“A florescente nação dos godos”: a transformação da enticidade e suas implicações políticas no Reino visigodo de Toledo (séculos VI-VII).

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“A florescente nação dos godos”: a transformação da enticidade e suas implicações políticas no Reino visigodo de Toledo (séculos VI-VII).

Patrick Zanon Guzzo (UFF - Translatio Studii)

Introdução

A questão étnica impõe-se como um elemento central na discussão política no continente europeu. A justificativa para uma enorme demanda de ações políticas ao longo dos tempos baseou-se em discussões referentes às origens e direitos de conquistas dos vários povos que ali viveram, de tal modo que a historiografia produzida nas nações foi amplamente influenciada, e na mesma medida atuou como elemento de influência em tais processos.1 No caso específico da Espanha, particularmente no contexto do Reino visigodo de Toledo, temos a formação de um Estado unificado territorialmente a partir do ano de 585, em meio a uma transição político-ideológica caracterizada pela reelaboração das instituições de poder. Neste sentido, a figura de Isidoro desponta com destaque. O bispo de Sevilha, em toda sua vasta obra, empreende um enorme esforço para construção de um novo sentido de etnicidade e “nacionalismo” entre os seus pares, de modo a reforçar os interesses da classe dominante ao estabelecer uma abordagem da política que beneficiasse a Igreja, a realeza e a aristocracia. A despeito desta intenção de Isidoro, deve se considerar o contexto em que esta é gestada. O momento histórico entre a aclamação de Leovigildo e o reinado de seu filho Recaredo caracteriza uma transição político-social na Península Ibérica na qual as bases do Regnum de Toledo são estabelecidas. E é justamente nestas condições que o discurso isidoriano acerca da concepção da nação goda vai se firmar, de modo a redimensionar a concepção da etnia gótica nestes novos tempos.

1

Para mais informações a respeito do tema consultar: WOOD, Ian. Barbarians, Historians, and the Construction of National Identities. Baltimore, Journal of Late Antiquity, Vol. 1, Nº 1, 2008, p. 61-81.

O projeto de unificação étnico-religiosa de Leovigildo

O momento que precede a ascensão de Leovigildo ao trono é marcado por uma profunda indefinição política interna entre os visigodos. Tal cenário resultava num delicado quadro macro-político: oprimidos entre os avanços suevos e os do Império Bizantino, os godos não constituíam um modelo político forte e centralizado capaz de fazer frente aos seus inimigos, o que consequentemente os fragilizava ante tais nações vizinhas. Apesar desta situação, o recém-empossado monarca empreende uma campanha vigorosa de reconquista das terras outrora pertencentes à diocesis Hispaniarum, de modo que, “depois de batalhar continuamente em várias frentes por oito anos, Leovigildo havia acabado por fortalecer a posição do Reino visigodo na Hispânia, apresentando-se de novo como hegemônico.” (tradução livre)2 E, na esteira deste processo, deve-se considerar que houve por parte de tal monarca um esforço considerável em estabelecer um Estado unitário, que buscasse impedir “qualquer veleidade independentista protagonizada pela aristocracia fundiária do reino, independentemente de sua pertença étnica.”3 Para tanto, o rei toma como modelo, tal como afirma Garcia Moreno, o modelo de Estado Baixo-imperial expresso na chamada recuperação justiniana. O que significa dizer que

Com tal fim, Leovigildo encaminhou sua ação interior nas seguintes direções: acentuação da distância que deveria separar o rei do resto dos súditos; metamorfosear uma realeza eletiva em hereditária o tanto quanto fosse possível no seio de sua família; reforço das alavancas do poder real; unidade e coesão do Estado acabando com as diferenças étnicas e religiosas então existentes, tentando basear preferencialmente no vínculo geral e juspubliscístico de súditos da relação entre o monarca e os governados.4 Mas, as pretensões unitaristas do rei visigodo esbarravam em um elemento essencial das sociedades alto-medievais: a religião. Componente este que não deve ser considerado como algo paralelo à dinâmica do contexto político aqui analisado.

2

MORENO, Luiz A. Garcia. Historia de España Visigoda. Cátedra, S.A. 1998. p. 118. ibid., p . 119. Grifo nosso. 4 ibid., p . 119. Grifo nosso. 3

Consideramos que os membros das instituições religiosas despontam como agentes atuantes e fundamentais na estrutura política no contexto estudado. Estes, na figura do chamado “homem santo” e do bispo, junto aos grandes poderosos laicos teriam como ponto em comum em seu exercício de poder o fato de que este, segundo Celine Martin, “se baseia na proteção à população. Sobrenatural, ou militar, material ou espiritual, a proteção oferecida constitui sempre a legitimação última da autoridade” 5. Desta forma, com o vácuo de poder deixado pelas instituições romanas após o desaparecimento do Império, os bispos nicenos ganharam cada vez mais poder jurisdicional no entorno de suas sedes6. Já sobre a atuação política dos arianos, neste momento, a professora Maria Luchsinger informa que Leovigildo, como seus antecessores, era ariano (...). Tal concepção [de cristianismo] foi refutada no Concílio de Nicéia, em 325. Entretanto [o monarca] não podia unificar a Península e estender o seu poder às comunidades urbanas e rurais sem passar pelos bispos nicenos, nitidamente mais numerosos e poderosos que os arianos.7 Diante deste impedimento, o rei passa a tentar convencer os bispos seguidores do credo niceno a adotarem a “heresia” Ariana. Sobre este ponto, a Vida dos Santos Padres de Mérida nos coloca a par do ocorrido com o Bispo Masona, epíscopo que sofreu o assédio régio para a sua conversão ao arianismo.

Sobre a resistência nicena à imposição do arianismo como religião pública em A Vida dos Santos Padres de Mérida Em A Vida dos Santos Padres de Mérida, na seção intitulada “A Vida e as Virtudes do Santo Bispo Masona”, o hagiógrafo, provavelmente um hispanorromano, logo nas primeiras linhas, destaca a peculiaridade do santo abordado em sua obra indicando que, “embora ele seja um godo, sua mente era completamente dedicada a Deus e corajosamente imersa nas virtudes mais elevadas.”8

5

MARTIN, Celine. La geógraphie du pouvoir dans l’Espagne visigothique, Villeneuve-d’Ascq: Universitaires du Septentrion, 2003. 6 Maria Eugênia M. Luchsinger faz menção a esta questão em: LUCHSINGER, Maria Eugênia Mattos. O Regnum Cristão Visigótico de Isidoro de Sevilha. Revista Brathair, São Luís, V. 2, 2002, p. 30. 7 LUCHSINGER, Maria Eugênia Mattos. – op. cit p.31 8 FEAR. A. T. (trad.). Lives of the Visigothic Father. Liverpool. Liverpool University Press, 2011. p. 72. Vol. 26. (Col. Translated Text for Historians.).

Em nota contida na tradução da referida hagiografia, o tradutor pondera que a palavra 'Gótico' aqui é uma indicação da afiliação religiosa, ou seja, mais especificamente ao credo Ariano, ao invés de expressar a ideia de nacionalidade.”9 Ainda assim, é salutar que haja a menção da pertença à etnia goda por parte do hagiografado, uma vez que a religião ariana era considerada naquele contexto um traço identitário deste povo. É, portanto, fundamental para o autor destacar esta característica tão diferenciada do bispo niceno retratado na obra. Isto porque, ao enfatizá-lo, destaca quão especial é o bispo, e ainda quão poderoso é o poder celestial que emana da verdade do catolicismo, dado que este atingiria até mesmo os godos em alguns casos especiais, como o do Santo de Mérida. Ao relatar as investidas contra Masona, expressas no debate contra Suna (bispo ariano de Mérida10), a captura do santo em sua sede episcopal, a turbulenta apresentação do mesmo ante o “rei dos arianos”11, em Toledo e o exílio12 no mosteiro, que culminaram no retorno do santo à Mérida ordenado por uma visão da Virgem Santa Eulália, o hagiógrafo nos apresenta elementos que apontam para duas conclusões referentes ao nosso estudo. A primeira delas remete à derrota do arianismo como projeto político. Leovigildo, junto à unificação territorial de seu reino, procura promover a integração de seus súditos também pelo viés da religião, uma vez que esta, em tal conjuntura, representava uma marca de diferenciação entre os godos e os demais povos. Desta maneira, segundo tais critérios, só seriam considerados godos aqueles que teriam sua origem vinculada às famílias que vieram da região dos Balcãs – uma impossiblidade, dada à “goticização” das elites hispoanorromanas tal qual a “romanização” das famílias aristocráticas godas –, e que professassem a fé ariana. Mas, como demonstrado acima, a igreja nicena, por se encontrar mais bem estruturada na Península, e, em especial, por mobilizar mais a potente arsitocracia de origem hispanorromana, demonstrou força ao resistir às ofensivas de Leovigildo. A outra conclusão que tiramos da descrição da vida do bispo Masona, no texto sobre o qual nos debruçamos, é consequência direta da primeira. A hagiografia aqui analisada é produzida num contexto de afirmação do catolicismo, logo após o fracasso do projeto de Leovigildo. Portanto, era necessário estabelecer outra concepção da etnia 9

ibid., p.72 ibid., p.79-82 11 ibid., p.79-83 12 ibid., p.85 10

goda, dado que a de até então era vinculada à monarquia e à religião ariana. E é justamente aí que entra o elogio à vida do santo. A partir da nova perspectiva apresentada pelo texto um godo que professa o catolicismo seria, portanto, um modelo para os demais. A pertença ao povo godo não deveria estar atrelada à uma religão que fracassara, mas de outros critérios a serem considerados a partir de então tendo como pano de fundo o triunfo niceno. A nova agenda religiosa do monarca Recaredo, filho de Leovigildo, ao se converter ao catolicismo, não tem mais como enfoque a integração político-territorial expressa nos esforços incansáveis de seu pai para a construção de um reino. Recaredo tem em suas mãos um regnum já dotado de unidade territorial e uma aristocracia que não mais cabe na antiga divisão entre godos e hispanorromanos. A religião aqui deve dar novo significado à ideia de etnicidade nesta nova sociedade. Por isso a opção do rei, nestes termos, pelo universalismo manifesto no catolicismo de raiz nicena.

O triunfo do catolicismo niceno e a nova concepção da gentis Gothorum A ascensão de Recaredo ao trono está inserida num processo de síntese13 no qual a cultura romana, hegemônica no passado, junto à germânica e ao cristianismo, configuravam os elementos constituintes da nova realidade social. Na Hispânia, isto significa dizer que, com a ascensão do novo rei ao trono em 586 e, em especial, a partir do III Concílio de Toledo, em 589, se efetiva o processo de fusão entre os elementos culturais constituintes da prática política interna do regnum, dando início ao triunfo efetivo do catolicismo na península. Desta maneira, novas articulações sociais despontam destas transformações, que podem ser entendidas, em boa parte, com a nova aliança entre a monarquia e a igreja nicena. Estabelecida uma aliança duradoura com os bispos católicos através da recusa do arianismo e da conversão ao catolicismo, em 589, os reis visigodos conseguiriam manter unida, durante mais de um século, a maior entidade política indivisa da Europa do século VII. Tratou-se de um feito notável, mantido em parte, pela renovação periódica de juramentos solenes. Como sucedia com os códigos do Império Romano do Oriente, as lei reais visigodas pretendiam resolver todos os conflitos.14 13

ANDERSON, Perry. Passagens da Antiguidade ao Feudalismo. SP, 5ª edição, Editora Brasiliense, 2007. p. 123-137. 14 BROWN, Peter. A Ascensão do Cristianismo no Ocidente. Lisboa: Presença, 1999. p.236.

Portanto, “Toledo era uma ‘Nova Jerusalém’, um palco urbano solene em que reis e bispos podiam dar largas à esperança de construírem um cristianismo local e autossuficiente.”15 Recaredo marca, assim, via III Concílio de Toledo, a superação do projeto “nacional” de seu pai, Leovigildo, de construção de uma nação tendo como traço de distinção a adoção da fé ariana. Haja vista que o caráter anti-ariano do encontro já está claro nas primeiras linhas da ata conciliar onde se pode ler: “Concílio Toledano Terceiro. Com a assistência de sessenta e dois bispos, em que se condena a fé ariana.”16 Abre-se precedente, desta forma, para uma nova ideia de etnia, demanda esta que será em muito cumprida por Isidoro de Sevilha, que foi quem, inclusive, presidiu o concilio supracitado. Uma vez superado o problema de unidade cultural interna e, consequentemente, o impacto desta na política, dada à fusão da monarquia com a religião nicena, há o entendimento, por parte de Isidoro, de que os godos precisam se afirmar não mais entre si, distinguindo-se dos que coabitam a Península Ibérica como antes. Os súditos do Regnum Gothorum seriam todos então filhos desta, como ele afirma na Laus Hispanie. Ao descrever a Península e suas belezas naturais, bem como a relação maternal desta porção geográfica com o povo godo, Isidoro busca, num contexto de definição de fronteiras como aquele, reafirmar o vínculo de seu povo com o lugar por este habitado. A ideia da Hispania como unidade geográfica retomada por Isidoro é fundamental para suas intenções uma vez que: Esta imagem da mãe-terra interessa em muito para entender que a relação do indivíduo com a nação está próxima ao parentesco e à religião; por outro lado, a união do habitante com a terra marca o começo da identificação étnica.17 Neste sentido, a questão posta não é mais de afirmação interna. Os godos deveriam se distinguir dos demais povos que circundavam sua nação sagrada.

15

ibid., p.236. Concílios Visigóticos e Hispano-Romanos. Ed. Bilíngüe (Latim-Espanhol) de José Vives. Barcelona Madri, CSIC, 1963. P.107. Texto original: “Item Toledana Synodus. Tertia LX Duorum episcoporum in qua arriana haeresis in spania condemnatur! 17 VIVAR, Francisco. Primeros señas de identidade coletiva: las alabanzas de Espaãn Medievales. Castilla: Estudios de Literatura, Castilla, 2002. 143-144. Grifo nosso. 16

Alteridade e política na Hispânia visigoda: a nova concepção étnica a partir do reinado de Recaredo A partir da reflexão apresentada por Simon Harison18 acerca do problema da identidade, entendemos que a questão da etnicidade e da nacionalidade pode ser mais bem compreendida quando tais conceitos são vistos a partir de uma perspectiva relacional. Desta forma, estes devem ser tomados não como noções de diferenciação, ou de percepções diferentes, mas sim de semelhanças disfarçadas, ou negadas. Segundo tal modelo explicativo apresentado por Harison, percebemos que A partir desta perspectiva, um grupo étnico ou nação representa a si mesmo não simplesmente como distinto dos demais, mas com distinções em comum e formas bastante especificas de identificação com esses outros.19 Assim, a nação goda não apenas se reafirma neste momento frente às demais como sendo portadora de características distintas dos povos que a circundam. Desde Leovigildo, em seu esforço de criação do sentido nacional do povo godo, o que se nota é uma apropriação dos signos de distinção, em especial os que se referem à monarquia, frente aos demais indivíduos da sociedade em que este estava inserido, bem como às demais nações ao rearranjar tais signos de poder a partir de sua cultura. Frente a esta questão, a política se coloca como um aspecto importante no qual a noção de etnia se impõe no contexto aqui analisado. Embora não tenham ocorrido conflitos internos de ordem étnica desde a conversão de Recaredo até o fim do reino, em 71120 – o que confirma o sucesso da uniformidade da aristocracia neste quesito – é necessário, a partir de então, que os reis, junto à Igreja, busquem formas de se impor frente à aristocracia. Neste sentido, chama a atenção a imposição da condição imprescindível de o monarca pertencer à etnia gótica. Esta prerrogativa étnica está manifestada no cânone III do V Concílio de Toledo, realizado no ano de 664:

III. Da exclusão daquelas pessoas a quem foi vedado alcançar o trono.

18

HARISON, Simon. Cultural Difference as Denied Resemblance: Reconsidering Nationalism and Ethnicity. Comparative Studies in Society and History, Cambridge, Vol. 45, 2ª Edição, 2003. p. 343-361. 19 ibid., p.345. 20 MARTÍNEZ, Pablo C. Diaz. La Dinámica del poder y la defensa del território: para a comprensíon del final del reino visigodo de Toledo In: SEMANA DE ESTUDOS MEDIEVALES DE ESTELLA. XXXIX., 2012, Navarra. p.172-173.

Deve-se buscar novo remédio para as enfermidades desconhecidas e novas. E por que não são considerados os ânimos de alguns que não cabem em si e aos que não embelezam sua linhagem e nem acreditam em sua virtude, creem aqui e ali poder licitamente alcançar o cume do poder real, por isto se promulga, invocando o céu, nossa comum decisão: Que se alguém a quem não se elevar o voto comum nem a nobreza da raça goda que o conduza a honra sumária, tramar algo parecido, seja privado do trato dos católicos, e condenado com o anátema de Deus.21 Entendemos que a necessidade de tal cânone faz frente a uma questão delicada e específica do âmbito macro-político daquele contexto. Isto porque as condições entre os membros da aristocracia local eram equânimes do ponto de vista político-militar, sendo, pois, alianças com povos vizinhos o fator que fazia pender a balança para o lado dos vencedores nos eventuais conflitos entre os aristocratas e, principalmente, nos conflitos entre estes e os reis. Determina-se, desta forma, ao longo do tempo, uma nova conjuntura, a partir da qual a pertença à nação goda passa a ter como enfoque um contexto para além das fronteiras do reino e não as premissas internas, tal como vislumbrava Leovigildo em seu projeto nacional. A macro-política é o campo determinante para a constituição da identidade entre os visigodos neste momento e isto se deve em muito às querelas entre a aristocracia e a realeza, uma vez que tais lutas poderiam levar a alianças entre os aristocratas com membros de outros reinos, o que resultaria num desequilíbrio de forças de tal envergadura que conduziria os monarcas à perda de seus tronos. Deve-se destacar ainda que, segundo Celine Martin22, de todas as 12 revoltas que conhecemos ocorridas entre 579 – ano da revolta de Atanagildo contra Leovigildo – , até 642 – quando Chindasvinto [641-6530 se rebela contra Tulga (640-6410)] – temos conflitos em número considerável que envolvem forças exteriores, mas, salvo os movimentos ocorridos na Gália Narbonense, a maioria não tem tom separatista. O

21

Cânon III do Concílio de Toledo V, in: Concílios Visigóticos e Hispano-Romanos. Ed. Bilíngüe (Latim-Espanhol) de José Vives. Barcelona-Madri, CSIC, 1963. p. 228. Grifo nosso. Texto original: “III. De Reprobatione personarum quae prohibentur regnum. Inexpertis et novis morbis novam decet invenire medelam: quapropter quoniam inconsiderate quorumdam mentes et se minime capientes, quos nec origo ornat nec virtus decorat, passim putant licenterque ad regiae potestatis pervenire fastigia, huius rei causa mostra omnium cum invocatione divina paeferetur sententia: Ut quisqui tália meditatus fuerit, necGothicae gentis nobilitas ad hunc honoris apicem trahit, sit a consortio catholicorum privatus et divino anathemate condemnatus”. 22 MARTIN, Celine. La geógraphie du pouvoir dans l’Espagne visigothique, Villeneuve-d’Ascq Universitaires du Septentrion, 2003. 94-98.

separatismo apresenta-se, geralmente, apenas em termos culturais e não políticos entre os godos. Tal preocupação com a preservação da unidade do reino e a manutenção do trono por parte dos reis é ainda perceptível no reinado de Recesvinto (649-672), por exemplo, quando este conclui a reforma jurídica iniciada por seu pai. No Liber Iudiciorum, mais especificamente na última lei do livro I - a Quod triumphet de hostibus lex (I, 2, 6) -, temos os tópicos da segurança interna e externa do regnum abordados. Este aspecto legal está inserido num quadro de disputas23 no qual se entendia que as leis então elaboradas deveriam ser direcionadas para a manutenção da estabilidade interna, enquanto que a externa só poderia ser conquistada pela força das armas24. Ciente de sua posição delicada frente à aristocracia, Recesvinto procura legitimar sua posição a partir de sua reforma jurídica pela qual, ao contemplar em boa medida os interesses desta classe, buscava com isso um relativo consenso dos seus membros acerca de seu reinado. Neste sentido, se destaca que no VIII Concílio de Toledo fica determinado que os reis deveriam “ser mais sóbrios que latos nos aprovisionamentos”25, assim como que estes “não estorquirão nem tentarão extorquir pactos de seus súditos, pela força ou pela redação de escritos[scripturae]; eles procurarão, nos presentes que obtiverem, não o seu próprio interesse, mas o da pátria e do povo [...]”26 . Tal esforço denota a intenção de apaziguar os conflitos internos para a manutenção da paz local como pressuposto para que com isso se evitassem as coalizões de setores aristocráticos com forças externas que poderiam resultar, entre outras coisas, no fim da soberania goda no trono do regnum de Toledo. Passado, portanto, mais de quatro décadas entre Recaredo e Recesvinto, o que se nota de comum entre estes monarcas no que consta ao assunto aqui abordado é a preocupação da homogeneidade étnica goda, que pressupunha um acerto de contas com a aristocracia, tendo em vista neste processo a manutenção das fronteiras reais, dado que a possibilidade da associação de membros daquela classe com os demais povos que circundavam o regnum toledano poderia levar os poderes régios vigentes à ruína. Para mais detalhes consultar: MARTIN, Celine. A reforma visigótica da justiça: Os “anos de Recesvinto”. Revista Diálogos Mediterrânicos, Nº 4, 2013, p. 97-115. Disponível em http://www.dialogosmediterranicos.com.br/index.php/RevistaDM/article/view/77 Acesso em 20de Jul. 2015 p. 105-106. 24 LV, I, 2, 6 :“Assim, tendo sido concluídas estas coisas para a paz doméstica, [...] é preciso marchar sobre o inimigo com potência e confiança”. Texto original: “His in domestica pace ita perfectis, [...] eundum est in aduersis et obuiandum hostibus potentialiter ac fidenter...” 25 Conc. Tol. VIII, c. 10. 26 ibid. Grifo nosso. 23

Conclusão

O presente trabalho procurou demonstrar que a ideia de etnia é uma concepção de

identidade

que

pressupõe

questões

históricas,

relacionais

e,

portanto,

“negociáveis”27. Deste modo, temos no momento histórico da formação do reino visigodo de Toledo, a partir da atuação do enérgico Leovigildo, um projeto de “goticidade” que se traduz, entre outras coisas, na adoção do cristianismo de matriz ariana como traço de identidade deste povo, bem como, e principalmente, em nosso entender, na legitimação de sua condição régia frente aos demais aristocratas. Mas, ao longo do tempo, o projeto político régio de associação de seu regnum à igreja ariana como traço de identidade do povo godo não se concretiza, e isso se dá, em boa parte, por conta da oposição estruturada da igreja nicena, que era respaldada pela aristocracia hispanorromana. Como comprovação da superação completa desta concepção gótica, o filho de Leovigildo, Recaredo, converter-se-ia ao catolicismo, o que indica a necessidade de se alicerçar uma nova concepção da gentis Gothorum adequada aos novos tempos que se impunham. É nesse contexto que o pensamento de Isidoro de Sevilha dá um novo tom à ideia de etnicidade e nacionalismo entre os godos. Filhos da Hispania, “a florescente nação dos godos”, os habitantes católicos da Península Ibérica seriam predestinados a assumir seu lugar na história. Na política, o pré-requisito de pertença à etnia goda para assumir o trono se impõe num momento em que, internamente, a diferença entre os membros da aristocracia de estirpe goda ou hispanorromana já não existe mais. O obstáculo étnico para a condição régia é um elemento a ser entendido não nas relações políticas que se processam no interior das fronteiras da nação goda, mas como uma tentativa de impedimento de possíveis alianças entre os membros de sua aristocracia com poderes estrangeiros. O que fazia sentido, inclusive para os revoltosos, quando averiguamos que o caráter da maior parte dos levantes ocorridos ao longo do período aqui estudado não foi separatista, mas sim motivados por questões pertinentes à dinâmica interna do poder na Península.

27

Acerca desta ideia consultara as referências à esta concepção expressas em: BARBERO, Alessandro. 9 de agosto de 378: O dia dos bárbaros. São Paulo: Estação Liberdade, 2010. p. 33-49, 53-71, 187-98.

Portanto, a noção étnica aqui colocada como premissa para se galgar o trono a partir do III Concílio de Toledo na Hipânia visigoda é um elemento forjado ao longo de um extenso processo que tem raízes na conquista de um território, que se molda a partir de uma transição religiosa e que, no decorrer destas transformações, dá tons diferenciados à política conforme o passar do tempo. É, pois, em essência, um produto das relações históricas. Entre os séculos VI e VII a noção de etnicidade e nacionalidade no reino visigodo esteve sujeita às conjunturas históricas que as construíram, destruíram e as restauraram ao longo do tempo. E é a partir destas que devem ser estudadas.

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