneidade

A construção deste trabalho parte da adoção de uma metacategoria cartográfica de aproximação que vai nortear toda a condução do raciocínio a ser aqui desenvolvido. Refiro-me especificamente à metacategoria “decisões filosóficas”, a qual delimito como formas de ordenação e de articulação do real numa determinada época. Ou seja, a decisão filosófica é uma forma de perceber o mundo epocalmente e, a partir desta forma de percepção, criar possibilidades de articulações discursivas e formas de intervenção no mundo (razões práticas políticas, jurídicas etc.). Assim, a idéia de decisão filosófica importaria em três questões fundamentais: primeiro, uma forma de ordem do real; segundo, um modo de articulação discursiva, um conjunto de regras estabelecidas, a partir da ordenação do real, para a construção de um discurso sobre o real ordenado, ou seja, uma sintaxe discursiva que pode ser construída sobre os mais diversos enfoques: filosófico, político, jurídico, econômico, sociológico, artístico, literário, com consequentes possibilidades diferenciadas de ação em relação a problemas concretos; terceiro, a estruturação de ações interventivas de reconfiguração ética do mundo. Tomando como base essa categoria central, o presente trabalho tem o seguinte eixo de raciocínio: desde a utilização de algumas formas de ordenação do real e, consequentemente, da adoção de uma sintaxe correspondente epocalmente a esta forma de ordenação, criam-se condições históricas de possibilidade de articulação de discursos sobre o real, sobre o mundo, sobre a experiência, nos mais variados campos ontológicos regionais, bem como novas possibilidades de intervenção no mundo da vida. O que quero destacar é a relevância da diversidade, considerada como uma decisão filosófica, com enormes repercussões no plano da razão prática, especificamente no âmbito das possibilidades de formação de vontades de ação no Direito, como uma área do conhecimento aplicado. Em outras palavras, entendo que as potencialidades das ações interventivas no mundo a partir do Direito têm uma estreita conexão com as formas de ordenação do real (decisões filosóficas) e as respectivas articulações dos discursos filosófico e científico engendradas desde esses standarts de interpretação/construção do mundo. Assim foi com o discurso jurídico da antiguidade e do medievo, notadamente baseados numa forma de ordenação da realidade em que a desigualdade com um viés totalmente negativo era um elemento central; o mesmo fenômeno pôde ser observado em relação à modernidade, onde a ordenação da realidade depositou na ideia de igualdade grande parte de suas possibilidades, situação que se projetou fortemente no Direito e cuja permanência se faz sentir, praticamente absolutizada, até os dias atuais. Também percebo isto com a categoria da diferença, como contraponto à concepção igualitária do mundo, estruturada no século passado, mas que se mostra inadequada aos tempos atuais, em função da sua potencialidade, no plano da sexualidade, de captura identitária e de determinação de subjetividades de modo um tanto quanto autoritário e discriminatório. O quero demonstrar é que tanto a forma de ordenação própria da modernidade – a igualdade -, quanto a que a ela se contrapôs – a diferença -, devem ser fortemente relativizadas, a fim de possibilitar uma refuncionalização do Direito, a partir da metacategoria cartográfica da diversidade, de tal forma que permita soluções politicamente adequadas a situações sociais conflitivas às quais essas sintaxes mostram-se insuficientes. É importante destacar que na história do pensamento não se observa uma infinidade de formas de ordenação da realidade. Há, isto sim, um leque limitado de matrizes de compreensão, de interpretação e de intervenção no mundo. Como consequência, a amplitude de ações possíveis no universo da razão prática jurídica não escapa desse universo restrito de decisões filosóficas. Muito pelo contrário. O Direito, em um sentido amplo, é resultado das diferentes formas de ordenação do real e das diferentes formas de articulação das reflexões e discursos que caracterizam tradições de pensamento. Toda essa articulação que pretendo demonstrar pressupõe um elemento construtivo fundamental que se constitui a partir de um inevitável e necessário diálogo entre filosofia e Direito. Não falo da construção de um discurso meramente filosófico, mas de um discurso jurídico, circunscrito ao campo da Teoria do Direito ou, talvez, no máximo, dentro dos limites de

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uma ontologia regional como a Filosofia do Direito, elaborado por um jurista que possui algumas angústias, em relação a problemas próprios do Direito, que lhe foram proporcionadas pela filosofia. É bastante difícil articular uma análise que busque demonstrar que o Direito é, em boa medida, o resultado de decisões filosóficas e do engendramento, a partir destas decisões, de tradições de pesquisa e pensamento, sem que essa análise seja constituída a partir desta imbricação entre Direito e filosofia. Do Direito, os problemas; da filosofia, as diferentes formas de ordenação do real e as diversas possibilidades de análise e articulação de discursos pelas tradições. É desta fusão molecular e rizomática, entre elementos críticos da filosofia e elementos problemáticos que fazem parte do universo de preocupações do Direito, que parte a presente análise para tentar demonstrar que a diversidade, entendida como uma forma de ordenação do mundo, apresenta-se como uma decisão filosófica profundamente adequada ao nosso tempo, para a compreensão, interpretação e redirecionamento vital dos fenômenos que compõem uma nova gama de problemas expostos contemporaneamente, em particular aqueles cuja materialidade revela questões de reconhecimento, de identidade, de hipossuficiência e de exclusão, ou, sintética e genericamente, situações de vulnerabilidade social a partir de um modo-de-ser não conformado com um sistema heteronormativo de dominação e controle social. Há nesta empreitada teórica uma tentativa de criar um cenário de discussão no campo do Direito sobre a inadequação à complexidade do mundo contemporâneo de conceitos simplistas e reducionistas como a igualdade contratualizada ou a diferença, uma vez que suas aplicações para algumas situações concretas que se caracterizam ontologicamente pela diversidade constituem-se em dogmatismos injustificados. Em outras palavras, deslocando o problema para o campo da justiça, qualquer elaboração teórica que pretenda responder a problemas tão complexos como os que são próprios da pós-modernidade, mediante a aplicação do mesmo princípio específico – ou do mesmo conjunto de princípios – é inadequada e insuficiente em termos de aplicação prática.

3. A sintaxe da igualdade como instrumentalização de uma forma de ordenação do real baseada na ordem e na certeza A hegemonia da sintaxe da igualdade na modernidade fundamentou-se, em significativa medida, sobre as exigências de segurança jurídica sobre as quais se sustentou o Direito liberal-iluminista. Esta relação entre igualdade e segurança jurídica situou-se num duplo nível. Por um lado, a certeza e a eficácia jurídicas cobraram vida em um contexto de reciprocidade entre cidadãos e órgãos do sistema jurídico. Por outro, muitas exigências da segurança jurídica foram e continuam sendo, ao mesmo tempo, princípios de igualdade formal. A generalidade das normas, a proibição de discriminações arbitrárias, a força vinculante do precedente, são algumas destas exigências que se ligam diretamente com a igualdade, entendida como igualdade de trato. Ou talvez seja mais correto afirmar que alguns princípios jurídicos tradicionalmente relacionados com a igualdade de trato são, melhor dizendo, concretizações ou exigências da segurança jurídica. Neste sentido são as palavras de Abellán, para quem a generalidade e a aplicação uniforme das normas jurídicas constituem, mais que expressões do valor da igualdade, exigências da segurança jurídica (GASCÓN, 1993, p. 59). A certeza e a confiança dos cidadãos no Direito, próprias da cultura política e jurídica liberal, não se encaixam facilmente com um marco jurídico que se encontre na circunstância histórica de tutelar a diversidade, que se manifesta cada vez mais num mundo altamente complexificado. Daí que a segurança jurídica, profundamente simplificadora, foi pensada para atuar como um imperativo racionalista dirigido ao próprio Direito, com vistas a que este se articulasse e se funcionalizasse com regularidade, sem distinções que pudessem ser imprevisíveis e arbitrárias. Assim, só um Direito muito geral e universal poderia lograr a convergência de comportamentos da qual brota a ordem, a previsibilidade da atuação de outras pessoas, a confiança em que o Direito é uma magnitude mais ou menos firme que não pode ser mudada constantemente. Coincidentemente com o princípio da igualdade, que atua cancelando as diversidades de fato que se consideram irrelevantes, de acordo com um conjunto de razões de segunda ordem (LAPORTA, 1987, p. 13-15), a lógica que anima ao princípio da segurança jurídica é a simplificação do Direito, mediante regulações gerais e homogeneizantes em grande medida,

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critérios unívocos de interpretação e atos mecânicos, e, portanto, também gerais, na aplicação e na exigência coativa do cumprimento das normas. A complexidade do mundo atual tem exposto situações numa zona de tratamento sensível ao Direito que impõem uma relativização das ideias de lei geral e abstrata, ligada ao modelo liberal de segurança jurídica e, por consequência, também a de igualdade, como pilares centrais dos sistemas jurídicos. Contemporaneamente, com a necessidade de reconhecimento e legitimação da tutela de uma imensa gama de interesses de grupos sociais restritos, a norma jurídica não pode mais assumir um caráter de generalidade absoluta, como pretende um Direito fundado em uma racionalidade formal-liberal. O que se impõe considerar é que situações particulares reclamam cada vez mais espaços de tutela jurídica, passando o objetivo dos sistemas normativos a ser não mais somente a prescrição de comportamentos homogeneizadoshomogeneizadores, mas, num sentido diverso, buscar garantir espaços públicos que permitam a ocorrência de comportamentos e interesses heterogêneos, diversificados. Com a complexificação do mundo e a amplificação das manifestações de diversidade, em função dos processos tecnológicos que permitiram tal aparecimento, e, por consequência, uma suavização das diferenças, impôs-se uma modulação na versão liberal do tensionamento entre os binômios segurança jurídica/igualdade formal e segurança social/diferença material. Discordo frontalmente da tese liberal consistente no argumento de que um Estado que não esteja baseado nos princípios da segurança jurídica e da igualdade, não pode ser reduzido aos termos de um modelo de Estado de Direito (VERDÚ, 1975, 117). Uma crise da segurança jurídica, em função de uma mitigação da ideia de igualdade, é o resultado lógico e inevitável das tensões existentes entre a racionalidade formal do Direito liberal e a material do Estado social. Esta crise, contemporaneamente, tornou-se um pouco mais complexa, quando a ela se agregaram as demandas de minorias e de vulneráveis sociais, cujas soluções políticas e jurídicas que têm sido construídas são funcionalizadas, ou, no mínimo, reclamam uma funcionalização com uma lógica que se afasta das engenhosidades políticas e jurídicas homogeneizadoras liberais. Temos como exemplo claro disto as ações afirmativas, que têm recebido violentas críticas em função de encerrarem, supostamente, um alto potencial discriminatório de sinal trocado. As ações afirmativas se operacionalizam dentro de uma perspectiva diacrônica, diferenciadora, com base na diversificação, na medida em que tomam em conta um lapso histórico representativo da ocorrência de desigualdades negativas. Assim, plenamente justificáveis são as quebras impostas ao princípio da igualdade, na medida em que não há um esquecimento da faticidade na qual estão mergulhados historicamente determinados grupos de pessoas, cuja situação existencial atual é extremamente desfavorável, mas cuja origem não reside nos dias atuais. Em sentido contrário, a igualdade formal liberal, deslocada de seu tempo genético-histórico, tem se operacionalizado numa perspectiva sincrônica, ou seja, induz, sem memória, a podermos dizer: “somos iguais hoje e é isto que interessa”. O passado não tem a menor importância, e se alguém hoje é rico, porque seus antepassados exploraram negros escravos, ou porque descende de uma família que adquiriu riquezas impondo a aborígenes cargas pesadíssimas de trabalho que levaram milhares à morte, essas situações passadas não podem ser consideradas hoje para qualquer espécie de redistribuição de bens sociais. Há, com a igualdade formal, positivada através da igualdade de todos perante a lei, uma espécie de posição original, de posto zero, onde toda faticidade é apagada, e a partir disto devem decorrer todas as possíveis ações políticas e jurídicas do Estado, sob pena de vivermos em uma constante incerteza e desordem. A partir da fundamentalidade da contribuição de autores como Hobbes, Locke e Rousseau houve a sedimentação do conceito de igualdade, tanto no âmbito teórico quanto no prático (jurídico e político). No imaginário moderno ocorreu uma consensual aceitação da igualdade como ideal a ser buscado e implantado em todas as sociedades, com relevantíssimas projeções no plano jurídico. Entretanto, ainda persistem graves problemas de ordem prática, não só em relação à concretização da igualdade naquilo que a reclama como unidade funcional, mas também pelo fato de que os problemas concretos que configuram a atual complexidade do mundo colocam em xeque a própria vigência absoluta da decisão de igualdade. A crise pela qual passa a ideia de igualdade, especialmente em função da sua

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inadequação à complexidade do mundo contemporâneo e, consequentemente, pela redução de sua funcionalidade resolutiva para novos tipos de conflitos que exigem o reconhecimento da diversidade, já havia sido denunciada por Nietzsche em sua obra “Crepúsculo dos Ídolos”, ao dizer, aforisticamente, que A “igualdade”, um certo assemelhamento real que acha expressão apenas na teoria de “direitos iguais”, é essencialmente própria do declínio: o fosso entre um ser humano e outro, entre uma classe e outra, a multiplicidade de tipos, a vontade de ser si próprio, de destacar-se, isso que denomino de páthos da distância é característica de toda época forte. A tensão, a distância entre os extremos torna-se hoje cada vez menor – por fim, os próprios extremos se apagam até atingir a semelhança ... Todas as nossas teorias e constituições de Estado, sem excluir absolutamente o “Reich” alemão, são decorrências, conseqüências necessárias do declínio; o inconsciente efeito da décadence assenhoreou-se até dos ideais das ciências particulares (2006, p. 87).

Há, sem dúvida, uma necessidade incontornável de relativização das ideias de igualdade, de certeza e de ordem na contemporaneidade, em função da ocorrência de uma fragmentação do mundo, possibilitada por movimentos sociais que fazem emergir modos-de-ser em suas singularidades, especialmente em razão de novas tecnologias e pela aceleração da comunicação. E isso se reflete inevitavelmente sobre o âmbito dos dogmas petrificados do Direito clássico, tal como o princípio da igualdade. No mínimo, temos que pensar em termos de uma diminuição da intensidade do potencial regulador da igualdade, pois outros valores como a eficácia da atuação administrativa e, fundamentalmente, a justiça social, entraram definitivamente em cena no universo político e jurídico. Estamos diante da inexorabilidade de uma ampliação conceitual que põe manifestamente a necessidade e a desejabilidade de adequarmos as categorias da dogmática jurídica tradicional a todas as transformações ocorridas no mundo da vida, assim como no plano dos direitos fundamentais, no modelo de Estado, no sistema político e econômico, e em função disto, na própria estrutura e funcionalidade do Direito. Não temos mais como desconsiderar, em nome de elementos conceituais reguladores clássicos como a igualdade, as novas demandas sociais cuja tutela não pode ser operacionalizada pelas tradicionais categorias do Direito moderno. Ordem, certeza, igualdade, cedem cada vez mais espaço, para formas de ordenação da realidade baseadas na complexidade e para formas de intervenção e construção empíricas fundadas na ideia de diferença, de pluralismo e de diversidade.

4.

A igualdade, a simplificação do real e a castração do desejo de diversidade

O Direito moderno, em seu intento permanente de controle do futuro, buscou, através de suas programações normativas, reduzir a complexidade do mundo da vida, num movimento completamente inverso à dinâmica do real, especialmente se considerarmos os desenvolvimentos ocorridos desde o século passado. Enquanto outras áreas do conhecimento humano mantiveram uma ampla conexão com a vida cotidiana, a ciência, especialmente a que se estruturou a partir do século XVII, distanciou-se significativamente da multiplicidade do mundo. Enquanto romancistas e poetas percebiam e mostravam os seres humanos como seres singulares, em seus contextos e no seu tempo, de Descartes a Newton os cientistas tentaram conceber um universo que fosse uma máquina determinista perfeita. Enquanto dramaturgos e trovadores mostravam que a vida cotidiana era, de fato, uma vida onde cada um representa vários papeis sociais, segundo o que é na sua casa, no seu trabalho, com amigos e desconhecidos, alguns cientistas, como Descartes e Newton, necessitaram de Deus em seus fundamentos, enquanto outros, como Laplace, entenderam que esta máquina determinista verdadeiramente perfeita se bastava a si própria. Se na arte, na literatura, na música, os seres humanos apresentavam-se em suas múltiplas identidades e personalidades, em suas relações ambivalentes com o outro, em suas constantes transformações no tempo, em sentido oposto,

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no plano científico, os atributos epistemológicos da ciência moderna, independente da fundamentação residir em Deus, na natureza ou na razão, tiveram uma certa permanência: a perfeição, a ordem absoluta, a imortalidade, a eternidade. Em que pese a gravidade da mitologia científica moderna na modelação/configuração do mundo e das práticas que viriam se seguir nos séculos vindouros, é preciso reconhecer, concordando com Morin, que esta mitologia foi fecunda porque a busca da grande lei do universo conduziu às descobertas de leis importantes tais como a gravitação, o eletromagnetismo, as interações nucleares fortes e fracas, além de inúmeras outras que possibilitaram a própria erosão do paradigma científico da certeza, da ordem e da unidade. Entretanto, o processo científico de busca pelas grandes leis universais constituiu-se, como os novos tempos demonstraram, num paradoxo. Ao mesmo tempo em que tinham como causa principal a busca desta harmonia, possibilitaram, inversamente, o descobrimento de que o mundo era pura desordem. Assim foi na física, na química, na biologia, enfim, em todas as novas ciências que se estruturaram na modernidade. E se em tais ramos, onde há uma certa racionalidade objetiva um pouco maior que nos campos ontológicos regionais das ciências humanas, o que dizer destas, onde a existência, o ser-aí ou o modo-de-ser específico dos seres humanos, em toda sua multidimensionalidade, em toda sua incerteza, em todo pluralismo de seus desejos, é o principal elemento a ser compreendido? Quanto a isto, razão também assiste a Morin quando refere que

A visão não complexa das ciências humanas, das ciências sociais, é pensar que há uma realidade econômica, de um lado, uma realidade psicológica, de outro, uma realidade demográfica, de outro, etc. Julga-se que estas categorias criadas pelas universalidades são realidades, mas esquece-se que na economia, por exemplo, existem as necessidades e os desejos humanos. Por detrás do dinheiro, há todo um mundo de paixões, há a psicologia humana. Mesmo nos fenômenos econômicos stricto sensu jogam os fenómenos da multidão, os fenômenos ditos de pânico, como os viram recentemente ainda na Wall Street e algures. A dimensão econômica contém as outras dimensões e não pode compreender nenhuma realidade de maneira unidimensional (2003, p. 100).

No plano econômico, a situação de total desordem repetiu-se, recentemente, por exemplo, com a bolha imobiliária norte-americana, que teve resultados catastróficos na economia mundial e que novamente reedita-se com o colapso financeiro de economias europeias como as da Grécia, da Irlanda, da Espanha, da Itália e de Portugal. Enterrou-se, definitivamente, no plano das ciências sociais, a ideia de ordem, de certeza, de pensamento unidimensional, de verdades absolutas, de leis e princípios universais, gerais e abstratos que tenham a potencialidade de regular as mais diversas situações concretas que cotidianamente se manifestam. Busco, aqui, o auxílio de Bauman, quando diz que

A noção de verdade pertence à retórica do poder. Ela não tem sentido a não ser no contexto da oposição – adquire personalidade própria somente na situação de desacordo, quando diferentes pessoas se apegam a diferentes opiniões, e quando se torna objeto da disputa de quem está certo e uem está errado – e quando, por determinadas razões, é importante para alguns ou todos os adversários demonstrar ou insinuar que é o outro lado que está errado. Sempre que a veracidade de uma crença é asseverada é porque a aceitação dessa crença é contestada, ou se prevê que seja contestável. A disputa acerca da veracidade ou falsidade de determinadas crenças é sempre simultaneamente o debate acerca do direito de alguns de falar com a autoridade que alguns outros deveriam obedecer; a disputa é acera do estabelecimento ou reafirmação das relações de superioridade e inferioridade, de

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dominação e submissão, entre os detentores das crenças (1998, p. 143).

Com o Direito não foi e não tem sido diferente. Houve na razão jurídica uma vontade de simplificação da complexidade do mundo da vida. Privados de Deus, os juristas modernos buscaram, incessante e inconscientemente, um novo lugar de construção institucional de uma sensação existencial de confiança. Mesmo diante de uma manifesta multiplicidade e desordem dos fenômenos, buscaram a simplicidade através de aforismos que adquiriram o status de princípios de uma nova ordem. Mesmo diante de um mundo onde todos eram desiguais, construíram várias alternativas onde a concepção central girava em torno da criação de uma posição original, nos termos, por exemplo, propostos por Rawls, onde a partir de um determinado momento, pela simples positivação de princípios como o da igualdade de oportunidades ou de trato, a complexidade do mundo estaria condenada ao desaparecimento, pela expulsão definitiva da desordem. Contemporaneamente, alguns mitos jurídicos da modernidade, dentre eles o princípio/valor da igualdade, começaram a apresentar um processo de corrosão que já existia desde o seu primeiro dia de vida. Entendida não como fundamento, mas como um princípio regulador, a igualdade perdeu de vista boa parte do tecido social constituído pelos fenômenos nos quais nos encontramos e que constituem a totalidade que é o nosso mundo. O que se nota é que o Direito da modernidade, especialmente no que toca à capacidade regulativa da ideia de igualdade, está distanciado de um real monstruoso, que cada vez mais escapa a esse conceito regulador. A simples positivação do princípio da igualdade significou uma tentativa de redução da complexidade do real, cujos efeitos em termos de tutela jurídica se fazem sentir ainda nos dias atuais, como em nenhuma outra época. A simplificação jurídica pela ideia de igualdade impede que o Direito penetre as camadas mais profundas da realidade e traduza essa complexidade para o seu universo instrumental destinado à solução de conflitos multifacetados, como os que surgem diariamente, especialmente no campo da sexualidade. Um dos grandes méritos da globalização tecnológica foi expor essa complexidade do mundo que até então estava encoberta. Essa nova formação tecnoinfossocietária, utilizando a expressão de Dreiffus, caracterizada por uma profunda e abrangente reestruturação produtiva e reorganização societária, ancoradas na entronização da microeletrônica e eletrônica digital; da eletrônica de concepção, produção e consumo; da informática; das telecomunicações; da automação; e da robótica, tanto no processo de produção e no próprio produto, quanto nas novas formas de existência social, exerceu funções primordiais na produção de conhecimento, na economia e na configuração vivencial e existencial (1999, p. 25-28). Houve, a partir destas revoluções tecnológicas, um maior aparecimento da diversidade que estava velada pela ficção da igualdade. Com isso, a igualdade tornou-se, lentamente, em relação ao mundo da vida, uma imensa ficção, pois a diversidade, em suas mais diversas manifestações, tomou um espaço até então inimaginável para os âmbitos teórico e prático do Direito. A própria ideia de contrato social, construção política a partir da qual se estruturou a ideia de igualdade, é uma imensa ficção que teve a força de encobrir, por aproximadamente dois séculos, enormes diferenças que hoje estão expostas em toda sua crueza. Diante da irrefreável e potencializada manifestação da diversidade, a igualdade tornou-se uma coação, um aprisionamento do mundo dentro de princípios reguladores que, no mínimo, precisam de fortes modulações conformativas. Utilizando aqui um pouco de Warat, a igualdade é, sobretudo, castração, e como tal, a poda de desejos de diversidade de um querer-vir-a-ser complexo. É o desejo posto, ideologicamente, fora da história. À primeira vista, diz o pensador portenho, a castração revela-se, passivamente, como uma falta, uma insuficiência, um vazio. É essa representação camuflada da castração, para ele, que nos faz submergir nos suntuosos anacronismos das verdades completas, tal como a igualdade. Assim, somos tranquilizados, pois somos levados a crer que, somente quando opera uma verdade incompleta, incapaz de fazer-se nomear plenamente, é que há castração. As verdades completas estariam, desse modo, isentas de castração. Essa é uma crença que nos conviria queimar, adverte-nos (WARAT, 2000, p. 14).

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Enquanto princípio regulador, a igualdade é uma castração da linguagem pelo pavor ao distinto, a tudo que não é conjuntamente verossímil e consagrado culturalmente. E como consumidores de significados castrados como a igualdade, vamos distanciando-nos de nossos desejos, sentindo medo de escutar palavras que nomeiem referentes socialmente intoleráveis. É neste sentido que Warat afirma, e aqui estendo à igualdade, que a castração, mais que uma falta, é a afirmação feroz de uma versão cultural de nós mesmos e de nossas circunstâncias. É a cultura do imobilismo, do sedentarismo. Assumindo o arbitrário das generalizações, diria Warat que o que está em jogo em toda a teia castradora é a totalitária imposição de uma unidade, desejada por um anônimo fantasma externo (2000, p. 15). A ideia liberal-iluminista da igualdade, nestes termos, expressa bem a essência excessiva de uma castração simbólica. O discurso político-jurídico moderno foi estruturado sobre uma saturação de estereótipos do igualitarismo, versões singulares, simplificadas e lineares que foram impostas como uma forma ocidental legítima de compreensão dos sentidos, num movimento de total negação do plural das significações possíveis do real. Às avessas, a negação da igualdade significa a liberação da castração simbólica, cuja consequência é a proliferação do plural das significações, pois a pluralidade, a diferença são os únicos componentes do real; a igualdade é ficção de qualidade bastante discutível se aplicada absolutamente em nosso tempo. Para os teóricos da ordem, da certeza, da simplificação reducionista, para os castrados, enfim, a aceitação da pluralidade e da diversidade significa o terror e, consequentemente, a impossibilidade da autonomia. A ideia de igualdade representa uma forma de ordenação do real recheada de componentes totalitários e castradores que, como forma de intervenção empírica, impede a manifestação da diversidade dos múltiplos desejos de viver. A igualdade é, em parte, o que Warat chamaria de um planejamento totalitário das sociedades, pela neutralização da diversidade, como decorrência de uma simplificação antropológica. Um sentido totalitário de uma formação social que precisa ser assegurado pela multiplicação de olhares que prometem segurança, através de engenhosidades como a igualdade (acrescento), produzindo sentimentos de culpa. Olhares que se dizem protetores pela vigilância e pelo controle das pulsões (WARAT, 1997, p. 222). A igualdade é um dos produtos que a ciência jurídica moderna consagrou para iludir-nos com firmezas, com certezas míticas que fundam a instituição imaginária da sociedade. A igualdade deve ser entendida como um princípio de existência, como um princípio do pensamento, como um princípio de valor e de ação que nos foi imposto para apresentar o mundo com a ocultação do caos, da desordem, da incerteza, da diferença, da diversidade e do pluralismo que lhe são próprios. A diversidade, em sentido contrário, significa uma potencialidade emancipatória de recolocação dos desejos no mundo, pela abolição da mentalidade moderna castradora. Reposicionar e refuncionalizar o Direito, pela consideração primordial da diversidade e do pluralismo, só pode ocorrer pelo ressurgimento de um processo de significação do mundo que passe ao lado de sistemas de determinações instrumentais e funcionais que sejam constritores da diversidade.

5.

Da Sintaxe da Igualdade à Sintaxe da Diferença

O processo de negação da igualdade deu-se, paradoxalmente, de forma mais efetiva, a partir da década de sessenta do século passado, com a agudização das lutas políticas de diferentes grupos que compunham as sociedades multifacetadas de países do norte. Aparentemente parecia estar havendo movimentos sociais pela igualdade, quando na verdade o que estava ocorrendo era a busca de uma identidade por grupos que se diferenciavam de uma maioria que os oprimia em nome de uma suposta igualdade, que sequer chegava a ser formal. Novos elementos histórico-mundiais, histórico-textuais, histórico desejantes, enfim, novos fenômenos conjunturais passaram a criar novas condições de multiplicidade e positividade. Estávamos diante de inéditas ações/afirmações culturais, comportamentais, políticas e filosóficas, voltadas a propor noções mais inclusivas e, simultaneamente, respeitadoras da diferença de concepções alternativas da dignidade humana. Contraditoriamente, numa visão liberal, se poderia pensar que tais movimentos significaram historicamente uma busca pela igualdade, mas o que realmente tais movimentos buscavam era o reconhecimento de suas diferenças, de suas identidades, de suas idiossincrasias; um querer-vir-a-ser, uma vontade de

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potência, utilizando Nietzsche, que não era nem nunca foi de igualdade, mas de afirmação da diferença. O que tais movimentos representaram e ainda representam é a manifestação de forças de modulação do corpo social, político e jurídico. Sobre este cenário histórico acontecido nas últimas décadas do século passado, Boaventura de Sousa Santos, analisando-o sob o viés da separação e hegemonia dos países do Norte e do Sul do planeta, refere que “no período pós-colonial e no quadro dos processos de globalização das últimas décadas do século XX, com o aumento e o aprofundamento das desigualdades tanto no Norte quanto no Sul, com a mobilidade crescente das populações do Sul, especialmente em direção ao Norte, e com a diversificação étnica crescente das populações residentes nos países do Norte, a distinção entre os dois tipos de sociedades tornou-se cada vez mais difícil de manter (2003, p. 28). Dessa situação decorreu, segundo o sociólogo português, a partir da década de 1980, que as abordagens das ciências humanas e sociais convergiram para o campo transdisciplinar dos estudos culturais para pensar a cultura como um fenômeno associado a repertórios de sentido ou de significado partilhados pelos membros de uma sociedade, mas também associado à diferenciação e à hierarquização, no quadro de sociedades nacionais, de contextos locais ou de espaços transnacionais. A cultura, segundo ele, tornou-se, assim, um conceito estratégico central para a definição de identidades e de alteridades no mundo contemporâneo, um recurso para a afirmação da diferença e da exigência do seu reconhecimento e um campo de lutas e de contradições (SANTOS, 2003, p. 28). Antes de destacar o acontecimento das manifestações de diferentes grupos na luta por seus direitos, antes de destacar as teorizações transdisciplinares formuladas pelas ciências humanas e sociais acerca de tais acontecimentos, é preciso enfatizar o que é mais profundo e distinguível dessa nova conjuntura surgida em meados da sexta década do século passado: a grave influência de uma outra decisão filosófica, de uma outra forma de ordenação do real, que não a igualdade, mas o condicionamento determinado pela diferença, como uma decisão filosófica capaz de conduzir a si própria na construção de sua própria sintaxe, capaz de conduzir à sua própria experiência “transcendental” e, como consequência prática, capaz de operar a gênese de uma nova realidade empírica. Esses questionamentos a sistemas mundiais dominadores, percebidos como movimentos, foram e continuam sendo condições de possibilidade de respostas espontâneas a cenários que estavam situados – e muitos ainda estão - longe do equilíbrio. São situações caóticas, em estado de instabilidade e de crise. Neste aspecto, podem ser considerados como uma construção simbólico-política de grupos portadores de uma nova visão social, de um novo entusiasmo vital, de uma nova vontade de potência e de uma renovada proposta salvadora, diante da dominação que grupos hegemônicos impuseram a minorias, marginalizados, hipossuficientes ou vulneráveis sociais. Esses estados espontâneos tiveram e ainda têm a potencialidade de engendrar decisões refundadoras da sociedade, capazes de redirecionar a história. São rearticulações simbólicopolíticas que se distanciam de uma forma de percepção e ordenação do real baseada na igualdade simplificadora. Em sentido diverso, fundamentam-se numa compreensão do mundo alicerçada na consolidação das diferenças. E nisto não há, nem pode haver, uma pretensão de estabelecimento de uma ordem baseada na igualdade. Há, isto sim, a busca pelo reconhecimento de uma equivalência valorativa da diferença e da pluralidade. Nesses movimentos históricos que têm se estruturado de baixo para cima, o consenso emerge espontaneamente de uma organização mínima, fluída, onde prevalecem mais pontos de referência valorativa do que propriamente preceitos e leis a serem seguidos por todos. Esses contramovimentos à homogeneização igualitária apresentam-se como uma alternativa às hegemonias estabelecidas. Há, em sua essência, um apelo fundamental que explica o seu aspecto de liberação, até certo ponto revolucionário. Veja-se, por exemplo, a magnitude e a relevância política do movimento dos indivíduos que não adotam padrões de sexualidade heteronormativa em todo o mundo, que lutam não pela igualdade, mas pelo reconhecimento da sua identidade assentada na diversidade. Entretanto, a ocorrência desses novos movimentos sociais não garantiu o logro da concretização das demandas por eles reivindicadas. Os novos movimentos, que em sua origem visavam à mudança, precisaram alterar sua natureza; necessitaram mudar de natureza para poderem permanecer. Houve uma necessidade de institucionalização, e com ela uma

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inevitável rotinização, burocratização, normatização e, consequentemente, a assunção de lugares de poderes. As Constituições democráticas e sociais de Direito cumpriram, neste aspecto, uma importantíssima função institucionalizadora da diferença e do pluralismo. O que se observa, é que, majoritariamente, as institucionalizações jurídicas das tutelas pretendidas pelos movimentos de reconhecimento da diferença e do pluralismo têm se baseado numa forma de ordenação igualitária, buscando, com isso, deixar numa mesma posição social indivíduos e grupos que são absolutamente diferentes. Neste aspecto, as novidades instrumentais de garantia da diferença têm causados sérios transtornos de estranhamento numa cultura jurídica estandartizada pelo igualitarismo, sendo reiteradamente qualificadas como discriminatórias e atentatórias à igualdade. Veja-se, por exemplo, as ações afirmativas de reservas de cotas para negros, índios e egressos de escolas públicas, ou, então, os casamentos e novas possibilidades de constituições familiares por parte de homossexuais. O que pretendo deixar claro é que em função da necessidade de uma institucionalização, de uma rotinização, de uma normatização e de uma assunção de lugares de poder institucionalizados, pelos movimentos liberatórios de minorias e vulneráveis sociais, para que suas demandas sejam garantidas, não basta que tais institucionalizações sejam efetivadas sobre uma lógica da igualdade, se, em sentido diverso, os movimentos lutam pelo reconhecimento da diferença e do pluralismo. É necessário que tais institucionalizações sejam construídas sobre uma nova compreensão do mundo e, por consequência, permitam e legitimem a formulação de engenhosidades jurídicas que possibilitem a consolidação da diferença. A insistência do argumento reside, sobretudo, na relevância da adoção de uma nova sintaxe nas práticas jurídicas de liberdade, pois os movimentos de liberação na sua dinâmica fluída de geração de processos de construção de identidades e de superação de estados de dominação, já possuem, em sua fundamentalidade, esta ontologia da diferença e do pluralismo. Há, assim, a necessidade de uma complementariedade nesta relação evolutiva entre caos (movimento) e cosmos (institucionalização), entre lutas sociais como antecedente e Direito como consequente, no sentido de que a institucionalização deva substancializar normativamente a forma de ordenação do real sobre a qual se constituiu o movimento. A pergunta que aqui se impõe é a seguinte: tendo sido a sintaxe da diferença uma alternativa à da igualdade, constitui-se ela na forma de ordenação da realidade adequada à complexidade contemporânea e, portanto, como consequência, apta a fundamentar uma razão prática destinada à tutela das diversas demandas que hoje se manifestam?

6. Da sintaxe da diferença à sintaxe da diversidade, ou refazendo nossas decisões sobre como (des)ordenar o mundo Para uma abordagem cartográfica acerca da sexualidade, o mais próxima possível do mundo da vida, e suas possíveis relações com sistemas de regulação normativa, é preciso que admitamos, antes de mais nada, que desde as duas ou três últimas décadas do século passado foram cobrando visibilidade cada vez maior diferentes modalidades amorosas, conjugais, eróticas e parentais que, em seu conjunto, estariam dando conta de profundas transformações nos modos de subjetivação contemporâneos (FERNÁNDEZ, 2013, P. 17). Já nos anos 90, Deleuze, além de inúmeros outros autores, apontava o desembasamento das instituições da primeira modernidade, as reformulações do público e do privado e a crise generalizada das famílias, dos laços sociais, da educação e do trabalho na passagem das sociedades disciplinares às sociedades de controle (DELEUZE , 1992; FERNÁNDEZ, 1999; LAZZARATTO, 2006; ROLNIK, S. e GUATTARI, F, 2006; PERES, 2010). A família nuclear burguesa e o amor romântico fizeram parte da construção dos modos de subjetivação e objetivação, tanto hegemônicos como subordinados, que se manifestaram desde o surgimento do capitalismo. Um modo de subjetivação construído sobre influências altamente repressivas que estruturou uma subjetividade moderna constituindo uma “Idade da Repressão” como diz Foucault, cuja origem, após centenas de anos de arejamento e de expressão livre, coincide com os primórdios do desenvolvimento do capitalismo no século XVII (1984, p. 11). Houve, segundo os termos de Foucault, a formação do dispositivo sócio-histórico da sexualidade.

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Foucault analisa a sexualidade desde uma perspectiva bastante diversa da adotada, por exemplo, por biólogos, botânicos, historiadores da ciência, das ideias ou dos costumes. Foucault fala de um “dispositivo da sexualidade, cujos sentido e função podem ser entendidos sob três diferentes aspectos. Pelo termo dispositivo, Foucault tenta demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. O dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes dispositivos. Em segundo lugar, entre estes elementos heterogêneos, discursivos ou não, existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções, que também podem ser muito diferentes. Por exemplo, um discurso pode aparecer como programa de uma instituição, como conteúdo material de uma lei ou como um elemento que permite justificar e mascarar uma prática (Ex. Proposta de Lei da Cura Gay). Em terceiro lugar, o dispositivo pode ser compreendido como um tipo de formação que em um determinado momento histórico, teve como função principal responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante. Por possuir uma natureza essencialmente estratégica, dinamicamente o dispositivo supõe uma manipulação das relações de força, uma intervenção racional e organizada nessas relações, seja para desenvolvê-las em determinada direção, seja para bloqueá-las, para estabilizá-las, utilizá-las. Assim, o dispositivo está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem, mas que igualmente o condicionam. É isto o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles. O que Foucault delimita como “dispositivo” é algo mais geral do que ele compreende como épistémè, conforme tratado no seu livro “As Palavras e as Coisas”, pois a épistémè é um dispositivo especificamente discursivo, diferente do dispositivo, que é discursivo e não discursivo e seus elementos muito mais heterogêneos. O dispositivo compreende, também, a instituição, em sua perspectiva de coerção, apreensão. Tudo que em uma sociedade funciona como sistema de coerção, sem ser um enunciado, ou seja, todo o social não discursivo é a instituição (1984a, p. 244). A partir desse dispositivo as sociedades ocidentais da modernidade foram conformando uma experiência pela qual os indivíduos iam reconhecendo-se como sujeitos de uma sexualidade, dentro de um sistema de controle social heteronormativo. Ou seja, a sexualidade passou a constituir-se como uma chave identitária, configurando uma forma de ordenamento social pelo qual as práticas sexuais passaram a outorgar identidades. Segundo Fernández,

Esta modalidade de construcción de las sexualidades en clave identitaria se denomina binaria porque fija sólo dos términos (hombremujer, heterossexual-homosexual). Es atributiva, porque atribuye determinadas características y no otras a las personas que portan la identidade. Pero también es jerárquica, porque há posicionado las opciones sexuales no heterosexuales como “la diferencia” (2013, p. 21).

Este modo, próprio da modernidade, pelo menos na sua fase final, de pensar a diferença como o negativo do idêntico, do igual, no mesmo movimento que distingue a diferença institui a desigualdade social e política de tais diferentes. O que parecia, assim, ser uma nova forma de ordenação social que poderia permitir o engendramento de uma suavização das diferenças e a elaboração de razões práticas protetivas do diferente, constitui-se numa armadilha, pois esta lógica binária, atributiva e hierárquica, conformou a priori epistêmicos, políticos, éticos, científicos e estéticos que desigualaram desde diferenças étnicas ou religiosas, de gênero e de classe, até as opções sexuais que não respondem a critérios heteronormativos.

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Para isso foi necessário a produção e a naturalização de um ordenamento hierárquico que estabelecesse a diferença como negativo do idêntico, do igual, e que, irreversivelmente situou e situa “as e os diferentes” como inferiores, perigosos, enfermos, é dizer, como anomalia (FERNÁNDEZ, 2009). Criaram-se configurações diferenciadores cuja funcionalidade emergiu como desigualadora. Uma lógica binária diferenciadora que desigualou homens de mulheres, heterossexuais de homossexuais, branco europeus do resto das etnias. O dispositivo da sexualidade moderna de Foucault, estruturado sobre sexualidade, heterossexualidade, homossexualidade, bissexualidade, ordenou os imaginários sociais e as práticas eróticas, amorosas, conjugais e parentais específicas a partir de um acoplamento de sexo biológico-desejo-gênero-práticas eróticas e amatórias, criando, com isso, uma ordem sexual, bem nos termos racionalistas setecentistas. Uma ordem sexual onde há os idênticos, os iguais, e os diferentes. Uma modulação negativa de uma decisão filosófica – a diferença – que parecia fadada ao sucesso, mas que ficou aquém das projeções filosóficas mais otimistas. Agora bem. O que há de dado no mundo da vida, em termos de sexualidade, que aponta para a inadequação da diferença como forma de ordenamento do real e possibilidade de estruturação de uma razão prática, democraticamente adequada, para instrumentalização de uma tecnologia jurídica capaz de suavizar, de uma vez por todas, as desigualdades? Ou de fazer cessar ou pelo menos reduzir drasticamente as violações e os desconfortos existenciais emergentes de ações sociais engendradas a partir de dispositivos de controle e repressão das sexualidades não convergentes para o sistema heteronormativo? Há, em termos gerais, em primeiro lugar, um desacoplamento de sexo biológico-desejogênero-práticas eróticas e amatórias (FERNÁNDEZ, 2013, p. 22). Meninas adolescentes mostram-se muito mais ativas em suas práticas sexuais, não só na conquista de seus parceiros, mas também no desfrute de homens objeto de seus desejos, tanto quanto, com cada vez mais frequência, na realização de experiências amorosas eou eróticas com outras mulheres, sem que lhes preocupe rótulos de lésbicas, pois alternam, muitas vezes, com experiências com homens. Também encontramos novas experiências no universo masculino jovem. O mundo gay opera inúmeras transformações. Os afeminados de outrora cedem lugar a homossexuais viris, com grande asseio estético pelo próprio corpo, malhado, musculoso, aos quais parece difícil encontrar traços homossexuais de gerações anteriores. Em ambos os casos, tanto para mulheres quanto para homens jovens, resulta-lhes abjeto ter que manter seus modos-de-ser sexuais na clandestinidade, o que sob certo aspecto, está causando um impactante espanto nas gerações mais velhas. Costumam socializar suas condições sexuais bastante cedo, seja na família, seja em outros espaços sociais; recusam-se, muitas vezes, a partilhar espaços políticos de militância ou diversão gays, bem como rechaçam capturas identitárias como a homossexualidade. Sentindo-se cômodos com suas sexualidades rechaçam nomenclaturas, culpas, ideias constitutivas de identidade sexual; rechaçam fazer da sua sexualidade característica de uma totalidade identitária e costumam ver, nessas totalizações, totalitarismo. Há, em suma, em muitas distintas esferas um repulsa às capturas identitárias nas quais, no mesmo movimento em que se distingue a diferença se institui a desigualdade. Resistem constituir diferença ou, melhor dito, repelem fazer da diferença referência identitária. Creio que estamos no trânsito, que não é uma mera troca de palavras, mas que implica a construção de novas categorias, filosóficas, políticas e, por consequência, jurídicas que possam dar conta, tanto no plano especulativo, quanto no da razão prática, dessas transformações próprias deste novo século. O que está sendo interpelado é o disciplinamento dos dois sexos, e da própria categoria “da diferença sexual”. Concordo amplamente com Fernández, quando diz esta psicóloga da Universidade de Buenos Aires que a lógica – identitária, binária, hierárquica -, que estabeleceu o estereótipo moderno da sexualidade está completamente desarticulada, desencaixada, deslocada, desorbitada, com a passagem “da” sexualidade “às” sexualidades, com a passagem da diferença às diversidades (2013, p. 22-23). Nesse sentido, será imprescindível indagar e pensar em que consiste, não só no plano teórico, mas, fundamentalmente, na instrumentalização de razões práticas políticas e jurídicas, o trânsito da diferença às diversidades e as novas categorias em construção que estes trânsitos impõem.

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7.

Fechando algumas ideias. Diversidade e Equivalência

A lógica que abriga a decisão ordenadora da diferença ainda se insere numa binariedade igualdade-diferença - que obedece a um pressuposto de capturar, dentro de uma totalidade extremamente redutora, a complexidade da diversidade, da pluralidade. A decisão ordenadora da diferença, ainda que seja um avanço em relação à ideia totalizante da igualdade, mantém, no plano da sexualidade, uma oposição a um sistema de referência que historicamente se constituiu como falocêntrico e heteronormativo. Por esta perspectiva, quando alguém evoca a diferença dizendo “sou diferente em minha sexualidade”, está fazendo uma afirmação identitária sem perder de vista a referência hegemônica. Assim, entendo que, mesmo estando numa posição oposta à estrutura dominadora falocêntrica e heteronormativa, a ordenação pela diferença ainda não consegue escapar da estrutura elementar de pensamento em que o igual e o idêntico constituem o eixo central. Como possibilidade de reversão dessa visão comprometida e regida por lógicas de imagens e de pensamentos sedentários, por regimes de verdade construídos pela perspectiva binária e universalizadora, surge a proposta de um outro ângulo de construção, de um olhar diverso sobre as expressões sexuais e de gênero que escapam do sistema sexogênerodesejo, das algemas do falocentrismo e da heterossexualidade compulsória: a mudança do “ou” pelo “e”, o deslocamento da diferença para a diversidade. A decisão ordenadora da diversidade, assim, atende a uma dinâmica cartográfica e rizomática que não trata de estabelecer contraposições eou continuidades conceituais referidas a etapas de desenvolvimento, mas de aproximação a processos descontínuos e intempestivos do desejo que produzem variações de intensidade de afetos e indícios que por suas próprias composições em trânsito, não se fixam, não se fecham, não se cristalizam, mantendo-se em um puro fluxo de devir, um caleidoscópio de multiplicidades. Trata-se de uma mudança radical de perspectiva de aproximação em relação ao objeto a ser problematizado, na qual o pensamento e o olhar não devam se orientar para um sistema binário, classificatório, moralista, mas sim, constituírem-se com alinhamentos que teçam outras percepções, outras imagens, outras sensações, outras redes de pensamento que se movam por rizomas e pelas intensidades dos afetos, privilegiando a afirmação de Deleuze de que há afetos no pensamento (2008). Precisamos pensar que novas razões práticas políticas e jurídicas devam tomar em consideração os alinhamentos diversos presentes numa cartografia de desejo, permitindo uma composição com as diversidades sociais, raciais, sexuais, de gênero, geracionais, nacionais, que durante muito tempo foram tratadas como sintomas, como patologias, como crimes, como pecados, como imoralidades, como obscenidades e que, efetivamente, nada têm que ver com nenhuma destas proposições, evidenciando que o ser humano é múltiplo, diverso, descontinuado e intenso. Essas delimitações teóricas ajudarão a pensar razões práticas da diversidade e a traçar como objetivo mais importante desfazer o sexual, o gênero, heteronormatizado e falocêntrico; permitirão desterritorializar os territórios sexualizados e generificados através da descodificação dos códigos que dão inteligibilidade aos estereótipos de classe social, raça, orientação sexual, sexo biológico, identidade de gênero etc., e facilitar a passagem para que outros devires possam expressar novos modos de existencialização, fora dos binarismos e dos universais que até então se orientavam pelos processos de normativização impostos pelo biopoder e pela biopolítica. Assim, ao final, é importante assinalar que penso em uma teoria da relativização da igualdade e da diferença, através da adoção de uma decisão filosófica fundada na diversidade, cujo ponto central seja uma modulação suavizadora das decisões constituídas pela igualdade e pela diferença. A teoria da relatividade é, com certeza, a expressão matemática da diferença, ou, em termos contrários, da impossibilidade concreta da igualdade. Se na física e na matemática é impossível provar a igualdade, no campo das ciências humanas esta impossibilidade é ainda mais grave. Se hoje, biologicamente, já não somos os mesmos de ontem, como pretendermos ser os mesmos, sob os mais variados aspectos, considerando-se nossa completa imersão em fenômenos psíquicos e sociais, cuja complexidade é infinitamente maior que os fenômenos

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físicos, químicos e biológicos? Como pretendermos aprisionar as singularidades dentro de binariedades que pressupõem iguaisidênticos e diferentes? A relatividade neste campo está em admitir a singularidade de cada um e a diversidade das partes se pensarmos em um todo que é a humanidade. A figura do poeta, neste aspecto, é de altíssima relevância compreensiva. Os poetas articulam um movimento de criação, expressão máxima de uma singularidade, que vai da sua experiência pessoal, única, incomparável, rumo a processos de universalização de sentido que se refazem em cada singularidade de seus intérpretes. Ao ler a obra de Neruda tenho a confirmação da sua singularidade, mas que paradoxalmente é universal na medida em que posso nela reconhecer parte de minha singularidade. Mesmo diante de um indício de universalidade, a obra de Neruda não deixa de ser a máxima expressão de uma singularidade e a possibilidade da construção de outras. O que quero colocar é que pensar soluções políticas e jurídicas para uma complexidade como a do mundo contemporâneo, a partir da artificialidade da forma de ordenação igualitária, ou da binariedade igualdade-diferença, constitui-se num obstáculo à aproximação do Direito ao mundo da vida. Grande parte dos direitos que hoje compõem os sistemas positivos de direitos fundamentais reclamam uma funcionalidade jurídica que se distancia enormemente da sintaxe da igualdade, ou até mesmo da binariedade igualdade-diferença, onde a lei, via de regra, assume uma função genérica, abstrata e universal. Nessa visão, a tutela de interesses de descapacitados físicos, de hipossuficientes da cadeia existencial como idosos, crianças e adolescentes, de grupos étnicos desfavorecidos por processos históricos de dominação como afrodescendentes e índios, da multiplicidade de modos-de-ser sexuais, e também das mulheres, historicamente submetidas aos interesses e violências patriarcais, depende muito mais de políticas e regulações baseadas na diversidade do que propriamente de políticas e regulações igualitárias ou diferenciadoras, pois a preservação da diversidade é o elemento ontológico fundamental da construção da identidades destes grupos ou parcelas da população. Fundamentando-se essas novas demandas por tutela na unidade funcional da diversidade, não se faz mais necessário a busca esquizofrênica pela igualdade ou o estabelecimento de diferenças. O que parece mais adequado diante da complexidade diferenciada do mundo contemporâneo é a construção de situações políticas e jurídicas que permitam a articulação de espaços de exercício de equivalências existenciais de vida boa. A equivalência na diversidade supera as ideias de igualdade e diferença, ao mesmo tempo em que as pode conter. A funcionalidade da equivalência pode conter possibilidades de projeção de igualdade e de diferença, pressupondo sempre a consideração da diversidade como elemento garantidor da percepção de singularidades libertadoras e autárquicas. Penso, em termos principiológicos, na positivação de um princípio constitucional da equivalência de diversidades, como ponto de partida para qualquer compreensão e interpretação de situações conflituosas, em cuja aplicação a diversidade deva ser sempre preservada pelo atingimento da igualdade ou da diferença como finalidades de todo o processo. A meu ver, o grande equívoco em termos de positivação da ideia de igualdade, ocorrida a partir dos documentos constitucionais históricos oitocentistas, residiu e reside no fato de a considerar como um princípio, quando, sem qualquer dúvida, a igualdade é um fim a ser constantemente buscado. O princípio, ponto do qual há a partida, o início de algo, é o da diversidade que, pelas razões práticas políticas e jurídicas, deve ser suavizada para a busca de um fim social, a igualdade.

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A CONTRIBUIÇÃO HERMENÊUTICA PARA UMA ANÁLISE CRÍTICA DO CONCEITO DE INTERESSE PÚBLICO Jaci Rene Costa Garcia50 e Mariana da Silva Garcia51

Resumo A dogmática do Direito Administrativo tem tratado o interesse público quase como um correlato do Estado, numa espécie de justificação prévia dos atos do Estado a partir da indeterminação do conceito, acabando por legitimar quaisquer atos dos agentes públicos pelo fato de personificarem o Estado e, por decorrência lógica, seus atos carregarem, aprioristicamente, o interesse público. O problema da pesquisa se constitui em investigar se a hermenêutica permite uma nova compreensão do instituto e qual a postura do intérprete a partir dessa perspectiva. Para desenvolver o trabalho, são utilizadas as teorias de Gadamer e Dworkin, elegendo tais teorias como matrizes a permitir uma proposta de análise hermenêutica à questão. Palavras chaves: Teoria do Direito – Hermenêutica – Direito Administrativo

Abstract The dogma of Administrative Law has handled the public interest almost as a correlate of the State, in a kind of prior justification of the acts of the State, due to the indeterminacy of this concept. Thereby, the acts of the pubic officials are legitimized by the fact of personifying the State and, as a logical consequence, their actions carry, a priori, the public interest. The research problem is to investigate whether the hermeneutics allows a new understanding of the institute and to determine the posture of the interpreter considering this perspective. To develop this paper, the theories of Gadamer and Dworkin are used, being elected as arrays to allow a proposal of hermeneutic analysis to the question. Keywords: Law Theory – Hermeneutic – Administrative Law

1 Introdução A motivação da pesquisa tem na base uma inquietação que decorre empiricamente de atuações dos articulistas em processos que envolvem temas do Direito Administrativo, em especial e em muitas causas, da perplexidade ao defender direitos individuais frente ao Estado e, invariavelmente, ter a convicção de estar defendendo também o interesse público e, paradoxalmente, o Estado produzir tese contrária em nome do interesse público. O desconforto

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Professor do curso de Direito do Centro Universitário Franciscano, Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria, Doutorando em Direito pela UNISINOS, Advogado, [email protected] 51

Graduada em direito pelo Centro Universitário Franciscano, Mestranda em Direito pela Universidade de Ijuí, Advogada, [email protected]

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ora relatado parece algo corriqueiro no âmbito dos Tribunais, tendo sido cômodo – por uma grande maioria - dizer que o interesse público se trata de um conceito jurídico indeterminado e que haveria discricionariedade ampla na construção de sentidos, prestando-se o presente trabalho a rastrear o que a dogmática comumente traz a respeito e qual seria a contribuição da hermenêutica filosófica à compreensão do instituto. O interesse público na dogmática tem se constituído quase como um correlato do Estado, numa espécie de entificação do instituto no Estado, legitimando os atos dos agentes públicos pelo fato de personificarem o Estado e, por decorrência lógica, seus atos estarem imantados desde sempre pelo “interesse público”. Um pouco mais sofisticada, tem-se a teoria que traz uma divisão do interesse público em primário e secundário, demonstrando que o interesse público secundário é problemático, porém salvando o interesse público no conceito de “interesse público primário”. Vale referir que, no que tange aos Autores do Direito Administrativo eleitos para a conformação do conceito no presente trabalho e o seu horizonte de sentido, a escolha foi pautada levando em consideração a repercussão das obras na academia, especialmente na graduação, dispensando-se outros em razão de que os autores referidos já permitiriam a configuração do problema de pesquisa acrescido ao limite inerente a um artigo científico. Delimitando-se a pesquisa, o objeto da investigação é o tratamento hermenêutico do conceito interesse público, deixando-se de abordar as relações do conceito com algum outro princípio ou com os direitos fundamentais ou análises internas do conceito. Nessa linha, o objetivo é verificar se a hermenêutica possibilita uma nova compreensão do instituto e qual a postura do intérprete a partir dessa perspectiva. Para aprofundar o exame, são aproximados Gadamer e Dworkin, elegendo tais teorias como matrizes a permitir a proposta de análise hermenêutica à questão no trato da resposta à pergunta: que é, afinal, interesse público?

2 A questão do interesse público na dogmática Sem pretensão de exaustão, alguns conceitos de autores tradicionalmente referidos serão objeto de análise, com fito de verificar como tem se formado o pensamento nacional sobre a questão. A aproximação da vontade do Estado e do agente público tem sido tratada pela doutrina como uma unidade, a ponto de se afirmar coisas do tipo “o que o agente público quis é o que quis o Estado” (GASPARINI, p. 50), formando no imaginário coletivo uma identidade que pode ajudar na legitimação dos mais variados atos praticados na gestão da coisa pública. Embora se encontre uma centralidade em relação à importância do instituto junto aos administrativistas, ao aproximar o olhar de como o interesse público é tratado, podem ser pinçadas expressões tais como “é o que se refere a toda a sociedade” (GASPARINI, p. 15), procurando, ainda, com exemplos explicitar o conceito. Di Pietro quando trata do “princípio da supremacia do interesse público” (DI PIETRO, p. 63-66), esquiva-se de trazer um conceito e traz considerações mais gerais relacionando o princípio com a finalidade pública e remetendo a

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referência legal52 do art. 2º, II, da Lei 9.784/99, inferindo a partir da Lei que é irrenunciável o interesse público. O que se pretende demonstrar é que todas as tentativas de atribuir sentido ao texto fora de um determinado contexto fático sempre esbarram numa redundância e nada acrescentam, como a que aparece em Hely quando diz, que o Direito Administrativo está assentado na “supremacia do Poder Público sobre os cidadãos, dada a

prevalência dos

interesses coletivos sobre os individuais” (MEIRELLES, p. 49) e, novamente, vale citar Gasparini conceituando interesse público como “o interesse do todo social, da comunidade considerada por inteiro”. (GASPARINI, P. 15) Diante desse quadro, ainda em termos de doutrina nacional, é possível identificar uma tentativa de aproximação do Estado enquanto entidade dos membros da sociedade, nas palavras “Embora seja claro que pode haver um interesse público contraposto a um dado interesse individual, sem embargo, a toda evidência, não pode existir um interesse público que se choque com os interesses de cada um dos membros da sociedade. Esta simples e intuitiva percepção basta para exibir a existência de uma relação íntima, indissolúvel, entre o chamado interesse público e os interesses ditos individuais. É que, na verdade, o interesse público, o interesse do todo, do conjunto social, nada mais é que a dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, dos interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da Sociedade (entificada juridicamente no Estado).” (MELLO, p. 56)

Numa ilustração, a proposta de Mello se assemelha a um engavetamento no trânsito que é altamente problemático e ele salva na figura do Estado, como se fosse possível, a suprassunção dos seres num ser maior apagando as individualidades e, ainda, como se a soma dos interesses particulares tivesse como resultante o interesse público. Em termos de conceituação, constata-se em Mello uma tentativa de sair da abstração conceitual para aterrissar na sociedade, costurando o conceito de interesse público na proposta de harmonização entre os interesses de cada um dos membros da sociedade e do Estado, constatando-se, também, uma entificação assumida expressamente da sociedade pelo Estado. Acaba, ao final, caindo do seu próprio voo ao retornar a um conceito ainda mais abstrato que o de interesse público. Em Marçal Justen Filho já se encontra uma posição que se afasta da dogmática tradicional, obviamente porque se dá conta que o instrumental teórico utilizado pelo Direito Administrativo é herança tardia do século XIX, um aparato modelado nas concepções

52

“Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. [...] II - atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei”.

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napoleônicas estando a exigir, na contemporaneidade, uma adequação das fórmulas “discricionariedade administrativa”, “conveniência e oportunidade” e “interesse público” à dimensão constitucional e democrática do Estado, sob pena de se inviabilizar o próprio controle da atividade administrativa. (JUSTEN FILHO, p. 13-14) Quando trata especificamente do interesse público, o Autor traz algumas questões importantes ao estudo: [i] o interesse público não se confunde com o interesse do Estado ou com o interesse do aparato administrativo ou com o interesse do agente público; [ii] o interesse público existe antes do Estado que é o instrumento de realização daquele; [iii] recoloca o interesse público como resultado e não como pressuposto da decisão. (JUSTEN FILHO, p. 36-46) Com o afastamento das concepções derivadas do positivismo exegético do século XIX, as posições de Justen Filho, na dogmática brasileira, servem de porta de entrada ao aprofundamento da discussão sobre tema tão caro ao Direito Administrativo, deixando antever o Autor que o interesse público [i] não pode ser entificado na figura do Estado, como quer Mello, por exemplo, [ii] que possui uma existência anterior e [iii] que é algo que se apresenta ao final do processo de interpretação, dando azo a pesquisa que visa, ao fim e ao cabo, a reconstrução de sentido do conceito. 3 Uma exceção legal ao interesse público: ou seria a abstração legal de um interesse particular relevante (e que, no fundo, também é público)

A remoção do servidor público é um caso paradigmático e que merece a referência. Com a promulgação da Lei nº 9.527, de 10/12/1997, deu-se nova redação ao art. 36 da Lei 8.112/90, prevendo especificamente três situações de remoção de servidor público, quais sejam: (a) remoção de ofício, no interesse da administração; (b) remoção a pedido, a critério da administração; (c) remoção a pedido, independentemente do interesse da administração. O texto da Lei 8.112/90 traz: “Art. 36. Remoção é o deslocamento do servidor, a pedido ou de ofício, no âmbito do mesmo quadro, com ou sem mudança de sede. Parágrafo único. Para fins do disposto neste artigo, entende-se por modalidades de remoção: (Redação dada pela Lei nº 9.527, de 10.12.97) I - de ofício, no interesse da Administração; (Incluído pela Lei nº 9.527, de 10.12.97) II - a pedido, a critério da Administração; (Incluído pela Lei nº 9.527, de 10.12.97) III - a pedido, para outra localidade, independentemente do interesse da Administração: (Incluído pela Lei nº 9.527, de 10.12.97) a) para acompanhar cônjuge ou companheiro, também servidor público civil ou militar, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que foi deslocado no interesse da Administração; (Incluído pela Lei nº 9.527, de 10.12.97) b) por motivo de saúde do servidor, cônjuge, companheiro ou dependente que viva às suas expensas e conste do seu assentamento funcional, condicionada à comprovação por junta médica oficial; (Incluído pela Lei nº 9.527, de 10.12.97) c) em virtude de processo seletivo promovido, na hipótese em que o número de interessados for superior ao número de vagas, de acordo

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com normas preestabelecidas pelo órgão ou entidade em que aqueles estejam lotados.(Incluído pela Lei nº 9.527, de 10.12.97)” A

remoção

denominada

“a

pedido,

independentemente

do

interesse

da

Administração” ficou reservada para três situações: (a) para acompanhar cônjuge ou companheiro, também servidor público, que foi deslocado no interesse da Administração; (b) por motivo de saúde do servidor, cônjuge, companheiro ou seu dependente, condicionada à comprovação por junta médica oficial; (c) em virtude de processo seletivo. Importante ressaltar que o que atualmente se denomina de “remoção a pedido, independentemente do interesse da Administração”, dá-se na verdade no interesse público, mas sem que a Administração Pública possa manifestar eventual discordância. O objetivo da norma, ao utilizar a terminologia “independentemente do interesse da Administração”, foi simplesmente definir que nesta situação o interesse público já estaria previamente patente e presente, e que não caberia ao Administrador Público realizar qualquer avaliação objetiva ou subjetiva quando ao que considerasse como de interesse ou conveniência da Administração Pública. Tal critério fica patente quando analisadas a primeira e a terceira situações previstas em lei, quais sejam, a remoção para acompanhar cônjuge ou companheiro, também servidor público, que foi deslocado no interesse da Administração e a remoção em virtude de processo seletivo. Em ambas as situações se encontram patente o interesse público, na primeira situação de remoção, tem-se que esta se dará para que o servidor possa acompanhar seu cônjuge ou companheiro (também servidor) que tenha sido deslocado no interesse da Administração, na terceira também se faz patente o interesse público quando se assegura a remoção em virtude de aprovação em processo seletivo interno (promoção ou concurso interno), sendo claro que processo seletivo interno somente ocorre no interesse da Administração. A mesma situação de existência de interesse público (e com maior ênfase) se verifica em relação à segunda situação de remoção, qual seja, por motivo de saúde do servidor, cônjuge, companheiro ou seu dependente, condicionada à comprovação por junta médica oficial, isto porque a Constituição Federal de 1988, em seu art. 196, transcrito abaixo, estabelece o interesse público na garantia de saúde, ao defini-la como um direito de todos e um dever do Estado. Cita-se a Constituição: “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” E nem poderia ser de forma diversa, isto porque uma norma deve sempre ser interpretada dentro do seu contexto, e o contexto da “remoção a pedido, independentemente do interesse da Administração” evidencia claramente que se trata efetivamente de situações

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nas quais o interesse público é evidente, em patamar tal que não é cabível à Administração Pública opor qualquer obstáculo. O próprio fato de a Lei estabelecer que a Administração Pública não possa opor qualquer fator impeditivo para a ocorrência de remoção nestas situações evidencia, por si mesmo, o interesse público que justifica a ocorrência destas remoções. Portanto, muito embora a primeira e superficial leitura seja no sentido de que, por se tratar de remoção “a pedido”, esta se daria por vontade do servidor, uma segunda análise evidencia de forma translúcida o contrário, ou seja, não há efetivamente manifestação de vontade, no sentido de escolha entre alternativas, mas simplesmente necessidade, tal como ocorre na remoção para acompanhar cônjuge ou companheiro, na remoção em virtude de promoção e na remoção por motivo de saúde do servidor ou de cônjuge, companheiro ou pessoa de sua família. Por conseguinte, quando a lei, neste caso, fala em remoção a pedido, ela efetivamente dispõe que esta remoção depende tão somente de o servidor evidenciar a sua necessidade, já previamente regulada pela lei sendo, estando em jogo, à luz da doutrina, interesse público primário versus interesse público secundário expressos em texto normativo. 4 Da transição de um modelo interpretativo conceitual para um modelo hermenêutico: algumas questões teóricas

A metáfora da toupeira em Hegel e Marx produz como sentido a obstinação na construção de um caminho, a toupeira como um trabalhador subterrâneo que possibilita que algo aconteça. Stein (2001) irá dizer que na modernidade, tanto em Hegel quanto em Marx, a toupeira (razão) era um coletivo e que na pós-modernidade cada filósofo é a toupeira (Stein, 2001, p. 12), referindo-se, por certo, que não há mais espaço para uma metafísica produtora de respostas universais e necessárias e que a filosofia, na contemporaneidade, se faz ao filosofar e ao construir o próprio caminho. Numa transposição para o direito, parece lícito inferir que o sentido atribuído pela dogmática ao interesse público se identifica com a crença na possibilidade de se encontrar um consenso semântico, esquecendo-se que a entificação (como postula Mello, por exemplo), típico de um pensamento metafísico53 (filosoficamente falando), afasta-se do construtivismo inerente a produção de sentidos e que é dependente dos contextos (faticidade) e da tradição (historicidade). Agora a pergunta se redefine: como a toupeira atribui sentidos na atualidade e qual o sentido correto a ser atribuído ao “interesse público”? Por certo, responder a tais questões

53

Na perspectiva filosófica, as concepções derivadas de um positivismo, inclusive o exegético como um positivismo primevo, são produtos da metafísica moderna (Descartes, Kant, Fichte); em sentido oposto, a hermenêutica filosófica se contrapõe como uma ontologia possibilitadora de uma construção de sentido verdadeira, desvelando o horizonte do ser no mundo (Husserl, Heiddeger, Gadamer).

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exige uma reflexão orientada por Heiddeger, Gadamer e Dworkin, rompendo com a filosofia da consciência e procurando encontrar uma resposta ontológica, desentificando 54 o conceito que, como demonstrado, a dogmática brasileira tende a unir ao Estado e, dentre situações de iniquidades engendradas, ainda legitima a desigualdade jurídica entre o Estado e o indivíduo (um dos postulados ainda presentes no Direito Administrativo). Num momento inicial da investigação é possível dizer que o interesse público só pode ser compreendido diante do caso. E o que é o caso? Caso é o que cai, não é algo abstrato que pode sustentar o caso, como a representação do mundo das ideias em Platão sustentaria o mundo real. Stein com Wittgenstein irá dizer: “Mundo é tudo que é o caso. (Wittgenstein – Tratactus). Caso é Fall em alemão. Fall é o que cai. Caso vem de declinação. Caso é cair.” (Stein, 2008) Para se chegar ao sentido de “interesse público” este deve cair, deve se tornar fato, dito de outra forma, diante do caso concreto é que o intérprete haverá de atribuir sentido ao interesse público, este que pode constituir num universo não descritível (aprioristicamente) de sentidos, em razão do ilimitado número de casos, o que não significa, em nenhuma hipótese, discricionariedade no ato de compreensão. O que se tem tradicionalmente é uma assujeição ao dado, um sujeito (intérprete) que recolhe o que caiu e que exerce um domínio da realidade, dizendo o que é interesse público e formatando o dado a partir de um conceito/forma previamente construído. Ocorre que a realidade escapa da apreensão pelo conceito e, por estar presa no tempo não admite a atemporalidade do conceito sacralizado, ou seja, a realidade chama o conceito para se reconstruir e produzir sentido na impureza do mundo tal qual se apresenta e se esconde. Não há espaço para a segurança prometida pela metafísica, mas há espaço para produção de respostas corretas e adequadas a partir da relação simétrica entre o sujeito e o “caso” que se expressa na linguagem. A tentativa da hermenêutica filosófica é a de encontrar o ser 55 que antecede o logos, numa redução simplista, é a busca de uma ontologia que antecederia a própria metafísica, sendo o embate mais significativo o existencialismo heiddegeriano versus o racionalismo kantiano. As notas no direito podem ser representadas pelo positivismo e suas concepções entificadoras (exemplificadas na pesquisa com Helly, Gasparini e Di Pietro) e uma concepção ontologizada (exemplificada com Justen Filho), necessitando, a última, de um aprofundamento que se pretende com a pesquisa.

54

Com desintificação, diz-se que se está devolvendo ao ente a sua entidade que é o ser (em Heiddeger, a entidade do ente é o ser). 55

Gadamer ao tratar do ser em Heiddeger irá demonstra a essencialidade do tempo na construção do sentido do ser: “O que significa o ser deverá ser determinado a partir do horizonte do tempo. A estrutura da temporalidade aparece assim como a determinação ontológica da subjetividade. Mas ela era mais que isso. A tese de Heiddeger era: o próprio ser é tempo. Com isso se desfaz todo o subjetivismo da filosofia moderna e até mesmo, como logo se verá, todo horizonte das questões da metafísica que compreende o ser como o presente (Anweswnde)”. (GADAMER, p. 345)

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A questão da viragem ontológico-lingüística irá aparecer em Streck, em esclarecedora nota de rodapé nº 96, onde assinala que o problema da significação das palavras não se resolve sem a consideração dos diversos contextos de uso. (STRECK, 2011, p. 73) Compreender algo exige um reconhecimento dos mais variados signos, dos contextos informadores, de estar no mundo, advertência que no último Wittgenstein – cirurgicamente pode ser sintetizada pelo final do § 198 das Investigações Filosóficas: “[...] das sich Einer nur insofern nach einem Wegweiser richtet, als es einen ständigen Gebrauch, eine Geplogenheit, gibt.” “[...] alguém só se orienta por uma placa de orientação na medida em que houver um uso contínuo, um costume.” A referência se presta para demonstrar como Wittgenstein, na maturidade, relaciona a compreensão com a externalidade, com o mundo, afastando-se do apriorismo de um conhecimento antes do conhecimento56 e recolocando o ser no mundo através da linguagem. Válido inferir que a tradição, umbilicalmente ligada ao tempo e ao ser no mundo, passa a ser condição de possibilidade da compreensão, esta descrita por Gadamer (a partir de Heiddeger) como “[...] a forma originária da realização da pre-sença, que é ser no mundo. Antes de toda a diferenciação da compreensão nas diversas direções do interesse pragmático ou teórico, a compreensão é o modo de ser da pre-sença, na medida em que é poder-ser e ‘possibilidade’” (GADAMER, vol. I, p. 347) E mais. A compreensão exige a linguagem que, por sua vez, possibilita a existência, sendo apropriada a citação de Heiddeger por Streck quando diz: “não falamos sobre aquilo que vemos, mas sim o contrário; vemos o que se fala sobre as coisas” (STRECK, 2011, p. 255), demonstrando a codependência entre ser, linguagem e mundo. Dar-se conta que “estamos” e “somos” no mundo pela linguagem, também abre a questão de que possuímos juízos prévios (preconceitos) que, em tese, poderiam falsificar o mundo. Esclarecedora a posição de Gadamer acerca dos problemas inerentes aos preconceitos, demonstrando que os aspectos negativos aplicados seguem uma herança do iluminismo (Aufklärung), defendendo que os preconceitos não possuem uma carga negativa, apenas indicam ao intérprete o cuidado que se deve ter no processo de compreensão, ou seja, quem quer compreender necessita deixar que o texto ou os mais variados símbolos lhe digam alguma coisa57. (GADAMER, p. 354-378) 56

Habermas faz dura crítica ao transcendentalismo Kantiano em Conferência realizada em Stutgart (1981), apontando que o papel da filosofia ao produzir um conhecimento a priori – conhecimento antes do conhecimento – superou as suas forças (papel de juiz e indicador de lugar das ciências), postulando um papel mais moderado (de intérprete e guardador de lugar das racionalidades). (HABERMAS, 2003, p. 17-35). 57

A citação de Kant deixa claro o aspecto negativo atribuído a que Gadamer referiu: “Preconceitos são juízos provisórios tomados como proposições fundamentais, princípios (Grundsätze). A causa desse engano está no fato de que fundamentos subjetivos são tomados como objetivos (equívoco quanto aos graus do assentimento) por falta de reflexão, porque não

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Nessa perspectiva o trabalho procura sustentar que o método causal explicativo não dá conta da complexidade do conceito de interesse público, uma vez que estaria no plano ôntico (da verdade aparente) e não desvelaria o sentido ontológico do conceito 58. Nesse sentido a teoria do direito na atualidade que merece uma breve análise na conjuntura do trabalho é a tese da resposta correta de Dworkin 59 a qual, nos debates travados com o positivismo e o pragmatismo, teria encontrado uma via que sublinha aspectos ligados à tradição e auxilia no resgate ontológico dos conceitos, saindo da superficialidade da verdade ôntica para uma busca de aprofundamento e imersão no mundo da vida.

5 O Direito como integridade em Dworkin Partindo do pressuposto teórico de que direito e deveres foram criados pela comunidade personificada, Dworkin irá deduzir que a integridade expressa uma concepção coerente de justiça e equidade, dizendo que o direito como integridade é “mais inflexivelmente interpretativo do que o convencionalismo ou o pragmatismo” (DWORKIN, 2007, p. 272), afastando-se desses dois modelos por entender que um encontra a lei (uma espécie de exegetismo – a lei é a lei) e o outro inventa a lei. Com a concepção do romance em cadeia Dworkin nos demonstra a força da tradição, quando imagina um grupo de romancistas que escreve um romance em série e a dificuldade interpretativa quando se sucedem os romancistas na feitura dos capítulos do romance, apontando que “a complexidade dessa tarefa reproduz a complexidade de se decidir um caso difícil de direito como integridade”. (DWORKIN, 2007, p. 276) Aproximando Dworkin do modelo brasileiro, a justificativa deve densificar a aplicação das regras aos casos concretos, ou seja, a integridade exige que o intérprete elabore em cada caso de aplicação de uma lei “alguma justificativa que se ajuste a essa lei e a penetre, e que seja, se possível, coerente com a legislação em vigor (DWORKIN, 2007, p. 405), combinando princípios e políticas no processo de integração do direito. Opondo-se ao pensamento hermenêutico de Dworkin, encontra-se o positivismo e a possibilidade de discricionariedade e, mesmo na versão mais sofisticada, como o positivismo devemos julgar sem comparar um conhecimento com a faculdade do conhecimento da qual deve se originar. A ausência de reflexão permite a faculdade de julgar a partir de preconceitos, originados principalmente da imitação (Nachahmung), do hábito (Gewohnheit) e da inclinação (Neigung).” (Kant, 2003, p. 152-154) 58

O ontológico é o verdadeiro profundo por desocultar, o fenômeno oculto sobre as aparências que o ser pode trazer à pre-sença. Para um aprofundamento, considerações sobre as objetivações ônticas que realizamos dos conceitos e seu exemplo no direito podem ser encontradas em Verdade e Consenso. (STRECK, 2012, 302-326) 59

O trabalho não pretende estabelecer relações de aproximação epistemológica entre Gadamer e Dworkin, isto porque além de não ser objeto do trabalho as vinculações assumidas do primeiro com Heidegger e do segundo com Rawls não recomendam prima facie tais aproximações.

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moderado de Hart, ao reconhecer a “zona de penumbra”, deixa ao arbítrio do intérprete a solução

"[...] em qualquer sistema jurídico, haverá sempre certos casos juridicamente não regulados em que, relativamente a determinado ponto, nenhuma decisão em qualquer dos sentidos é ditada pelo direito e, nessa conformidade, o direito apresenta-se como parcialmente indeterminado ou incompleto ". (2001, p. 335) Nesses casos, entenda-se também na hipótese do trabalho, Hart alerta que ao criar o direito, através da discricionariedade, o juiz deve sempre seguir “certas razões gerais para justificar a sua decisão e deve agir como um legislador consciencioso agiria, decidindo de acordo com as suas próprias crenças e valores” (Hart, 2001, p. 336), portando-se como alguém que se deixa levar por suas pré-compreensões. Trazer Hart no atual momento tem o desiderato de demonstrar que as teorias positivistas não ajudam, ao contrário, no âmbito do direito administrativo apenas serviriam para manter interpretações do tipo GASPARINI- DI PIETRO -MEIRELLES, não permitindo as possibilidades de atribuição de sentido a partir da faticidade. Nesse contexto, como tratar de forma não discricionária um conceito jurídico indeterminado como o de interesse público? Por certo, trazer à baila um caso defendido pelos articulistas pode ser esclarecedor e permitir a aplicação de um modelo interpretativo ontológico60. Um exemplo irá elucidar a questão. Hércules 61 é militar federal e foi aprovado em concurso público, realizou curso de formação de dois anos e já serviu por um período de oito anos na Força Aérea Brasileira. Como os militares federais (praças) adquirem a estabilidade aos dez anos, recentemente, ao requerer o seu último engajamento por dois anos para adquirir a estabilidade teve o seu pedido indeferido e foi excluído do serviço ativo. Vale ressaltar que atendia todos os requisitos para a continuidade no serviço público (conceito, parecer favorável, existência da vaga), inclusive no mesmo ano da sua exclusão havia edital de concurso aberto para vagas da especialidade que possuía, demonstrando-se que não se tratava de cargo em extinção. Ora, entendendo-se que interesse público é idêntico ao interesse do Estado ou o interesse do aparato administrativo ou o interesse do agente público, necessariamente há que

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No presente artigo não se pretende explicitar as diferenças do modelo ontológico de Dworkin e de Gadamer, registrando-se que em trabalho anterior havia demonstrado a proximidade de Dworkin com a Teoria da Justiça de Rawls e a releitura da original position, encontrando Dworkin na base da teoria de Rawls uma teoria profunda de direitos (DWORKIN, 2010, p. 235282). Nesse sentido, existem diferenças em termos de ontologia não examinadas no presente trabalho e que, na espécie, não comprometem a utilização dos Autores na análise do problema. 61

Ao utilizar o nome Hércules rendo homenagens a Dworkin e investigo a possibildade de entregar uma resposta correta em termos de atribuição de sentido ao instituto “interesse público”.

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se concluir que a decisão administrativa é discricionária e não há nenhum remédio jurídico a socorrer Hércules. No presente caso, entende-se de forma diferente. Não há ato administrativo discricionário puro, sempre havendo alguma espécie de vinculação ao Direito e a padrões de moralidade compartilhados. Na espécie, onticamente a resposta pode ser a melhor desde que se entenda que o interesse público foi atendido quando o agente público não defere o pedido de prorrogação do tempo de serviço para alcançar a estabilidade no serviço público. A questão da busca da verdade - na investigação ontológica - é que poderá desvelar o que está encoberto pelo aparente atendimento ao interesse público. Como já postulado, o interesse público não pode ser entificado na figura do Estado, é um ser que possui uma existência anterior e é algo que se apresenta ao final do processo de interpretação, exigindo, no caso de Hércules ter ou não o direito à prorrogação de seu vínculo, um aprofundamento do exame do caso para verificar se: (i) houve uma aprovação em concurso público, (ii) houve um custo para o Estado na formação profissional de Hércules (dois anos na Escola da Aeronáutica), (iii) não se trata de cargo em extinção, (iv) não há problema de conceito moral ou conceito profissional. Sendo afirmativas as respostas às questões formuladas, uma análise mais criteriosa acabaria por desnudar a verdade e atribuir novo sentido ao conceito de interesse público, trazendo á lume uma verdade ontológica que se contrapõe a verdade onticamente produzida. Nessa senda, a hermenêutica filosófica encontra a tese da integridade de Dworkin, esta que postula a busca de uma resposta correta e se opõe, de forma contundente, ao modelo puramente discricionário de herança positivista e que, pelo que se investigou, ainda é majoritária na dogmática do Direito Administrativo.

6 Conclusão O interesse público na dogmática comumente se apresenta como algo inerente ao Estado, numa espécie de roupagem que já se tornou uma segunda pele, dificultando a percepção de que o interesse público é algo destacado do Estado, embora seja essencial o seu “aparecer” nas relações estabelecidas entre Estado, sociedade e administrado. Para os positivistas que não creem num interesse público destacado do Estado, a própria lei se encarrega de demonstrar que a cisão é possível em situações específicas, como nos casos de remoção a pedido, independentemente do interesse da administração, por motivo de saúde do servidor, cônjuge, companheiro ou seu dependente, desde que preenchido os demais requisitos do art. 36 da Lei 8.112/90. Assim, se é possível o destaque pela lei, por óbvio que não há relação de pertencimento entre o interesse público e o Estado, sendo que este deve respeitar o interesse público nas suas relações com a sociedade e os administrados, estando os intérpretes

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autorizados a – hermeneuticamente – identificar o atendimento (ou não) do interesse público nos atos praticados pelos agentes públicos representando o Estado. A atribuição de sentido de um conceito jurídico indeterminado como o de interesse público só pode ser dada no caso, submetida aos contornos da faticidade e da historicidade que permitem a produção de sentido coerente com a concepção de integridade de Dworkin e/ou desvelamento de Gadamer, as quais somente são susceptíveis de acontecer no momento da aplicação do conceito a uma determinada situação de realidade, como na situação hipotética apresentada. Por fim, a pesquisa aponta que a resposta à pergunta sobre o que é interesse público não pode ser dada a priori. Em nenhuma hipótese se estabelece como um conhecimento a ser dedutivamente aplicado a partir de um processo de subsunção; ao contrário, nas relações em que o Estado é parte, o interesse público deve ser buscado e compreendido no mundo e, através da linguagem, abre-se a possibilidade de justificação, sendo passível de apreensão por todos e de validação intersubjetiva.

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STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica (e)m crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011.

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LEON TROTSKY E O DIREITO62 Thiago Ferreira Lion63 Thiago Colombo Bertoncello64 Marco Túlio Tavares65

INTRODUÇÃO

Trotsky foi um grande líder político e teórico voltado aos problemas práticos relativos à revolução socialista e à situação da Rússia. Sua atividade intelectual se encontra profundamente ligada a sua atuação prática, ou seja, refere-se de um modo geral aos problemas concretos do tempo em que vivia. Isto resta claro mesmo com um rápido olhar pelos títulos de suas principais obras, como por exemplo, A Revolução Permanente, A Revolução Traída e A História da Revolução Russa. Se as ideias de Trotsky enquanto líder revolucionário e teórico marxista se encontram umbilicalmente ligadas, esta ligação se dá de modo que em suas obras a exposição teórica serve quase sempre à defesa de seu ponto de vista político. Aqui, no entanto, não temos espaço nem a pretensão de uma análise exaustiva do conjunto de sua vida e obra, o que resultaria, sem dúvida, numa análise polêmica como o foi o próprio revolucionário. Por este motivo, desde já indicamos ao leitor algumas das principais obras dedicadas a biografia de Trotsky, que são a trilogia de Isaac Deutscher (O Profeta Armado, O Profeta Desarmado e O Profeta Banido) e o volume Trotsky escrito por Pierre Broué. Para uma melhor compreensão sobre sua vida e obra, nos remetemos a estes conhecidos trabalhos, que nem por sua relevância deixam de gerar polêmica. O legado de Trotsky é visto com ressalvas por alguns marxistas, principalmente ligados a setores da academia, que julgam existir em sua teoria e atuação prática graves

62

Artigo escrito em 2011 no contexto do grupo de pesquisa “Cidadania e direito pelo olhar da filosofia: tipologia da ação jurídica e política na teoria Marxista”, coordenado pelo Prof. Alysson Barbate Mascaro. 63

Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo e Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. 64

Mestre Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

65

Graduando em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. 104

contradições. Por outro lado, como analisa Álvaro Bianchi66, poucos são os estudos dedicados a uma reconstrução teórica do revolucionário russo, e essa sobrevalorização do homem de ação em detrimento do teórico do marxismo teria como consequência o empobrecimento do legado de Trotsky. Para este autor, a originalidade de Trotsky reside na contribuição ao desenvolvimento de um método de análise das relações sociais, possível por sua concepção aberta do marxismo, se recusando a tratá-lo de forma dogmática, já que para Trotsky, “o marxismo é acima de tudo um método de análise – não de análise de textos e sim das relações sociais”.67 Neste artigo nosso intuito é seguir por este caminho de uma “reconstrução teórica”, buscando compreender na teoria de Trotsky os pontos relevantes para a análise do direito e como eles se articulam com sua compreensão do capitalismo e da transição para uma sociedade emancipada. Isso não significa, no entanto, que devamos nos abster de conhecer minimamente sua história de vida. Sempre que analisamos uma teoria é relevante entender como ela encontra na realidade social seu locus de nascimento, que relações formam a realidade que tornou aquele modo de pensar possível. Por isso, uma breve análise cronológica visando à contextualização da vida e obra de Trotsky se faz necessária. No entanto, como o foco deste trabalho é a construção da filosofia jurídica a partir do pensamento do autor - bem como a análise de suas conseqüências, desde já avisamos que este feito será realizado do modo mais breve possível.

1 - A VIDA DE TROTSKY

A observação de Maquiavel ao dizer que “todos os profetas armados venceram, e todos os desarmados foram destruídos”

68

serviu de base para Isaac Deutscher nomear a

trilogia biográfica que dedicou para contar a vida do revolucionário russo. Isto porque, ao longo da vida de Trotsky, temos fases bem demarcadas e distintas: a primeira sendo a ascensão e conquistas políticas (“profeta armado”); a segunda posteriormente à morte de Lênin, quando o revolucionário buscava combater a campanha difamatória desenvolvida pelo stalinismo (“profeta desarmado”), e; a terceira no exílio (“profeta banido”), quando julgava escancarar os

66

O Marxismo de Leon Trotsky, Álvaro Bianchi. Disponível em: http://www.pstu.org.br/teoria_materia.asp?id=4065&ida=29. Acesso em: 05 de fevereiro de 2013. 67

Leon Trotsky. 1905. Resultados y perspectivas. Paris: Ruedo Ibérico, v. 2, 1971, p. 172. 68

Maquiavel, Nichola. O Príncipe. Capítulo VI. São Paulo: Martin Claret, 2004. P.52 105

pecados da burocracia que, em sua visão, manchava e traia os ideais da revolução da qual ele fora um dos bastiões. Lev Davidovich Bronshtein somente adotou o nome de Leon Trotsky em 1902, após fugir de um campo de prisioneiros na Sibéria. Nasceu em 7 de novembro de 1879, sendo filho de judeus proprietários de terras na Ucrânia. Aos oito anos de idade o jovem foi enviado a Odessa aonde iniciou seus estudos, e com 17 anos mudou-se para Nikolayev. Esta cidade tem especial importância na história de Trotsky, pois marcou o início de suas atividades políticas e revolucionárias. Foi aí também que foi preso e deportado para a Sibéria, por se envolver na organização do Sindicato dos Trabalhadores do Sul da Rússia. Trotsky consegue escapar de sua rotina de trabalhos forçados na Sibéria e vai para Londres, onde se junta a um grupo de exilados russos. Nesta cidade encontra-se com os redatores da revista Iskra, da qual será futuramente redator, graças ao apoio de outro revolucionário chamado Wladimir Lênin. Poucos meses depois de chegar à Inglaterra, em julho de 1903, Trotsky participa do Congresso do Partido Operário Social-Democrata da Rússia. Nesse congresso, por posturas antagônicas quanto à composição e estrutura do partido, há uma cisão que dá origem a duas facções políticas que serão protagonistas da futura revolução russa: os bolcheviques (que deriva do russo, significando “maioria”), liderados por Lênin; e os mencheviques (que deriva do russo, significando “minoria”), liderados por Martov. Trotsky acaba por se aliar a este último grupo. Analisando esta decisão de se aliar a Martov, afirma Deutscher: “Era quase inevitável que Trotsky se aproximasse mais de Zasulich e Martov, em cuja casa morava e que exerciam sobre ele uma influencia constante, do que de Lênin cuja influência era apenas intermitente. Ainda em sua fase de formação, precisava de maior intercâmbio social e discussões para estimular-lhe a inteligência. Essa necessidade, Zasulich e Martov, mas não Lênin, satisfaziam generosamente.”69 Após essa ruptura do Partido Social-Democrata, marcada por dois anos de tentativas dos dois lados de desconstruir a honra e o histórico dos oponentes, Trotsky retorna à Rússia para apoiar um levante popular iniciado em São Petersburgo. Acaba por assumir a liderança do soviete (conselho) da cidade, fato que o leva novamente a prisão após acalorado julgamento em que os membros do soviete partem em defesa dos réus. Na carta de defesa enviada ao tribunal responsável pelo julgamento, podemos ler: “Nós trabalhadores da fábrica de Obukov (...) declaramos que o soviete não consiste em um punhado de conspiradores, mas de

69

DEUTCHER, Isaac. TROTSKY – O Profeta Armado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. P. 74 106

verdadeiros representantes do proletariado de Petersburgo (...) e que se nosso estimado camarada é culpado, então todos nós somos culpados, e confirmamos isto com a nossa assinatura.”70 Mesmo diante do clamor popular Trotsky foi condenado e deportado para a Sibéria, de onde escapou novamente, vivendo em vários países até que, com o Governo Provisório de 1917, anistiam-se todos os exilados. Trotsky e toda sua família voltam então para a Rússia, vivendo agora em Petrogrado. Nesta cidade ele se junta aos bolcheviques por discordar do apoio que os mencheviques deram ao Governo Provisório, e em conjunto com Lênin passa a liderar o soviete local, derrubando o governo provisório e dando início a Revolução de Outubro (que na realidade seria hoje a “Revolução de Novembro”, segundo o nosso atual calendário gregoriano). Com a tomada de poder pelos bolcheviques, Trotsky é indicado por Lênin para a função de Comissário do Povo para Relações Internacionais e tem como missão efetivar o tratado de paz com as potências capitalistas centrais. Após nove semanas de negociação, assina o Tratado de Brest-Litovsk e, em seguida, é nomeado para a função de Comissário do Povo para Guerras. Ter comandado o exército vermelho para a vitória sobre o exército branco (Czarista com apoio das potências imperialistas estrangeiras) alimentou sua força política tornando-o um possível sucessor na liderança do partido. Antes de sua morte, Lênin cria o cargo de Secretário Geral e indica Stalin para esta nova e poderosa função. Este utiliza todo o poder do cargo para minar a base de apoio trotskysta, excluindo aqueles que apoiavam o Comissário do Povo para Guerras ao mesmo tempo em que realizava inúmeras novas indicações dentro do partido, criando uma burocracia dependente de seu poder e que estava ciente de que sua permanência no partido dependia da efetivação do Secretário Geral como líder do partido. A campanha de Stalin foi tão virulenta e sorrateira, que Lev B. Kamenev, assim disse a Trotsky: “Você pensa que Stálin está imaginando como rebater os seus argumentos? Você está enganado. Ele está pensando em como poderá destruí-lo, difamá-lo; como poderá montar uma conspiração militar para depois, quando o terreno estiver preparado, ordenar um atentado terrorista.”71 Assim, com a morte de Lênin, Stalin toma o poder consolidando-se como líder do partido e iniciando uma perseguição implacável a Trotsky e a todos os seus seguidores. Stálin

70

L. Trotsky. Sochinemia, II, livro 2, pags 142-3 apud DEUTCHER, Isaac. TROTSKY – O Profeta Armado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. P. 180. 71

Garza, Hedda. Trotsky. São Paulo: Nova Cultural, 1987. P.73. 107

primeiramente consegue destituí-lo de seu cargo e pouco tempo depois obtêm sua proibição de falar em público. Passados alguns anos, em janeiro de 1929, finalmente consegue bani-lo da União Soviética. Em seu novo exílio Trotsky foi expulso de vários países em que buscou se estabelecer, especialmente por dois motivos: o primeiro deles era a força com que Stalin usava seu aparelho diplomático para exercer pressão política e econômica sobre os países que aceitassem o pedido de asilo feito por Trotsky; o segundo motivo se dava por conta das frequentes tentativas de internacionalizar a revolução do proletariado, levando em consideração sua teoria do desenvolvimento desigual e combinado, que será desenvolvida e explicada no decorrer desse artigo. Estava, por assim se dizer, entre a cruz e a espada: os países imperialistas o expulsavam por receio de suas atividades revolucionárias, enquanto os países simpáticos à URSS o expulsavam por conta da perseguição estalinista. Neste período de exílio, viveu na Turquia (1929 até 1933), na França (1933 a 1935) e na Noruega (1935 a 1937), tendo passado seus últimos três anos de vida no México, onde foi assassinado em 21 de agosto de 1940, por Ramón Mercader,

assassino provavelmente

contratado pela polícia secreta de Stalin. Nestes últimos anos de exílio, dedicou-se a aprofundar suas teorias da revolução permanente e do desenvolvimento desigual e combinado, que já haviam sido concebidas anteriormente. Além disso, também escancarou para o mundo o totalitarismo da burocracia stalinista que reinava na Rússia em obras como A Revolução Traída. Trotsky chegou mesmo a dizer em Estado Operário, Termidor e Bonapartismo, buscando uma nova estrutura política soviética, que: “O arbitrário burocrático deve ceder seu lugar à democracia soviética. O restabelecimento do direito de crítica e de uma liberdade eleitoral

verdadeira

são

condições

necessárias

para

o

desenvolvimento do país. O restabelecimento da liberdade dos partidos soviéticos a começar pelo partido bolchevique, e o renascimento dos sindicatos são implicações disso (…).”72 Trotsky nunca abandonou a prática revolucionária. Mesmo em seu exílio no México, este manteve estreita relação com os socialistas norte-americanos que ajudaram a fundar, em 1938, a IV Internacional. Desta fundação participaram delegados de dez países, inclusive, representando a América Latina, o brasileiro Mário Pedrosa. Respondendo antecipadamente aos que afirmariam que uma nova Internacional somente se daria após fatos históricos relevantes, e então que a fundação da IV era “artificial”, o Programa de Transição aprovado na conferência dizia que: “A IV Internacional já surgiu de

72

FAUSTO, Ruy. Trotski, a democracia e o totalitarismo (a partir do Trotsky de Pierre Broué). Lua Nova, São Paulo, 2004, n.62, pp. 113-130. ISSN 0102-6445. 108

grandes acontecimentos: as maiores derrotas do proletariado na História”

73

. Com isso a IV

Internacional se desenvolve até os dias de hoje, tendo, inclusive no Brasil, entre outros partidos políticos que julgam representar e lutar pelos seus princípios e objetivos, o PSTU e o PCO. Pelo mundo todo são dezenas (quiçá centenas) de organizações que defendem e lutam com base em seu legado. Essas passagens da vida de Trotsky e sua repercussão evidenciam o volume e a importância política e social deste “profeta” que armado, desarmado, ou mesmo banido, foi um homem de ação e transformação. Após esta digressão biográfica, agora é hora de analisar o potencial teórico geral do autor tendo em vista principalmente a extração de conclusões para uma teoria sobre o direito. Como já dito, importa-nos mais a coerência teórica do que as posições práticas, mesmo que elas tenham sido muito relevantes em sua época. Análises conjunturais serão por vezes utilizadas, mas desde que de modo a demonstrar e esclarecer suas concepções teóricas.

2 - A “LEI DO DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E COMBINADO” E A TEORIA DA REVOLUÇÃO PERMANENTE

Em uma época em que o pensamento do movimento comunista capitaneado pela Segunda Internacional estava conformado, julgando que seria impossível uma a revolução que levasse ao socialismo, Trotsky, juntamente com Lênin, abriu caminho para o novo, ao apontar a possibilidade de uma transformação radical da sociedade russa. A grande maioria dos socialistas àquela época imaginava que era necessário um longo período de capitalismo que precedesse a revolução proletária. Assim prescreviam para sociedades atrasadas como a russa, a necessidade de uma revolução burguesa que consolidasse o capitalismo antes de se pensar na tomada do poder pelos trabalhadores. Com efeito, o pensamento dominante entre os marxistas “ortodoxos”, russos ou europeus, era de que a futura revolução russa teria necessariamente um caráter estritamente democrático burguês. Seu resultado seria a abolição do czarismo, o estabelecimento de uma república democrática, a supressão dos vestígios feudais no campo e a distribuição de terras aos camponeses. Nesse passo, Michel Löwy afirma que, se havia alguma disputa entre as frações da Social-Democracia Russa, esta repousava no papel do proletariado na revolução burguesa e suas alianças de classe: privilegiaria a burguesia liberal (mencheviques) ou o campesinato (bolcheviques)?74 Conforme analisa o autor, Trotsky foi o primeiro e por muitos 73

SAGRA, Alicia. Os 70 anos da Quarta internacional. Disponível em: http://www.pstu.org.br/teoria_materia.asp?id=9084&ida=75, acessado em 21 de novembro de 2010. 74

LOWY, Michel. O Profeta da Revolução de Outubro. Outubro, 1999, São Paulo, nº. 3, pp. 53-61. ISSN 1516-6333. 109

anos o único a colocar em questão esse “dogma sacrossanto”. Ele foi, antes de 1917, o único a considerar não somente o papel hegemônico do movimento operário na revolução russa – tese defendida também por Parvus, Rosa Luxemburgo e, em certos textos, Lênin – mas também a possibilidade de ultrapassar e superar a revolução democrática burguesa transformando-a imediatamente em revolução socialista. A ruptura com o pensamento dominante e dogmático da época – que inclusive não levava em consideração as próprias análises de Marx sobre a Rússia 75 – possibilitou a Trotsky desenvolver sua chamada teoria da revolução permanente 76, com conclusões que remontam ao processo revolucionário de 1905, sistematizadas posteriormente em Balanços e Perspectivas (1906). Segundo alguns, Trotsky, em conjunto com Lênin, pode ser reconhecido por resgatar o marxismo revolucionário dos desvios mecanicistas e economicistas da II internacional, tendo se oposto aos mencheviques e à social democracia e suas ideias de composição com a burguesia. Uma das principais contribuições de Trotsky ao pensamento marxista trata-se da sua teoria da revolução permanente, chamada por Knei-Paz de teoria da “revolução do atraso” 77

, sendo considerada por alguns como “a primeira e mais original adaptação da teoria e dos

instrumentos conceituais do marxismo à análise da mudança nas sociedades pré-capitalistas subdesenvolvidas”78. Trotsky formula esta teoria após ter conhecido Alexandrer Helphand “Parvus”, que escreveu o prefácio de um artigo seu sobre a situação da Rússia em 1905, após 75

É importante ressaltar que análises feitas por Marx já no fim de sua vida apontavam para a possibilidade de uma revolução socialista na Rússia. 76

Conforme analisa Michel Löwy: “O termo ‘revolução permanente’, parece ter sido inspirado por a Trotsky por um artigo de Franz Mehring na Neue Zeit de novembro de 1905; mas o sentido que lhe atribuía o socialista alemão era muito menos radical e mais vago do que ele vai receber nos escritos do revolucionário russo. Trotsky foi o único a ousar sugerir, desde 1905, a possibilidade de uma revolução executando ‘tarefas socialistas’ – a expropriação dos grandes capitalistas na Rússia – hipótese rejeitada pelos outros marxistas russos como utópica e aventureira.” in LOWY, Michel. O Profeta da Revolução de Outubro. Outubro, 1999, São Paulo, nº. 3, pp. 54. ISSN 1516-6333. 77

Como explica Knei-Paz: “a expressão revolução do atraso não se encontra na obra de Trotsky (...) a expressão mais conhecida “revolução permanente” (...) também não foi criada por Trotsky, mas por ele aceita; ela pode, contudo, levar a equívocos, se implica a idéia de uma revolução sem fim, estranha ao pensamento de Trotsky, que pensava em uma “revolução ininterrupta””. KNEI-PAZ, Baruch. “Trótski: revolução permanente e revolução do atraso” in HOBSBAWM, Eric J. (org.). História do marxismo V, op. cit., p. 161, nota de rodapé. 78

Ibid., p. 164. 110

o massacre peticionista.79 No prefácio ao artigo de Trotsky, Parvus dizia que a particularidade do desenvolvimento russo, onde a modernização da indústria tinha ocorrido pelo alto, sob ordens do Czar e sem desenvolvimento de uma burguesia poderosa e independente, tinha tornado o proletariado a principal força política daquela sociedade. A burguesia não poderia ser a classe revolucionária, pois ela praticamente inexistia, a única força suficientemente independente que poderia realizar a tarefa de por fim ao Czarismo, trazendo a Rússia para a modernidade, era o proletariado. A conclusão de Parvus era de que a os operários haveriam de fazer a revolução em nome da burguesia. Conforme analisa Michel Löwy80, Trotsky sem dúvida foi influenciado por Parvus, porém, ressalva que este último jamais foi além da idéia de um governo operário cumprindo um programa estritamente democrático (burguês): ele queria mudar a locomotiva da história, mas sem sair dos seus trilhos. A influência de Parvus fez com que Trotsky aprofundasse o estudo da história da sociedade russa e demonstrasse que esta pertencia ao mundo asiático e não europeu, mas, que a proximidade com as potências européias, a forçava a adequar suas forças militares ao de seus vizinhos do oeste, de forma a manter sua soberania. Esta necessidade militar obrigava o desenvolvimento da infra-estrutura industrial. Para tanto o autocracia russa lançava mão de altos impostos que impediam o desenvolvimento de uma burguesia independente, barrando não só o desenvolvimento econômico, mas também o surgimento da burguesia revolucionária ao mesmo tempo em que jogava as massas camponesas na miséria. O progresso industrial imposto pelo Estado acabava, assim, por dividir a Rússia em duas: de um lado, uma enorme massa de camponeses que viviam em condições medievais e, de outro, o novo setor industrial, com tecnologia avançada mesmo para padrões europeus. Este último setor acabava por empregar cada vez mais proletários, que, diferentemente dos camponeses, tomavam consciência de si e de se sua classe, podendo se insurgir contra o Czarismo. Sobre esta condição revolucionária do proletariado na Rússia, escreveu posteriormente Trotsky: “Nossa grande indústria não surgiu, naturalmente, do artesanato e dos ofícios. A história econômica das nossas cidades ignora o período 79

Massacre ocorrido em 22 de janeiro de 1905, conhecido como “domingo sangrento”. A manifestação pacífica que pretendia entregar uma petição diretamente ao Czar, organizada pelo padre Jorge Gapone, foi recebida à bala pela guarda do Tzar Nicolau II em frente ao Palácio de Inverno, causando centenas de mortes. 80

Leon Trotsky, profeta da Revolução de Outubro – Sobre as diferenças entre Parvus e Trotsky, ver Alain Brossat, Aux origines de la revolution permenente: la pensée politique du jeune Trotsky. Paris: Maspero, 1974. In Revista Outubro, p. 54. 111

das corporações. A indústria capitalista surgiu, entre nós, sob influência direta e imediata do capital europeu. Apoderou-se, em suma, de terras primitivas, sem encontrar resistência da parte dos artesãos. O capital estrangeiro afluiu, entre nós, pelo canal dos empréstimos de Estado e por via da iniciativa privada, reunindo ao seu redor o exército do proletariado industrial sem deixar tempo ao artesanato para nascer e se desenvolver. Como resultado desse estado de coisas, no momento da revolução burguesa, um proletariado industrial de tipo social muito elevado revelou-se como a principal força nas cidades. É um fato indiscutível que ele deveria servir de base às nossas conclusões táticas revolucionárias.”81 Os estudos de Trotsky sobre o desenvolvimento da Rússia resultaram na chamada “lei do desenvolvimento desigual e combinado”. Para uma melhor compreensão do que venha a ser essa “lei”, verifiquemos o que o próprio autor desenvolve sobre o tema. Trotsky parte da principal característica do desenvolvimento russo, que na História da Revolução Russa, afirma ser: “o traço fundamental e mais constante da história da Rússia é o caráter lento de seu desenvolvimento, com o atraso econômico, o primitivismo das formas sociais e o baixo nível de cultura constituindo sua consequência obrigatória”.82 Adiante, o autor analisa as contradições desse desenvolvimento, pois, no capitalismo, os países atrasados assimilam as conquistas materiais e ideológicas das nações avançadas, ou melhor, são obrigados a assimilá-las antes do “prazo previsto”, saltando, deste modo, por toda uma série de etapas intermediárias. Porém, prossegue o autor, este salto não é, de forma alguma, absoluto, estando sempre condicionado, em última instância, pela capacidade de assimilação econômica e cultural do país. Essa contradição no desenvolvimento histórico das sociedades capitalistas de desenvolvimento tardio é explicitada por Trotsky ao se referir à introdução de armamento e empréstimos europeus na Rússia, “incontestáveis produtos de uma cultura mais elevada” que, por sua vez, determinaram o fortalecimento do Czarismo, sendo um consequente obstáculo ao desenvolvimento do país. Ocorre, prossegue ele, que o desenvolvimento de uma nação atrasada induz, forçosamente, que se confundam nela, de uma maneira característica, as distintas fases do processo histórico83, sendo isto, a expressão da lei do desenvolvimento combinado. Nas palavras de Trotsky: “O desenvolvimento desigual, que é a lei mais geral do processo histórico, não se revela, em nenhuma parte, com maior evidência e 81

TROTSKY, Leon. A Revolução Permanente. São Paulo, Expressão Popular, 2007, p.137-138. 82

História da Revolução Russa, p.19

83

TROTSKY, Leon. História da Revolução Russa (Tomo I). São Paulo: Sundermann, 2007, p. 20-21. 112

complexidade do que no destino dos países atrasados. Açoitados pelo chicote das necessidades materiais, os países atrasados se vêem obrigados a avançar aos saltos. Desta lei universal do desenvolvimento desigual da cultura decorre outra que, por falta de nome mais adequado, chamaremos de lei do desenvolvimento combinado, aludindo à aproximação das distintas etapas do caminho e à confusão de distintas fases, ao amálgama de formas arcaicas e modernas. Sem recorrer a esta lei, enfocada, naturalmente, na integridade de seu conteúdo material, seria impossível compreender a história da Rússia, nem a de nenhum outro país de avanço cultural atrasado, sejam em segundo, terceiro ou décimo grau.” 84 De fato, enquanto que “até o momento do estalar da revolução a agricultura se mantinha, com pequenas exceções, quase ao mesmo nível do século XVII, a indústria, no que se refere à sua técnica e estrutura capitalista, estava no nível dos países avançados”

85

, sendo

que em alguns casos o ultrapassava. É, pois, essa contradição, não somente a que possibilitaria uma revolução na Rússia, mas, precisamente, que essa revolução fosse encabeçada pelo proletariado. O resultante deste desenvolvimento “desigual e combinado” tende a colocar em xeque o sistema político-econômico em que a burguesia conservadora dependia da autocracia, justamente pelo surgimento do proletariado, que pressionava a mudança do sistema. A lei do desenvolvimento desigual e combinado constitui a base da famosa teoria da revolução permanente e foi utilizada, posteriormente, inclusive para o desenvolvimento das análises da condição de atraso dos países latino-americanos pela CEPAL. Diante dessa concepção dialética do desenvolvimento russo, em que se combinavam elementos atrasados com o mais avançado da técnica capitalista, alguns autores como Knei-Paz extraem certo determinismo, pois entendem que para Trotsky só havia uma solução para o caso russo: a revolução permanente: Nas palavras de Knei-Paz: “Não é exagerado dizer que Trotsky concebia a teoria da revolução permanente – isto é, a revolução do atraso – como a única solução possível desse dilema, ou seja, o único modo de realizar a modernização e, ao mesmo tempo a única possível consequência do modelo que estava emergindo das específicas características econômicas, sociais e políticas da Rússia.”86

84

Ibid, p. 21. Ibid, p. 24-25. 86 KNEI-PAZ, Baruch. “Trótski: revolução permanente e revolução do atraso” in HOBSBAWM, Eric J. (org.). História do marxismo V, op. cit., p. 181. 85

113

Por outro lado, Michel Löwy coloca a questão sob outra perspectiva, que apesar de apontar a revolução permanente como uma possibilidade, afirma que com a influência de fatores subjetivos e objetivos pode ser concretizada, nas palavras do mesmo: “A concepção de história de Trotsky não é fatalista, mas aberta: a tarefa do marxismo, escreveu, é a de “descobrir, ao analisar o mecanismo interno à revolução, as possibilidades que ela apresenta em seu desenvolvimento”. A revolução permanente não é um resultado determinado por antecipação, mas uma possibilidade objetiva, legítima e realista, cuja concretização depende de inúmeros fatores subjetivos e acontecimentos imprevisíveis.”87 Na famosa conferência de Copenhagen, proferida por Trotsky, podemos encontrar um resumo de sua idéia de revolução permanente: “Em relação as suas tarefas imediatas, a revolução russa é uma revolução burguesa. Sem embargo, a burguesia russa é antirevolucionária. Por conseguinte a vitória da revolução só é possível como vitória do proletariado. O proletariado vitorioso não se deterá no programa da democracia burguesa e passará imediatamente ao programa do socialismo. A revolução russa será a primeira etapa da revolução socialista mundial. Tal era a teoria da revolução permanente, elaborada por mim em 1905 e, mais tarde, exposta à crítica mais acerba sob o apelido de “Trotskysmo”. Isto não é mais que uma parte desta teoria. A outra parte, agora particularmente atual, expressa: As atuais forças de produção há muito tempo extravasaram as barreiras nacionais. Por mais importantes que sejam os êxitos econômicos de um Estado operário isolado, o programa do “socialismo num só país” é uma utopia pequeno-burguesa. Só uma federação européia e, depois, mundial de repúblicas socialistas pode abrir caminho a uma sociedade socialista harmônica.”88 O duplo caráter da revolução, que deveria realizar não só as tarefas democráticas, mas também alçar ao poder o proletariado conduzindo ao socialismo é o que dá à revolução o caráter de “permanente”, como escreve o próprio Trotsky: “A ditadura do proletariado, que sobe ao poder como força dirigente da revolução democrática, será colocada, inevitável e muito 87

LOWY, Michel. O Profeta da Revolução de Outubro. Outubro, 1999, São Paulo, nº. 3, p.55. ISSN 1516-6333. 88

TROTSKY, Leon. “O que foi a revolução de outubro” in Revista Civilização Brasileira, Ano III – Caderno Especial n. 1 - Novembro, 1967, p. 143-144. 114

rapidamente, diante de tarefas que a levarão a fazer incursões profundas no direito burguês da propriedade. No curso do seu desenvolvimento, a revolução democrática se transforma diretamente em

revolução

socialista,

tornando-se,

pois,

uma

revolução

permanente.”89 Tal teoria encontrou forte repúdio por parte da burocracia soviética, já que ela colocava em questão a possibilidade da continuação da União Soviética como estava, principalmente por conta de suas ações no exterior. Enquanto Stálin apoiou, na China, a palavra de ordem da “ditadura do proletariado e do campesinato”, Trotsky julgava esta posição equivocada, já que favorecia tendências pequeno-burguesas e impedia o desenvolvimento da real consciência de classe, prescrevendo que a ditadura é do proletariado em aliança com o campesinato: “Quaisquer que sejam as primeiras etapas episódicas da revolução nos diferentes países, a aliança revolucionária do proletariado com os camponeses só é concebível sob a direção política da vanguarda proletária organizada como partido comunista. Isso significa, por outro lado, que a vitória da revolução democrática só é concebível por meio da ditadura do proletariado apoiada em sua aliança com os camponeses e destinada, em primeiro lugar, a resolver as tarefas da revolução democrática.”90 O

terceiro

foco

decisivo

da

idéia

de

revolução

permanente

reside

no

internacionalismo. No embate de Trotsky contra a burocracia soviética este ponto teve vital relevância, pois contrasta diretamente com a teoria soviética do “socialismo em um país só”, assim, em A Revolução Permanente pode se ler que: “A revolução socialista não pode se realizar nos quadros nacionais. Uma das principais causas da crise da sociedade burguesa reside no fato de as forças produtivas por ela engendradas tenderem a ultrapassar

os limites

do

Estado

nacional.

Daí

as

guerras

imperialistas, de um lado, e a utopia dos Estados Unidos burgueses da Europa, de outro lado. A revolução socialista começa no terreno nacional, desenvolve-se na arena internacional e termina na arena mundial. Por isso mesmo, a revolução socialista se converte em revolução permanente, no sentido novo e mais amplo do termo: só termina com o triunfo definitivo da nova sociedade em todo o nosso

89

TROTSKY, Leon. A Revolução Permanente, op. cit., p. 208.

90

Ibid. p. 206. 115

planeta.”91 Tendo estudado a história russa e sua forma peculiar de desenvolvimento, Trotsky parecia ter a certeza de que as forças atuantes conduziriam à revolução permanente na Rússia, que começaria como uma revolução burguesa, mas continuaria ininterruptamente como uma revolução proletária92. Tal convicção de Trotsky, segundo alguns autores93, o difere fundamentalmente de Lênin por um determinismo que o faz crer que as condições do desenvolvimento histórico conduziriam à ebulição social russa para uma revolução proletária, como aponta Vittorio Strada: “Diferentemente de Trotsky – que estava seguro da correspondência da revolução russa às leis do “desenvolvimento combinado” e, portanto,

confiava

na

extensão

internacional

do

processo

revolucionário -, Lênin estava consciente do fato de que a sua revolução não era garantida, e que a tomada do poder na Rússia ocorrera

graças

a

uma

conjuntura

nacional

e

internacional

extremamente rara e precária (...) no fundo da posição de Trotsky, havia uma outra convicção: a de que, mesmo se houvesse uma nova ofensiva e o poder revolucionário na Rússia devesse heroicamente sucumbir, a flama revolucionária se reacenderia em outro lugar, já que, para alimentá-la, além da paixão das massas e da energia dos líderes, existiam as leis do desenvolvimento histórico.”94 Esta alegada diferença entre o pensamento dos dois talvez possa explicar seus “desentendimentos” antes da revolução, como por exemplo, o ocorrido à época da cisão entre bolcheviques e mencheviques, quando chega a acusar Lênin pessoalmente de, entre outras

91

Ibid. p. 208

92

Como explica Knei-Paz: “A revolução do atraso do século XX devia assumir a forma de uma “revolução combinada”, isto é, na qual agissem juntas as forças resultantes de duas era históricas, diferentes mas agora ligadas no tempo: a da revolução agrárioburguesa e a da revolução industrial-socialista”. KNEI-PAZ, Baruch. “Trótski: revolução permanente e revolução do atraso” in HOBSBAWM, Eric J. (org.). História do marxismo V, op. cit., p. 182. 93

Conclusão alcançada por outro autor: “Parece evidente que Trotsky, diferentemente de Lênin, atém-se à tipologia determinista-voluntarista da ação política”. Ibid., p. 194. 94

STRADA, Vittorio. “Lênin e Trótski” in HOBSBAWM, Eric J. (org.). História do marxismo V, op. cit., p. 153. 116

coisas, ser uma “reles caricatura da trágica intolerância do jacobismo” 95 e, depois, quando do tratado de Brest-litovsk96. Tal crença em sua própria teoria o fez criticar ferozmente o bolchevismo na cisão, dizendo que se ele não fosse erradicado e destruído, ele acabaria por destruir a social-democracia e qualquer perspectiva de realizar o socialismo na Rússia. No entanto, como observa Vittorio Strada “a teoria do ‘desenvolvimento combinado’ e da ‘revolução permanente’ tinha um vazio: a organização do partido revolucionário”. 97 Mais tarde, porém, Trotsky iria perceber que sua teoria, ainda que correspondesse à realidade, sem uma ação prática não poderia levar ao desabrochar da revolução98. Isso o fez se unir a Lênin e seu partido revolucionário em 1917, revendo suas opiniões anteriores, o que o levaria a dizer que tinha cedido anteriormente a um “otimismo fatalista” 99 e que todas as condições “suficientes para que irrompesse a revolução eram, porém, insuficientes para assegurar a vitória do proletariado”100, pois faltava o Partido Bolchevique. Sobre isso afirmou também que “nenhuma receita tática poderia dar vida à Revolução de Outubro se a Rússia não a levasse nas suas próprias entranhas. O partido revolucionário não pode desempenhar outro papel senão o de parteiro que se vê obrigado a recorrer à operação cesariana”. 101

95

Sobre as críticas de Trotsky a Lênin ver KNEI-PAZ, Baruch. “Trótski: revolução permanente e revolução do atraso” in HOBSBAWM, Eric J. (org.). História do marxismo V, op. cit., p. 192-193. 96

Quando Trotsky fez oposição à Lênin pois “afirmava que a ofensiva alemã terá influência sobre o movimento operário internacional e suscutará um impulso revolucionário de apoio ao poder soviético”. BETTELHEIM, Charles. A luta de classes na União Soviética: primeiro volume (1917-1923). Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2ª ed. 1979, p. 339. 97

STRADA, Vittorio. “Lênin e Trótski” in HOBSBAWM, Eric J. (org.). História do marxismo V, op. cit., p. 150. 98

Como escreve Knei-Paz: “Trotsky, naquele momento em que o tempo histórico, mais do que uma aceleração, conhecia um paroxismo, captou a maturidade da situação para a sua “revolução permanente” e aceitou o partido de Lênin como o último elo que faltava à sua construção”. Op. Cit., p. 171. 99

TROTSKY, Leon, APUD KNEI-PAZ, Baruch. “Trótski: revolução permanente e revolução do atraso” in HOBSBAWM, Eric J. (org.). História do marxismo V, op. cit.,, p. 195 100

TROTSKY, Leon. “O que foi a revolução de outubro” in Revista Civilização Brasileira, op. cit., p.145. 101

Ibid., p.138. 117

Esta mudança prática, a aproximação de Trotsky com Lênin e com o bolchevismo, teve repercussão em sua teoria, pois se nos anos da cisão ele considerava que o centralismo do partido poderia levar ao fim da possibilidade de socialismo na Rússia, depois passou a defender o partido único, negando-se a admitir que o embrião do stalinismo pudesse já se encontrar neste papel desenvolvido pelo partido desde antes da revolução. Isto em parte explica sua concepção de traição da revolução por parte da burocracia, já que ele não podia admitir que o desenvolvimento desta fosse decorrente lógico do bolchevismo. 102 Após esta visão geral do pensamento de Trotsky, passemos a análise de seu pensamento no que tange o direito.

3 - DIREITO E FIXAÇÃO NA PROBLEMÁTICA DAS FORÇAS PRODUTIVAS

Quando procuramos nos textos de Trotsky referências que possam esclarecer sua visão no que tange o direito e o Estado, encontramos, por diversas vezes, citações da grande obra de Lênin, O Estado e a revolução, para justificar sua própria visão, do desaparecimento destes entes (Estado, direito) conforme desapareça a exploração capitalista: “Depois de Marx e Engels, Lênin foi o primeiro a apreender o traço distintivo da revolução. Esta, ao expropriar os exploradores, suprime a necessidade de um aparelho burocrático que domine a sociedade e, antes de tudo, da polícia e do exército permanente. “O proletariado tem a necessidade do Estado que vá desaparecendo, isto é, um Estado que cedo comece a desaparecer e não possa deixar de desaparecer.”103 Seguindo estes desenvolvimentos esparsos em sua obra, pode-se perceber claramente que Trotsky via necessidade, postulada por Marx, do Estado e do direito desaparecerem, sendo para ele da ditadura do proletariado a incumbência de planejar este desaparecimento, uma vez completada a expropriação dos exploradores: “O Estado que realiza a ditadura tem por tarefa derivada, mas absolutamente primordial, preparar a sua

102

“De qualquer modo, Trotsky insistiu em que não se podia de modo algum concluir que o “stalinismo” já estivesse “contido em potência no centralismo bolchevique” e aqui o Trotsky bolchevique-leninista renegava o Trotsky menchevique de “As nossas Tarefas Políticas”, de 1904, que profetizara o destino despótico do bolchevismo”. SALVADORI, Massimo L.. “A crítica marxista ao stalinismo” in HOBSBAWM, Eric J. (org.). História do marxismo VII: o marxismo na época da Terceira Internacional: a URRS da construção do socialismo ao Stalinismo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986, p.318. 103

TROTSKY, Leon. A Revolução Traída. São Paulo, Centauro, 2007, p. 91 118

própria abolição” 104. No entanto, ao sustentar este ponto de vista, Trotsky não desenvolve com profundidade a análise feita por Marx para chegar a estas conclusões e acaba fincando o desaparecimento do Estado na sua proclamada falta de utilidade em uma sociedade sem exploração. Isto não basta como explicação, não explicita a análise marxista do fim do direito e do Estado. É necessário depreender de sua teoria uma visão geral para qual é o papel do direito no socialismo, o que sem dúvida é o caminho mais difícil, dependendo da compreensão dos temas que mais preocupavam o pensador. Quando tentamos avançar por este caminho, o de entender as contribuições de teóricas de Trotsky e a partir delas extrair seu ponto de vista para o Estado e o Direito (ao invés de como fizemos acima, quando procuramos citações diretas sobre este assunto), torna-se ainda mais difícil chegar à conclusão de Marx retomada por Lênin. Analisando sua teoria da revolução permanente temos que dos três pontos que a constituem, o principal ponto em que Trotsky se baseia para justificar o erro do stalinismo e a não completude do socialismo na URSS, denunciada pela manutenção do Estado e do direito, é o fato da revolução não ter se internacionalizado. Em sua visão, para se alcançar o socialismo é necessária a internacionalização da revolução, mas ele não explica como, a partir disso, o Estado e o direito devam desaparecer. Contenta-se, ainda neste nível, com dizer que não haverá necessidade da existência destes entes, o que não chega ao âmago da questão de explicar como e por qual razão o direito e o Estado perdem a necessidade de existir no estágio superior do socialismo, o comunismo. Ao invés de procurar responder mais concretamente estas questões Trotsky postula ser necessária a mundialização para liberar as “atuais forças de produção há muito tempo extravasaram as barreiras nacionais”105. Aqui encontramos o ponto chave do pensamento de Trotsky em relação à sua compreensão do direito, ponto este que repercutirá contraditoriamente no seu pensamento em relação ao Estado e o direito: ele crê que o principal entrave ao estabelecimento de uma sociedade tal como pensada por Marx na URSS é o baixo rendimento do trabalho social. Para ele a base das relações sociais após a revolução já eram (após a revolução) socialistas, mas o rendimento do trabalho social ainda era muito baixo. O que impedia a caracterização do socialismo, assim, seria principalmente o baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas. O socialismo ainda não teria sido alcançado, pois seria concebido como uma formação social em que o domínio dá técnica é superior ao do

104

Ibid., p. 92.

105

TROTSKY, Leon. “O que foi a revolução de outubro” in Revista Civilização Brasileira, Ano III – Caderno Especial n. 1 - Novembro, 1967, p. 144 119

capitalismo. Deste modo, contradizendo o stalinismo que já declarara a existência do socialismo na URSS, Trotsky escreve: “Mas precisamente do ponto de vista do marxismo, a questão não diz somente respeito às formas de propriedade, independentemente do rendimento do trabalho. Marx entendia, em todo o caso, por “estágio inferior do comunismo”, o de uma sociedade cujo desenvolvimento econômico seria, desde o início, superior ao do capitalismo avançado.”106 O fato de elencar a deficiência das forças produtivas como primeira razão de ainda não se ter alcançado o socialismo é recorrente em suas obras, constituindo, como já dissemos, fato de vital relevância para a compreensão de seu pensamento. Com isso ele desloca a problemática da transição ao socialismo do foco das relações de produção para colocá-lo sobre o desenvolvimento das forças de produtivas. Não dizemos aqui que Trotsky ignora por completo o problema das relações de produção, mas sim que ele, de uma forma geral, ao se debruçar sobre o problema do baixo rendimento do trabalho na URSS, acaba por não se dedicar suficientemente à análise das relações de produção. Com esta mudança de enfoque cria-se, em algumas passagens de sua obra, certa identificação das relações jurídicas com a totalidade das relações sociais:107 “A oposição objetava as primeiras declarações sobre a “vitória total”, que não basta considerar unicamente as formas jurídico-sociais das relações, aliás, ainda contraditórias e falhas de maturidade na agricultura, abstraindo do critério principal: o nível atingido pelo rendimento do trabalho. As próprias forças jurídicas em um conteúdo social que varia profundamente segundo o grau de desenvolvimento da técnica (...) as formas soviéticas de propriedade, fundadas sobre as aquisições mais recentes da técnica americana e alargada a todos os ramos da economia se identificariam já com o primeiro estágio do socialismo. As formas soviéticas, em presença de um baixo rendimento do trabalho, não significam mais do que um regime transitório cujos destinos não estão ainda definitivamente pesados 108

pela história.”

A importância que dá à problemática das forças produtivas o leva a cada vez mais deixar a análise das relações de produção para segundo plano e considerar tudo uma mera 106

Ibid., p.88.

107

Esta posição de Trotsky no que concerne a identificação das relações jurídicas com as relações de produção será retomada no próximo tópico. 108

TROTSKY, Leon. A Revolução Traída, op. cit., p. 99. 120

questão de desenvolvimento da técnica, afinal, como ele diz “os problemas do Estado e do dinheiro possuem vários aspectos em comum, pois ambos se reduzem, no fim de contas, ao problema essencial: o rendimento do trabalho”109. Ora, julgando que o grande problema da implementação do socialismo na URSS se encontrava na necessidade de desenvolvimento da técnica, no ganho de rendimento do trabalho, Trotsky deixa transparecer que em seu pensamento as relações de produção já são, na sua essência, socialistas. Isso pode ser comprovado em diversas passagens, como a já citada, em que ele diz que as formas soviéticas de propriedade com o nível de desenvolvimento da técnica americano já se identificariam com o primeiro estágio do socialismo. Pensando deste modo chega a falar continuamente em um “método socialista” que já estaria em prática na URSS: “Para apreciar o novo regime do ponto de vista do desenvolvimento humano, há que se focalizar, acima de tudo, esta questão: de que maneira se exterioriza o progresso social e como se pode medi-lo? O critério mais objetivo, mais profundo e mais indiscutível é: o progresso pode medir-se pelo crescimento da produtividade do trabalho social. A estimativa da Revolução de Outubro, sob este ângulo, a experiência já deu. Pela primeira vez na história o princípio de organização socialista demonstrou sua capacidade, fornecendo resultados de produção jamais obtidos num curto período.”

110

Para Trotsky o socialismo antes de tudo consubstanciava-se num modo de organização social para fazer a técnica progredir mais rapidamente que o “capitalismo estagnante” libertando as forças produtivas, o que para ele se comprovava por meio do rápido progresso da URSS nas décadas de 20 e 30, pelo “fato estabelecido empiricamente, a possibilidade de elevar o trabalho coletivo a uma altura jamais conhecida, com a ajuda dos métodos socialistas” 111

. Não podemos deixar de notar que o determinismo já presente em suas discussões com

Lênin permeia seu pensamento do momento de transição, quando ele entende que as formas básicas de produção socialistas já estão implantadas, por conta da revolução de outubro, originada de acordo com as leis do desenvolvimento histórico: resta assim primordialmente desenvolver a técnica. Seguindo esta linha de pensamento, Trotsky chega a afirmar que uma economia socializada como a URSS, ultrapassando a técnica capitalista já teria assegurado “automaticamente” um “desenvolvimento socialista”: “A força e a estabilidade dos regimes definem-se em última análise 109

Ibid., p. 103.

110

TROTSKY, Leon. “O que foi a revolução de outubro” in Revista Civilização Brasileira, op. cit., p. 150. 111

Ibid., p. 151. 121

pelo rendimento relativo do trabalho. Uma economia socializada que ultrapassasse assegurado

o um

capitalismo,

tecnicamente,

desenvolvimento

socialista

teria de

realmente

certo

modo

automático, o que infelizmente não pode, de maneira alguma, ser dito da economia soviética.”112 O próprio internacionalismo, que tão fortemente marca sua posição anti-estalinista, parece em sua argumentação ser necessário meramente para libertar as forças produtivas dos países mais adiantados, que as socializariam com a os países mais atrasados. Conjugando a técnica dos capitalistas avançados com os “métodos socialistas” o socialismo estaria garantido. Esta posição se torna de difícil defesa, posto que a técnica da URSS de sua época em muito superava o capitalismo inglês da época de Marx. Mas a este tipo de questionamento Trotsky responde que: “A aplicação dos métodos socialistas a tarefas pré-socialistas é agora o fundamento do trabalho econômico e cultural na URSS. É verdade que a URSS ultrapassa hoje, pelas suas forças produtivas, os países mais avançados do tempo de Marx. Mas, em primeiro lugar, na competição histórica dos dois regimes, trata-se muito menos de níveis absolutos que de níveis relativos: a economia soviética opõese ao capitalismo de Hitler, de Baldwin e de Roosevelt e não ao de Bismark, de Palmerston e de Abraão Lincoln; em segundo lugar, a própria

extensão

radicalmente

com

das o

necessidades crescimento

do da

homem técnica

modificou-se mundial:

os

contemporâneos de Marx não conheciam o automóvel, nem a telegrafia sem fio, nem o avião. Ora a sociedade socialista no nosso tempo seria inconcebível sem o livre uso de todos estes bens.”113 Ele elide a crítica feita com base no fato de que o desenvolvimento das forças produtivas na URSS já era superior aos países capitalistas do tempo de Marx, dizendo que o que importa não são níveis absolutos, mas sim níveis relativos de desenvolvimento da técnica. Não podemos concordar com esta afirmação, pois com ela Trotsky acaba por colocar o problema, ainda que por uma via indireta, no mesmo nível que o colocou Stalin: há um cerco capitalista que “concorre” com a sociedade em transição ao socialismo, por isso ela ainda não pode realmente ser considerada “socialista”. Só se tornará socialista quando superar esse invólucro capitalista. Para Stalin a maneira de superar é sendo mais poderoso militarmente, para Trotsky é instalando este “método socialista” em todo o globo, para que as forças produtivas dos países avançados sejam socializadas.

112

TROTSKY, Leon. A Revolução Traída, op. cit., p. 89

113

Ibid., p. 96 122

Ora, no tempo de Marx as forças produtivas dos países avançados eram inferiores às da URSS, então, mesmo com a socialização das forças produtivas destes países, naquela época, a produtividade do trabalho social mundial seria menor do que a produtividade existente na URSS no tempo de Trotsky. Há uma contradição aqui: ou reconhece-se que a questão da transição ao socialismo não é primordialmente dependente do progresso da produtividade do trabalho, das forças produtivas, ou admite-se que o nível de progresso da técnica não é relativo, mas absoluto e no tempo de Marx o socialismo não seria possível, ainda que com uma revolução mundial. Trotsky não vê essa contradição, e mantém-se firme na posição de que para ser alcançado o socialismo é necessária a internacionalização da revolução que libertaria as forças produtivas aprisionadas em âmbito nacional. Isto não explica em nada como seria possível a transição ao socialismo, mas apenas mais uma vez remete todo o problema para a temática do desenvolvimento das forças produtivas em detrimento de uma análise das relações de produção. Não se trata de dizer aqui - e é importante que isso reste muito claro – que a internacionalização da revolução não fosse necessária para seu sucesso, mas que não se pode

considerá-la

milagroso

remédio

que

resolveria

os

problemas

estruturais



experimentados pela URSS naquela época, problemas estes que se concentravam nas relações sociais de produção. Por mais que se enumerem motivos para a impossibilidade de existência do socialismo em um único país, motivos dentre os quais com muitos concordamos, como a pressão no terreno político e militar por conta dos países capitalistas, o desnível tecnológico e mesmo a mera existência de sociedades de consumo que podem incitar a massa a padrões de comportamento burgueses, estes são insuficientes para explicar como se dá a transição. Quando Trotsky debruça-se sobre o problema da transição na URSS, antes de atacar a própria forma de produção soviética114 e ver no que ela substancialmente difere do objetivo de emancipação humana, remete a crítica ao exterior, ao próprio capitalismo que impede a internacionalização da revolução. Ele procura o problema nas relações capitalistas internacionais e nisso esquiva-se de analisar o interno, as relações sociais que no interior da URSS são conflituosas e não socialistas, enquanto isso prescreve internamente a necessidade de aumento da produtividade do trabalho a qualquer custo. Assim, como diz Charles Bettelheim, “o que caracteriza a concepção de Trotsky é a defesa da tese sobre o primado do desenvolvimento das forças produtivas até suas últimas consequências”

115

. Isso longe de repercutir apenas em sua

114

Veremos adiante neste trabalho que a crítica que Trotsky faz à burocracia, no sentido em que esta traiu a revolução, coloca-a como superestrutura e não como parte estrutural do próprio modo de produção oriundo da revolução de outubro. 115

BETTELHEIM, Charles. A Luta de Classes na URSS. Volume 1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. p. 36. 123

produção teórica revela-se em suas posições enquanto líder bolchevique, como quando, por exemplo, defendendo junto com Bukharin a militarização do trabalho e dos sindicatos, escreveu: “Os operários devem estar ligados a seu emprego, sujeitos a serem transferidos; é necessário dizer-lhes o que devem fazer (...) Antes de desaparecer, a coerção estatal atingirá, durante o período de transição, o seu mais alto grau de intensidade na organização do trabalho.”116 Este autoritarismo presente em diversas asserções só pode ser corretamente compreendido levando em conta a defesa da necessidade de aumento da produtividade do trabalho, mesmo que claramente em detrimento de relações de produção mais igualitárias, que promovessem uma sociedade verdadeiramente libertária, como deverá ser no socialismo. Dessa forma, Trotsky prescreve que: “Uma luta planificada, sistemática, constante e resoluta deve ser travada contra a deserção do trabalho, em particular publicando listas negras dos desertores do trabalho, formando batalhões penais compostos desses desertores e, finalmente, encerrando-os em campos de concentração.”117 E ainda, que: “A militarização é impensável sem a militarização dos sindicatos como tais, sem o estabelecimento de um regime no qual cada trabalhador se considere um soldado do trabalho que não pode dispor livremente de si mesmo; se ele recebe uma ordem de transferência, deve executá-la; se não a executa, será um desertor que deve ser punido. Quem cuida disso? O sindicato. Ele cria o novo regime. É a militarização da classe operária.”118 Na mesma polêmica interfere Lênin, em posição contrária à de Trotsky, demonstrando como mesmo naquele momento de colossais problemas de produção, ainda era possível a defesa de um ponto de vista diferente. O grande líder bolchevique explica como o foco nas forças produtivas desconsiderando as relações de produção, longe de ser o que representa o marxismo, contrasta com esta filosofia: 116

TROTSKY, Leon, apud BETTELHEIM, Charles. A Luta de Classes na URSS. Volume 1. Op. Cit., p. 351. 117

TROTSKY, Leon, apud BETTELHEIM, Charles. A Luta de Classes na URSS. Volume 1. Op. Cit., p. 351 118

Ibid., p. 351 124

“Trotsky e Bukhain apresentam as coisas desse modo: vejam, nós nos preocupamos com o aumento da produção, e vocês unicamente com a democracia formal. Essa imagem é falsa, pois a questão se coloca (e, para falar como marxista, pode colocar-se) somente assim: sem uma posição política justa, uma dada classe não pode manter sua dominação e, em consequência, não pode também se desincumbir de sua tarefa na produção.”119

4 - DIREITO DE PROPRIEDADE E DIVISÃO DE CLASSES

Com a escolha deste caminho teórico que postula que a base de relações sociais da URSS já é socialista e que o problema predominante (apesar de não único) é a questão do baixo rendimento do trabalho, Trotsky entende que a burocracia não é classe dominante. Julgála classe dominante implicaria que a estrutura não é em si socialista, o que levaria o problema a situar-se não nas forças produtivas, mas nas relações de produção. Ele parte então para uma argumentação que nos permite extrair apontamentos para sua concepção do direito. Como a estrutura já é socialista, a burocracia só pode representar algo que não é próprio do modo de produção alcançado com a revolução de outubro, portanto só pode ser considerada superestrutura120. Se a burocracia representa a superestrutura que se opõe à estrutura já socialista, ela na realidade está contra as bases sociais lançadas em 1917, está, então, traindo a revolução:121 119

LÊNIN, Vladimir apud BETTELHEIM, Charles. A Luta de Classes na URSS. Volume 1. Op. Cit., p. 357. 120

Como explica Salvadori: “Trotsky tem seu centro teórico na afirmação de que a URSS sob o domínio de Stalin não deixa de ser socialista, em virtude da herança constituída pelas transformações estruturais econômicas e sociais realizadas pelo poder soviético no período de Lênin, e não qualitativamente renegadas pelo poder de Stalin, embora no plano das superestruturas e das técnicas de domínio político o stalinismo tenha realizado uma profunda distorção, de tal monta que se tornou uma verdadeira “traição” em relação às finalidades de uma revolução proletária e às exigências de uma ordem política e institucional socialista. Disso resulta a conclusão de que a essência do stalinismo consiste na criação de uma contradição crescente entre a estrutura econômica da URSS e as superestruturas”. SALVADORI, Massimo L.. “A crítica marxista ao stalinismo” in HOBSBAWM, Eric J. (org.). História do marxismo VII, op. cit., p.308 120“Uma traição, porém, que era certamente muito grave, mas que se limitava – e aqui reside uma outra peculiaridade de Trotsky – à esfera das superestruturas” Ibid., p.313. 121

“Uma traição, porém, que era certamente muito grave, mas que se limitava – e aqui reside uma outra peculiaridade de Trotsky – à esfera das superestruturas” Ibid., p.313. 125

“Como força política consciente a burocracia traiu a revolução. Mas a revolução, felizmente vitoriosa, não é só um programa, uma bandeira, um conjunto de instituições políticas, é também um sistema de relações sociais. Não é suficiente traí-la, é necessário ainda subvertêla. Os atuais dirigentes traíram a Revolução de Outubro, mas ainda não a subverteram. A revolução tem uma grande capacidade de resistência, que coincide com as novas relações de propriedade, com a força viva do proletariado, com a consciência dos seus melhores elementos, com a situação sem saída do capitalismo mundial, com a inelutabilidade da revolução mundial.”122 É possível perceber na citação acima que, para Trotsky, o sistema de relações sociais se contrapõe à burocracia traidora, inclusive pelas “novas relações de propriedade”. Isto ressalta não somente sua concepção de burocracia como mera superestrutura e a URSS já como detentora de relações sociais socialistas, mas dá um papel muito importante à propriedade em suas considerações, como se ela fosse o que determina as próprias relações sociais. Ora, se o que de fato foi modificado na URSS em matéria de propriedade foi apenas sua titularidade jurídica, que passou de privada para estatal, parece-nos que para Trotsky esta mudança meramente jurídica é o que tem o condão de criar novas relações de produção. Menções nesse sentido não são ocasionais em sua obra, ao contrário, se encontram em diversas passagens, como quando fala de uma revolução meramente política contra a burocracia: “A revolução que a burocracia prepara contra si própria não será social como a evolução de Outubro de 1917; não se tratará de uma mudança de bases econômicas da sociedade, de substituir uma forma de propriedade por outra. A história para além das revoluções sociais que substituíram o feudalismo pelo regime burguês conhece revoluções políticas que sem tocar nos fundamentos econômicos da sociedade, subverteram as antigas formações dirigentes (1830 e 1848 na França, fevereiro de 1917 na Rússia). A subversão da casta bonapartista terá, naturalmente, profundas consequências sociais; mas não irá para além dos limites de uma transformação política.”123 Pode-se perceber que ele julga serem as “bases econômicas da sociedade” decorrentes da “forma de propriedade”, já que se esta fosse substituída as “bases econômicas” seriam mudadas. Como ele escreve a “burocracia não criou uma base social para sua dominação, sob a forma de condições particulares de propriedade. É obrigada a defender a 122

TROTSKY, Leon. A Revolução Traída, op. cit., p. 244.

123

Ibid., p. 272. 126

propriedade de Estado, fonte do seu poder e das suas receitas”

124

. Ou seja, a burocracia

precisa defender a propriedade coletiva em detrimento da propriedade privada e isto, a coletividade da propriedade, é o que para ele representa a base socialista da sociedade. Seguindo esta linha de pensamento os privilégios da burocracia não podem ser oriundos de uma relação de classe, mas sim de um “abuso”: “As iniciativas feitas para apresentar a burocracia soviética como uma classe “capitalista de Estado” não resistem visivelmente à crítica. A burocracia não tem títulos nem ações, recruta-se, completa-se e renova-se, graças a uma hierarquia administrativa, sem ter direitos particulares em matéria de propriedade. O funcionário não pode transmitir aos seus herdeiros o seu direito à exploração do Estado. Os privilégios da burocracia são abusos.”125 Ora, acima fica clara a importância que Trotsky dá ao direito de propriedade. Só pode haver “classe” se houver “direitos particulares em matéria de propriedade” 126. Apesar disto, ele deixa claro que de fato há uma espécie de “pertencimento” do Estado à burocracia, o que parece contrariar sua definição da burocracia como superestrutura. Resolve esta contradição dizendo que a inscrição deste “pertencimento” no âmbito do modo de produção só se daria quando tais categorias se “legalizassem”, subvertendo de vez a revolução: “Os meios de produção pertencem ao Estado. O Estado “pertence” de algum modo à burocracia. Se estas relações, ainda que recentes, se estabilizassem, se legalizassem, se tornassem normais, sem resistência, ou mesmo com a resistência dos trabalhadores, acabariam pela liquidação completa das conquistas de revolução proletária.”127

124

Ibid., p. 242.

125

Ibid., p. 242-243.

126

“Partindo do ponto, para ele firme, de que existe uma classe dominante em contraposição às outras classes sociais, somente quando aquela possui propriedade dos meios de produção. Trotsky conclui que a burocracia não pode ser uma classe porque não é proprietária. Mas a burocracia domina politicamente e goza de privilégios de todo tipo. Portanto para Trotsky, ela é um “estrato”, uma casta dominante, não uma classe dominante do tipo burguesia” SALVADORI, Massimo L.. A crítica marxista ao stalinismo in HOBSBAWM, Eric J. (org.). História do marxismo VII, op. cit., p.314. 127

TROTSKY, Leon. A Revolução Traída, op. cit., p 242.

127

Trotsky se baseia na idéia de que o regime em que a burocracia dominava a propriedade estatal só poderia existir de uma forma transitória, por curto espaço de tempo, e que esta se resolveria levando de volta ao capitalismo ou consolidando de vez o socialismo. Como a legalidade declarava ser socialista uma nova forma de exploração só poderia vir a tona com a “legalização” de novas relações. Não podia pensar na existência de um novo tipo de exploração burguesa com base na propriedade estatal, como explica Bettelheim: “A referência ao nível das forças produtivas permite a Trotsky introduzir a noção de “normas burguesas de repartição”, as quais seriam impostas na URSS pelo baixo nível das forças produtivas, e cuja existência poderia conduzir a uma restauração da propriedade privada. A idéia de uma restauração da dominação burguesa no interior da propriedade estatal é, assim, implicitamente rejeitada, se que Trotsky possa, além disso, apresentar argumentos verdadeiros para justificar essa negação.”128 Resta, assim, a conclusão de que para Trotsky a relação jurídica de propriedade tem vital relevância para sua definição das “bases econômicas da sociedade”, de forma que não consegue imaginar a existência de dominação burguesa perene sem a existência da propriedade privada legalmente afirmada. O foco na problemática das forças produtivas impossibilita uma incursão aprofundada na questão das relações de produção, levando à redução desta questão complexa a uma mera operação jurídica. Em uma síntese de sua visão, o próprio direito, a própria legalidade, é o que define se determinado modo de produção é socialista ou capitalista, como confirmaremos adiante.

5 - TROTSKY E O FIM DO DIREITO E DO ESTADO

Conforme expomos anteriormente neste trabalho, apesar de Trotsky seguir Marx e Lênin ao declarar que o Estado e o direito desaparecerão, se torna claro que tal conclusão não decorre logicamente de seu pensamento. Por vezes, inclusive, ele aponta para o caminho oposto, como quando qualifica a lei como própria das relações de produção nas sociedades civilizadas: “Nas sociedades civilizadas a lei fixa as relações de produção e propriedade. A nacionalização do solo, dos meios de produção, dos transportes e de troca e também o monopólio do comércio exterior, formam as bases da sociedade soviética. E esta aquisição da revolução proletária define aos nossos olhos a URSS como um

128

BETTELHEIM, Charles. A Luta de Classes na URSS. Volume 1. Op. Cit., p 36. 128

Estado operário.”129 Na passagem acima a lei é elevada a um patamar muito diferente daquele que se espera de quem defende o fim do direito e do Estado, Trotsky na realidade a ontologiza como que sendo própria de todas as sociedades civilizadas, ao derivar sua noção de Estado operário da própria disposição legal. O instante jurídico técnico, da legalidade, aquele que só se desenvolve plenamente no capitalismo

130

, é elevado como pertencente não somente às

sociedades capitalistas, mas a todas as sociedades “civilizadas”. Aqui se pergunta: O comunismo não será uma forma civilizada de sociedade? Será a lei que fixará as relações de produção no comunismo? Trotsky aqui se opõe não somente a Marx, mas as suas próprias afirmações quando postula o fim do direito. Esta contradição insolúvel na qual seu pensamento se debate, pode ser explicada por uma confusão que aparentemente ele próprio faz entre o conteúdo e a forma do direito. Em certo ponto ele coloca as “normas burguesas” em oposição às “normas socialistas”, do mesmo jeito que coloca a “propriedade burguesa” em oposição à “propriedade socialista” como se criticasse não o direito como um todo, mas apenas seu conteúdo burguês, que poderia ser substituído por um conteúdo socialista. “Duas

tendências

opostas

crescem

no

seio

do

regime:

desenvolvendo as forças produtivas – ao contrário do capitalismo estagnante – são criados os fundamentos econômicos do socialismo; e levando ao extremo, por complacência em relação aos dirigentes, as normas burguesas de repartição, prepara uma restauração capitalista. A contradição entre as formas de propriedade e as normas de repartição não pode crescer indefinidamente. Ou as normas burguesas se estenderão de uma ou de outra maneira, aos meios de produção, ou as normas socialistas terão de ser concedidas à propriedade socialista.”131 Podemos dizer, assim, que a visão de Trotsky está intrinsecamente ligada à supervalorização que ele faz do direito de propriedade, que, como já explicado, é colocado como determinante para a existência da divisão da sociedade em classes. O que definiria o modo de produção capitalista seria a existência deste direito específico que, uma vez abolido, tornaria impossível a cisão social em classes, redundando no “modo de organização socialista”. Apesar de momentos em que, com muita lucidez, diz que “a passagem das fábricas para o 63

Ibid., p. 241.

130

Cf. MASCARO, Alysson. Critica da legalidade e do Direito Brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2008; e NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2008. 131

Ibid., p. 238-239. 129

Estado só mudou a situação jurídica do operário”132 ou que “os colcozes133, até agora, não conseguiram mais do que transformar as formas jurídicas da economia nos campos e, em particular, o modo de repartição dos rendimentos”134 Trotsky não faz destas considerações a base de sua análise e, o fato de citá-las e depois prosseguir sem se deter nestes pontos, ao invés de contrariar, reforça a idéia de que seu foco não recai nas relações de produção, como deveria. O que é recorrente e fundamental em sua obra é que se considera a operação jurídica de transferência de titularidade da propriedade, do privado para o estatal, como já a base do “método socialista” que impediria a divisão da sociedade em classes. Identificando assim, as relações de produção capitalistas com o direito de propriedade, acaba por reduzir a importância da análise das relações de produção. Por isso não pode ver que o problema da transição se encontra não tanto nas forças produtivas, mas nas próprias relações sociais de produção. Tomando o direito de propriedade como base do capitalismo, não consegue estender sua crítica ao instante jurídico em geral, que como um todo representa as relações de produção de nosso tempo. A forma jurídica deveria ser o alvo da crítica e não apenas o conteúdo particular do direito de propriedade. Isto revela a incompreensão do caráter capitalista do direito a partir da própria forma. Trotsky parece não acompanhar o desenvolver da teoria marxista desde suas bases até alcançar, como o fez Marx, as conclusões sobre o fim do direito e o fim do Estado, pois isso o obrigaria a estender sua crítica para além do conteúdo da lei. O debate sobre o fim do direito e fim do Estado pode ser tomado como pedra de toque para averiguar os limites teóricos de um autor, conforme o pensamento marxista. É tema extremamente polêmico, de onde brotam inúmeras críticas às demonstrações de Marx. Defendemos que tais críticas surjam, principalmente, em razão de que tais previsões contrariam radicalmente o senso comum e todas as análises que se limitam à superfície dos fatos. A construção teórica necessária para se alcançar tais conclusões é muito extensa, dependendo do conhecimento e prova de muitos fatores intermediários. Além disso, como já 132

Ibid., p. 236.

133

Cooperativas de produção, colcoz, é um tipo de propriedade rural coletiva, típica da União Soviética, no qual os camponeses formavam uma cooperativa de produção agrícola. Os meios de produção eram fornecidos pelo Estado, ao qual era destinada uma parte fixa da produção. Os colcozes constituíram a base do sistema de coletivização da agricultura na URSS, implantado após a vitória da Revolução de Outubro. 134

Ibid., p. 237. 130

explicava o próprio Marx, diferentemente dos fenômenos naturais, na esfera social não nos podemos valer de microscópios (e, diria hoje, computadores) para visualizar os fenômenos, mas apenas do conhecimento da história e da capacidade de abstração. Finalmente, por tratar do fim da sociedade como hoje a concebemos, o tema é recoberto pelo denso véu da ideologia, que nos impede de ver nossa própria condição historicamente determinada. Por estes motivos não é possível aqui demonstrarmos o caminho para se alcançar tais conclusões, mas tão somente dar uma explicação superficial do seu desenvolvimento, e ao fim compará-las com as idéias de Trotsky. Marx, em sua obra máxima, O Capital, explicou que o capitalismo se caracteriza pela generalização da troca de mercadorias como meio de produção social, diferentemente do que ocorria no feudalismo, escravagismo e outros modos de produção existentes na história. O modo de produção capitalista passa a existir quando o processo em que os humanos transformam a natureza, por meio de seu trabalho, para que possam garantir sua existência assume a forma geral de produção de mercadorias. Isso significa que a maior parte do que os homens produzem destina-se à venda e não ao seu próprio consumo, sua subsistência, como acontecia majoritariamente, nos modos de produção anteriores. A produção de mercadorias faz com que os bens que são trocados surjam diante dos olhos dos homens como portadores de “valor”, que é uma medida necessária para troca, ao passo que reduz as diferenças materiais, portanto qualitativas, dos diversos bens a uma diferença meramente quantitativa. Uma geladeira é algo de qualidade diferente de um avião, mas, ao serem ambos analisados sobre o prisma da troca, suas diferenças materiais são apagadas e toma o lugar a ser mera diferença quantitativa, uma diferença de “valor” - um bem vale x do outro. Marx demonstra que esta igualdade que permite a troca, o valor que aparece como propriedade dos bens, algo inerente a eles, é na realidade trabalho humano cristalizado. O trabalho humano é a única igualdade presente nos diferentes bens, é isso que permite sua equivalência para a troca. Ao mesmo tempo é só a existência de produtores individuais, que depois tem de levar seu produto ao mercado para que ele seja socializado, que permite existir a relação de trocas e assim do próprio valor. Em uma sociedade que produza coletivamente as coisas não são trocadas e assim não aparecem como possuindo um valor. Aristóteles já havia percebido a necessidade de haver alguma igualdade entre os diversos bens para ser possível a troca, mas não conseguiu perceber que a igualdade presente nos bens era a igualdade do trabalho humano e a julgou mero artifício criado para a necessidade prática de trocar. Marx explica a razão pela qual o grande gênio da antiguidade não conseguiu completar sua análise, fornecendo preciosa reflexão para o direito: “O segredo da expansão de valor, a igualdade e a equivalência de todos os trabalhos, porque e na medida em que são trabalho humano em geral, somente pode ser decifrado quando o conceito da igualdade humana já possui a consciência de um preconceito popular. Mas isso só é possível numa sociedade na qual a forma

131

mercadoria é a forma geral do produto de trabalho, por conseguinte também a relação das pessoas umas com as outras enquanto possuidoras de mercadorias é a relação social dominante.”135 Só em uma sociedade em que a relação entre possuidores de mercadorias é dominante é que foi possível a igualdade humana se tornar um preceito popular e então notarse a equivalência dos trabalhos. Mas como Marx relaciona a igualdade humana com a troca de mercadorias? Como podem as trocas dar origem ao princípio que hoje consideramos basilar para o direito, o princípio da igualdade? A conexão explica-se, pois como ele diz: “As mercadorias não podem por si mesmas ir ao mercado e se trocar. Devemos, portanto, voltar à vista para seus guardiões, os possuidores de mercadorias”

136

. Nesta toada continua Marx:

“Para que essas coisas se refiram entre si como mercadorias, é necessário que os seus guardiões se relacionem entre si como pessoas, cuja vontade reside nessas coisas, de tal modo que um, somente de acordo com a vontade do outro, portanto cada um apenas mediante um ato de vontade comum a ambos, se aproprie da mercadoria alheia enquanto aliena a própria. Eles devem, portanto, reconhecer-se reciprocamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, desenvolvida legalmente ou não, é uma relação de vontade, em que se reflete a relação econômica. O conteúdo dessa relação jurídica ou de vontade é dado por meio da relação econômica mesma. As pessoas aqui só existem, reciprocamente, como representantes de mercadorias e, por isso, como possuidoras de mercadorias.”137 É dizer que a própria noção de igualdade humana como hoje a conhecemos é desenvolvida historicamente a partir da troca de mercadorias, pois a própria troca pressupõe pessoas que se vejam como iguais para poderem efetuar um contrato, a forma jurídica própria para o intercâmbio de mercadorias. Aqui, Marx já coloca o fundamental para uma análise do direito enquanto forma própria do capitalismo: a noção de igualdade formal e a vontade expressa pelo contrato, ambas decorrentes do intercâmbio de mercadorias. Ele, contudo, não teve tempo de completar sua análise para o direito e o Estado, prevista para estar no último tomo de O Capital. Somente no início do século passado foi que um grande jurisfilósofo soviético, Eugeni Pachukanis, tratou do direito com fidelidade ao pensamento marxista, em sua grande obra Teoria Geral do Direito e Marxismo. Os que anteriormente se debruçaram sobre a árdua tarefa não conseguiram extrair do pensamento 135

MARX, Karl. O capital. Op. Cit., p. 62.

136

Ibid., p.79.

137

MARX, Karl. O capital. Op. Cit., p. 79-80. 132

marxista toda a radicalidade de sua crítica ao capitalismo, que depende da compreensão da forma mercadoria das relações sociais. Eles procuravam reunir as citações dispersas da obra de Marx para explicar sua concepção de direito, e não retirar de seu núcleo teórico as conclusões que pudessem embasar uma crítica do direito. Pachukanis, ao contrário dos demais, retoma Marx dizendo que “Toda a relação jurídica é uma relação entre sujeitos. O sujeito é o átomo da teoria jurídica, o seu elemento mais simples, indecomponível”. A análise do direito deve ser feita a partir das relações concretas dos indivíduos. A concepção jurídica dominante analisa o direito a partir da norma, mas esta não surgiu do nada, tem de ter um antecedente e uma gênese lógica e histórica. Não se pode colocar a norma antes das relações reais humanas que a trouxeram ao mundo, uma análise do direito por este caminho é idealista, para não dizer metafísica. Antes de existir direito, existiam homens que se relacionavam entre si e, em determinado ponto, estas relações tomaram uma forma que corresponde ao que atualmente chamamos de direito. Esta forma pressupõe a existência, antes de tudo, de um sujeito, a representação jurídica de uma pessoa real que se relaciona com outras mediante um ato de vontade. As relações entabuladas por estes sujeitos adquirem a forma de relação jurídica. A grande questão é: explicar por que estas relações, a partir de determinado período tomaram a forma jurídica? Descobrir o desenrolar histórico e lógico do modo dos homens se relacionar que deu origem a esta forma. Ora, como demonstrou Marx, o direito enquanto superestrutura depende de modificações na estrutura, na própria base econômica, assim, Pachukanis faz a correspondência entre as duas instâncias da vida social: “O sujeito como portador e destinatário de todas as pretensões possíveis, a cadeia de sujeitos ligados uns aos outros por pretensões recíprocas, tal é a estrutura jurídica fundamental que corresponde à estrutura econômica, isto é, às relações de produção de uma sociedade assente na divisão do trabalho e na troca.”138 Adentrando na especificidade do direito ele identifica a origem histórica da forma jurídica no desenvolvimento da forma contrato. “O conceito de acto jurídico derivou do contrato. Independentemente do contrato, os conceitos de sujeito e de vontade em sentido jurídico existem apenas como abstracções mortas. É unicamente no contrato que estes conceitos se movem autenticamente.”139

138

PACHUKANIS, Eugeni. Teoria Geral do Direito e Marxismo. Coimbra, Centelha, 1977, p. 117. 139

Ibid., p. 149. 133

Deste direito embrionário baseado no contrato que já existia em sociedades em que a troca era de certo modo desenvolvida, como em Roma, Pachukanis segue a evolução da forma jurídica até o surgimento das abstrações mais gerais presentes no direito contemporâneo. O direito como todo teórico estruturado só surge com a consolidação do capitalismo: “Foi somente quando se desenvolveram totalmente as relações burguesas que o direito se revestiu de um caracter abstracto. Cada homem converte-se em trabalho social útil em geral, cada sujeito converte-se em sujeito jurídico abstracto. Simultaneamente, a norma reveste-se igualmente da forma lógica acabada de lei geral e abstracta.”140 Com esta análise realista é que Pachukanis irá explicar o surgimento do direito. Falta, no entanto, explicar o porquê de esta relação entre particulares detentores de mercadorias surgir algo que seja destinado ao geral. É perguntar: como algo tão particular como o contrato se universaliza como a norma geral? Como é possível que, em uma sociedade de livres produtores, que tem pela igualdade de direito seu princípio fundamental, haja a manutenção da coesão social? Se todos os indivíduos são livres, como fazer com que a liberdade de um não atrapalhe a liberdade do outro? Como é possível o mando, a coação social, em uma sociedade em que todos são livres e iguais? “Na sociedade de produção mercantil a subordinação a um homem como tal, enquanto indivíduo concreto, significa a subordinação a um arbítrio, visto que isso equivale à subordinação de um proprietário de mercadorias perante o outro. Eis porque também a coação não pode aparecer aqui sob a sua forma não mascarada, como um simples acto de oportunidade. Ela deve aparecer antes como uma coação que provém de uma pessoa colectiva abstracta e que é exercida não no interesse do indivíduo donde provém – porque numa sociedade de produção mercantil cada homem é um homem egoísta – mas no interesse de todos os membros que participam nas relações jurídicas. O poder de um homem sobre o outro se exprime na realidade como o poder do direito, ou seja, como de uma norma objectiva impessoal.” 141 Demonstrando a relação existente entre o sistema produtor de mercadorias, o direito e o Estado, relação não só historicamente averiguável, mas, também necessária do ponto de vista lógico, Pachukanis aponta para a possibilidade de superação destas formas de relações sociais: 140

Ibid., p. 148-149.

141

Ibid, p. 182. 134

“A condição real de uma tal supressão da forma jurídica e da ideologia jurídica reside num estado social onde a contradição entre o interesse individual e o interesse social esteja superada. Porém, o que caracteriza a sociedade burguesa é precisamente o facto de os interesses gerais se destacarem dos interesses privados e de se oporem a eles. E, nesta oposição, eles próprios revestem involuntariamente a forma de interesses privados, ou seja, a forma do direito.”142 Com o fim do capitalismo e o surgimento de novas relações de produção que não se baseiem na forma mercadoria, também o Estado, como o direito, irá desaparecer. Tal pensamento é inconcebível para a grande maioria das pessoas hoje, parece contrariar a tudo que podemos enxergar como certo. A realidade parece negar esta perspectiva marxista, pois estas formas são as próprias condições a priori de existência da sociedade nesta forma, como explica Pachukanis: “O pensamento burguês, que considera o quadro da produção mercantil como o quadro eterno e natural de toda a sociedade, encara assim o poder do Estado abstracto como um elemento que pertence a toda a sociedade em geral.”143 Isso inclui toda a lógica da legalidade ou jurisprudência, com as quais se identifica nossa concepção de direito. É por isso que não podemos concordar com Trotsky quando ele diz que “Nas sociedades civilizadas a lei fixa as relações de produção e propriedade” 144. Dizendo isso ele ainda se coloca dentro da limitada visão de mundo burguesa. A própria lei só surge a partir de determinado modo de produção, só se desenvolve e atinge seu ápice devido à especificidade das relações sociais em uma sociedade de produtores individuais de mercadorias, que precisam dela como forma de mediação estatal, operando em oposição ao seu comportamento individual na sociedade civil. O homem abstrato da legalidade serve como contraponto necessário ao individualismo concreto do homem numa sociedade produtora de mercadorias. Isto Trotsky parece não compreender. Na realidade, ele mesmo não parte da mercadoria, objeto de análise fundamental para o pensamento marxista, pois como diz Pachukanis “a análise da forma do Sujeito deriva, em Marx, imediatamente da análise da forma da mercadoria”

145

. Sem partir da mercadoria não

é possível uma análise profunda do direito e, podemos dizer, é impossível uma compreensão 142

Ibid., p. 123.

143

Ibid., p. 182-183

144

TROTSKY, Leon. A Revolução Traída, op. cit., p 241.

145

Ibid., p. 135. 135

profunda do próprio marxismo, enquanto crítica radical ao capitalismo. Como já dito esta pode ser considerada a pedra toque para se averiguar a coerência com o pensamento marxista, e isto não por pouco, por diletantismo intelectual, mas por revelar o núcleo da relação social que condiciona todas as outras instâncias sociais em nosso modo de produção, a própria base geradora da consciência humana nesta etapa histórica. Na seara econômica a análise da mercadoria gera um problema análogo ao do desaparecimento do Estado e do direito, que sendo analisado torna ainda mais clara a limitação teórica de Trotsky: trata-se do desaparecimento da forma valor, a forma fantasmagórica assumida pelas coisas produzidas como mercadorias. O fetiche presente em cada mercadoria torna-se mais explícito naquela mercadoria que, com o desenvolver das trocas, passa a servir como expressão do valor de todas as outras. Nosso fascínio dirige-se para onde é mais visível o caráter místico de nossas relações sociais, para o dinheiro, que por isso, em geral, é mais analisado que as demais mercadorias. Por essa via indireta, que apenas representa o problema mais profundo da forma valor, é que Trotsky faz a análise da questão que na esfera econômica é análoga ao fim do direito e do Estado: “Na sociedade comunista, tanto o Estado como o dinheiro desaparecerão. O seu desaparecimento progressivo deve, pois começar sob o regime socialista. Só se poderá falar de vitória real do socialismo a partir do momento em que o Estado não seja mais que um semi-Estado e o dinheiro comece a perder a sua mágica força.”146 Concordamos inteiramente com a citação acima, conforme o próprio Marx, o Estado, o direito e o dinheiro hão de desaparecer no comunismo, fase superior do socialismo. Trata-se aqui, no entanto, de descobrir a profundidade da análise que sustenta tal afirmação de Trotsky. Cuida-se de averiguar, como já dito, se o desaparecimento do Estado e do direito representam para Trotsky o desaparecimento da forma jurídica em geral e, analogamente, se o desaparecimento do dinheiro representa o desaparecimento da própria forma valor. Trotsky continua: “O fetichismo do dinheiro só receberá o golpe de misericórdia quando o ininterrupto crescimento da riqueza social libertar os homens da sua avareza a respeito do minuto suplementar do trabalho e da sua humilhante inquietação quanto à quantidade de rações. Quando perder o seu poder de trazer a felicidade e de lançar o homem no vazio, o dinheiro se reduzirá a um meio de contabilidade cômoda para a estatística e para o plano. Como consequência, se viverá no futuro, provavelmente sem a necessidade desta espécie de aval. Mas, este desejo poderemos abandoná-lo aos nossos netos que não deixarão

146

TROTSKY, Leon. A Revolução Traída, op. cit., p. 103. 136

de ser mais inteligentes que nós.”147 Podemos perceber que ele concebe o fim do dinheiro, mas considera que ele “se reduzirá a um meio de contabilidade cômoda para a estatística e para o plano”. Ora, a manutenção do dinheiro como mero meio de contabilidade já implica na manutenção da forma valor, que só pode existir como forma de organização social em uma sociedade de produtores 148

de mercadorias

. Em uma sociedade em que a forma mercadoria tenha desaparecido, a

produção material libertar-se-á do jugo do trabalho abstrato, assim o surgimento de uma “administração das coisas” prescindirá da forma valor, já que as relações sociais aparecerão como tais, sem sua expressão reificada. Não haverá então o que se falar em dinheiro como meio de contabilidade, pois como Marx explica: “Não é por meio do dinheiro que as mercadorias se tornam comensuráveis. Ao contrário. Sendo todas as mercadorias, enquanto valores, trabalho humano objetivado, e, portanto, sendo em si e para si comensuráveis, elas podem medir seus valores, em comum, na mesma mercadoria específica e com isso transformar esta última em sua medida comum de valor, ou seja, em dinheiro. Dinheiro, como medida de valor, é forma necessária de manifestação da medida imanente do valor das mercadorias: o tempo de trabalho.”149 Manter o dinheiro como “meio de contabilidade” só é possível em uma sociedade baseada na troca de equivalentes, onde ainda exista a forma valor. No comunismo, onde “o ininterrupto crescimento da riqueza social libertar os homens da sua avareza a respeito do minuto suplementar do trabalho” também não sobreviverá o dinheiro, nem como uma abstração destinada ao plano contábil, pois este só existe como expressão da medida comum para a troca de mercadorias. Mesmo no socialismo, onde cada qual ainda receberá conforme seu trabalho, não é possível a existência do dinheiro, pois este não pode representar diretamente o tempo de trabalho: “A pergunta por que o dinheiro não representa diretamente o próprio 147

Ibid., p. 103-104.

148

“No seio de uma sociedade coletivista, baseada na propriedade comum dos meios de produção, os produtores não trocam seus produtos; o trabalho invertido nos produtos não se apresenta aqui, tampouco, como valor destes produtos, como uma qualidade material, por eles possuída, pois aqui, em oposição ao que sucede na sociedade capitalista, os trabalhos individuais já não constituem parte integrante do trabalho comum através de um rodeio, mas diretamente.” MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha, in Karl Marx e Friedrich Engels: Textos. Volume I. São Palo, AlfaÔmega, 1977, p. 231 149

MARX, Karl. O capital. Op. Cit., p. 87. 137

tempo de trabalho, de forma que, por exemplo, uma nota de papel represente x horas de trabalho, se reduz simplesmente à pergunta por que, na base da produção de mercadorias, os produtos do trabalho

precisam

representar-se

como

mercadorias,

pois

a

representação de mercadoria implica sua duplicação em mercadoria e mercadoria monetária. Ou por que o trabalho privado não pode ser tratado como seu contrário, trabalho diretamente social. Já tratei minuciosamente em outra parte, do utopismo superficial de uma “moeda trabalho”, com base na produção de mercadorias. Observaria ainda que, por exemplo, a “moeda trabalho” de Owen é tão pouco “dinheiro” como um bilhete de teatro.”150 Não se pode considerar dinheiro algo que não seja a própria expressão do valor de troca, a “administração das coisas” comunista, assim, dispensará a contabilidade, que se refere à medida do trabalho abstrato, o qual contabiliza, e não às coisas em si. Trotsky, no entanto, com seu foco no aumento do rendimento do trabalho, continua a tratar do dinheiro, defendendo e chegando até mesmo incentivar o próprio sistema produtor de mercadorias.. Ao invés de dedicar todos os esforços no desenvolvimento de uma administração planificada da economia que pudesse substituir a socialização a partir da forma valor, ele entende, já em 1936, que: “O papel do dinheiro na economia soviética, longe de ter se esgotado, tem de se desenvolver ainda profundamente. A época de transição entre o capitalismo e o socialismo, considerada na sua totalidade, exige, não na diminuição da circulação das mercadorias, mas o seu extremo alargamento (...) para ser coroada de êxito, não se concebe uma edificação socialista sem a integração, no sistema de planificação, do interesse pessoal imediato, do egoísmo do produtor e do consumidor, fatores estes que só poderão se manifestar-se utilmente se dispuserem desse meio habitual, seguro e sutil, o dinheiro. O aumento do rendimento do trabalho e o melhoramento da qualidade da produção são absolutamente impossíveis sem um padrão de medida que penetre livremente em todos os poros da economia, isto é, sem uma estável unidade monetária.”151 Ora, novamente as relações sociais de produção são preteridas pela questão do desenvolvimento das forças produtivas. Trotsky chega aqui a verdadeiramente defender a socialização com base no valor por causa de sua eficácia produtiva, à semelhança do que fazem os próprios capitalistas. Não seria problema admitir a necessidade de retomada da

150

Ibid., p. 87, nota 50.

151

TROTSKY, Leon. A Revolução Traída, op. cit., p. 104-105. 138

economia de mercado em uma fase difícil, como ocorreu na NEP, mas daí a dizer que “não se concebe uma edificação socialista sem a integração, no sistema de planificação, do interesse pessoal imediato, do egoísmo do produtor e do consumidor” parece-nos contrariar toda a possibilidade real de suprimir a economia mercantil instaurando uma “administração das coisas”. Trotsky, assim, também na seara econômica, não alcança a profundidade crítica de Marx. Revela sua limitação em sua obra ao não abordar o capitalismo a partir da mercadoria, e, além disso, ao dar exemplos que nos levam a concluir que não tem entendimento aprofundado sobre a parte mais radical da crítica erigida por Marx. Criticando o capitalismo e o modelo desenvolvido sob Stálin pode-se dizer que ele não postula o fim da forma valor e da forma jurídica em geral, mas se foca apenas em suas manifestações mais óbvias: o dinheiro e o Estado e direito “burgueses”, como se fosse possível existirem também em sua forma “não burguesa”. Colocada a crítica neste limite mais estreito, só resta rever o conteúdo da norma jurídica e não a forma jurídica em si, e assim a considerar o direito de propriedade como “direito burguês” e sua supressão como surgimento do modo de produção socialista, que ainda não se manifesta em sua plenitude por falta do desenvolvimento das forças produtivas. Deste modo, a análise trotskysta, apesar de ter dado um revigorado impulso ao marxismo revolucionário e construído uma importante crítica ao Stalinismo na época em que poucas vozes ousavam se levantar, não nos leva à crítica mais ampla e profunda do que se passou na URSS. Não se trata, afinal, da crítica radical das formas capitalistas, e muito menos de uma que possa clarificar as questões da transição socialista no que tange o essencial: o fim das categorias do valor como o Estado, o direito e o dinheiro. BIBLIOGRAFIA:

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140

A NOVA DOXA PUNITIVA DECORRENTE DO PROCESSO DE EXPANSÃO DO DIREITO PENAL: do Direito Penal do Inimigo ao controle biopolítico dos excessos no contexto de desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social THE NEW PUNITIVE DOXA UPCOMING FROM THE PROCESS OF EXPANSION OF PENAL LAW: from Penal Law of the Enemy to the biopolitical control of the excesses in the context of the State of Social Welfare. Maiquel A. Dezordi Wermuth, Doutor em Direito Público (UNISINOS), Professor dos Cursos de Direito da UNIJUÍ e UNISINOS, Professor do Mestrado em Direitos Humanos da UNIJUÍ

Resumo: O artigo analisa as mudanças pelas quais o Direito Penal passa na contemporaneidade, em decorrência de um processo de expansão punitiva que tem por objetivo dar conta da complexidade do fenômeno da criminalidade atual. Procura-se demonstrar que a nova doxa punitiva que se estabelece em decorrência deste processo expansivo é caracterizada por uma flexibilização/supressão de garantias penais típicas de um modelo de Estado Democrático de Direito. A teorização do Direito Penal do Inimigo cunhada por Günther Jakobs é utilizada como paradigma do novo modelo Direito Punitivo que surge nesse panorama. Diante disso, estabelece-se uma relação entre esses câmbios jurídicopenais e o contexto de desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social, com o objetivo de revelar os contornos biopolíticos da temática.

Palavras-chave: Direito Penal; expansão; Direitos Fundamentais; Estado de Bem-Estar Social; biopolítica.

Abstract: The present paper analyses the changes through which Penal Law goes nowadays, upcoming from a process of punitive expansion that has aims at dealing with the complexity of the current criminality phenomenon. It seeks for demonstrating that the new punitive doxa established from such expansion process is characterized by either making more flexible or the suppression of typical penal guaranties of a model of Democratic State of Law. The Enemy Penal Law theory coined by Günther Jakobs is used as a paradigm of a new model of Punitive Law that emerges in this perspective. Having that in mind, a relation is established between these penal juridical exchanges and the context of disruption of the State of Social Welfare, with the objective of revealing the biopolitical trends of the subject.

Key-words: Penal Law; expansion; Fundamental Rights; State of Social Welfare; Biopolitics.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O Direito Penal é o instrumento de gestão da “força” do Estado. Em um Estado Democrático de Direito, o Direito Penal tem por função conter essa força, controlá-la, atuando como uma espécie de “cápsula de contenção” da violência inerente ao estado de exceção, sempre pronta a irromper e esparramar-se por todos os lugares (FERRAJOLI, 1997; ZAFFARONI, 2007). Por outro lado, justamente em razão dessa sua natureza, o Direito Penal, em determinadas circunstâncias, pode se transformar em um instrumento de guerra e de violência, mesmo diante dos casos mais normais nos quais é chamado a intervir.

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No contexto de guerra global contemporâneo (HARDT; NEGRI, 2005), o Direito Penal parece cada vez mais inclinado nesse sentido. E, se o estado de exceção paulatinamente vem se transformando na regra no cenário político internacional (AGAMBEN, 2004, 2010), os reflexos desse processo fazem com que a nova doxa punitiva que se estabelece na contemporaneidade seja marcada justamente por essa indistinção conceitual entre Direito Penal e guerra, o que se revela a partir de algumas características que o Direito Punitivo passa a assumir. De fato, não se assiste à emergência de um “momento” de exceção e de ulterior retorno à lógica jurídica, mas sim a um processo de “normalização política” das dinâmicas securitárias teoricamente extraordinárias típicas da exceção. Isso é o que transforma o estado de exceção contemporâneo em algo peculiar, uma vez que, generalizado, ele representa uma contradição, tanto terminológica quanto jurídico-política. Com efeito, um estado excepcional projetado durante um tempo indeterminado e estendido ao conjunto dos espaços públicos e privados constitui um verdadeiro câmbio de regime político, de caráter mais autoritário – e também totalitário –, na medida em que tende a fulminar os controles e equilíbrios entre os poderes, outorgando ao Executivo a prioridade hegemônica. Em um contexto assim, o sujeito individual não é considerado enquanto cidadão, mas como “súdito” ou “vida nua” (AGAMBEN, 2010). E, nesse espaço de exceção “normalizada”, evidencia-se que não há apenas um Direito Penal da culpabilidade: há, também, um Direito Penal da luta, da periculosidade e da neutralização (DONINI, 2010) que assume, no estado de guerra global, posição central. Nesse rumo, o objetivo do presente artigo é contextualizar, em um primeiro momento, as mudanças pelas quais o Direito Punitivo passa na contemporaneidade, em decorrência de sua expansão, utilizando-se, para tanto, a teorização do Direito Penal do Inimigo cunhada por Günther Jakobs, de modo a estabelecer, em um segundo momento, uma relação entre esses câmbios e o contexto de desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social. A partir da insegurança que decorre desse fenômeno, busca-se averiguar e ilustrar os contornos biopolíticos da temática.

2 GÜNTHER JAKOBS E O DIREITO PENAL DA INIMIZADE

Em nível teórico, a distinção entre inimigos e cidadãos estabelecida pelo penalista alemão Günther Jakobs (2004; 2009) é sem dúvida a postura científica que melhor serve para a análise do estado d’arte das práticas punitivas no contexto ora delineado. Efetivamente, essa diferenciação entre amigos e inimigos decorre da compreensão de Jakobs de que os indivíduos que constituem uma ameaça ao sistema social não podem ser tratados como pessoas, mas sim “combatidos” como nãopessoas[1]. O penalista propõe, então, a adoção da dicotomia conceitual Direito Penal do Inimigo versus Direito Penal do Cidadão justamente para designar as concepções de autor das quais deve partir o Direito Penal no enfrentamento da criminalidade no contexto atual, sob a alegação de que, sem essa diferenciação, não existe outra alternativa para o combate a determinadas formas de delinquência, particularmente a criminalidade organizada e o terrorismo. Segundo Jakobs (2004, p. 6061),

el Derecho penal del enemigo es la regulación jurídica de la exclusión de los enemigos, la cual se justifica en tanto en cuanto éstos son actualmente no personas, y conceptualmente hace pensar en una guerra cuyo alcance, limitado o total, depende de todo aquello que se teme de ellos.

Na perspectiva do autor em questão (2009, p. 35), “um indivíduo que não admite ser obrigado a

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entrar em um estado de cidadania não pode participar dos benefícios do conceito de pessoa”[2], razão pela qual o papel do Direito Penal do inimigo consiste em eliminar o perigo representado pelos indivíduos (não-pessoas) que se encontram fora da ordem social estabelecida e não oferecem garantias de que voltarão a agir com fidelidade às normas por ela instituídas. Na perspectiva em tela, portanto, o inimigo não é apenas desprovido do estatuto de cidadão, mas também de “pessoa”, perdendo, consequentemente, os direitos e garantias que em sua confrontação com o sistema penal deveriam ser-lhe assegurados. Logo, no esquema proposto por Jakobs, verifica-se uma alteração substancial das funções do Direito Penal: abandona-se, em parte, o paradigma clássico que relega ao Direito Punitivo a função de tutela de bens jurídicos, configurando-o, em razão disso, como um estatuto de garantias dos acusados em face do poder punitivo estatal (Magna Carta do réu), para estabelecer-se um novo paradigma, segundo o qual há um “outro” Direito Penal, responsável pela tutela não de bens jurídicos, mas dos “cidadãos” em face dos “inimigos”. Aqui, as garantias são abandonadas em nome da “urgencia de vencer una lucha, en defensa del Estado, de las instituciones y de los particulares, contra quienes se han empeñado en esa lucha.” (DONINI, 2010, p. 128, grifos do auto). Na lógica binária de Jakobs não há matizes entre o amigo e o inimigo. Essas categorias traduzem lógicas inconciliáveis: “una de diálogo y la otra de guerra, una respetuosa de todos los derechos fundamentales y políticos, la otra no.” (DONINI, 2010, p. 131). Em que pese isso, a teorização de Jakobs parece ocupar um lugar de destaque no debate hodierno sobre o Direito Penal. Com efeito, passou-se a estabelecer uma relação diametralmente oposta entre garantias e segurança, sustentandose a tese de que o endurecimento das leis e medidas punitivas é imprescindível para aumentar a segurança dos cidadãos, ainda que à custa do sacrifício dos direitos humanos e das garantias penais e processuais dos acusados pela prática de delitos que colocam em risco a população como um todo. Como salientaGracia Martín (2003, p. 58, grifos do autor),

el Derecho penal moderno tiene ante todo una dimensión clara y manifiestamente cuantitativa que se traduce en una importante ampliación de la intervención penal y, por ello, en un relevante incremento de su extensión actual en comparación con la que tenía en el momento histórico precedente. Se observa además por algunos, que esta ampliación tiene el aspecto de una tendencia que parece no encontrar límites. Por ello, son muchos los autores que, al evaluar la trascendencia del Derecho penal moderno para el conjunto del sistema consideran que, en el momento histórico actual, cabría hablar de la existencia de un movimiento de expansión del Derecho penal.

Esse processo de expansão do Direito Penal é responsável pelo surgimento de um consenso no sentido de que a resposta punitiva deve ser dada de modo mais eficiente e rápido, limitando ou suprimindo garantias substanciais e processuais estabelecidas a partir da tradição do Direito Penal liberal. É por isso que as características mais marcantes do Direito Penal do Inimigo são justamente um amplo adiantamento da punibilidade, a adoção de uma perspectiva fundamentalmente prospectiva, um incremento notável das penas e a flexibilização – quando não a supressão – de garantias materiais e processuais individuais. Nesse modelo, é cada vez maior a instrumentalização do Direito Penal no sentido de evitar que os riscos se convertam em situações concretas de perigo. Como refere Brandariz García (2007, p. 260) “ante la alta lesividad de determinados comportamientos criminales, se asume que la mejor minimización de sus efectos reside en la constante vigilancia preventiva, antes que en la eventual eficácia de la aplicación de las sanciones.” Assim, no lugar de um Direito Penal que reacionava a posteriori contra um feito lesivo individualmente delimitado, surge um Direito Penal de gestão punitiva dos riscos em geral. Daí a afirmação de Jakobs (2007) no sentido de que, no Direito Penal do Inimigo, a pena se dirige à

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segurança em face de fatos futuros e não de atos já praticados. Garapon (2010) destaca, a propósito, que não é mais o presente o tempo de referência do Direito Penal, mas o futuro, um futuro antecipado e planejado nas suas mais negras possibilidades. Efetivamente, o Direito Penal do Inimigo é um direito preocupado com o futuro, uma vez que busca a neutralização de perigos, e não com o passado, pois do passado ocupa-se o Direito Penal do Cidadão, cujo escopo é a reafirmação da vigência de uma norma. Neste contexto, se uma lei é transgredida, o dano objetivo a que visa o Direito Penal contemporâneo é um suposto resultado de uma má avaliação do risco, de uma falta de vigilância. E essa nova penalogia se funda sobre a criminologia atuarial que, baseada em uma completa descontextualização e a-historicização dos eventos, consiste em encontrar as características recorrentes de um comportamento humano para melhor prevê-lo (GARAPON, 2010). Como assevera Garland (2005, p. 52, grifos do autor),

las teorías que ahora moldean el pensamiento y la acción oficial son teorías del control, de diversas clases, que consideran el delito como un problema, no de privación, sino de control inadecuado. Controles sociales, controles situacionales, autocontroles: éstos son ahora los temas dominantes de la criminologia contemporánea y de las políticas de control del delito a las que han dado origen.

Verifica-se que, ao contrário das teorias criminológicas que viam no delito um processo de socialização insuficiente e que, portanto, reclamavam do Estado a ajuda necessária para aqueles que haviam sido privados de provisões econômicas, sociais e psicológicas necessárias para uma conduta social respeitosa à lei, as teorias do controle partem de uma visão pessimista da condição humana, ao suporem que os indivíduos são atraídos por condutas egoístas, antissociais ou delitivas a menos que sejam inibidos por controles sólidos e efetivos (GARLAND, 2005). Na perspectiva de Brandariz García (2007, p. 34-35), a contemporaneidade assiste a uma superação dos pressupostos, substancialmente reabilitadores-normalizadores, de intervenção sobre as “causas” da criminalidade, sobre os quais o Estado Social e suas formas de articulação de poder haviam sustentado as dinâmicas de controle, para dar espaço a uma “sociedade de controle” na qual o espaço de exercício de poder é completamente biopolítico. Pérez Cepeda (2007) salienta, a propósito, que se vive na contemporaneidade uma autêntica “cultura preventiva”, na qual a prevenção acompanha o risco como uma sombra, desde os âmbitos mais cotidianos até os de maior escala, cujo exemplo maior são justamente as chamadas “guerras preventivas”. Este adiantamento da intervenção do Direito Penal ao estágio prévio à lesão do bem jurídico é indiscutivelmente um dos traços mais marcantes da nova doxa punitiva. Na lição de Pérez Cepeda (2007, p. 313), configura-se uma legislação penal na qual “los comportamientos que se van a tipificar no se consideran previamente como socialmente inadecuados, al contrario, se criminalizan para que sean considerados como socialmente desvalorados.” Com isso, há uma revitalização da ideia do Direito Penal enquanto força conformadora de costumes, ou seja, passa-se a ver no Direito Penal um mecanismo de orientação social de comportamentos. E, para adiantar a intervenção punitiva, são utilizadas estruturas típicas de mera atividade, ligadas aos delitos de perigo abstrato, em detrimento de estruturas que exigem um resultado material lesivo (perigo concreto). Paralelamente à antecipação da intervenção punitiva, verifica-se um desapreço cada vez maior pelas formalidades e garantias penais e processuais penais características do Direito Penal liberal, que passam a ser consideradas como “obstáculos” à eficiência que se espera do sistema punitivo diante da

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insegurança da contemporaneidade. Isso permite a afirmação de que o espaço no qual se situa o Direito Penal do Inimigo é o do estado de exceção, no qual situações excepcionais dão origem a regras jurídicas excepcionais inspiradas na lógica da guerra, cuja especificidade reside justamente na suspensão de direitos fundamentais, a qual faz com que “los sujetos sometidos a las intervenciones pierdan al menos algunas prerrogativas propias de los derechos de ciudadanía o de los derechos del hombre.” (DONINI, 2010, p. 159). De fato, se na lógica da inimizade o processo penal não tem por finalidade a imposição de uma pena, mas sim a realização da vingança, para que esse objetivo – vingança – seja levado a cabo, não se faz necessária a observância de garantias. Por isso, a partir do fenômeno expansivo vivenciado pelo Direito Penal, além do incremento dos comportamentos elevados à categoria delitiva por meio da antecipação da intervenção punitiva ao estágio prévio à efetiva lesão dos bens jurídicos, verifica-se um processo de flexibilização das garantias político-criminais materiais e processuais, mediante o desrespeito ao princípio da legalidade penal, à redução das formalidades processuais, à violação ao princípio da taxatividade na elaboração dos tipos penais e à violação ao princípio da culpabilidade. Essa relativização/supressão de garantias configura um verdadeiro “calcanhar de Aquiles” da postura teórica de Jakobs. No Direito, ao menos em um ambiente de Estado Democrático, nem sempre os fins justificam os meios. Quer dizer: não se questiona que os cidadãos de um Estado têm direito à segurança, mas o Estado em questão não está legitimado a atuar de qualquer maneira com o fim de satisfazer esse direito. Afinal, a aplicação de um modelo de Direito Penal que está à margem do Estado de Direito a um indivíduo qualificado como inimigo é absolutamente impossível sem que se infrinjam direitos fundamentais do ser humano, direitos esses que indubitavelmente constituem limites instransponíveis ao jus puniendi estatal[3]. Desconsiderar esse fato seria como interromper toda a trajetória até então percorrida pelas Ciências Penais, desde a famosa obra de Beccaria (1974), rumo à humanização do Direito Penal, para seguir um caminho obscuro oposto a todo o pensamento da Ilustração. E aqui – sem menosprezar o esforço teórico do autor – Jakobs não se apresenta como um timoneiro no qual se possa depositar toda a confiança para um câmbio paradigmático tão importante. Como adverte Muñoz Conde (2005, p. 133), os direitos e garantias fundamentais próprias do Estado de Direito, essencialmente as de caráter penal material (como os princípios da legalidade, da intervenção mínima e da culpabilidade) e processual penal (direito à presunção de inocência, à tutela judicial, à não produção de provas contra si mesmo, etc), são pressupostos irrenunciáveis da própria essência do Estado de Direito, de modo que “si se admite su derogación, aunque sea en casos puntuales extremos y muy graves, se tiene que admitir también el desmantelamiento del Estado de Derecho.” Afinal, a partir deste momento, o ordenamento jurídico se converte em um ordenamento “puramente tecnocrático e funcional, sin ninguna referencia a un sistema de valores, o, lo que es peor, referido a cualquier sistema, aunque sea injusto, siempre que sus valedores tengan el poder o la fuerza suficiente para imponerlo.” Nessa lógica, o Direito como um todo se converte em um puro direito de Estado, “en el que el derecho se somete a los interesses que en cada momento determine el Estado o las fuerzas que conviene al Estado, que es, al mismo tiempo, lo que perjudica y hace el mayor daño posible a sus enemigos.” Nesse sentido, não se pode desconsiderar que, a partir da aplicação de penas draconianas, do abuso do Direito Penal – sendo empregado além do que permite seu caráter subsidiário (ultima ratio) –, da desconsideração de direitos fundamentais do imputado no processo penal, é possível uma luta relativamente “eficaz” contra o “inimigo”. Mas o problema radica no fato de que, com isso, “se está abriendo una puerta por la que puede colarse sin darnos cuenta un Derecho penal de cuño autoritario, un Derecho penal del y para el enemigo, tan incompatible con el Estado de Derecho como lo son las legislaciones excepcionales de las más brutales dictaduras.” (MUÑOZ CONDE, 2005, p. 135). O Estado de Direito, a partir da lógica de Jakobs, torna-se inviável, uma vez que sempre pode ser suspenso a critério do soberano que, nessa perspectiva, por razões de necessidade ou emergência, estaria legitimado a designar como inimigo quem considerar oportuno e na extensão que lhe permitir o espaço de poder de que dispõe (ZAFFARONI, 2007). Por outro lado, a lógica amigo/inimigo no Direito Penal, orientadora dessa nova lógica punitiva, traduz um oximoro: sua legitimação representa a negação do próprio Direito Penal, uma vez que a figura do inimigo pertence à lógica da guerra, que é justamente a negação do direito, da mesma forma

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que este é a negação da guerra. Zaffaroni (2007, p. 160, grifos do autor) adverte, a propósito, que “o conceito jurídico de inimigo só é admissível em um Estado absoluto.” Assiste, portanto, razão a Ferrajoli (2007, p. 12) quando escreve que o Direito Penal – ou o Direito, tout court – nada mais é do que a negação do inimigo, uma vez que ele “es el instrumento, el medio por el que las relaciones de convivencia pasan del estado salvaje al estado civil y cada uno es reconocido como persona.” Nesse rumo, “la pena es la negación de la venganza, del mismo modo que el derecho en general es la negación de la guerra.” O Direito Penal do Inimigo, assim, configuraria, na perspectiva de Ferrajoli (2007, p. 7), “una perversión del derecho penal, es decir, de prácticas punitivas y represivas [...] que se cubren con el manto del derecho penal y son, por el contrario, su negación.” Essa afirmação decorre da constatação, pelo autor, do fato de que entre a mera descrição teórica e a legitimação efetiva de um modelo tal de Direito Penal medeia um espaço que acaba sendo preenchido por práticas punitivas que contrastam flagrantemente com o modelo normativo do Direito Penal, em nome da busca por eficiência. Trata-se do espaço nebuloso – senão negro – da exceção. Efetivamente, o Direito Penal de garantias é inerente ao Estado de Direito, dado que as “garantias processuais penais e as garantias penais não são mais do que o resultado da experiência de contenção acumulada secularmente”, razão pela qual elas “constituem a essência da cápsula que encerra o Estado de polícia, ou seja, são o próprio Estado de direito.” Logo, em um Estado de direito, o Direito Penal “não pode deixar de esforçar-se em manter e aperfeiçoar as garantias dos cidadãos como limites redutores das pulsões do Estado de polícia, sob pena de perder sua essência e seu conteúdo.” Caso não aja assim, o Direito Punitivo serviria para “liberar poder punitivo irresponsavelmente e constribuiria para aniquilar o Estado de direito, isto é, se erigiria em ramificação cancerosa do direito do Estado de direito.” (ZAFFARONI, 2007, p. 173, grifos do autor). Convém referir que, na ótica de Ferrajoli (2007, p. 8), o Direito Penal do Inimigo não representa, no entanto, nenhuma novidade teórica. Ele não traduz outra coisa senão “el viejo esquema del ‘enemigo del pueblo’ de estaliniana memoria y, por otra parte, el modelo penal nazi del ‘tipo normativo de autor’.” A particularidade reside no fato de que o Direito Penal do Inimigo apresenta uma “abierta identificación con el esquema de la guerra, que hace del delincuente y del terrorista un enemigo a suprimir y no a juzgar.” Ao utilizar-se do USA Patriot Act como modelo emblemático de um modelo de Direito Penal assentado na lógica na inimizade, o autor sustenta que um dos aspectos mais característicos – e também vergonhosos – desse modelo é a cada vez maior utilização da tortura com o objetivo de obter confissões por parte dos denominados “inimigos combatentes” e, reflexamente, criar intimidação geral. Ferrajoli (2007, p. 9) chama a atenção para o fato de que, neste modelo, a tortura deixa de ser ocultada, negada, e passa a ser utilizada de modo ostensivo, como meio de intimidação e mortificação das pessoas e de difusão do terror. Segundo Donini (2010, p. 171), a discussão sobre essas medidas configurarem ou não um verdadeiro Direito Penal é uma questão de definição, dado que elas os são em sua substância punitiva, mas não nas garantias e na forma, e “una pena sin derecho no es Derecho penal, sino violencia”. Para o referido autor, hoje, como nos campos de concentração nazistas, é possível verificar a presença de instrumentos administrativos e organizativos secretos, a ausência de controles jurisdicionais, o clima de guerra difusa, a manutenção de um estado de exceção, a construção de uma ou várias figuras de “aliens” ou “inimigos” verdadeiros ou presumidos, que convertem em realidade um quadro no qual as não pessoas encontram pleno reconhecimento legal. A figura do homo sacer, desvelada na obra agambeniana (2010), parece ser a que melhor se amolda ao propósito de ilustrar a posição ocupada por determinados indivíduos, aos quais é relegada a alcunha de “inimigos”, na contemporaneidade. Com efeito, a linguagem maniqueísta da proposta teórica de Jakobs pressupõe que não só a guerra, mas também todas as violências exercidas pelos vencedores nos territórios ocupados passem a ser chamadas de “lutas contra o terrorismo”, ao passo que todo aquele que discorda dos métodos desta luta passa a ser etiquetado e desqualificado como terrorista e/ou conivente com o terrorismo, contra quem qualquer medida é legitimada. Afinal,

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la etiqueta “terrorismo”, como sinónimo de pulsión homicida irracional, sirve para caracterizar al enemigo como no-humano, no-persona, que no merece ser tratado con los instrumentos del derecho ni con los de la política. Es el vehículo de una nueva antropología de la desigualdad, marcada por el carácter tipológicamente criminal, demencial e inhumano, associado al enemigo, y, de este modo, también de una nueva y radical asimetría entre “nosotros” y “ellos”. (FERRAJOLI, 2007, p. 11-12).

Isso representa uma distorção da linguagem que traduz um dos sintomas ameaçadores de um possível totalitarismo internacional justificado por uma espécie de estado de sítio global permanente – ou guerra global perene. E as categorias dicotômicas ora analisadas traduzem outro paradoxo: na medida em que se propõem a compreender e a enfrentar fenômenos de grande complexidade, elas simplificam o discurso a ponto de chegar à oposição elementar Bem versus Mal (FERRAJOLI, 2007). Além disso, convém salientar que essa simplificação se opera sempre como fator de autolegitimação por meio da figura do inimigo, seja o inimigo exterior – que legitima a guerra externa, preventiva e virtualmente permanente -, seja o inimigo interno – suspeito de conivência com aquele, de modo a legitimar medidas de emergência e restritivas da liberdade de todos (FERRAJOLI, 2007). Um grave problema que se apresenta nesse contexto é que o esquema binário amigo/inimigo pode se ampliar em múltiplas direções, como, por exemplo, em relação aos pedófilos, aos imigrantes irregulares, aos traficantes de drogas, etc. Isso porque, como destaca Díez Ripollés (2007, p. 172), a teorização de Jakobs representa um novo e significativo progresso na consolidação de atitudes sociais de incompreensão da delinquência, de estranhamento social do delinquente que, a partir de agora, se vê, em certas circunstâncias, privado de seu caráter de cidadão e até mesmo de pessoa, para converter-se em mero inimigo da sociedade – ou, na léxica de Agamben (2010), em mero homo sacer. Em outras palavras: Jakobs acaba por outorgar cidadania jurídica a fenômenos de exclusão social radical, bem como de luta e guerra, sem nenhuma preocupação em definir os limites de legitimidade das categorias introduzidas (DONINI, 2010). Com isso, o Direito Penal do Inimigo subverte a lógica segundo a qual ao Direito Penal compete punir determinados tipos de “ação” e não determinados tipos de “pessoas”, ou seja, segundo a qual as pessoas são castigadas pelo que “fazem ou deixam de fazer” e não por aquilo que “são”. Com efeito, no Direito Penal do Inimigo a predeterminação legal e a averiguação judicial do fato punível cedem lugar à identificação do inimigo, que inevitavelmente, ao não estar mediada pela prova de atos específicos de inimizade, se resolve na identificação e na captura de meros suspeitos. Isso significa dizer que, como regra,

el enemigo debe ser castigado por lo que es y no por lo que hace. El presupuesto de la pena no es la realización de un delito, sino una cualidad personal determinada en cada ocasión con criterios puramente potestativos como los de “sospechoso” o “peligroso”. Ni sirven pruebas sino diagnosis y prognosis políticas. (FERRAJOLI, 2007, p. 13).

Com efeito, o Direito Penal passa a ser estruturado a partir da “pessoa” do delinquente e não a partir do “fato delituoso cometido”, o que representa uma nova e reforçada legitimação de um modelo de Direito Penal de autor, já que o ponto de referência fundamental na hora de distinguir entre as duas formas de intervenção penal propostas por Jakobs (Direito Penal do Inimigo e Direito Penal do

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Cidadão) passa a ser uma atitude persistente de desapego, de distanciamento, até a ordem sociojurídica dentro da qual o indivíduo se desenvolve. O efeito ampliatório reside aqui, pois não são mais necessárias a contumácia no delito, a habitualidade ou a reincidência delitivas. Não desconsiderando o fato de que estas sejam condições frequentes para considerar-se alguém como inimigo, o peculiar agora é que basta uma atitude permanente de desapreço pela ordem jurídica e a disponibilidade em infringi-la. Zaffaroni (2007, p. 69, grifos do autor) refere que a sucessão de inimigos em âmbito planetário “aumenta a angústia e reclama novos inimigos para acalmá-la, pois quando não se consegue um bode expiatório adequado nem se logra reduzir a anomia produzida pela globalização, que altera as regras jogo, a angústia se pontecializa de forma circular.” Como consequência, o Direito Penal de autor resulta agora decisivamente potenciado mediante essa transcendente ampliação dos sujeitos submetidos ao novo modelo de Direito Penal (DÍEZ RIPOLLÉS, 2007). Em síntese, portanto, pode-se asseverar, de acordo com Donini (2010, p. 140, grifos do autor), que o Direito Penal do Inimigo, enquanto Direito Penal de autor, se apresenta como “um Derecho penal no de la culpabilidad, ni de la retribución, sino de la peligrosidad, de la prevención y del ‘estigma’.” Em grande medida, esse ressurgimento de um modelo de Direito Penal de autor pode ser compreendido como uma consequência inafastável da derrocada do ideal da reabilitação enquanto função da pena. Como assevera Garapon (2010, p. 118), na contemporaneidade a pena não tem mais a ambição de reabilitar os criminosos. É por isso que o autor (2010) refere que o modelo atual é caracterizado por uma criminologia do fim da história, que perdeu toda a esperança de mudar o mundo, mas que demanda aos indivíduos apenas adaptação. Diferentemente do modelo disciplinar – que era ao mesmo tempo segregativo e assistencialista – o modelo atual repousa sobre um modelo adaptativoeficientista. O controle preventivo não tem outro propósito além de impedir a ocorrência do evento criminoso. E, em razão disso, “toutes les perspectives d’amélioration des conditions de vie, de transformation de l’individu sont abandonnées, comme des chimères peut-être mais surtout comme des données non mesurables et donc aléatoires, sujettes toujours à discussion.” (GARAPON, 2010, p. 136). Referida mudança no pensamento criminológico é acompanhada da repristinação da “tese da escolha racional”, segundo a qual o crime é concebido como um problema de indisciplina, de falta de autocontrole ou de controle social deficiente:

el modelo da la elección racional considera los actos delictivos como una conducta calculada que intenta maximizar los benefícios, como consecuencia de un proceso simple de elección individual. Este modelo representa el problema del delito como una cuestión de oferta y demanda, en el marco de la cual el castigo opera como un mecanismo de establecimiento de precios. Considera a los delincuentes como oportunistas racionales o delincuentes profesionales cuya conducta es disuadida o desinhibida por la puesta en marcha de desincentivos, un enfoque que hace da las penalidades disuasivas un mecanismo evidente de reducción del delito. (GARLAND, 2005, p. 220).

O sucesso do ressurgimento dessas teses – que desde há muito se acreditavam superadas no âmbito das discussões jurídico-penais – pode ser explicado a partir da ampliação da categoria “inimigo” em múltiplas direções, o que decorre de um processo de “vampirização” dos discursos gestados para o enfretamento à macrocriminalidade, que acabam sendo “adaptados” a outros setores, notadamente aqueles espaços nos quais ainda se observavam “vácuos” legislativos e/ou carências de regulamentação. É frequente, na contemporaneidade, a utilização de institutos gestados para o enfrentamento a formas especiais de delinquência – como o terrorismo e o crime organizado – no discurso voltado à criminalidade clássica/tradicional, notadamente nos delitos relacionados ao patrimônio. É inegável que as reformas legislativas levadas a cabo nos últimos anos em diversos

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países – inclusive no Brasil – adotam institutos típicos de um Direito Penal de guerra para situações normais, sendo, no caso brasileiro, o Regime Disciplinar Diferenciado para o cumprimento da pena privativa de liberdade – instituído pela Lei nº 10.792/2003[4], que alterou a Lei de Execuções Penais – talvez o melhor exemplo desse processo. Essa vampirização, na ótica de Díez Ripollés (2007, p. 149), decorre de uma série de equiparações conceituais equivocadas que, “basándose en la equivocidad de ciertos términos, tratan como realidades idénticas unas que presentan caracteres muy distintos e, incluso contrapuestos.” Nesse contexto, convencionou-se, por exemplo, que a criminalidade dos socialmente excluídos constitui “ladimensión no tecnológica de la sociedade del riesgo” (DÍEZ RIPOLLÉS, 2007, p. 149, grifos do autor), o que justifica, em boa parte, o alastramento exitoso, por todo o mundo, dos discursos repressivistas do tipo “lei e ordem”, gestados para enfrentar uma realidade muito específica, qual seja, a microcriminalidade urbana nova-iorquina no início da década de 1990, e exportados a diversos países na condição de “panaceia universal” para solucionar o problema da delinquência. Olvida-se, aqui, que

equiparar los riesgos derivados del uso de las nuevas tecnologias con aquellos assentados en la vida cotidiana como consecuencia de la creciente presencia de bolsas de desempleo y marginación social, supone aludir a dos fuentes de riesgo radicalmente distintas en su origen, agentes sociales que las activan, naturaleza objetiva y subjetiva de los comportamientos, y consecuencias nocivas producidas. Su vinculacion, más allá, de que pueden ambas dar lugar a conductas delictivas, se sustenta únicamente en la amplitude semántica del término riesgo, pero no parece estar en condiciones de rendir frutos analíticos. (DÍEZ RIPOLLÉS, 2007, p. 151-152).

Nesse ponto é que se pode desfazer o nó górdio envolvendo a questão de como se dá esse processo de vampirização: trata-se de uma consequência inafastável do desmantelamento do modelo de Estado assentado na lógica do Bem-Estar Social. É com o que se ocupa o tópico que segue.

3 O DESMANTELAMENTO DO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL[5] E A VAMPIRIZAÇÃO DOS DISCURSOS REPRESSIVISTAS GESTADOS PARA O COMBATE À MEGACRIMINALIDADE

O Welfare State – cujo desenvolvimento ocorreu fundamentalmente no século XX, em que pese suas bases remontarem à segunda metade do século XIX a partir da emergência na arena política e social das grandes massas de trabalhadores despossuídos[6]– representou um compromisso diferenciado entre capitalismo, instituições políticas e força de trabalho, em consonância com a produção em massa e a grande indústria. Esse compromisso requereu da classe trabalhadora a aceitação da lógica do lucro e do mercado como eixos norteadores da alocação de recursos do sistema de trocas internacionais e das mudanças tecnológicas. Por outro lado, exigiu do capital a defesa de padrões mínimos de vida, tendo por requisitos o pleno emprego e a renda real, tudo isso com a mediação estatal. Com isso, o Welfare State, por um lado, retirou “do campo da luta de classes o conflito político, através da satisfação das necessidades da classe operária e da promoção dos meios para seu atendimento de forma coletiva” e, de outro, propiciou uma “maior regularidade ao processo de produção, afastando-o dos conflitos na produção, dando uma maior estabilidade à economia através da

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desconexão entre mudanças na demanda efetiva e no emprego.” (LEAL, 1990, p. 8). Este modelo de Estado permitiu um novo tratamento da questão social, que deixou de ser compreendida como um “caso de polícia” e passou a ser tratada como um “caso de políticas públicas (sociais)” voltadas ao enfrentamento dos problemas gerados pela escassez (BOLZAN DE MORAIS, 2008). Nessa perspectiva, pode-se falar em uma espécie de “divisão de tarefas” entre o Estado Social e o seu aparato repressivo na gestão principalmente do excesso da força de trabalho: “nem toda população desempregada cai na rede repressiva da penalidade. Parte dela é ‘gerida’ com medidas de welfare e assistência social.” (DE GIORGI, 2006, p. 51)[7]. Portanto, o Estado-Providência exprime a ideia de substituição da incerteza da providencia religiosa pela certeza da providência estatal. E isso é um sucedâneo do processo de laicização política moderna. “É, nesse sentido, o Estado que finaliza sua secularização, transferindo para suas prerrogativas regulares os benefícios aleatórios que apenas o poder divino era suposto poder dispensar. [...] Aos acasos da caridade e da providência, sucedem-se as regularidades do Estado.” (ROSANVALLON, 1997, p. 22). Em síntese, Bolzan de Morais (2005, p. 18) afirma que um aspecto que assume grande importância diante deste quadro evolutivo é o fato de que o caráter assistencial (ou caritativo) da prestação de serviços pelo Estado desaparece, fazendo com que esses serviços sejam compreendidos enquanto direitos próprios da cidadania (e, portanto, inerentes ao pressuposto da dignidade da pessoa humana), “constituindo, assim, um patrimônio do cidadão, aqui, ainda, tido como aquele que adquire tal característica em razão de sua relação de pertinência a uma determinada comunidade estatal aos moldes tradicionais do Estado”. O fato é que o Estado de Bem-estar Social passou por significativas mudanças ao longo dos tempos. Bolzan de Morais (2008, p. 179) assevera que é possível dividir a sua história em duas grandes fases. A primeira fase, que vai do surgimento até a consolidação doWelfare State, é marcada pelo “aprofundamento de mecanismos de intervenção e alargamento de seus conteúdos.” A segunda fase, que emerge a partir da década de 1970, é marcada pela crise do referido modelo, ou seja, pelo “esgotamento de suas estratégias ante o início da crise da matriz energética, o desenvolvimento tecnológico e a transformação da economia capitalista”, além da “transição da tradicional questão social para a novíssima questão ambiental e seus consectários – das carências locais para os riscos globalizados.” O Estado Protetor depara-se então com suas próprias insuficiências e com transformações sociais e econômicas que não estava preparado para enfrentar. Fala-se, então, em uma “crise estrutural” do Estado, que se refere “às condições – ausência delas – de e para o Estado Social continuar mantendo e aprofundando seu projeto includente.” (BOLZAN DE MORAIS, 2008, p. 187). O fato é que, nesse contexto, os ataques neoliberais ao Estado de Bem-Estar culminaram na hipertrofia do “Estado Penal”, que se volta essencialmente contra as camadas da população outrora beneficiárias das políticas de bem-estar. Em um contexto tal, o controle penal não mais se dirige apenas a indivíduos concretos, mas também se projeta intencionalmente sobre sujeitos sociais, ou seja, sobre grupos que passam a ser considerados “grupos de risco”, na medida em que o próprio controle adota formas de cálculo e gestão do risco que impregnam todos os seus dispositivos de execução. Tal pensamento leva Brandariz García (2007, p. 36) a afirmar que,

en suma, se tiende a adoptar una lógica más de redistribución que de redución del riesgo, que era el objetivo básico en la etapa anterior, y que hoy se asume como inabordable, aunque sólo sea porque se normaliza la existencia de segmentos sociales permanentemente marginalizados, excedentarios, que son objeto cada vez menos de políticas de inclusión y cada vez más de políticas de puro control excluyente.

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De fato, com a passagem de um modelo de sociedade amparada pelo Estado Social solidário à sociedade de risco securitário contemporânea, o medo e a insegurança tornam-se companhia indissociáveis do indivíduo. Assim, “para proteger-se do risco natural ou criado a nova ordem é a segurança” e, “na dúvida, na ausência de um sistema de definição, controle e gestão dos riscos, erigese a segurança como máxima.” (BOLZAN DE MORAIS, 2008, p. 193). Evidencia-se, porém, que boa parte desta insegurança decorre justamente do processo de globalização econômica, que se coloca como o contraponto das políticas do Welfare State, visto que representa uma lógica altamente concentradora, responsável pela exclusão de grandes contingentes populacionais do mundo econômico, pelo desemprego e pela precarização do mercado de trabalho. Pretende-se “remediar com um ‘mais Estado’ policial e penitenciário o ‘menos Estado’ econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países, tanto do Primeiro como do Segundo Mundo.” (WACQUANT, 2001, p. 7). Como resultado, poucos governos ainda aspiram a administrar o ciclo econômico. De Giorgi (2006) observa, a propósito, que o capital deixa de ser apenas transnacional (móvel, capaz de expandir-se além das fronteiras dos Estados) e passa a ser global, criando um espaço de valorização sem confins no qual não há falar em fronteiras, tampouco em instituições nacionais soberanas e muito menos em delimitações territoriais de poder. Efetivamente, a estabilidade cada vez mais se esvai e o grau que os Estados acreditam poder influir no bem-estar por meio da sua intervenção é bastante limitado. O Estado perde o poder que havia acumulado nos anos pós-guerra em favor do mercado e de diferentes formas de cooperação internacional. A integração dos mercados financeiros exige uma maior disciplina financeira dos governos de forma que estes possam garantir aos mercados uma certa estabilidade financeira. A ameaça que subjaz a isso é uma possível emigração do capital para outra parte. A integração da produção proporciona melhores opções de mobilidade para as empresas: se consideram que a pressão fiscal ou outras obrigações resultam excessivas, podem estabelecer-se em outra parte. Em um contexto tal, os ganhos da produtividade são obtidos à custa da degradação salarial, da informatização da produção e do subsequente fechamento dos postos de trabalho convencional, o que resulta em uma espécie de simbiose entre a marginalidade econômica e a marginalidade social. Efetivamente, uma das principais consequências da globalização, apontada por Pérez Cepeda (2007), é justamente o surgimento de um “mundo mercantil” onde as pessoas pertencem ou não a uma única classe, qual seja, a classe consumidora. Bauman (1999) atribui dita polarização social em consumidores/não consumidores ao fato de que, ao contrário da sociedade predecessora, qual seja, a sociedade moderna, a sociedade da segunda modernidade – usando-se a classificação de Ulrich Beck (2010) – não engaja seus membros como “produtores” ou “soldados”, visto que ela prescinde de mãode-obra industrial em massa ou de exércitos recrutados, conforme a clássica lição de Melossi e Pavarini (2010) que, ao abordarem as relações entre cárcere e fábrica, denunciaram o fato de que aquele é incumbido pelo Estado pela gestão dos vários momentos da formação, produção e reprodução do proletariado de fábrica, de modo a garantir ao capital uma força de trabalho que pudesse facilmente adaptar-se ao regime de vida na fábrica e produzir, reflexamente, a cota máxima de mais-valia extraível em determinadas circunstâncias[8]. Pelo contrário, na contemporaneidade o (des)engajamento dos indivíduos na sociedade se dá na condição de consumidores. Assim, a maneira por excelência da sociedade atual moldar seus membros é ditada pela capacidade destes em desempenhar esse papel. Segundo Ianni (1998, p. 2324), o consumismo se transforma em “um exercício efetivo de participação, inserção social ou mesmo de cidadania”, e o cartão de crédito transforma-se “de fato e de direito, no cartão de identidade e cidadania de muitos, em nível nacional e mundial.” Além disso, deve-se levar em conta que, na realidade contemporânea, com o advento das novas tecnologias de produção, prescinde-se de grandes contingentes de mão-de-obra que, de um momento para o outro, tornaram-se obsoletos. Com isso, são inúmeros os trabalhadores que se transformaram em “corpos supérfluos”[9] absolutamente disfuncionais para o sistema produtivo, eis que não suficientemente qualificados para operar estas novas tecnologias ou porque sua força de trabalho

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tornou-se de fato absolutamente desnecessária. E essa negação do acesso ao trabalho exclui da cidadania massas crescentes de sujeitos. Segundo De Giorgi (2006, p. 67-68),

o assalto neoliberal ao welfare determina o abatimento das garantias sociais, alimentando as condições de incerteza, a disposinibilidade absoluta à flexibilidade e as novas escravidões que se tornarão um aspecto existencial, estrutural e paradigmático da nova força de trabalho. A restrição dos espaços de acesso ao emprego regular, sobre o qual converge o ataque político aos direitos sociais, produz uma hipertrofia das economias submersas, dos circuitos produtivos paralelos aos quais aqueles que não têm garantia são obrigados a recorrer para se assegurar de fontes alternativas de renda. Setores inteiros da população começam, assim, a apoiar-se em mercados não regulados, não tutelados, muitas vezes no limite da legalidade, em que domina o trabalho intermitente, temporário, flexível às exigências contingentes de empresas que, de acordo com a filosofia do just in time e da leanproduction, contratam fora fases isoladas do processo de produção.

Como resultado desses fatores, as desigualdades globais são cada vez mais evidentes, criando dois novos status de seres humanos: os incluídos em uma economia globalizada e flexibilizada, por um lado, e os apátridas, carentes de identidade como consequência de sua falta de competência ou de sua impossibilidade para alcançar os mercados de consumo, por outro. Nessa lógica, o mercado converte-se no grande igualador e separador da sociedade. E essa nova polarização social resulta na dicotomia “aqueles que produzem risco” versus “aqueles que consomem segurança”, o que implica uma atualização do antagonismo de classes. E o modelo de controle social que se impõe, nesse contexto, é o de exclusão de uma parte da população que não tem nenhuma funcionalidade para o modelo produtivo e que, por isso, constitui uma fonte permanente de riscos (PÉREZ CEPEDA, 2007). Esses indivíduos marginalizados perdem progressivamente as condições materiais para o exercício dos direitos humanos de primeira geração e para exigir o cumprimento dos de segunda e terceira gerações, transformando-se em mera vida nua, ao viverem sem leis protetoras garantidas efetivamente. E, condenados à marginalidade sócio-econômica e a condições hobbesianas de existência, não mais aparecem como detentores de direitos públicos subjetivos. Mas isso não significa que serão dispensados das obrigações estabelecidas pelo Estado: este os mantêm vinculados ao sistema jurídico por meio de suas normas penais. Nesse contexto, as instituições judiciais do Estado assumem funções eminentemente punitivo-repressivas, em detrimento da proteção dos direitos civis e políticos e da garantia da eficácia dos direitos sociais, sendo justamente este o contexto que explica como o estado de exceção acaba por transformar-se em normalidade: na medida em que o Estado busca eximir-se de suas tarefas enquanto agente social de bem-estar, surge a necessidade de novas iniciativas do seu aparato repressivo em relação às condutas transgressoras da “ordem” levadas a cabo pelos grupos que passam a ser considerados “ameaçadores”. Paralelamente a isso, tornam-se necessárias medidas que satisfaçam às demandas por segurança das classes ou grupos sociais que se encontram efetivamente inseridos na nova lógica social.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A contemporaneidade presencia a transição de um regime produtivo que se caracterizava pela

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carência – e que, em virtude disso, necessitava desenvolver um conjunto de estratégias colimando a disciplina da carência, do que exsurge o papel de complementaridade entre cárcere e fábrica (MELOSSI; PAVARINI, 2010) – para um regime produtivo que se caracteriza pelo excesso – razão pela qual necessita desenvolver estratégias orientadas para o controle desse excesso (DE GIORGI, 2006). O excesso, nesse contexto, significa que a dinâmica produtiva contemporânea excede reiteradamente os dispositivos institucionais de atribuição, reconhecimento e garantia de cidadania social. Isso decorre do fato de que a crise do pacto fordista-keynesiano que deu origem ao Estado social resulta em uma impossibilidade crônica das instituições de governo da sociedade de garantir a inclusão por meio do trabalho, observando-se uma máxima separação entre constituição material da sociedade e constituição formal das instituições. Todas as margens de mediação entre força de trabalho e capital são transpostas e o que remanesce é um excesso contínuo da produtividade social para com os dispositivos institucionais destinados a regulá-la e inseri-la num projeto abrangente de governo da sociedade (DE GIORGI, 2006). Hoje, ao contrário do que acontecia durante a vigência do pacto fordista-keynesiano que dava sustenção ao Welfare State, o desemprego, a exclusão social e a precariedade existencial não são mais consideradas enquanto consequência de uma inadequação subjetiva dos indivíduos para com um sistema que tinha condições de garantir inclusão e cidadania virtualmente universais por meio de instrumentos políticos de mediação da relação entre economia e sociedade. Como refere De Giorgi (2006, p. 70), aqueles instrumentos de mediação desmoronaram e na contemporaneidade parece não mais “haver desequilíbrios sociais e carências subjetivas passíveis de serem supridas mediante a ação de dispositivos institucionais de disciplinamento da força de trabalho e de socialização da produção, nem muito menos excessos produtivos e surplus de força de trabalho a controlar.” Hoje, é o capital que se mostra carente em relação a uma força de trabalho que se flexibilizou e mobilizou, configurando uma “multidão”[10] produtiva que “excede as relações de produção capitalistas no momento em que vive diretamente a inadequação do conceito de trabalho-emprego e experimenta em si mesma a violenta negação dos direitos de cidadania provocada por esta inadequação”, o que permite falar em um “excesso negativo” que evidencia, de um lado, “os efeitos da exclusão, da violência do poder e do controle que este excesso determina sobre a força de trabalho” e, por outro, o fato de que, ínsita a esse processo, é a negação do domínio do capital, ou seja, de que “este domínio se revela em toda a sua estranheza, violência e opressão para com a força de trabalho social.” (DE GIORGI, 2006, p. 70-71). Com isso, torna-se flagrante o progressivo esgotamento de uma soberania estatal alicerçada na ideia de um complexo de estratégias tendentes à normalização disciplinar da classe operária, que dá lugar à emergência de um domínio construído com base no controle biopolítico da multidão. Em outras palavras: o ensinamento disciplinar não tem mais sentido na sociedade contemporânea e, com ele, as instituições que foram criadas na modernidade com esse intuito perdem a razão de ser, dando lugar a espaços de mero “armazenamento” daqueles indivíduos que se tornaram supérfluos e que, em razão disso, precisam ser administrados por meio de medidas de neutralização. Eis a justificativa para o êxito de teorias como a do Direito Penal do Inimigo, portanto, que pugnam pela mera “neutralização” de indivíduos “perigosos”. Também se justifica, aqui, o redescobrimento da pena restritiva de liberdade. Cornelli (2012, p. 351) assevera que a população carcerária no curso da década de 1990 aumentou na maior parte dos países: “en Europa, el crecimiento – de al menos el 20% - involucró a 28 países sobre 33 (exceptuándose a los Estados muy pequeños) y en la mitad de los países considerados alcanzó el 40 por ciento.” Na América, o sobredito autor refere que “sólo Canadá aumentó el número de reclusos por debajo del 20% (un 12%), mientras que en los Estados Unidos, México, Argentina, Brasil y Colombia el aumento de la tasa de encarcelamiento osciló entre el 60 y el 80 por ciento.” Ressaltando a diferença entre os papéis assumidos pela prisão na contemporaneidade e na época do seu surgimento enquanto sanção penal, Bauman (1999) revela que, nos moldes de Bentham, independentemente de outros propósitos imediatos, as casas panópticas de confinamento eram antes e acima de tudo fábricas de trabalho disciplinado. No entanto, esta busca por reintegração punitiva do apenado só faz sentido quando há trabalho a fazer. Ocorre que, na contemporaneidade, o

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capital, outrora ansioso em absorver quantidades de trabalho cada vez maiores,

reage com nervosismo às notícias de que o desemprego está diminuindo; através dos plenipotenciários do mercado de ações, ele premia as empresas que demitem e reduzem os postos de trabalho. Nessas condições, o confinamento não é nem escola para o emprego nem um método alternativo compulsório de aumentar as fileiras da mão-de-obra produtiva quando falham os métodos “voluntários” comuns e preferidos para levar à órbita industrial aquelas categorias particularmente rebeldes e relutantes de “homens livres”. Nas atuais circunstâncias, o confinamento é antes uma alternativa ao emprego, uma maneira de utilizar ou neutralizar uma parcela considerável da população que não é necessária à produção e para a qual não há trabalho “ao qual se reintegrar”. (BAUMAN, 1999, p. 118-119).

Daí a afirmação de Wacquant (2007, p. 21) no sentido de que, na contemporaneidade, antes de qualquer coisa, a penalização serve como mecanismo ou técnica de “invisibilização” dos problemas sociais que o Estado não pode ou não mais se preocupa em tratar de forma profunda: a prisão, nesse contexto, “serve de lata de lixo judiciária em que são lançados os dejetos humanos da sociedade de consumo.” Retomando a discussão foucaultiana (2012) acerca da substituição paulatina dos dispositivos disciplinares (que buscavam a transformação do indivíduo de modo a melhor adaptá-lo ao sistema de produção capitalista) pela biopolítica (que vai priorizar as intervenções nos fenômenos em nível global colimando estabelecer estratégias de regulação não mais do indivíduo, mas da população global, de forma a otimizar a sua produtividade), De Giorgi (2006, p. 101) refere que, na contemporaneidade, “a conservação da ordem social parece invocar, insistentemente, a implementação de uma estratégia de controle capaz de desarticular exatamente aquelas formas de socialização e de cooperação social que antes fora necessário alimentar uma vez que constituíam o fundamento da produtividade fordista”. Isso decorre do fato de que “hoje aquelas formas de cooperação escapam constantemente ao controle, fogem de qualquer cartografia disciplinar e assumem a fisionomia de eventos de risco, que devem ser evitados a qualquer preço.” Efetivamente, a contenção desses excessos negativos alimenta a sua construção social enquanto “classes perigosas”, o que evidencia “o crepúsculo de um poder disciplinar que cultivava a ambição de produzir sujeitos úteis, e o alvorecer de um poder de controle que se limita a vigiar populações cujas formas de vida não consegue colher.” (DE GIORGI, 2006, p. 105). O fato é que, como alerta Bauman (2013, p. 71), “a incapacidade de um indivíduo entrar no jogo do mercado segundo suas regras estatutárias, utilizando recursos próprios e por seu próprio risco, tende a ser cada vez mais criminalizada ou a se tornar suspeita de intenções criminosas ou potencialmente criminosas.” De fato, a segurança é responsável por gerar “um interesse em apontar riscos e selecioná-los para fins de eliminação, e por isso ela escolhe fontes potenciais de perigo como alvos de uma ação de extermínio ‘preventiva’, empreendida de maneira unilateral”, o que significa dizer, em outras palavras, que determinados indivíduos ou grupos de indivíduos “têm negada sua subjetividade humana e são reclassificados pura e simplesmente como objetos, localizados de modo irrevogável na ponta receptora dessa ação.” (BAUMAN, 2013, p. 77-78). Em conexão com esse pensamento, surgem consensos acerca da nocividade social e da maior inclinação para o crime da chamada underclass, em um movimento que Garland (2005) tem denominado de “Criminologia do Outro”, segundo a qual se considera que o criminoso é um ser distinto dos demais, em decorrência de déficits hereditários, psicológicos ou educativos, ou até mesmo em razão de sua cor da pele, devendo ser contido ou eliminado. Torna-se, assim, possível a afirmação de que o recrudescimento punitivo contemporâneo constitui, antes de tudo, um mecanismo hábil de controle social e racial, que opera através de uma

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estratégia de substituição das instituições de assistência às classes pobres – típicas do Welfare State – por estabelecimentos penais. Ou seja, a seletividade sócio-racial no âmbito penal constitui uma das armas de que o Estado neoliberal lança mão para manter sob controle a população economicamente hipossuficiente, o que se dá a partir da imbricação de três funções agora atribuídas à pena, segundo a análise de Wacquant (2007, p. 16-17): em primeiro lugar, operando no nível mais baixo da escala social, o encarceramento massivo serve para “neutralizar e estocar fisicamente as frações excedentes da classe operária, notadamente os membros despossuídos dos grupos estigmatizados que insistem em se manter ‘em rebelião aberta contra seu ambiente social’”; em segundo lugar, um degrau acima, a expansão punitiva desempenha a função de “impor a disciplina do trabalho assalariado dessocializado entre as frações superiores do proletariado e os estratos em declínio e sem segurança da classe média” por meio da “elevação do custo das estratégias de escape ou de resistência, que empurram jovens do sexo masculino da classe baixa para os setores ilegais da economia de rua”; em terceiro lugar, no que diz respeito à classe superior e à sociedade em seu conjunto, a ascensão do Estado Penal tem uma missão simbólica: “reafirmar a autoridade do Estado e a vontade reencontrada das elites políticas de enfatizar e impor a fronteira sagrada entre os cidadãos de bem e as categorias desviantes”, ou seja, entre “aqueles que merecem ser salvos e ‘inseridos’ (mediante uma mistura de sanções e incentivos) no circuito do trabalho assalariado instável e aqueles que, doravante, devem ser postos no índex e banidos, de forma duradoura.” O caráter biopolítico das práticas punitivas da contemporaneidade voltada a esses estratos revela-se justamente nesse ponto: essa multidão que configura o excesso da contemporaneidade é transformada em mera vida nua, ou seja, uma vida cuja existência ou inexistência é absolutamente irrelevante para o sistema, o que faz com que o controle a ser exercido sobre ela possa perpassar pela sua mera aniquilação. Esses indivíduos não mais são considerados na condição de cidadãos, mas na condição de súditos, à mercê do poder soberano, portanto.

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[1] Nesse ponto, é importante uma breve digressão a respeito da gênese e evolução do conceito de Direito Penal do Inimigo na teoria de Jakobs. A introdução do conceito no debate jurídico-penal foi realizada pelo autor em um Congresso realizado em Frankfurt no ano de 1985, no contexto de uma reflexão a respeito da tendência então verificada na Alemanha de se antecipar a intervenção punitiva ao estágio prévio à efetiva lesão ao bem jurídico. Originariamente, Jakobs manifestou a necessidade de promover uma separação do Direito Penal do inimigo do Direito Penal do cidadão, de modo a garantir o Estado liberal. Na conferência intitulada “Criminalização no estágio prévio à lesao de um bem jurídico”, datada de maio de 1985, Jakobs (1997, p. 322-323) assevera que “la existencia de un Derecho penal de enemigos no indica la fortaleza del Estado de libertades, sino, por el contrario, un signo de que en esa medida simplemente no existe. Ciertamente son posibles situaciones, que quizás se dan incluso en este momento, en las que las normas imprescindibles para un Estado de libertades pierden su poder de vigencia si se aguarda con la represión hasta que el autor salga de su esfera privada. Pero incluso entonces el Derecho penal de enemigos sólo se puede legitimar como un Derecho penal de emergencia que rige excepcionalmente. Los preceptos penales a él correspondientes tienen por ello que ser separados estrictamente del Derecho penal de ciudadanos, preferiblemente también en su presentación externa [...] el Derecho Penal de enemigos tiene que ser también separado del Derecho penal de ciudadanos de un modo tan claro que no exista peligro alguno de que se pueda infiltrar por medio de una interpretación sistemática o por analogía o de cualquier otra forma en el Derecho penal de ciudadanos.” Assim formulada, essa tese não causou inicialmente muito impacto. No entanto, a partir do Congresso realizado em Berlim, em 1999, surge uma segunda fase da teoria de Jakobs, na qual o autor passa a legitimar a existência de um Direito Penal do Inimigo destinado a não-pessoas, como forma necessária para combater delitos como, por exemplo, o terrorismo. [2] É importante salientar que, para Jakobs, a condição de pessoa não é atributo natural do ser humano, mas sim uma atribuição normativa. A pessoa, para o autor, não se confunde com o ser humano existencial, uma vez que, enquanto este é o resultado de processos naturais, aquela é um produto social, definido como a unidade ideal de direitos e deveres que são administrados através de um corpo e de uma consciência. (JAKOBS, 2007). Como assevera Díez Ripollés (2007, p. 169), “el concepto de persona no es uno originario, sino uno que resulta atribuido al individuo como producto de la comunicación dentro del sistema social, atribución que dependerá del grado de satisfacción de las expectativas normativas que esté en condiciones de prestar el individuo.” Gracia Martín (2009, p. 348) refere que “a ‘pessoa’ é algo distinto de um ser humano; este é o resultado de processos naturais, e aquela um produto social que se define como ‘a unidade ideal de direitos e deveres que sao administrados através de um corpo e de uma consciência’.” Assim, na perspectiva em tela, não é o homem (enquanto mero ser humano), o sujeito do Direito Penal, mas sim a pessoa, de forma que, quando o homem aparece por detrás da pessoa, não se está a falar em um indivíduo inserido na ordem social, mas sim de um inimigo (não-pessoa). E é este homem, ou seja, o ser existencial, o destinatário das normas do Direito Penal do inimigo, como salienta Gracia Martín (2009, p. 349) quando sintetiza o pensamento de Jakobs acerca do tema: “quando ‘já não existe a expectative séria, que tem efeitos permanents de direção da conduta, de um comportamento pessoal – determinado por direitos e deveres –, a pessoa degenera até converter-se num mero postulado, e em seu lugar aparece o indivíduo interpretado cognitivamente’, o que ‘significa, para o caso da conduta cognitive, o surgimento do indivíduo perigoso, o inimigo’.”

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[3] Sobre o tema, convém ressaltar a lição de Ambos (2011) que, ao comentar a situação de violação sistemática dos direitos humanos dos “terroristas” capturados em Guantánamo, refere que parece haver uma completa desconsideração do fato de que “a superioridade política e moral de uma sociedade livre e democrática consiste, justamente, em tratar seus inimigos como pessoas com direitos mínimos e não se colocar no mesmo nível deles”, razão pela qual “não se leva a cabo uma ‘guerra’ contra terroristas, mas sim, procura-se combatê-los com os meios do direito penal do Estado de Direito”, uma vez que esta é a única forma de se prestar um serviço à justiça e se “criar a base para a superação do injusto terrorista.” [4] Texto integral disponível em: . Acesso em 28 abr. 2014. [5] Optou-se por utilizar as expressões “Estado de Bem-estar Social”, “Welfare State” e “Estado Providência” como sinônimos, em que pese os diferentes contextos geográficos, econômicos e sociais nos quais foram cunhadas. [6] Rosanvallon (1997), em sua obra clássica sobre o Estado-Providência, entende não ser possível uma compreensão deste fenômeno a partir de uma leitura histórica demasiado “curta”, ou seja, atrelada aos movimentos do capitalismo e do socialismo nos séculos XIX e XX (ideia do Estado de Bem-Estar Social como um “meio-caminho” entre capitalismo e socialismo ou como um instrumento de compensação dos desequilíbrios econômico-sociais do capitalismo). Para o referido autor, a explicação do Estado-Providência remonta à própria origem do Estado nação moderno, construído do século XIV ao século XVII. Isso porque o Estado nação moderno surge exatamente como um “Estado-protetor”, sendo essa a nota característica que o distingue de todas as formas políticas anteriores de soberania. A partir das obras clássicas de Thomas Hobbes e John Locke, Rosanvallon sustenta que o Estado moderno surge com uma dupla tarefa: a produção da segurança e a redução da incerteza. [7] Gize-se, a propósito, que, segundo De Giorgi (2006), as medidas do Welfare State no sentido de “gestão” da população desempregada também começam a assumir, nesse período, conotações “punitivas”, por meio, por exemplo, da “crescente estigmatização social imposta aos beneficiários e da seletividade dos procedimentos de acesso.” [8] Sobre o tema, De Giorgi (2006, p. 44) menciona que “a penitenciária nasce e se consolida como instituição subalterna à fábrica, e como mecanismo pronto a atender as exigências do nascente sistema de produção industrial. A estrutura da penitenciária, sob o perfil tanto organizativo quanto ideológico, não pode ser compreendida se, paralelamente, não for observada a estrutura dos locias de produção; é o conceito de disciplina do trabalho que deve ser proposto aqui como termo que faz a mediação entre cárcere e fábrica. Todas as instituições de reclusão que tomam forma no final do século XVIII co-dividem uma idêntica lógica disciplinar que as torna complementares à fábrica.” [9] A expressão é utilizada por Bauman (2009, p. 23-24), para o qual a exclusão do trabalho traduz na contemporaneidade uma noção de “superfluidade” e não mais de “desemprego”. Isso porque a noção de “des-empregado” representa “um desvio da regra, um inconveniente temporário que se pode – e se poderá – remediar”, ao passo que a noção de supérfluo equivale ser considerado “inútil, inábil para o trabalho e condenado a permanecer ‘economicamente inativo.” É por isso que “ser excluído do trabalho significa ser eliminável (e talvez já eliminado definitivamente), classificado como descarte de um ‘progresso econômico’ que afinal se reduz ao seguinte: realizar o mesmo trabalho e obter os mesmos resultados econômicos com menos força de trabalho e, portanto, com custos inferiores aos que antes vigoravam.” [10] Dá-se, aqui, ao termo multidão o sentido ele atribuído por Hardt e Negri (2005, p. 145-146), qual seja, de que a multidão expressa uma tentativa de demonstrar que “uma teoria da classe econômica não precisa optar entre a unidade e a pluralidade”, ou seja, de que “uma multidão é uma multiplicidade irredutível”, de modo que “as diferenças sociais singulares que constituem a multidão devem sempre ser expressas, não podendo ser aplainadas na uniformidade, na unidade, na identidade ou na diferença”. Assim, a definição de multidão ora utilizada pressupõe “singularidades que agem em comum”, dada a inexistência de uma contradição conceitual ou real entre a singularidade e o que é comum.

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LINHAS EDITORIAIS E NORMAS DE PUBLICAÇÃO CONSIDERAÇÕES GERAIS Usualmente, entende-se haver três grandes caminhos do pensamento jurídico contemporâneo. O primeiro, de larga repercussão e muito ao gosto da maioria dos juristas, é o que se chama de Positivismo Jurídico positivista, que abrange: na sua conotação mais estrita, as obras de Hans Kelsen, de Herbert Hart, entre outros; sua vertente mais sociológica, também chamada de positivismo eclético, lastreado na escola histórica do direito e, no Brasil, pela filosofia de Miguel Reale; e, por fim, o positivismo ético, decorrente de algumas tendências pós-modernas, em especial do pensamento de Jurgen Habermas e John Rawls. O segundo caminho, na verdade, é um conjunto de diferentes doutrinas filosóficas que se comunicam por não aceitarem a abordagem positivista. Podem se lastrear: em um realismo jurídico, tal como Carl Schmitt; em um existencialismo jurídico, tal como o faz Hans-Georg Gadamer; ou em uma análise das micro-relações de poder, tal como o faz Michel Foucault. O terceiro e último grande caminho do pensamento jurídico contemporâneo é a chamada Crítica Marxista do Direito, que evidencia a relação do Direito para com a luta de classes, tal como o faz Peter Stutchka, e sua relação intrínseca para com o sistema mercantil, tal como faz Eugeny Pachukanis. Assim, será dada preferência aos textos que se encaixem em quaisquer das perspectivas acima relacionadas e que sejam adequadas às linhas editoriais abaixo. A Revista Crítica do Direito é uma frente ampla de militantes, intelectuais e pesquisadores do direito oriundos das mais diferentes regiões do país e das mais diversas tendências teóricas. Nossa missão é a análise crítica numa perspectiva ampla, sem sectarismos teóricos, contemplando as diferentes tendências de pensamento, desde que haja expressamente a conotação progressista perante os modelos econômico e político vigentes no Brasil e no mundo, bem como perante a sociabilidade capitalista em geral. Partindo dessas premissas, seguem as linhas editoriais.

1 - CRÍTICA DA DOGMÁTICA JURÍDICA

Esta linha é de grande impacto para as formas tradicionais de se pensar e praticar o direito. Por meio dela se oferece uma crítica dentro do universo factual de atuação tradicional do jurista. Aqui o espaço é amplo para se elaborarem críticas às leis, à jurisprudência, ao papel da Administração Pública, à repressão institucional, à seguridade social, a questões trabalhistas, entre tantas outras. Assim, o artigo deve se posicionar criticamente quanto à preservação do "status quo" e aos limites impostos à cidadania e à democracia pela ideologia dogmáticopositivista.

2 - FUNDAMENTOS DA CRÍTICA DO DIREITO

Nesta linha, entendemos ser basilar o desenlace de todas as amarras ideológicas referentes a aspectos jurídicos fundamentais, sejam eles relacionados à discussão da sociologia e filosofia do Direito ou à teoria geral do Direito. Assim, temas como princípios gerais do direito, legalidade, isonomia, liberdade, propriedade, sujeito de direito, método de investigação jurídica etc. são colocados à prova, trazendo-se à luz suas nuances ideológicas.

3 - ELEMENTOS DO PENSAMENTO CRÍTICO

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Por fim, nesta linha serão analisadas as grandes questões teóricas da contemporaneidade que possam ter mediatamente repercussão para as investigações do direito e do Estado. Esta linha diz respeito às pesquisas que não tenham como foco temas específicos da análise jurídica em suas mais variadas vertentes, mas que importam sobretudo à investigação das ciências sociais em geral. Podem ser abordados temas relacionados à economia política e sua crítica, às ciências políticas em geral e às discussões propriamente filosóficas, tais como lógica, epistemologia e ontologia. Podem também constar aqui discussões relacionadas à crítica “cultural” em geral, seja de cinema, música, literatura e das artes plásticas, desde que possam ter, pelo menos mediatamente, repercussão para as investigações do direito e do Estado

NORMAS DE PUBLICAÇÃO

ENCAMINHAMENTO

Os autores deverão encaminhar seus textos, exclusivamente, por meio do endereço eletrônico destinado para esse fim, a saber, [email protected].

NORMAS BÁSICAS DE FORMATAÇÃO

Artigos científicos: Textos em arquivos .doc Espaçamento entre linhas simples Texto alinhado à esquerda, sem tabulação Fonte Arial 10 Quantidade de caracteres entre 28.800 e 72.000 (entre oito e vinte laudas) Imagem opcional, com obrigatória menção da fonte Enviar mini-currículo no formato "Profissão. Formação acadêmica. Última publicação (se houver). Página pessoal (se houver). Assuntos de interesse:

Resenhas: Textos em arquivos .doc Espaçamento entre linhas simples Texto alinhado à esquerda, sem tabulação Fonte Arial 10 Quantidade de caracteres entre 1800 e 18000 (entre meia e cinco laudas) Imagem da capa do livro

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Enviar mini-currículo no formato "Profissão. Formação acadêmica. Última publicação (se houver). Página pessoal (se houver). Assuntos de interesse:

Traduções: Textos em arquivos .doc Espaçamento entre linhas simples Texto alinhado à esquerda, sem tabulação Fonte Arial 10 Autorização, específica para fins de tradução, por escrito e assinada, na língua original e em língua portuguesa, dos detentores dos direitos autorais Enviar mini-currículo no formato "Profissão. Formação acadêmica. Última publicação (se houver). Página pessoal (se houver). Assuntos de interesse: Enviar mini-currículo do autor cujo texto foi traduzido.

OBSERVAÇÃO DO NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO

Na elaboração dos textos os autores deverão observar o novo acordo ortogáfico.

USO DE IMAGENS

Será admitido o uso de imagens, bem como as respectivas legendas, desde que citadas as referências de autoria e instituição detentora.

SELEÇÃO DOS TRABALHOS

A seleção dos trabalhos será por meio de pares especialmente designados para tal fim. Os textos devem ser inéditos no Brasil, com título, resumos e 3 palavras-chave/descritores em português e inglês. Aos pareceristas ad hoc fica reservado o direito de publicar, rejeitar ou devolver os textos para adequação segundo o parecer que será encaminhado aos autores. Aos editores é resguardado o direito de diagramar os textos conforme o padrão gráfico da revista.

NORMAS DE CITAÇÃO

Tendo em vista a Revista Crítica do Direito ser uma publicação on line, o Corpo Editorial optou

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pela utilização do sistema autor-data para a citação, devendo a referência completa estar disposta na bibliografia. Desta forma, para as referências, pede-se seja seguido o padrão abaixo:

Artigo em periódico: GOULART, Flávio. A. A. Representações Sociais, Ação Política e Cidadania. Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro: ENSP, vol. 9, fascículo 4, out/dez de 1993, pp. 477/486.

Livro completo: MASCARO, Alysson Leandro Barbate. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2010.

Capítulo de livro: LOPES, Ana Maria D’Àvila. A cidadania na Constituição Federal Brasileira de 1988: redefinindo a participação política. In: BONAVIDES, Paulo et alii (Coords). Constituição e Democracia: estudos em homenagem ao Prof. J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Malheiros, 2008, pp. 21/34

Tese (doutorado) ou dissertação (mestrado): ALMEIDA, Juliana Litvin de. Da possibilidade de emancipação humana: experiência formativa e elaboração do passado – contribuições de Theodor W. Adorno. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

Obra em meio eletrônico: COLOMBO, Thiago. Tupac Amaru bradado aos berros. Revista Crítica do Direito. Disponível em: . Acessado em 14 de junho de 2011.

DIREITOS DE PUBLICAÇÃO

A Revista Crítica do Direito é uma publicação eletrônica de acesso aberto e gratuito que mantém on-line todos os seus números publicados, bem como é divulgada a leitores cadastrados.

Ao fornecerem textos, os autores concordam em transferir os direitos exclusivos de reprodução dos textos da forma acima descrita, o que tacitamente implica a aceitação de todos os itens constantes do item “Normas de Publicação”. Os autores se responsabilizam integralmente pelos direitos das imagens fornecidas.

ESCREVA PARA A REVISTA CRÍTICA DO DIREITO! Dicas, críticas ou sugestões serão muito bem vindas. Escreva para

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