A FILOSOFIA PERENE NÃO É PARA TOLOS

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A FILOSOFIA PERENE NÃO É PARA TOLOS William Stoddart e Mateus Soares de Azevedo

O termo "Filosofia Perene" existe desde a Renascença, mas, nos tempos modernos tornou-se familiar graças ao livro de mesmo nome de Aldous Huxley. A ideia central da Filosofia Perene é que a Verdade Divina é una, eterna e universal, e que as diferentes religiões são como diferentes línguas expressando esta Verdade una. O símbolo mais usado para transmitir essa ideia é o da luz incolor e as muitas cores do espectro, que se tornam visíveis somente quando a luz incolor é refratada. Na Renascença, o termo indicava o reconhecimento do fato de que as filosofias de Pitágoras, Platão, Aristóteles e Plotino indiscutivelmente expunham a mesma verdade que está no coração do Cristianismo. Subsequentemente, o significado do termo foi ampliado para cobrir a metafísica e as místicas de todas as grandes religiões do mundo, sobretudo Hinduísmo, Budismo e Islã.

Na verdade , Huxley não foi o primeiro expoente dessa ideia nos tempos modernos. Ela já havia sido proposta pelo santo bengalês Ramakrishna (1836-1886) , que era intimamente familiar, e em um nível muito mais profundo do que Huxley, não só com o Hinduísmo , mas também com o Cristianismo e o Islamismo. Mas, levando em conta o "exotismo " e o desconhecimento em relação ao grande Ramakrishna, e também às duvidosas credenciais religiosas do eclético Huxley, o termo e a ideia da "Filosofia Perene" não tiveram um bom começo para os buscadores religiosos conservadores, cristãos ou outros. Contudo, um desdobramento que ninguém poderia ter previsto ocorreu. Na década de 1920, os livros do filósofo francês René Guénon começaram a aparecer. Eles expunham, de modo irrefutavelmente platônico, a unicidade da Verdade supra- formal e a multiplicidade de suas expressões formais. A partir daí pode-se perceber que a razão de ser das diferentes religiões não é que eles são "todas iguais", mas, precisamente, que todas são diferentes! A essência (sobre Deus, o homem e a salvação) é, naturalmente, a mesma, mas as formas são significativamente diferentes. O princípio da unidade religiosa se encontra somente em Deus, e só um homem imprudente ousaria declarar que Deus se manifestou em apenas uma língua! * Os livros de Guénon foram seguidos, nos anos 1930, pela longa série de escritos do filósofo alemão Frithjof Schuon , que levou a alturas incríveis a exposição da verdade atemporal , e sua qualidade salvífica. A mensagem de Schuon era de fato uma mensagem de verdade, beleza e salvação. É difícil contestar a profundidade e a competência desses 1

dois autores . A corrente de intelectualidade e espiritualidade de que eles foram os pioneiros ficou conhecida na época como "tradicionalista " ou "perenialista" . Dois outros autores que contribuíram para tornar esta escola conhecida são Ananda Coomaraswamy e Titus Burckhardt .

Nada pode tirar a originalidade da visão de Guénon e Schuon, mas é útil mencionar aqui alguns dos grandes precursores a quem mais freqüentemente se referem. Estes incluem Shankara (Hinduísmo), Platão (Grécia Antiga), Eckhart (Cristianismo ocidental) , e Ibn 'Arabi (Islã). No entanto, a visão perenialista não exige uma longa expressão: ela pode ser sintetizada pelas seguintes palavras de Cristo : "Conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará". Para a Filosofia Perene, esta é realmente toda a história: a verdade atemporal e sua qualidade libertadora.

Talvez por causa da superficialidade de Huxley no início do século XX, e de noções da "Nova Era" do final do século XX, a escola perenialista, com suas ideias universalistas e referências "extra-cristãs", ainda seja vista com desconfiança em alguns setores. Algumas pessoas realmente parecem confundir dois opostos: as fantasias da "Nova Era" e a Filosofia Perene. Outros, ainda, crêem que a Filosofia Perene tem vinculação só com algo pejorativamente chamado de "misticismo oriental" , esquecendo-se que o próprio termo é de origem cristã e que foi posto em operação em primeiro lugar pelo reconhecimento cristão das verdades eternas do Platonismo. Estas verdades eternas constituem precisamente aquilo que a Filosofia Perene aborda, e a virtude central desta abordagem é tornar isso bastante claro e, assim, dissipar muitas ilusões angustiantes. A Filosofia Perene não é para tolos – e nem o é o Cristianismo! – e é precisamente isso que o homem moderno sofisticado precisa saber. A Filosofia Perene, que é verdadeiro universalismo e verdadeiro ecumenismo, é, pelo menos extrinsecamente , um reconhecimento da origem divina de cada religião. A essência de cada religião é pura verdade , e as diversas formas religiosas vestem a verdade em roupas de diferentes modelos e cores. "Na casa de meu Pai há muitas moradas". Este dito do Cristo se aplica não só ao Céu, mas também à terra. A função das diferentes religiões é expressar a verdade, e oferecer um caminho de salvação, de uma forma adequada às necessidades dos diferentes segmentos e etnias da humanidade. Cada religião vem de Deus, e cada religião leva de volta a Deus. Cada religião, além disso, dispõe de uma doutrina e um método , isto é , uma verdade iluminadora juntamente com um meio de salvação. Se assim não fosse , não seria uma questão de religião, mas de ideologia vazia fabricada pelo homem (humanismo, marxismo, freudismo, "Nova Era-ismo" e muitos outros) que não têm 2

condições de salvar ninguém .

Como Frithjof Schuon repetidamente salientou, a inteligência compreende não só acuidade de discernimento mental e a correção da operação lógica, mas também a virtude e a beleza. Se a lógica, que em si é sagrada, não é acompanhada por um amor da virtude e por uma intuição de beleza, ela corre o risco de ser infiel a si mesma e acabar como algo estéril. Esta harmonia necessária dos vários componentes da inteligência integral se expressa pelo ensinamento platônico de que a beleza é o esplendor da verdade, que beleza é virtude exterior, e que virtude é beleza interior. Nicolau de Cusa expressou a mesma doutrina da seguinte forma: Mens sine desiderio non intelligit; mens sine intellectu non desiderat ("A mente sem amor não pode entender, a mente sem inteligência não pode amar.") Santo Tomás de Aquino disse que, embora as virtudes não façam parte da contemplação, elas constituem , no entanto, condição indispensável para ela, e Mestre Eckhart disse que a razão suficiente das virtudes não é primariamente a sua utilidade extrínseca , mas sua beleza intrínseca.

O problema com os intelectuais modernos é que eles não são intelectuais; eles são, de fato, muito menos intelectuais (no verdadeiro sentido da palavra) do que as pessoas de fé simples. Esquece-se que o homem não é somente "mente", mas também "Espírito", ou "intelecto". O homem é composto pelo ternário clássico: Spiritus [Intellectus], anima, e corpus ("Espírito [Intelecto], alma e corpo"). Aqui não é o lugar para expor a metafísica tradicional , mas digamos, em resumo, que "espírito ", ou "Intelecto", é universal ou supra-formal, ao passo que a "alma" (um de seus conteúdos é a "mente" ) é individual ou formal. O “Intelecto" , entendido neste sentido medieval, é a única garantia de objetividade do homem, pois alma e corpo pertencem ao reino da subjetividade. O erro central de Jung e outros psicólogos modernos é a confusão entre Intelecto e alma (ou mesmo a completa exclusão do Intelecto). Como C. S. Lewis diria, esta é a "abolição do homem" com força!

Como já enfatizado, a relação do Cristianismo, ou de qualquer religião, com a Filosofia Perene é a relação de uma determinada cor para com a luz incolor No Rig-Veda (1.164.46) , diz-se que "Os sábios chamam a realidade una por muitos nomes", e um homem não é excluído de compreender essa verdade simplesmente porque ele é um cristão . Santo Agostinho fez alusão a essa verdade perene e universal quando escreveu: "O que hoje é chamado de religião cristã existiu entre os antigos, e nunca deixou de existir desde a origem do gênero humano, até o momento em que o próprio 3

Cristo veio, e os homens começaram a chamar de ‘cristã’ a verdadeira religião que já existia de antemão." A Filosofia Perene pode ser dita Platonismo perene. Outros podem chamá-la Vedanta perene. Outros ainda, como C. S. Lewis, podem chamá-la de Tao. * A Filosofia Perene expõe em nova chave o patrimônio espiritual, filosófico e artístico da tradição cristã, em suas dimensões intelectualmente desafiadoras, bem como considera suas possibilidades futuras. A crença que lastreia esta empreitada é que um dos principais fatores responsáveis pela decadência, falta de vigor e, de fato, trágica crise da religião tradicional é a indiferença, e mesmo suspeição, em face da dimensão sapiencial da tradição cristã. A religião em geral almeja se dirigir a todos os tipos de homens sem distinção, com vistas a lhes proporcionar os meios de salvação, mas não necessariamente com vistas a fornecer explicações sobre a Verdade pura e a natureza fundamental das coisas – e isto apesar do fato de que estas explicações também são oferecidas, ao menos simbolicamente, para aqueles com "olhos para ver" e "ouvidos para ouvir". Esta perda tem sido particularmente evidente desde a época da assim chamada "Renascença" dos séculos XV e XVI, a qual foi uma verdadeira revolução que não significou um "renascimento", mas, ao contrário, a “morte” de muitos elementos cruciais, sobretudo da arte medieval -- como representada, por exemplo, pelas abadias românicas, as catedrais góticas, os ícones bizantinos, e também por uma obra-prima como A Divina Comédia. E, acima de tudo, pelo cerne espiritual intangível dessas manifestações.

Esta dimensão espiritual, ou intelectual, não deve ser identificada com uma mera informação quantitativa, ou a capacidade cerebral, ou o estudo livresco, uma vez que é muito mais profunda e compreende, pelo contrário, dimensões qualitativas que envolvem todo o ser do homem, e não apenas a sua capacidade mental. A sabedoria faz o homem pensar com clareza e viver bem, de acordo com a natureza das coisas. Desde o momento em que a influência e as intuições de sábios como Mestre Eckhart (1260-1327) e Dante Alighieri (1265-1321) , no Ocidente, ou Gregório Palamas (1296-1359) no Oriente cristão, começaram a diminuir, um tipo de fé cada vez mais emocional e convencional tem predominado, levando a uma visão sentimental das coisas que se situa num nível bem abaixo da capacidade e das necessidades da mente humana. Apesar de sua importância no esquema total das coisas, essa "fé sentimental", ou "fideísmo", desacompanhada de um componente intelectual, constitui apenas uma parte da mensagem integral do Cristianismo. 11 4

Demasiadas vezes, a inteligência tem sido encarada como uma manifestação de orgulho espiritual – ou intelectual --, sem se perceber que esta é uma contradição de termos, pois o orgulho é a antítese da espiritualidade ou intelectualidade. A verdadeira inteligência é caracterizada pela capacidade de ver as coisas como elas realmente são, portanto, por uma objetividade implacável, algo que exclui o orgulho, precisamente.

Nos dias de hoje, a maioria dos argumentos habituais avançados em favor da religião se tornaram, como Frithjof Schuon brilhantemente apontou, "psicologicamente gastos"; considerações de ordem superior foram relegadas a uma espécie de limbo. E Ananda K. Coomaraswamy também observou: "Hoje, a religião é apresentada de um modo tão sentimental que não surpreende que o melhor da nova geração se revolte. A solução é apresentar novamente a religião em sua forma intelectualmente desafiadora. " Não há dúvida de que em nossos tempos a indiferença e mesmo um calculado desdém pela religião estejam "no ar", especialmente entre as "classes falantes" (jornalistas, acadêmicos, cientistas, "celebridades") . Isto acontece não apenas porque o homem moderno típico ignora a religião e está desinteressado dela, -- ele não tem sensibilidade religiosa e nenhuma intuição do sagrado --, mas também porque a religião tem por muito tempo se apresentado de uma maneira banal e superficial que está longe de qualquer coisa que possa ser considerado “intelectualmente desafiador." Se não fosse assim , o que poderia explicar o interesse demonstrado por alguns de nossos contemporâneos nas religiões orientais, e também na assim chamada "Nova Era"? Parte deste afastamento da própria religião deriva da desinformação acerca das dimensões mais profundas e belas do Cristianismo, isto é, de seu conteúdo intelectual, de suas práticas espirituais e de suas artes.

Se parece correto, por um lado, dirigir-se ao homem médio mediante argumentos sentimentais e morais – isto é, em uma abordagem não-intelectual -- permanece o fato de que ainda existem homens e mulheres, talvez mais do que se poderia acreditar, que são movidos por considerações de uma ordem superior, e essas pessoas também precisam receber "alimento sólido". Além disso, quando a intelligentsia se distancia, ou se separa totalmente, do elemento espiritual verdadeiro, ela acaba por exercer uma influência deletéria sobre o conjunto da sociedade, como ficou claramente demonstrado pela maioria da “intelectualidade” 5

ocidental no Século XX -- pode-se mencionar a respeito disso o inquestionável apoio que ela deu ao marxismo e ao freudismo.

Se o par "sentimentalismo-fideísmo" parece ser mais adequado para influenciar a vontade do homem médio, é preciso, no entanto, ter em mente o par "conhecimento - fé", pois, sem fé, a inteligência é incompleta e propensa a erros. Se deixada completamente por si mesma, a inteligência puramente cerebral acaba por se consumir em uma agitação mental estéril, sem utilidade ou finalidade, como é abundantemente comprovado pela filosofia e a arte modernas. A fé atua como um estabilizador elemento, ela enriquece e fortalece o discernimento.

Os dois elementos do par "conhecimento - fé" nem sempre foram considerados como contraditórios. A percepção de que os dois são necessariamente parceiros foi a norma durante a Idade Média, e a ideia tem irrompido intermitentemente desde então. Isto pode ser visto acima de tudo no conceito mesmo da "Filosofia Perene", uma perspectiva que está presente no Ocidente há vários século e que encara a religião principalmente como conhecimento de um caráter sagrado – não como " serviço social " ou meramente como um sistema ético. Os autores perenialistas compartilham da visão de que a dimensão intelectiva é central para o ser humano. O conhecimento, profundamente compreendido, é o coração do homem. "Conhecer é ser."

A característica da Filosofia Perene é lidar prioritariamente com os aspectos mais profundos, metafísicos e espirituais, da religião. Não há aqui algo que lembre nacionalismo religioso ou formalismo, nem expedientes destinados a apelar a qualquer coisa menos que a faculdade intelectual central do homem . A Filosofia Perene não esposa a ideia de que a espiritualidade cristã como um todo pode ou deva ser equiparada à mística voluntarista; ela não assume que uma abordagem "não-intelectual" seja a única forma possível de espiritualidade cristã. Por exemplo, as perspectivas de São Francisco de Assis (1182-1226) ou São Bernardo de Claraval (1090-1153) representam uma forma profunda e contemplativa de espiritualidade; e elas podem ser comparadas aquilo que no Hinduísmo é chamado de bhakti-marga, isto é, uma "via devocional", que é não obstante acompanhada de um elemento "intelectual" que a distingue nitidamente da mística “voluntarista”.

O Cristianismo possui uma profunda, ainda que pouco conhecida dimensão 6

sapiencial ou "gnóstica". Embora este último termo possa assustar alguns, a realidade que ele representa não deve ser confundida com a heresia gnosticista dos primeiros séculos da era cristã. Em seu livro Stromata ("Miscelâneas"), o teólogo místico Clemente de Alexandria (c.150-215) foi enfático na distinção entre a autêntica e a falsa gnose. E o próprio São Paulo apóstolo, na Epístola aos Romanos (11:33), refere-se à gnose como "o conhecimento de Deus" (gnose tou Theou). Entre os mais conhecidos porta-vozes cristãos deste modo de espiritualidade estão Mestre Eckhart, dominicano alemão da Idade Média; o poeta Angelus Silesius (1624-1677) e o teólogo místico Dionísio Areopagita (500? -555?). No Oriente cristão, pode-se dizer que os hesicastas de Grécia, Rússia, Romênia etc., seguem um padrão similar.

"Deus se fez o que nós somos para nos fazer como Ele é." Este audacioso ensinamento de Santo Irineu (c.120 - 202 ) sintetiza a mensagem específica do Cristianismo. Ele mostra o caráter a intrinsecamente "sapiencial" da religião, juntamente com a ênfase característica nas consequências práticas ou "operacionais" dela . Conhecer completamente e totalmente significa realizar o que se conhece. As palavras do santo também mostram que o Cristianismo não pode ser reduzido a uma mera atividade social, a um sistema ético, ou a uma seqüência de eventos, e que seu núcleo é puro Espírito. Em sua essência, o Cristianismo é um caminho espiritual que começa em Deus e, através do homem, termina em Deus. Um caminho que leva ao que as palavras de Santo Irineu indicam , isto é, a deificatio.

Em todas as grandes religiões do mundo, esta dimensão sapiencial tem tido importante expoentes ao longo dos séculos e, no caso do Cristianismo, alguns de seus luminares foram mencionados acima. Agora, se o leitor nos permitir um grande salto histórico, introduziremos a seguir os nomes dos principais porta-vozes contemporâneos dessa sabedoria perene. Pois foi no início do século XX que o metafísico francês René Guénon, seguido mais tarde pelo crítico de arte anglo-indiano Ananda Kentish Coomaraswamy, começou a expor os tesouros da Filosofia Perene no Ocidente. É verdade que foi no Ocidente que o termo Philosophia Perennis foi pela primeira vez utilizado; isto ocorreu com Agostinho Steuco, no século XVI. Steuco era o bibliotecário chefe do Vaticano na época e, influenciado por Platão, Aristóteles e Nicolau de Cusa , ele compreendeu a convergência essencial da teologia judaica e cristã com a filosofia grega. Podemos ver deste modo que a noção mesma de Filosofia Perene, desde o início, esteve ligada à tradição cristã e ao Ocidente. 7

Foi na segunda metade do século XX que o maior expoente dessa escola de pensamento surgiu: o metafísico suíço Frithjof Schuon. Na verdade , talvez não devêssemos falar de "escola de pensamento", pois, no caso da Filosofia Perene, o pensamento não é mais do que o meio através do qual conceitos que vão além do pensamento discursivo são expressos , e que na realidade são "vistos" e contemplados pelo intelecto. Tais filósofos, na linhagem de Platão, seriam mais bem descritos como "visionários", e não como "pensadores". Ao contrário dos filósofos posteriores a Descartes e a Kant, Guénon e Schuon não procuraram inventar e propagar um "sistema" de sua própria lavra, mas sim transmitir , em novas formas , ideias e ideais que existiram em todos os lugares e sempre . Estes autores não "inventaram" nada, mas apresentaram uma abordagem renovada e revigorada dos diversos aspectos e dimensões da sabedoria perene e das grandes religiões.

René Guénon explicou com incrível clareza o significado dos símbolos nos ritos, na arte e na cultura , produzindo ao mesmo tempo uma crítica devastadora do materialismo, do relativismo e da pseudo- espiritualidade, e enfatizando, pelo contrário, a verdade e a grandeza do que ele chamou de “Tradição Primordial”. Ananda Kentish Coomaraswamy , com seu conhecimento enciclopédico do Vedanta , do Platonismo e da Escolástica, destacou a profunda convergência das tradições oriental, grega e cristã, especialmente nos campos da filosofia e da arte. Titus Burckhardt , outro dos grandes autores da Sophia Perennis, fez por sua vez uma avaliação inovadora de arte sacra , cujo patrimônio ele expôs em todo seu esplendor, especialmente nos manuscritos do Evangelho e nas grandes catedrais da Europa Medieval, esclarecendo também as suas correspondências com as artes sagradas de outras civilizações, como a hindu e a islâmica. O papel axial de figuras como Dante Alighieri, São Bernardino de Sena e Santa Catarina de Sena na compreensão da mística cristã também foi exposto por Burckhardt.

Acima de tudo, foi Frithjof Schuon, que, com o seu "olho de águia", reavaliou o legado cristão em seus aspectos essenciais. Levando plenamente em conta suas especificidades e particularidades, Schuon situou claramente este legado entre as grandes religiões do mundo e, especialmente, em suas relações com as duas outras tradições monoteístas , o Judaísmo e o Islã. Sua concepção da "unidade transcendente das religiões " é uma de suas principais contribuições no campo da religião comparada. O significado profundo dos diferentes ramos do Cristianismo -8

Catolicismo, Igreja Ortodoxa e Protestantismo --, bem como alguns de seus ramos menores, como a igreja copta, foi brilhantemente explicado por ele. O papel orgânico desempenhado pela "via do conhecimento sagrado" (ou gnose), em todas essas considerações foi claramente exposto.

Schuon também corrigiu certa limitação na visão de Guénon acerca das relações entre o esoterismo e o exoterismo no Cristianismo, mostrando o caráter essencialmente "esotérico", ou "iniciático", de seus dogmas e sacramentos. A centralidade da oração, como o principal canal de comunicação entre o divino e o humano, foi enfatizada por Schuon em todos os seus escritos; ele descreveu ademais a oração em seus três principais modos: pessoal (individual) , canônico ( coletivo) , e jaculatório ( "oração do coração") . Finalmente, o lugar das virtudes na economia da prática espiritual não foi esquecido por Schuon: ele enfatizou constantemente a prática da humildade (vacare Deo), a caridade e a fidelidade à verdade como condições sine qua non da vida espiritual .

A Filosofia Perene obviamente não é uma "invenção" nem de René Guénon, nem de Frithjof Schuon, mas eles são sem dúvida alguma seus principais expositores contemporâneos. Guénon foi um metafísico e um professor de matemática; ele expôs os princípios universais com o rigor e esquematização de um aritmético . Suas principais obras foram escritas durante a primeira metade do século XX, nas quais manifestou um discernimento agudo que expôs os erros do positivismo, do ocultismo e do espiritismo. Schuon, de outra parte, foi um filósofo, poeta e pintor. Ele foi além da contribuição pioneira de Guénon e aplicou os princípios universais na vida moral e social, na arte, na cultura, e nos diversos patrimônios religiosos do mundo. Suas principais obras foram escritas na segunda metade do século XX, durante o pleno ataque da blitzkrieg marxista e freudiana, e dos relativismos niilistas e da Nova Era. Estes dois autores mostraram que as sementes da Filosofia Perene são encontradas nas dimensões contemplativas das religiões tradicionais: no Advaita Vedanta (não-dualismo) do Hinduísmo; no Zen e na “Terra Pura” do Budismo; nas místicas cristãs e no Hesicasmo; no Sufismo islâmico. Vestígios dessas dimensões podem ser encontrados, "por trás dos véus" das grandes Escrituras Sagradas, nas intuições metafísicas do Antigo e do Novo Testamento, por exemplo, no Eclesiastes de Salomão e no Evangelho de São João, e também nas ideias do grande mestres espirituais ao longo dos séculos. 9

A Filosofia Perene aponta para as analogias que existem entre a via crística e os caminhos das outras religiões, e também elementos do Cristianismo que exprimem a Filosofia Perene. Ela lida com temas como a base metafísica da fé cristã, o significado dos sacramentos, de suas formas de oração, e suas realizações artísticas e culturais – e como essas formas artísticas contribuem para a iluminação e a salvação do homem.

Durante os mil anos que se seguiram ao colapso da antiga civilização greco-romana, Cristianismo e civilização ocidental foram praticamente sinônimos. Mas, desde a revolução que foi o Renascimento (séculos XV e XVI) e, através de uma longa série de revoluções posteriores, como o Iluminismo (século XVIII) e, já na segunda metade do século XX, a “revolução palaciana” no interior da própria cidadela da religião que foi o Concílio Vaticano II, o Ocidente foi se separando cada vez mais radicalmente de suas origens e moldes cristãos. O divórcio é hoje quase completo e irreversível; o caos e a instabilidade engendrados pelo materialismo e o secularismo do mundo moderno finalmente penetraram dentro dos muros da própria fortaleza da religião – com resultados trágicos para a sociedade como um todo. A fim de que a religião não fique refém deste caos, os autores perenialistas são unânimes em dizer que ela deve voltar-se para o seu núcleo de sabedoria, para a "Verdade que liberta", como expressou São João em seu evangelho (8:32). E é exatamente isso que eles fazem, expondo e debatendo a religião de forma profunda e objetiva, e colocando a nossa disposição as chaves que nos permitem compreendê-la e vivê-la "com todo o coração, com toda a alma, com toda a nossa mente e com todas as nossas forças" (Marcos,12:30). *

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