Memórias Científicas Originais
A FORÇA SIMBÓLICA DA CONSTITUIÇÃO OU O POVO SOBERANO EM RECOMEÇO: UMA LEITURA SOBRE OS MARCOS TEÓRICOS FUNDANTES, EM DEBATE, NA ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE DE 1987-1988 Elpídio Paiva Luz Segundo* O presente texto toma como referência as análises de Bruce Ackerman (We the people – Foundations) e Giselle Cittadino sobre as condições de legitimidade (recomeço) e os marcos teóricos em debate na Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988, à luz do conceito de sentimento constitucional de Verdú e da sociedade aberta dos interprétes da Constituição de Haberle.
RESUMO
Palavras-chave:
Constituição. Constituinte.
Povo.
Assembléia Nacional
1 INTRODUÇÃO
*Bacharel em Direito pela PUC Minas. Especialista em Direito Público pela PUC Minas. Especialista em Elaboração, Gestão e Avaliação de Projetos Sociais em Áreas Urbanas pela UFMG. Advogado. Professor Universitário. Pesquisador do CNPQ/UESB. E-mail:
[email protected]
inicial, de 1974 a 1982, a dinâmica política da transição estava sob controle
O regime militar no Brasil (1964-
dos militares em que havia relutância
1985) teve traços peculiares, assim como
destes para uma transição democrática
o processo de democratização. Tratou-se
de fato. Note-se que a abertura iniciada
de um longo processo de transição
em 1974 somente teve um avanço
democrática
significativo
que
iniciada
em
1974,
em
1978,
quando
foi
transcorreu onze anos até que os civis
revogado o Ato Institucional n. 5, que
retomassem o poder e mais outros cinco
permitiu a reintegração à vida pública de
anos para que o presidente da república
políticos e ativistas exilados pelo regime
fosse
militar. Em 1979, uma nova lei partidária
popular.
eleito
diretamente
Segundo
Kinzo
pelo
voto
(2001),
é
pôs fim ao bipartidarismo criado em 1966,
possível desmembrar este processo em
levando à criação de novos partidos
três fases, complementares entre si. Na
políticos, o que modificou a arena pública
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LUZ SEGUNDO, E. P.
pré-constituinte ao incorporar diversos
teve votação suficiente para assegurar a
atores no debate e deliberação públicos
maioria no Colégio Eleitoral que elegeria
que culminaram, em diversos casos, em
o
propostas apresentadas à Assembléia
oposição
Nacional
expressiva,
Constituinte.
Em
uma
próximo
presidente. também
Contudo,
obteve
particularmente,
a
votação o
PMDB
perspectiva de avaliação da primeira fase
(Partido
da abertura política, o multipartidarismo
Brasileiro), que elegeu os governadores e
exerceu dupla função: ao mesmo tempo
senadores de nove Estados e conquistou
em que foi uma estratégia do governo
duzentas
para dividir a oposição e, desta forma,
Deputados.
manter
controle,
alteração significativa no quadro político
principalmente, no que se refere à
nacional com a participação de novos
sucessão presidencial de 1985, cujo
atores no processo. Assim, apesar de os
presidente foi eleito pelo Colégio Eleitoral
militares continuarem em sua posição
e não por sufrágio universal, permitiu uma
inquestionável
reorganização dos partidos políticos e da
outros atores passariam, a partir de 1982,
sociedade civil após anos de asfixia
a influenciar o jogo, impossibilitando o
política.
governo manter o controle total sobre o
a
transição
sob
Como observa Kinzo (2001), a
do
Movimento
cadeiras
na
Portanto
de
Democrático
Câmara
dos
houve
jogador
uma
principal,
processo político.
segunda fase, de 1982 a 1985, é também
Na terceira etapa, de 1985 a 1989,
caracterizada pelo domínio militar, mas
em
outros atores civis passam a ter um papel
Assembléia Nacional Constituinte e a
importante no processo político. Em
promulgação da Nova Constituição, os
1982, ocorrem as primeiras eleições pelo
militares
voto
nos
principais do processo, sendo substituídos
que
pelos políticos civis. Além destes, passa a
participaram das eleições de 1982 os
haver também a participação dos setores
políticos
organizados da sociedade civil. Cada fase
popular
Estados
para
desde
que
governador
1965,
tiveram
sendo
seus
direitos
que
se
inclui
deixam
de
realização
ser
possui
os
da
atores
políticos cassados na década de 1960.
aqui
Nas eleições de 1982, o governo militar
componentes, nuances e dinâmicas que
42
apontada
a
diferentes
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A força simbólica da constituição ou o povo soberano em recomeço: uma leitura sobre os marcos teóricos fundantes, em debate, na Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988
não cabem neste texto. Para efeitos deste
república foi derrotada no Congresso
trabalho,
Nacional.
a
análise
ficará
restrita
a
Nesta
situação,
restava
à
determinado período da terceira fase, de
oposição duas saídas: a aproximação
1987 a 1988, no âmbito das digressões
com dissidentes do governo ou tentar
teóricas
romper as regras do jogo, mediante uma
em
debate
na
Assembléia
Nacional Constituinte e no sentido de sentimento (Verdú) e vivência (Haberle) da
Constituição
como
recomeço
(Ackerman).
ampla mobilização da sociedade civil. Os líderes moderados do partido fizeram
uma
opção
pela
primeira
alternativa, isto é, buscaram influenciar o processo sucessório conforme as regras
2
A INSTALAÇÃO DA ASSEMBLÉIA
NACIONAL
CONSTITUINTE
OU
O
POVO SOBERANO EM RECOMEÇO
estabelecidas haja vista o receio de reação dos militares em uma eventual mobilização popular. Assim, a posição moderada era um indicativo de que o
Para efeito de análise conceitual, a
PMDB
(Partido
do
Movimento
sucessão presidencial de 1985 pode ser
Democrático Brasileiro) estava disposto a
dividida em duas etapas: 1. a tentativa do
participar do processo sucessório ainda
PMDB, em 1984, de mudar as regras das
que em condições limitadas.
eleições presidenciais, propondo uma emenda
constitucional
que
Observe-se que a ala moderada do PMDB
já
articulava
uma
estratégia
restabelecesse o voto direto. Com o
alternativa caso a Emenda Constitucional
objetivo de obter apoio popular para a
não fosse aprovada pelo Congresso
aprovação da emenda, os partidos de
Nacional. A proposta da candidatura de
oposição partiram para a mobilização da
Tancredo Neves para concorrer pela
população. O resultado da campanha das
oposição ganhou força tão logo foi
"Diretas Já" foi uma mobilização popular
derrotada a Emenda das Diretas. Na
com milhões de pessoas participando de
análise de,
comícios em todo o país. Contudo, a Emenda Constitucional que estabelecia eleições
diretas
para
presidente
da
viabilizar a candidatura de Tancredo Neves não era uma tarefa simples, uma vez que, para seu êxito, era necessário conseguir o apoio do outro lado, ou seja, de parlamentares do
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LUZ SEGUNDO, E. P.
partido do governo. A oportunidade surgiu quando alguns políticos do PDS recusaram-se a apoiar o candidato do governo nomeado na convenção do partido. Negociações entre o PMDB e dissidentes do partido do governo (que depois criariam o PFL) levaram à formação da Aliança Democrática, cujo objetivo era juntar forças para derrotar o candidato do governo. Em troca do apoio dos dissidentes à candidatura Tancredo Neves, o senador José Sarney foi escolhido para ser candidato a vicepresidente na chapa da oposição. (KINZO (2001, p.7)
Assim, nas eleições presidenciais de 1985,
o
venceu
candidato as
Tancredo
eleições
Neves
presidenciais
no
Como o número de votos do PT no Colégio Eleitoral não era decisivo, posicionar-se contra a transição negociada era uma forma de afirmar a própria identidade mais à esquerda no sistema político que emergia. O problema, entretanto, estava no fato de que, ao denunciar as limitações da "transição negociada", esta estratégia contribuiu para que a nova ordem instaurada em 1985 desses seus primeiros passos com sua legitimidade já questionada (KINZO, 2001, p.7).
A inauguração do governo Tancredo Neves, que deu início à terceira fase da transição sofreria ainda o efeito da doença repentina então do presidente eleito, seguida de sua morte, levando à
Colégio Eleitoral. A vitória da coalizão
posse
liderada por Tancredo se tornou possível
presidência
pela
do
conseqüência, a Nova República, assim
período de exceção, o que foi motivo de
denominada pelo restabelecimento do
críticas
governo civil, foi resultado de um acordo
participação
por
de
dissidentes
setores
de
oposição,
o
(Partido
do
vice, da
José
Sarney,
República.
na
Como
dos
entre setores moderados da oposição e
Trabalhadores), que era contrário ao
dissidentes do governo, sem o respaldo
processo de eleição presidencial pela via
do voto popular, pois, Tancredo morrera
indireta. Os argumentos eram no sentido
antes da posse.
notadamente
PT
de que o Colégio Eleitoral era ilegítimo e
A
Nova
República
sob
não representativo e, desta forma, os
circunstâncias
parlamentares
dos
especialmente para um presidente que
Trabalhadores se abstiveram de participar
teria de enfrentar uma crise econômica e
da sucessão de Figueiredo.
social que se avolumava. Assim, José
do
O Autor avalia que:
Partido
bastante
nascia
frágeis,
Sarney tomou posse sem um plano de governo propriamente dito e com um
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A força simbólica da constituição ou o povo soberano em recomeço: uma leitura sobre os marcos teóricos fundantes, em debate, na Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988
sério déficit em legitimidade: uma figura
1º de fevereiro de 1987, sendo presidida
política marcada por anos de vínculos
pelo Ministro José Carlos Moreira Alves,
com os militares, que assumia o poder
na função de Presidente do Supremo
sem o respaldo das urnas e que não era
Tribunal Federal. Em 2 de fevereiro de
das fileiras do partido que esperava desta
1987 toma posse o Deputado Ulysses
vez governar: o PMDB. Estes fatores
Guimarães, eleito como Presidente da
dificultaram sua administração, que ficou
Assembléia Nacional Constituinte, para
vulnerável a todos os tipos de pressão,
coordenar a maior bancada do Congresso
pois,
Nacional – o PMDB.
desde
as
heterogêneas
que
forças
políticas
compunham
seu
A Constituinte optou por uma diretriz
governo (cada uma tentando aumentar
ousada
sua
de
nenhum anteprojeto elaborado por outros
oposição e os setores organizados da
que não os representantes eleitos pelo
sociedade
demandavam
povo para tal função. O projeto seria
democratização em todos os sentidos do
construído a partir dos trabalhos de oito
termo, ou seja, amplos e até mesmo
comissões temáticas divididas em vinte e
divergentes. Foi nesta seara política que
quatro subcomissões e, posteriormente,
emergiu
encaminhado
influência)
até
os
civil
os
debates
partidos
da
Assembléia
Nacional Constituinte de 1987-1988. José Sarney, ao assumir o governo,
de
trabalhos:
a
Sistematização, unificação
dos
uma
não
aceitaria
Comissão
responsável trabalhos
em
de pela uma
iniciou medidas que possibilitaram a
proposta de texto constitucional que,
convocação
finalmente, seria levado à discussão no
da
Assembléia
Nacional
Constituinte. A mensagem Presidencial de n° 330, de 18/06/1985 remetida ao Poder Legislativo resultaria na Emenda Constitucional n° 26, de 27/11/1985, que convocou
a
Assembléia
Nacional
Constituinte. Os
trabalhos
da
Assembléia
Nacional Constituinte foram instalados em
plenário. Segundo o autor, a fase inaugurada em 1985 foi de intensificação da democratização. Os sinais mais importantes foram a instituição de condições livres de participação e contestação (com a revogação de todas as medidas que limitavam o direito de voto e de organização política) e, acima de tudo, a refundação da estrutura constitucional brasileira com a promulgação de uma nova
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LUZ SEGUNDO, E. P.
Constituição em 1988 (KINZO, 2001, p.8).
Cittadino,
aduz
de
forma
complementar a Kinzo (2001) que, pela primeira vez na história brasileira uma Constituição definiu os objetivos fundamentais do Estado e, ao faze-lo, orientou a compreensão e interpretação do ordenamento constitucional pelo critério do sistema de direitos fundamentais(CITTADINO, 2000, p.13).
Note-se
que
a
transição
democrática permitiu a ascensão de líderes da oposição, de vários matizes, a diversos cargos públicos e eletivos. Nesta conjuntura, o Estado não mais era um empecilho a ser suportado mas, torna-se um importante interlocutor. Bruce Ackerman, em análise sobre a Assembléia
Nacional
Constituinte
Brasileira de 1987-1988 preleciona que: A Assembléia Constituinte se reuniu em um momento fundamental, com a desintegração da ditadura militar, demonstrando o sucesso incontestável da soberania popular. Além disso, o grau de participação popular no processo não teve precedente em termos comparativos, expandindo-se além dos limites da assembléia. No entanto, teria a Constituição, de fato, alcançado o mesmo status cultural observado na Alemanha, na Índia, na África do Sul e na França? Por diversas razões, eu tenho, particularmente, algumas dúvidas.A primeira é por pura falta de sorte:
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nunca saberemos se Tancredo Neves teria atuado da mesma maneira que Nehru ou Mandela, ou mesmo De Gaulle. Sua morte prematura culminou na falta de um líder que substituísse o seu carisma. Em vez disso, o povo brasileiro teve um presidente que estava mais interessado na duração do seu mandato do que na legitimação do processo constitucional.Ainda mais com o fracasso do Plano Cruzado, o Presidente Sarney respondeu às conseqüências da sua impopularidade por meio da promulgação de decretos, causado pelo abuso do dispositivo constitucional, inspirado na República Italiana, por meio das chamadas “medidas provisórias”. Além disso, em decorrência da substituição de Tancredo Neves por José Sarney, em um momento constitucional crucial, houve um problema estrutural no processo brasileiro. Diferentemente da Constituição da Quinta República Francesa, por exemplo, a Constituição não foi colocada à disposição do povo para a sua aprovação por meio de referendo. Esse fato não somente privou a Lei Maior de preciosa legitimidade como também estimulou interesses específicos para o lobby agressivo, visando à proteção constitucional, sem o temor da rejeição popular Receio que a combinação da figura de Sarney com os interesses específicos tenha privado a Constituição do caráter simbólico especial, observado em outros cenários mais triunfais e bemsucedidos. Em vez de termos Tancredo Neves como líder, o que permitiria ao povo brasileiro endossar uma Constituição que fora elaborada para obter amplo apoio popular em um referendo, tivemos uma série de presidentes que abusavam do poder das medidas provisórias, tentando influenciar agressivamente o apoio de três quintos do Congresso para a autorização de emendas constitucionais. (ACKERMAN, 2006, p. XL,XLI).
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A força simbólica da constituição ou o povo soberano em recomeço: uma leitura sobre os marcos teóricos fundantes, em debate, na Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988
conforme
a
Constituição
afastaria
a
A despeito das críticas que se faz
necessidade de realizar um Novo Código
ao processo da Assembléia Nacional
Civil. Note-se, ainda, que a existência de
Constituinte ter sido realizada por um
um Estado social, orientado por um certo
Poder Constituinte Derivado e não por um
dirigismo contratual, foi
Poder
pela Constituição.
Constituinte
especificamente
para
Originário realização
eleito dos
recepcionado
Uma avaliação dos debates em
trabalhos, a Constituição da República
curso
Federativa do Brasil promulgada em 5 de
Constituinte permite melhor entender os
outubro de 1988 representou um avanço
avanços e limitações da Constituição
significativo. Garantiu-se na Constituição
Brasileira e do sistema político por ela
os mecanismos de uma democracia
instituído.
da
Assembléia
Nacional
A democratização que se iniciou com a restauração do governo civil não foi o produto de uma ruptura com a antiga ordem. Isto implica que a reconstrução do sistema político deuse através de acomodações e do entrelaçamento de práticas e estruturas novas e antigas, combinação esta que estruturou as opções e estratégias seguidas pelos principais atores do processo político. Salientar este ponto não significa desconsiderar os avanços democráticos conquistados, os quais são, em grande medida, o produto da dinâmica política introduzida pelo próprio processo de democratização (KINZO, 2001, p.9).
semi-direta, com os institutos como o plebiscito, o referendo e o direito do cidadão no gozo dos direitos políticos de propor projeto de lei. Além disso, houve uma distribuição de competências e funções que refundou o poder Legislativo, o Judiciário, o Ministério Público, a Advocacia Pública e a organização e funcionamento dos entes federados dos Estados e dos Municípios. No entanto, dado o contexto social e político no qual se processou a reconstitucionalização do
Assim,
a
Assembléia
Nacional
Brasil, o novo estava fadado a conviver
Constituinte pode ser compreendida como
com o velho, ou ainda, o novo seria visto
uma arena pública no sentido de que
com os olhos do velho. Esta postura pode
diferentes atores e grupos de interesses
ser elucidada, por exemplo, com a
divergem e constroem, em uma dimensão
(des)necessidade de realizar um Novo
intersubjetiva,
Código Civil quando uma interpretação
recomeçar
para
como
(re)fundar
e
Poder
Constituinte
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LUZ SEGUNDO, E. P.
Originário, ou seja, em nome do povo brasileiro, o pacto sócio-político ordenado da sociedade e do Estado Brasileiro, que tem como produto político, cultural e simbólico a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 3 BREVE APONTAMENTO SOBRE AS CORRENTES TEÓRICAS PRESENTES NA ASSEMBLÉIA NACIONAL CONSTITUINTE
Na
Assembléia
Nacional
Constituinte se fizeram presentes, no âmbito da filosofia política, pelo menos quatro correntes teóricas: Os libertários, como Robert Nozick e Frederick Hayek, para quem (a) o aparato coercitivo-jurídico do Estado moderno tem sido utilizado para pressionar o indivíduo e violar seus direitos, inclusive quando o obriga a ajudar o próximo ou o proíbe de desenvolver determinadas atividades para se proteger contra roubos e fraudes, (b) as idéias de justiça social em princípio são um contra-senso por comprometer as liberdades inerentes ao homem, (c) a livre apropriação seria o único princípio de justiça e (d) só o Estado mínimo, limitado às funções restritas de proteção contra a força e fiscalização do cumprimento de contratos, é justificável; Os liberais contratualistas, como John Rawls e Ronald Dworkin, que tratam de questões como as relativas à efetividade e ao reconhecimento dos direitos civis dentro da tradição
48
kantiana, vendo a sociedade como uma combinação da afirmação de identidades e da eclosão de conflitos entre distintas concepções individuais acerca do bem e da vida digna; Os comunitaristas, como Michael Walzer, Charles Taylor, Michael Sandel e Alasdair MacIntyre, que recuperam a tradição aristotélica ao (a) por em xeque a pressuposição de um sujeito universal e não situado historicamente, (b) enfatizar a multiplicidade de identidades sociais e culturas étnicas presentes na sociedade contemporânea e (c) conceber a justiça como a virtude na aplicação de regras conforme as especificidades de cada meio ou ambiente social, criticando os liberais por não serem capazes de lidar com as situações intersubjetivas e de ver os diálogos apenas como uma “sucessão alternada de monólogos”; E os críticos-deliberativos, como Jurgen Habermas, formados na tradição hegeliano-marxista, para quem (a) os valores normativamente modernos só podem ser compreendidos por meio de leituras intersubjetivas, (b)o princípio do universalismo moral foi encarnado de modo imperfeito nas instituições do Estado constitucional, tendo definhado a ponto de não ser mais do que uma simples palavra, (c) só a razão comunicativa possibilita “acordos sem constrangimentos” em condições de se irradiar para toda a sociedade, e (d) a diversidade das concepções individuais a respeito da vida digna, apregoada pelos liberais, e a multiplicidade das formas específicas de vida que compartilham valores, costumes e tradições, enfatizada pelos comunitaristas, estão presentes nas democracias contemporâneas, não havendo como optar por uma em detrimento da outra (FARIA, 1999, p. XV – XXI).
Na obra “A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição”, Haberle, ao
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A força simbólica da constituição ou o povo soberano em recomeço: uma leitura sobre os marcos teóricos fundantes, em debate, na Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988
desenvolver o tema democracia traz
processuais que inibam as omissões e
importante contribuição ao debate nos
comissões do poder público e, ainda é
seguintes termos:
mister,
Democracia desenvolve-se mediante a controvérsia sobre alternativas, sobre possibilidades e sobre necessidades da realidade e também o “concerto” científico sobre questões constitucionais, nas quais não pode haver interrupção e nas quais não existe e nem deve existir dirigente. Povo não é apenas um referencial quantitativo que se manifesta no dia da eleição e que, enquanto tal,confere legitimidade democrática ao processo de decisão. Povo é também um elemento pluralista para a interpretação que se faz de forma legitimadora no processo constitucional: como partido político, como opinião científica, como grupo de interesse, como cidadão. (HABERLE, 1997, p. 26).
realizar
constitucional
uma
hermenêutica
que
introduza
considerações de ordem axiológica na interpretação da Constituição. A
perspectiva
comunitarista
advogada por Cittadino (2000) questiona a pressuposição de um sujeito universal e não situado historicamente, ressalta a existência
da
identidades
sociais
multiplicidade e
de
culturais
da
sociedade brasileira contemporânea e compreende o termo justiça como a virtude na aplicação de regras conforme a especificidade de cada meio ou ambiente
Sobre as possibilidades e limites da
social e critica o ingênuo posicionamento
Constituição Brasileira, Cittadino (2000)
liberal que vê em uma ótica reducionista
informa que a realização dos valores
as pessoas humanas como iguais sem
constitucionais e a efetivação do sistema
lidar com as situações intersubjetivas, de
de direitos fundamentais depende da
ausências
participação
desenvolvimento de capacidades plenas
ampliada
de
uma
Cittadino
de
(SEN).
cidadãos, diversos grupos de interesses,
apresenta como fundamento precípuo da
órgãos estatais e todos aqueles que
cultura jurídica brasileira pós 88 – o
vivem a norma como realidade concreta,
princípio da dignidade da pessoa humana,
direta ou indiretamente. Assim, em uma
filiando-se, desta forma, à escola da
sociedade
e
jurisprudência dos valores. Em uma frase,
aberta, a participação da sociedade de
o principio da dignidade humana se
interprétes devem dispor de instrumentos
colocaria como um vetor de todo o
heterogênea
disso,
condições
comunidade de intérpretes que abranja os
pluralista,
Além
de
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(2000)
49
LUZ SEGUNDO, E. P.
ordenamento jurídico brasileiro e não
um
seria apenas mais um princípio a ser
dissidentes civis da ditadura militar, a ala
tomado
(perspectiva
de políticos moderados e democratas e
procedural). Não é escopo deste artigo
pelos setores de esquerda que, embora
debater este tema. Contudo, é necessário
minoritários, participaram ativamente do
desvelar, ainda que brevemente,certas
processo constituinte.
como
referência
nuances entre estas escolas de forma a indicar um dos aspectos fulcrais e ainda não
resolvidos
e
possivelmente
não
resolvíveis dos debates da Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988. Pelo que se vê, o processo da elaboração da Constituição de 1988 elucida a complexidade da realização da Assembléia Nacional Constituinte. Da abertura dos trabalhos à promulgação da Constituição houve um embate entre diversas matrizes teóricas, cada uma tentando aumentar seu prestígio e poder de influência no corpus do texto a ser instituído. Para Kinzo (2001), o clima de disputa
entre
denominada
diversos
batalha
grupos,
verbal,
era
a em
grande parte, um efeito da transição, da abertura, em que diversos atores podiam se manifestar publicamente após anos de repressão. Contudo,
a
refundação
ou
recomeço, antes de ser uma ruptura no sentido da ciência política foi apoiada por
50
acordo
negociado
entre
os
A pecha de ser uma transição negociada acabou fazendo com que seus condutores, líderes políticos moderados, mas democratas, se tornassem mais vulneráveis às críticas quanto às limitações do novo regime e, por conseguinte, mais sensíveis às pressões das forças políticas que clamavam pelo aprofundamento da democratização. Em função deste fator, é provável que a estrutura constitucional tenha se tornado muito mais democrática do que se esperaria das circunstâncias de um processo de transição tão gradual e controlado como foi o brasileiro, pois, a despeito de a Assembléia Constituinte ter sido amplamente criticada na época por sua natureza congressual, foi certamente a experiência mais democrática na história constitucional brasileira. No que se refere aos procedimentos que nortearam sua elaboração, vários pontos devem ser assinalados: - os trabalhos foram organizados sob uma estrutura bastante descentralizada, de modo que todos os constituintes tivessem garantida sua participação nas diversas fases do processo; - ao invés de um trabalho a portas fechadas, houve ampla abertura para a sociedade, uma vez que foi um processo não só intensamente coberto, a cada passo, pela imprensa, mas que também contou com a participação dos grupos sociais organizados, seja diretamente, através de demandas e sugestões na fase de trabalho das subcomissões, seja indiretamente, por meio de pressão
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A força simbólica da constituição ou o povo soberano em recomeço: uma leitura sobre os marcos teóricos fundantes, em debate, na Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988
para que suas propostas fossem aprovadas pelo plenário; - dado que as forças políticas encontravam-se fragmentadas e os partidos escassamente organizados, a Constituinte se tornou bastante permeável às pressões dos interesses de grupo, sendo que a decisão da maioria era precedida de longas negociações a cerca de praticamente cada item específico (KINZO, 2001, p.8).
mutações constitucionais. A influência desse
sentimento
ocorre
porque
a
Constituição necessita atender a razão e finalidade para que fora criada, atendendo às necessidades do povo, fundamento do recomeço
(ACKERMAN,
2006),
que
confere poder ao constituinte originário. Para Verdú, a alteração da ordem
4 DO SENTIMENTO CONSTITUCIONAL À SOCIEDADE ABERTA DE INTÉRPRETES
DA
CONSTITUIÇÃO:
UM
DIALÓGO ENTRE VERDÚ E HABERLE NO
HORIZONTE
DA
ASSEMBLÉIA
NACIONAL CONSTITUINTE DE 19871988
constitucional denota a aurora de um novo sentimento constitucional, que tem como objetivo instaurar uma nova ordem constitucional. Como exemplo, pode-se mencionar a Revolução de 1789, em França, que revolucionou os sentimentos, as regras de conduta e as opiniões morais.
Como é sabido, a realização da Assembléia
Nacional
Constituinte
de
1987-1988 refundou o Estado brasileiro. Para
Verdú,
toda
forma
a
um
corresponde
do
Estado
sentimento
extrajurídico que integra o jurídico, isto é, a forma de governo. Como assinalou Montesquieu, o sentimento característico da
monarquia
seria
a
honra,
na
A
O
do
sentimento
constitucional como tema da Teoria da Constituição
tem
suscitado
muitas
divergências. Contudo, em breves linhas, relaciona-se com a conexão entre coação jurídica
e
liberdade
moral.
É
uma
concretização do Direito, uma rápida posição reflexiva sobre a aplicação das normas jurídicas.
democracia a virtude e na aristocracia a moderação.
afirmação
Há
uma
correlação
entre
o
sentimento jurídico decorrente de uma sentimento
constitucional
também atua na reforma total ou parcial da Constituição, não só junto às reformas
nova
ordem
sociedade
constitucional
aberta
de
e
intérpretes
uma da
Constituição no sentido de que a nova
sociais ou expressas, mas também nas
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LUZ SEGUNDO, E. P.
Constituição, se inserida em um contexto
explicitam
de sociedades heterogêneas e plurais
consensos, em uma ótica intersubjetiva,
admitirá novos sentimentos e regras de
que permitem (re)fundar o pacto sócio-
conduta que poderão permitir um amplo
político ordenado da sociedade e do
espaço de intérpretes da Constituição
Estado Brasileiro e demonstra a força
para fazer vivida e sentida a norma
simbólica da Constituição da República
constitucional para que o aspecto de
Federativa do Brasil enquanto produto
efetividade jurídica-social do texto seja
político, cultural e simbólico.
realçado cotidianamente.
e
constroem
As óticas complementares sobre o processo
5 CONCLUSÃO
divergências
fundante
da
Assembléia
Nacional Constituinte de 1987-1988, os debates em questão e uma leitura que
O texto em análise desvela os
integre
a
perspectiva
do
sentimento
marcos teóricos em debate na Assembléia
(Verdú) com a vivência (Haberle) indicam
Nacional Constituinte. Esta deve ser
caminhos na efetividade dos direitos pós-
entendida como uma arena pública haja
88,
vista que diversos atores e grupos de
possibilidades da Constituição Brasileira
interesses (lobbies, grupos de pressão
trazidas a lume.
reconhecendo
os
limites
e
,movimentos sociais, partidos políticos) THE SYMBOLIC FORCE OF THE CONSTITUTION OR THE REBIRTH OF THE SOVEREIGN PEOPLE: A LECTURE ON THE FOUNDING THEORETICAL GOALS, IN QUESTION, OF THE NATIONAL CONSTITUENT ASSEMBLY OF 1987-1988 ABSTRACT
This text analyses the contribution of Bruce Ackerman (We the people – Foundations) and Giselle Cittadino about the legitimacy (restart) conditions and the theoretical positions up for discussion of the National Assembly Constituient from 1987-1988, under the light of constitucional felling of Verdú and the Open Society of Constitucional Interpreters according to Haberle.
Keywords:
Constitution. People. National Constituient Assembly.
Artigo recebido em 29/09/2009 e aceito para publicação em 11/08/2010
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A força simbólica da constituição ou o povo soberano em recomeço: uma leitura sobre os marcos teóricos fundantes, em debate, na Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988
REFERÊNCIAS
HABERLE, P. Hermenêutica Constitucional. Porto Alegre: SAFE, 2002.
ACKERMAN, B. Nós, o povo soberano: fundamentos do direito constitucional. Belo KINZO, M. D'Alva G.. A democratização Horizonte: Del Rey, 2006. brasileira: um balanço do processo político desde a transição. São Paulo Perspec., AGABEN, G. Infância e História. Belo São Paulo, v. 15, n. 4, dez. 2001. Horizonte: UFMG, 2005. Disponível em: . Acesso em: 23 jun. 2009. Lúmen Júris, 2000. SKIDMORE, T. De Castelo a Tancredo. FAORO, R. Assembléia Constituinte: a Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. legitimidade recuperada. São Paulo: VERDÚ, P. L. O sentimento Brasiliense, 1985. constitucional. Rio de Janeiro: Forense, FARIA, J. E. Prefácio. In: CITTADINO, G. 2004. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva. Elementos de Filosofia Constitucional Contempo-rânea. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1999.
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