A força do coletivo – trilha sonora e construção identitária nos filmes de ficção de Flora Gomes

June 24, 2017 | Autor: C. Ferreira | Categoria: Film Studies, Film Music And Sound, Film Analysis, Luso-Afro-Brazilian Studies, African cinema
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FLORA GOMES

O CINEASTA VISIONÁRIO

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A força do coletivo – trilha sonora e construção identitária nos filmes de ficção de Flora Gomes Carolin Overhoff Ferreira1

Florentino (Flora) Gomes é sem dúvida um dos mais importantes cineastas dos Países de língua oficial portuguesa (PALOP) e do continente africano como um todo. Consequentemente, os seus diversos filmes – de ficção e documentários – já foram alvo de estudos (Murphy and William, 2007; Arenas, 2011; Ferreira, 2012). A importância da música e o seu papel no contexto da construção identitária nos seus filmes de ficção, no entanto, ainda não foram abordados em trabalhos acadêmicos. Interessado em suprir essa lacuna, este texto focará na análise da relação entre a trilha sonora utilizada e o debate da identidade pós-colonial africana, tema preponderante nos quatro filmes de longa-metragem de ficção do cineasta. Destarte, abordará os seguintes filmes a partir desse enfoque: Mortu Nega (1988), Os Olhos Azuis de Yonta (1992), Pau de Sangue (1996) e Nha Fala (2002). Estudará, mais especificamente, como as escolhas de músicas e sons para a trilha sonora estão fortemente interligadas com uma concepção de identidade nacional não essencialista e sempre em mutação do cineasta, cujo objetivo principal consiste em lembrar e celebrar a necessidade de atos coletivos para garantir a liberdade conquistada pelo povo na guerra anticolonial (1961-1974). No contexto das análises realizadas aqui, serão apontados ainda continuidades e descontinuidades nos filmes realizados por Flora Gomes entre 1988 e 2002.

Mortu Nega/A Morte Nega (1988)                                                                                                                         1

Professora de cinema contemporâneo na Universidade Federal de São Paulo. É autora de Cinema Português – Aproximações à Sua História e Indisciplinaridade (2013), Identity and Difference Postcoloniality and Transnationality in Lusophone Films (2012), Diálogos Africanos - um Continente no Cinema (2012) e de Neue Tendenzen in der Dramatik Lateinamerikas (1999). Organizou os livros O Cinema Português através dos seus filmes (2007), Dekalog - On Manoel de Oliveira (2008), Terra em Transe - Ética e Estética no Cinema Português (2012), Manoel de Oliveira – Novas Perspectivas sobre a Sua Obra (2013) e África - um Continente no Cinema (2013).

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Mortu Nega foi o primeiro filme de ficção do cineasta, financiado integralmente pelo Instituto de Cinema da Guiné Bissau, ao contrário dos filmes seguintes que são resultados de coproduções com Portugal, entre outros países.2 O filme enfoca a construção da identidade da jovem nação guineense, formada em 1975 depois da longa guerra pela independência. Conta a estória de Diminga (Bia Gomes) e do guerrilheiro Sako (Tunu Eugénio Almada), relatando o sofrimento e as esperanças pessoais deste casal de guerrilheiros durante e depois da luta anticolonial. Para realçar a relação entre os dois momentos históricos, bem como as dificuldades de encontrar um rumo para o país após a libertação do colonialismo, entrelaça a dimensão individual por meio desses personagens com os desafios políticos que as pessoas enfrentaram durante a guerra e que mantiveram-se igualmente dramáticos logo após a descolonização. A primeira parte do filme rememora o passado recente da luta contra o colonialismo e é, por isso, dedicada aos confrontos com as Forças Armadas de Portugal no último ano da guerra. A ideia de uma comunidade unida em seu objetivo de acabar com a dominação portuguesa faz com que, no início, a solidariedade e o esforço coletivo sejam sublinhados tanto nos planos como na música. Assim, vemos nos primeiros planos soldados do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), e jovens e mulheres que se uniram a eles para carregar munição e armas da fronteira com a Guine Conacri, independente da França desde 1957, até a linha de combate. São de fato pessoas de todas as idades e das mais variadas regiões do país que realizam este trabalho árduo coletivamente a pé, superando os mais variados obstáculos. Eles enfrentam ataques por helicópteros das Forças Armadas, minas que matam um dos meninos que participam da marcha, a natureza hostil que consiste em rios profundos e terrenos pantanosos, e vivenciam ainda bombardeamento de aldeias. A primeira música que ouvimos logo no início do filme é breve e aponta como as imagens para o esforço do grupo: um tambor é tocado e alguém chama cantando “há sinale”. Ao longo do filme o tambor terá diversas vezes o papel de invocar as pessoas                                                                                                                         2

Veja para maiores informações acerca das coproduções luso-africanas Ferreira (2012).

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para se juntarem não só para a luta, mas também – depois da guerra – para serem solidárias para, assim, ultrapassar os novos desafios resultantes da constituição do novo país. Na primeira parte sobre a luta anticolonial existe ainda um antagonista claro, os militares portugueses, como ocorre nos filmes de guerra. No entanto, a abordagem do confronto é sempre ambíguo em Mortu Nega. Além do mais, o antagonista é nunca demonizado. Pelo contrário, há um interesse em mostrar o lado nefasto da guerra e suas atrocidades e constantes perdas – como a morte de civis ou de companheiros no combate. Estes acontecimentos são claramente perceptíveis como resultado direto e inevitável do desejo de uma vitória na luta armada contra o poderio colonial. A promessa da liberdade é, por isso, sempre contrariada de forma dialética pelo lado funesto da guerra ou, ainda, pelo medo de perde-la. Pela rádio chegam notícias boas e ruins que evocam emoções contrárias: alegria quando se ouvem mensagens sobre a derrota dos portugueses e desespero quando é anunciada a morte do líder político e fundador do PAIGC Amílcar Cabral. Logo, Mortu Nega distingue-se fortemente de filmes convencionais do gênero de filme de guerra que costumam explorar o espetáculo dos enfrentamentos e apresentam habitualmente uma imagem degradante e negativa do opositor. Aqui os integrantes das Forças Armadas nem sequer são avistados como personagens, somente surgem de forma anônima através de helicópteros e fogo aberto contra os combatentes da PAIGC. A guerra pela independência é, nos sons e imagens do cineasta Flora Gomes, sobretudo parte de uma longa marcha que não é perseguida em linha reta e que não se encerra quando a guerra chega ao seu fim. De fato, nem existe um momento que marca o final dos confrontos e não vemos comemoração oficial que inaugure uma nova época. De fato, a marcha continua. Ela traz alegrias e angústias e torna-se não menos árdua uma fez que a formação do novo estado-nação é focada na segunda parte do filme. Essa noção da guerra como parte de uma grande caminhada lembra, com efeito, uma observação de Amílcar Cabral. Em seu livro publicado em inglês Revolution in Guinea (Revolução na Guiné, 1970) ele usa o conceito da marcha quando se refere ao encontro com outros intelectuais de países africanos colonizados por Portugal e que iam ser

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também seus primeiros chefes de estado, como Agostinho Neto, Mario de Andrade, Marcelino Dos Santos, Vasco Cabral e Eduardo Mondlane: “All of us, in Lisbon, some permanently, others temporarily, began this march, this already long march towards the liberation of our peoples”3 (Cabral, 1970, p. 76-7). A trilha sonora traduz a dupla qualidade da marcha (e da guerra) na direção da descolonização: libertadora, porém triste. Quando os soldados vão à luta, ouvimos, por exemplo, tambores agitados que possuem o caráter de invocação do primeiro tambor que escutamos. Mas na sequencia da guerra surge também um tom melancólico. As músicas utilizadas lembram diversas vezes, por meio de canções e cantos, que o confronto trará não só a independência almejada por todos, mas significa também inúmeras mortes e a dor e as saudades resultantes dessas perdas. Escrita por Sidónio Pais Quaresma e Djanuno Dabó, a trilha consiste deste modo maioritariamente ou em canções suaves – cantadas por indivíduos, mas também, frequentemente, pelo grupo de soldados – ou em peças musicais tocadas na flauta doce, que pontuam o percurso ambíguo da marcha. Poucas vezes ouvimos músicas mais alegres, tocadas nestas ocasiões no cavaquinho. Isto acontece em alguns momentos importantes. O primeiro sucede quando a guerra já está quase no fim. Diminga separa-se de Sako para regressar da frente de combate para casa numa longa caminhada que dá continuidade à marcha em direção ao fim da guerra anticolonial. Com efeito, ela é mostrada cruzando o país nesse longo retorno, andando a pé ou viajando de barco junto a uma senhora sua amiga que conhecera na linha de frente.

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“Todos nós iniciamos essa marcha em Lisboa, alguns permanentemente outros temporariamente, para libertar os nossos povos.”

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Figura 1: Diminga (Bia Gomes) voltando para casa em Mortu Nega, 1988

Durante essa nova marcha, as duas mulheres avistam crianças brincando de guerra num antigo forte português. Quando elas lhes contam que a guerra acabou, a criançada comemora feliz, acompanhada por uma melodia alegre. A mesma música retorna novamente quando Diminga chega finalmente na sua vila onde é recebida com alegria e carinho. Ela partira nove anos atrás depois da morte dos seus filhos pela guerra, morte essa lembrada com dor no retorno mas também superada pela convivência de uma família que agora habita na sua casa. Todas as músicas são geralmente breves e funcionam como leitmotives diretamente relacionados com as personagens. O exemplo mais marcante é a flauta doce que está associada ao casal Diminga e Sako. Ela é usada para expressar tanto o comprometimento deles como casal, bem como a ambivalência dos sentimentos deles perante a guerra: marca primeiro o reencontro feliz na frente dos combates, depois a decisão deles de se separarem novamente porque Soko precisa ficar para lutar e Diminga já deve retornar para a vila, e, afinal, durante uma viagem para Bissau, para onde Dimanga leva Soko para tratar de uma ferida no pé que ele obteve pouco antes do final dos combates.

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A ferida de Sako, que se abre novamente após ele regressar também para a vila, simboliza as cicatrizes ainda abertas do país pós-colonial. A ida para Bissau, centro político e social onde o ex-combatente espera ser curado, significa uma terceira marcha que não encerra as peregrinações, senão leva a um segundo retorno para casa, esta vez no carro de um antigo camarada e única alma decente que encontraram na capital. Toda essa parte do filme sobre Bissau demonstra a falta de amparo para o estado de saúde de Sako, indicando o que o final do filme colocaria de forma bastante clara: que a cura dos males do pós-guerra e do estado pós-colonial precisa ser buscada longe da capital e através da renovação do espírito de solidariedade e a busca dos interesses comuns que marcaram a luta anticolonial, bem como as comunidades autóctones nas aldeias. Os burocratas e médicos do regime unipartidário que tomou posse em Bissau depois da descolonização são obviamente incapazes e desinteressados em resolverem os problemas físicos, psíquicos e materiais da população. De fato, será a comunidade da aldeia a enfrenta-los com base na sua cultura e nas suas tradições. Quando Diminga e Sako retornam novamente para a aldeia, Diminga tem um sonho revelador. Este sonho estabelece uma relação direta entre o passado recente e o momento difícil que se está vivendo: a seca que está castigando o país como metáfora dos problemas que o povo sofre e a luta contra os colonizadores surgem na justaposição de planos no sonho com interligados. Quando Diminga revela o sonho às mulheres, a mais velha sugere uma ato coletivo: uma cerimônia para chamar os antepassados e pedir a ajuda deles. Não se trata aqui de um simples retorno às raízes da cultura africana. A cerimonia é de fato uma reinterpretação e atualização das tradições, demonstrando também uma mudança de liderança que o filme vem desenvolvendo desde o início: a ocupação de uma posição central e imprescindível pelas mulheres. A música possui papel chave nessa cerimônia que surge como um ato de afirmação da comunidade e da solidariedade entre os seus membros. Assim sendo, a filmagem da cerimônia inicia com planos de um homem no tambor que chama, como ocorrera bem no início do filme quando as pessoas se juntavam para lutarem juntos e em alguns momentos durante a guerra. Agora as pessoas unem-se novamente contra aqueles que ameaçam a liberdade e a paz conquistadas: os inimigos dentro do país que substituíram

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os colonizadores. Percussão, cantos e danças tornam-se meios para celebrar e reviver a comunidade e assim lembrar e afirmar os interesses comuns em detrimento dos interesses pessoais que levam à corrupção e especulação com os bens destinados a todos. Diminga lidera a cerimónia junto com outras mulheres, embora o ritual tenha sido tradicionalmente realizado por homens que invocavam os espíritos dos antepassados ou Djon Gago em rituais fúnebres de etnias que professam a religião de matriz africana na Guiné Bissau (Papel, Bijago)4. É de ressaltar que a cerimônia reúne os mais diversos grupos étnicos, levando à união deles, como as mulheres afirmam em suas falas nas quais lembram com as suas palavras a luta unida contra o colonialismo. A cerimonia possui, assim, além do seu papel como homenagem aos ancestrais e a veneração de uma figura divina, sobretudo um objetivo político. No entanto, não ambiciona uma atitude revolucionária senão comunitária, pois a tradição deve ajudar na constituição do pais e de sua identidade mesmo que esta esteja sempre em fluxo. O que importa é que ela seja desenvolvida nos moldes da cultura viva da Guiné-Bissau. A chuva que surge no final do filme após a cerimonia é, assim, simultaneamente símbolo da limpeza dos traumas vividos e esperança que o povo manterá a liberdade conquistada e será capaz de viver em união e em paz. Esta esperança manifesta-se novamente através da trilha sonora. Mais uma vez as crianças comemoram o final da seca como havia acontecido no final da guerra; e mais uma vez elas são acompanhadas pelo som alegre do cavaquinho. Elas dançam e brincam na água que cai, lembrando a cena anterior, filmada no forte português onde outros pequenos celebravam alegremente o fim da guerra colonial e do colonialismo. A repetição desse momento demonstra que não há dúvida que a marcha continuará e que será preciso invocar outra vez no futuro outros ritmos e melodias para lembrar ou invocar o espírito comunitário, bem como celebrar ou lamentar os custos dessas lutas pela aliança das pessoas.                                                                                                                         4

Os Papeis e os Bijagós, logo após o falecimento de um indivíduo, fazem recurso à cerimônia de carga djon gago, que ira revelar a causa da morte (Journet e Julliard, 1989; Henry, 1994). O djongago é uma estrutura semelhante a um caixão feita de canas de bambu em cujo interior são colocadas folhas e ramos de árvores, onde se coloca o defunto e que é carregado por quatro homens. O defunto é submetido a um conjunto de interrogatórios, numa ação de evocação da alma da pessoa morta, permitindo assim a descoberta das razões da determinação da morte (Barros e Vaz, 2014).

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Udjus Azul di Yonta/Os Olhos azuis de Yonta (1992) Os Olhos Azuis de Yonta, de 1992, é um filme de baixo orçamento, produzido pela Guiné-Bissau e Portugal. A coprodução mostra novamente as dificuldades em construir uma identidade pós-colonial na Guiné-Bissau pós-colonial, porém, esta vez no contexto de sua capital e maior centro urbano, Bissau. Devido às pressões da economia de mercado e de acordo com um conceito dinâmico de cultura, no sentido de que elementos culturais devem ser sempre reavaliados e renegociados como já acontecerá em Mortu Nega, o filme aborda através de diferentes personagens – Vicente (António Simão Mendes), um herói da guerra anticolonial, seu camarada Ambrus (Henrique Silva), e a esposa dele Belante (Bia Gomes), bem como seus filhos, Yonta (Maysa Marta) e Amílcar (Mohamed Seidi) – as várias facetas da dificuldade de permanecer fiel aos valores anticoloniais e comunitários idealizados durante a luta armada pela independência. Há ainda outro personagem importante neste sentido, Zé (Pedro Dias), um emigrante pobre do interior que se apaixona por Yonta e que conseguirá subir na vida tornando-se motorista de Vicente. O filme ocupa-se sobretudo do conflito que surge do o impacto e das influências da cultura e dos valores ocidentais nos costumes e valores ancestrais africanos. A trilha sonora, composta por Adriano Gomes Ferreira “Atchutchi”, ajuda na caracterização deste conflito e dos personagens, ou seja, na percepção dos dramas identitários que dele resultam. De acordo, Yonta é associada inicialmente ao estilo gumbe, uma música dançante, famosa pela sua complexidade rítmica. As canções “Noiba nobu” ou “Vicente da Silva” falam, por outro lado, dos personagens quando são tocadas na boate “Tropicana” que Yonta costuma frequentar. A balada melancólica “Bissau kila muda” (Bissau que muda) abre o filme, apontando desde já para as mudanças em curso que afetam e inquietam sobretudo o antigo combatente Vicente. Após a sua luta pela libertação do seu país do colonialismo ele tornou-se um empresário de sucesso que sofre das contradições que resultam da sua nova vida próspera, apoiada no sistema de mercado, e a igualdade de direitos e o bem

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estar para todos que defendera durante a guerra pela independência. Também Yonta enfrenta os paradoxos da vida moderna, derivando dos seus desejos de consumir roupas e músicas da moda, de eventualmente emigrar para a Europa e de se divertir nas boates, que entram em colisão com os valores que os seus pais lhe ensinaram, como a solidariedade com e respeito pelo outro. O jovem Zé, que escreve uma carta de amor para ela, citando um livro sueco e seus padrões europeus de beleza – os olhos azuis – a faz perceber no final do filme de que é preciso ser mais atento à substituição dos valores e tradições que resultam do emprego acrítico de um estilo de vida individualista ocidental. Além do mais, o mesmo poema é recitado na festa de casamento da melhor amiga de Yonta, Mana (Dina Adão). Após o casamento tradicional e civil, o filme usa a recepção em estilo ocidental para encerrar sua trama. Essa vez a leitura pública do poema que ocorrera antes na boate não é recebida com risos. Pelo contrário, o texto virou símbolo de status numa festa que é tão surreal como essa repentina adaptação absurda dos padrões de beleza ocidentais. As pessoas parecem marionetes em suas vestimentas ocidentais e seu comportamento estrangeirado. De acordo com as contradições vividos ao longo do filme, essa última sequencia quase onírica é bastante ambivalente sobretudo quando se leva em consideração os últimos planos em que Yonta e seu irmão Amílcar ganham novamente protagonismo.

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Figura 2: Yonta (Maysa Marta) e Amílcar (Mohamed Seidi) em Olhos Azuis de Yonta (1992)

 

A sequencia indica, de fato, que apostar totalmente nos costumes ocidentais, aqui representados como sendo decadentes, não leva a lugar nenhum, e, por outro lado, que os jovens guineenses são capazes de integrar em suas identidades em formação os valores tradicionais africanos, como, por exemplo, a solidariedade. Yonta e seu irmão Amílcar dançam na cena final do filme ao som de tambores no dia seguinte ao redor da piscina, demonstrando que é preciso e possível impor o próprio ritmo ao mundo moderno ocidentalizado. A percussão agitada da trilha sonora é tanto reminiscente da percussão mais lenta associada em diferentes momentos do filme aos combatentes Nando e Vicente e seus valores comunitários, como da música gumbe que reflete o sonho de um estilo moderno pelos jovens na década de oitenta, quando o país experimentava o liberalismo económico. É uma síntese de ambos, indicando a possibilidade de lembrar e manter os valores próprios e de integrá-los em um ritmo mais dinâmico da contemporaneidade. Fundamental é, novamente, que os interesses de todos sejam respeitados, em detrimento dos desejos individualistas de alguns.

Po di Sangui/Pau de Sangue (1996) O próximo filme de Gomes, Pau de Sangue, de 1996, coproduzido pela Guiné-Bissau com a França, Portugal e a Tunísia, abandona o contexto colonial e se debruça sobre os efeitos negativos da tecnologia ocidental na identidade africana pós-colonial. Com uma linguagem menos realista e mais poética, essa parábola cinematográfica conta a história de uma aldeia cuja vida cultural harmoniosa, que é expressada na pintura, na carpintaria, na música, nas crenças e na tradição oral, está sendo ameaçada. Primeiro, através do reaparecimento da personagem principal – Du (Ramiro Naka), cujo gêmeo Hami (Ramiro Naka) acabou de morrer porque não respeitou os costumes tradicionais e os antepassados; e, depois, porque isso atraiu os negócios lucrativos de madeira da capital, levados a cabo por homens da praça de Bissau. A ameaça da identidade tradicional coletiva dos aldeões faz com que eles partam para uma viagem árdua que os leva para

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um deserto cuja secura é mais uma vez uma metáfora das dificuldades enfrentadas após a descolonização. As personagens somente regressam à aldeia após o nascimento do filho da personagem principal, que indica o nascimento de um novo ciclo, e de um encontro com outro grupo, igualmente numa viagem de busca, que confirma a necessidade de solidariedade e de pensar no coletivo em tempos de apuro. Esse regresso para a aldeia possui um final semiaberto, evitando respostas simples tanto sobre o futuro da identidade autóctone da aldeia bem como sobre como resolver o conflito entre modernidade e tradição. Evidencia ainda que a vida tradicional anterior foi extinta através da morte do feiticeiro Calacaladu (Adama Kouyaté), autoridade da aldeia. De todos os filmes analisados, Pau de Sangue é certamente o mais lírico devido à complexa simbologia e às suas referências às tradições e crenças da aldeia.

Figura 3: Cartaz de Po di Sangui (1996)

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A música no filme é utilizada sobretudo como forma de caracterizar os personagens. Composta por Pablo Cueco, a trilha sonora possui menos o papel de indicar ou chamar os personagens para uma união, uma coletividade por vir, ou de expressar as contradições de uma identidade em construção. Indica, principalmente os sentimentos dos membros e a ameaça do coletivo (através de sons da flauta), por meio do tambor ou do akonting (alaúde popular). No entanto, a música é apenas uma de muitas outras expressões culturais dos aldeões com as quais é relacionada. De fato, é dado igualmente destaque à tradição oral, à marcenaria, à tecelagem, e à pintura. Em termos identitários, as canções e suas letras servem para contar em diversos momentos a gêneses do povo em questão e as mudanças que deve realizar devido aos obstáculos que a vida moderna impõe. Mais uma vez, a identidade da aldeia é vista como sendo flexível e sempre em mutação, e a música é um dos meio artísticos para expressar esta maleabilidade, dando destaque, principalmente, à sua capacidade de contar as histórias da aldeia que resultam dessas mudanças necessárias.

Nha Fala (2002) Nha Fala, de 2002 é, por sua vez, um musical colorido e estilizado que recupera o otimismo de Yonta. A coprodução entre França, Luxemburgo e Portugal, sem apoio financeiro guineense foi filmado em Cabo Verde devido aos conflitos políticos em Guiné-Bissau. O filme não só encontra na cultura e na tecnologia do ocidente a possibilidade de construir uma nova identidade e de ultrapassar superstições obsoletas africanas, mas parece procurar também, através de um dos gêneros mais populares do cinema, o musical, o acesso a um público ocidental ou mundial. A trilha sonora, composta pelo conhecido músico camaronês Manu Dibango, ganha um papel de maior destaque por ser duplo: primeiro, ao se tratar de um musical canções permeiam todo o filme, criando um tom alegre e descontraído; segundo, porque o ato de cantar fornece também a temática do filme.

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A personagem principal, a belíssima Vita (Fatou N’Diaye), parte da Guiné-Bissau para estudar na França. Antes da partida, ao se despedir da cidade, de seus amigos e familiares, são apontadas através de números musicais várias das problemáticas contemporâneas da sociedade guineense, como, por exemplo, a dificuldade de lidar com o patrimônio da luta pela independência (através da busca para uma local onde colocar a estátua do líder do PAIGC, Amílcar Cabral), a corrupção, a convivência entre o animismo e a cultura cristã, e o desemprego de jovens com formação superior. Antes da partida, a mãe (Bia Gomes) de Vita reforça que ela não deve nunca cantar devido a uma maldição que paira sobre a família e que resultará na morte da jovem caso não obedecesse. Quando chega a Paris, Vita encanta a todos pelo seu modo solidário de ser, pela sua gentiliza e companheirismo. Desta maneira Flora Gomes aborda novamente o tema que lhe é mais caro: que cada um faz parte de uma comunidade onde o apoio mútuo deve guiar as atuações de cada um. Vita se apaixona por um produtor de música, Pierre (Jean-Christophe Dollé) e, pelo encanto da jovem, vice versa. Ao cantar uma de suas composições após a primeira noite de amor ela acaba quebrando com a superstição familiar já referida. Mas a importância da música na vida dela aumenta: o produtor e músicos amigos reconhecem o potencial musical de Vita e gravam um álbum que se torna um sucesso. Vale observar que enquanto as músicas nas cenas em África ainda envolvem ritmos do continente, a canção com a qual Vita consegue fama na Europa, é, na verdade, uma música pop adocicada que não lembra a origem da cantora.

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Figura 4: Vita (Fatou N’Diaye) em Nha Fala (2002)

Para lidar com a ofensa contra as crenças da mãe, Vita decide regressar com o namorado, sua banda e equipamento de som para a terra natal depois de ter ganho fama e dinheiro. De volta em Bissau, ela encena em sua casa o seu próprio enterro, respeitando e, ao mesmo tempo, transgredindo a concepção de identidade da sua mãe. De acordo com o gênero musical, o filme retrata assim uma África vibrante, utópica e, infelizmente, pouco realista que, abraçando a cultura ocidental, é capaz de construir uma identidade e uma cultura híbridas que é capaz de ultrapassar não só superstições africanas mas também o racismo europeu, personificado num velhinho que se rende também ao charme de Vita. Ao contrário dos outros filmes de ficção que sempre focam na comunidade e na união dessa, alcançada pela música e pela dança, Nha Fala possui uma maior preocupação com a história individual de Vita e com a superação da superstição que a reprime. Na verdade, apenas a última canção que convida a atrever-se a lutar quando a vida coloca os seus desafios remete para a questão da identidade coletiva, celebrada por todos – Vita, a banda francesa, os vizinhos e amigos de Vita, a sua mãe e os seus irmão – como estando novamente em construção. No entanto, é novamente no final quando a mãe canta junto com ela essa música cuja letra insiste na necessidade de atrever-se sempre,

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de nunca aceitar o status quo que é celebrada a comunhão de todos e de uma identidade não essencialista e estática que engloba essa vez também a europeia.

Conclusão Enquanto a trilha sonora em Mortu Nega, de 1988 possui sobretudo a função de apontar para o caráter processual da identidade nacional, bem como para a ambivalência deste processo, insistindo também na capacidade da música de unir as pessoas, sobretudo na cerimônia final, Flora Gomes explora nos filmes seguintes outros aspectos da construção coletiva da jovem nação guineense. Quatro anos mais tarde, em Yonta, usa a música popular gumbe para discutir as contradições que o mundo moderno urbano significa para os antigos combatentes e as novas gerações. Atualiza, por isso, o som do tambor, atribuindo a ele, contudo, ainda a capacidade de integrar-se na música mais dançante da qual os jovens gostam. É esta integração – que significa também os valores e tradições anticolonialistas e autóctones – que possibilita a permanência da solidariedade e dos interesses comuns como valor principal do novo estado-nação. Em 1996, o diretor agrega a música a outras expressões culturais como contação de histórias, tecelagem, pintura e carpintaria em Pau de Sangue, explorando e realçando, sobretudo, a sua capacidade épica e narrativa, mas não só. Demonstra, aliás, que o conteúdo das canções sempre muda para expressar a identidade também cambiante de um povo. Nha Fala, filmado após longa pausa de seis anos, em 2002, foca na evolução individual da sua protagonista que ocorre através da música e revisa o olhar crítico sobre a tecnologia ocidental desenvolvido em Pau de Sangue de forma menos convincente mas acoplada ao gênero do musical. Somente no final mantem-se fiel a ideia que identidade e música devem sempre mudar para poder desafiar os obstáculos por vir e, assim, garantir que o coletivo seja solidário e o interesse de todos seja respeitado em comunidade.

Bibliografia consultada

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Arenas, Fernando, 2011. Lusophone Africa: Beyond Independence. Minneapolis: University of Minnesota Press. Barros, M.; Vaz, M., 2014. “(Re)presentações sobre as questões da finitude: morte morrida ou morte vivida?” In I Congresso Cabo Verdiano de Ciências Sociais: Novas Leituras, Novas Sociabilidades em Contexto de Incertezas: Universidade de Santiago. Realizado em 5,6 e7 de Novembro. Cabral, Amílcar, 1970. Revolution in Guinea: Selected Texts – Speeches and Writings. New York/London: Monthly Review Press. Ferreira, Carolin Overhoff, 2012. Identity and Difference – Postcoloniality and Transnationality in Lusophone Films. Berlin/London: Lit Verlag. Journet, O. E Julliard, A., 1989. “Interrogatoire du mort (pays jool felup, GuinéeBissau)”. In Système de pensée en Afrique noire, École Pratique des Hautes Études, Paris, p. 135-153. Murphy, David and Williams, Patrick, 2007. Postcolonial African cinema: Ten directors. Manchester: Manchester of University Press.

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