A filtragem racial e a Polícia Militar do Estado de São Paulo

June 4, 2017 | Autor: M. Schlittler | Categoria: Relações Raciais, Polícia Militar
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8º Encontro da ANDHEP Políticas Públicas para a Segurança Pública e Direitos Humanos 28 a 30 de abril de 2014 Faculdade de Direito, USP, São Paulo, SP

GT 7 - Justiça Criminal, Segurança Pública e Direitos Humanos

A filtragem racial e a Polícia Militar do Estado de São Paulo

Abril de 2014

2 A filtragem racial e a Polícia Militar do Estado de São Paulo Maria Carolina de Camargo Schlittler1 Jacqueline Sinhoretto2

Apresentação

A seletividade no sistema de justiça criminal e na segurança pública é, desde os anos de 1970 e 1980, um tema recorrente aos estudos sobre controle estatal do crime e punição no Brasil. Entretanto, foi somente em tempos recentes que a questão racial passou a ser discutida como um componente de seletividade, seja nas práticas jurídicas seja nas práticas policiais. A proposta desta comunicação é discutir alguns dados de duas pesquisas realizadas pelo Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos (GEVAC/UFSCar), no ano de 2013, no âmbito da linha de pesquisa Segurança Pública e Relações Raciais, do Programa de Pós Graduação em Sociologia (PPGS) da UFSCar. Para tanto, é necessário explicitar os objetivos destes estudos. O primeiro deles, intitulado “A filtragem racial na seleção policial de suspeitos: segurança pública e relações raciais no Brasil”, é um estudo comparativo realizado em quatro estados brasileiros (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Distrito Federal) e que investigou a existência da filtragem racial3 nas práticas das polícias militares. O recorte metodológico se orientou pela investigação de três eixos: i) indicadores da atividade policial e seus resultados sobre os distintos grupos étnico-raciais; ii) compreensão das acusações de racismo institucional na atuação policial formulados pelo associativismo civil e identificação de ações de enfrentamento ao racismo no campo da segurança; iii) compreensão das respostas institucionais das polícias

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar. Integrante do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos (GEVAC) da UFSCar. Bolsista CAPES. Orientanda da Prof.ª. Dr.ª. Jacqueline Sinhoretto. Contato: [email protected] 2 Professora do Departamento de Sociologia da UFSCar. Líder do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos (GEVAC) da UFSCar. Contato: [email protected] 3 Filtragem racial (racial profiling, em inglês) é um termo utilizado pa ra descrever os mecanismos pelos quais os policiais valorizam as características físicas, de aparência e vestimenta, como fatores exclusivos ou primordiais para a decisão de suspeitar e agir sobre um indivíduo ou grupo de pessoas.

3 militares para o enfrentamento ao racismo institucional, como punição de abusos, procedimentos de abordagem policial e cursos de formação policial4. Já a segunda pesquisa, intitulada “Segurança Pública e Relações Raciais em São Paulo: letalidade policial e prisões em flagrante”, desenvolvida pelo GEVAC e com financiamento parcial do CNPq, objetivou verificar a existência de mecanismos de produção da desigualdade racial na atividade policial de São Paulo. Diante da inexistência de dados disponíveis sobre a atividade policial de abordagem, foram utilizados outros indicadores de monitoramento do tratamento policial nos diferentes grupos da população paulista. Para tanto, foram coletados e analisados dados quantitativos sob letalidade e prisões em flagrante. No acúmulo da produção destas pesquisas emergiu o reconhecimento, construído no plano analítico por meio do tratamento dos diferentes dados coletados em campo, de que a racialização das relações sociais no Brasil se expressa de maneira contundente no campo da segurança pública. As evidências empíricas da produção da desigualdade racial na segurança pública foram identificadas a partir de três indícios a) inexistência de indicadores sobre a questão racial no campo da segurança pública, b) dados sobre letalidade policial e c) dados sobre prisões em flagrante. Evidências de que o controle do crime é operado de forma racializada foram reunidas na análise das entrevistas de policiais militares, de diferentes patentes, e que ocupam tanto cargos de gestão como atuam em operações nas ruas. Os dados reunidos nesta comunicação pretendem problematizar os resultados da atividade policial e seu impacto sobre os diversos grupos sociais, usando os indicadores de cor/raça. E ainda, como as informalidades da prática policial na atividade de seleção de suspeitos permitem as práticas policiais abusivas, criando desvantagens para alguns grupos populacionais, em especial os jovens negros.

A invisibilidade da questão racial para a segurança pública: os desafios da coleta de dados 4 A pesquisa foi financiada pelo Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Segurança Pública e PNUD, mediante edital Pensando a Segurança Pública – 2ª edição. Para o desenvolvimento da pesquisa, a UFSCar liderou uma rede de pesquisa que envolveu os grupos da Universidade Federal de São Carlos (GEVAC e NEAB), da Universidade Federal Fluminense (NUFEP), Universidade de Brasília (NEVIS) e Fundação João Pinheiro (NESP), agregando 34 pesquisadores.

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Um dos desafios comuns às duas pesquisa citadas foi a busca por indicadores na segurança pública para servir ao propósito de investigar a produção de desigualdades nas práticas policiais, sobretudo considerando-se o recorte racial. Verificou-se que a categoria cor/raça não figura nos dispositivos de análise e monitoramento de ações do campo da segurança pública. Não que a categoria não exista nos documentos e sistemas que geram os registros das polícias e demais registros técnicos. Por vezes, ela existe. Mas ela não é tratada como indicador relevante de avaliação da ação policial e de toda a segurança pública. Ainda que a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP/SP) divulgue mensalmente dados sobre alguns tipos de ocorrências e atividades policiais, estes não podem ser desagregados segundo informações que permitam reconhecer o perfil dos indivíduos que são alvo das investidas policiais5. Constata-se ausência de sistematização de dados, seja pela não desagregação dos dados divulgados, seja pela “opacidade”6 destes números (Lima, 2011). Verificou-se ainda que não há bases de acesso público sobre o resultado das atividades policiais, principalmente, no que se refere à abordagem policial – indicador privilegiado para reconhecer e monitorar o fenômeno da filtragem racial na prática policial de seleção dos suspeitos. Diante da indisponibilidade de informações, indicadores sobre letalidade policial e prisões em flagrante foram buscados como forma de informar o perfil das pessoas que são alvos das ações policiais. Para a obtenção destas informações foi necessário a) solicitar à SSP/SP levantamentos aprofundados nas bases de registros de ocorrência sobre prisões em flagrante e cruzamentos específicos que permitissem analisar as 5 A SSP/SP mantém setor que divulga periodicamente, desde 1995, estatísticas criminais organizadas por tipos de crime, que podem ser desagregados por cidade e, no caso da cidade de São Paulo, por distrito. A Coordenadoria de Análise e Planejamento divulg a os dados relacionados a ocorrências policiais e produtividade policial mensalmente no site da SSP/SP, desde 2011. Trimestralmente divulga dados relativos à atuação das polícias, conforme a Lei 9155/9510, incluindo as ações que resultaram em homicídio. Con tudo, os dados divulgados não são desagregados pelo perfil dos envolvidos, tampouco usam a classificação cor/raça. Consultar o site da SSP/SP. Disponível em . Consultado em 10 de abril de 2014. 6 Para Renato Lima (2011), as estatísticas produzidas pelo sistema de justiça criminal têm um papel político na história brasil eira. Segundo o autor, mesmo com o processo de redemocratização e o aumento da pressão por transparência e controle público das agências estatais de justiça e segurança, o “segredo” permanece como modus operandi do sistema de justiça criminal, sobretudo p ela polícia, na transparência dos dados, nas sofisticadas tecnologias e linguagens técnicas usadas pelos operadores. O problema s e desloca da produção de conhecimento para o uso que se faz dos dados produzidos. Neste sentido, mesmo havendo constante produção de números, eles pouco permitem conhecer mais a fundo a realidade a que se referem, o que cria um efeito de opacidad e.

5 informações desagregadas pelas variáveis de cor/raça dos presos e b) construir uma base de dados sobre letalidade policial a partir de consulta aos processos reunidos na Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo 7. A atividade de coleta foi empreendida pela equipe de pesquisadores do GEVAC/UFSCar8. A SSP/SP forneceu, entre informações de outras naturezas, uma tabela sobre o perfil das pessoas presas em flagrante, segundo a informação cor do preso e tipos de crimes mais frequentes, para o período de 2008 a 2012, no estado de São Paulo. Analisar os dados referentes ao perfil racial dos presos na modalidade flagrante mostrou-se um interessante indicador para o objetivo pretendido, pois este tipo de prisão poucas vezes decorre de uma investigação criminal prévia, executada por meio de mandado judicial, sendo muito mais recorrente em casos de abordagem policial. Permite ainda verificar a atuação de estereótipos racializados na atividade de identificação dos “suspeitos” – prática operacionalizada por um saber-fazer policial não pautado em critérios objetivos e permeada por um conjunto de valores e moralidades informado pelo cotidiano e construído “na rua” (Kant, 2009). Já a estratégia de analisar os dados referentes à letalidade policial se justifica pela existência, em praticamente todos os casos autuados na Ouvidoria9, de documentos oficiais como Boletim de Ocorrência, Inquérito Policial Civil ou Militar, laudos necroscópicos, entre outros, que em geral trazem informação sobre a cor/raça da vítima de homicídio. Dossiês da Ouvidoria sobre ocorrências de outras naturezas, como abuso de autoridade e abordagem excessiva, foram consultados na fase de teste do desenho da coleta de dados, mas foram excluídos devido à escassez de documentos que descrevem informações sobre a vítima, constituindo uma fonte muito limitada. Assim, nos casos de homicídio cometido por policiais, é possível observar o 7 Agradecemos a inestimável colaboração do Ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo, de seu assessor e de toda a equipe de servidores da Ouvidoria para que a equipe de pesquisa pudesse ter acesso aos documentos que serviram de fonte. 8 Esta pesquisa foi coordenada por Jacqueline Sinhoretto, sendo a coordenação do campo realizada por Giane Silvestre com a participação dos pesquisadores Maria Carolina Schlittler, Giulianna Denari, Kathleen Ângulo, Henrique Linica Macedo, David Marques, Yasmin Miranda e Letícia Canonico de Souza. 9 A Ouvidoria recebe denúncias de diferentes naturezas sobre práticas consideradas abusivas e/ou excessivas por parte dos polic iais civis e militares. Realiza também um acompanhamento minucioso dos casos de homicídio envolvendo policiais, provocando as respectivas corregedorias, Defensoria Pública, Ministério Público e Judiciário com pedidos de informações e providências cabíveis em cada um dos casos. Para cada denúncia que a Ouvidoria recebe abre-se um processo interno de acompanhamento até que uma providência seja tomada pelo órgão responsável. Processos que se revelaram uma rica e complexa fonte de dados para a presente pesquisa.

6 perfil da vítima com base nos documentos oficiais e observar a frequência da variável cor/raça. O acesso às informações referentes à prática policial e sua relação com a variável cor/raça foi também buscado por uma terceira estratégia metodológica, que esteve ligada especialmente ao desenvolvimento da pesquisa “A filtragem racial na seleção policial de suspeitos: segurança pública e relações raciais no Brasil”. Trata-se da observação direta a partir de entrevistas com policiais (oficiais e praças) e trabalho de campo junto aos policiais em operação nas ruas10. Foram acessados interlocutores de diferentes patentes, tanto da gestão do sistema de segurança pública como policiais militares que atuam nas ruas realizando abordagens. O objetivo foi acessar diferentes saberes policiais: um de caráter operacional – com policiais de linha, que possuem experiência de trabalho nas ruas – e outro de cunho gerencial e doutrinário – com policiais que ocupam cargos de comando nas corregedorias, diretorias ou seções de planejamento, operação e ensino, policiamento comunitário, direitos humanos, entre outras.

Os dados quantitativos O banco de dados sobre letalidade policial foi constituído por informações coletadas em processos, autuados na Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo, sobre mortes em decorrência da ação policial, entre os anos de 2009 e 2011. Nos 734 casos analisados foram coletadas informações referentes a 939 vítimas e 2162 autores (policiais). Em relação ao perfil das vítimas, verificou-se que elas são predominantemente negras11 (61%), homens (97%) e jovens, entre 15 e 29 anos. Ao realizar o cruzamento das variáveis cor/raça (conforme registro no BO) e idade, é possível perceber que a maioria das vítimas é formada por jovens negros, conforme gráfico 1. 10 O trabalho de campo com policiais em operações nas ruas foi realizado com aqueles que atuavam no centro cidade de São Paulo, aos finais de semana. Optou-se pelo local e pelos dias em razão da existência da “Operação Delegada”, que é um convênio entre a PMESP e a Prefeitura do Município de São Paulo, firmado em 2009, com o objetivo de empregar policiais militares em dias de fo lga no controle da atividade do comércio informal no centro da cidade. O convênio prevê remuneração adicional àqueles que se inscrev erem no programa, o que atrai policiais de diversas cidades da região metropolitana e de diferentes unidades da corporação. Tal especificidade no perfil dos profissionais que atuam no convênio foi percebida como uma possibilidade de acessar um grupo de profissionais bastante heterogêneo da PMESP. 11 Para a coleta dos dados foram utilizadas as categorias negro, preto, prado. Contudo, para a análise exposta, entende-se a categoria negro como a soma das categorias preto e pardo, seguindo assim a tendência da produção estatística oficial e das análises acadêmicas preocupadas em dimensionar as desigualdades raciais no país.

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Gráfico 1 - Idade e cor/raça das vítimas de mortes em decorrência da ação policial. Estado de São Paulo, 2009 a 2011 140

Número de vítimas

120 100 80 60 40 20 0

Negro

Branco

Fonte: Ouvidoria da Polícia; GEVAC/UFSCar

Os dados indicam que a letalidade policial é maior sobre a população negra. Ao calcular as taxas de mortos por 100 mil habitantes, dentro de cada grupo de cor/raça, no ano de 2011, é possível observar que são mortos três vezes mais negros do que brancos. Conforme tabela 1 e gráfico 2.

Tabela 1 - Mortos em decorrência da ação policial segundo grupos de cor/raça, em taxas por 100 mil habitantes. Estado de São Paulo, 2011

População residente Mortos em decorrência da ação policial Taxa

Negros

Brancos

14.287.843

26.371.709

193

131

1,4

0,5

Fonte: Ouvidoria da Polícia; IBGE; GEVAC/UFSCar

8 Gráfico 2 – Mortos em decorrência da ação policial segundo grupos de cor/raça, em taxas por 100 mil habitantes. Estado de São Paulo, 2011

1,4

0,5

Negros

Brancos

Fonte: Ouvidoria da Polícia; GEVAC/UFSCar

Outro dado relevante, agora em relação ao perfil dos autores (policiais), é que a Polícia Militar é responsável por 95% da letalidade policial no estado, sendo que 90% dos autores são praças, com destaque para soldados e sargentos. Por volta de 30% pertencem a grupamentos especiais, com destaque para a ROTA e a Força Tática. Os resultados da ação policial violenta refletem a desigualdade racial na segurança pública, já que as ações policiais vitimam três vezes mais negros do que brancos, quando se considera a proporcionalidade entre brancos e negros na população paulista. No ano de 2011, por exemplo, em cada grupo de 100 mil negros 1,4 foi vítima de ação letal da polícia; enquanto que num grupo de 100 mil brancos a taxa de letalidade por ação da polícia é 0,5. Portanto, as taxas de mortes produzidas pelas polícias, segundo cada grupo de cor/raça, refletem a produção da desigualdade racial, assim como a persistência do racismo institucional no campo da segurança. Foram fornecidos pela CAP/SSP à equipe de pesquisa os dados sobre prisões em flagrante para os crimes de roubo e homicídios, desagregados pela cor/raça dos presos, mesmo tendo sido solicitados os dados sobre os crimes mais frequentes. Os dados obtidos indicaram que a vigilância policial recai

9 preferencialmente sobre a população negra. A série histórica é referente ao período de 2008 a 2012, e indica que 54,1% dos presos em flagrante são negros, conforme gráfico 3. Gráfico 3 - Prisões em flagrante no estado de São Paulo (roubo e homicídio), segundo cor/raça 2008-2012

AMARELO

IGNORADO

0,1%

2,9%

BRANCOS

42,9%

NEGROS

0,0%

54,1% 10,0%

20,0%

30,0%

40,0%

50,0%

60,0%

Fonte: SSP/SP

É possível observar uma sobrerrepresentação da população negra nas prisões em flagrante, pois quando se calcula a taxa de presos em flagrante no ano de 2012 segundo cor/raça proporcionalmente às populações branca e negra residentes no estado com 18 anos ou mais, a maior incidência das prisões em flagrante sobre a população negra é observada. Enquanto que para cada 100 mil habitantes brancos 14 são presos, para cada 100 mil habitantes negros 35 são presos12, nos tipos de crime analisados.

12 Taxa calculada a partir do número de prisões em flagrante obtido junto à Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo no ano de 2012 e população residente no estado de São Paulo com 18 anos ou mais, de acordo com o Censo 2010 do IBGE, segundo brancos e negros.

10 Tabela 2 – Presos em flagrante segundo cor/raça (roubos e homicídios), em taxa de 100 mil habitantes em São Paulo – 2012 Negros

Brancos

10.187.982

19.719.035

Presos em flagrante em 2012

3592

2682

Taxa por 100 mil habitantes

35

14

População residente com 18 anos ou mais

Fonte: IBGE; SSP; GEVAC/UFSCar

Gráfico 4 – Presos em flagrante segundo cor/raça (roubo e homicídio), em taxa de 100 mil habitantes em São Paulo – 2012

35

14

Negros

Brancos

Fonte: IBGE; SSP; GEVAC/UFSCar

Os dados sobre prisões em flagrante apontam maior vigilância policial sobre a população negra, que se reflete na concentração do número de prisões em flagrante sobre este grupo. Este tipo de prisão não decorre de uma investigação criminal prévia, executada por meio de mandado judicial, sendo muito mais recorrente em casos de abordagem policial. Ou seja, os dados indicam que, no cometimento de delitos, os negros são flagrados com maior frequência do que brancos, pois são mais visados pela ação policial.

11 Os números fornecidos pela SSP listaram como principais ocorrências em que ocorrem flagrantes os crimes de roubo e homicídio 13. O primeiro subdivide-se em 16 tipos e, para análise, optou-se em agregar as ocorrências em dois grandes grupos – roubos e homicídios. Foi possível perceber a alta representatividade do crime de roubo nas prisões em flagrante (tabela 19). Tabela 3 - Presos em flagrante, segundo agregado de ocorrências. Estado de São Paulo, 2008-2012

Ocorrência

Presos

Percentual

Homicídios

1877

2,7%

Roubos

68322

97,3%

Total

70199

100,0%

Fonte: SSP/SP

Como destacado acima, a maioria das pessoas presas é negra (54,1%). Porém, ao compararem-se brancos, negros e casos de cor ignorada segundo o agregado das ocorrências, nos casos de pessoas presas por homicídio a maioria é branca, representando 55,7%, negros representam 42,2% (vide tabela 4). Tabela 4- Presos em flagrante segundo cor/raça, por agregado de ocorrências. Estado de São Paulo, 2008-2012

Cor/raça

Homicídios

Percentual

Roubos

Percentual

Brancos

1044

55,7%

29059

42,6%

Negros

789

42,1%

37197

54,5%

Ignorados

42

2,2%

1993

2,9%

Total

1875

100,0%

68249

100,0%

Fonte: SSP/SP

Portanto, os dados sobre prisões em flagrante expressam que a vigilância policial privilegia as pessoas negras e as reconhece como suspeitos 13 Não foram fornecidos pela SSP os dados sobre outros crimes, como o de tráfico de drogas.

12 criminais, flagrando em maior intensidade as suas condutas ilegais, ao passo que os brancos, menos visados pela vigilância policial, gozam de menor visibilidade diante da polícia, sendo surpreendidos com menor frequência em sua prática delitiva. É possível também que as atividades criminais mais frequentemente cometidas por negros sejam mais vigiadas, ao passo que atividades criminais mais comuns entre brancos despertem menor atenção da polícia. Como dito anteriormente, o acesso às informações referentes à prática policial e sua relação com a variável cor/raça foi também buscado por meio de entrevistas com policiais militares14, de diferentes patentes, que ocupam cargos de gestão e atuam no policiamento das ruas da capital do estado. De maneira geral, tanto oficiais quanto praças negaram a prática da filtragem racial nas atividades de policiamento, creditando à “fundada suspeita” o mecanismo principal para a seleção daqueles que sofrem investidas da polícia. A “fundada suspeita” é fruto, segundo os interlocutores, da experiência que o policial adquire nas ruas para identificar um suspeito ao primeiro olhar e os signos da suspeição. Esta experiência adquirida é nomeada de “tirocínio policial” – qualidade positivada entre os interlocutores e construída mediante o “tempo de rua” que um policial possui. Contudo, ainda que a seletividade racial na ação policial seja negada entre os interlocutores, muitos dos elementos que compõem a chamada “fundada suspeita” remetem a características específicas de grupos sociais, como faixa etária, pertença territorial, signos de um estilo de vestir, andar e falar que reivindica aspectos da cultura negra, e que é, em muitos casos, também constituinte de uma cultura “da periferia”. Conforme atestam os depoimentos, a vestimenta e a postura corporal são consideradas indícios empíricos a fundamentar a suspeita policial. Estando a atividade da Polícia Militar ancorada no campo do policiamento ostensivo, a possibilidade do confronto inesperado com um potencial “inimigo” é algo presente na rotina do policial, o que faz da abordagem um momento especialmente tenso e imprevisível. O desfecho favorável deste momento, ao menos para na visão policial, dependerá da 14 Vale destacar que a Polícia Militar é responsável por 95% dos casos de mortes em decorrência da ação policial, segundo os dad os coletados na Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo.

13 capacidade do agente em realizar a suspeição, conseguindo destacar potenciais “inimigos” do meio da multidão, antecipando e administrando assim os riscos da abordagem. “Concretizar a suspeita” para eles é uma competência inscrita num campo em que estão presentes tanto componentes objetivos, advindos de uma ordem técnica racionalizada e transmitida por meios institucionalizados, como por componentes que escapam à objetivação. Estes remetem a um saber informal, adquirido no cotidiano e construído “na rua”. A materialidade do tirocínio é expressada quando o policial tem a habilidade de mapear lugares, horários, condições em que é possível realizar uma operação policial “bemsucedida”, bem como quando é capaz de avaliar a existência de armas ou de objetos ilícitos a partir de uma leitura dos movimentos corporais dos transeuntes ou dos motoristas. Como afirmaram diversos autores (Paixão, 1982; Kant de Lima, 1995; Mingardi, 1992), para as polícias brasileiras prevalece a concepção de que o criminoso pode ser “reconhecido” por aquele que detém um saber policial. Saber, porém, que só pode ser transmitido na prática, por não ser público e por não estar registrado em normas escritas. Ele é antes uma habilidade desenvolvida pela(o)s policiais, a partir de suas práticas cotidianas, de ser capaz de antecipar a conduta de uma pessoa mediante sinais que esta exibe em seu corpo, em sua fala, em sua expressão e na interação com policiais. Kant de Lima evidenciou em seus estudos que esta prática policial não é apreendida nas escolas de formação, tendo assim sua “própria teoria”, constituída a partir do dia-a-dia do trabalho policial - por sua vez, a teoria das escolas de formação das polícias também tem sua própria prática (Lima, 1995). Com as entrevistas percebeu-se que o tirocínio leva os policiais a abordarem pessoas que utilizam vestimentas e símbolos do hip hop. Ou seja, a suspeição recai sobre tipos de pessoas que são racializados a partir de marcadores corporais, sendo a vestimenta aquele melhor verbalizado pelos policiais. Diante da dificuldade de racionalizar as formas pelas quais a polícia seleciona as pessoas que serão abordadas, a racialização fornece elementos para orientar a sua ação, sobretudo a partir de marcas fixas: adereços, tatuagens, vestimentas típicas de certas tribos urbanas.

14 Se, por um lado, negam ações discriminatórias a partir de categorias raciais, principalmente no que tange à abordagem, por outro, os policiais admitem haver um público “alvo” preferencial das ações policiais: “não há abordagem discriminatória na PM contra negros, é mais mesmo em relação aos pobres. Não dá pra dizer que a PM aborda rico e pobre da mesma maneira”, afirmou um policial entrevistado. Contudo, conhece-se a acusação de que as pessoas negras são mais frequentemente presas: “os policiais são muito acusados de prenderem pessoas porque elas são negras, principalmente na periferia”, revela outro excerto de entrevista. Os entrevistados, em geral, reconhecem a filtragem e preferência de abordagem de tipos de pessoas caracterizados por sua corporalidade, que mistura traços de classe, faixa etária, território e signos culturais expressos pelo gosto ou estilo de vida – combinação que marca o tipo com o signo da suspeição criminal15. Esta discriminação é nomeada pelos entrevistados como “discriminação de classe”. Ao mesmo tempo, recusa-se reconhecer os componentes raciais desta discriminação; o racismo é tabu na fala dos policiais. Não obstante, o que eles nomeiam como classe está muito distante de ser uma classificação puramente econômica, tratando-se, diversamente, de uma leitura racializada da classe, uma classe que possui cor, gênero, idade e origem. Os dados provenientes das três estratégias de acesso às informações de como as práticas policiais se relacionam com os diferentes grupos raciais, convergem no entendimento de que o controle do crime no estado de São Paulo está ancorado no policiamento ostensivo e na vigilância acentuada sobre determinados grupos populacionais, além de ser marcado pelo excesso do uso da força policial, que culmina em um alto grau de letalidade (cf. Sinhoretto, 2014). A análise conjunta dos dados estatísticos com os dados oriundos das entrevistas permite o reconhecimento de que a seletividade racial na prática policial – demonstrada pelas estatísticas – é operada quando as variáveis raça/cor, idade, região, horário e corporeidade se cruzam, pois os “tipos suspeitos” são construídos pelos policiais a partir de critérios estigmatizantes

15

Conforme conceito elaborado por Michel Misse (2009)

15 que informam tanto a ação policial como as medidas a serem tomadas pelos mesmos. O reconhecimento de que o controle estatal do crime em São Paulo, especialmente, o executado pela Polícia Militar, produz efeitos diferenciados a depender do público alvo das investidas policiais leva à conclusão que a segurança pública em São Paulo é operada de modo racializado.

O controle do crime e a produção de desigualdades

Durante os anos de 1980, alguns autores analisaram diferentes períodos do século XX como forma de compreender as permanências e rupturas, em tempo de democracia, na aplicação desigual de regras e procedimentos judiciais a indivíduos de diferentes grupos sociais. No que se refere ao campo da justiça criminal, destacam-se os estudos de Costa Ribeiro (1995)16 e Sam Adamo (1983)17. As conclusões destes autores apontaram que, no período analisado, aos negros eram dadas penas mais

severas

pelos

representantes

do

sistema

jurídico-policial,

comparativamente aos brancos. A explicação era que o estereótipo de criminoso e o status econômico dos “não-brancos” se combinavam num sistema de acumulação de desvantagens para os mesmos, o que levava os agentes do sistema de justiça criminal a usar critérios diferentes para julgar brancos e “não-brancos” (Ribeiro, 1995; p. 63)18. O que foi também apontado por Edmundo Campos Coelho (1986), em sua pesquisa sobre o fluxo da justiça criminal do Rio de Janeiro, entre os anos de 1942 e 1967. Segundo este, certos grupos sociais, marcados por cor, situação ocupacional e nível de educação, sofriam a vigilância policial de forma mais intensa. Adorno, em seu estudo publicado no ano de 1996, problematiza como a cor/raça é um elemento relevante na distribuição desigual de justiça. O autor argumenta que, mesmo quando analisados crimes juridicamente idênticos cometidos por negros e por brancos, “os réus negros tendem a ser mais 16 O autor pesquisou o Tribunal do Júri da cidade do Rio de Janeiro, na primeira metade do século XX. 17 O autor analisou as estatísticas oficiais da polícia do Rio de Janeiro, entre os anos de 1880 e 1940. 18 Ideia corroborada por estudiosos do período, como por exemplo, Nina Rodrigues, quem afirmava que as pessoas da raça preta e mestiça eram mais “(...) afeitas ao crime do que as pessoas da raça branca” (NINA RODRIGUES, 1984). Ele e outros autores como Euclides da Cunha (1936) e Arthur Ramos (1937) procuravam em fatores biológicos e culturais explicações para as estatísticas criminais da época, que mostravam que pretos e pardos eram mais condenados do que brancos.

16 perseguidos pela vigilância policial, enfrentam maiores obstáculos de acesso à justiça criminal e mais dificuldades de usufruir do direito de ampla defesa assegurado pelas normas constitucionais” (p. 54). Outro estudo de sua autoria, também da década de 1990, analisa como o fato criminal é menos importante no processo judicial do que as análise das “moralidade” das pessoas envolvidas no conflito, ou seja, como a desigualdade social influencia na aplicação do Direito Penal (Adorno, 1994). Pinheiro (1979, 1997), Paixão (1982), Mingardi (1992), Oliveira (2004), Mesquita Neto (1999), Francisco de Souza (1994) e Kant de Lima (1995) assumiram a vanguarda na realização de pesquisas sobre o papel das polícias na produção de desigualdades em tempos de democracia. Estes autores enfatizaram

as

possibilidades

e

limites

de

reformas

das

polícias,

principalmente, diante da característica discricionária do trabalho policial e da dimensão informal da cultura organizacional das polícias. A conclusão comum a estes estudos é que existem processos sociais que modificam o pressuposto constitucional de que todas as pessoas serão tratadas da mesma forma pelas polícias. Vale salientar o trabalho de Pinheiro (1979) sobre as dificuldades que as polícias, ao longo da história do país, tiveram em exercer o monopólio legítimo da violência, dentro de marcos legais de respeito aos direitos civis, diante de representantes de classes populares/subalternas. Conforme analisa Pinheiro (2000, p. 263), a não consolidação dos direitos civis, associada a uma cultura policial autoritária e a discricionariedade do trabalho policial acabam legitimando a violência policial seletiva. Kowarick (2002) atesta a constatação de Pinheiro (2000) ao relatar a eclosão de esquadrões da morte, compostos por policiais e atuando, sobretudo, em periferias. Entretanto, se a questão social sempre permeou estudos sobre a atuação das polícias na produção de desigualdades, o mesmo interesse de pesquisa não é percebido sobre a questão racial. São escassos os estudos que questionam o quão desigual pode ser a atuação das polícias diante dos diversos grupos raciais, especialmente no estado de São Paulo. É válido frisar que tal lacuna não ofusca a produção de estudos que relacionaram como o

17 critério cor/raça influencia o fluxo do sistema de justiça criminal, conforme se verificou nas pesquisas descritas nas páginas anteriores desta comunicação. Esta escassez de estudos que dimensionem a raça como fator de desigualdade na segurança pública pode estar relacionada ao fato de que, diferentemente dos EUA19, no Brasil, até a década de 1990, a questão da raça não se configurou enquanto um forte elemento de análise das desigualdades, seja na percepção do Estado, seja como pauta de mobilizações políticas coletivas. No contexto brasileiro, a subalternidade provocada pelo pertencimento racial e social não aparece de forma objetiva o que, de certo modo, “esvazia” a construção típica e ideal de raça, tal como apresentada nos contexto americano ou sul-africano, por exemplo. Segundo Guimarães (2002), esse dilema foi percebido pelas lideranças do Movimento Negro no final do século XX que, sabiamente, tentaram acomodar suas reivindicações e suas políticas afirmativas a fórmulas mais abrangentes como a do “negro carente”. Para dar conta desta realidade racial brasileira, em que a desigualdade racial aparece imbricada à desigualdade de classe, Guimarães (1999) acompanha a tendência de uso do conceito de “racialização” para fins analíticos (que também aparece em Silvério, 1999), pois permite verificar as interssecionalidades (Brah, 2006) entre classe e raça em fenômenos sociais. Ou seja, possibilita compreender, analiticamente, o significado de certas classificações sociais e de certas orientações de ação informadas pela ideia de “raça”. Para Guimarães, o termo “racialização” é importante porque resgata a ideia de raça enquanto uma categoria indispensável: “a única que revela que as discriminações e desigualdades que a nação brasileira de ‘cor’ enseja são efetivamente raciais e não apenas de classe” (p.50). A utilização do conceito, de maneira analítica e metodológica, permitiria ao sociólogo “inferir a permanência da ideia de raça disfarçadas em algum tropo” (p. 54).

19 Nos EUA, o tema do racial profiling tem sido debatido desde a década de 1970, quando militantes antirracistas (como por exemplo, o movimento Black Powers e os nacionalistas chicanos), passaram a elaborar críticas ao racismo do Estado, visando denunciar a s injustiças nos setores de segurança, informações e policiamento policial nos EUA (Amar, 2005, p 237). Estudos como os de Amar (2005) e Meeks (2000) tiveram sucesso em apontar a raça enquanto um fator de desvantagem para alguns grupos em situações de contato com a polícia, no contexto norte americano. Outros condicionantes de desvantagens, como por exemplo, a questão socioeconômica, foram apontados como fatores secundário neste processo .

18 A seletividade racial na ação policial: o papel do policiamento ostensivo e do combate militarizado

No que se refere a Polícia Militar, alguns estudiosos se dedicaram a compreender

como

o(a)s

policiais

realizam

o

trabalho

ostensivo

e,

principalmente, como ocorre a identificação de suspeitos. Suassuna (2008), por exemplo, a partir de pesquisa de campo conduzida no Distrito Federal junto à PM, problematiza como a pressão por eficiência pode reforçar possíveis saberes apreendidos “nas ruas”, recheados de construções estereotipadas acerca de quem é “o suspeito”. Para o desempenho otimizado da função policial, a atividade de suspeição é um instrumento importante e, diante da ausência de critérios institucionais para a suspeição, critérios subjetivos são mobilizados pelos policiais militares. Segundo Suassuna, a tentativa de tornar mais objetiva a mobilização destes critérios leva os policiais a descreverem o chamado de “kit peba” – o qual serve como indicativo para a suspeição de pessoas e que se refere a um modo de andar, peças do vestuário, formas de falar e olhar, uso de acessórios, horários e locais de trânsito. O trabalho de Suassuna (2009) é importante para demonstrar como conflitos entre os níveis institucional e do agente (policial militar) – que, por ventura, possam surgir da utilização de saberes informais para a seleção de suspeitos o que, em tese, afrontaria os saberes institucionais apreendidos nas academias de polícia – são relativizados diante da necessidade de eficiência nos resultados da instituição. Ou ainda, como estes “informalismos” (Paixão, 1982) tem anuência velada do Estado em favor da produtividade no trabalho do policial. Situação semelhante foi descrita, nos anos de 1980, por Mingardi (1992) sobre a ilegalidade das prisões correcionais (os chamados “corrós”) nas delegacias de polícias e das “vistas grossas” que o Estado fazia sobre a sua existência. Ou ainda, segundo o autor, como o Estado assegurava a permanência destas prisões por meio, por exemplo, do fornecimento de alimentação a estes “presos”. O autor relata que a ausência de conflito entre a instituição policial e esta prática informal dos policiais civis decorria, sobretudo, da imprescindível utilidade dos “corrós” na garantia de eficiência da atividade

19 policial, principalmente, no procedimento de montagem do inquérito policial “de trás para frente” (Idem, p. 54). A hipótese é que a atuação policial marcada pela informalidade, e orientada por práticas racializadas, pode se relacionar à busca por eficiência na atividade policial, inscrita justamente em um campo com pouca confrontação pelos níveis institucionais de controle da polícia, dada a pressão por eficiência e otimização de resultados. Ou seja, há uma prática policial consolidada, executada no nível “da rua” e administrada pelas posições de comando, que legitima tipos de ações como forma de administrar o controle estatal do crime a segmentos populacionais específicos. Afinal, há todo um aparato institucional, como por exemplo a possibilidade do registro nas delegacias de polícia das mortes em decorrência policial na categoria “resistência seguida de morte”, que se não valida a ação racializada, ao menos, não interrompe a sua continuidade. Uma exemplificação deste argumento é o papel do Ministério Público na legitimação das mortes cometidas por policiais, conforme demonstra o estudo de Misse (2011) sobre os autos de resistência no Rio de Janeiro. Ou então, o estudo de Sinhoretto, Silvestre e Schlittler (2014) que verificou que a maioria dos policiais autores de mortes não foram indiciados, pois a conclusão do inquérito é que não houve crime de homicídio por parte dos policiais. O que implica afirmar que seletividade nas ações policiais pode se atrelar às discussões sobre como o limite entre força legítima e violência policial é algo impreciso e relacional, conforme é possível verificar nos estudos de Klockars (1996), Muniz et al (1999), Mesquita Neto (1999), Costa (2003), Costa & Medeiros (2002), Porto (2000), Adorno (2002). A conclusão destes trabalhos é que a linha demarcatória entre a força legítima e a arbitrariedade/abuso policial não é fixa, e sim varia em função da forma como cada sociedade interpreta a noção de violência e representa a função policial. O limite entre violência policial e estrito cumprimento da função policial atrela-se à representação social do indivíduo que sofre a ação policial, produzindo desigualdades na aplicação de regras e de procedimentos judiciais e da segurança pública. Conclusões sedimentadas, principalmente, pelos trabalhos de Paixão (1982) e Mingardi (1992) os quais sugerem que, em certos contextos, as informalidades e a violência policial podem ser admitidas, ou ainda, tratadas como método de trabalho.

20 Outra hipótese, complementar a primeira, conforme o modelo analítico desenvolvido em Sinhoretto (2014), é que a resposta militarizada para o combate aos supostos “criminosos” é, atualmente, uma das estratégias de controle estatal do crime, a qual produz alto número de mortes e é justificada pelas autoridades da segurança pública como uma forma legítima de atuação. Outra estratégia é a chamada “clássica” que produz maior número de indiciamentos, de condenações e de presos cumprindo pena no sistema carcerário, em expansão vertiginosa. Entretanto, estas seriam explicações rasas se à questão racial não for dada relevância analítica. A proposta deste paper – e do programa de pesquisa a que este se liga – é relacionar o padrão das relações raciais a um modelo de policiamento que, por um lado, privilegia o policiamento ostensivo em detrimento do processo de investigação policial, culminando assim num elevado índice de prisões em flagrante e encarceramento em massa. E por outro lado, tem um viés militarizado na vigilância policial, atingindo desigualmente sobre os grupos racializados e sobre determinados tipos de crimes, produzindo um altíssimo grau de letalidade policial, com vítimas preferenciais

entre homens jovens e negros,

oriundos de

territórios

estigmatizados.

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