A forma apodrecida do \"Eu\": o artesanato poético de Augusto dos Anjos

May 29, 2017 | Autor: C. Souza de Melo | Categoria: Literatura brasileira, Monografia, Poética, Poesia, Grotesco, Augusto Dos Anjos
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

CLÉLIO SOUZA DE MELO

A FORMA APODRECIDA DO “EU”: O ARTESANATO GROTESCO DE AUGUSTO DOS ANJOS

BELO HORIZONTE 2015

CLÉLIO SOUZA DE MELO

A FORMA APODRECIDA DO “EU”: O ARTESANATO GROTESCO DE AUGUSTO DOS ANJOS

Monografia

apresentada

à

disciplina

Monografia II do Curso de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Letras com ênfase em Estudos Literários

Orientador: Prof. Dr. Sérgio Alcides Pereira do Amaral

BELO HORIZONTE 2015

RESUMO

Este trabalho pretende analisar a composição formal da poesia de Eu, de Augusto dos Anjos, buscando compreender como o poeta constitui seu artesanato na produção do grotesco em sua obra, tomando como referencia os trabalhos de Wolfgang Kayser e Mikhail Bakhtin. Apoia-se, entre outros textos, nos estudos de Cavalcanti Proença para a análise da técnica augustiana, tentando estabelecer relações entre as suas principais características e o grotesco. Por fim, fazse a análise do soneto “Agregado infeliz de sangue e cal...”, tendo em vista a sua composição artesanal do grotesco.

Palavras-chave: Eu, Augusto dos Anjos, artesanato poético, grotesco.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 4 1 SOBRE O GROTESCO .......................................................................................................... 4 2 AUGUSTO DOS ANJOS E O GROTESCO ........................................................................ 16 2.1 Leituras sobre Augusto dos Anjos .................................................................................. 16 2.2 O artesanato grotesco do Eu ........................................................................................... 19 2.3 Análise do soneto “Agregado infeliz de sangue e cal...”................................................ 32 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 38 REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 40

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INTRODUÇÃO

Desde a publicação em 1912 do Eu, seu primeiro e único livro, Augusto dos Anjos oferece a seus leitores uma obra singular e estranha. Apesar de apresentar certo diálogo com as principais tendências de sua época, como o parnasianismo e o simbolismo, sua poética permanece única — Augusto produz poesia a partir de palavras completamente alheias ao que, até então, se considerava poético, e consegue o feito paradoxal de edificar a ruína dos moldes que prendiam a poesia a certos valores de harmonia, nobreza, equilíbrio e elegância. Compondo o feio e o estranho a partir do belo, Augusto dos Anjos produz uma obra essencialmente grotesca. Não apenas pela forte presença de temas e elementos grotescos, como a morte, o verme, a putrefação, o horror, a doença, mas sim pela própria composição poética baseada no estranhamento, no absurdo, na ambivalência, no hibridismo. Diante disso, este trabalho pretende analisar como se dá a construção do grotesco nos aspectos formais da poesia augustiana, atendo-se ao estudo de seu artesanato poético com o apoio, principalmente, dos estudos de Cavalcanti Proença. No primeiro capítulo “Sobre o grotesco” faz-se um breve panorama teórico a partir, principalmente, do O Grotesco: configuração na pintura e na literatura (1986) de Wolfgang Kayser, e de A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1987), em que são levantados os principais elementos do grotesco enquanto categoria artística. No segundo capítulo “Augusto dos Anjos e o grotesco” faz-se, de início, um pequeno comentário a respeito das principais leituras sobre Augusto dos Anjos, a fim de situar as discussões sobre o grotesco e sua poesia. Em seguida, na subseção “O artesanato grotesco do Eu”, segue a análise do artesanato poético de Augusto dos Anjos (restritas, devido às limitações desta monografia, aos poemas do Eu, única obra organizada e publicada em vida pelo próprio poeta) com o constante respaldo das duas obras de Cavalcanti Proença que analisam aspectos formais da poesia augustiana: “Nota para um rimário de Augusto dos Anjos” (1957) e “O Artesanato em Augusto dos Anjos” (1959). Por fim, como aplicação e ilustração daquilo que foi analisado na seção anterior, analisase atenciosamente um dos sonetos do Eu, “Agregado infeliz de sangue e cal...” com o foco estabelecido na construção do grotesco pela técnica composicional do poeta. Longe de pretender encerrar o assunto — já bastante restrito pela extensão do trabalho — esperamos apontar algumas possibilidades quanto à compreensão da poesia de Augusto dos Anjos e seu caráter grotesco, tendo em vista certa escassez de estudos sobre a sua técnica em detrimento de outros aspectos de sua obra, uma vez que entendemos que o artesanato poético de Augusto

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desempenha um papel fundamental para a construção do grotesco e uma possível explicação para o seu sucesso de leitura.

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1 SOBRE O GROTESCO

Qualquer tentativa de estudo do grotesco enfrentará dificuldades, pois se trata de um conceito polissêmico e complexo que abarca diversos fenômenos artísticos e estéticos. Sua teorização varia entre abordagens distintas e não há ainda um consenso que delimite o grotesco dentro de uma única definição completa. A própria significação do termo é ampla e sofreu diversas variações ao longo da história. Por vezes, o grotesco é entendido como a oposição (complementar ou não) ao sublime, outras como subgênero da comédia ou da sátira, ora como categoria próxima à do estranhamento, ora ainda como gênero intimamente ligado ao fantástico e ao onírico. Talvez por isso os principais trabalhos acerca do tema adotem a tentativa de reconstruir um trajeto histórico do termo e de seus conceitos. Um destes trabalhos é O grotesco: configuração na pintura e na literatura, de Wolfgang Kayser. Ao longo do livro, o autor compõe seus estudos analisando as evoluções do grotesco na história desde o final do século XV até a modernidade, por meio da análise de escritores e pintores europeus. “O que se tenta aqui é oferecer uma definição mais precisa do grotesco em geral e, na verdade, sugerir um fio — frouxo, por certo — da história do termo” (KAYSER, 1986, p. 8). A partir de uma reconstrução das origens etimológicas do “grotesco”1, Kayser analisa as suas principais ocorrências e evoluções durante o renascimento até o seu desenvolvimento no romantismo, e depois na modernidade. O autor teoriza o grotesco como uma categoria estética que, apesar de apresentar algumas variações quanto à época e à cultura em que se manifesta, permanece constituída de elementos fixos aplicáveis pelo artista e delimitáveis teoricamente. Kayser afirma, defendendo a legitimidade do grotesco como categoria estética relevante, que o conceito abrange três domínios: o processo criativo, a obra e a recepção; no entanto, seu estudo dá mais importância aos dois últimos, principalmente ao segundo: a estruturação da obra. Kayser admite que o grotesco só ocorre na recepção, mas esta só acontece em função da sua estruturação na obra em si, por meio de seus temas e disposição própria. “O grotesco é uma estrutura. (...) Poderíamos designar a sua natureza com uma expressão (...): o grotesco é o mundo alheado (tornado estranho)” (KAYSER, 1986, p. 159). Não se trata simplesmente de exibir um mundo estranho ou exótico, como poderia ser o caso de um conto de fadas, por exemplo, mas de exibir o nosso mundo como sendo estranho: “é preciso que aquilo que nos era conhecido e familiar se revele, de repente, estranho e sinistro. 1

Kayser indica a origem do termo grotesco, proveniente de grotta (gruta) do italiano, no final do século XV, designando certo estilo de pinturas ornamentais recém descobertas em escavações pela Itália.

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Foi pois o nosso mundo que se transformou. O repentino e a surpresa são partes essenciais do grotesco” (KAYSER, 1968, p. 159). No grotesco, as normas e categorias de orientação do nosso mundo são invertidas, revogadas ou quebradas, e ele se nos apresenta como estranho, sinistro, absurdo. Não se trata, então, do medo diante da morte, e sim diante da própria vida, pois aquilo que nos aparece como estranho funciona como sugestão e alerta de que nossas concepções do mundo não são seguras como nos parecem. Tal alheamento do mundo, segundo o autor, se relaciona com o que ele chama de id2, uma espécie de entidade do desconhecido, daquilo que não é apreensível pela razão ou pela linguagem. O grotesco, então, poderia ser considerado “a representação do ‘id, esse id ‘fantasmal’” (KAYSER, 1986, p. 160). Com efeito, o grotesco, segundo Kayser, está sempre relacionado a este estranhamento3 diante de um mundo que não mais faz sentido, a uma incapacidade de compreensão fechada e totalizante da existência (daí a sua justificativa para uma manifestação intensa do grotesco nas três épocas por ele destacadas como as que “não mais conseguiam acreditar na imagem fechada do mundo e numa ordem abrigante” (Ibid., p. 161): o século XVI, o romantismo e a época moderna). “O mundo estranhado não nos permite uma orientação, aparece como absurdo” (Ibid., p. 160). Por isso a loucura, o onírico, a contradição e o horror estão intimamente relacionados ao grotesco. Segundo Kayser, é possível observar que o grotesco apresenta certa disposição para temas e conteúdos específicos, que foram mais recorrentes ao longo da história do termo. Tópicos como o monstruoso e o animalesco, por si só, já pertenceriam ao grotesco por manifestar o hibridismo, “a mistura de elementos de domínios para nós separados” (KAYSER, 1986, p. 159). Tal mistura poderia se verificar nas primeiras ocorrências do grotesco nas pinturas ornamentais renascentistas, que exibiam figuras híbridas de animais, plantas e homens. Esse hibridismo também poderia ocorrer por meio da mistura entre o mecânico e o orgânico, a partir de imagens como a das marionetes, do boneco de cera, do autômato. Outro elemento tido como particularmente grotesco é a loucura. Segundo Kayser, a loucura é um motivo bastante frequente no romantismo e na arte moderna por ser a representação do estranhamento interno ao sujeito, consequência da manifestação do alheamento na própria alma.

Kayser explica em nota que emprega o conceito de id visto por K. P. Moritz como “aquilo que fica fora da esfera dos nossos conceitos e para o qual a língua não tem designação”. (KAYSER, 1986, p.160). 3 O estranhamento de Kayser muito dialoga com o conceito freudiano de estranho (unheimlich), Cf. “Estranho” (FREUD, 1919). 2

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Na demência, o elemento humano aparece transformado em algo sinistro; mais uma vez é como se um id, um espírito estranho, inumano, se houvesse introduzido na alma. O encontro com a loucura é como uma das percepções primogênias do grotesco que o mundo nos impinge (KAYSER, 1986, p. 159).

O contraste e a mistura dos opostos são elementos do grotesco que receberam especial atenção durante o romantismo. Victor Hugo, em seu famoso Do grotesco e do sublime, dá uma nova importância para o grotesco ao colocá-lo ao lado do sublime como elemento fundamental para a poesia moderna: “é da fecunda união do tipo grotesco com o tipo sublime que nasce o gênio moderno” (HUGO, 2007, p. 28); e mais à frente: “no pensamento dos modernos, ao contrário, o grotesco tem um papel imenso. Aí está em toda a parte; de um lado, cria o disforme e o horrível, do outro, o cômico e o bufo” (Ibid., p. 30-31). O grotesco, então, apesar de sua origem “baixa” vinda da comédia antiga, adquire grande importância para a arte moderna como um todo, ao servir de contraponto ao sublime. Comentando o texto de Victor Hugo, Kayser aponta a ampliação que este garantiu ao conceito do grotesco:

É somente na qualidade de pólo oposto do sublime que o grotesco desvela toda sua profundidade. Pois, assim como o sublime — à diferença do belo — dirige o nosso olhar para um mundo mais elevado, sobre-humano, do mesmo modo abre-se no ridículo-disforme e no monstruoso-horrível do grotesco um mundo desumano do noturno e abismal (KAYSER, 1986, p. 60).

Apesar de conferir importância fundamental ao grotesco, Victor Hugo não se esforça em delimitá-lo rigorosamente como categoria. Sua preocupação maior parece ser a defesa de um novo fazer artístico, que se fundamenta justamente da tensão harmoniosa entre os opostos do grotesco e do sublime, do belo e do feio, do corpo e da alma — e não a sistematização conceitual de tais opostos. Ao comentar a frouxidão dos exemplos na argumentação de Hugo, Kayser elucida a relação entre o contraste e o grotesco:

Se existe algo de grotesco nos exemplos dados por Hugo, encontra-se apenas na contraposição, ou seja, na forma especial do contraste. Nenhum elemento sublime em si, ou grotesco em si, é unido num todo “belo” ou “dramático”, pois grotesco é justamente contraste indissolúvel, sinistro, o que-não-deveriaexistir (Ibid., p. 61).

A partir da teorização de F. Schlegel acerca do assunto, Kayser afirma: “[o grotesco] é o contraste pronunciado entre a forma e a matéria (assunto), a mistura centrífuga do

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heterogêneo, a força explosiva do paradoxal, que são ridículos e horripilantes ao mesmo tempo” (KAYSER, 1986, p. 56). Além do caráter monstruoso já presente durante o renascimento, no contexto do romantismo o grotesco então se relaciona com a ironia, o contraste, o paradoxo. É importante destacar outra ocorrência do grotesco que é apontada por Kayser como “o grotesco da linguagem”, primeiramente observado na obra de Morgenstern, Rabelais e Fischart.

Em seus grotescos, Morgenstern quer abalar a confiança ingênua na linguagem e na imagem do mundo por ela sustentada. Ele o faz pondo em movimento os princípios da língua: a composição de palavras, sua metaforicidade, a vinculação rimática, a intensificação etc., de modo a produzirem seus absurdos (KAYSER, 1986, p. 130).

Aqui o grotesco não se apresenta por meio dos motivos ou temas, mas sim a partir da própria materialidade da língua. A sonoridade, os jogos de palavras, as rimas, as homofonias — é na manipulação plástica da língua que se configura a contradição, o absurdo. Tais ocorrências de grotesco da linguagem

utilizam o caráter da poesia com o objetivo de estabelecer uma tensão entre o conteúdo e a forma: o metro, o ritmo, o tom, a rima e o estribilho são empregados com a maior profusão, a fim de criar contrastes desconcertantes com o teor significativo das palavras (KAYSER, 1986, p. 127).

Quando se faz valer de tais recursos, o grotesco pode se aproximar da paródia ou da sátira. No entanto, Kayser faz uma distinção: “mesmo nas poesias grotescas que evocam elementos literários, falta qualquer paródia (...). O universo destas poesias desdobra-se arbitrariamente, mas não como deformação reverberante de modelos alheios com fito zombeteiro” (KAYSER, 1986, p. 127). O grotesco não está em ridicularizar nenhum modelo específico ou tradição, e sim em incidir contra a linguagem em si. Nessa manipulação das palavras, a poesia grotesca aponta para a própria arbitrariedade da língua e, consequentemente, para a arbitrariedade de nossas concepções sobre o mundo em geral. Sobre o assunto, Kayser conclui afirmando que

o elemento abismal apavorante reside não só nos conteúdos da linguagem, como na indisponibilidade desta. Ela, o nosso instrumento familiar e indispensável para o nosso estar-no-mundo, mostra-se de repente voluntariosa, estranha, animada demoniacamente e arrasta o homem ao noturno e ao inumano (KAYSER, 1986, p. 132).

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Sobre o caráter ridículo do grotesco, já nas considerações finais de seu trabalho, Kayser comenta que “não é possível oferecer uma resposta unívoca” (Ibid., p. 161). Talvez porque este seja o aspecto do grotesco que mais se apoie na esfera da recepção, o autor não encontra justificativas para a presença do ridículo dentro de sua concepção estrutural do grotesco, exceto quanto ao riso infernal, “involuntário e abridor de abismos” (Ibid., p. 161), aquele “pelo qual reagimos involuntariamente a uma situação que não nos deixa como que outra possibilidade de libertação” (Ibid., p. 160). Por meio dessa ideia de libertação, Kayser aponta então para uma última possibilidade de interpretação para o grotesco:

Apesar de todo o desconcerto e de todo o horror inspirados pelos poderes obscuros, (...) a plasmação verdadeiramente artística atua ao mesmo tempo como uma libertação secreta. O obscuro foi encarado, o sinistro descoberto e o inconcebível levado a falar (...): a configuração do grotesco é a tentativa de dominar e conjurar o elemento demoníaco do mundo (KAYSER, 1986, p. 161).

Ao manifestar o absurdo e o sinistro do mundo, o grotesco age, segundo o autor, na direção de uma tentativa de domesticação desse absurdo, e, como resultado desse movimento, há o riso grotesco. Embora os estudos de Kayser sejam fundamentais para uma melhor compreensão do grotesco sua teorização, apesar dos esforços em compreender as diversas manifestações do grotesco ao longo das diferentes épocas, ainda preserva uma concepção limitada do conceito. Como aponta Fabiano Santos, em Lira Dissonante,

o potencial ameaçador que Kayser depreende do grotesco deve-se à maneira como esse recurso incide nas obras modernas, nas quais o grotesco (...) manifesta-se em contradições perturbadoras que tendem, entre outros efeitos, amarrar o riso ao horror (...) ou a beleza à hediondez. No entanto, (...) se aplicados a outros contextos culturais, suas premissas sobre o grotesco se mostram relativamente falhas (SANTOS, 2009, p.139).

Mikhail Bakhtin, ao dedicar-se a analisar a obra do escritor renascentista Rabelais, apresenta suas próprias definições do grotesco, que diferem do proposto por Kayser. Sobre isso, na introdução de seu A cultura popular na idade média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, o autor afirma:

Kayser propôs-se a escrever uma teoria geral do grotesco, a revelar a própria essência do fenômeno. Na realidade, seu livro contém apenas a teoria (e um breve histórico) dos grotescos romântico e modernista(...). Tampouco compreende a verdadeira natureza do grotesco, inseparável do mundo da

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cultura cômica popular e da visão carnavalesca do mundo (BAKHTIN, 1987, p. 41).

Kayser, portanto, deixaria escapar em seus estudos a totalidade das manifestações do grotesco ao adotar uma visão particular e limitada do fenômeno. O autor aponta para uma importante distinção de duas vertentes significativamente diferentes do grotesco: o grotesco medieval e renascentista (por ele denominado como realismo grotesco) e o grotesco romântico e modernista (entendido como um grotesco de câmara). Sob esta perspectiva, Bakhtin afirma que um dos elementos fundamentais para a compreensão do cômico popular medieval (e, consequentemente, do grotesco) são o riso e a festividade. “O carnaval é a segunda vida do povo, baseada no princípio do riso. É a sua vida festiva. A festa é a propriedade fundamental de todas as formas de ritos e espetáculos cômicos a Idade Média” (BAKHTIN, 1987, p. 7). O papel das festividades carnavalescas não se limitava a ocasiões isoladas, mas estava presente em toda a esfera pública medieval, e todas elas funcionavam como diferentes manifestações do riso, em contraposição à seriedade da cultura oficial:

Todos esses ritos e espetáculos organizados à maneira cômica apresentavam uma diferença notável, uma diferença de princípio, poderíamos dizer, em relação às formas do culto e às cerimônias oficiais sérias da Igreja e do Estado Feudal (Ibid., p. 4).

Por meio das diversas manifestações dessa cultura, o cômico se estabelecia como o polo oposto ao polo oficial da Igreja e do Estado, estabelecendo “um segundo mundo e uma segunda vida aos quais os homens da Idade Média pertenciam em maior ou menor proporção (...). Isso criava uma espécie de dualidade do mundo” (Ibid., p. 5). Tal dualidade não foi invenção da época medieval. Nas sociedades mais antigas o sério e cômico já faziam parte da cultura, lado a lado. A diferença, segundo Bakhtin, reside no fato de que “dentro de um regime social que não conhecia ainda nem classes nem Estado, os aspectos sérios e cômicos da divindade, do mundo e do homem eram, segundo todos os indícios, igualmente sagrados e, poderíamos dizer, ‘oficiais’” (BAKHTIN, 1987, p. 5). Já no contexto extremamente estratificado e hierarquizado da Idade Média, o cômico assume um caráter não oficial, já que o regime em vigor pressupunha a estabilidade e a permanência de seus valores e normas pautados em uma noção de verdade eterna e imutável, com a qual só a seriedade pode ser compatível. O cômico carnavalesco, popular, serve então como “o triunfo de uma espécie

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de libertação temporária da verdade dominante e do regime vigente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus” (BAKHTIN, 1987, p. 8). Sem as delimitações que dividem os indivíduos em suas hierarquias sociais, todos os indivíduos se encontram unidos em uma vida e um mundo compartilhado, onde a individualidade cede o lugar para a totalidade. E isso ocorre por meio do riso. Bakhtin reconhece a natureza complexa do riso carnavalesco:

riso carnavalesco. É, antes de mais nada, um riso festivo. Não é, portanto, uma reação individual diante de um ou outro fato ‘cômico’ isolado. O riso carnavalesco é em primeiro lugar patrimônio do povo (...); em segundo lugar, é universal, atinge a todas as coisas e pessoas (inclusive as que participam no carnaval) (...); por último, esse riso é ambivalente: alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente (BAKHTIN, 1987, p. 10).

Em consequência, tal eliminação das normas e hierarquias oficiais, mesmo que provisória, exerceria influências na linguagem popular, gerando um “tipo particular de comunicação, inconcebível em situações normais” (Ibid., p. 9). Diante de um cenário onde não mais vigoram a seriedade e as normais feudais de conduta, abre-se espaço a uma espécie de convívio familiar e livre capaz de estabelecer novas relações. “Como resultado, a nova forma de comunicação produziu novas formas linguísticas: gêneros inéditos, mudanças de sentido ou eliminação de certas formas desusadas, etc” (BAKHTIN, 1987, p. 14). Composta por grosserias, blasfêmias, obscenidades e outros fenômenos verbais proibidos ou marginalizados da linguagem oficial, essa linguagem familiar assumiu o caráter cômico e carnavalesco da cultura popular — embora degradasse e ridicularizasse, era ambivalente: também transformava e renovava. É interessante perceber que, assim como Kayser, Bakhtin também aponta uma distinção entre paródia grotesca (medieval) e

a paródia literária puramente formal da nossa época. A paródia moderna também degrada, mas com um caráter exclusivamente negativo, carente de ambivalência regeneradora. Por isso a paródia, como gênero, e as degradações em geral não podiam conservar, na época moderna, evidentemente, sua imensa significação original (BAKHTIN, 1987, p. 19).

A dissolução dos limites sociais entre os indivíduos no realismo grotesco incide em uma importante universalização da vida como um todo. Os indivíduos não só são iguais entre si, pertencendo todos ao mesmo mundo, mas também são todos o próprio mundo carnavalizado:

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O princípio material e corporal é percebido como universal e popular, e como tal opõe-se a toda separação das raízes materiais e corporais do mundo, a todo isolamento e confinamento em si mesmo, a todo caráter ideal e abstrato, a toda pretensão de significação destacada e independente da terra e do corpo. O corpo e a vida corporal adquirem simultaneamente um caráter cósmico e universal (BAKHTIN, 1987, p. 17).

Disso surge o monstruoso, a confusão e a mistura de elementos, tão comuns ao grotesco. O movimento na direção da configuração desta unidade universal e totalizante do material e do corporal Bakhtin chama de rebaixamento. Contudo, logo adverte que tal termo não traz consigo nenhum valor pejorativo ou juízo de valor. “O ‘alto’ e o ‘baixo’ possuem aí um sentido absoluta e rigorosamente topográfico. (...) Rebaixar consiste em aproximar da terra, entrar em comunhão com a terra concebida como um princípio de absorção e, ao mesmo tempo, de nascimento” (BAKHTIN, 1987, p. 19, grifo do autor). O rebaixamento é ambivalente, pois considera igual e simultaneamente os caráteres positivo e negativo da matéria; o corpo e a terra ocupam tanto o papel da vida quanto da morte. Tal rebaixamento resulta, portanto, em uma concepção grotesca do corpo, também totalizante e universal: “a vida se revela no seu processo ambivalente, interiormente contraditório. Não há nada perfeito nem completo, é a quintessência da incompletude. Essa é precisamente a concepção grotesca do corpo” (Ibid., p. 23). Nesse sentido, o corpo grotesco se diferencia rigorosamente da concepção de corpo da antiguidade clássica, promovida desde Renascimento. Como Bakhtin comenta, o corpo clássico é fechado, completo, individual e isolado do mundo que o cerca. A valorização crescente da individualidade incide em representações do corpo separando completamente do mundo exterior. “O corpo individual é apresentado sem nenhuma relação com o corpo popular que o produziu” (BAKHTIN, 1987, p. 26). Por conta disso, afirma ser

perfeitamente compreensível que, desse ponto de vista, o corpo do realismo grotesco (...) pareça monstruoso, horrível e disforme. É um corpo que não tem lugar dentro da ‘estética do belo’ forjada na época moderna. (Ibid., p. 26)

O realismo grotesco, portanto, é definido por Bakhtin a partir da cultura cômica popular como sendo a “concepção estética da vida prática que caracteriza essa cultura e a diferencia claramente das culturas dos séculos posteriores” (BAKHTIN, 1987, p. 17), que se realiza principalmente mediante a configuração de um segundo mundo, ambivalente, carnavalesco e material, por meio do rebaixamento e do riso popular. No entanto, o autor aponta para uma nova concepção do grotesco surgida na época pré-romântica. “Ele serve agora para expressar

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uma visão do mundo subjetiva e individual, muito distante da visão popular e carnavalesca dos séculos precedentes (embora conserve alguns de seus elementos)” (Ibid., p. 32). Ainda que mantendo algumas características e motivos principais, segundo o autor o cerne do realismo grotesco não está mais presente nesta nova concepção “degenerada” do grotesco, que não mais mantém o caráter ambivalente do rebaixamento, e não mais se sustenta na universalização carnavalesca do corpo e do mundo.

Ao contrário do grotesco da Idade Média e do Renascimento, diretamente com a cultura popular e imbuído do seu caráter universal e público, o grotesco romântico é um grotesco de câmara, uma espécie de carnaval que o indivíduo representa na solidão, com a consciência aguda de seu isolamento (BAKHTIN, 1987, p. 33).

Tanto o rebaixamento quanto o riso permanecem presentes nas manifestações românticas do grotesco, mas ambas perderam sua ambivalência, seu polo positivo e regenerador, justamente pela ausência do carnavalesco e a preocupação com a individualidade. “Separa os corpos duplos (...), procura aperfeiçoar cada individualidade, isolando-a da totalidade final que já perdeu a antiga imagem, sem ter ainda encontrado uma nova” (Ibid., p. 46). Bakhtin afirma ainda que uma das maiores mudanças ocorre quanto ao elemento terrível, tão presente e central na concepção moderna do grotesco:

o universo do grotesco romântico se apresenta geralmente como terrível e alheio ao homem. (...) O mundo humano se transforma de repente em um mundo exterior. (...) Ao contrário, o grotesco medieval e renascentista, associado à cultura cômica popular, representa o terrível vencido pelo riso (BAKHTIN, 1987, p. 34).

Suas considerações sobre o grotesco romântico se aproximam bastante daquelas observadas por Kayser, com a ressalva de que este as tinha como definições para o grotesco como um todo. Bakhtin, comentando os estudos do crítico alemão, afirma surpreender-se “pelo tom lúgubre, terrível e espantoso do mundo grotesco, que ele é o único a captar”, e mais a frente: “o medo é a expressão extrema de uma seriedade unilateral e estúpida que no carnaval é vencida pelo riso. (...) A liberdade absoluta que caracteriza o grotesco, não seria possível num mundo dominado pelo medo” (BAKHTIN, 1987, p. 41). Kayser, demasiado imerso na própria concepção moderna do grotesco, acabaria então por limitar toda a sua extensão histórica e não considerar suas verdadeiras naturezas oriundas da cultura popular da Idade Média. Ao falar sobre a noção de Kayser de estranhamento (id), Bakhtin indica que esta é “extremamente típica do grotesco modernista” (Ibid., p. 43) e afirma a limitação que tal noção

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sofre no entendimento do grotesco como um todo. Segundo ele, apenas algumas manifestações modernas poderiam ser entendidas a partir do estranhamento, e nem mesmo o grotesco romântico poderia ser completamente subordinado a tal categoria.

Kayser reduz vários motivos fundamentais do grotesco a uma única categoria, a força desconhecida que rege o mundo, representada por exemplo, através do teatro de marionetes. Essa é também sua concepção de loucura (BAKHTIN, 1987, p. 43).

Além disso, Bakhtin também aponta para o fato de que a afirmação de Kayser acerca da “angústia de viver” considera uma oposição entre vida e morte que não faria sentido no contexto popular medieval: “Essa afirmação, feita a partir de um ponto de vista existencialista, opõe a vida à morte, oposição que não existe no sistema de imagens grotescas, onde a morte não aparece como a negação da vida” (Ibid., p. 43). Apesar das discordâncias e diferenças de abordagem entre os dois trabalhos, é possível entendê-los em complementariedade, uma vez que ambos apresentam definições importantes acerca do grotesco. Sobre os dois trabalhos, Santos alerta que nenhum deles é definitivo ou livre de falhas:

Ambas as teorias apresentam pontos falhos. Assim Kayser tende a naturalizar muitas particularidades do grotesco a fim de conseguir uma fórmula que circunscreva todas as suas formas de incidência. E Bakhtin, convicto de sua utopia de redenção das aflições da vida comum por meio do riso do povo, subordina o incômodo suscitado pelo grotesco à festividade alegre de uma cultura popular que por vezes assume em seus escritos as feições de uma Idade de Ouro, semelhante aos mitos do País da Cocanha (SANTOS, 2009, p. 141).

Mesmo que não cheguem a consenso definitivo, os estudos sobre o grotesco tendem a concordar em muitos de seus principais elementos, ainda que discordem ao apontar justificativas ou interpretações mais amplas — a dissolução dos limites entre categorias distintas ou opostas, a metamorfose e o monstruoso, o cruzamento entre o ridículo e o aterrorizante, a loucura e o onirismo, o estranhamento e a surpresa etc. Por fim, cabe dizer que não se trata aqui de escolher ou tentar definir qual das concepções do grotesco está mais próxima da verdade, e sim de compreendê-las em conjunto como complementares em suas contribuições para uma melhor apreensão do grotesco em suas diversas facetas e manifestações.

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2 AUGUSTO DOS ANJOS E O GROTESCO 2.1 Leituras sobre Augusto dos Anjos

A obra de Augusto dos Anjos hoje conta com uma vasta fortuna crítica. E, se muito se disse sobre o poeta e sua obra, ainda muito poderá ser dito, pois sua poesia ainda hoje suscita questionamentos, novos olhares e diferentes abordagens de estudo. Muito estudado e, principalmente, muito lido, Augusto dos Anjos ainda configura um caso singular para a crítica. O vocabulário científico e técnico, as imagens macabras, a dicção rígida e o rigor formal, a fusão paradoxal do misticismo com o pessimismo existencial, a confluência de elementos de vários movimentos artísticos fazem de sua obra um complexo fenômeno literário que está de longe de ser esgotado. Diante de tal singularidade, os estudos sobre a poesia augustiana variam entre diversas abordagens. As primeiras leituras buscaram compreendê-la como um resultado direto de uma suposta patologia psicológica de um poeta obcecado pela morte. Apesar do termo grotesco não ter sido muito empregado pela crítica, a não ser como adjetivo sinônimo a feio, sua poesia sempre despertou efeitos de fato grotescos a seus leitores. Ao gosto de sua época, ainda sob fortes influências parnasianas, Eu (1912) soava repulsivo e estranho, e por isso seus primeiros defensores foram aqueles que o conheceram ou tiveram com Augusto algum contato direto, o que resultou em uma crítica biográfica e elogiosa. Sua poesia tinha seu valor atrelado à vida do autor, e sua legitimidade era defendida pela suposta veracidade com que expressaria as angústias internas do poeta. Tal visão gerou leituras que tentavam analisá-lo psicologicamente, sempre apontando sua obra como resultado de um caso patológico, e por isso, importante. Augusto seria um grande poeta, apesar de seu vocabulário feio, não-poético4. Muitas vezes considerada cientificista e exótica, sua poesia era elogiada a despeito de sua linguagem, como se esta fosse apenas um deslize, um detalhe que não afetaria a grandeza da obra. Augusto dos Anjos, portanto, era visto como um poeta singular, mas aquilo que justamente o distingue dos outros poetas era desconsiderado; pior, sua poesia era defendida a despeito daquilo que a constituía como poesia. Como diz Lúcia Helena em A cosmo-agonia de Augusto dos Anjos, “um poeta é poeta por todas as palavras que empregou, e não apesar delas” (HELENA, 1977, p. 21). No entanto, mesmo que tardiamente, surgiram trabalhos mais preocupados com a poesia de Augusto como fenômeno literário, e não biográfico. Cavalcanti Proença foi o primeiro a se 4

Lúcia Helena analisa com mais detalhes a evolução da crítica sobre Augusto dos Anjos. Cf. A cosmo-agonia de Augusto dos Anjos (HELENA, 1977).

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debruçar sistematicamente sobre o artesanato poético de Augusto dos Anjos em “O artesanato em Augusto dos Anjos”, de 1955, e “Nota para um rimário de Augusto dos Anjos”, de 1957, assumindo uma postura radicalmente distinta da que os estudos assumiram até então. Em 1977 Lúcia Helena lança seu livro,5 citado anteriormente, em que analisa a arquitetura poética de Eu como

um

único

poema

em

que

se

manifesta

“um

jogo

híbrido



nascimento/vida/morte/renascimento”, também se preocupando em adotar uma leitura “que nada tem a ver com o que leituras anteriormente feitas sobre o poeta (...) afirmaram” (HELENA, 1977, p. 12). Outros estudos são dignos de nota. Diante da singularidade artística de Augusto dos Anjos, Ferreira Gullar, em seu ensaio “Augusto dos Anjos ou a vida e morte nordestina” (1978), estabelece relações entre o poeta paraibano e o modernismo brasileiro, caracterizando-o como um precursor do movimento. Já Anatol Ronsenfeld se dedica a evidenciar um diálogo entre a obra de Augusto dos Anjos e o movimento expressionista alemão no ensaio “A costela de prata de Augusto dos Anjos” (1976), principalmente a partir do poeta Gottfried Benn, pela maneira com que o vocabulário fisiológico e técnico é usado na construção da decadência. Com esse estudo, Rosenfeld demonstra como a tentativa de restringir Augusto dos Anjos a uma escola ou movimento literário específico é redutora, e indica elementos de sua poética que já apontavam para moderna poesia que se faria em meados do século XX. Ainda há de se destacar o estudo de José Paulo Paes “Augusto dos Anjos ou o evolucionismo às avessas” (1992), que observa as importantes confluências entre a poética augustiana e a obra do filósofo Arthur Schopenhauer, apontando como a linguagem “científica” não está a serviço do evolucionismo, mas sim de um extremo pessimismo. Paes elucida como, em uma época em que as ideias evolucionistas influenciavam toda a intelectualidade ocidental, a poesia de Augusto se faz valer de seus conceitos para ir na contramão destas teorias, em um movimento que não se direciona à evolução e ao progresso do homem, mas sim a sua dissolução, ao Nada. Augusto dos Anjos, ainda hoje, se mostra um riquíssimo objeto de estudo, e a potencial amplitude de sua fortuna crítica atesta a singularidade de sua poesia. Irredutível às tendências artísticas e filosóficas de sua época - apesar de influenciada por várias delas, em maior ou menor grau - e irredutível também à categorização de movimentos literários, sua obra exige uma postura crítica de seus estudiosos e oferece diversas possibilidades de leitura. Uma delas, a do presente trabalho, se dá por meio do grotesco. 5

Como informa a autora, o livro é resultado do desenvolvimento de uma dissertação de mestrado defendida em 1974 na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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Não se poderia dizer que o estudo da poesia augustiana por meio do prisma do grotesco é uma novidade. Muitos trabalhos apontam a presença do feio, do macabro, do disforme e do horroroso em sua obra, e a palavra grotesco constantemente surge como sinônimo de tudo isso. No entanto, alguns trabalhos se dedicaram de uma maneira mais sistemática a problematizar o conceito do grotesco dentro da poética augustiana. É o caso de As flores do mal e Eu: um olhar pelo prisma do grotesco (2008) de Vagner Coletti, que observa as confluências entre as obras de Charles Baudelaire e Augusto dos Anjos a partir das manifestações grotescas de suas obras. Coletti investiga não apenas as possíveis influências, diretas ou indiretas, da obra do poeta francês sobre o paraibano, mas também se preocupa em observar as especificidades com que o grotesco é trabalhado por cada um deles. Outro trabalho que analisa o grotesco presente na obra de Augusto é O corpo grotesco como elemento de construção poética nas obras de Augusto dos Anjos, Mário de Sá Carneiro e Ramón López Velarde (2007), de Rógerio Caetano de Almeida. Nessa dissertação, a poesia augustiana é observada a partir do prisma do grotesco também em paralelo com a de outros poetas. No entanto, nesse trabalho os três artistas analisados não foram reunidos por nenhuma relação específica entre si, a não ser a própria singularidade com que cada um deles manifesta o grotesco em suas obras. A análise da obra de Augusto dos Anjos, portanto, é desempenhada com o propósito de compreender melhor o próprio conceito de grotesco e suas realizações artísticas na modernidade. Há de se comentar também um artigo de Lúcia Sá intitulado “Perdoem, mas eu acho graça: o grotesco na poesia de Augusto dos Anjos” (2007). Nesse pequeno texto, as manifestações grotescas na poesia augustiana são observadas principalmente pelo viés humorístico e sarcástico. Apontando a postura séria e solene da maioria dos estudos sobre Augusto, Lúcia retoma a relação entre o grotesco e o riso para indicar a presença de um humor negro em sua poesia, negligenciado por grande parte da crítica até então. Os três trabalhos abordam vários elementos da literatura grotesca presentes na poesia de Augusto dos Anjos, mas todos têm o seu foco direcionado aos temas e imagens do poeta. Apesar de também tratarem, em certo grau, da composição artesanal de sua obra, esta é frequentemente usada para respaldar as afirmações e análises principais, que observam a ocorrência de temáticas grotescas. Longe de pretender acusar tais estudos de irrelevância, acreditamos ser importante também observar mais especificamente como o grotesco se configura no âmbito formal da obra augustiana, pois identificamos que a força que esta categoria assume em Augusto dos Anjos deve muito à singularidade com que o poeta conscientemente desenvolveu seu artesanato, visando obter justamente um efeito grotesco.

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2.2 O artesanato grotesco do Eu

Como já foi dito anteriormente, apesar de encontrarmos em diversos textos comentários acerca do rigor formal e peculiar da poesia de Augusto dos Anjos, a tarefa de sistematicamente se debruçar sobre seu artesanato poético foi desempenhada apenas por Cavalcanti Proença. O seu já citado estudo “O artesanato de Augusto dos Anjos” apresenta um levantamento sistemático e objetivo dos principais elementos formais de Eu e outras poesias (ANJOS, 2012). Segundo Proença, mais do que os temas e as imagens, é a composição formal de Augusto que lhe confere a originalidade que o consagra como o “poeta personalíssimo” que é. (PROENÇA, 1973, p. 216) O primeiro elemento a ser destacado é a preferência pelos versos de dez sílabas 6. Em todo o Eu, apenas o poema “Barcarola” é composto em redondilhas (sete sílabas); todos os outros são decassílabos, verso que, segundo Proença, é o que garante a variedade de ritmos explorada por Augusto dos Anjos. No Tratado de Versificação, Olavo Bilac e Guimarães Passos (1949) afirmam que o verso de dez sílabas “é o mais belo da língua portuguesa, prestase à expressão de todas as ideias, e é susceptível da maior variedade” (BILAC; PASSOS, 1949, p. 62). Tendo sua cesura na sexta sílaba — ou, por inversão de seus segmentos, na quarta — o decassílabo permite uma ampla variação rítmica interna aos hemistíquios, principalmente o maior, de seis sílabas. Augusto dos Anjos, como demonstra Proença, soube tirar proveito dessa variedade e compôs sua poesia a partir da combinação de diferentes possibilidades rítmicas desse verso: “a preferência de Augusto dos Anjos pelo decassílabo, notadamente do tipo 6-10 que permite maior variedade de ritmos, é um dos grandes segredos de sua musicalidade” (PROENÇA, 1973, p. 218). É importante pontuar, no entanto, que tais variações de seus decassílabos estão de acordo com o que foi praticado pelos poetas parnasianos de sua época. Manuel Bandeira, em sua Antologia dos Poetas Brasileiros: fase parnasiana (1967), comenta em uma nota sobre um destes poetas, Luís Delfino:

Grande é a variedade de acentuação nos decassílabos de Luís Delfino. Todavia, não encontramos neles certos ritmos frequentes no decassílabo francês ou italiano. Os nossos parnasianos exigiam em tal metro uma pausa na sexta sílaba, ou, quando esta faltava, duas – uma na quarta, outra na oitava (BANDEIRA, 1967, p. 285). 6

Apesar de estudiosos, como Said Ali, defenderem a contagem mais antiga de sílabas poéticas, que conta todas as sílabas de cada verso, adotamos aqui o método mais comum, que considera apenas até a última tônica de cada verso, até por levarmos em conta a versificação vigente da época de Augusto dos Anjos.

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Portanto, a predileção desses decassílabos, por si só, não resume a singularidade da poesia augustiana. É preciso examinar como Augusto os compõe — por meio de que métodos — e quais efeitos consegue extrair deles. Diante dessa frequência do verso heroico (decassílabo com cesura na sexta sílaba), Cavalcanti Proença assinala as configurações mais recorrentes de ritmo na poesia de Augusto dos Anjos. Uma delas é a sucessão de cinco sílabas átonas antes do acento na sexta sílaba, que resulta em uma densidade sonora do verso, intensificando o acento da cesura, que se destaca aos ouvidos. Para conseguir tal efeito, são necessárias palavras longas, entre quatro e seis sílabas, o que se verifica no frequente emprego de parassintéticos, às vezes com dupla prefixação ou sufixação, em grande parte dos poemas do Eu. Uma das peculiaridades da poesia de Augusto dos Anjos está justamente na utilização rigorosamente metrificada de termos gigantescos, chegando a compor versos com apenas três ou duas palavras. Já no primeiro poema do livro podemos encontrar bons exemplos: “Do cosmopolitismo das moneras...” (Monólogo de uma Sombra, 2) “— Esta universitária sanguessuga” (Monólogo de uma Sombra, 15) “O amarelecimento do papirus” (Monólogo de uma Sombra, 17) “— O metafisicismo de Abhidharma - ” (Monólogo de uma Sombra, 20) “A solidariedade subjetiva” (Monólogo de uma Sombra, 23)

Essa composição de versos a partir de duas ou três palavras dá vigor rítmico e reforça os acentos, principalmente a cesura, uma vez que não há pausas menores dentro dos hemistíquios. A leitura do verso se torna mais frenética, e a palavra que contém a cesura assume mais peso, ao mesmo tempo em que o seu aspecto semântico perde um pouco a importância em detrimento de sua sonoridade — principalmente nos casos de formação parassintética, onde as palavras, agregando sufixos e prefixos inusitados, muitas vezes tornam-se obscuras e até prolixas. Outros exemplos: “Panteisticamente dissolvido” (Agregado infeliz de sangue e cal..., 13) “Latindo a esquisitíssima prosódia” (Versos a um Cão, 13) “Profundissimamente hipocondríaco” (Psicologia de um Vencido, 5) “Minha singularíssima pessoa.” (Budismo Moderno, 2) “Dessa homogeneidade indefinida” (Mater Originalis, 7)

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Ainda outra ocorrência peculiar digna de nota é o que Proença chama de subesdrúxulos: quando o acento na sexta sílaba cai na tônica de uma palavra esdrúxula (proparoxítona). Também frequente em todo o Eu, essa disposição rítmica destaca ainda mais os acentos do verso, principalmente o da sua última sílaba, já que garante ao segundo segmento duas sílabas átonas. Proença aponta para o fato de que o emprego do subesdrúxulo muitas vezes desempenha função estrutural nos poemas, por meio da contraposição com heroicos de cesura oxítona ou paroxítona, ou ainda com versos sáficos (quando a cesura ocorre na quarta sílaba). Tais combinações conferem mais dinamismo para as estrofes, e muitas vezes ocorrem de maneira simétrica, por emparelhamentos e alternâncias, como nos mostra este exemplo de Proença:

Vem da psicogenética e alta luta Do feixe de moléculas nervosas, Que, em desintegrações maravilhosas, Delibera e, depois, quer e executa! (A Ideia, 5-8)

É importante dizer que a exploração rítmica mediante a sucessão de sílabas átonas não é uma invenção de Augusto dos Anjos. O próprio Cavalcanti Proença cita alguns poetas que já se fizeram valer de tal método, como Cruz e Souza, Guerra Junqueiro e o português Cesário Verde. No entanto, isso acontece de maneira mais esparsa, e apenas na poesia de Augusto tal construção rítmica “cristaliza-se numa constante individual, (...) um dos traços mais vivos de seu artesanato” (PROENÇA, 1973, p. 217). Ao empregar tanto esse recurso, Augusto explora justamente os seus efeitos de monotonia rítmica, compondo decassílabos “esculturais”, extremamente rígidos quanto à sonoridade. O rigor rítmico dos decassílabos acontece também por meio de outra recorrente característica da poesia augustiana, a elisão. Não apenas frequentes em quase todos os poemas, tanto na forma de sinalefa (quando ocorre entre a vogal final de uma palavra e a da palavra seguinte) quanto de sinérese (quando ocorre no interior de uma palavra, pela dissolução de um hiato), mas também levada ao extremo: não é raro encontrá-la formando uma sílaba com quatro ou até cinco vogais juntas. Vejamos, por exemplo, a quadra inicial do poema “Contrastes”, sublinhadas as sílabas elididas:

A antítese do novo e do obsoleto, A an | tí | te | se | do | no | vo e | do ob | so | le | to, O Amor e a Paz, o Ódio e a Carnificina,

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O A | mor | e a | Paz,| o Ó| dio e a | Car | ni | fi | ci | na, O que o homem ama e o que o homem abomina, O | que o ho | mem | a | ma e o | que o ho| mem | a | bo | mi | na, Tudo convém para o homem ser completo! Tu | do | com | vém | pa | ra o ho | mem | ser | com | ple | to! (Contrastes, 1-4) As elisões tornam os versos densos, rígidos, às vezes de maneira até violenta — como no terceiro verso, com a sucessão de três elisões — ou ainda no segundo, com quatro elisões, sendo uma delas de quatro vogais distintas: “-dio e a”. O uso exagerado de elisões chega, em muitos casos, a contorcer a sonoridade das palavras, alterando ligeiramente a pronúncia dos termos elididos como que os forçando a obedecer à rigidez do ritmo. Aqui também podemos observar uma intensificação da sonoridade das palavras, em detrimento ao seu aspecto semântico. Também a poesia parnasiana se vangloriava na defesa da elisão, em detrimento do hiato. Manuel Bandeira comenta em sua antologia o que ele considera como “a tirania métrica dos parnasianos”:

(...) nem Alberto de Oliveira, nem Bilac, nem Raimundo Correia deixaram jamais de embeber a vogal que termina uma palavra na vogal igual que começa a palavra seguinte: foi mesmo esta uma das estreitezas do sistema parnasiano. Tinham eles que o hiato afrouxa o verso (BANDEIRA, 1967, p.292).

Mas, se na poesia parnasiana a elisão (sempre usada com parcimônia) era obrigatória a um bom poeta, isso se dava menos por uma preocupação por seus efeitos estéticos e mais por certa obediência às imposições de um modelo. A “frouxidão” do hiato caracterizaria a escrita de um poeta menor, então era evitada por qualquer um que desejasse ser digno de respeito. A prova disso é que fora do contexto parnasiano (tanto antes como depois) o hiato é compreendido por suas possibilidades poéticas, assim como a elisão e outros artifícios de linguagem. Podemos ver a arbitrariedade da condenação parnasiana ao hiato nesta anedota de Manuel Bandeira, ainda em sua antologia: “Dizia-me uma vez com agudeza o nosso poeta Afonso Lopes de Almeida: — ‘Já reparou como são fortes os versos fracos de Camões?’ Queria referir-se aos versos onde ocorria o hiato” (BANDEIRA, 1967, p. 192). No entanto, a elisão na poesia de Augusto dos Anjos não deve ser compreendida da mesma forma. Em sua poesia, o artifício é levado tão ao extremo que gera efeitos muito específicos, principalmente se levarmos em conta o conjunto da obra — as escolhas vocabulares, a obsessão pelo decassílabo heroico, a abundância de esdrúxulas. Como já dito

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acima, as elisões aumentam a densidade sonora do verso, tornando-o mais rígido, mais compassado. Como une muitas vogais dentro de uma só sílaba, acaba por permitir mais sílabas e palavras dentro do verso, que por ter o ritmo sempre muito marcado, obriga na leitura a união de sons em um só fôlego. A elisão é, portanto, um meio, e não um fim, como o era aos parnasianos. O fato, aliás, de praticamente todo o livro ser composto quase que exclusivamente por decassílabos, sempre variando apenas entre o metro heroico ou sáfico, contribui ainda mais, a nosso ver, para a intensidade do ritmo em todos os poemas, o que corrobora com a leitura de Lúcia Helena (1977) sobre o Eu como um “único poema”, não só do ponto de vista temático e filosófico, mas também formal. Somado isso à abundância de termos longos e esdrúxulos, o resultado é o efeito de grandiloquência e verborragia dos versos, bem distinto do ideal de beleza clara e sutil dos parnasianos. Basta observar um dos avisos pontuados por Bilac e Passos no Tratado de Versificação: “Os versos podem estar certos na medida, repetimos, mas podem não ter melodia. Convém evitar as palavras de difícil encaixe, que são as de pronunciação custosa” (BILAC; PASSOS, 1949, p. 68). Pois Augusto utiliza os recursos do decassílabo e da elisão justamente para fazer o contrário. E não é apenas pelo exagero nas elisões que Augusto “desobedece” os parnasianos, pois o poeta também emprega hiatos — e não faz questão de escondê-los, como demonstra Proença, em versos como “O a | mor, | po | e | ta, é | co | mo a | ca | na a | ze | da,” (Versos de Amor, 3) ou “E | ra | tar | de! | Fa | zi | a | mui | to | frio” e “I | a | com | ti | nu | an | do o | seu | pa | sseio” (O Caixão Fantástico, 12-14) Se, na maioria das vezes, Augusto emprega a elisão para dificultar a leitura, quando emprega o hiato busca justamente chamar atenção para sua “frouxidão”, forçando uma pausa onde normalmente não haveria nenhuma. Diante dessas constatações, podemos começar a compreender que o exagero e a “irregularidade” formais não aparecem por acaso ou por simples questão de estilo na poesia de Augusto dos Anjos, mas sim como artifícios para a composição de uma poesia feia, sinistra, grotesca. A rigidez escultural do ritmo e a construção de decassílabos rigorosamente acentuados de acordo com o modelo mais exigente da época (o parnasiano) se dão por meio de métodos exagerados, desmedidos, estranhos. Uma contradição aos padrões de beleza que não se opõe totalmente ao belo, como uma completa feiura, mas que a contradiz de dentro — como se fizesse o feio através do belo. É dessa configuração contraditória que Augusto produz o grotesco em sua poesia. Não se trata de produzir simplesmente versos horríveis, que vão totalmente contra a Beleza de sua época, mas sim usar as mais elegantes ferramentas de composição do Belo para produzir o seu contrário, o grotesco.

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Para entender isso melhor é fundamental observarmos outros artifícios de que Augusto lança mão nessa confecção grotesca. Um deles é o característico emprego de um vocabulário técnico, ou científico. Tão frequentes quanto as elisões e as palavras esdrúxulas, os termos oriundos das ciências naturais, e da filosofia chamam ainda mais atenção e causam imediato estranhamento. Não há esforços em encontrar exemplos: “Vem da psicogenética e alta luta Do feixe de moléculas nervosas,” (A Ideia, 5-6) “Vem do encéfalo absconso que a constringe, Chega em seguida às cordas da laringe,” (A Ideia, 9-10) “Todos os cinocéfalos vorazes” (O Lázaro da Pátria, 5) “A hedionda elefantíasis dos dedos...” (O Lázaro da Pátria, 10) “Janta hidrópicos, rói vísceras magras” (O Deus-Verme, 10) Com efeito, há de se considerar a influência que trabalhos como os de Charles Darwin7 e Ernst Haeckel8 exerciam à época de Augusto, principalmente no cenário intelectual de Recife, onde viveu boa parte de sua vida. Tais teorias das ciências da evolução ocupavam uma posição central para a intelectualidade da época, e tal influência se manifestou em poetas como Martins Júnior, autor do ensaio A Poesia Científica (1883), que defendia o progresso científico (muito inspirado pelo Positivismo de Auguste Comte) como principal inspiração poética. Diante disso, muitos consideraram Augusto dos Anjos como um poeta científico. Não apenas pelo uso de termos e conceitos extraídos diretamente das obras de Haeckel, Darwin, e Spencer, mas também pela abundância de nomes técnicos de animais e micro-organismos, é fácil observar a presença de ideias “evolucionistas”9 em sua poesia. No entanto, também há a presença de termos retirados da filosofia e até de correntes religiosas orientais, como o budismo. Longe de ser redutível a uma propaganda ou afirmação teórica, o vocabulário técnico desempenha uma função estética, que Proença caracteriza como “densidade semântica” (PROENÇA, 1973, p. 258). Em um pequeno texto chamado “O livro mais estupendo: o ‘Eu’”, de 1941, o poeta e ensaísta Medeiros e Albuquerque chama atenção para a diferença entre Augusto e os poetas 7

Biólogo naturalista britânico, autor do famoso livro A Origem das Espécies (1859), responsável pelo desenvolvimento da teoria da Seleção Natural. 8 Biólogo e filósofo alemão, grande seguidor de Darwin e autor da Teoria da Recapitulação e do Monismo. 9 Em seus estudos, José Paulo Paes bem demonstra ser ingenuidade enxergar na poesia de Augusto qualquer elogio ao evolucionismo.

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auto proclamados “científicos”. Segundo ele, a poesia científica se limitara a “reduzir a versos teorias científicas, de preferência positivistas. (...) Augusto dos Anjos, ao contrário, era incontestavelmente um poeta” (ALBUQUERQUE, 1973, p. 149). Os termos científicos em sua poesia desempenham, para Medeiros e Albuquerque, uma espécie de “despoetização”.

Quando alguém quer exprimir em poesia qualquer sentimento, procura servirse de expressões concretas, expressões que façam imagem. Ele, ao contrário, buscava servir-se das expressões mais abstratas. E sempre que lhe era possível recorria à aridez dos termos técnicos, nem sempre empregados com muita propriedade. Porque a linguagem técnica tem a vantagem de exprimir com precisão certas ideias, mas tem igualmente a desvantagem literária de não poder significar senão precisamente, matematicamente, o que quer significar (...). (Ibid., p. 149).

Apesar de um pouco redutora, essas definições apontam para o uso consciente e poético dos termos científicos na poesia de Augusto, visando suas possibilidades de efeito artístico. Proença também chama atenção para a especificidade do vocabulário técnico: “como termos técnicos, são a súmula conceitual de uma peça de sistema, interdependem com os outros termos da estrutura sistemática e resumem, num único vocábulo, todas as características acumuladas na definição” (PROENÇA, 1973, p. 259). A composição poética de Augusto se estabelece, então, principalmente a partir da densidade sonora, o rigor métrico e rítmico de seus versos, e da densidade semântica, pela abundância de termos técnicos, que trazem consigo por acumulação uma concisão conceitual, “uma quase apoplexia semântica do verso” (Ibid., p. 259). No entanto, a principal função desempenhada pelos termos científicos na poesia augustiana não é a da súmula conceitual, e sim o estranhamento sonoro e a consequente obscuridade semântica. A presença de termos confusos e abstratos causam confusão e estranhamento no leitor, que dificilmente compreenderá completamente todos os conceitos retirados de ramos específicos das ciências e da Filosofia. Inclusive porque, várias vezes, tais conceitos estão fora do seu contexto, por vezes contrapostos por termos extremamente prosaicos, ou distorcidos e transformados pela parassíntese — de forma que, apesar de manterem sua carga semântica, os termos científicos perdem sua precisão e clareza originais e formam a uma confusa cadência sonora quase sempre estranha e cacofônica. Não é difícil encontrar exemplos: “Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo...” (Agonia de um Filósofo, 1-2)

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“No hierático areopago heterogeneo” (Agonia de um Filósofo, 9) “É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,” (Último Credo, 6) “E a stirpe radiolar chamada Actissa!” (Os Doentes, V, 238) “Na orgia heliogabálica do mundo,” (Insânia de um Simples, 10)

O vocabulário científico está deslocado de suas funções teóricas, e serve como matéria estética. Importa mais a eloquência, a sonoridade e, principalmente, a possibilidade de estranhamento e confusão. O próprio Cavalcanti Proença assinala esses “impropérios” conceituais de Augusto, mas os entende como se fossem deslizes de estudante, “piolhos na juba do leão”: “É assim que vemos as impropriedades, como ‘carne da esclerótica’; os morcegos hematófagos que pertencem aos gêneros Desmodus e Diphylla, classificados como filóstomos, sob uma lua que altera a astronomia para ser ignívoma” (PROENÇA, 1973, p. 269). No entanto, tentar encontrar precisão conceitual no uso dessa categoria de palavras é, a nosso ver, perder de vista a principal função desempenhada por elas. Outro aspecto importante acerca da densidade sonora são as aliterações e as repetições de consoantes mudas. Essas, segundo Proença, não raro constituem valor de sílaba, o que aumenta ainda mais a constrição dos versos: “se tomarmos como sílabas perfeitas as consoantes desacompanhadas de vogal, grande número de versos passarão a ter mais de dez sílabas, distribuídas em segmentos proporcionais” (Ibid., p. 261). Alguns exemplos: “Convulso, o vento entoava um pseudopsalmo.” (Os Doentes, 19) “A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,” (O Martírio do Artista, 2) “Apraz-me, adstrito ao triângulo mesquinho” (Insânia de um Simples, 12) “Apenas, com um velho stradivário,” (Uma Noite no Cairo, 31)

Proença chama atenção também para a abundância da aliteração que acontece em todo o livro, sob várias formas. Há aquelas que sugerem uma imitação sonora daquilo que representam, como uma onomatopeia — tomemos por exemplo o “mulambo da língua paralítica” do último verso de “A Ideia”, que parece nos obrigar a fazer com a própria língua o que acontece nos versos. Proença indica que constantemente são empregados termos que são aliterantes por si só, como “bêbado, sucessivo, cinocéfalo, sensação, teleológica, foraminífero” (PROENÇA, 1973, p. 245); no entanto, as aliterações não se reduzem a tais formas, ocorrendo

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por versos inteiros ou ainda estrofes, sendo levadas ao extremo em muitos casos. Alguns exemplos: “Eu e o esqueleto esquálido de Esquilo” (Sonho de um Monista, 1) “Fazia frio e o frio que fazia” (Solitário, 5) “Descender dos macacos catarríneos,” (Os Doentes, 79) “Filha da grande força fecundante” (Agregado infeliz de sangue e cal..., 3) “Cinzas, caixas cranianas, cartilagens” (O Caixão Fantástico, 2)

Talvez a mais numerosa ocorrência da aliteração seja a sibilação. Proença confere destaque a essa ocorrência em seu estudo:

O uso de sibilantes marca os versos do poeta, não só pelo uso de vocábulos que contenham o fonema sê ou equivalente fonético, mas ainda pelos abundantes superlativos em íssimo, os versos terminados em s, e o gosto pelas formas latinas ou latinizadas em s — papiros, senectus, delirium-tremens, virus, vitellus, ignis sapiens, semens (PROENÇA, 1973, p. 253).

Analisando apenas as sílabas finais dos versos, Proença chega ao número de 1.559 casos de sibilação, dentre o total de 2.300 versos — mesmo se tratando de mera estatística, não deixa de ser reveladora. É importante notar como o vocabulário científico e o uso de palavras enormes contribuem e muito para a configuração dessas aliterações. Muitas das ocorrências se apoiam na própria sonoridade difícil de nomes e termos técnicos, que são intensificados pelo emprego de termos adjacentes que também repetem os mesmos sons. Vejamos mais alguns exemplos: “E os malacopterígios subraquianos” (Alucinação à Beira Mar, 10) “Sentir, adstritos ao quimiotropismo” (Os Doentes, III, 83) “A sucessão de hebdômadas medonhas” (A um Mascarado, 9) “E a alga criptógama e a úsnea e o cogumelo” (O corrupião, 3)

É ainda importante destacar o emprego da rima na poesia augustiana, pois ela também desempenha uma função essencial em sua composição. No pequeno ensaio “Nota para um rimário de Augusto dos Anjos”, Proença aponta para a vulgaridade das rimas do poeta: “Se pelas ditongações violentas e um tanto artificiais, fez concessões ao parnasianismo, pelas rimas ficou muito mais próximo dos românticos, rimando com o ouvido, despreocupado das aparências visuais da vestimenta gráfica” (PROENÇA, 1973, p. 282). Em quase todo o Eu, as

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rimas se configuram entrelaçadas, no esquema ABBA, e em grande maioria se enquadram em rimas “pobres” ou “vulgares”. Sobre os valores das rimas, Bilac e Passos nos dizem:

Nem todas as rimas têm o mesmo mérito. As em ão, ar, ava, issimo, etc., são vulgares. (...) As rimas, para ter grande valor, devem ser de índole gramatical diferente. Deve-se procurar para a rima de um substantivo, um verbo; para a de um adverbio, um adjectivo, etc., etc., de modo a evitar a pobreza e a monotonia (BILAC; PASSOS, 1949, p. 77).

As rimas de Augusto dos Anjos se enquadram justamente no que é condenado pelos autores. Basta observar as rimas de final de verso de um de seus sonetos mais populares, “Versos Íntimos”: formidável/inseparável/miserável/inevitável (todos as quatro são adjetivos), quimera/pantera/espera/fera (três substantivos e um verbo); cigarro/escarro (dois substantivos); chaga/afaga (um substantivo e um verbo); apedreja/beija (dois verbos). Não há combinações complexas de categorias gramaticais, nem grandes virtuosismos sonoros; as rimas variam pouco e não evitam a facilidade, sugerindo a espontaneidade. Na poesia de Augusto a rima não chama atenção para si, mas ajuda a manter a fluidez rítmica dos versos por meio de uma espécie de monotonia melódica. É justamente na combinação dessa rima fácil com a intensidade rítmica dos decassílabos rigorosamente acentuados que a poesia de Augusto dos Anjos garante o suporte para a abundância dos elementos estranhos de sua poesia. A monotonia musical e a firmeza de ritmo conduzem a leitura através das dificuldades ocasionadas pelos termos desconhecidos e cacofônicos, as palavras longas, os nomes próprios (praticamente todos de origem estrangeira) e as frequentes aliterações e repetições distribuídas pelos seus versos. É graças a essa musicalidade que a densidade dos termos científicos alcança seu impacto, mesmo quando são desconhecidos ao leitor, pois “atingem a pureza musical, passam do terreno lúdico para o encantatório” (PROENÇA, 1973, p. 258). Proença ainda sugere que “a rima colaborou na popularização de sua poesia, ajudando a retentiva, pela simplicidade e fácil compreensão, pois o vocabulário difícil se grava melhor, enquadrado em rimas que lhe facilitem a memorização” (PROENÇA, 1973, p. 282). A estranha mistura de sons ásperos e difíceis é harmonizada pelo vigor monótono do ritmo sem que, com isso, apague suas dificuldades e estranhezas. O resultado é a construção de uma musicalidade mediante ruídos. Pode-se dizer, portanto, que há uma tensão entre a densidade truncada dos versos, tanto semântica quanto formal, e a fluidez monótona resultante da espontaneidade da rima e da constância de ritmo. E essa tensão é grotesca por excelência, na medida em que é responsável pelos efeitos de estranhamento, desde a repulsa e a confusão até

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o riso e a ironia. É graças à manipulação plástica da linguagem, à exploração da materialidade das palavras e à elaboração rítmica que Augusto alcança sua potencialidade grotesca, pois compõe uma poesia monstruosa, que reúne em si mesma um hibridismo entre a clareza e a obscuridade, a fluidez e o obstáculo, que se identifica com aquilo que Kayser considera como “contraste indissolúvel, sinistro, o que-não-devia-existir” (KAYSER, 1986, p. 61). Bakhtin nos diz que o corpo grotesco, monstruoso e disforme, “não tem lugar dentro da ‘estética do belo’” (BAKHTIN, 1987, p. 26). Ora, cada um dos poemas do Eu — e, por extensão, todo o conjunto do livro — funcionam como um corpo disforme e absurdo. Seguindo à risca a cadência parnasiana, Augusto consegue extrair dela justamente o seu contrário, estabelecendo um efeito de paródia. Mas não qualquer paródia, pois não se o trata de uma deformação ou ridicularização pura e simples dos modelos parnasianos, mas sim de uma poesia que se faz a partir de seus limites, do seu oposto. Na poesia augustiana, a linguagem científica não mais atende às suas funções técnicas de precisão e concisão conceitual, assim como a musicalidade não mais presta serviço à nobreza de imagens elevadas — ambas são retiradas de seu lugar e funcionam de maneira híbrida, na composição de uma linguagem que está no limite entre o poético e não-poético. Dessa forma, a poesia augustiana estabelece uma paródia ao próprio fazer poético, exercendo em si mesma a contestação de suas definições. Assim, é essencialmente grotesca, pois desempenha de forma ambivalente a degradação de seus modelos e, simultaneamente, regenera a própria linguagem poética, dando-lhe novas possibilidades. Como diz Lúcia Sá em seu artigo, retomando Bakhtin, “a ambivalência do grotesco choca e desconcerta ao romper com a ideia do corpo acabado, completo, limitado, visto por fora como um todo individual: o corpo da poesia Parnasiana” (SÁ, 2007, p. 36). É interessante apontar como Augusto dos Anjos exibe uma predileção pela forma do soneto. Em todo o Eu, dos 56 poemas 40 são sonetos (desconsiderando o fato de que o poema “Sonetos” pode ser decomposto em suas partes em três sonetos completos e distintos). Bilac e Passos o descrevem como “uma composição lírica por excelência” (BILAC; PASSOS, 1949, p. 177), “a mais difícil e mais bela das formas da poesia lírica” (Ibid., p. 164). Dos 14 versos, o último é o mais importante, sendo considerado “uma ‘chave de ouro’, encerrando a essência do pensamento geral da composição” (Ibid., p. 164). Os autores indicam que o soneto clássico (aos moldes de Petrarca e Camões) sempre era feito em versos decassílabos heroicos e a preferência se dava por versos graves (encerrados por paroxítona) que, quando não eram unânimes em todo o poema, eram intercalados simetricamente por versos agudos.

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Como se vê, a forma clássica do soneto é a realização máxima do ideal parnasiano do Belo, baseado na harmonia, na elegância, na simetria e na concisão; bem como o “alvo cristal, a pedra rara, /o ônix”, a “estrofe cristalina/ dobrada ao jeito/ do ourives” que “no verso de ouro engasta a rima,/ como um rubim”, de que diz a “Profissão de Fé” de Bilac (BANDEIRA, 1967, p. 187-192), que tanto serviu de guia aos poetas de sua época. Sob essa perspectiva, o poema é, em si mesmo, um corpo completo e perfeito, “isolado, solitário, separado dos demais corpos, fechado” (BAKHTIN, 1987, p. 26). Os versos são sempre rígidos, esculturais — talvez uma das razões pela qual o hiato era evitado pelos parnasianos, já que a sua “frouxidão” comprometeria a unidade do verso — assim como as estrofes, sempre bem demarcadas pela regularidade e simetria das rimas, e os próprios poemas, que em si mesmos deveriam ser claros e concisos. Ora, diante dessa concepção de poesia, não é de se admirar o estranhamento suscitado pelos versos de Augusto. Estruturalmente, seus poemas, principalmente os sonetos, seguiam à risca

as

normas

clássicas:

14

versos

decassílabos

(majoritariamente

heroicos)

preponderantemente graves (quando não intercalados harmoniosamente com agudos 10), estrofação regular e simétrica (quase sempre entrelaçada), e respeito à regra da “chave de ouro”. No entanto, justamente pelos exageros consonantais, o abuso de esdrúxulos, a inserção constante de vocabulário técnico e prosaico e as elisões severas, sua poesia põe à prova a Beleza clássica. Por isso, a reação de muitos é confusa e incerta ao reconhecer os talentos do poeta “apesar de sua poesia”, tentando, muitas vezes, justificar sua extravagância pela constatação de patologias e loucura. O próprio Medeiros e Albuquerque, no texto citado anteriormente, emprega uma analogia envolvendo Augusto dos Anjos e o ideal de poeta-ourives de Bilac:

Lê-se o seu livro (Eu) como se iria ver a obra de um ourives louco, que tivesse tomado ouro maciço e feito com ele um bloco estranho, áspero, anfractuoso. Sem representar coisa alguma, tendo apenas, aqui e ali, recipientes, para dejetos imundos... (ALBUQUERQUE, 1973, p. 156).

Podemos até concordar com essa analogia, se tomarmos como o “ouro” a poesia tradicional apoiada nos conceitos clássicos de Beleza; Augusto de fato a toma como matéria prima para construir algo estranho, disforme, contraditório — grotesco. Mas não por ser vítima de uma

10

Como aponta Proença, apesar da alta frequência de termos esdrúxulos na poesia de Augusto, são raras as suas ocorrências no fim dos versos. (PROENÇA, 1959, p. 240)

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obsessão patológica, e sim devido a uma consciente elaboração estética que já apontava para alguns dos rumos que a poesia posterior desenvolveria no futuro11. O grotesco em Augusto dos Anjos, portanto, alcança tamanha profundidade e potência por não se limitar à exposição de imagens e temas grotescos. Se a separação entre “forma” e “conteúdo” já não faz sentido para a poesia, na obra de Augusto ela é impensável: o artesanato poético compõe os efeitos de que se valerão as imagens e temas, e vice-versa. A sua poesia não compõe o grotesco, mas se compõe grotesca desde o início. Por isso o seu caráter monstruoso, estranho, blasfemo, que por tanto tempo confundiu a crítica que tentava enquadrá-lo em alguma escola ou movimento particular. Antes de estabelecer um diálogo direto com o simbolismo, o parnasianismo ou o romantismo, a obra de Augusto dialoga com a Poesia enquanto linguagem, se aproveita de suas normas e as reverte, revira ao avesso (para aproveitar a expressão de José Paulo Paes) em uma manifestação, antes de tudo, dessacralizadora, uma vez que seria impossível descumprir rígidas arbitrariedades estéticas sem ofendê-las diretamente. Portanto, nos parece ser válido dizer que Augusto executa, em sua poesia, algo próximo daquilo que Bakhtin chama de rebaixamento: “a transferência ao plano material e corporal, o da terra e do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato (BAKHTIN, 1987, p. 17)”. Ao se configurar como uma espécie de paródia poética, a obra de Augusto recusa as pretensões nobres e elevadas da poesia tradicional, e incorpora à sua poética o escatológico, o cacofônico, o dissonante, o prosaico e o científico, trazendo a poesia para “baixo”, para os domínios considerados inferiores, vulgares, não-poéticos, ampliando e regenerando a própria Poesia. E os efeitos produzidos por tal dessacralização grotesca alcançam desde o horror e a repulsa, causados por um alheamento assustador e absurdo, responsável por “que as categorias de nossa orientação no mundo falhem” (KAYSER, 1986, p. 159), até o riso cínico e blasfemo que, por se opor à seriedade da “poesia elevada”, desempenha um papel libertador e ambivalente: “nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente” (BAKHTIN, 1987, p. 10).

Os principais trabalhos sobre Augusto dos Anjos apontam bem a “modernidade” que a sua poesia encerrava. Principalmente, cf. “Augusto dos Anjos ou vida e morte nordestina” (GULLAR, 1978), e “A costela de prata de Augusto dos Anjos” (ROSENFELD, 1976). 11

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2.3 Análise do soneto “Agregado infeliz de sangue e cal...”

Para melhor compreensão e ilustração de tudo o que até então foi exposto, analisaremos um poema do Eu em busca do grotesco artesanal do poeta.

Soneto

Ao meu primeiro filho nascido morto com 7 meses incompletos. 2 de Fevereiro de 1911

Agregado infeliz de sangue e cal, Fruto rubro de carne agonizante, Filho da grande força fecundante De minha brônzea trama neuronial,

Que poder embriológico fatal Destruiu, com a sinergia de um gigante, Em tua morfogênese de infante A minha morfogênese ancestral?!

Porção de minha plásmica substância, Em que lugar irás passar a infância, Tragicamente anônimo, a feder...?!

Ah! Possas tu dormir, feto esquecido, Panteisticamente dissolvido Na noumenalidade do NÃO SER!12

Esse famoso soneto de Augusto dos Anjos carrega muitos dos elementos mais característicos de sua poesia. A referência às ciências da evolução por meio de uma ótica pessimista marca o tom lúgubre deste poema, que presta homenagem ao filho de maneira

12

As indicações em itálico não são nossas. As palavras estão destacadas originalmente no poema.

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estranhamente singular, substituindo o sentimentalismo pessoal (esperado nesse tipo de obra) por uma linguagem objetiva e racional. Composto aos moldes clássicos, todo em versos decassílabos, o poema segue o esquema estrófico tradicional de rimas entrelaçadas (ABBA nos quartetos, e CCD/EED nos tercetos). As rimas também são cuidadosamente trabalhadas, harmonicamente misturadas em versos agudos e graves: nos quartetos, as rimas de tipo A são todas agudas (cal, neuronial, fatal, ancestral) enquanto as de tipo B são graves (agonizante, fecundante, gigante, infante); nos tercetos, as rimas de tipo C e E são graves (substância, infância e esquecido, dissolvido) e as de tipo D são agudas (feder, ser). O último verso obedece à tradição da “chave de ouro” e encerra o soneto com uma afirmação da morte enquanto retorno ao Nada, dando ainda ênfase às duas últimas palavras, grafadas em letras maiúsculas: “Na noumenalidade do NÃO SER!”. A exclamação final potencializa não apenas o verso, mas também acentua a gravidade do poema como um todo. Vejamos a escansão dos versos, com as marcações dos acentos em negrito e as rimas demarcadas entre parênteses:

A/gre/ga/do in/fe/liz/ de /san/gue e /cal,

(A)

Fru/to /ru/bro /de /car/ne a/go/ni/zan/te,

(B)

Fi/lho /da /gran/de /for/ça /fe/cun/dan/te

(B)

De/ mi/nha/ brôn/zea /tra/ma /neu/ro/nial,

(A)

Que/ po/der/ em/brio/ló/gi/co /fa/tal

(A)

Des/truiu,/ com a/si/ner/gi/a /de um /gi/gan/te,

(B)

Em/ tu/a /mor/fo/gê/ne/se/ de in/fan/te

(B)

A /mi/nha /mor/fo/gê/ne/se an/ces/tral?!

(A)

Por/ção /de/ mi/nha /plás/mi/ca /subs/tân/cia,

(C)

Em /que /lu/gar/ i/rás/ pa/ssar/ a in/fân/cia,

(C)

Tra/gi/ca/men/te a/nô/ni/mo, a /fe/der...?!

(D)

Ah!/ Po/ssas/ tu /dor/mir,/ fe/to es/que/ci/do,

(E)

Pan/te/is/ti/ca/men/te /di/ssol/vi/do

(E)

Na/ nou/me/na/li/da/de /do/ NÃO /SER!

(D)

34

Mesmo quando apresentam acentos mais fracos na quarta ou oitava sílabas, todos os versos são decassílabos heroicos, tendo a cesura na sexta sílaba. Do ponto de vista estrutural, portanto, temos um soneto que segue à risca a tradição clássica e tematiza um assunto nobre, elevado — a perda de um filho. No entanto, há vários elementos no poema que o distanciam da poesia convencional, pautada pela harmonia, elegância e medida, e o aproximam de uma estética do feio, do confuso — do grotesco. A começar pela representação do filho perdido: a primeira estrofe se presa inteira a caracterizálo, partindo, já no primeiro verso, de uma imagem negativa e rebaixadora: “Agregado infeliz de sangue e cal”, reforçada por uma aliteração gutural em /g/. Desde o início, a voz poética se mantém distante do “feto esquecido” pela escolha vocabular que tende à impessoalidade, e pela aspereza das aliterações em /f/ e /r/ e /R/:

Agregado infeliz de sangue e cal, Fruto rubro de carne agonizante, Filho da grande força fecundante De minha brônzea trama neuronial,

A repetição destes sons confere uma tensão aos versos que intensifica o estranhamento causado pelo emprego de palavras como “agregado”, “cal”, “carne” “neuronial”, de modo que a rigidez das imagens acompanha a rigidez dos sons. E isto se acentua com as elisões: adjacentes a sílabas mais fortes, marcam ainda mais o ritmo e os acentos dos versos (“a/gre/ga/do in/fe/liz/ de/ san/gue e /cal”, “fru/to/ ru/bro/ de/ car/ne a/go/ni/zan/te”13). A composição material e concreta do filho morto se choca com a expectativa de idealização dos padrões clássicos. O terceiro e quarto versos da estrofe, inclusive, administram certa quebra de expectativas entre si; se o terceiro verso alude a algo grandioso e elevado: “filho da grande força fecundante”, o quarto verso desconstrói a suposta elevação com o enjambement que desloca o sentido para a matéria, para o fisiológico: “de minha brônzea trama neuronial”. Após a vocação da primeira estrofe, a segunda configura uma pergunta, mantendo o distanciamento entre o poeta e o filho. Aqui o estranhamento é reforçado pelo surgimento de termos técnicos em todos os versos:

Que poder embriológico fatal

13

As elisões seguem sublinhadas, os acentos em negrito.

35

Destruiu, com a sinergia de um gigante, Em tua morfogênese de infante A minha morfogênese ancestral?! O estranhamento é provocado na estrofe não só pelo caráter “não poético” destes termos retirados das ciências (o poeta faz questão de assinalar “morfogênese”, destacando-a como um conceito), mas principalmente pela sua sonoridade — não é por acaso que todas estão localizadas no centro verso, tendo a sua sílaba tônica marcando a cesura. Dois deles, “embriológico” e “morfogênese”, são esdrúxulos, este último sendo repetido em dois versos. Aqui também os sons /r/ e /R/ conferem aspereza e rigidez aos versos, e realçam os termos técnicos nas cesuras:

Que poder embriológico fatal Destruiu, com a sinergia de um gigante, Em tua morfogênese de infante A minha morfogênese ancestral?! A elisão nessa estrofe aparece ainda com mais força. Além da sinérese em “em/brio/ló/gi/co” e das sinalefas comuns “de um” e “de infante”, é interessante observar que nessa estrofe os dois últimos versos são muito parecidos, como que espelhados um do outro. Esta semelhança é principalmente sonora: tendo o termo morfogênese como centro, os dois seguem a mesma acentuação, que, além da cesura heroica, têm um acento nas segundas sílabas, o que é garantido por um hiato no terceiro verso: “Em/ tu/a /mor/fo/gê/ne/se /de in/fan/te”. Um bom exemplo de desobediência à imposição parnasiana, tal hiato diminui a densidade da palavra “tua” e garante uma rigidez à união do terceiro e quarto versos, que se mantêm no mesmo exato ritmo, intensificando seu espelhamento semântico (morfogênese do filho/morfogênese do pai). A tradição dos sonetos sempre compõe nos quartetos uma exposição do assunto tratado, deixando aos tercetos a sua conclusão, o fechamento do assunto. Assim como em toda a obra de Augusto, podemos observar claramente essa estrutura também neste soneto. Os dois quartetos formam, juntos, uma única e longa frase que trata da morte do filho prematuro. A unidade que compõe os quartetos é reforçada pela monotonia das rimas; não apenas pelas rimas da primeira estrofe se repetirem na segunda, mas pela própria aproximação das rimas tipo A e tipo B. Enquanto o primeiro se faz pela vogal aberta /á/, o segundo repete a mesma vogal, porém nasalizada, /ã/.

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Tal aproximação sonora, intensificada pela repetição destas vogais no interior dos versos, como em “Agregado infeliz de sangue e cal/ Fruto rubro de carne agonizante”, assim como outras repetições vocálicas internas, como “Destruiu, com a sinergia de um gigante,” ou as próprias repetições na palavra “morfogênese”, compõem uma espécie de monotonia nos quartetos que reforça sua sonoridade, e garante ainda mais a potência das consoantes e suas aliterações. O impacto desses quartetos é ainda reassegurado pela eloquência da pontuação no oitavo verso, que sobrepõe à indagação um tom exclamatório: “?!”. O primeiro terceto retoma a caracterização fisiológica do filho no primeiro verso, “Porção de minha plásmica substância,”. Esse verso é um dos mais abstratos do poema inteiro, tendo sua carga semântica relativamente reduzida em detrimento da sonoridade; a aliteração em /p/ confere ao verso certa violência, que se prolonga ao longo da estrofe. A monotonia da vogal /a/ presente nos quartetos se estende até aqui, pela as rimas finais em /ã/, “substância/ infância”, e a repetição de /a/ (tanto aberta quanto nasalizada) no interior dos primeiros versos: “Porção de minha plásmica substância,/ Em que lugar irás passar a infância,”. A constância dessa vogal se intensifica ao ocorrer também neste terceto, ainda com tanta força, e assegura certo tom encantatório, totalmente destoante com a impessoalidade da voz poética e o vocabulário técnico. Aqui também se tem a eloquência de uma pergunta exclamada, ainda precedida de reticências, como para assegurar mais ainda a potência da última palavra, garantindo uma pausa maior a sua tônica: “Tragicamente anônimo, a feder...?!”. O último terceto encerra o poema intensificando a eloquência das perguntas anteriores, mas frustrando-as ao não apontar nenhuma resposta. Ao invés disso, sugere certa esperança, embora que lúgubre, na dissolução do sofrimento no Nada, diante do qual nenhuma pergunta teria importância. O primeiro verso retoma, novamente, a caracterização fisiológica do filho, logo após uma exclamação: “Ah! Possas tu dormir, feto esquecido,”. Além do peso semântico de “feto esquecido”, a repetição do /t/ intensifica o verso, que ainda herda a brutalidade do terceto anterior. Os dois últimos versos exageram a eloquência das estrofes anteriores, por meio de dois vocábulos muito longos e abstratos: “Panteisticamente dissolvido/ Na noumenalidade do NÃO SER!”. O terceto vai crescendo, a partir da exclamação do primeiro verso, e se torna quase um grito no último verso, fechado em letras maiúsculas. O penúltimo verso ainda conta com a repetição da vogal /i/, que somado ao hiato em “Pan/te/is/ti/ca/mente” confere muita rigidez e tensão ao verso, preparando a chave de ouro no verso mais abstrato do poema. É importante observar que o tom esperançoso desta estrofe destoa completamente da caracterização macabra do filho morto, e do tom impessoal sugerido pela voz poética.

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Esse soneto ilustra o artifício poético de Augusto dos Anjos ao exibir claramente as contradições formais de que o poeta lança mão para compor uma poesia grotesca. Augusto parte de uma estrutura canônica e elevada e a descontrói por dentro para produzir o desarmônico, o disforme, o horroroso e o absurdo. O resultado é o apodrecimento da Forma, um rebaixamento da Beleza tradicional por meio de seus próprios fundamentos. À harmonia e à elevação se contrapõem o confuso e o estranho, e não por uma negação direta, mas pela tensão, pela ambivalência, pelo contraste. É nessa contradição que reside o grotesco.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

As relações entre a poesia de Augusto dos Anjos e a categoria do grotesco não poderiam se esgotar neste trabalho, tampouco era essa a nossa intenção. Além disso, sua obra não se reduziria, tampouco, às suas manifestações grotescas. Quando tratamos sobre o “artesanato grotesco” ou a “poesia grotesca augustiana”, não incorremos na ingenuidade de pretender categorizá-la rigidamente, como em um veredito normativo. Se nosso trabalho tocou nestes pontos, o fez de forma a reforçar a constatação de que a obra de Augusto dos Anjos não é redutível a moldes ou esquemas escolares, e que sua composição do grotesco é apenas uma de suas características. A partir dessa complexidade, tentamos entender um pouco melhor como o poeta faz uso de sua técnica e artifício formais para a produção de um efeito grotesco. Para além da simples ocorrência de imagens da morte e da putrefação, percebemos que sua poesia faz uso de diversos elementos — semânticos, vocabulares, rítmicos, estruturais, temáticos, melódicos — de maneira singular e consciente na confecção de uma poesia incrivelmente original e moderna. Utilizando procedimentos como a paródia, o estranhamento, o exagero e o choque, é capaz de produzir poemas que desafiaram a tradição de sua época e forçaram os limites da linguagem poética, impactando as próximas gerações de poetas, em maior ou menor grau. Composta a partir de melodias simples e monótonas, pela exploração de rimas vulgares e monofônicas e do rigor impetuoso do ritmo decassílabo, com poucas variações, a poesia de Augusto consegue preencher seus versos com cacofonias, aliterações (tão exageradas que chegam a configurar trava-línguas), elisões violentas, vocábulos obscuros e impronunciáveis, pausas abruptas e escatologias, transformando seus poemas em peças disformes e esdrúxulas que, se por um lado têm um aspecto monstruoso e blasfemo, por outro gravam-se à memória e não passam despercebidos ao leitor. Produtora de uma vasta gama de reações, sua poesia mantém sua relevância e permanece interessando novos leitores e possibilitando novos estudos, tamanha sua força e excelência. A compreensão de seus aspectos grotescos nos mostra relevante justamente por ainda suscitar novas interpretações e hipóteses, diante de uma obra que até hoje mantém sua capacidade de provocar o horror, a repulsa, o estranhamento e até o riso, e a preocupação por uma análise formal prova sua importância quando constatamos que parte dos efeitos grotescos dessa poesia são suscitados justamente pela composição técnica de seus versos e estrofes. Se fosse de outro modo, suas possibilidades de estranhamento e choque perderiam força com o passar dos anos, uma vez que a metrificação tradicional de que Augusto lança mão foi perdendo sua posição

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central na poesia moderna e contemporânea. Mas não é o caso. Augusto dos Anjos continua sendo lido, estudado, e sua poesia ainda nos oferece, com riqueza, possibilidades de estranhamento e encantamento.

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REFERÊNCIAS ANJOS, Augusto. Eu e outras poesias. Apresentação, notas e comentários ALCIDES, Sérgio. 1. ed. São Paulo: Ática, 2005. ALBUQUERQUE, Medeiros. O livro mais estupendo: o “Eu”. In: COUTINHO, Afrânio; BRAYNER, Sonia. Augusto dos Anjos: textos críticos. Brasília: MEC/INL, 1973. p. 149-157. ALMEIDA, Rogério Caetano. O corpo grotesco como elemento de construção poética nas obras de Augusto dos Anjos, Mário de Sá-Carneiro e Ramón López Velarde. 2007. 239 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. Disponível em . Acesso em 20 nov. 2015. BANDEIRA, Manuel. Antologia dos poetas brasileiros: fase parnasiana. Revisão crítica HOLLANDA, Aurélio Buarque. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1967. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1987. BILAC, Olavo; PASSOS, Guimarães. Tratado de versificação: a poesia no Brasil – a métrica – gêneros literários. 9. ed. adaptada à grafia simplificada. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1949. COLETTI, Vagner. As Flores do Mal e Eu: um olhar pelo prisma do grotesco. Araraquara: 2008. GULLAR, Ferreira. “Augusto dos Anjos ou morte e vida nordestina” In: ANJOS, Augusto. Toda Poesia. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. p. 13-60. HELENA, Lúcia. A cosmo-agonia de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977. HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime: tradução do prefácio de Cromwell. Tradução e notas Célia Berrenttini. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. KAYSER, Wolfgang. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. Tradução J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1986. PAES, José Paulo. “Augusto dos Anjos ou o evolucionismo às avessas”. Novos Estudos/CEBRAP, São Paulo; n. 33, jul. 1992, p. 89-102. Disponível em: < http://novosestudos.uol.com.br/v1/files/uploads/contents/67/20080625_augusto_dos_anjos.pd f>. Acesso em 20 nov. 2015. PROENÇA, Manuel Cavalcanti. “Nota para um rimário de Augusto dos Anjos” In: COUTINHO, Afrânio; BRAYNER, Sonia. Augusto dos Anjos: textos críticos. Brasília: MEC/INL, 1973. p. 280-293. ______. “O artesanato em Augusto dos Anjos” In: ______. ______. Augusto dos Anjos: textos críticos. Brasília: MEC/INL, 1973. p. 215-269.

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