A forma e o podre: duas agendas da cidade de origem portuguesa nas idades medieval e moderna

October 17, 2017 | Autor: Magnus Pereira | Categoria: Urban Planning, História Da Arquitetura E Do Urbanismo
Share Embed


Descrição do Produto

MAGNUS ROBERTO DE MELLO PEREIRA

A FORMA E O PODRE DUAS AGENDAS DA CIDADE DE ORIGEM PORTUGUESA NAS IDADES MEDIEVAL E MODERNA

Tese apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Doutor, ao Colegiado dos Cursos de Pós-Graduação do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná, sob a orientação da Profª Drª Ana Maria de Oliveira Burmester.

CURITIBA 1998

À Ana e à Lai.

ii

Agradeço a todos os que ajudaram a tornar este trabalho possível. Inicialmente à minha orientadora, a professora Ana Maria. Ela sabe que desempenhou um papel decisivo não só em relação a esta tese mas em toda minha trajetória acadêmica. São anos de convivência e incentivo, que se iniciaram na minha graduação, passaram pelo mestrado, chegando, agora, ao doutorado. Obrigado pela confiança irrestrita que depositou em mim durante todos esses anos. Devo, também, um agradecimento todo especial ao prof. Antonio Cesar de Almeida Santos, que colaborou em todas as etapas do presente trabalho. Além da amizade pessoal, eu e o Cesar desenvolvemos uma convivência acadêmica profícua. Em relação ao presente trabalho nos deparamos em diversos momentos com uma produtiva inversão de papéis, de meu orientando o Cesar transformou-se em co-orientador, pelas muitas sugestões Agradeço, ainda, ao Cláudio Denipoti, à Maria Luiza, ao Luiz Geraldo, à Etelvina e ao Carlos Lima que, seja simplesmente conversando, seja sugerindo bibliografia, seja emprestando livros, seja ajudando na revisão, tornaram menos solitário esse meu exercício. E ao prof. António de Oliveira, da Universidade de Coimbra, cujo apoio foi decisivo para a obtenção de bolsa de pesquisa em Portugal. Um último agradecimento aos meus amigos de Portugal, Ângela, Dinorá, Luís e Teodoro, que me receberam calorosa e carinhosamente, não permitindo que minha estadia naquele país se resumisse à busca de papéis velhos.

Este trabalho contou com o apoio da CAPES/MEC.

iii

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO _________________________________________ 01 DA PÓLlS E DA URBE ________________________________________

22

A INSTITUIÇÃO POLÍTlCA DA CIDADE PORTUGUESA _____________ 23 DO IMPERFEITO AO PERFEITO, DO RURAL AO URBANO ____________ 24 Como deve pôr cinco ou seis homens bons por vereadores ___________ 32 Se isso fazemos, é por serem as cidades melhor vereadas ____________ 42 A EXPANSÃO COLONIAL PORTUGUESA E O MUNlCÍPlO ____________ 47 O império das intrigas ________________________________________ 51 O império do diverso: cidades, feitorias, prazos ___________________

57

Em (quase) tudo semelhante ao reino ____________________________ 70 PARA MELHOR ADMINISTRAR E CONSERVAR _____________________ 86 Que o povo miúdo ordene-se em vinte e quatro mesteres ____________ 95

O DIREITO DE ALMOTAÇARIA ___________________________________ 108 AL MUHTASIB ___________________________________________________ 110 Das cousas que pertencem ____________________________________ 112 Degredos, posturas ou vereações _______________________________ 124 OS ALFINETES DE DÂMOCLES ___________________________________ 128 Assim cortesão como morador da cidade _________________________ 135 O texto instaurador __________________________________________ 141 A INVENÇÃO DA RUA ___________________________________________ 147 Danavam as praças e faziam maus odores ________________________ 153 A casa e a rua ______________________________________________ 158

iv

DA FORMA ____________________________________________ 165 PRODUZINDO A FORMA _________________________________________ 166 A CIDADE MUÇULMANA DA PENÍNSULA IBÉRICA _________________ 169 Almedina ___________________________________________________ 171 A rua e as casas ______________________________________________ 173 A CIDADE CRISTÃ MEDIEVAL ____________________________________ 177 Um traçado de cidade portuguesa ________________________________ 178 Castelos, muros e cidades ______________________________________ 180 A cidade e o terreno __________________________________________ 183 Cidades novas _______________________________________________ 186 A ‘CONSTRUÇÃO’ DAS CIDADES EM PORTUGAL

191

___________________ Rei, senhores, câmara e cidade __________________________________ 198 Ruas por que possam ir carros e homens __________________________ 204 ESPAÇOS E SEGREGAÇÃO: MANCEBIAS E JUDIARIAS ______________ 214 As que fazem por mais de dois homens ___________________________ 216 Judiarias: os façais morar dentro _________________________________ 226 FAZENDO A CIDADE RENASCENTISTA ____________________________ 235

A CIDADE DOS PRIMEIROS TEMPOS DAS COQUISTAS ____________

245

Praça muito direita e muito fermosa ______________________________ 246 Uma ‘cidade ideal’ do renascimento? _____________________________ 252 Não parece tanto cidade e povo _________________________________

255

BRASIL E ANGOLA ______________________________________________ 261 Por lhes mostrar que têm tudo que os cristãos têm ___________________ 267 A CIDADE DE D. JOÃO V _________________________________________ 277 Proveu o ouvidor Pardinho _____________________________________ 277 A CIDADE POMBALINA __________________________________________ 292 A criação da norma _______________________________________ 286 Cidade colonial ou cidade iluminista? _________________________ 303 MENDONÇA FURTADO E A CIDADE POMIBALINA _________________

308

Se multiplicam, e vão multiplicando __________________________ 311

v

Se pode facilmente erigir desta sorte __________________________ 318 A CIDADE QUE CIVIILIZA ________________________________________ 324 DEMANDAS DE PAREDES, JANELAS E PORTAIS ___________________ 331 Que nenhuma pessoa possa abrir alicerces ______________________

335

Sem embargo do embargo ___________________________________ 344 Prospecto muito ligeiro _____________________________________

350

DO PÚTRIDO AO DELEITOSO ___________________________ 355 A AGENDA DO PODRE __________________________________________ 356 FUGIR OU FICAR, ABRIR OU FECHAR ______________________________ 359 O mau ar, que é grande impedimento __________________________

362

OS ARES MAUS CONTAGIOSOS ___________________________________ 370 QUE NÃO LANCEM ÁGUA NEM LIXO _____________________________ 380 A exemplo das cidade do reino _______________________________ 392 TRAZER AS RUAS E ÁGUAS SEMPRE LIVRES DE IMUNDÍCIES _______ 399 Que homem nem mulher não crie porca na vila __________________

399

O açougue: sujo e em lugar desconveniável _____________________

406

A defesa das águas _________________________________________ 409 CONSTA QUE ESTE LOCAL NÃO É DOS MAIS APROPRIADOS ________ 416 E tendo o sítio bons ares _____________________________________ 418 Este, e não outro __________________________________________

426

Qual outra Tróia ou a famosa Palmyra! _________________________ 429 Do juízo que formaram das doenças e das mortes _________________ 433 Sob o signo do elefante morto ________________________________ 440 Tudo influi sobre a malignidade da atmosfera ____________________ 446

A VEGETAÇÃO E A CIDADE ______________________________________ 454 QUINTA ESSÊNCIA DE CIGANARIA _______________________________ 457 Bizarros e deleitosos jardins __________________________________ 461 Sans-Souci de Queluz

465

_______________________________________ Amenos jardins ____________________________________________ 468 PASSEIOS PÚBLICOS ____________________________________________ 470 vi

Que nenhuma pessoa possa cortar choupos ______________________ 472 Passeio bonito e asseado, ao velho gosto francês _________________

474

INTERESSE DA CAUSA PÚBLICA _________________________________

478

Uma encantadora vista da orla ________________________________ 482 Uma política pública _______________________________________

488

O TERRITÓRIO DO VAZIO: O JARDIM ÀS MOSCAS _________________

501

Afetando o não saberem andar a pé _____________________________ 503 Houve quem achasse muito incoerente __________________________

507

CONCLUSÃO __________________________________________ 513 Almotaçaria, polícia, política ___________________________________ 514 A arte da polícia _____________________________________________

515

As políticas e a almotaçaria ____________________________________

520

La longue durée ______________________________________________ 528

BIBLIOGRAFIA

531

___________________________________________________

ANEXO

vii

CITAÇÕES ABREVIADAS AA APO

ARCHIVO DOS AÇORES. Ponta Delgada, v.1-15. 1878-1959.

BNL AHU CLDA

Biblioteca Nacional de Lisboa

LPA MMA

LIVRO DAS POSTURAS ANTIGAS. Lisboa: Câmara Municipal, 1979.

PCL

POSTURAS DO CONCELHO DE LISBOA, (sec. XIV). Lisboa: Sociedade de Língua Portuguesa, 1974.

RIHGB

REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO

RIVARA, J. H. da Cunha (org.). Archivo Portuguez-Oriental. New Delhi: Asian Educacional Services, 1992. 6.v. [Edição facsimilar de RIVARA. Archivo Portuguez-Oriental. Nova Goa: Imprensa Nacional, 1877. 2.ed. acrescentada com a segunda parte]

Arquivo Histórico Ultramarino - Lisboa PORTUGAL. Collecção de Leis, Decretos e Alvarás, que comprehende o feliz reinado del Rei Fidelissimo D. José o I. Lisboa: Officina de Antonio Rodrigues Galhardo, 1797.

BRÁSIO, António. Monumenta missionária africana. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1952.

AFONSINAS

ORDENAÇÕES AFONSINAS. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984.

MANUELINAS

ORDENAÇÕES MANUELINAS. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985.

FILIPINAS

ORDENAÇÕES FILIPINAS. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985. (Facsimile da edição comentada de MENDES, Cândido. Código Philipino. Rio de Janeiro: Typographia do Instituto Philomático, 1870).

viii

Por cima de Apsû vós haveis residido, a contrapartida de Esarra que eu edifiquei sobre vós, abaixo fortaleci o solo para lugar de edificação, e construirei uma casa, que será minha luxuosa morada, e edificarei ali seu templo, e demarcarei cômodos e estabelecerei minha soberania. E lhe porei por nome Babilônia, que quer dizer as casas dos grandes deuses, e a edificarei com a destreza dos artesãos.

Poema Babilônico da Criação - Século XX a.C.

INTRODUÇÃO

“Pas de problème, pas de histoire”, dizia o historiador francês Lucien Febvre. Talvez, mais justo ainda, fosse afirmar que sem motivação não há história. Para nós que produzimos uma história acadêmica, a construção do problema investigativo, o tema, diríamos, é essência da profissão e a dificuldade real. Já as motivações são algo difusas e se inscrevem, muitas vezes, no âmbito dos acidentes autobiográfico de cada autor. Por quê me ponho a escrever sobre as cidades de origem portuguesa? Escrever uma história das cidades do meu bildungromam? Curitiba, onde nasci, Bissau, onde nasceu em mim a escolha pela história, e Lisboa, depósito uterino da história dessas e outras cidades. Fazer uma história de Curitiba, Bissau e Lisboa, implica em ir de Cuiabá a Nagasaqui e da Colônia do Sacramento a Bragança, com todas as outras cidades portuguesas que há e houve de permeio. O que teria levado André de Resende a escrever sobre a História da antigüidade da Cidade de Évora [1553] ou Damião de Góes a descrever a Lisboa de seu tempo [1554]?1 A motivação latente foi enfatizar a importância dessas cidades, seja no

1

RESENDE, André de. História da antigüidade da cidade de Évora. Évora: André de Burgos, 1553. GÓIS, Damião de. Descrição da Cidade de Lisboa. Lisboa: Livros Horizonte, 1988. (GOEN, Damianus. Urbis Olisiponensis descriptio. Évora: s.ed., 1554.)

2

passado distante de Évora, seja na grandeza presente de Lisboa. Em ambos os casos, o que se observa é um exercício de escrita que conjuga a erudição renascentista dos autores com um substrato de amor pelas respectivas cidades. Resende funda, em Portugal, o que pode ser considerado uma história local ou da cidade, ainda que fosse de um passado distante, enquanto o humanista Damião de Góes estabelece um padrão de apologia descritiva das cidades. Apesar das diferenças formais, eles nos dão uma amostra da escrita panegírica e afetiva da qual participam a quase totalidade dos autores portugueses quinhentistas que escrevem sobre a cidade.2 Foi com o texto apologético sobre a cidade, criação do humanismo italiano, que a escrita sobre o espaço urbano ganhou autonomia. Até então, os estereótipos espaciais presentes na literatura medieval mantinham a cidade na simples condição de palco esquemático para a ação moralizante ou edificante das personagens da narrativa. A crônica histórica do fim do medievo também se valia do espaço como variável dependente, usando-o como suporte para os feitos de grandes personagens. Em relação à cidade, a apologia ultrapassaria o texto descritivo dos viajantes. A personagem central deste tipo de literatura era o olho do viajante, o que resultava numa escrita difusa e impressionista. Apenas com as topografias históricas e descritivas do renascimento, textos eminentemente amorosos e apologéticos, a cidade transforma-se na própria personagem ou no objeto da escrita. Atualmente, temos alguma dificuldade em lidar com a escrita apologética. Usualmente, classificamos os textos em duas modalidades aceitáveis, ou melhor dizendo, aceitamos plenamente apenas duas modalidades de escrita. Aquela que se pretende científica, ou que procura atender a um princípio de objetividade, e a artística ou literária, em que a subjetividade é explícita, a qual julgamos por critérios estéticos e de sensibilidade. Todas as outras formas de escrita, da carta pessoal às memórias, do texto oficial ao publicitário, ficam numa espécie de limbo e só nos aproximamos delas com muito cuidado. O texto apologético tornou-se quase um sinônimo de mentira. É

2

Sobre a afetividade na escrita da história local, ver OLIVEIRA, António de. Problemática da história local. Coimbra: s.ed., 1993. (policopiado)

3

algo que deveria ser objetivo mas não é, por deixar aflorar o publicitário e o afetivo. No entanto, as características afetivas do texto apologético não o transformam em manifestação puramente subjetiva. Os autores do século XVI estavam envolvidos na criação de princípios objetivos de ver e narrar a cidade, ainda que, em seguida, tal tentativa de objetividade fosse colocada a serviço do afetivo. É exatamente o que faz João Brandão de Buarcos, autor de um outro conhecido texto no qual a Lisboa quinhentista nos é apresentada segundo um princípio que hoje denominamos de estatístico.3 Mais do que a estatística, o que o orienta é a ótica da escrituração contábil e fiscal. O autor era rendeiro das sisas do carvão, lenha, telhas, linho, arcos de pipas, mel, etc., o que o transformava em perito em contabilidade.4 No seu texto, aquilo que era método fiscal e de gestão mercantil foi transformado em método de narrar/conhecer uma cidade. O resultado é uma grande contabilidade de Lisboa.5 Brandão foi um dos raros autores da época a descrever Lisboa tendo a “verdade” como objetivo explícito. Ele se propunha a escrever “com mais verdade que fosse possível”, utilizando uma modalidade de escritura que tinha por princípio reduzir seu objeto a aspectos quantificáveis, anotados metódica e objetivamente.6 Todavia, ele próprio se encarregaria de fraudar sua contabilidade, exagerando-a em muitos itens, de forma a acentuar determinadas quantidades, transformando-as em qualidade: a grandeza. Por força do comércio com o oriente, Lisboa tornara-se, de fato, numa das maiores e mais ativas cidades européias. Isto não satisfazia Brandão, cuja motivação era “afirmar como as grandezas, riquezas e polícia desta cidade passam por cima de todas

3

BRANDÃO [de BUARCOS], João. Grandeza e abastança de Lisboa em 1552. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. O texto original não possuía um título, recebendo diferentes nomes a cada edição. 4

Os rendeiros detinham o direito de cobrar impostos a troco de um percentual da receita, ou antecipavam uma receita fixa, lucrando o que arrecadasse a mais. 5

Outra estatística contemporânea à de Brandão é a de OLIVEIRA, Christovam Rodrigues de. Summario, em que brevemente se contem algumas coisas, assim ecclesiasticas, como seculares, que ha na cidade de Lisboa. Lisboa: Oficcina de Miguel Rodrigues, 1755. [original de 1551] 6

BRANDÃO. Grandeza. p.23.

4

as edificadas”.7 Não bastava Lisboa ser grande ou rica, ela deveria ser a maior e a mais rica. Assim, a partir de um método objetivo, ele produziu uma Lisboa afetiva, mais populosa e mais dinâmica do que a Lisboa real. Para João Brandão de Buarcos, assim como para diversos outros autores portugueses seus contemporâneos, a cidade não era o lugar da beleza edificada, da maneira como este belo foi definido pela renascença italiana, mas o espaço do muito. Na sua Lisboa ideal, o pouco “é muito mais que o muito das outras” cidades.8 Para esses homens ligados ao comércio lisboeta, a desordem do mercado é também um princípio estético de avaliação do espaço urbano. No texto de Brandão, se há um princípio externo que ordena a representação da cidade, este não é a perspectiva italiana mas o da multiplicidade dos fluxos de mercadoria. Diversidade, excesso e movimento, não são também os princípios de composição que regem a arquitetura manuelina? Os êxitos do projeto de expansão ultramarina fizeram com que a primeira metade do século XVI fosse, para os portugueses, um momento de afirmação da nacionalidade. A arquitetura manuelina é bastante expressiva daquele momento. Ela representou uma opção pelo abandono das características universalizantes (européias) do gótico sem que houvesse a adoção imediata do neoclassicismo italiano, também universalista. Mesmo ultrapassado o período Manuelino, persistem alguns aspectos da afirmação do caráter nacional português, entre eles o da idealização de suas cidades. Não queremos afirmar que Lisboa estivesse completamente alheia aos princípios de ordem urbana renascentista. No tempo em que escrevem Damião de Góes e Brandão de Buarcos, a cidade estava abandonando os traçados arábicos e medievais de seus bairros mais antigos pela configuração geométrica dos novos bairros ocidentais. O cosmógrafo Pedro Nunes envolvia-se na tradução de Vitrúvio e os portugueses tomavam contato com os grandes manuais italianos de arquitetura, como o de Pietro Cataneo.

7

BRANDÃO. Grandeza. p.23.

8

BRANDÃO. Grandeza. p.24.

5

No mesmo período, Francisco de Holanda se encarrega de divulgar a obra de Sebastiani Serlio, ou seja, de introduzir o maneirismo na Península Ibérica.9 Mais para o final do século XVI, quando o Império português do oriente já dava alguns sinais de declínio, ele seria o autor de um dos primeiros textos a abordar Lisboa sem ter por objetivo primário o elogio. Da fábrica que falece a cidade de Lisboa inaugura o texto projeção.10 Enquanto o texto histórico de Resende olhava para o passado, e as descrições de Góes e Brandão descreviam o presente, Holanda procurava estabelecer um futuro desejável. Esta obra é composta de um pequeno texto dirigido ao rei D. Sebastião, no qual o autor procura fazer um diagnóstico daquilo que faltava a Lisboa, a “fábrica” de que falecia a cidade, para que ela estivesse à altura de seu papel de capital de um grande império. Acompanhava o diagnóstico, uma serie esboços de obras destinadas a suprir algumas das faltas apontadas. Trata-se, portanto, de uma escrita com um claro objetivo operacional. Por não ser um panegírico, mas um levantamento de problemas, o texto de Francisco de Holanda estabelece um contraponto com o que haviam afirmado outros autores.

Se Lisboa tem a presunção da maior e mais nobre cidade do mundo, como não tem o mais excelente templo ou sé do mundo? Como não tem o melhor castelo, fortaleza e muros do mundo? Como não tem os melhores paços do mundo? E, finalmente, como não tem água para beber a gente do mundo?11

Ponto por ponto, onde todos proclamavam a excelência de Lisboa, Holanda apontava a precariedade. Ele observa que a cidade está defasada em relação aos novos padrões urbanos introduzidos pelo renascimento. Uma das obras mais descritas e

9

Francisco de Holanda foi enviado por D. João III para aprendizagem na Itália, onde permaneceu por dois ou três anos, no final da década de 1530. 10

O manuscrito, que hoje integra o acervo da Biblioteca Nacional da Ajuda, é datado de 1571. Ele recebeu o imprima-se em 1576, no entanto permaneceu inédito até o século XIX. Utilizou-se a edição HOLANDA, Francisco de. Da fábrica que falece à cidade de Lisboa. Lisboa: Livros Horizonte, 1984. 11

HOLANDA. Da fábrica. p.24.

6

elogiadas por todos que escreveram sobre Lisboa, o chafariz d’el-Rei D. Manuel, é considerada insuficiente. Para a solução do problema de abastecimento de água, ele propõe a reconstrução da barragem e do aqueduto que teriam atendido a Lisboa romana. Constatando que a cerca Fernandina está completamente defasada em relação à tecnologia militar da época, ele propõe um novo sistema defensivo nos moldes dos utilizados pelas cidades italianas. Também propõe a construção de um paço real acoplado a um parque de caça, melhor do que a “que fez em Fontainebleau o Rei de França”, para que D. Sebastião não tenha que se afastar da capital nos momentos de desenfado.12 Embora tivesse conhecimento dos manuais italianos que veiculavam as plantas de cidades ideais, ele não se ocupa da reformulação do sistema viário da cidade. A questão do arruamento foi tratada em uma escala muito menor e com um sentido pragmático e imediato. Segundo Holanda, as ruas estavam “descalças” e a resolução do problema não deveria ficar restrita à câmara. Por tratar-se da capital do império, o calçamento da cidade exigia o direto empenho da coroa. Contudo, apesar de sua formação ‘européia’, não devemos esperar de Francisco de Holanda uma crítica radical a Lisboa. Assim como a maior parte de seus contemporâneos, ele foi um apreciador das características mediterrânicas tradicionais da cidade portuguesa. Afirmava ele que existiam em Portugal “cidades boas e antigas, principalmente a minha pátria, Lisboa”.13 “Passe à África e tome-a, e triunfe dela”, aconselha Francisco de Holanda no texto entregue a D. Sebastião.14 Os homens de letras e artes, como Camões ou Holanda, apenas repetiam o que todo o reino parecia desejar. Segue D. Sebastião a Marrocos onde morre sem que Lisboa receba os desejados melhoramentos. Portugal acabaria nas mãos da casa dos Áustrias. O reinado dos Filipes foi simultaneamente um momento de europeização e de uma certa decadência provocadas pela perda da maior parte do

12

HOLANDA. Da fábrica. p.22.

13

Citado de GUSMÃO, Artur Nobre. Da fábrica que falece à Cidade de Lisboa. In: O IMAGINÁRIO DA CIDADE. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. p.148. 14

HOLANDA. Da fábrica. p.23.

7

comércio oriental e do açúcar brasileiro para os holandeses. O final do século XVI não traz inovações na escrita sobre a cidade, apenas o aumento da produção de topografias históricas e descritivas. Há também uma redução no tom ufanista, com o aumento de algumas críticas e da constatação da decadência. Lisboa não é mais a mesma, a cidade é agora a corte sem corte. Ela estava na Espanha, ou, como observam alguns, a corte mudara-se para a aldeia.15 O fenômeno urbano mais característico da virada do século XVI para o XVII era a proliferação das quintas de recreio. Todavia, a imagem do grande mercado continuava a freqüentar as descrições da cidade, mesmo com a perda do comércio oriental e a ruralização da elite. A Lisboa de Teixeira Albernaz era ainda a “praça universal de todo o orbe freqüentado de várias nações que nela se juntam que parece um mundo abreviado”.16 Tentando convencer Felipe II (III de Espanha) a transferir a capital de seu império, da pequena e burocrática Madri para uma Lisboa apresentada como febricitante centro comercial, Luís Mendes de Vasconcelos fez publicar, em 1608, um livro de diálogos sobre o sítio de Lisboa.17 Apesar do tom apologético, esta foi a mais inovadora obra seiscentista portuguesa sobre a cidade. O livro de Vasconcelos ocupa-se, às vezes indiretamente, de diversos níveis da questão urbana. A cidade política aparece definida, de passagem, num segmento de seu diálogo entre o filósofo e o soldado.

Filósofo — Diremos nós que a Cidade e a República são uma mesma coisa, ou diversas? Soldado — Melhor o direis vós. Filósofo — A mim me parece que uma mesma coisa são, e só há esta diferença: que a República não é só uma Cidade, mas todas as que seguem uma mesma opinião, e assim não têm mais diferença, que a que fazem pelas habitações. Soldado — Assim é. Filósofo — Logo, definindo a Cidade ficará definida a República? Soldado — Sem dúvida.

15

LOBO, Francisco Rodrigues. Corte na aldeia. [1617] Lisboa: Presença, 1992.

16

ALBERNAZ, Pedro Teixeira. Descrição da costa portuguesa em 1622. Citado de CASTELO-BRANCO, Fernando. Lisboa seiscentista. Lisboa: s.ed., 1969. p.34. 17

A primeira edição é VASCONCELOS, Luyz Mendez de. Do sítio de Lisboa; Diálogos. Lisboa: Officina de Luyz Estupinan, 1608. Utilizamos a edição mais recente VASCONCELOS, Luís Mendes de. Do sítio de Lisboa; diálogos. Lisboa: Livros Horizonte, 1990.

8 Filósofo — Diremos logo que a República (segundo Aristóteles e Platão definem a Cidade) é uma multidão de cidadãos e uma congregação de muitos adjutores e companheiros.18

Neste aspecto, os diálogos de Vasconcelos, apenas seguem o gosto da época, que pede uma escrita recheado de referências a autores da antigüidade greco-romana. A cidade aristotélica é um chavão da época, assim como os diálogos inspirados em Platão. O maior contributo do autor é sua participação na descoberta seiscentista do entorno urbano. Vasconcelos desenvolve, melhor que ninguém, a noção de um sítio urbano ideal. Sua obra rompe com a tendência de reduzir o sítio à uma dimensão topográfica extremamente restrita que compreende a cidade e seu entorno mais imediato. Para a maior parte dos autores da época, o sítio estava na região. Já, para Vasconcelos, o sítio é uma categoria complexa e totalizante de articulação entre a cidade, o topográfico e o climático, sem cair num determinismo geográfico. Desde a Idade Média, o sítio ideal era tido como o resultado de uma correta articulação entre o céu e a terra, no que se aproximava da idéia de paraíso. Vasconcelos não escapa desta tradição, como hoje não escapamos.. Diferente do paraíso, que é obra perfeita de Deus, o sítio localiza-se no mundo, o que lhe confere as imperfeições de tudo o que é terreno. Neste sentido, o sítio ideal é um lugar predisposto que só atinge a sua idealidade pelo engenho dos homens. A ação humana adere definitivamente ao sítio e faz parte dele. Mas, da mesma forma que pode ser melhorado, o sítio pode ser perdido por obra da falta de engenho ou pelo mau engenho dos homens. É neste aspecto que Vasconcelos escapa do panegírico e lança algumas farpas à falta de engenho dos portugueses. Todavia, na escrita de Vasconcelos a faceta apologética ocupa um lugar central, ultrapassando os limites estritos da cidade. Ao mesmo tempo em que faz o panegírico de Lisboa, o autor acaba por fazer o dos lugares de clima mediterrânico. A superioridade de seu mundo natal em relação aos exotismos, quer os do ultramar, quer os da Europa setentrional, é afirmada em diversos momentos, por exemplo, quando ele

18

VASCONCELOS. Do sítio. p.70.

9

trata do suprimento da cidade. Como vantagem em relação aos moradores de outras partes do mundo, os de Lisboa têm por alimento principal o trigo, que é reputado como ideal, e não o “arroz, como em muitas partes da Índia, nem milho zaburro, como em Guiné, nem farinha de pau, como no Brasil”. Bebem vinho que é “bebida muito substancial, e por tal estimada por todas as nações, diferente da cerveja que bebem os do Norte e o vinho de palmas do Malabar”. Outra vantagem, é o uso do azeite, que existe com abundância, e não da manteiga “corrompedora dos estômagos, como usam as nações do Norte e em parte da França e Lombardia”.19 Desta leitura amorosa da cidade e do clima mediterrânico, emerge uma Lisboa gorda e saudável, pelos muitos mantimentos que há à sua disposição e pela salubridade inerente ao clima e à topografia. Mas não é essa a Lisboa que se encontra fora dos textos apologéticos. Durante os séculos XVI e XVII, a situação sanitária da cidade era gravíssima e sobre o abastecimento o mínimo que se pode dizer é que era precário. Em comum com os de seus predecessores, o texto de Vasconcelos conjuga o discurso amoroso com uma construção de método, diríamos, científico. Do sítio de Lisboa é composto de duas dimensões: uma é panegírica, resultado de uma exacerbação publicitária e afetiva, outra é ‘cientifica’, obra de conhecedor da cidade. Vasconcelos foi um típico filho do Império Português. Lutou contra os holandeses, esteve no Brasil, no Oriente e na África, onde foi Governador e Capitão geral de Angola, entre 1617 e 1620. Tivesse governado Angola 20 anos depois, teria comandado um jovem soldado, de apenas 15 anos de idade, chamado Antônio de Oliveira Cadornega, que ali aportara, em 1639, para não mais voltar a Portugal. Velho soldado, calejado nas guerras contra os angolanos nativos e contra os holandeses, dedicou o fim da vida às letras. Na sua carreira literária tardia escreveu uma Descrição de Vila Viçosa, sua terra natal.20 Os longos anos de ausência levaram Cadornega a escrever este opúsculo a partir da bibliografia disponível, exercício de erudição, mas

19

VASCONCELOS, Do sítio. p.102.

20

CADORNEGA, António de Oliveira. Descrição de Vila Viçosa. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1982.

10

também de suas memórias pessoais de infância ou de relatos correntes dentro de sua tradição familiar, espaço do discurso amoroso. E se fizéssemos a mesma pergunta a esses dois filhos do Império? Por que escrevem à respeito de suas pátrias natais? Diria Vasconcelos que “É tão natural o amor da pátria, que quando não tiver outras razões, esta só me podia obrigar a escrever os presentes Diálogos”.21 Já Antônio de Oliveira Cadornega explica que fora movido a “tomar essa empresa pelo amor e lembrança da pátria” onde nascera.22 No século XVII, o amor à pátria continuava a ser a motivação primária subjacente à escrita das histórias e descrições topográficas. Pátria local e restrita como foi entendida em outros tempos, o que hoje corresponde à região ou, simplesmente, à cidade natal. Afora a comum participação militar na manutenção do império seiscentista, os detalhes biográficos que aparentemente aproximam Vasconcelos e Cadornega, na realidade os afastam. Vasconcelos foi agente da coroa na colônia, Cadornega acabaria integrando a elite local dos colonos portugueses em Angola, os “conquistadores”, como se autodenominavam. Cadornega, em outra de suas obras, a História das guerras angolanas, estabeleceu o padrão de escrita da história regional ou local de Angola.23 O primeiro tomo de sua história foi organizado segundo a seqüência dos que, desde o donatário Paulo Dias de Novais, governaram Angola. Como ele mesmo explicaria, uma história que vai “discorrendo pelos Governos antigos e modernos”. Tratava-se de uma história recente, na qual Vasconcelos aparecia como uma das personagens retratadas. Todavia, Cadornega não elaborou uma história dos governadores, mas uma apreciação desses governadores sob o ponto de vista da elite militar e concelhia de Massangano e Luanda, na qual ele próprio se incluía. Ao longo de seu texto, percebem-se as desavenças que opunham os homens de armas radicados em Angola, os conquistadores colonos, aos governadores e outros

21

VASCONCELOS. Do sítio. p.23.

22

CADORNEGA. Descrição. p.21.

23

CADORNEGA, António de Oliveira. História geral das guerras angolanas. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1972. 3.v.

11

funcionários de alta patente enviados de Lisboa. Cadornega não foi muito incisivo em suas críticas, pois os tempos não eram para isso. Todavia, ele encontrou lugar para criticar sutilmente os fidalgos enviados da metrópole. Um dos governadores que mais espaço ocupam em sua crônica foi justamente Luís Mendes Vasconcelos, que tinha, entre outras veleidades, a de ser entendido nas artes militares, sobre as quais escrevera um tratado.24 Por força de seus conhecimentos teóricos e da experiência adquirida nas guerras em Flandres, o governador passou a dispor as tropas portuguesas segundo as formações utilizadas nos campos de batalha europeus, o que, segundo os soldados experimentados nas guerras africanas era completamente inadequado. Ao fim, Vasconcelos teria ouvido a voz da razão, a sabedoria local, e africanizado as suas táticas militares de forma a evitar uma derrota iminente. Antes disso, Vasconcelos já tomara partido da elite guerreira de Massangano, num episódio que opunha um antigo morador ao capitão da vila, outro agente da coroa. O governador teria enviado esse capitão a Luanda, preso com os mesmos grilhões que este “havia mandado forjar para nele meter aquele nobre e autorizado Conquistador”.25 Assim, de alguma forma, Vasconcelos atendeu as gentes de Massangano, e Cadornega acabaria tomando o seu partido no processo a que foi submetido por abusos e corrupção ao término de seu governo em Angola. Mas esta era uma guerra que opunha coroa e seus emissários e não estes e os colonos. Nem todos os governadores tiveram a mesma sorte de Vasconcelos e passaram à ‘história’ estigmatizados pela elite angolana. A História geral das guerras angolanas narra as lutas entre colonos e nativos, mas, também, os conflitos entre colonos e agentes do estado central português. Para além de lugar de erudição e de um discurso afetivo, as histórias locais ou regionais são um campo de batalha. Lugar de defesa das elites locais, das quais Cadornega foi um integrante exemplar.26

24

VASCONCELOS, Luís Mendes de. Arte Militar; dividida em três partes. Alemquer: Vicente Álvares Impressor, 1612. 25

CADORNEGA, História.

26

Sobre o uso político da seqüência de Catálogos dos Governadores de Angola, iniciada com

12

No Brasil, durante o século XVII, inicia-se também a escrita destas histórias locais ou regionais, cujo fundo é político. No Maranhão, ela foi desencadeada pelos conflitos que opunham, governo central português, ordens religiosas e as câmaras municipais da região, especialmente por conta da escravização dos índios. Os colonos do Maranhão e Grão-Pará, encontraram no padre Vieira o seu principal inimigo. Ele fora preso pelos colonos e expulso para Portugal, onde, desde então, passou a fazer publicidade sistemática contra eles. Em defesa dos colonos, Manuel Guedes Aranha, integrante da elite municipal de São Luís, escreve Papel político sobre o Estado do Maranhão. Da mesma forma que Cadornega, ele inclui um catálogo de governadores em seu texto. Na seqüência, aparece a Relação histórica e política dos tumultos que sucederam na cidade de S. Luís do Maranhão, de Francisco Teixeira de Morais, apresentando uma versão muito parcial da revolta de Beckman.27 Desde então, firmou-se uma das mais insistentes e resistentes tradições de escrita sobre a cidade, que privilegia os conflitos entre o estado central português e as elites locais das colônias. Essa tradição atravessou os séculos e até muito recentemente ocupava um espaço privilegiado nos estudos sobre a cidade brasileira do período colonial. Além de assistir a continuidade da tradição desta escrita sobre a cidade política, o século XVIII caracterizou-se pela difusão de novas normas textuais. Já não era mais o tempo em que se escrevia um Tratado panegírico em louvor da vila de Barcelos como fez o frei Pedro de Poiares, em 1672.28 Acumulam-se as Histórias, Memmórias, Topographias, Descripções, Chorographias, Mappas e Diccionários geográphicos, das vilas de Portugal e das suas colônias.29 o de Cadornega, ver o excelente artigo THORNTON, John K. & MILLER, Joseph C. A crónica como fonte, história e hagiografia; o Catálogo dos Governadores de Angola. REVISTA INTERNACIONAL DE ESTUDOS AFRICANOS. Lisboa, n.12-13, jan.-dez.1990. pp.9-55. 27

Ver RODRIGUES, José Honório. História da história do Brasil. Rio de Janeiro: Cia. Editora Nacional, 1969. p.86-8. Também, RIHGB, t.57, parte.1, p.5-163. 28

POIARES, Frei Pedro de. Tractado panegyrico em louvor da Villa de Barcellos. Coimbra:

1672. 29

SERRÃO, Joaquim V. A historiografia portuguesa. Lisboa: Editorial Verbo, 1974. v.2,

13

Na construção das ciências históricas e geográficas a diversidade de normativas textuais indica uma busca de precisão. Em princípio, cada termo corresponderia a uma abordagem metodológica específica, indicando tratar-se de estudos mais descritivos ou mais analíticos, o recurso ou não ao diacrônico, etc. No mesmo grupo dessas obras científicas setecentistas estão os relatos de naturalistas, que, na sua forma mais acabada, atendiam pelo nome de “Viagens Philosóphicas”. Desde o do século XVII, difunde-se na Europa a noção de que a viagem era uma etapa fundamental à formação de um cavalheiro culto. Contudo, foi no século seguinte que se difundiu a prática de realizar viagens de instrução, especialmente à Itália. O fenômeno das viagens de instrução foi acompanhado de uma contraparte editorial. Por toda a Europa, foram impressos livros e manuais de viagem para atender à elite viajante. Alguns manuais de viagem aproximavam-se bastante dos atuais guias turísticos, trazendo indicações de roteiros e das “curiosidades” a serem observadas, além de dados gerais (históricos, geográficos, institucionais e demográficos) sobre localidades selecionadas como dignas de atenção. Outros incluíam comentários práticos e instruções sobre câmbio, estalagens ou alimentação.30 Outros, ainda, mesclavam o apelo turístico com curiosidade científica, reunindo história, geografia e ciências naturais. Todos esses gêneros literários eram muito difundidos entre os bandos de arribação de gentlemens norte-europeus que, periodicamente, migravam para o Mediterrâneo em busca de história e paisagem. Eram obras voltadas à construção de uma sensibilidade específica, que mesclava a observação direta com o livresco, e o pictórico com o científico. Tais voyageurs entravam em êxtase ao pisar o mesmo solo que Júlio César ou observar as mesmas paisagens que teriam inspirado Virgílio. As

p.159-62. Os mapas a que nos referimos não são representações cartográficas mas textos descritivos de localidades. Ver, por exemplo, CASTRO, João Baptista de. Mappa de Portugal antigo e moderno. Lisboa: Oficina Patriarcal de Luiz Ameno, 1762-3. 3v. 30

Um dos protótipos destes manuais foi MEIER, Albrecht. Certain brief, and special instructions for gentlemen, merchants, students, souldiers, marriners etc. London: 1587. Ver HODGEN, Margaret T. Early anthropology in the sixteenth and seventeenth centuries. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1971. pp.186.

14

escavações realizadas nas ruínas de Herculano, em 1737, foram um grande reforço ao apelo histórico e ao colecionismo deste tipo de viagem.31 A nobreza e a alta burguesia de Portugal não ficaram imunes a esse modismo e seus integrantes também ‘puseram o pé na estrada’. “As jornadas foram as primeiras escolas, e os que corriam terras os primeiros sábios”, dizia o clérigo Manuel Caetano de Souza.32 Em decorrência, aparecem obras voltadas ao público viajante português, como as memórias sobre o trajeto Paris-Lisboa, publicadas por Pedro Norberto de Ancourt e Padilha, em 1746.33 Até o próprio rei parece ter feito planos de empreender um périplo para fora da península. Na Biblioteca Nacional de Lisboa existe um manuscrito, do primeiro quartel do século XVIII, que traz a seguinte indicação: “Mandado fazer na ocasião que S. Majestade o Sr, Rei D. João, o Quinto, esteve por ir incógnito ver as cortes Estrangeiras”.34 O manuscrito, de autoria do acima mencionado clérigo teatino D. Manuel Caetano de Souza, tem o sugestivo título de O Peregrino Instruído e se propõe a instruir “aqueles que por meio das viagens querem conhecer utilmente o mundo”. Todavia, O Peregrino deixaria desiludido viajantes em busca de excitações. É, antes, um pequeno manual metodológico, caraterística que vem chamando a atenção de pesquisadores portugueses e brasileiros interessados nas temáticas da cidade e das comunidades locais. O documento é composto de uma longa lista de 205 indagações, para as quais o “peregrino” deve encontrar respostas objetivas, configurando um projeto de estudo sistemático de cidades. É este caráter que o aproxima de um manual científico. Se nos apropriássemos de duas categorias correntes entre historiadores das

31

CORBIN, Alain. O território do vazio; a praia e o imaginário ocidental. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p.54. 32

SERRÃO. A historiografia portuguesa. v.3, p.156.

33

PADILHA, Pedro Norberto de Ancourt. Memórias históricas, geográficas e políticas observadas de Paris a Lisboa. Lisboa: 1746. SERRÃO. A historiografia portuguesa. v.3. p.154-9. 34

BNL. Códice 674.

15

idéias, diríamos que alguns dos textos abordados anteriormente, como o de Brandão de Buarcos e o de Mendes de Vasconcelos, são característicos do ‘espirito de sistema’, peculiar aos séculos XVI e XVII. Já O Peregrino Instruído representa o ‘espírito sistemático’ próprio do iluminismo do século XVIII. Seguindo tal ordem de interpretação, o fato de seu autor pertencer à ordem dos Clérigos Regulares Teatinos não é um detalhe de pequena importância. Em Portugal, os teatinos tiveram um papel fundamental na difusão dos modernos, opondo-se à escolástica tomística, defendida pelos jesuítas. Da confluência entre os teatinos e os condes de Ericeira, foram realizadas, nos últimos anos do século XVII, as Conferências discretas e eruditas, um dos marcos inaugurais da ilustração em Portugal. O tema principal deste salão ilustrado, que reunia portugueses e convidados estrangeiros, era a literatura. Todavia, a filosofia e as ciência naturais também foram contempladas. Deste núcleo de estudos saíram muitos dos fundadores e integrantes de diversas academias portuguesas do início do século XVIII. D. Manuel Caetano de Souza, por exemplo, foi o principal responsável pela fundação da Academia Real de História Portuguesa, em 1720. Para uma abordagem epistemológica do Peregrino Instruído, vamos desdobrá-lo em dois níveis: o primeiro diz respeito a o que saber, e o segundo a como saber. Metodologia e definição (ou construção) do objeto, como diríamos atualmente. Quanto à definição do objeto é preciso fazer, inicialmente, uma observação de cunho geral. Explicitamente, o texto se propõe a auxiliar os viajantes no conhecimento do mundo. Todavia, ele é monotemático. Ocupa-se tão somente da cidade, definindo-a desde uma oposição entre Estado Natural e Estado Moral.

Conhecerão o estado natural tomando notícia da qualidade do clima, do terreno, dos campos, dos montes, dos rios, das fontes, dos frutos, dos gados, dos minerais, das aves e dos peixes. Conhecerão o estado moral de cada lugar tomando notícia do número de fogos, dos habitadores dos edifícios públicos, e particulares, do estado eclesiástico, político, militar e econômico.

16

A oposição entre Estado Natural e Estado Moral aproxima-se, mas não coincide, da dicotomia natureza x cultura. O Estado Moral, da forma como é definido pelo autor - “tudo que depende da indústria humana” -, aproxima-se muito do que, atualmente, costumamos denominar por cultura. Já a diferença entre a atual noção de natureza e o que Manuel Caetano de Souza designa por Estado Natural é bastante significativa. Esta última categoria inclui as atividades agrícolas e extrativas, em suma, o mundo rural, em oposição ao que é citadino. Apesar de levar em conta aspectos como clima, topografia e hidrografia, a proposta só toma o campo, o rural, como objeto de conhecimento em sua articulação com a cidade. A própria forma como o questionário é elaborado não deixa dúvidas quanto ao caráter dependente do ‘Natural’.

QUANTO AO ESTADO NATURAL Na cidade... Que clima tem? que campos a cercam? que montes tem vizinhos? de que frutos é abundante?

Não se trata, portanto, da dicotomia cultura X natureza mas de ambiente urbano X ambiente não-urbano, em que o segundo termo está completamente submetido ao primeiro. Daquilo que costumamos qualificar por natureza restaram simples traços residuais. O ‘Natural’, em que se inscreve o agrícola, é retido apenas na sua função abastecedora da cidade. Portanto, há de fato a redução do mundo à cidade (conhecimento do mundo = conhecimento da cidade). Tal modo de percepção não representa, exatamente, uma novidade. Desde o século XVI, observa-se pouca propensão entre os portugueses para estudar ou descrever autonomamente o que chamamos de natureza. A paisagem agrícola envolvente, por vezes, merece alguns comentários mas o foco das atenções é quase sempre o locus urbano. Essa mesma percepção urbanista, que reduz o mundo à cidade, caracteriza os

17

relatos de viagens de muitos funcionários portugueses do século XVIII. Para alguns, até a selva amazônica ficaria reduzida a uma simples sucessão de aldeias.

Acha-se a referida aldeia [de Gurupatuba] situada sobre montanhas em uma planície cercada pelas partes do norte e oeste de arvoredo, e as que olham para o sul e leste são sumamente aprazíveis, porque como domina todas as campinas por onde desafoga o Amazonas a formar os lagos mencionados, se oferece à vista um delicioso aparato de recreação, que consiste em quantidade de lagos guarnecidos de viçosos arvoredos rematando-se pelo horizonte pela parte de leste em serras mui elevadas em distâncias que fazem agradável perspectiva, pela do sul em uma povoação do Amazonas que vai circulando ao longe toda a dilatada campina, que parece cingida com artificio daquela cristalina guarnição, que a natureza sem estudo lançou para realce vistoso de todo aquele alegríssimo país.35

Este autor era dotado de uma acurada sensibilidade paisagística. Todavia, ela não se manifestava em relação à selva. Era preciso uma espécie de estopim para que ela viesse a tona. Esse estopim, necessariamente, era um assentamento humano: uma cidade, uma fortificação ou uma aldeia. Quanto à sua proposta metodológica, O peregrino instruído costuma surpreender os leitores contemporâneos. O antropólogo e historiador brasileiro Luiz Mott viu nele um “formulário etnográfico do século XVIII”.36 Para o português Pedro Canavarro, o manuscrito apresenta uma “autêntica proposta de metodologia” para o estudo das cidades.37 O que chama a atenção é o fato de Caetano de Souza ter procurado conjugar a recolha de dados primários entre informantes leigos com observação direta, consulta aos doutos do lugar e pesquisa documental e bibliográfica. Souza delimita, à partida, o tipo de “notícias” que se deve colher entre informantes leigos. São as informações que “menos confusamente” se pode encontrar “pelo caminho e nas estalagens”, as quais se restringem a uma listagem das edificações existentes em cada

35

FONSECA, José Gonçalves da. Navegação feita da cidade do Gram Pará até á bocca do rio Madeira. Lisboa: Academia das Sciencias: 1826. p.11. 36

MOTT, Luiz. O Peregrino instruído; a propósito de um formulário etnográfico do século XVIII. BOLETIM CULTURAL DA JUNTA DISTRITAL DE LISBOA, n.75-8, 1971-2. p.81. 37

CANAVARRO, Pedro. O “Peregrino Instruído”: abordagem urbanística. In: SANTARÉM; a cidade e os homens. Santarém: Junta Distrital, 1977.

18

lugar e ao número de habitantes leigos e religiosos. Com essas entrevistas, obtêm-se um quadro preliminar da cidade a ser estudada. A seguir, “se devem ver estes lugares um por um, observando a grandeza e ornato de cada um deles”. Por fim, o pesquisador deveria procurar os doutos do lugar e a bibliografia existente para completar o seu estudo.

Estado Natural Estado Moral

Informações obtidas entre leigos.

Habitantes

Pesquisa

Edificações

preliminar

Confirmação por observação direta

Estado Político Estado Eclesiástico Pesquisa

Consulta aos doutos.

Estado Militar

Informação bibliográfica e documental

Estado Econômico

No questionário de Souza, a parte mais minuciosamente desenvolvida é a que diz respeito ao estado eclesiástico. Isto deve ser atribuído às suas preocupações intelectuais imediatas, pois planejava a escrita de uma grande história eclesiástica de Portugal. Não devemos concluir com isso que há uma ênfase no sagrado. A sua abordagem do religioso é bastante laica, limitando-se ao levantamento dos templos, equipamentos, ritos e funcionamento das instituições religiosas.38

38

Uma das principais obras científicas portuguesas do século XVIII é Viagem Filosófica, escrita pelo naturalista brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira. Este texto, escapa completamente ao que se esperaria de um naturalista, pela ausência do o que hoje identificaríamos como o mundo natural. Lacuna perfeitamente compensada pelo restante da documentação produzida em sua expedição. Mas se observarmos especificamente o Diário da Viagem Filosófica perceberemos que o autor, surpreendentemente, conseguiu transformar a sua viagem amazônica num périplo entre cidades. Não podemos afirmar que Alexandre Ferreira tivesse em mãos o questionário de D. Manuel Caetano de Souza. Todavia, o que se percebe é que a redação de seu Diário está informada, naquilo que ele tem de constante, que é a descrição de vilas e aldeias, por uma metodologia de observação que coincide com a proposta pelo clérigo teatino. Começa a descrição pelo meio físico onde se encontra a vila, a composição do solo e a topografia. A seguir, ele nos dá as ruas, as habitações e as edificações notáveis, que, no caso destas vilas, quase sempre se resumem à igreja. Passa então a fazer a descrição desta igreja e de seu conteúdo, nos mínimos detalhes. Este modo de proceder reforça a suspeita de que o naturalista tinha

19

No que se refere ao Estado Político, dever-se-ia investigar quem era o senhor do local e como se organizavam as instituições político-administrativas e judiciárias. O Estado Militar, por sua vez, compreendia as edificações defensivas, os efetivos e os armamentos. Maior dificuldade é entender sua noção de Estado Econômico. Ela não incluía, como já vimos, a economia agrícola, que pertencia ao Estado Natural. O Econômico proposto por Caetano de Souza comporta uma miscelânea de aspectos da vida urbana em que se incluem saneamento, a produção artesanal, a existência de grupos sociais e seu relacionamento e, até, algumas questões tributárias. No início do século XVIII, a nossa contemporânea ciência econômica mal engatinhava. Portanto, é preciso abandonar qualquer pretensão a estabelecer vínculos entre ela e a noção de estado econômico utilizada por Souza, pois ele busca apreender o agenciamento da vida urbana, através do conceito greco-latino de oeconomia: a arte de administrar a casa. Há, porém, um descompasso entre a abordagem que o autor faz deste econômico e aquela utilizada nos três estados precedentes. Ele enfrenta o político, o eclesiástico e o militar de maneira sistemática e, de repente, ao chegar ao econômico, o objeto que ele estava desenhando metodicamente mostra-se excessivo ao seu ensaio de método e desfaz-se num emaranhado de indagações. Numa aproximação sucessiva, Souza debruça-se sobre a paisagem agrícola e climática na qual se insere a cidade; depois, sobre os diversos edifícios que a compõem; a seguir, sobre suas diversas instituições; para, então, perceber que tudo isto ainda está longe de dar conta da cidade. Em decorrência, dispara uma saraivada de perguntas desconexas.

QUANTO AO ESTADO ECONÔMICO que cuidado tem dos edifícios públicos, como são fontes, pontes, ruas, etc. como se cuida da limpeza das ruas? como se coitam as injúrias do tempo, assim de calor como de frio?

conhecimento do questionário de Souza. Este detalhismo no Estado Eclesiástico, é compreensível em quem se propunha a escrever uma história eclesiástica, todavia fica algo deslocado nas descrições de um naturalista. Ver, por exemplo, FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Diário da viagem philosófica pela Capitania de São José do Rio Negro. 1758. RIHGB. XLIX, 1866.p.130.

20 como se acautelam contra as inundações dos rios? como se acautelam contra o contágio? qual é o preço corrente de cada um dos gêneros? como se conservam os frutos, assim para o sustento como para o regalo? como se fazem e se guardam os licores, a saber, o vinho, azeite, aguardente, etc. que máquinas há para moer e cozer o pão? que sortes há de doces? de que maneira são os fornos e chaminés? que obras se fazem com mais perfeição nesta cidade? quais são os melhores artífices em cada uma das artes? com que máquinas cortam as pedras e as madeiras? quantas sortes há de oficiais mecânicos, e se há alguns insignes? como é a terra provida de médicos, químicos, cirurgiões, herbolários, simplistas e boticários? que contratos se usam no lugar, e de que gêneros? quais são os mercadores mais ricos? se a nobreza é rica ou pobre? se há muita ou pouca nobreza? que exercícios tem a nobreza e que desenfados? quais são as famílias mais conspícuas e que alianças têm entre si? se há na terra algumas dissensões entre famílias? se há livros que tratam dessas famílias ilustres, e quem são seus autores? se na terra há homens insignes em letras, a saber em teologia, cânones, leis, medicina, filosofia, matemática, história, letras humanas. etc., e como se chamam, e se têm impresso ou composto alguns livros, e quais são? se as pessoas nobres e ricas têm muitos criados ou poucos? de que carruagens usam? se têm bons Palácios, bem alojados, e boas casas de campo, e quais são as melhores em cada terra? como se cria a mocidade de todas as esferas? como se dá as Artes Liberais? se há na terra bons Mestres de esgrima e se há bons picadores? que rendas tem o público? que tributos se pagam ao príncipe? que alfândegas há? que penas têm os que juntam fazenda aos direitos e introduzem as do contrabando?

‘Problème de trop, pas de histoire', talvez dissesse o historiador francês Lucien Febvre. Estamos de volta ao ponto de partida. Para nós, que produzimos uma história acadêmica, a construção do problema investigativo, o tema, diríamos, é essência da profissão e a dificuldade real. A cidade, como aprendemos com Brandão de Buarcos é o lugar do muito. Se atendêssemos ao que Caetano de Souza propõe, teríamos como resultado uma escritamiscelânea sobre a cidade. Um resultado que, talvez, estivesse mais próximo deste objeto multifacetado, mas que não satisfaria as exigências acadêmicas. Para atendê-las, é necessário estabelecer cortes, propor uma ordem. Todavia, as minhas dificuldades foram as mesmas enfrentadas por Caetano de Souza, pois eu não buscava a cidade das

21

instituições políticas, religiosas e militares, mas uma cidade oeconomica. Claro é, que não me refiro à nossa moderna ciência econômica, mas à noção grega da arte de administrar a casa. Trata-se, portanto, de fazer uma história dos princípios administrativos que regem a produção e a manutenção da cidade (não uma história administrativa da cidade). No caso específico da cidade de origem portuguesa, este administrativo responde pelo nome de almotaçaria, uma instituição herdada dos árabes, que me sugeriu um princípio de ordem diante do caos temático da cidade. É esta instituição que me permite entender e integrar questões dispersas - “como são fontes, pontes, ruas, etc.? como se cuida da limpeza das ruas? como se acautelam contra o contágio? que exercícios tem a nobreza e que desenfados?” - que, de outro modo, pareceriam desconexas. Foi à partir do instituto da almotaçaria que delimitei as duas agendas do viver urbano que são o principal objeto do presente estudo: a da forma e a do sanitário. No esquema proposto por Caetano de Souza, abandonei os Estados Eclesiásticos e Militar. Todavia, não era possível deixar as instituições políticas totalmente de lado, pois, como disse o filósofo dos diálogos de Luís Mendes de Vasconcelos, existe uma coincidência entre a Cidade e a República. Assim, dediquei uma parte do presente trabalho a apresentar a formação das Repúblicas, ou seja das instituições municipais de Portugal e de suas colônias, elas próprias detentoras do poder de almotaçaria. Esse direito de administrar, no entanto, não era exercido pacificamente. O município e o rei, através de seus agentes locais, travaram uma batalha secular em torno da autonomia política e administrativa da cidade. No caso das cidades situadas nas colônias, a distância do reino só fez acirrar estes conflitos, o tema da história política da cidade exercitado por Cadornega e outros.

DA PÓLIS E DA URBE

É da mais urgente necessidade que cada cidade estabeleça seu programa, promulgando leis que permitam sua realização. Le Corbusier - A carta de Atenas

23

A INSTITUIÇÃO POLÍTICA DA CIDADE PORTUGUESA

O conhecimento das instituições urbanas do período formativo do reino português é bastante precário e tende a ser especulativo e a permanecer nesse estágio, pois as fontes escritas disponíveis guardam muitas lacunas. Vivia-se ainda um período em que o direito consuetudinário, mais das vezes não escrito, era vigoroso. Os forais, a principal fonte para o conhecimento dessas instituições, consignam os pactos tributários e de direitos entre as comunidades medievais e os reis ou entre aquelas e os senhorios laicos e religiosos. Dentre os direitos pactuados, é comum constar o reconhecimento, por parte do outorgante, da organização interna da comunidade, mencionando as formas de administrar justiça e as diversas magistraturas. A passagem do direito consuetudinário para o registro foralengo é feita de maneira fragmentária, que apenas sugere algumas das formas da organização local, silenciando sobre outras. A falta de referência escrita a alguns aspectos da antiga organização das comunidades locais não nos permite raciocínios conclusivos. Por exemplo, a inexistência de menção expressa no foral a uma dada magistratura não é garantia de que ela não estivesse em vigência, pois, naquilo que era costume arraigado, a tradição oral era ainda garantia suficiente de direito. A escrita desses direitos tende a ocupar-se mais com o que era fundamental para a comunidade, ou com as áreas de conflito e mudança, do que daquilo que era estável e consensual. Outro problema que aflige o estudioso dos forais é a total continuidade que

24

há entre suas diversas modalidades, desde as que consignam um simples ato de aforamento coletivo de terras às mais complexas, que estatuem municípios de grandes termos, os quais englobam e hierarquizam diversas comunidades. Por esse motivo, as tentativas de classificação dos forais, e de discernir quais cobrem uma situação urbana ou rural, revestem-se de um alto grau de arbitrariedade. Isso é verdadeiro tanto para a classificação empreendida por Alexandre Herculano, no século XIX, quanto para a de Torquato de Souza Soares, em nossa centúria.1 Estes estudos classificatórios procuram traçar uma trajetória que vai das simples cartas de povoamento, passando pelos forais dados a pequenas comunidades agrárias e burgos do norte de Portugal, até aos concedidos a vastos territórios do sul recentemente conquistado. Trajetória que os autores caracterizam como indo do simples ao complexo, do “imperfeito” ao “perfeito”, do rural ao urbano.

DO IMPERFEITO AO PERFEITO, DO RURAL AO URBANO

O documento que costuma ser tomado como limite entre tais extremos é o famoso foral de Coimbra, de 1111, imposto ao conde D. Henrique após uma revolta dos moradores. Apesar de uma marcante presença moçárabe, Coimbra estava, há algumas décadas, incluída no reino asturo-leonês, e nas diversas disputas que ali tinham lugar. A meu ver, o que caracteriza esse tipo de foral, posteriormente dado a diversas outras comunidades da região, é o peso da tradição cristã do norte - feudal, se quisermos -, a qual privilegia o direito de exercer autonomamente a justiça e a escolha dos cobradores de imposições tributárias, os mordomos, ou, pelo menos a condição de que tais oficiais fossem escolhidos dentre os vizinhos. Se são os privilégios de auto-justiça e de ter alguma interferência na escolha dos cobradores de impostos que caracterizam os forais

1

HERCULANO, Alexandre. História de Portugal desde o começo da monarquia até o fim do reinado de Afonso III. 8.ed. Lisboa: Bertrand, s.d. 8.v. SOARES, Torquato Brochado de Souza. Apontamentos para o estudo das origens das instituições municipais portuguesas. Lisboa: s.ed., 1931

25

e cartas de povoamento utilizados no norte de Portugal é porque são estas as formas de autonomia mais preciosas para uma população que procurava escapar do arbítrio das odiosas justiças senhoriais e dos mordomos dos reis e senhores. Todavia, as liberdades alcançadas ou mantidas por este tipo de foral não caracterizam uma situação urbana ou rural. No norte de Portugal, propugnam por este tipo de autonomia, tanto os integrantes de comunidades agrícolas como os moradores dos burgos medievais. É o caso do Porto, por exemplo, cujos primeiros forais, desde Herculano, são considerados rudimentares. A ocorrência deste fenômeno levou os historiadores portugueses a certos artifícios na classificação das cartas de foros, separando aquelas que se referem aos burgos das que são consideradas como forais urbanos. Para os medievalistas da Europa além-Pirineus, haveria nisso uma espécie de contradição, pois existe a certeza de que a história da cidade medieval é a história do burgo. O historiador belga Henri Pirenne propôs, nos anos 30, que o desenvolvimento da estrutura administrativa urbana foi resultado da progressiva autonomização dos burgos, que se inicia com a obtenção do direito de eleger justiças.2 Se, em outros aspectos, a obra de Pirenne sofreu uma série de revisões e contestações, neste ele inaugurou uma área de consenso mais duradoura. Porém, se não foi o que ocorreu em Portugal, é preciso verificar o porquê, e para isso é preciso retornar às diversas hipóteses de formação das estruturas jurídicoadministrativas locais portuguesas. Alexandre de Lucena e Vale afirma “que a tese romanista de Savigni e Herculano está hoje abandonada e que as tentativas duma ascendência visigótica ou moçárabe não conseguiram lograr unânime aceitação”.3 Refere-se ele às proposições do historiador espanhol Eduardo Hinojosa, que colocam a população moçárabe na situação de herdeiros e continuadores de antigas tradições visigóticas. Teoria que teve em Souza Soares o seu mais profícuo seguidor português,

2

PIRRENE, Henri. História econômica e social da Idade Média. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1963. p.56-62. 3

VALE, Alexandre de Lucena e. Génese e evolução do município português. REVISTA MUNICIPAL. Câmara Municipal de Lisboa, n.136-7, 1963. p.83.

26

mas que também encontrou detratores, como Luiz da Cunha Gonçalves.4 Todavia, mesmo Lucena e Vale deixou de desenvolver a hipótese de uma influência arábica mais profunda na formação das magistraturas municipais ibéricas. A qual pode ter sido mais relevante do que se costuma acreditar. Sabe-se pouco sobre a organização político-administrativa das cidades islâmicas da Península Ibérica, nos períodos que precedem à conquista cristã. Apenas como modelo genérico, pode-se dizer que havia uma concentração de poderes nas mãos do representante local do rei. O qâdî, era, simultaneamente, o comandante militar e o responsável pela administração e pela aplicação da justiça. Para o agenciamento da vida urbana, o qâdî nomeava um muhtasib. O titular deste cargo, típico das cidades muçulmanas, era responsável pelo controle das relações de mercado, pelo construtivo e pela limpeza. Ou seja, tratava-se de uma função administrativa caracteristicamente citadina. Mais adiante nos deteremos na atuação deste oficial, que nos interessa especialmente. Quanto à função judiciária do qâdî, é preciso esclarecer que no islamismo prevaleceu uma tradição de direito revelado pelas escrituras sagradas. A justiça, portanto, era partilhada entre o qâdî e os letrados-religiosos. É provável que esses auxiliares fossem conhecidos por vizires. Em árabe, al vazir é, literalmente, aquele que ajuda a carregar um peso. O termo era usado, um tanto inespecificamente, para designar auxiliares, desde os poderosos vizires dos califas a outros funcionários subalternos. No entanto, trata-se de um raciocínio especulativo para tentar entender porque os juízes cristãos passaram a ser designados por vizires. Nas localidades situadas às margens do Mondego e em direção ao sul, são por demais numerosos e evidentes os pontos de contato entre a administração imperial das cidades muçulmanas e a adotada pelos cristãos. Os qâdîs, então denominados alcaides, continuam com suas antigas atribuições. O juízes, como vimos, usam o título

4

SOARES, Apontamentos. GONÇALVES, Luiz da Cunha. Breves considerações sobre uma nova teoria espanhola de origem dos concelhos medievais. MEMÓRIAS DA ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA. Classe Letras, tomo 5, 1948.

27

de alvazil ou alvazir.5 As aproximações não param aí. No nome e na função desempenhada, o muhtasib continua como almotacé ou almotacel. É provável que isso tenha ocorrido devido ao incipiente desenvolvimento urbano da região de onde provinham os novos senhores cristãos. Em decorrência, também não deviam existir magistraturas ou uma estrutura de oficiais suficientemente desenvolvidas a ponto de se impor nos núcleos urbanos tomados aos muçulmanos. Entretanto, esta continuidade simples e plausível, só foi aceita com muitas reservas. Desde Herculano, acreditou-se que esta nomenclatura árabe encobria instituições cujas origens eram romanas ou góticas. Comprara-se, afinal, a idéia de re-conquista, justificativa ideológica utilizada pelos asturo-leoneses para a conquista dos territórios islâmicos do sul da península. Assim, a continuidade dos nomes das magistraturas árabes nos novos reinos cristãos não passaria disso: uma continuidade de nomes. Uma questão mais ligada à etimologia do que à história. Já em relação às instituições, os historiadores portugueses e espanhóis centravam suas preocupações em lançar pontes entre a sociedade fundada na reconquista e o mundo tardo-romano e gótico. Mesmo aqueles que aceitavam que a presença e a influência dos moçárabes era grande, supunham-nos continuadores das instituições visigodas e não das árabes. Com base na idéia de reconquista, deixou-se em segundo plano a hipótese mais imediata e plausível de que os portugueses teriam ido além de uma simples apropriação terminológica dos cargos urbanos muçulmanos, apropriando-se, de fato, da própria estrutura jurídico-administrativa dos derrotados. Só em períodos mais recentes, passou-se a dar maior ênfase a essa possível continuidade. Atualmente, a historiografia portuguesa aceita isto tacitamente. Todavia, ficou para trás o período das grandes sínteses e as mudanças de enfoque aparecem em estudos pontuais e locais. Uma revisão geral da história das instituições medievais portuguesas ainda está por ser feita.

5

O título de vizir foi usado como alternativa ao de conde pelo moçárabe Sesnando quando governou a região de Coimbra em nome de Fernando Magno. Nesse caso, vizir corresponde a uma alta magistratura o que não é o caso dos juízes concelhios. No foral de 1111, utilizou-se o termo latino judex para o juiz do concelho. Posteriormente, difunde-se o étimo alvazil. Por força da difusão do direito justinianeu, voltou-se a utilizar judex ou juiz, o qual, no século XIV, suplantou o uso do vocábulo árabe.

28

Note-se, o que ocorreu não foram apropriações simples e localizadas de certas magistraturas ou cargos públicos. Quando falamos em apropriação pensamos no termo em sua acepção mais ampla, ou seja, a de tomar algo de outrem e tratar como se seu fosse. As estruturas jurídico-administrativas imperiais muçulmanas adotadas pelos cristãos foram submetidas ao mesmo processo de autonomização que o medievo europeu operara sobre as suas próprias instituições imperiais. As parcelas daquilo que no mundo islâmico tendia a um todo, o estado imperial-religioso, foram autonomizadas para formar uma outra totalidade, a qual, porém, era muito mais flexível e mutável porque presidida por uma visão tendencialmente laica. A maneira como as instituições árabes foram inseridas no nascente reino português da península me parece o resultado de uma leitura possível feita pelos invasores cristãos, oriundos de um espaço onde a tradição imperial do ocidente havia desaparecido. Com a dissolução dos governos centralizados na Europa ocidental, a titularidade do direito de jurisdição, no qual o território é entendido como conformação espacial, passa a recair em alguém, seja um indivíduo, o nobre, seja numa pessoa coletiva, o concelho. Em qualquer dos casos, exercida em nome do rei.6 É o que ocorria no norte de Portugal, e paulatinamente seria implantado ao sul. Estamos diante de fórmulas características do medievo europeu em geral.7 O fato de que a titularidade coletiva da jurisdição tenha sido utilizada como meio de escapar ao arbítrio senhorial, inclusive do rei, o senhor de todos os senhores, coloca Portugal em sincronia com o conjunto da Europa, onde este mesmo instrumento caracteriza a dissolução dos vínculos feudais e o fortalecimento dos burgos. As diferenças começam justamente aqui. Enquanto na França e Europa do

6

É quase padrão que um foral traga consignado no termo de abertura, mesmo que isso não seja inteiramente verdadeiro, que o rei o deu por livre vontade e sem coação alguma. Através deste expediente a coroa tenta afirmar que as cláusulas de privilégio estabelecidas nos forais eram atos graciosos da vontade real, e portanto flexíveis, e não um pacto entre duas partes. Do ponto de vista dos concelhos não foi essa a interpretação dominante, mas a de que se tratavam de privilégios pactuados e que, portanto, não podiam ser quebrados pelos reis. 7

Ver o caso francês em GUÉNÉE, Bernard. Espace et état dans la France du Bas Moyen Âge. ANALLES. 23, 2, 1968.

29

Norte a obtenção dos direitos de jurisdição, quase sempre limitados à extensão da muralha do burgo, está na origem das instituições jurídico-administrativas locais, na Península Ibérica tal reinvenção é desnecessária, pois existe um modelo pronto, representado pelas instituições urbanas islâmicas. A própria composição das elites urbanas é notavelmente distinta do padrão além-Pirineus. A existência da cavalaria-vilã, essa instituição tão caracteristicamente ibérica e que tanta atenção recebeu dos historiadores, não é estranha ao mundo árabe. A manutenção de cavalos era uma exigência e condição para pertencer à elite guerreira islâmica. Ao que tudo indica, mesmo no caso dos cristãos moçárabes, suas elites não estavam isentas do serviço militar da cavalaria. Nas cidades ocupadas pelos cristãos, o poder local acabaria partilhado entre cavalaria-vilã e os estratos mais baixos da nobreza proveniente do norte cristão. Para o medievalista José Mattoso, existe uma diferença de fundo entre ambas.

A segunda consegue fazer no nascimento a justificação de seus poderes, e estes são fundamentalmente de natureza extra-econômica, mas exercidos individualmente, como direitos pessoais, transmissíveis aos descendentes. A cavalaria vilã, pelo contrário não exerce poderes pessoais, mas por intermédio da apropriação coletiva das magistraturas e do poder econômico a nível local, nas comunidades que domina e apenas nela. Individualmente nenhum cavaleiro vilão enquanto tal têm qualquer direito a exercer poderes senhoriais, nem dentro nem fora do concelho.8

O primeiro foral coimbrão é bastante elucidativo das disputas que ocorriam entre os dois grupos. Os infanções, ou seja, os nobres de sangue, estavam proibidos de morar ou ter propriedades no termo de Coimbra.9 Só podiam ali se radicar se abrissem mão de seus privilégios de nascimento e se submetessem ao estatuto de cavaleiro-vilão, como os demais integrantes da elite concelhia. Em sentido oposto, a cavalaria-vilã procurou excluir das magistraturas urbanas o grupo mais baixo das camadas guerreiras

8

MATTOSO, José. Feudalismo e concelhos; a propósito de uma nova interpretação. ESTUDOS MEDIEVAIS. Porto, n.7, 1986. p.205. 9

Há uma certa discordância na historiografia portuguesa quanto à amplitude da categoria de infanção: estratos mais baixos da cavalaria ou os netos dos reis, ou seja, a nobreza pertencente à casa reinante.

30

municipais: os peões. Essa exemplificação, que fomos buscar aos forais de Coimbra, de 1111, e outros afins, não deve ser tomada como regra absoluta. Tais organizações expressam um equilíbrio momentâneo de forças que, no caso, foi muito favorável à cavalaria-vilã, da qual o conde era dependente para manter suas fronteiras. O foral seguinte de Coimbra, 1179, nos mostra uma situação muito diferente. Peões e cavaleiros são equiparados e não há exclusão da nobreza de sangue. As diferenças entre os forais dados a Coimbra, em 1111 e em 1179, também exemplificam mudanças importantes em relação às magistraturas urbanas.10 O primeiro, como já dissemos, tem arraigadas características nortenhas. Ele reflete as preocupações das elites do medievo europeu, com a obtenção do privilégio de ser julgado por seus pares e não pelas justiças senhoriais. Não é, portanto, de se estranhar, como percebeu o professor Marcelo Caetano, que este foral contivesse no cerne das franquias locais a nomeação de juízes, enquanto que no de 1179, dado a Lisboa e Santarém, e também a Coimbra, não houvesse referências a justiças próprias e que o concelho fosse mencionado apenas uma vez, com uma atribuição muito específica.11

Da almotaçaria. A almotaçaria pertencerá ao concelho. O concelho da vila e o alcaide elegerão o almotacé.12

Em Lisboa, disputas posteriores entre o concelho e os agentes do rei mostram o quanto era fundamental para os moradores o controle da almotaçaria. Em 1204 e em 1210, D. Sancho I confirmou que o poder de almotaçaria pertencia à cidade.13

10

Ver comparações mais completas entre os dois forais em CAETANO, Marcelo. A administração municipal de Lisboa durante a primeira dinastia. Lisboa: Livros Horizonte, 1991. p.9-27. e COELHO, Maria Helena da Cruz. A propósito do foral de Coimbra de 1179. in _____. Homens, espaços e poderes. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. v.1, p.105-20. 11

CAETANO, A administração. p.17.

12

Foral de Lisboa de 1179, dado por D. Afonso Henriques. Versão traduzida citada de CAETANO, A administração, p.96. 13

CAETANO, A administração. p.104 e 108.

31

Entretanto, os primeiros reis portugueses não abriram mão de interferir na escolha do almotacé, pois ela era compartilhada entre o seu alcaide e o concelho. O arabismo deste foral é evidente. Para quem provinha de um estado imperial, era perfeitamente aceitável que as instituições jurídicas ficassem fora da esfera local. Mesmo porque, uma autonomia das instituições judiciárias não faria muito sentido para quem está habituado a uma tradição de direito revelado. A autonomia que realmente interessava era a administrativa, ou seja, este poder de interferência na almotaçaria, alcançado pelos beneficiários do foral de 1179.14 As elites urbanas da cidade islâmica integravam um conselho, o suhûd, cuja função era apenas consultiva. Já o novo grupo dirigente cristão, moçárabe ou nortista, passou a ter poderes deliberativos e executivos. Apesar das diferenças iniciais existentes entre os dois forais, em ambos os casos, as cidades obtiveram posteriormente privilégios que lhes davam o direito de eleger outros magistrados. O foral de Coimbra, de 1111, não fazia menção a um almotacé. No entanto, documentação posterior, datada de 1145, mostra que um desses magistrados estava em exercício na cidade. Já, as localidades que receberam o foral de 1179, aparentemente, não elegiam juízes próprios. Logo depois, no entanto, o concelho de Lisboa passa a ter o direito de eleger dois alvazis.15 É preciso que fique claro que os territórios dos concelhos, ao contrário do que se possa imaginar, não conformavam divisões administrativas de um reino concebido como totalidade, nem os concelhos eram agências administrativas locais de um poder centralizado. Com maior ou menor grau de imunidade, os territórios, ou termos, dos concelhos eram terras coutadas, onde cessava o poder de alguns oficiais do rei. Como nos chama a atenção António Manuel Hespanha, “os concelhos constituíam, assim, autênticos senhorios coletivos com atribuições de poderes públicos equivalentes aos dos

14

Isto apenas por suposição, com base em modelos genéricos. Sabe-se muito pouco da real situação das cidades islâmicas nos períodos que precedem a conquista cristã. Alguns historiadores perceberam que com a falência dos estados imperiais vivia-se já uma época de “feudalização” por influência cristã, mesmo antes da reconquista. 15

CAETANO, A administração. p.16-7.

32

nobres”.16 Da convergência entre o concelho cristão e as magistraturas urbanas islâmicas, nasce o município português: ente coletivo sediado em um núcleo populacional - a vila ou a cidade -, dotado de jurisdição e território - um senhorio, portanto - e detentor dos direitos de auto-exercer as justiças em primeira instância e do ordenamento urbano - a almotaçaria. Essa situação de autonomia é contrastada por sua submissão a uma autoridade maior, do ponto de vista militar - pela presença do alcaide , e por uma limitada competência fiscal. Como deve pôr cinco ou seis homens bons por vereadores No período que nos interessa mais de perto, o antigo concelho deu lugar às câmaras municipais, organismo político-administrativo que se consolidou ao longo do século XIV, e que, à partir do século XV, se difunde por praticamente todo o território português, inclusive nos domínios do ultramar. A figura chave das câmaras era a nova magistratura de vereador. Na historiografia portuguesa, e também na brasileira, a confluência entre os que difundiam o mito de uma ampla democracia dos concelhos com aqueles que se envolveram na busca iluminista do estado racional, fez, por motivos opostos, que as câmaras municipais fossem vistas como uma deturpação. Os primeiros, porque as encararam como organizações excludentes, que cristalizavam o poder local nas mãos de uns poucos, os outros, porque as consideravam excessivamente particularistas, empecilho ao desenvolvimento de um espaço nacional unificado do ponto de vista econômico e das instituições políticas e judiciárias. Em suma, essas câmaras do Ancien Régime eram as sedes das detestadas oligarquias locais cujos expoentes máximos eram as famílias que enfeixavam localmente o poder através o exercício dos cargos municipais. O desenvolvimento histórico do ofício de vereador é difícil de acompanhar,

16

HESPANHA, História das instituições; épocas medieval e moderna. Coimbra: Livraria Almedina. 1982. p.153.

33

pelas muitas lacunas que há na documentação. Não se trata de uma magistratura herdada da ocupação islâmica, nem, tampouco, foi trazida na bagagem institucional dos novos senhores leoneses. As queixas levadas às cortes contra a atuação desses novos oficiais também levam a supor, não uma evolução interna, mas uma imposição vinda de fora, ou que houve uma generalização forçada pelos reis à partir de algum caso específico. Trata-se de ofício ou magistratura criada no século XIV e que aparece definida pela primeira vez no Regimento dos Corregedores de 1340.17 Todavia, o mesmo Regimento refere-se ao fato de que anteriormente haviam sido enviadas aos concelhos ordenações que regulamentavam o ofício de vereador. Como no Regimento anterior (1332) não há menção a vereadores, pode-se inferir, com relativa segurança que o cargo foi criado no intervalo entre ambos. Na historiografia portuguesa, a etimologia do termo vereador é, ainda, alvo de diversas suposições sem que se possa considerar perfeitamente estabelecida a origem da palavra. A documentação dos séculos XIV e XV refere-se indistintamente a veredores e vereiadores, ou a veadores e veedores. Com base nas duas primeiras grafias foi articulada a hipótese, bastante aceita, de que vereador deriva de vereda ou vereia, o que sugere que a magistratura teria tido origem em supostos fiscais dos caminhos concelhios.18 Pessoalmente, sou pouco inclinado a aceitar tal hipótese, embora não a possa descartar de todo. As duas últimas grafias apontadas sugerem uma outra origem etimológica. Aliás, no próprio Regimento em que estes oficiais aparecem pela primeira vez, a grafia empregada é veedor. Na mesma época, a ação desses novos oficiais concelhios é grafada na documentação como envereamento ou, simplesmente, vereamento, fórmula

17

Ver CAETANO, A administração. p.51-7.

18

Ver tal hipótese, de forma desenvolvida, em COELHO, Maria Helena da Cruz & MAGALHÃES, Joaquim Romero. O poder concelhio; das origens às cortes constituintes; notas de história social. Coimbra: Centro de Estudos e Formação Autárquica, 1986. p.15. Não se trata de uma questão apenas etimológica. Remete à conhecida questão da origem das instituições municipais ibéricas. Se de origem romana como queria Herculano e outros, se de criação medieval, com origem nos conselhos de administração de baldios, proposta por Hinojosa e adotada por Caetano. A opção que deriva vereador de vereda ou vereia (caminhos rurais) é característica daqueles que propugnam a segunda hipótese para a origem dos concelhos.

34

que se consagrou. O uso simultâneo das duas formas - veedor e envereamento - não deixa grandes dúvidas que ambas estão interligadas e derivam de veer. Os veedores (veer+[d]ores) eram os responsáveis pelo envereamento (em+veer+[a]mento), composições de palavras perfeitamente aceitas no português medieval. Neste sentido, os vereadores seriam, simplesmente, os responsáveis por ver ou veer, termo que já naquela época era empregado com o sentido zelar por ou cuidar de. Vereador seria, portanto um sinônimo de vedor, o que reforça a idéia de poder delegado que está na origem da criação do ofício: alguém que vee em nome de outro, seja este outro o concelho alargado, seja o próprio rei.19

Como deve pôr cinco ou seis homens bons por vereadores. [....] Primeiramente devem pôr em as vilas e nos julgados do seu julgado cinco ou seis homens bons ou mais se vir que o lugar tal é que o merece, para regimento das ditas vilas ou julgados, e que estes uma vez na domã, convém a saber ao domingo sejam em seu concelho de la manhã até a terça ao menos e que se apartem a um lugar para haverem de falar ou de concordar em todas aquelas cousas que forem prol e bom vereamento da dita vila ou julgado. § E assim como for acordado por todos ou pela maior parte deles que assim o façam meter em obra. § Outrossim sacada* que no concelho ou julgado queira fazer ou renda dos seus direitos ou quitação que a não possam fazer senão por estes. § E os juízes que forem pelos tempos dos ditos lugares naquelas coisas que houverem de fazer grandes feitos ou em que duvidarem que as acordem com esses sobreditos.20

O Regimento nos mostra que, nesta primeira versão, os vereadores seriam de indicação dos corregedores, embora sua escolha ficasse restrita aos homens bons de cada vila ou julgado. Todavia, se compararmos o processo descrito no regimento com a documentação camarária do período subseqüente vamos notar uma profunda diferença. O professor Marcelo Caetano já havia percebido que há uma discrepância entre a

19

Opinião semelhante expressou Cândido Mendes, no século passado. “A palavra Vereador vem, segundo Constâncio em seu Diccionario, do verbo verear, contração de verificar, i. e., vigiar sobre a boa polícia da terra, reger e cuidar do bem público; e não, como pretende Moraes, do termo verêa, caminho; etimologia que não parece fundamentada”. ORDENAÇÕES FILIPINAS. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985. v.1 p. 144. (Fac-símile da edição comentada de Cândido Mendes CÓDIGO PHILIPINO. Rio de Janeiro: Typographia do Instituto Philomático, 1870.) 20

COELHO & MAGALHÃES, O poder. p.111. *sacada = tributação extraordinária, para um fim específico

35

prática conhecida e o que pregava o diploma de 1340. Desde aquela época, vamos encontrar em ação nas câmaras 2 ou 3 vereadores e não os “cinco ou seis” ordenados por Afonso IV. Outra diferença notável entre as normas conhecidas e as práticas posteriores é que os integrantes da magistratura de vereador que se difundiu não eram de indicação dos corregedores mas de eleição concelhia. Supôs Caetano que deve ter ocorrido, ainda na década de 1340, uma alteração na composição camarária “por lei que desconhecemos, ou ordem verbal aos corregedores”.21 Independentemente da etimologia da palavra vereador, ou da existência de uma lei aperfeiçoando a magistratura, o fenômeno que se assiste é o da criação de uma espécie de novo núcleo de poder dentro da cidade portuguesa, o qual, por usurpações sucessivas, acabaria retirando ao concelho de homens bons o poder decisório e depois o de legislar. Diga-se de passagem que tal usurpação não foi total. As ordenações reservaram ao concelho ampliado o poder de decisão em questões graves. A margem de arbítrio entre o que era grave ou não gerou práticas em direções opostas. Houve câmaras em que os vereadores sistematicamente tomavam decisões de qualquer natureza, sem nunca consultar os demais homens bons. Em contrapartida, vamos encontrar câmaras que se reuniam em concelho aberto mesmo para as questões mais triviais. As mais antigas atas de vereações disponíveis em Portugal são do último quartel do século XIV e mostram as câmaras já organizadas de uma maneira muito similar à que seria adotada nos séculos posteriores. Na documentação municipal de Loulé, podemos acompanhar uma eleição camarária realizada em 1385.

[....] Em Loulé nos Paços do Concelho sendo aí Esteve Anes, Álvaro Vasques, que foram juízes o ano passado, Esteve Vasques, Rui Gomes, Lourenço Anes “o Moço”, vereadores, Lourenço Afonso, procurador do Concelho, Lourenço Afonso, Lopo Esteves, Gonçalo Vasques, João Domingues, Martim Anes Matom, João Afonso, Gonçalo Anes, João Anes almoxarife, Pero Esteves escrivão d’el-Rei, Diego Rodrigues, João Afonso, João Gonçalves, tabeliães, Lourenço Anes “Mil Libras”, Gonçalo Anes, João Afonso Carvalho e outros homens bons da dita vila, por Concelho apregoado e para o que se adiante segue chamados por Martim Afonso Pato

21

CAETANO, A administração. p.57.

36 pregoeiro do Concelho para elegerem seus oficiais os quais foram elegidos como se adiante segue. Primeiramente: Item fizeram juízes Lourenço Afonso e Lourenço Anes “o Velho”; Item fizeram vereadores João Afonso, filho d’Afonso Anes, Lourenço Anes “Mil Libras”, Vasco Afonso, genro d’Afonso Domingues; Item fizeram procurador do Concelho Vasco Lourenço cavaleiro; Item fizeram juízes dos ovençais Álvaro Gomes, Martim Daniel; Item juízes dos órfãos Afonso Domingues Roivano e João Bentes; Testemunhas Paio Gonçalves e Vasco Fernandes tabeliães e Pero Carvoeiro e Gonçalo Lourenço e outros. Eu, Domingos Gonçalves tabelião, isto escrevi.22

Como se observa, o processo eleitoral adotado era bastante simples e direto. Convocavam-se os homens bons por pregão e estes escolhiam os titulares dos diversos cargos de eleição concelhia. A eleição muito provavelmente era feita oralmente, ou por vozes, para empregar a terminologia da época, e não requeria a supervisão do Corregedor ou de outro funcionário régio. A documentação não traz indícios de que fosse necessária a confirmação dos novos oficiais municipais pela coroa. Na sessão seguinte já os encontramos no exercício de suas funções. O primeiro ato dos novos oficiais foi a composição de uma lista anual dos almotacés, que começava pelos dois juízes cessantes e concluía com dois dos vereadores da legislatura que acabara de se encerrar. Este procedimento tem grandes semelhanças com o que estabeleceria a legislação que, mais tarde, iria organizar esta escolha. A continuidade entre o modo pelo qual a câmara de Loulé escolhia os almotacés e aquilo que estava previsto nas ordenações sugere a existência de uma norma sobre a questão, anterior a ambos.23 Quando acompanhamos as eleições camarárias realizadas no início do século XV, vamos encontrar um processo substancialmente diferente daquele que acabamos de observar e bastante próximo daquilo que seria codificado pelas Ordenações Afonsinas.

22

LOULÉ. Atas da câmara. ACTAS DAS VEREAÇÕES DE LOULÉ. Porto: Câmara Municipal de Loulé, 1984. p.69-70. Os juízes dos ovençais e dos órfão, eram oficiais menores que não participavam do poder decisório da câmara. Entretanto, tais cargos eram rentáveis e costumavam ser entregues como prebenda a alguns eleitos. 23

Costume semelhante era adotado em Lisboa já em 1299. Ver CAETANO, A administração,

p.40.

37

Para uma síntese do processo, vamos tomar outra ata de eleição da câmara de Loulé, realizada em 26 de março de 1408.24 Acompanhando a referida ata, embora sua redação seja um tanto confusa, o que pode dar margem a interpretações divergentes, pode-se fazer uma reconstituição dos diversos passos do sistema utilizado para a escolha dos oficiais concelhios.

1 - Em câmara aberta especialmente convocada, o corregedor comunicou que as eleições “se haviam de fazer pela ordenação e se fizeram antes”; 2 - O corregedor exortou os presentes a que “entre si escolhessem os melhores e mais honrados”, retirando-se, em seguida, para que a eleição tivesse seguimento; 3 - Os presentes escolhem 7 eleitores; 4 - O corregedor retorna e toma juramento destes eleitores de que eles fariam suas escolhas “bem e diretamente e sem malícia”; 5 - Os eleitores apresentam ao corregedor uma lista de doze escolhidos para oficiais da câmara; 6 - O corregedor ordena que os 12 nomes sejam colocados “secretamente em pelouros”, reunidos em sacos específicos para cada ofício; 7 - São dadas instruções para que no mês de abril ocorresse o sorteio dos novos oficiais e que o mesmo se processasse na seguinte ordem: 2 para juízes, 3 para vereadores, 1 para chanceler e 1 para procurador;25 8 - O sorteio foi realizado em 1o de abril, dia em que os novos oficiais prestaram juramento e foram imediatamente empossados; 9 - O primeiro ato dos novos oficiais foi a escolha de um juiz dos órfãos.

Considerando os procedimentos adotados e as pessoas participantes, chega-se às seguintes conclusões: 1 - Existia uma legislação específica que dava forma às eleições municipais e que determinava o uso do método dos pelouros; 2 - O corregedor conduzia e confirmava o processo mas estava impedido de participar diretamente da escolha dos oficiais e, mesmo, de estar presente na hora da votação; 3 - O mandato dos oficiais era anual e começava em abril; 4 - Nenhum dos oficiais da câmara de Loulé era de indicação régia; 5 - O grupo de 7 eleitores foi composto por 3 integrantes da legislatura cessante e 4 da seguinte, o que indica a presença de um reduzido grupo que se perpetua na condução da administração local; 6 - Não havia impedimento legal de que os eleitores escolhessem a si próprios como futuros oficiais, o que facilitava o fechamento do grupo dirigente; 7 - Entretanto, os oficiais cessantes estavam impedidos de serem reeleitos; 8 - Um dos juízes cessantes foi imediatamente escolhido como juiz dos órfãos;

24

LOULÉ, ACTAS. p.11-3. Em sua transcrição, feita por Luís Miguel Duarte e João Alberto Machado, a ata foi erradamente datada de 1378. Engano esclarecido em MARQUES, A. H. de Oliveira. Para a história do concelho de Loulé na Idade Média. In: _____. Novos ensaios de história medieval portuguesa. Lisboa: Editorial Presença, 1988. p.175-6. 25

O chanceler era responsável pelo selo com que a câmara autenticava os documentos por ela expedidos. O cargo aparece com freqüência no século XV mas é progressivamente substituído pela criação de tabelionatos municipais.

38 9 - Segundo o “costume”, os oficiais de uma legislatura foram obrigatoriamente incluídos nas listas de almotacés da legislatura seguinte, a começar pelos dois juízes;

Nesta eleição, acompanhando os nomes dos votantes, é visível que o controle da instituição camarária estava nas mãos de uns poucos grupos familiares, uma oligarquia, se quisermos.26 Aliás, os mesmos da eleição anterior. No que concerne ao processo eleitoral adotado, percebe-se que há mudanças profundas entre 1385 e 1408. A historiografia portuguesa tem apontado uma ordenação, baixada por D. João I, em 1391, como responsável por estas alterações, inclusive pela criação do método eleitoral dos pelouros.27 Tal ordenação é conhecida pelo seu traslado nos livros camarários do Porto e de Lisboa, nos quais foram copiadas por ordem dos respectivos corregedores. O objetivo expresso da lei era acabar com os “bandos que se fazem quando se hão de eleger os juízes e vereadores e outros oficiais”, no que resultavam “saioarias e rogos” e em “grandes danos” para as vilas e cidade.

[....] ordenamos que para se fazerem os ditos oficiais como cumpre que logo sem delonga façais escrever no Livro da Vereação desse Concelho todos aqueles homens bons que são idôneos, e pertencentes para serem juízes quando vos forem dados de vosso foro em um capítulo e todos aqueles que outrossim forem idôneos, e pertencentes para serem Vereadores, em outro capítulo e todos aqueles que forem idôneos e pertencente para serem procuradores em outro e todos aqueles que forem idôneos, e pertencentes para chanceleres em outro e assim os outros oficiais que se em cada um ano fizerem estes que por vós forem escolheitos para haverem estes ofícios ao tempo que se houverem de fazer serão escritos em alvarás [e postos] em senhos pelouros de letra e lançados em um [capeirete] os de cada um capítulo sobre si e isto por esta guisa tomem um homem bom que tire daquele [capeirete] tantos pelouros quantos oficiais houverem de ser, e que aqueles que forem conteúdos nos ditos alvarás dos ditos pelouros que esses sejam aquele ano e que assim o façam em cada um até que todos os ditos alvarás nos ditos pelouros sejam cumpridos, e que os ditos alvarás que ficarem que não são ainda escolheitos sejam postos em uma arca de duas chaves que os homens bons tenham em cada um ano em essa cidade até que

26

Um bom estudo sobre um caso concreto de fechamento do grupo do poder local é ANDRADE, Amélia A. Composição social e gestão municipal: o exemplo de Ponte de Lima na baixa Idade Média. LER HISTÓRIA. n.10, 1987. p.3-13. Para Loulé, ver MARQUES, Para a história. p.15564. 27

COELHO & MAGALHÃES. O poder. p.18. RODRIGUES, Maria Teresa Campos. Aspectos da administração municipal de Lisboa no século XV. REVISTA MUNICIPAL. Lisboa, n.1012, 1964. p.58. MORENO, Humberto Baquero. O poder real e as autarquias locais no trânsito da idade média para a idade moderna. REVISTA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA, v.30, 1983. p.378.

39 sejam acabados os que assim forem escolheitos para os ditos ofícios [....]28

Como se percebe, o processo eleitoral proposto nesta lei, é bastante diverso daquele adotado pela câmara de Loulé, em 1408, o qual é feito explicitamente de acordo com uma “ordenação” que seguramente não é esta de 1391.29 Há que concluir, portanto, que entre as duas eleições de Loulé (1385-1408) foi promulgada alguma lei que regulamentou cuidadosamente as eleições camarárias. Esta ordenação, além de criar o método dos pelouros, deve ter sido responsável pela norma da eleição indireta dos oficiais. Conforme se observa na eleição de Loulé de 1408, os homens bons votam inicialmente em um corpo de eleitores, os quais, a seguir, encarregam-se de compor os pelouros. Este método tomaria a sua forma definitiva com as Ordenações Afonsinas e assim permaneceu ao longo de todo o Ancien Régime.30 Em Portugal, tal norma vigiu até a revisão do estatuto municipal feita pelas cortes constituintes e, no Brasil, até 1829, quando entrou em vigor o Regimento das Câmaras Municipais do Império. Quanto à ordenação dos pelouros de 1391, é preciso abordá-la sob um outro prisma. Como sabemos, D. João I esteve envolvido em ampliar as alianças de base sobre as quais se assentavam a nova dinastia que com ele tinha início. Neste campo, a medida de sua autoria mais conhecida foi a criação das Casas dos Vinte e Quatro, dando poder de voz e voto às gentes de ofício na administração de alguns municípios. A meu ver, a ordenação de 1391 deve ser examinada dentro desse espírito. O que ela busca, na realidade, é uma renovação do poder camarário pela rotação forçada dos vereadores. Ela se propõe a extinguir a figura do conselho de eleitores a quem o concelho aberto delegava a escolha dos futuros oficiais. O exemplo de Loulé nos mostra

28

LPA. p.310-1. Ver também VEREAÇOENS; anos 1390-1395. Porto: Câmara Municipal,

1937. p.236. 29

Banha de Andrade também é de parecer que esta lei apenas altera disposição mais antiga. Ver ANDRADE, António Alberto Banha de. Montemor-o-Novo, vila regalenga; ensaio de história da administração local. Prim. parte: O poder político dos reis e a administração do concelho durante os séculos XIII-XVI. CADERNOS DE HISTÓRIA, Montemor-o-Novo, n.2, 1976. p.22-3. 30

AFONSINAS, Livro 1, Tit. 23, § 43-6. MANUELINAS, Livro 1, Tit. 45. FILIPINAS. Livro 1, Tit. 67.

40

perfeitamente que o tal conselho de eleitores era um instrumento que facilitava a concentração e a perpetuação do poder camarário nas mãos de uns poucos. O novo método de eleição exigia que as câmaras organizassem previamente um rol de “todos” os elegíveis e que imediatamente seus nomes passassem a constar dos pelouros que eram sorteados a cada ano. A confirmar o caráter de lei que buscava impedir o enquistamento do poder, a ordenação propunha uma segunda medida, visando facilitar a ampliação e a renovação das elites concelhias. Ela pregava que aqueles que ascendessem à condição de homens bons, fossem “filhos de Homens [bons] ou bons por si”, tivessem os seus nomes imediatamente incluídos nas listas e nos pelouros, sem que fosse necessário esperar o início de um novo processo eleitoral. As alterações na legislação eleitoral promovidas por D. João I devem ter enfrentado a resistência das oligarquias municipais pois, o que se observa posteriormente, como no caso da eleição de Loulé, é um processo bem mais restritivo do que o previsto em 1391, o qual obrigava a todos os homens bons a ocuparem as magistraturas municipais. As Ordenações Afonsinas adotariam um método eleitoral muito mais próximo daquele utilizado no exemplo de Loulé, do que o da ordenação joanina de 1391, consagrando um retrocesso na luta anti-oligárquica conduzida pela coroa portuguesa. No que concerne ao município, as Ordenações Afonsinas são uma primeira consolidação síntese dos diversos regimentos dos oficiais do reino, que foram elaborados ao longo do século XIV. Ali estão codificados os métodos eleitorais, quais eram os oficiais das câmaras e as atribuições de cada um deles. O passo seguinte, no sentido da codificação e da padronização das instituições municipais portuguesas, foi a publicação, por D. Manuel, do Regimento dos oficiais das cidades, vilas e lugares destes reinos.31 Pouco depois, esse regimento foi incorporado nas Ordenações Manuelinas, e transitou sem grandes alterações para as Filipinas.

31

REGIMENTO DOS OFICIAIS DAS CIDADES, VILAS E LUGARES DESTES REINOS. Lisboa: Fundação Casa de Bragança, 1955. (Ed. facsimilar).

41

Note-se, porém, que tanto os regimentos quanto as ordenações não aboliram, totalmente, as muitas peculiaridades locais. Tendemos a ver as instituições municipais portuguesas como algo bastante padronizado, impressão que logo se desfaz ao confrontarmos as Ordenações com a documentação municipal. As câmaras variavam tanto pela composição quanto no papel desempenhado pelos diversos oficiais que a compunham. Tais diferenças não eram apenas resquícios de direitos passados, pois mesmo à partir da vigência das Ordenações elas continuaram sendo produzidas. Os reis e donatários continuaram a dar privilégios às câmaras, alterando a estrutura básica delineada nas ordenações. Além disso, a força dos diversos grupos sociais e de interesse levavam à introdução de práticas diversificadas, quer isto fosse resguardado por legislação específica, quer pela consagração através do uso. Lisboa foi um caso todo especial.32 Inicialmente, eram 3 os vereadores da cidade. Contudo, o próprio D. Manuel, um dos principais responsável pelo esforço de padronização das câmaras, encarregou-se de especializar os vereadores da capital.

Distribuição entre os vereadores Vereadores e procurador e procuradores dos mesteres Nós el-Rei vos enviamos muito saudar nós consideramos que para as cousas dessa câmara serem feitas executadas assim bem como devem e por nosso serviço é necessário que seria cousa muito proveitosa serem partidas as execuções delas por todos três vereadores por ficar a carrego de cada uma sua parte e cada um dar razão daquilo que lhe couber e não ficarem a carrego de todos três todas as cousas juntamente e parecia-nos que devia um ter carrego da execução das carnes e outro da execução das penas e feitos que se despacham na mesa e outro das obras e limpeza da cidade [....].33

Até D. Sebastião, a presidência das sessões da câmara era rotativa. Ele criou o cargo de Presidente da Câmara, assumido por um nobre de indicação régia, além de ter passado a nomear letrados para o cargo de vereador. Depois, Filipe I alterou o número de vereadores, primeiro para 4 e, em seguida, para 6. A esses acréscimos

32

Para uma síntese das transformações por que passou a composição da câmara de Lisboa, ver A EVOLUÇÃO MUNICIPAL DE LISBOA; pelouros e vereações. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1996. 33

Citado da coletânea documental de A EVOLUÇÃO MUNICIPAL DE LISBOA. p.171.

42

correspondeu um aumento da especialização das tarefas específicas atribuídas a cada vereador. A partir de 1609, dada a presença desses letrados, a câmara passou a denominar-se Tribunal do Senado. O cargo de vereador nomeado de Lisboa, ora foi vitalício, ora um mandato de três anos. Maior alteração foi introduzida por D. João V, que, em 1717, dividiu Lisboa em duas cidades, Ocidental e Oriental, cada uma com um Senado específico. Tal divisão durou até 1741.34 As diferenças não se limitam, no entanto, à capital do império. Coimbra foi um caso onde a composição da câmara passou por diversas alterações. Aos seus 3 vereadores originais, foi acrescentado um quarto, na passagem do século XV para o XVI, pelo privilégio de manter o juiz mais velho como vereador na legislatura seguinte. Posteriormente, esta prática foi suprimida mas o rei concedeu à Universidade o privilégio de indicar um quarto vereador.35 Se isto fazemos, é por serem as cidades melhor vereadas Cronologicamente, há uma coincidência entre o aparecimento dos vereadores em Portugal e o fechamento dos concelhos castelhanos. A partir de 1335, Afonso IX e seus sucessores passam a conceder o ‘privilégio’ de existirem regidores em alguns concelhos.36 No caso de Castela, os regidores de algumas cidades eram de nomeação régia, feita a título vitalício. Em Portugal, D. Fernando parece ter adotado um procedimento semelhante.

34

Nesse ano, parece que houve a reunião dos dois senados numa mesma casa. A documentação continua a mencioná-los até 1745, pelo menos. A EVOLUÇÃO MUNICIPAL DE LISBOA. p.24. 35

Na vila da Praia, nos Açores, também o vereador mais velho continuava em exercício no ano seguinte. NEMÉSIO, Vitorino (org.). Memorial da mui notável vila da Praia da Vitória. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1929. p.25. Sobre o vereador da Universidade, ver SOARES, Sérgio Cunha. Os vereadores da Universidade na Câmara de Coimbra. 1640-1777. REVISTA PORTUGUESA DE HISTÓRIA. Coimbra, Tomo 26, 1991. p.45-75. LOUREIRO, J. Pinto. Administração coimbrã no século XVI; elementos para a sua história. ARQUIVO COIMBRÃO. v.4. 1938-9. p.32. 36

A questão é tácita entre os estudiosos das instituições municipais espanholas, ver, por exemplo, GONZALES, María Asenjo. Oligarquias urbanas en Castilla en la segunda mitad del siglo XV. In: ACTAS DO CONGRESSO INTERNACIONAL BARTOLOMEU DIAS E A SUA ÉPOCA. Porto: Universidade do Porto; Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1989. v.4, p.418.

43

Nas cortes reunidas em Lisboa, em 1371, alguns procuradores pedem que o rei cumpra antigas decisões de seus antecessores de “que os concelhos hajam Juízes e Vereadores, segundo seu foro, e que nós em alguns lugares pomos Juízes e Regedores, por nós”. Responde D. Fernando que “se isto fazemos, é por serem as cidades e vilas melhor vereadas e se fazer justiças mais cumpridamente”.37 Esta situação deve ter sido pontual e pouco duradoura, pois os regedores não se firmam na tradição administrativa local portuguesa. A documentação continuaria a fazer menção a regedores, os quais, no entanto, são substancialmente diferentes dos interventores nomeados por D. Fernando. No Regimento dado por D. João I a Évora, em 1392, há um título dedicado aos regedores. Todavia, esses oficiais não se confundem com vereadores nomeados. Eles compunham uma espécie de conselho permanente de 10 homens bons indicados pelo rei que, obrigatoriamente, deveriam participar das reuniões camarárias realizadas aos sábados. O rei justifica a criação deste ofício dizendo que achara “que a cidade per míngua de bom regimento ia a perder e que nenhum não punha mão nem cuidado nas coisas que há prol comunal”.38 Não há menção de que esses regedores tivessem direito a voto. Com a criação deste corpo consultivo, o rei não parece pretender suprimir os cargos eletivos da cidade, mas aumentar a participação dos homens bons na gestão camarária. Um século depois, vamos encontrar alguns grupos oligárquicos pedindo ao rei para serem nomeados como regedores perpétuos, segundo o protótipo castelhano.

37

ANDRADE, Montemor-o-Novo. p.19. Apesar da ênfase que os historiadores têm dado ao emprego do termo regedor neste documento, a queixa dos concelhos referem-se simultaneamente à presença de juízes nomeados pelos reis. Esta sim foi uma intervenção régia de peso e que passou a integrar a prática administrativa portuguesa. Adiante voltaremos e estes juízes nomeados. 38

ÉVORA. Regimento da cidade de Évora feito pelo corregedor da corte João Mendes em tempo del Rei D. João I. In: PEREIRA, Gabriel Vítor do Monte (ed.). Documentos históricos da cidade de Évora. Fascículo I, Foros e costumes ou direito consuetudinário municipal nos séculos XII e XIII. Évora: Typographia da Casa Pia, 1885. p.162-3. O professor Marcelo Caetano supôs que este item do regimento não é original, mas um adendo. Ver CAETANO, Marcelo. O concelho de Lisboa na crise de 1383-1385. In: _____. Estudos de história da administração pública portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 1994. p.277. No mesmo artigo ele comenta a inespecificidade do uso do termo regedor em Portugal.

44

Nas cortes de 1498, a câmara de Elvas defende a idéia de que se “houvesse regedores perpétuos homens fidalgos e escudeiros honrados a vila seria melhor vereada”.39 Tratava-se, entretanto, do propósito de um grupo local e não do rei. Não tenho conhecimento de que este sistema tenha prevalecido em qualquer câmara portuguesa do período. Nos séculos seguintes, continuamos a encontrar referências a regedores em diversas cidades portuguesas. Todavia, trata-se apenas de um termo empregado para designar coletivamente os oficiais maiores das câmaras: juízes, vereadores e procuradores. Ao estudar a formação da câmara de Coimbra, o historiador José Pinto Loureiro chegou a esta mesma conclusão. Observou que o município coimbrão alcançara uma composição definida já no final do século XIV, e era “presidido pelos juízes ordinários, e formado por vereadores e um procurador, também de eleição, que coletivamente se intitulavam oficiais da câmara ou regedores da cidade”.40 Em Braga, por exemplo, esses oficiais se intitulavam regedores sem que fossem de nomeação régia ou do arcebispo senhor da cidade. Quanto a isto não há a menor dúvida. Numa ata de 27 de dezembro de 1580, podemos acompanhar os “cidadãos e povo” reunidos para “elegerem os seis eleitores que hão de fazer os juízes e vereadores e procuradores para servirem os três anos”. Concluída a eleição e “ feito assim os ditos róis e pautas pelos ditos eleitores foram entregues a eles regedores”, para guardarem no cofre e encaminhar cópia ao arcebispo para apuração.41 O fato de não ter prevalecido a nomeação de regedores vitalícios pelos reis, em Portugal, não significa que houvesse uma grande autonomia por parte dos municípios. Desde a formação do reino português, a administração local sofreu diversas formas de intervenção por parte dos reis. Juízes locais de nomeação régia existiram

39

Capítulo de Elvas às cortes de Lisboa de 1498. Citado do apêndice documental de COELHO & MAGALHÃES, O poder. p.136. 40

LOUREIRO. Administração. v.4, 1938-9. p.43-4.

41

BRAGA. Atas da câmara. Acordos e vereações da Câmara de Braga no episcopado de D. Frei Bartolomeu de Mártires. 1580-1582. BRACARA AUGUSTA, v.24, n.73-4, jan.dez, 1970. p.320.

45

desde os tempos de D. Afonso Henriques.42 Entretanto, estas intervenções só se tornaram sistemáticas quando D. Afonso III (1248-1279) criou um corpo de meirinhos itinerantes cujas atribuições eram inspecionar o correto funcionamento das instituições e servirem como juízes de recurso. D. Dinis substituiu-os pelos corregedores, formando um corpo estável de magistrados responsáveis pela supervisão geral das instituições locais. A relação entre as câmaras e estes magistrados foi sempre conflitiva. Sobre eles, os procuradores dos concelhos nas cortes diziam que “melhor seria dito estragadores que não corregedores”.43 As queixas mais generalizadas eram causadas pela intromissão destes nas eleições camarárias e em assuntos da almotaçaria: seja criando, alterando ou derrogando posturas, seja aceitando recursos nas causas dos almotacés. Nas terras senhoriais e nas capitanias hereditárias das colônias, a mesma função seria desempenhada pelos ouvidores dos donatários. Ao lado de suas atribuições gerais, os corregedores e ouvidores tinha outras específicas, que lhes permitia imiscuirem-se em assuntos que, tradicionalmente, pertenciam às câmaras. Tinham poderes para intervir em questões relativas ao mercado, ao saneamento urbano e, mesmo, ao construtivo.

Se trabalhe Mandar em todos os Lugares da Correição, que façam as benfeitorias públicas, convém a saber, calçadas, pontes, fontes, chafarizes, poços caminhos, e casas dos Concelhos, picotas, e outras quaisquer benfeitorias, que forem necessárias, mandando logo assim fazer que cumprir de novo serem feitas, como reparar as que reparo houverem mister; [....].44

Na prática, muitos corregedores e ouvidores tornaram-se copartícipes da câmara no ordenamento urbano. Em Portugal, isto era freqüente. E, nas colônias, esses

42

HERCULANO, História de portugal. v.3. p.128. VALE, Alexandre de Lucena e. História e Municipalidade; novos conspectos. ANAIS DA ACADEMIA PORTUGUESA DE HISTÓRIA. v.16, 1966. p.206.7. 43

COELHO & MAGALHÃES. O poder. p.11.

44

MANUELINAS. livro 1, tít. 39, § 15.

46

magistrados assumiram o papel de verdadeiros urbanizadores. Alguns agiam por conta própria, enquanto outros recebiam dos donatários ou dos reis missões específicas de fundar cidades tanto do ponto de vista institucional como do físico. No Brasil, por exemplo, muitas cidades setecentistas foram delineadas por ouvidores.45 O passo seguinte da intromissão dos reis foi a criação dos juízes de fora. A historiografia portuguesa é unânime em reconhecer que a criação desta magistratura foi uma conseqüência da peste negra. D. Afonso IV (1325-1357) usou-a como justificativa para a substituição dos juízes leigos municipais por letrados de indicação régia.46 A grande mortandade provocada pela peste gerou o problema do correto cumprimento das disposições testamentárias, e é provável que o propósito do rei fosse conter a intromissão dos bispados no assunto e não, propriamente, substituir as justiças locais. Muitos dos primeiros juízes de fora não eram letrados, mas pessoas detentoras de poder ou prestígio, alheias ao cenário local, que, acreditava-se, julgariam com mais imparcialidade. Todavia, aquilo que seria uma magistratura provisória acabou eternizando-se e profissionalizando-se. António Manuel Hespanha traçou um rápido quadro da evolução desta magistratura.

Assim, a partir de 1360, há juízes de fora em Coimbra; de 1375, no Porto; no reinado de D. Fernando, o rei nomeia os juízes de Lisboa. Só com D. João II, no entanto, os juízes de fora constituem uma magistratura de carreira, provida, de um modo geral, em letrados. Com D. Manuel, generaliza-se a sua nomeação a mais algumas terras do reino, suportando a coroa metade das despesas com o seu salário. Finalmente, com D. João III, estabelece-se o princípio de que apenas letrados possam ser providos nesses lugares. A partir de então, os juízes de fora passam a distinguir-se dos juízes da terra pela sua dupla característica de serem nomeados pelo rei (por um período limitado, normalmente de três anos) e de serem peritos em direito.47

Complementarmente, é preciso lembrar, que o impacto inicial da presença de juízes de fora nas câmaras ficou restrito a Portugal. Na metade do século XVII, em

45

Adiante, acompanharemos diversos exemplos desta modalidade de atuação dos ouvidores.

46

LIVRO DAS LEIS E POSTURAS. Lisboa: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1971. p.440. 47

HESPANHA, António Manuel. História das instituições. p.254-5.

47

apenas 8% dos municípios os juízes das câmaras eram de nomeação régia.48 Nas colônias, eram em menor número ainda. No Brasil, por exemplo, apesar de já existirem em umas poucas localidades, apenas com a transferência da corte para o Rio de Janeiro, houve uma proliferação desses magistrados. D. João VI instalou juízes de fora em algumas dezenas de vilas e cidades.

A EXPANSÃO COLONIAL PORTUGUESA E O MUNICÍPIO

No intervalo cronológico de aproximadamente uma década, ocorreram os dois eventos que podem ser tomados como os atos inaugurais da expansão colonial portuguesa. Em 1415, a tomada de Ceuta e, provavelmente em 1425, o início do povoamento do arquipélago da Madeira. No Marrocos, os portugueses estabeleceram uma rede de cidades fortificadas, comandadas por capitães a quem eram delegados diversos poderes de estado e que governavam em nome da coroa. Ao se expandirem para o sul, em direção ao golfo da Guiné, esses estabelecimentos tomam a feição de entrepostos comerciais, feitorias propriamente ditas, formando uma constelação de localidades fortificadas e desprovidas de território, em que o mar representa a única via de interligação. Este modelo tem evidentes proximidades com o futuro Estado da Índia. Por seu lado, a Madeira pode ser vista como uma espécie de laboratório no qual foram ensaiados o modelo institucional e os métodos de colonização agrícola que seriam aplicados nas outras ilhas atlânticas e, mais tarde, no Brasil e em Angola. Neste caso, houve o transplante direto das instituições municipais portuguesas, num processo tão bem sucedido que criou a ilusão de que colonização e município eram coisas idênticas. Encarada desta maneira, a transposição de instituições municipais perde o caráter de decisão histórica para se transformar num dado da natureza. Os portugueses, politicamente organizados sob instituições municipais, simplesmente as teriam

48

HESPANHA, António Manuel. As vésperas do Leviathan; instituições e poder político; Portugal século XVIII. Lisboa: Edição do Autor, 1986. v.1, p.238.

48

reproduzido onde quer que se tivessem instalado. A historiografia brasileira é presa fácil dessa noção, pois, no país, a colonização deu-se exclusivamente sob a presença das instituições municipais portuguesas. O engano fica patente se tomarmos o processo colonial português em conjunto. O municipalismo não foi o único instituto políticoadministratitivo da colonização portuguesa. Muitas porções do império jamais conheceram o instituto municipal, outras, apenas à partir do século XVIII. É difícil estabelecer uma regra geral que contemple a diversidade dos modelos institucionais utilizados na expansão ultramarina portuguesa e o papel que o município representou em cada um deles. De uma forma geral, o instituto municipal foi utilizado nas conquistas territoriais como é o caso das ilhas do Atlântico, Brasil e Angola, onde se percebe a tentativa de estabelecer um modelo único baseado na conjunção entre senhorios territoriais (as capitanias hereditárias), instituições municipais e a distribuição de terras em sesmarias. Essa, aliás, foi uma fórmula amplamente difundida no próprio Portugal. O modelo foi revisto com a criação da Corregedoria Geral das Ilhas e do Governo Geral no Brasil. A falência de muitos capitães e o descumprimento das cláusulas restritivas de doação levaram a coroa a reapossar-se de muitas capitanias, transformando os senhorios territoriais em unidades administrativas. Apesar disso, essas posses coloniais não perdem a feição dos senhorios, em que a ênfase colonial caía na criação de municípios e na doação de sesmarias. O capitão era agora um agente da coroa, detentor de um limitado mandato, mas seus poderes continuariam muito semelhantes aos dos antigos donatários. Durante o período filipino, a coroa conduziu uma agressiva política de estabelecer capitanias reais, são os casos do Rio Grande do Norte, do Maranhão e do Grão Pará, no Brasil, ou de Benguela, na África. Contudo, nem todas as conquistas territoriais viveram sobre esse estatuto. Moçambique era, inicialmente, uma feitoria e entreposto de escala na rota do oriente. Posteriormente, com a incorporação de vastas áreas da Zambézia, evoluiu para uma colônia territorial, sem que fossem instituídas capitanias hereditárias, nem instalados municípios, ou distribuídas sesmarias, situação que prevaleceu até o período pombalino.

49

Apesar de sua expansão territorial, Moçambique permaneceu dentro do modelo institucional de colonização ao qual pertenciam os fronteiros militares e feitorias do norte da África e do império do Oriente. Tal modelo comportou um maior grau de diversificação em relação àquele que teve origem na instituição de capitanias hereditárias. Excluindo-se, justamente, Moçambique, essas conquistas foram marcadas pela exigüidade de seus territórios, os quais, na maioria das vezes, estavam restritos ao da fortaleza que garantia a sua existência, tendo, por vezes, algumas terras anexas. É o que convencionalmente têm-se chamado de feitoria sem que essa designação seja fidedigna aos fatos. Se entendermos que uma feitoria é um entreposto comercial, muitos desses lugares não deveriam ser abrangidos nessa categoria, pois foram em primeiro lugar postos militares avançados. Neste caso, estão as diversas fortificações marroquinas, estabelecidas como bases para uma conquista territorial que jamais se realizou. No Marrocos, muitas localidades viveram uma situação esdrúxula quando comparadas à tradição municipalista portuguesa. Apesar de a coroa ter elevado algumas das praças-fortes marroquinas a vilas e cidades, isto foi feito como mera concessão de título honorífico, sem a competente criação das instituições municipais que historicamente acompanhavam tal titulação. No Marrocos e na África Ocidental, observam-se casos únicos de autonomização dos títulos de cidade ou vila em relação às instituições político-administrativas, em frontal desacordo com a tradição portuguesa. A documentação se refere a Ceuta e Tanger sempre como cidades, enquanto Mazagão e Alcácer-Ceguer eram denominadas vilas. À última, os reis costumavam referir-se como a “nossa vila d’alcacer”.49 Não se tratava de um uso lato dos termos, utilizados para designar aglomerações urbanas em geral, mas de títulos honoríficos concedidos pela coroa e desta forma incorporados ao nome das praças-fortes. Mais ao sul, ao longo da costa saheliana e do golfo da Guiné, foram

49

Ver ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, livro 36, f.212v. Documento datado de 25 de julho de 1459 transcrito em FARINHA, António Dias. Portugal e Marrocos no século XV. Lisboa: Universidade de Lisboa, 1990. v.2, p.221.

50

estabelecidas feitorias propriamente ditas, entrepostos comerciais, que agregavam instituições militares, governadas por capitães nomeados pela coroa para um período fixo de mandato. A tendência geral foi a de não contarem com instituições municipais. Em 1486, a mais importante delas, a de São Jorge da Mina, recebeu um título vazio de cidade, a exemplo dos casos marroquinos, passando a ser mencionada desta maneira em toda a documentação oficial.50 Numa situação inversa, houve a concessão do estatuto de vila a Cacheu, uma das mais precárias feitorias africanas, que teve as suas instituições municipais criadas no início do século XVII.51 Na costa oriental africana e na Arábia, repete-se o modelo das feitorias e fronteiros militares. Além do caso já mencionado de Moçambique, os portugueses estabeleceram-se em mais de uma dezena de localidades, em que destacavam Mombaça e Ormuz. Em nenhuma delas tiveram vigência instituições municipais antes do século XVIII. Foram governadas por capitães militares e outros funcionários diretamente nomeados pela coroa ou pelo vice-rei da Índia. Somente à partir do subcontinente indiano, existiram feitorias dotadas de instituições municipais. É o caso de Baçaim, Damão, Goa, Cochim, São Tomé de Meliapur, na Índia, e de Colombo, no Ceilão. Essa seqüência de municípios era entremeada de diversas outras feitorias que jamais foram elevadas a vilas ou cidades. O modelo se repete em direção ao extremo oriente, onde alguns estabelecimentos portugueses, como Malaca, Macau ou Amboino, possuíam estatuto municipal, enquanto outros permaneceram sobre o comando exclusivo de capitães. Na região da Oceania, houve ainda o caso suigêneris de estabelecimentos religiosos fortificados. Solor e Ende abrigavam verdadeiras vilas em suas muralhas, mas estas não contavam com instituições municipais. Há, ainda, o caso de Nagasaqui, no Japão, fundada em 1580 pelos jesuítas, num porto doado por D. Bartolomeu de Omura. A cidade era governada por “quatro cidadãos cristãos, naturais da mesma terra, mas em nome do Cubo, Senhor

50

Ver MMA. v.1. p.8.

51

Ver CACHEU: CIDADE ANTIGA. Lisboa: ICALP, 1988.

51

do Japão, cuja é a cidade”.52 Situação semelhante à de Macau, da qual o soberano formal era o imperador da China. Um ponto a responder é se o jesuítas teriam instituído uma câmara em moldes portugueses ou se se tratava de um sistema local de governo. O título que tais “homens bons” usavam, yakunim, aponta para a segunda hipótese. Uma peculiaridade a anotar é que no oriente o estatuto municipal recobriu uma grande variedade de situações, o que não aconteceu na região atlântica das capitanias, onde a situação foi mais padronizada. Em alguns casos, os municípios orientais funcionaram como autênticas republicas comerciais, situação da qual Macau foi o exemplo mais completo. Em outros casos, como na região de Baçaim e Damão, o municipalismo associado ao instituto enfitêutico dos prazos da coroa, fez reviver um município fidalgo, com muitas semelhanças com o fronteiro ibérico utilizado na reconquista da Península e de largo emprego na América espanhola. Noutros, como em Santa Cruz de Cochim, tivemos uma simples feitoria municipalizada. A síntese de todas essas situações foi Goa, sede do Império Oriental, principal feitoria da coroa. Foi também uma república comercial, mas enfraquecida pela presença dos vice-reis. O Império das intrigas Fala-se muito de uma autonomia das câmaras nos primeiros séculos da expansão ultramarina, pela distância e dificuldade de comunicação com o reino. Porém, se as câmaras estavam longe do rei, estavam muito próximas de agentes com os quais a convivência era cheia de conflitos. Nas colônias, imperavam, por um lado, capitãesdonatários e seus agentes locais e, por outro, os emissários da coroa, desde ouvidores e desembargadores, capitães e governadores, até os vice-reis. Foi neste cenário adverso que as câmaras construíram uma relativa autonomia, de resto ainda minada pela presença dos corregedores e juízes de fora. Os conflitos não aconteciam por acaso, pois a coroa intencionalmente estimulava a mútua vigilância e a delação entre de seus agentes e entre eles e as câmaras

52

JANEIRA, Armando Martins. O impacto português sobre a civilização japonesa. Lisboa: D. Quixote, 1989. p.184

52

municipais. Tratava-se do que podemos chamar, na falta de um termo melhor, de uma administração por intriga. Para conseguir manter algum controle sobre os seus delegados, a corte estimulava duas formas de intrigas. Nas horizontais, ou sincrônicas, oficiais régios que serviam ao mesmo tempo e o poder municipal, quando este existia, eram instados a se delatarem mutuamente. As verticais, ou diacrônicas, eram representadas pela instituição de devassas que deveriam ser realizadas por aqueles que assumiam um posto na gestão do predecessor. Em essência, o sistema não se diferenciava daquele adotado em Portugal, mas, nas colônias, ele desempenhou um papel mais importante, uma vez que a distância só fez agravar a precariedade do controle exercido pelo governo central. Note-se que tal sistema jamais conseguiu por cobro à corrupção, que permaneceu endêmica. Um posto de capitão ou de governador de alguma feitoria, fortaleza ou capitania era uma benesse que, para a maioria, representava uma oportunidade única na vida. Era, portanto, uma ocasião aproveitada ao máximo. Aquilo que podemos chamar de ‘salários’ eram muito baixos. Em contrapartida, capitães e governadores recebiam diversos benefícios indiretos, que iam de percentagens sobre rendimentos alfandegários a viagens com isenções fiscais, passando por monopólios sobre alguns produtos em rotas específicas. Esse delegado régio era, portanto, um comerciante que concorria em grande vantagem com demais interessados. Afora todas as benesses legais, a grande fonte de renda era a corrupção pura e simples. A situação era agravada pelo fato de muitos desses cargos serem livremente negociáveis e o beneficiário podia vendê-los a terceiros. Aqueles capitães que haviam comprado seus cargos começavam as suas ‘gestões’ com um passivo que precisava ser coberto a todo custo, para, só então, começarem a ter algum lucro. Até mais que os beneficiários diretos, esses eram famosos por sua avidez pelas riquezas proporcionadas pelas conquistas orientais. Não devemos imaginar que a corrupção fosse uma distorção do sistema, pois ela fazia parte da essência da administração patrimonialista. Cada cargo era usufruído mais avidamente do que um bem pessoal. A galinha dos ovos de ouro não precisava ser preservada além do período que se usufruía dela. Se morresse, de tanto ser

53

explorada, este era um problema do sucessor. Principalmente no Estado da Índia, nas possessões africanas e nos arquipélagos de São Tomé e Cabo Verde, as atividades comerciais desenvolvidas pelos capitães enviados do reino eram a principal causa da convivência conflituosa entre eles e a elite dos moradores, composta pelos comerciante ali nascidos ou radicados. O senado de Goa era porta-voz dos interesses comerciais dos moradores do oriente, denunciando à coroa a corrupção e a ação monopolista dos seus agentes.

Os capitães das fortalezas procedem de tal maneira nelas, que haja V. Majestade que a não se lhes dar algum remédio, muito cedo serão todas despovoadas, com já se vai começando, pelas muitas onzenas o tiranias que cometem, não deixando vender pessoa alguma sua fazenda, pondo-lhe tal cerco, que tudo compram pelo que querem, afim do só eles terem que vender, e lhe, pôr o preço à sua vontade, não deixando carregar. em seus portos nau alguma senão com se lhes dar meios fretes, sem eles meterem cabedal, tendo feitores, o criados, que furtam os direitos às alfândegas de V. Majestade.53

Em Cabo Verde, a câmara da Ribeira Grande responsabilizava-se por encaminhar à coroa as queixas dos comerciantes de escravos da costa da Guiné.

Alguns Governadores tomam para si o trato e comércio dos rios de Guiné de que os moradores da Ilha se sentem e queixam muito porque o remédio deles o da terra depende de negociarem para aqueles rios, e que segundo são os Governadores assim sucede desta maneira; porque Francisco Martins de Sequeira impedia os moradores da Ilha o comércio para os Rios, e Nicolau de Castilho também era rigoroso com lhes dar licença; e que D. Francisco de Moura procedeu honradamente neste particular.54

Nem os vice-reis escapavam das acusações de corrupção. Na Índia, eles eram protegidos por uma legislação que impedia que, durante suas gestões, fossem demandados em juízo. Os vereadores de Goa acusavam-nos de se aproveitarem deste privilégio para não pagar as dívidas contraídas na cidade, além de utilizarem outros meios ilícitos para fraudar a fazenda régia.

53

APO, fasc.1 parte 2. p.96.

54

Citado em CARREIRA, António. A capitania das ilhas de Cabo Verde. REVISTA DE HISTÓRIA ECONÓMICA E SOCIAL. Lisboa, n.19, jan.-abr.1987.

54 Os vice-reis trazem provisão do V. Majestade para não serem citados nestas partes, cousa tão prejudicial ao serviço de V. Majestade como a este povo, e que lhes dá motivo para cousas muito mal feitas, como é pedirem empréstimos, e tomarem o alheio, afim de os não poderem demandar, e para que estes empréstimos fiquem carregados à fazendas de V. Majestade, e antes que acabem compram papéis de dívidas velhas com que ocupam o lugar, de que interessam muito, ficando sempre vossa fazenda obrigada à maior parte, e os homens perdidos; o que não fizeram, se souberam que os aviam de demandar, assim pelo não pagarem, como pelo crédito que perdiam para com V. Majestade, a quem pedimos nos faça mercê não passar tal provisão porque sem ela acharão quem lhes empreste, e terão cuidado de pagar, e o Estado ficará desendividado, e não se acrescentarão de novo dívidas, principal cano de os vice-reis enriquecerem, porque não há nenhum que no seu tempo não pague delas cento e cincoenta mil cruzados ao menos, que eles compram por trinta ou quarenta quando muito.55

Em resposta, os vice-reis acusavam as gentes da governança de açambarcarem alimentos para fazer subir os preços. Em 1631, o vice-rei escreveu à coroa sobre “o ruim governo que tinha a câmara desta cidade [de Goa] porque como os vereadores, juízes, procurador e mais oficiais são eleitos por subornos que custam grossas peitas querem se pagar no sangue dos pobres”. A sua idéia era convencer o rei a extinguir todas as câmaras, usando como argumento o modelo marroquino de cidades e vilas sem instituições municipais. “Tenho por opinião que convém muito ao bem comum e ao serviço de Vossa Majestade que em nenhuma cidade da Índia haja câmara”, dizia ele. Em “Ceuta, Tanger e Mazagão não há câmara, muitos fidalgos há que foram capitães destas partes, eles poderão informar a V. Majestade se as puderam governar se houvera câmara”, argumentava o vice-rei.56 A sugestão não seria levada em conta, pois eram os atritos entre os titulares das diversas instituições políticoadministrativas que alimentavam a coroa de informações e possibilitavam algum controle sobre seus agentes coloniais. Outros grandes desafetos das câmaras eram os desembargadores das Relações de Goa e da Bahia. O historiador norte-americano Stuart Schwartz, qualificou as relações entre o tribunal baiano e a câmara de Salvador, como “uma curiosa dialética de

55

APO, fasc.1 parte 2. p.97.

56

SOUZA, Teotónio de. Goa medieval; a cidade e o interior no século XVII. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. p.258.

55

necessidade e rejeição”.57 Em Goa, essas relações era mais simples, resumindo-se ao puro ódio. Quando, em 1602, a coroa mandou prender os desembargadores da Índia por corrupção, e remetê-los a Lisboa onde seriam julgados, o senado de Goa agradeceu ao rei dizendo que bons tempos eram aqueles quando “não havia mais que um ouvidor geral, o da cidade, e os dois juízes ordinários”. Os desembargadores “vindo desses reinos com um caixão de livros, e os mil cruzados que V. Majestade cá manda dar de seus ordenados, que hão mister para suas despesas;[....] ao cabo de dois a três anos têm trinta e quarenta mil cruzados”.58 Os ouvidores sofriam acusações semelhantes.

[Era] antigamente costume buscarem-se cidadãos casados desta cidade para ouvidores das fortalezas, e estes eram constrangidos a servir semelhantes cargos, e hoje são requisitados, e vendidos a quem por ele mais dá em público leilão, porque fazem ao vice-rei mercê deles aos seus criados, e do Arcebispo, estes o vendem; pelo que veja V. Majestade como será administrada a justiça por quem comprou a vara dela, que pretende tirar o seu, e ficar rico.59

As acusações sobre a venalidade de ouvidores e corregedores eram correntes em todo o Império. Todavia, o argumento deixa claro um dos principal móveis dessas disputas. Os diversos cargos civis e militares de Goa eram altamente rentáveis. Durante as primeiras décadas após a conquista, eles foram providos nos moradores da Cidade. No entanto, cada vez mais, a coroa passou a enviar ao oriente funcionários nomeados em Portugal. Os vice-reis se aproveitavam desses cargos para remunerar os auxiliares que traziam do reino, mesmo aqueles que, por privilégio, eram de indicação das câmaras, provocando o clima de constantes disputas. A prática de intrigas e delações, estimulada pela coroa, é algo que se consegue acompanhar na documentação de qualquer colônia, desde o século XV. Entretanto, apenas no século XVIII, ela foi enunciada como um princípio

57

SCHWARTZ, Stuart. B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. São Paulo: Perspectiva, 1979. p.210. Essa obra dá uma excelente idéia de como eram tais conflitos no Brasil. 58

APO fasc.1 parte 2. p. 94-5.

59

APO fasc.1 parte 2. p.95-6.

56

administrativo, ou seja, uma política de estado. Numa consulta de 1728, relativa ao Brasil, o Conselho Ultramarino exprimiu com todas as letras “que não era mui conveniente ao serviço de Vossa Majestade que entre os governadores e ministros maiores que com eles servem houvessem grandes amizades por ser mui útil que uns se receiem dos outros”.60 Algumas vezes, essa expectativa da coroa foi cumprida exageradamente à risca. Um magistrado enviado a Macau, em 1733, para fazer uma sindicância nos atos do ouvidor, acabou bombardeando-lhe a casa.

O mesmo sindicante mandou cercar a casa do ouvidor pelos soldados e oficiais e por ter a porta fechada não a querendo abrir, tendo seus moços armados com armas de fogo, mandou o dito sindicante trazer uma bombarda da Fortaleza do Monte a qual fez disparar contra a porta, na qual tão somente fez um buraco ou rombo com a bala, e fazendo-se outro tiro para a parede de trás igualmente fez outro buraco com a bala.61

O sindicante desistiu porque estava fazendo maiores danos nas casas vizinhas do que na do ouvidor. Este acabou se recolhendo na casa do bispo, onde ficou asilado. Em 1788, chegam a São Tomé, no mesmo navio, o Governador do arquipélago e o capitão-mor da ilha. As desavenças entre os dois começaram no exato momento em que entravam em função. Após assumir, o governador mandou que seu secretário desse posse ao capitão. Este recusou-se, dizendo que tal ato cabia à câmara.

O certo é que de palavras passaram às descomposturas dentro da igreja, e o governador rompeu no excesso de dizer ao capitão-mor, que lhe havia de meter o bastão pela boca dentro, ao que o capitão respondeu, que lhe havia de enterrar a espada até a guarnição, o cabido procurou em vão aplacar estas desordens; o governador prendeu o capitão-mor na fortaleza e este saindo dela acompanhado por um sargento, veio ao palácio do governo e ali passou aos últimos excessos dando

60

DHBN, v.40, 1950. p.175. BOXER, C. R. Portuguese society in the tropics; the municipal councils of Goa, Macao, Bahia and Luanda, 1500-1800. Madison and Milwaukee: The University of Wisconsin Press, 1965. p.145. 61

BRAGA, Jack M. (ed.). Collecção de vários factos acontecidos nesta mui nobre Cidade de Macao pelo decurso de annos. In: _____. A voz do passado; redescoberta de um velho manuscrito de Macau. Macau: Instituto Cultural de Macau, 1987. p.50.

57 (segundo disseram) pancadas no governador.62

Passando à Ilha do Príncipe, o mesmo governador indispôs-se com o ouvidor. “Tal era o jogo desses homens, que o governador descompunha o ouvidor, este ao governador, o cônego dizia que tão estúpido era um como outro; o capitão-mor ora se unia ao cônego ora ao ouvidor, [....] enfim desacreditavam-se todos”.63 Episódios como esse estão ocorrendo durante o século XVIII, quando a administração das colônias fora, em boa medida, profissionalizada. Desde as primeiras décadas desse século, vice-reis, governadores e capitães tiveram os seus soldos bastante aumentados e foram proibidos de comerciar. Se nessa época era assim, podemos imaginar como teria sido em períodos mais recuados, quando a administração tinha um caráter mais patrimonialista. Com tais exemplos, queremos dar uma amostra do quadro adverso ao qual pertence a criação das câmaras coloniais e do qual elas participam. Outro detalhe que deve ser levado em conta é que, apesar das Ordenações, o quadro institucional das câmaras coloniais foi bastante diversificado. Elas variaram tanto em sua composição básica, quanto na quantidade de oficiais menores a elas vinculados e no poder de nomeá-los. Muito diverso foi também o grau de autonomia das câmaras em relação aos agentes da coroa. Neste aspecto há uma regra básica, que repete o que ocorria em Portugal. Quanto mais importante a cidade, maiores eram os seus privilégios e autonomias formais. Todavia, maiores ainda eram as dificuldades encontradas para fazer valer tais privilégios. Na prática, as localidades desimportantes e isoladas tiveram uma autonomia bem maior que os principais centros urbanos coloniais. A obtenção, ou perda, dos poderes de cada câmara era decorrência de sua importância e riqueza mas, também, de sua inserção no quadro das intrigas administrativas.

62

MATOS, Raimundo José da Cunha. Corografia histórica das ilhas de São Tomé e Príncipe, Ano Bom e Fernando Pó. São Tomé: Imprensa Nacional, 1916. p.36-7. 63

MATOS, Corografia. p.37. É importante frisar que não estamos diante de uma particularidade portuguesa. Este era o clima da administração de qualquer colônia.

58

O império do diverso: cidades, feitorias, prazos Provavelmente em 1506, foi criada a câmara de Cochim, a mais antiga municipalidade portuguesa do Oriente. A elevação de Santa Cruz de Cochim à categoria de cidade, gozando dos privilégios de Évora, ocorreu em 1527. Os oficiais com direito a voto eram três vereadores, dois juízes, um procurador da cidade e um procurador dos mesteres.64. O exercício dos cargos públicos era privilégio dos moradores casados da cidade, independentemente de serem de origem fidalga ou não. Todavia, Cochim não escapava da interferência dos capitães em seus assuntos e recorria ao vice-rei na tentativa de coibir essas intromissões.

Os vereadores e oficiais da Cidade de Cochim me disseram que os capitães dela, como capitães e pessoas poderosas, se intrometiam de seu poder absoluto no entendimento das causas da vereação e regimento da câmara e mandavam soltar as pessoas que eram presas e mandadas prender por eles, pelo que mal se cumpriam e guardavam seus acordos e mandados, e pelos ditos capitães se intrometerem nas ditas cousas não lhes pertencendo, perdia muito a cidade de seus rendimentos e muitos fidalgos, cavaleiros e homens bons se apartaram de entrar no dito regimento pelas sem-razões que os ditos capitães cometiam.65

As queixas enviadas ao vice-rei acabariam por surtir o efeito desejado, pelo menos formalmente. No início de 1551, D. Duarte de Menezes expediu alvará ordenando “que o capitão que ora é dela e aos que pelo tempo em diante forem, se não intrometam em cousas nenhumas da vereação e regimentos da câmara e cousas da almotaçaria da dita cidade”.66 Também no Oriente, Goa foi um caso todo especial, tanto na composição da sua câmara como na relação desta com os emissários do rei. Como forma de premiar os

64

Essa provável composição da câmara de Cochim foi deduzida de alguns poucos elementos, disponíveis em COCHIM. Livro Tombo de Cochim. In: MATHEW, K. S. Emergence of Cochin in the pre-industrial era. Pondicherry: Pondicherry University, 1990. op. cit. p.1-132. (Transcrito na íntegra pelo Dr. Afzal Ahmad). Para mais detalhes sobre Cochim, ver MUNDADAN, A. M. The town of Cochin and the portuguese. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA INDO-PORTUGUESA; Actas. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1985. p.251-63 65

COCHIM. op. cit. p.71.

66

COCHIM.op. cit. p.71.

59

seus subordinados que participaram da conquista e simultaneamente afirmar a presença portuguesa na Índia, Afonso de Albuquerque inaugurou na cidade uma política de casamentos mistos, entregando as terras deixadas pelos muçulmanos derrotados aos portugueses dispostos a casar com as viúvas, “mouras, mulheres alvas e de bom parecer”.67 Albuquerque foi responsável, também, pela criação da câmara municipal de Goa, que, aparentemente, não passou pelo estágio de vila e já nasceu com o estatuto de cidade. Inicialmente, o senado de Goa era composto por dois juízes ordinários, três vereadores e um procurador68. Afonso de Albuquerque deve ter procurado estabelecer um certo equilíbrio entre os dois tipos básicos de colonizadores que se radicaram na cidade. Duas cadeiras de vereadores foram reservadas aos casados e uma aos fidalgos. Mais tarde, o capitão da cidade foi incluído na estrutura decisória, aparentemente à pedido da própria câmara, com direito a dois votos. Este direito estava consignado no Livro dos Privilégios de Goa.

Que o capitão da fortaleza vá à câmara para juntamente com os oficiais prover no que for necessário e de prol comum, contanto que não vá contra as liberdades e privilégios; e que tenha duas vozes, e que seja obrigado a ir à Câmara cada vez que o requererem, ou ele quiser ir.69

Posteriormente, os vereadores tentaram voltar atrás e excluir o capitão, mas a coroa nunca concordou com a alteração pretendida.70 Outro insucesso da elite camarária goesa foi a tentativa de impedir que os cristãos-novos ascendessem ao grupo dirigente.

67

ALBUQUERQUE, Afonso de. Cartas para el-Rei D. Manuel I. Lisboa: Sá da Costa, 1957.

p.9. 68

A composição inicial do senado de Goa é alvo de uma certa controvérsia. Para Boxer eram dois vereadores, entretanto, para Viriato Albuquerque, seriam seis. A historiografia mais recente, tende a confirmar as conclusões de Boxer, haja vista para a conjuntura de padronização institucional em que essa câmara foi estabelecida. O engano de Albuquerque provavelmente deve-se ao fato de a câmara de Goa ter por modelo a de Lisboa, onde haviam seis vereadores. Porém, o que parece ter sido transposto para a câmara de Goa foram os privilégios e não a composição, bastante mais complexa na de Lisboa. Ver BOXER, C. R. Portuguese society. p.12. e ALBUQUERQUE, Viriato A. C. B. de. O senado de Goa; memória histórico-archeológica. Nova Goa: Imprensa Nacional, 1909. p.3. 69

APO. fasc.2. p.8.

70

APO. fasc.1, parte 1. p.41 e 65; fasc.1, parte 2, p.109.

60 Quanto ao que me pedis que mande na mesa da câmara dessa cidade não entre oficial algum nem mester cristão-novo, pareceu-me boa a lembrança que me nisso fazeis, mas pareceu-me bem não dever passar provisão disso pelo escândalo que se disso seguiria , e porém escrevo ao conde vice-rei que assim o faça cumprir e guardar, e vós deveis ter tento, e resguardo para que não eleja nem admita em cargo semelhante pessoa alguma da dita nação.71

O papel ambíguo dos reis explica-se pelos muitos negócios que, entre eles e os cristãos-novos, havia no oriente. Para não entrar em choque com os interesses dos monarcas, a câmara explica que sua intenção não era proibir que os “homens honrados dessa nação, passassem a esta parte, com os quais V. Majestade contrata”, dos quais a cidade “teve alguns por beneméritos”. As restrições tinham um alvo preciso: os (ex-)judeus que faziam concorrência aos cristão no mercado urbano.

[...] porque passam cá confeiteiros, tendeiros, e outros dessa gente baixa, os quais são a total destruição deste Estado, e de seus moradores, porque como sobejamente afeiçoados à mercancia, e de meninos criados na arte dela, impedem todos os meios e maneiras, por onde os moradores do Estado não possam viver da mercancia, não tendo outro cômodo de que o possam fazer, porque como a V. Majestade é bem notório, só dela vivem e se sustentam.72

Ser a cidade onde residia o vice-rei, ao mesmo tempo que era um privilégio, era a desgraça dos poderes municipais. Goa sofreu do mesmo mal que Lisboa. A câmara e a elite municipal eram detentoras dos mais desejados privilégios municipais sem jamais conseguir que fossem minimamente respeitados. Os vice-reis interferiam constantemente nas próprias eleições dos oficiais da governança, gerando um interminável rol de queixas que atravessou os séculos. Quanto ao de que vos queixais que o vice-rei D. Antaõ tirou alguns dos oficiais que iam nos róis das eleições e meteu outros, e em que me pedis que proveja pelas razões que apontais, eu mando a Dom Luís de Ataíde, que ora envio por meu vice-rei a essas partes, que veja isto e faça o que lhe parecer mais meu serviço, lembrando-se dos inconvenientes que apontais, o tendo com essa cidade a conta que é razão. [....]

71

APO, fasc.1, parte 1. p.59.

72

APO, fasc.1, parte 2, p.14.

61 Escrita em Lisboa a 14 de fevereiro de 1568. — REY.73

Outra fonte de conflito com o estado central ou seu representantes dizia respeito à indicação dos oficiais menores. Câmaras e coroa disputavam o direito de indicá-los. Nesse aspecto, o concelho de Cochim foi particularmente bem sucedido. Todos os cargos menores criados no século XVI eram de indicação da câmara.74 Ocorre que Goa tinha privilégios semelhantes. Todavia, por se tratar da principal cidade do império oriental, seus cargos eram muito rentáveis, o que gerava uma cobiça proporcional à expectativa dos ganhos. Os ofícios de nomeação da câmara eram apropriados pelos vice-reis, quando não pelo próprio rei. Maliciosamente, a câmara de Goa insinuava que o tratamento preferencial dado a Cochim era resultado de subornos pagos aos vice-reis e seus agentes.75 Goa foi a capital de fato do império do oriente, quando não por ser o assento dos vice-reis. Esta situação privilegiada levou a sua elite a alimentar o sonho de realizar cortes na cidade, nos mesmos moldes das cortes portuguesas. A resposta da coroa foi curta e grossa. “O que apontais se deve de ajuntar nessa cidade os procuradores das cidades dessas partes para praticarem o que cumprir ao bem das cousas delas, me parece escusado”.76 A estrutura organizativa dos municípios portugueses, como já dissemos, caracterizaram-se pelo arregionalismo. Nem as outras cidades veriam isso com bons olhos, nem os reis portugueses permitiriam o surgimento deste foco de poder. Ao norte do Golfo Pérsico, Portugal obteve, por tratados assinados com o sultão de Cambaia em 1535 e 1559, a feitoria de Diu e as terras de Baçaim e Damão. Nessas áreas islamizadas do norte da Índia, vigorava um sistema agrário perfeitamente

73

APO. fasc.1, parte 1. p.70.

74

Um terceiro almotacé (1551), um alcaide da cidade (1562), um meirinho para os almotacés (1564), um segundo escrivão dos órfãos (1572), um meirinho da arrecadação do um por cento (1573), um segundo juiz dos órfãos (1575) e um segundo escrivão para a almotaçaria (1581). COCHIM. p.39-40, 458, 62 e 68. 75

APO, fasc.1 parte 2. p.79.

76

APO. fasc.1, parte 1.

62

inteligível e imediatamente tradutível para quem provinha da tradição senhorial ibérica. Não existia na região uma rede de aldeias brâmanes auto-organizadas, como em Goa, mas um sistema de aldeias submetidas a pequenos senhorios tributários. Expulsos esses senhorios turcos, a tendência foi substituí-los por portugueses, aforando-lhes as aldeias indianas como compensação aos mutilados de guerra e pagamento aos serviços militares prestados pela fidalguia portuguesa mandada ao oriente, que, de outra forma, seriam um pesado ônus para o estado.

Uma das coisas que o governador Francisco Barreto desejava muito, era haver às mãos a cidade de Damão, por entender que convinha muito ao Estado da Índia, assim, para segurança das terras de Baçaim, como para aposentar naquela cidade, e suas terras, muitos cavaleiros honrados, e casados pobres, porque se esperava que suas aldeias fossem de mais importância.77

Na Índia, não existiam os vínculos pessoais do feudalismo europeu, mas o vínculo tributário entre a aldeia e seu senhor, como historicamente ocorreu na maior parte da Ásia. Para os aldeãos pouca coisa mudava, eles continuavam a pagar tributos como faziam secularmente, apenas com a mudança dos senhores da aldeia, o que também era normal e freqüente.78 Este sistema se aproximava do regime senhorial ibérico, o que deu ao processo um forte colorido medieval. O caráter medievalizante era reforçado pela obrigação dos foreiros em residir nas fortificações e de manter à sua custa um cavalo de guerra e uma espingarda. A tendência geral, na Índia, foi dividir o aforamento da terra em duas modalidades. As terras urbanas e os lotes agrícolas menores eram dados em arrendamentos perpétuos. Os textos da época chamavam a essas terras, das quais era cedido apenas o domínio útil, terras de fatiota, ou fateusim. Trata-se da enfiteuse propriamente dita. Já em relação às aldeias indianas, no iníco, os aforamentos também

77

Citado de PEREIRA, A. B. de Bragança. História de Damão. Bastorá: Tipografia Rangel,

1939. p.102. 78

Foi esse tipo de organização que a historiografia marxista dos anos 60 e 70 tentou reduzir a uma categoria tipo, o modo-de-produção asiático ou despotismo oriental.

63

foram perpétuos, mas, progressivamente, foram sendo instituídas cláusulas de restrição. Uma carta régia de 1588, estipulava que em “nenhum caso se dêem em fateusim, mas em vidas de uma, e duas até três quando muito, sem em nenhum caso serem mais”. Diferentemente da enfiteuse classicamente adotada na península ibérica, o alvo dos aforamentos de aldeias não era o domínio útil, mas os direitos fiscais da terra.79 As terras assim aforadas ficaram conhecidas com prazos da coroa ou, simplesmente, prazos. Após a restauração, a coroa portuguesa incorporou uma cláusula que obrigava os foreiros a nomear a segunda vida em filhas mulheres, obrigando-as a casar com “portugueses beneméritos nascidos no reino que tiverem servido a S. Majestade os anos do regimento”. A medida causou um impacto muito negativo entre a fidalguia nascida no oriente, que teoricamente ficou excluída das benesses. Apesar das solicitações em contrário, a coroa não revogou essa medida impopular. Em contrapartida, as prazeiras continuaram a preferir no casamento os fidalgos indoportugueses, contornando a proibição e preterindo os reinóis que se queixavam amargamente à metrópole.80 Outra daquelas leis que existiram apenas no papel, sem nunca se tornarem efetivas. Muito se tem discutido sobre a natureza do regime de prazos, se de origem européia ou asiática, se feudal ou senhorial. O historiador italiano Giuseppe Papagno, por exemplo, insiste no caráter feudal dos prazos. Todavia ele parece não levar em conta as peculiaridades do medievo ibérico. O termo feudal é por ele empregado de forma genérica para os sistemas tributários medievais.81 A historiografia mais recente

79

THOMAZ, Luís Felipe Ferreira Reis. Estrutura política e administrativa do Estado da Índia no século XVI. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA INDO-PORTUGUESA; Actas. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1985. p.537. 80

LOBATO, Alexandre. Sobre os prazos da Índia. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA INDO-PORTUGUESA; Actas. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1985. p.465. Para uma exposição mais detalhada sobre o tema, ver. LOBATO, Alexandre. Sobre os prazos da Índia. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1985. 81

PAPAGNO, Giuseppe. Colonialismo e feudalismo; a questão dos prazos da coroa em Moçambique nos finais do século XIX. Porto: A Regra do Jogo, 1980.

64

têm buscado um ponto de equilíbrio, e passou a ver nos prazos das praças do norte da Índia, também adotados na África oriental, uma instituição híbrida, que incorpora e funde elementos europeus a outros locais.

Em sua forma definitiva, o regime de prazos do Norte representa, pois, o cruzamento do regímem senhorial indo-muçulmano (de que herda o quadro espacial - a quadrícula de aldeias e parganas - o caráter fundamental do iqta a retribuição do serviço militar com o encargo de sustentar um cavalo) com o direito português ( de onde provém o sistema de emprazamento em três vidas). Na interseção de um e outro sistema, a assimilação do iqtar ao fronteiro e da concessão à enfiteuse.82

Trata-se, portanto, de uma experiência muito peculiar de colonização em que o móvel das aquisições de terra por parte da coroa portuguesa não foi o estabelecimento de novas feitorias, mas o de expulsar os concorrentes turcos e, simultaneamente, resolver outras questões suscitadas pela conquista e pelo tráfico. Ao contrário das colônias agrícolas de Baçaim e Damão, onde persistiram sólidos municípios fidalgos, as instituições municipais de Diu tiveram uma vida meteórica. Em 1603, foi concedido “aos moradores e povo da fortaleza de Diu que pudesse haver nela vereadores e juizes como há nas mais cidades desse estado [....] e que tenha governo de câmara e vereação chame cidade e que goze dos privilégios que tiverem as outras cidades da Índia”.83 A ascensão municipal de Diu só fez agravar os eternos conflitos que seus moradores tinham com os capitães.

Mostram-se dentro dos muros desta fortaleza grandes ruínas de muitas casas que nela havia, mui nobres e formosas, de dois ou três sobrados, onde antigamente moravam muitos portugueses com suas famílias, os quais, pela má vizinhança que lhes faziam os capitães da fortaleza com seus criados e parentes, largaram as ditas casas e se passaram a viver fora, deixando-as cair e chegar àquele estado.84

82

THOMAZ. Estrura política. p. 538.

83

PEREIRA, A. B. de Bragança.. Os portugueses em Diu. Bastorá: Tipografia Rangel, s.d.,

p.290-1. 84

BOCARRO, António. O livro das plantas de todas as fortalezas, cidades e povoações do Estado da Índia Oriental. Lisboa: Imprensa Nacional, 1992. v.2, p.70.

65

Como sabemos, os conflitos entre câmaras, capitães e vice-reis eram uma constante. E o senado de Diu ganharia, ainda, a inimizade do vice-rei da Índia, que acabaria solicitando a extinção das instituições municipais da cidade. Um dos motivos alegados pelos vice-reis para solicitar a extinção de câmaras era a falta de homens qualificados para ocuparem os cargos municipais. Na ausência desses, não ocorria o rodízio dos vereadores previsto nas Ordenações. Alguns poucos vereadores se eternizavam no cargo, utilizando-o em benefício pessoal. A principal fonte de corrupção apontada era o açambarcamento de gêneros alimentícios, vendidos à população por preços extorsivos. Na correspondência em que foi solicitado o rebaixamento de Diu, o vice-rei pedia, pelos mesmos motivos, o de Malaca. Em 7 de março de 1615, foram expedidas as ordens que poupavam Malaca e extingüiam a câmara de Diu.

Eu el-rei faço saber a vós vice-rei da Índia, que sou informado que resultam muito grandes inconvenientes a meu serviço e ao bem comum, da ereção que está feita da povoação de Diu em cidade; pelo que hei por bem e me praz que o não seja, e que da chegada desta minha provisão a essas partes se não chame mais de cidade, nem como essa tenha câmara e oficiais, nem use, nem goze de rendas, insígnias, graças e preeminências algumas; porque por esta lhe tiro e hei por tiradas, derrogadas e anuladas todas as que tiver, e de que, como cidade, por qualquer via usava e podia usar; e revogo a carta ou provisão por que lhe foi concedida a dita instituição, nome e título; e que assim e da maneira que se governava antes dela, se governe e administre a dita povoação daqui em diante [....].85

Apesar do rebaixamento, os moradores de Diu continuaram a denominá-la cidade, como se nada tivesse ocorrido. Diu voltou, de fato, a ser governada como o tinha sido antes de elevada a cidade, ou seja, pela Santa Casa da Misericórdia. Á partir do século XVI, as Misericórdias multiplicam-se, quase que espontaneamente, não só em Portugal como no além-mar. Onde quer que alcançasse a colonização portuguesa, era fundada uma instituição deste tipo. Charles R. Boxer, um dos principais estudiosos do Império, afirmou que “a Câmara e a Misericórdia podem ser descritas, apenas com ligeiro exagero, como os pilares gêmeos da sociedade colonial

85

PEREIRA, Os portugueses em Diu. p.291-2.

66

portuguesa desde o Maranhão até Macau”.86 No oriente português, as duas instituições estavam de tal modo vinculadas que, em algumas descrições, não eram feitas distinções entre câmara e misericórdia. O autor desconhecido de uma relação do século XVII anotou que diversas cidades dotadas de câmaras municipais, como Malaca, Colombo, Cochim, Baçaim ou Damão, governavam-se “com o povo em forma de Cidade, com a Casa da Misericórdia e Hospital”. No entanto, ele usou exatamente a mesma expressão para outras que apenas possuíam uma irmandade da Misericórdia, como Moçambique, Mascate, Ormuz, Chaul e Cananor.87 Confusão plenamente justificada, pois as Misericórdias desempenharam o papel de administrar a vida urbana em muitas feitorias que não obtiveram estatuto municipal. Nessas localidades, elas assumem praticamente todas as funções desempenhadas pelas câmaras, inclusive a de eleger regularmente os almotacés, além de tomarem para si o encargo de encaminhar queixas ao rei sobre os desmandos e monopólios dos capitães.88 Até 1835, a Misericórdia de Diu escolhia dois juízes almotacés trimestrais, um responsável pela limpeza da cidade e outro que atendia o bazar e fiscalizava os pesos e medidas.89 Segundo o cronista António Bocarro, ocorria o mesmo em Moçambique.

86

BOXER, C. R. O império colonial português. 1415-1825. Lisboa: Edições 70, 1981. p.263.

87

RELAÇÃO DAS PLANTAS, & DEZCRIPSÕES DE TODAS AS FORTALEZAS, CIDADES, E POVOAÇÕES QUE OS PORTUGUEZES TEM NO ESTADO DA INDIA ORIENTAL; manuscrito do século XVIII. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1936. p.11,20,21,29,35,42 e 44. Não entraremos no tema misericórdias coloniais, o que exigiria uma outra tese. Contudo deixamos anotada alguma bibliografia disponível. COSTA, José Pereira da. Notas sobre o Hospital e a Misericórdia do Funchal. Arquivo Histórico da Madeira. v.1964-66. p.94-125. BRÁSIO, António. As misericórdias de Angola. STUDIA, n.4. jul.1959. p.106-49. RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos; a Santa Casa da Misericórdia da Bahia. 1550-1755. Brasília: Ed. UNB, 1981. MARTINS, J. F. Ferreira. História da Misericórdia de Goa. Nova Goa: 1910-14. 3.v. MOURA, J. Herculano de. A Misericórdia de Diu. O ORIENTE PORTUGUÊS. v.1, 1904. p.44-57. 88

Ver FERRAZ, Maria de Lourdes Freitas. Documentação histórica Moçambicana. Lisboa: Junta de investigação do Ultramar, 1973. v.1, p.145. 89

MOURA. A Misericórdia. p.55-6.

67 Além destas igrejas há na dita povoação outra chamada Misericórdia, que os casados sustentam, com um capelão e toda a mais fábrica, onde exercitam as obras da misericórdia com muita caridade. Nesta casa se ajuntam os moradores casados desta povoação para tratarem em algum particular do bem comum, porque como não têm casa de vereação (porque em tão pequeno povo parece-lhes não é necessária), na dita casa se ajuntam, ou para consultarem o que devem fazer ou para avisarem ao vice-rei se a matéria o pede. E ali se fazem os almotacés.90

Em Moçambique, não existiu um único município antes da segunda metade do século XVIII, quando a região transformou-se em uma capitania autônoma, separada do vice-reino da Índia. Na região da Zambézia, a coroa utilizou o sistema adotado na Índia, de prazos transmitidos matrilinearmente. No entanto, seja pelo tamanho desmedido desses prazos, seja pelas condições sociais completamente diversas das de Baçaim e Damão, os resultados foram muito diferentes. Diversas prazeiras tornaram-se verdadeiras rainhas africanas, à frente de seus exércitos particulares. O caso mais conhecido foi o de Dona Inês Cardoso, cujas posses, a se julgar pelas de sua sobrinha e herdeira, eram constituídas por dois prazos, o de Gorongosa, “com 18 ou 20 dias de comprimento, e outros tantos de largura”, e o de Chiringoma, que tinha “de comprimento 20 dias, e outros tantos de largura”, além de um plantel de mais de 600 escravos.91 D. Inês casou por procuração com um ex-governador de Macau. Acusando-o de impotente, resolveu separar-se dele e tomar-lhe as terras dadas em dote. O fidalgo recorreu à justiça da ilha de Moçambique e teve ganho de causa, recebendo, portanto, as terras dotais. Isso despertou a fúria da prazeira, que decretou a morte do marido, ordenando que sua cabeça fosse decepada e espetada num palanque para exibição pública. Desceu o Zambeze à frente de seu exército particular, deixando um rastro de destruição em seu caminho. Promoveu uma aparatosa execução do funcionário português que havia dado posse das terras a seu marido. Invadiu o Luabo onde queimou as casas. O marido foi ferido e recebeu socorro de uma família portuguesa. D. Inês

90

BOCARRO. O livro das plantas. v.2, p.15.

91

MIRANDA, António Pinto de. Memória sobre a costa da África. (circa 1766) In: ANDRADE, António Alberto de. Relações de Moçambique setecentista. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1955. p. 291.

68

mandou executar os membros dessa família. Acampou próximo a Sena, onde a população amedrontada começou a organizar a defesa contra uma invasão iminente. D. Inês mandou avisar que não tivessem medo, que ela apenas estava no encalço do marido. Ao fim, como punição pelos seus atos, o Governador Martinho de Mello e Castro ordenou a sua prisão e a perda das terras.92 Episódios como esse, permitem entender porque a coroa foi tão relutante em criar uma estrutura municipal em Moçambique. A um pedido feito em 1759, o Conselho Ultramarino respondeu que “é notório não haver meios para se estabelecer e conservar uma câmara com aquela formalidade que se pratica neste Reino, o que fica suprido conservando-se no estilo em que se acha”.93 Apenas em 1763-64, foram criadas municipalidades nesta Colônia. Entretanto, já em 1776, o Capitão-General D. Diogo de Souza já pedia à coroa a extinção da recém criadas câmaras.94 No extremo oriente, os portugueses não conquistaram nenhuma posse territorial mas criaram algumas feitorias municipalizadas. A primeira delas foi Malaca, fundada por Afonso de Albuquerque, em 1511. A feitoria de Amboino, criada em 1575, foi elevada a cidade em 1600. Sobre a vida municipal dessas cidades, situadas no arquipélago indonésio, pouco se sabe.95 Ambas foram perdidas no século XVII, nas guerras contra os holandeses. Em Timor, que continuou sobre o domínio português, não foram estabelecidas vilas antes do século XIX. Restou a Cidade do Santo Nome de Deus de Macau como o único estabelecimento português do Extremo Oriente. Esta localidade, foi fundada por

92

ARQUIVO DAS COLÓNIAS, v.4, p.20. Referências ao episódio são freqüentes na documentação moçambicana. Uma boa descrição aparece em LOBATO, Alexandre. Evolução administrativa e económica de Moçambique. 1752-1763. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1957. p.223-4. 93

SILVA, José Rui de Oliveira Pegado e. A primeira carta orgânica de Moçambique. 1761. Lisboa: Universidade de Lisboa, 1957. p.110-1. 94

HOPPE, Fritz. A África Oriental Portuguesa no tempo do marquês de Pombal, 1750-1777. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1970. p.175. 95

Para Amboino, ver JACOBS, Hubert. s.j. The portuguese town of Ambon; 1576-1605. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA INDO-PORTUGUESA; Actas. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1985. p.601-14.

69

mercadores portugueses e, só depois, reconhecida pela coroa, que a elevou à categoria de cidade em 1584. O imperador chinês também só ficou sabendo da existência da cidade muitas décadas após a sua fundação, quando reconheceu uma situação de fato. A câmara começou a funcionar em 1585. Contrariando o padrão da época, as sessões da câmara de Macau eram abertas aos cidadãos, da mesma forma que os antigos concelhos. Era comum que fossem eleitas comissões para ajudar os oficiais a porem em prática as decisões da câmara.96 Por décadas, a cidade geriu-se praticamente sozinha. Nem ao menos existia um capitão estabelecido em Macau. O poder militar nominal pertencia ao capitão da frota do extremo oriente, que o exercia apenas enquanto estava na cidade. Assim, o Senado exercia todos os poderes civis e, muitas vezes, os militares. Em seus primeiros tempos, Macau foi, na prática, uma república comercial associada à Portugal. A situação só começa a mudar nas primeiras décadas do século XVII, quando os Filipes passam a nomear Governadores para a colônia. No entanto, os poderes deste oficiais eram basicamente militares e não lhes competia intervir na administração civil, que continuou a cargo da câmara. Mesmo assim, os tumultos não se fizeram esperar. A elite macaense conseguiu dar sumiço no primeiro governador.

Consta por uma Carta passada pelo Desembargador Sebastião Soares Paes, Sindicante nesta Cidade em nome Sua Majestade pela qual há o mesmo Senhor perdoado a todos os culpados no levantamento que os moradores desta mesma Cidade fizeram contra o Governador Francisco de Mascarenhas no ano de 1623 e isto em atenção a estarem os mesmos moradores obedientes as ordens de Sua Majestade, como também pelo donativo de mil picos do Cobre pagos nestes ano para a Fazenda Real. Este Governador como era o primeiro que vinha a esta Cidade portou-se tão mal que além dos seus roubos, de que os moradores se lhes não dava porque eram bastantes ricos - entrou a querer-lhes forçar as mulheres e filhas, e tanto que com medo dele nem à missa iam: os moradores irritados se levantarão contra ele - Uns dizem que o mataram, mas eu vi em um manuscrito antigo, mas tão dilacerado que me não foi possível dar-lhe boa inteligência para o copiar, porém quantas regras dele se deixava ler se colige que este Governador fugira de noite para um navio que estava em franquia, o que é bem certo é que ele não foi visto em parte mais alguma nem em Goa, nem em outra qualquer parte da Costa da Índia. Os moradores sempre ficaram culpados no levantamento, e não morte; sem embargo da razão que tinham. Os Vinte

96

Ver como exemplos MACAU. Atas da câmara. ARQUIVOS DE MACAU. Macau: Imprensa Oficial de Macau. Primeira série, v.3, n.3, abr.1931. p.237. e Terceira série, v.1, n.4 maio1964. p.205.

70 e nove que tinham sido Cabeças estiveram condenados em Goa à pena última, mas as suas riquezas fizeram não só que se lhes demorassem o suplício por dois anos tempo suficiente para lhes vir o perdão mas também lhe alcançarão como dito fica. No Archivo do Senado consta este fato, e existe a Carta de Perdão.97

A coroa simplesmente não tinha força nem interesse em levar às últimas conseqüências um atrito com o senado macaense. Desde então, os conflitos com os emissários da coroa não mais cessaram. Em 1710, o governador João Teixeira Pinho rompeu com o concelho e tentou depor os seus oficiais, convocando novas eleições. O incidente transformou-se numa guerra aberta com o senado, chegando o governador a bombardear a casa da câmara desde uma das fortalezas da cidade.98 À medida em que a cidade entrou em declínio econômico, cresceu o poder da coroa sobre os moradores e a câmara. Durante o século XVIII, os governadores eram figuras todo-poderosas que se imiscuíam em todos os assuntos da cidade. Ocorre, que muitos deles não conseguiam entender a delicada posição da cidade, que vivia numa condição de dupla soberania, e desafiavam os poderes dos mandarins chineses. Nesses casos, o mandarinato chinês utilizava um método simples e sábio. Todos os chineses eram retirados da cidade e o abastecimento suspenso, até que os portugueses resolvessem negociar. Os mandarins simplesmente não reconheciam os governadores. Todas as negociações eram feitas com o Leal Senado de Macau, considerado como o único interlocutor válido, e com o qual a China tinha assinado diversos tratados. Para os chineses, Portugal era uma longínqüa abstração. De fato, existia Macau. Para resolver os problemas causados pelos governadores a cidade acabava tendo que pagar pesados subornos aos mandarins.99

97

BRAGA, Collecção. p.20.

98

BRAGA, Collecção. p.30 e ss.

99

Muitos desses incidentes ficaram registrados pelos lados envolvidos. Os ‘acadêmicos’ chineses do século XVIII escreveram algumas teses sobre Macau. Ver, por exemplo, TCHEONG-ÜLÂM & IAN-KUONG-IÂM. Ou-mum Kei-leok; monografia de Macau. Macau: Quinzena de Macau, 1979.

71

Em (quase) tudo semelhantes ao Reino Toda a diversidade do oriente contrasta com o universo atlântico, onde a colonização se deu sob um arcabouço institucional completamente diferente. Como já indicamos, nas ilhas atlânticas, no Brasil e em Angola, a colonização inicial se caracterizou pela concessão de senhorios territoriais, distribuição de sesmarias e criação de instituições municipais.100 O primeiro arquipélago a ser colonizado sob esse tripé institucional foi o da Madeira. Contudo, em seu primeiro momento, a criação dos senhorios madeirenses pode ser considerada oficiosa. O Infante D. Henrique, mentor e condutor do processo, cedeu o arquipélago a três de seus escudeiros, extrapolando os poderes de que era detentor. João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira dividiram a ilha da Madeira, e Porto Santo foi entregue ao italiano Bartolomeu Perestrelo. A criação de fato destas três primeiras capitanias seria oficializada apenas após a morte de D. João I. Em 1433, o sucessor, D. Duarte, incorporou a arquipélago na casa senhorial do infante seu irmão e nos anos seguintes confirmou as doações de capitanias anteriormente feitas. Note-se que o titular das ilhas era o infante D. Henrique, os capitães que as receberam hereditariamente eram, na realidade, sub-donatários, situação que caracterizou a primeira fase da distribuição de capitanias coloniais. Começava, assim, o que a historiografia portuguesa convencionou chamar de ciclo dos grandes donatários, por serem os primeiros senhores das ilhas todos irmãos ou sobrinhos dos reis da dinastia de Aviz. O ciclo findou quando o último grande donatário tornou-se ele próprio rei de Portugal, reincorporando as ilhas aos bens da coroa. Tratava-se do Duque de Beja, que

100

A questão das capitanias, que já ocupou um espaço importante na historiografia brasileira, acabou sendo deixada de lado. Todavia, o que mais chamava a atenção dos estudiosos eram questões doutrinárias sobre o próprio instituto das capitanias hereditárias. Muito papel foi gasto na “controvérsia estéril”, segundo Francis Dutra, entre os que as consideravam uma instituição ‘feudal’ e os que defendiam trata-se de um instituto ‘capitalistas’. Atualmente, o centro dos estudos sobre as capitanias deslocou-se para as ilhas atlânticas, principalmente a Madeira. Ver uma síntese sobre a questão doutrinária do instituto das capitanias hereditárias em SALDANHA, António Vasconcelos de. As capitanias; o regime senhorial na expansão ultramarina portuguesa. Funchal: Secretaria Regional do Turismo; Centro de Estudos de História do Atlântico, 1992. p.13-31. Especificamente para as ilhas, ver VIEIRA, Alberto. Portugal y las islas del Atlántico. Madrid: Editorial Mapfre, 1992.

72

recebeu os arquipélagos atlânticos por morte do duque de Viseu, assassinado por D. João II, cunhado de ambos. Com a morte do rei, sem deixar descendência, o duque recebeu a coroa, em 1495, como D. Manoel I. Foram os primeiros lances de sorte deste rei, que ficaria conhecido como ‘o Venturoso’. Durante o século XV, a Madeira foi, portanto, um domínio da casa senhorial dos duques de Viseu: o Infante D. Henrique e seus sucessores. Foram esses representantes da mais alta nobiliarquia portuguesa, e não o segmento reinante da casa de Aviz, os responsáveis diretos pela criação e administração da maior parte das capitanias das ilhas. Era a Casa de Viseu que recebia os tributos, bem como nomeava os funcionários fiscais e judiciários. A criação das primeiras instituições municipais também foi da responsabilidade desses grandes-donatários. Segundo alguns comentadores, a colonização das ilhas foi conduzida pelo Infante D. Henrique à revelia de seu pai, o rei D. João I.

Certo que outro exemplo lhe deu seu padre, poucos dias há, dando os maninhos de lavra, junto de Corruche, a Lambert de Orches, Alemão, que os rompesse e povoasse com obrigação de trazer a eles moradores estrangeiros d’Alemanha; e não mandou seus vassalos passar além-mar romper terras que Deus deu para pasto dos brutos.101

O texto do cronista João de Barros, ao mesmo tempo que manifesta a oposição do rei aos intentos de colonização ultramarina do Infante, ilustra que, em Portugal continental ou nas ilhas atlânticas, foi adotado um mesmo processo de expansão territorial e agrícola. Os senhorios portugueses e as capitanias hereditárias coloniais eram o mesmo instrumento de transferência dos direitos régios à nobreza portuguesa, ou a alguns estrangeiros, com a condição de torná-las habitadas e economicamente produtivas. Um detalhe a considerar, diz respeito à nomenclatura relativa a esse tipo de concessão. Na tradição portuguesa continental, os termos utilizados foram os de Senhor

101

JOÃO DE BARROS, Ásia, dec.1, livro.1, cap.4. Citado de PERES, Damião. A madeira sob os donatários. séc. XV e XVI. Funchal: Officinas do Tempo, 1914. p.18.

73

e Senhorio. Os termos Capitão e Capitania, para designar o donatário e a doação recebida, parecem ter assumido tal sentido justamente no processo de colonização da Madeira, para dali irradiar-se para as demais conquistas portuguesas. A maior probabilidade é que isso tenha, de fato, ocorrido por se tratar de um sub-senhorio. Sendo o Infante o donatário das ilhas, ele manteve para si o título de senhor. O termo capitão, fora de um contexto militar mais imediato em que costumava ser empregado, era usado um tanto vagamente para indicar cargos de chefia. No caso, os de prepostos ou de chefes a serviço de um grande senhor. Uma vez que o processo da Madeira serviu de modelo às restantes possessões ultramarinas, o título de capitão passou a indicar os donatários coloniais por contaminação semântica. Resta dizer que, durante a expansão ultramarina, o instituto senhorial estava em pleno uso no reino. Tradicionalmente, os reis portugueses faziam concessões de grandes senhorios aos mais importantes membros da família real. Essas doações comporiam o que, mais tarde, ficou conhecido como as casas da Rainha e do Infantado. A grande nobreza de Portugal, como os integrantes da casa de Bragança, era detentora de imensos senhorios. Ao lado desses senhorios maiores, conviviam dezenas de outros de menor porte, controlados tanto pela nobreza como por ordens religiosas, bispados, ou mesmo conventos. Cidades importantes, como o Porto ou Braga, incluíam-se nos senhorios dos respectivos bispados. Todas as cidades submetidas a algum senhor, do ponto de vista institucional, viviam situações semelhantes àquelas situadas nas capitanias hereditária coloniais. O sistema de capitanias coloniais, testado e aprovado na Madeira, estendeuse aos demais arquipélagos atlânticos. O passo seguinte foi dado nos Açores. A da ilha Terceira foi cedida a Jacome de Bruges, em 1450, e as do Faial e do Pico, a Jos D’Utra, em 1468. O sistema de capitanias teve um grande incremento a partir de 1474. Neste ano, a ilha de São Miguel foi incorporada ao senhorio de Rui Gonçalves da Câmara, donatário do Funchal, e imediatamente comprada por João Vaz Corte Real. A ilha de Santa Maria foi entregue a João Soares de Souza. Ainda no mesmo ano, com a morte de Jacome de Bruges, a ilha Terceira foi dividida em duas capitanias, a da Praia, dada a

74

Álvaro Martins e a de Angra, a João Vaz Corte Real. Este último também recebeu, em 1483, a ilha de São Jorge. Ressalve-se que, desde 1460, quase todas essas ilhas integravam o senhorio do Infante D. Henrique e, depois, o de seus sucessores, os grandes-donatários da casa de Aviz. Assim como na Madeira, os capitães açoreanos eram sub-donatários, pois receberam os seus senhorios do Infante e seus sucessores e não diretamente da coroa. Mais ao sul, teve o mesmo destino o arquipélago de Cabo Verde (as ilhas de São Tiago, Fogo, São Nicolau, Brava, Boavista, Maio e Santo Antão), que começou a ser povoado por volta de 1462. Na segunda metade do século XV, a ilha de São Tiago, foi dividida em duas capitanias. Uma dada a Antônio de Noli, Ribeira Grande, e a outra a Diogo Afonso, Alcatrazes. As demais ilhas eram utilizadas como pastos para cabras, e sua ocupação deu-se lentamente, ao longo do século XVI. As condições climáticas adversas, pouco propícias ao desenvolvimento da agricultura, levou os moradores a um total envolvimento com o tráfico de escravos. Na seqüência, o último arquipélago a ser concedido em capitania foi o de São Tomé, situado exatamente sob a linha equatorial. Era composto por quatro ilhas, Fernando Pó, São Tomé, Príncipe e Ano Bom, sendo que apenas a primeira era povoada. A experiência de colonização portuguesa foi desenvolvida apenas nas ilhas centrais, e Fernando Pó e Ano Bom acabaram sendo transferidas à Espanha. Durante o século XIV, a ilha de São Tomé passou pelas mãos de três donatários. O primeiro, João Paiva, recebeu a capitania em 1485 e deu início ao processo de colonização. Após sua morte, a ilha foi dada a João Pereira, cuja ação é praticamente desconhecida. Melhor documentado é o período de Álvaro Caminha, que recebeu carta de doação em 24 de julho de 1493. Em São Tomé, os portugueses ensaiam pela primeira vez um projeto de construção de uma população. É algo bastante diferente da experiência levada a efeito nos arquipélagos da Madeira e dos Açores. O clima temperado das ilhas mais ao norte favoreceu a transferência pura e simples de populações européias, portuguesas ou não. Com Álvaro Caminha, a coroa portuguesa realizou em São Tomé uma das mais

75

espantosas e cruéis experiências coloniais de que se tem notícia. O editor Valentim Fernandes menciona o feito em seu célebre manuscrito de 1506.

E assim mandou o dito rei [D. João II] com este capitão 2000 meninos de 8 anos para baixo, que tomou aos castelhanos e os mandou batizar, dos quais morreram muitos, porém pelo presente serão vivos, entre machos e fêmeas, bem 600.102

Os dois mil meninos e meninas mandados a São Tomé eram os filhos dos judeus que se refugiaram em Portugal após sua expulsão de Castela, em 1492. Mais alguns anos, e também seriam expulsos de Portugal, onde foram obrigados a deixarem os seus filhos em idade considerada apta de serem cristianizados. As crianças foram entregue aos cuidados de Álvaro Caminha que, a contragosto, levou-os para ‘povoar’ São Tomé. A dureza da viagem, a inclemência do clima santomense e as dificuldades enfrentadas no início do processo de colonização encarregaram-se de reduzir drasticamente o contigente inicial de crianças. Aos mulatos descendentes dos meninos judeus e das escravas foi dado o privilégio de ocuparem os cargos da câmara de São Tomé.

Outrossim havemos por bem e nos praz que os mulatos moradores da dita ilha, que forem homens de bem e casados e pertencentes para isto, entrem nos ofícios do Concelho, segundo seus merecimentos, como nos é dito que sempre andaram, sem embargo de capitão o vedar, ao qual o notificamos por esta [....]. Lisboa, 7 de agosto de 1528.103

Deixando as ilhas atlânticas, uma segunda fase de doação de capitanias hereditárias teve inicio em 1534, quando o mesmo conjunto de instituições lá utilizados passou a ser aplicado no Brasil. Nos arquipélagos, as cartas de doação eram bastante diversificadas, quanto ao poder de jurisdição dos capitães. Já, nas capitanias brasileiras, ocorreria uma padronização. Essa mesma modalidade de carta foi utilizada em Angola e

102

FERNANDES, Valentim. O manuscrito de Valentim Fernandes. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1940. p.122. 103

ATT - Chancelaria de D. João III, livro 27, f.2v. transcrito em BRÁSIO, António (org.). Monumenta missionária africana. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1952. v.1. pp.500-1.

76

na tentativa frustrada de colonizar a Serra Leoa.104 A doação de capitanias hereditárias na África e na América foi marcada mais pelos fracassos do que pelos sucessos. Pouco depois de receber o régio benefício, faliram os dois donatários africanos e a maioria dos brasileiros, retornando suas capitanias à coroa. Apesar desses insucessos, a coroa continuou a criar novos senhorios coloniais. Durante o século XVII, foram dadas nada menos que 11 novas donatárias no Brasil. A última delas foi a do Xingu, criada em 1685. A instituição das capitanias perdurou até meados do século XVIII, quando as que restavam foram incorporadas à coroa.105 Além de ter passado a administrar diretamente algumas capitanias hereditárias, que retornaram ao seu domínio, a coroa conduziu a criação de diversas novas capitanias régias, principalmente durante o período filipino. Na prática, o que ocorreu na região atlântica do império foi um processo misto de colonização, no qual conviveram, lado a lado, donatárias e capitanias administradas diretamente pela coroa, através de seus agentes locais. Para o que nos interessa, vamos dar pouca ênfase a essas diferenças. Os conflitos de jurisdição que se estabeleceram entre as câmaras municipais e os capitães donatários, ou com seus loco-tenentes e ouvidores, ou entre elas e os capitães-governadores e letrados da coroa, eram semelhantes. Na Madeira, as câmaras do Funchal e do Machico, criadas em 1451, passam por um período de completa submissão ao Infante D. Henrique e seus capitães.106 Após a morte do Infante, essas câmaras enviaram um procurador ao continente, para solicitar ao novo senhor diversas alterações no foral da Madeira. Em 1461, o infante D. Fernando deu um novo regimento às ilhas, alterando em muitos pontos o disposto anteriormente por seu tio. Na grande maioria dos casos, ele atendeu aos pedidos da elite camarária da

104

RAU, Virgínia. Uma tentativa de colonização da Serra Leoa no século XVII. LAS CIENCIAS, Madrid, ano.11, n.1, s.d. p.607-31. 105

106

Na mesma época foram extintos os senhorios em Portugal.

Funchal foi elevada a cidade em 1508. No Anexo 1, encontra-se uma relação das fundações de vilas e cidades no Império Colonial Português, desde o século XV, até princípios do século XIX.

77

ilha, em detrimento das pretensões dos capitães-donatários.107 Outro regimento, dado em 1466, completaria a recodificação das relações dos moradores da ilha com o novo grande-donatário, interferindo, em muito, nos poderes dos capitães. Na prática, o grande-donatário transferiu a jurisdição de primeira instância, no cível e no crime, para os juízes ordinários das câmaras, que passaram a poder atuar em todos os casos de justiça. Em reforço do poder da câmara, os capitães foram proibidos de mandar soltar prisioneiros feitos pela justiça concelhia.108 As datas da criação da maioria dos primeiros concelhos açoreanos é desconhecida. É bastante provável que o primeiro município do arquipélago tenha sido o da vila do Porto, na ilha de Santa Maria. Na Ilha Terceira, a Praia e Angra, e em São Miguel, a Vila Franca do Campo, devem ter sido elevadas a vila na década de 1470. A câmara de Ponta Delgada, também em São Miguel, foi criada em 1499. A maior parte dos outros concelhos açoreanos é das três primeiras décadas do século XVI. Completando o panorama institucional, Angra foi elevada à categoria de cidade em 1534 e Ponta Delgada, em 1546. Da mesma forma que na Madeira, os primeiros anos dos concelhos açorianos foram marcados pela intromissão dos donatários e seus agentes, mas, aos poucos, as câmaras foram obtendo maior autonomia. Um alvará do rei, de 8 de maio de 1521, enviado a Vila Franca, mas extensivo a todas as câmaras da ilha, consignou uma pequena vitória na guerra contra a interferência dos capitães e seus agentes.

Juízes, vereadores e povo do concelho de Vila Franca de São Miguel. Nós El-Rei vos enviamos muito saudar; nós soubemos ora como o capitão dessa ilha vai estar nas câmaras dessas vilas dela sendo contra nossas defesas, que nenhuns capitães não vão às câmaras por que nós o não havemos por nosso serviço o que mandamos que logo lhes notifiqueis da nossa parte que a certo tempo nos envie quaisquer provisões nossas que tiver para ir à dita câmara e posto que tenha as ditas provisões, havemos que quando a elas for não tenha mais que uma só voz como qualquer oficiais das ditas

107

Apontamentos e capítulos do infante Dom Fernando para esta ilha (1461). Citado de FERRAZ, Maria de Lourdes de Freitas. A ilha da Madeira sob domínio da casa senhorial do Infante D. Henrique e seus descendentes. Funchal: Secretaria Regional do Turismo e Cultura, 1986. pp.23-6. 108

FERRAZ, A ilha da Madeira. p.28.

78 vilas.109

Ao mesmo tempo em que as câmaras escapavam da intromissão dos donatários, a coroa ia tornando mais efetiva a sua presença. Em 1503, foi criada a Corregedoria Geral das Ilhas.110 Aos poucos, a coroa foi se apropriando, não sem resistência, do direito dos capitães exercerem a justiça e controlarem as atividades dos concelhos, com o que eles passaram a ser mais uma espécie de beneficiários econômicos do que detentores de um poder de jurisdição, como os clássicos senhores da Península. O complexo jogo de poder que se estabelece entre os corregedores do rei, os capitães e as câmaras era capaz de transformar a simples eleição de um almotacé numa queda de braços.

Em os nove dias do mês de abril do ano de mil e seiscentos e três anos nesta vila do Porto desta ilha de Santa Maria na casa da Câmara dela estando aí os vereadores André de Souza e Gaspar Curvelo e o juiz ordinário Diogo Velho e procurador do concelho Vicente Pires para efeito de elegerem um almotacé que servisse em nome de João Soares de Souza por ser escuso e estando assim juntos aí apareceu o Sr. Brás Soares de Souza capitão e governador da justiça desta ilha e por ele foi dito que era informado de que os ditos oficiais da Câmara queriam fazer um almotacé que servisse estes três meses seguintes e que ele havia de estar presente e tomar os votos e fazer a dita eleição por estar nessa posse ele e seus antepassados e assim estar mandado por sentença da Relação e que queria fazer o dito almotacé que estivessem com ele presentes e pelos ditos oficiais foi dito que não podiam consentir que o dito capitão estivesse presente ao fazer da dita eleição por assim lhes ser mandado do regimento do dito corregedor [....] os quais provimentos eu escrivão lhe li logo de verbo ad verbum e lhe requereram que se fosse da câmara e lhes deixasse fazer a dita eleição e o dito Capitão lhe respondeu que havia de fazer com eles e os ditos oficiais se alevantaram da mesa para saírem para fora e o dito Capitão lhes mandou [....] com pena de cincoenta cruzados e dois anos de degredo para um dos lugares de África estivessem presentes ao fazer da dita eleição e se não fossem e pelos ditos oficiais da Câmara foi dito que apelavam e o dito Capitão lhes não recebeu apelação de que agravaram e lhe não recebeu agravo protestaram de tirar instrumento de agravo para o juiz [....] deste reino.111

109

AA. v.4. p.42

110

SALDANHA. As capitanias, p.250.

111

VILA DO PORTO. Atas da câmara. AA. v.15. p.353-4. Ver outro conflito entre câmara e donatário, devido à presença do mesmo nas eleições dos almotacés, em DRUMMOND, Francisco Ferreira. Annaes da Ilha Terceira. Angra do Heroismo: Câmara Municipal, 1850. v.1, p.104-5 e 115.

79

Depois de todo este jogo de cena, os oficiais da vila fizeram a eleição na presença do capitão, o qual em nada interferiu. Apenas queria fazer uma demonstração de poder. Na segunda fase do regime das donatárias, que corresponde à colonização do Brasil e de Angola, a criação do município não foi uma opção deixada em aberto, como ocorreu nas ilhas atlânticas. A criação de vilas era uma das cláusulas das cartas de doação.

E outrossim me praz que o dito Capitão e Governador e todos seus sucessores possam por si fazer vilas todas e quaisquer povoações que se na dita Terra fizer e lhe a eles parecer que o devem ser, as quais se chamarão vilas o terão termo e Jurisdição Liberdades e insígnias de vilas segundo o foro e costume de meus reinos, e isto porém se entenderá que poderão fazer todas as vilas que quiserem das povoações que estiveram ao longo da costa da dita Terra e dos Rios que se navegarem porque por dentro da terra firme pelo sertão se não poderão fazer de menos espaço de seis léguas de uma a outra para que possam ficar ao menos três léguas de terra de termo a cada uma das ditas vilas e ao tempo que assim fizerem as ditas vilas ou cada uma delas lhe limitarão e assinalarão logo termo para elas, e depois não poderão da terra que assim tiverem dado por termo fazer mais outra vila sem minha licença.112

Apesar de a redação sugerir que a fundação de vilas era uma faculdade concedida aos donatários, a coroa entendia como obrigatoriedade fundar-se pelo menos uma. As disputas pelo poder de jurisdição começam no exato momento da criação das primeiras vilas brasileiras. A revolta dos moradores de Ilhéus contra Vasco Fernandes Coutinho é um dos marco iniciais da convivência difícil entre essas câmaras e os donatários. Em carta ao Rei, Coutinho queixava-se de os moradores terem-no desobedecido, afirmando que “no sertão eu não tinha que entender pois a câmara tinha este poder”.113 Ou seja, os seus direitos de jurisdição foram frontalmente contestados. Em teoria, os capitães hereditários do Brasil eram até mais poderosos do que

112

Ver, como exemplo, a de carta de doação de duas capitanias a João de Barros e Aires da Cunha. SALDANHAS, As capitanias, p.303. A carta de doação da capitania de Angola, a Paulo Dias de Novais, segue exatamente o padrão daquelas dadas no Brasil. Ver AA, v.2. n.13, out.1936. p.453. 113

Carta de Vasco Fernandes Coutinho, de 22 de maio de 1558. In: HISTÓRIA DA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA DO BRASIL; Edição monumental comemorativa do primeiro centenário da independência do Brasil. Porto, Litografia Nacional, 1921-4. v.3. p.382.

80

os das ilhas. Eles podiam “por si e seu ouvidor estar à eleição dos juízes e oficiais alimpar e apurar as pautas e passar outras de confirmação aos ditos juízes e oficiais”.114 Além do mais, tinham o privilégio de dispensa da correição do rei, caso até então raro. Em Portugal, apenas os senhorios das rainhas e dos infantes costumavam receber este tipo de dispensa. Ao contrário do que ocorria nas ilhas, aos corregedores do rei não era permitido interferir com as justiças dos donatários do Brasil. Na prática, esses tiveram seus privilégios quebrados sempre que a coroa achou necessário. Assim, eles ficariam imprensados entre as instituições judiciárias da coroa e os poderes conferidos pelas Ordenações às câmaras, exercendo quando muito o papel limitado de instância judicial intermediária. Ainda assim, as relações entre os capitães, ou seus ouvidores, e as câmaras foi no mínimo difícil. Quanto a isso eles não estavam sozinhos. Nas capitanias régias, os corregedores do rei tiveram que enfrentar os mesmos problemas. Vejamos a Câmara de Filipéia (João Pessoa) tentando fazer com que o rei defenestrasse o seu corregedor.

Os oficiais da Câmara da Capitania da Paraíba em carta de 22 de Maio deste presente ano contam a Vossa Majestade, que assim como devem venerar com todo o respeito e humildade os Ministros que governam por serem imagens, e retrato do poder e justiça de Vossa Majestade, assim deviam representar a Vossa Majestade os clamores daquela República quando por um a viam oprimida, e tiranizada, porque além da instância que a comiseração lhe fazia, o direito natural os obrigava a solicitar no remédio a defesa contra os males, e como os que padeciam não tinham outro mais que amparo de Vossa Majestade forçosamente o buscavam, que a tirania, novidade e soberba, em tudo que o que o Doutor Cristóvão Soares Reimão estava exercendo naquela capitania o cargo de Ouvidor Geral desde Setembro de 696 era tão insolente aos moradores dele que cooperariam com o seu procedimento contra a sua mesma pátria se faltaram na obrigação de o fazer presente a Vossa Majestade.115

A Lenda negra das câmaras Durante o século XVII, as colônias dos trópicos foram marcadas por

114

115

SALDANHA. As capitanias. p.303.

MAGALHÃES, Joaquim Romero. Reflexões sobre a estrutura municipal portuguesa e a sociedade colonial brasileira. REVISTA DE HISTÓRIA ECONÓMICA E SOCIAL. Lisboa, n.16, jul.dez. 1985. p.26.

81

múltiplos embates entre os integrantes das elites camarárias municipais e os agentes da coroa. No Brasil, por trás desses atritos estava, quase sempre, a questão do cativeiro dos indígenas, que opunha moradores e jesuítas. Nos Arquipélagos de São Tomé e Cabo Verde, os conflitos com capitães, ouvidores e governadores eram praticamente uma rotina, à qual a coroa dava pouca atenção.116 No início do século, Manuel Cerveira Pereira, o polêmico conquistador de Benguela, foi deposto por seus homens. Posteriormente, ao assumir o governo de Angola, acabou sendo preso pela câmara de Luanda. Na segunda metade do século XVII, assiste-se a um agravamento desses casos. Em 1677, ocorreu uma revolta em Luanda contra o governador Tristão da Cunha, que foi preso e expulso.117 Da mesma época, são as “insolências de Domingos Rodrigues Viegas”, em Cabo Verde.118 Logo depois, ocorre o levante da elite camarária de São Luís do Maranhão contra o monopólio comercial da Companhia do Grão-Pará. Refiro-me ao episódio, notabilizado pelos historiadores brasileiros, da revolta do Bequimão, ou Beckman. O que surpreende, nesse último caso, foi a execução de Manuel Beckman e Jorge Sampaio, considerados os cabecilhas. Nada aconteceu no Maranhão que fugisse a um modelo corrente de pronunciamento municipal contra agentes do poder central. O que parece ter mudado foi a capacidade de retaliação por parte da coroa. As guerras com os holandeses e a restauração custaram um pesado ônus financeiro, do qual Portugal se refez muito lentamente. Apenas nas últimas duas décadas do século XVII,

116

Para Cabo Verde, ver o excelente estudo de Daniel Pereira, sobre como os historiados irão transformar um desses conflitos corriqueiros em um levante. PEREIRA, Daniel A. As insolências do capitão Domingos Rodrigues Viegas e do seu irmão Belchior Monteiro de Queiróz contra as autoridades da ilha de Santiago. REVISTA DE HISTÓRIA ECONÓMICA E SOCIAL. Lisboa, n.16, ju.-dez.1985. p.31-62. 117

CATÁLOGO DOS GOVERNADORES DO REINO DE ANGOLA; com huma previa noticia do principio da sua conquista, e do que nella obrarão os governadores dignos de memória. Lisboa: Academia Real das Sciencias, 1826. Universidade, 1934. FERRONHA, António Luís Alves. Angola; a revolta de Luanda de 1667 e a expulsão do Governador Geral Tristão da Cunha. In: PRIMEIRAS JORNADAS DE HISTÓRIA MODERNA. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 1986. v.2. p.1143-57 118

PEREIRA, As insolências. p.31-62.

82

Portugal conseguiria tomar pé do que restara das suas colônias. A execução dos dois, foi uma espécie de aviso às elites locais, que, justamente nas áreas de concessão da Companhia, tinham a fama de serem revoltosas. Todavia, isso não foi suficiente para conter os pronunciamentos, que logo retornam à sua rotina. Nova fase de truculência da coroa inicia-se em meados do século XVIII, quando a revolta de um regimento da milícia de São Tomé acabou na execução de treze envolvidos.119 Nessa ilha, do século XVI ao XVIII, as dissensões internas entre as facções que controlavam a câmara e com os diversos agentes da coroa foram especialmente graves. O problema era agravado pela morte em série dos governadores e ouvidores mandados de Portugal, que não resistiam ao clima e raras vezes acabavam seus mandatos, gerando vazios de poder. Todavia, enquanto estavam vivos, governadores, ouvidores, capitães não paravam de cometer todo o tipo de prepotência, entre eles próprios e com os moradores da ilha, que respondiam à altura. Para completar o quadro, o aguerrido clero da ilha participava ativamente de todas as desavenças. Um exemplo desses conflitos ocorreu em 1709, quando, após a morte do governador Vicente Diniz Pinheiro, a câmara de São Tomé e o ouvidor da ilha entraram em guerra sobre quem o sucederia interinamente.

A câmara quis governar só e por saber que o ouvidor ia para as bandas da fortaleza, acompanhado por dois oficiais da fazenda real, mandou disparar tiros de rebate; acudiram os moradores parciais da câmara e o ouvidor vendo o caso mal parado, meteu-se em sua casa disposto a defender-se. O senado governador precipitou-se no abuso de suspender o ouvidor de todos os cargos que ocupava e deu-os a Manuel Pereira Franco, morador da terra; o ouvidor julgou acertado refugiar-se na fazenda da Praia de Fernão Dias e ali construiu uma trincheira e assentou algumas peças de artilharia. O partido da câmara armou os seus escravos e fez corpo de guarda no real hospício de Santo Antônio, com consentimento do padre prefeito fr. Cipriano de Nápoles, que soprava a desordem contra o ouvidor, por haver este ministro amparado um religioso, que lhe fugira do cárcere. [....] Parece que o demônio se divertia em andar de casa em casa, esquentando os espíritos dos homens públicos e particulares, porque não achando suficiente as calamitosas desavenças do ouvidor com o senado da câmara governadora, ainda suscitou o coração do dito padre Cipriano de Nápoles, conta o corpo do cabido, a quem excomungou e a todos os aderentes. [....] o conservador, e o prefeito dirigiram-se ao senado da câmara governadora, para lhes dar ajuda de braço secular contra o cabido; o senado anuiu e com efeito estava determinada a prisão, que

119

MATOS. Corografia. p. 35.

83 abortou , porque os cônegos se recolheram à Sé, onde se pretendiam defender à força aberta. Neste tempo chegou o Bispo D. fr. João de Sahagun, que [....] tirou devassa excomungou quatro membros da câmara e o tesoureiro-mor Jerônimo de Andrade. O senado da câmara irritado, passou de erros a erros, até mandar publicar bando, que ninguém o tivesse por excomungado, debaixo de pena de degredo.120

Mais ao norte, no arquipélago de Cabo Verde, repete-se o quadro. Havia tal clima de beligerância que os oficiais régios recebiam uma verba especial para contratar seguranças. Com esse dinheiro, eles formavam quadrilhas de capangas recrutados localmente. Eram acusados de prepotência, violência, abuso sexual de mulheres, corrupção. A decadência econômica da ilha, só fez agravar as disputas. Os cargos públicos tornaram-se uma importante fonte de renda da elite local, que passou a disputálos com sofreguidão. Fica estabelecido o imbroglio entre os emissários régios e os poderosos locais.121 Nas primeiras décadas do século XVIII, em Cabo Verde, as desavenças entre governadores e ouvidores, que se acusavam mutuamente de invadir as respectivas competências, mesclam-se à altíssima mortalidade desses oficiais, por doenças, ‘causas desconhecidas’ e outras bem conhecidas. Morre o governador António Vieira. A viúva acusava, entre outros, o ouvidor Sebastião Bravo Botelho. A coroa encomendou ao sucessor do governador fazer a sindicância. No entanto, este escapou da tarefa, dizendo que era público e notório que António Vieira morrera de um “aposthema” causado por uma pedrada que recebera. Coisa pouca. Em 1732, o governador mandou prender o ouvidor. Este parece ter resistido e acabou morto, junto com outras duas pessoas que o apoiavam. São tantos os conflitos na ilha, que a coroa envia um desembargadorsindicante, o baiano Custódio Correia de Matos, que aparentemente morreu envenenado.122

120

MATOS. Corografia. p.31-3.

121

Esta seqüência de conflitos aparece em CHELMICKI, J. C. C. & VARNHAGEN, F. A. Corografia Cabo-verdeana. Lisboa: Typ. de L. C. da Cunha, 1841. 2.v. Para uma apreciação mais contemporânea, ver CARREIRA, António. Conflitos sociais em Cabo Verde no século XVIII. REVISTA DE HISTÓRIA ECONÓMICA E SOCIAL. Lisboa, n.16, ju.-dez.1985. 122

Ver GUERRA, Luís Bivar. A sindicância do desembargador Custódio Correia de matos às

84

A apoteose dos conflitos cabo-verdianos ocorreu na segunda metade do século XVIII, quando, em 1762, foi assassinado mais um ouvidor-geral.

Sendo ouvidor na cidade de São Tiago das Ilhas de Cabo Verde o Bacharel João Vieira de Andrade, e estando em atual exercício no mesmo lugar, de que fora encarregado pelo Sr. D. José para administrar justiça naquela colônia, sucedeu que no dia 13 de dezembro de 1762, das 9 para as 10 da noite, lhe cercaram repentinamente as casas com um grande número de homens armados, pretendendo os ditos homens arrombar-lhe a porta, e dando nelas algumas pancadas; perguntou o dito Ministro quem batia, ao que lhe foi respondido de fora que era o Diabo; ao mesmo tempo, arrombando-lhe a golpes de machado uma janela, entraram violentamente pela mesma alguns dos referidos homens e outros pela parte do quintal e mataram o Ouvidor, fazendo-lhe com zagaias e outras armas muitas feridas, sendo a primeira com um machado na cabeça, que logo o prostrou por terra.123

O fato foi comunicado à coroa pelo juiz ordinário José Romão da Silva, que denunciava como mandante o Capitão-Mor João Freire de Andrade, chefe de uma das facções que disputavam o poder na ilha de S. Filipe. No entanto, um magistrado vindo de Lisboa, em 1764, incriminou o chefe do partido rival, António Barros de Oliveira, outro dos potentados de Cabo Verde. Julgado em Lisboa, ele foi condenado a ser “arrastado à cauda de um cavalo pelas ruas públicas da cidade até a praça do Rossio e nela morresse de morte natural para sempre”.124 Ordenava, ainda, a sentença que a cabeça do réu fosse cortada e enviada a Cabo Verde, para ser exposta na vila da Praia até ser consumida pelo tempo. Outros dez réus tiveram idêntica sorte, sendo que um deles foi poupado da decapitação após a morte. Mais uns tantos foram condenados à chibata e ao degredo perpétuo, entre eles José Romão da Silva, o juiz que acusara o chefe do bando rival. Mais um lance do teatro de horror pombalino. Os autores que estudaram o período, lembram sempre que os atores das tragédias levadas à cena no governo do marquês foram escolhidos a dedo. Com a chacina dos Távora, ele atingiu a alta nobiliarquia. A execução dos cabeças da sublevação do Porto foi um sinal à plebe

ilhas de Cabo Verde em 1753. STVDIA, n.2, jul.1958. 123

CARREIRA, Conflitos sociais. p.82.

124

CARREIRA, Conflitos sociais. p.85.

85

urbana.125 Todavia, esquecem que a eles se juntaram os integrantes de uma das mais rebeldes elites municipais das colônias. Os constantes conflitos entre essas elites locais e os agentes da coroa deu origem a uma lenda negra dos municípios coloniais, principalmente os dos trópicos. Em boa parte, isto foi um efeito da documentação. Na medida em que se privilegiou a documentação relativa ao estado central, o poder de expressão dos funcionários letrados do século XVIII foi amplificado e ecoa até hoje no conjunto da produção historiográfica dos países de língua portuguesa. As revoltas de São Tomé e Cabo Verde dizem diretamente à historiografia do Brasil. Varnhagen foi um dos co-autores da Corografia Cabo-verdeana, enquanto quem construiu a cronologia dos conflitos sãotomenses foi o Brigadeiro Cunha Matos, patrono fundador do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Não sejamos injustos com os dois, pois em seus textos, eles deixam claro o envolvimento, e mesmo a preponderância, dos funcionários portugueses nesta guerra institucional. No entanto, a sentença geral condenatória recaiu sobre a elite dos moradores. É o que faz Cunha Matos, com os moradores de São Tomé.

Eles não só se constituíram soberbos e intratáveis, mas também queriam afetar independência e soberania à testa dos imensos escravos de que dispunham. Mortes, incêndios, assaltos, raptos, roubos, forças contra oficiais públicos, desprezo contra os governadores ou capitães, tudo era posto em prática pelos poderosos habitantes de São Tomé, verdadeiros régulos e tiranos de seu país. As suas riquezas lhes faziam cometer inauditas crueldades e atos de rebelião, que só a covardia ou o interesse deixariam ficar impunes. Entre outros arbitrários procedimentos conta-se o da rejeição de um governador, a quem entregaram (pro rata) todos os soldos e interesses, que podia fazer no decurso do seu governo e o despediram com afetada urbanidade, verdadeiro desprezo ‘como muito moço para governar homens tão barbados como os moradores de São Tomé’.126

A herança deixada pelas nossas principais gerações de historiadores, da metade do século XIX à década de 1970, está saturada por essa lenda negra do

125

Carnaxide foi um dos muitos autores a fazer essa ilação. VISCONDE DE CARNAXIDE. O Brasil na administração pombalina. 2.ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1979. 126

MATOS. Corografia. p.11.

86

município colonial. Ela difundiu um sentimento ambíguo em relação às câmaras. Por um lado, sua rebeldia é criticada como empecilho à difusão de princípios ‘racionais’ de administração e à unificação geo-política e econômica do território, ou por ser a sede da exclusão política da maioria dos habitantes (de uma nação que ainda não existe). Por outro, alguns episódios dessa mesma rebeldia foram depurados para compor o quadro das lutas proto-nacionais contra o colonizador. A mesma ambigüidade se manifesta em relação aos funcionários portugueses do século XVIII. Ora são os detestados agentes da colonização, ora os próprios construtores daquilo que de melhor terá a futura nação.127

PARA MELHOR ADMINISTRAR E CONSERVAR

Como pudémos observar, as elites camarárias não eram unidades monolíticas. Uma das funções dos corregedores e ouvidores era, justamente, a de localizar os partidos e dissolvê-los.

E saberá se há aí competências, ou bandos em cada um dos lugares, em que há de fazer correição, e quais são os principais deles, e se dessas competências ou bandos se seguem pelejas, voltas, mortes, ou outros males e danos. E havendo-os aí, procederá contra eles, como for direito, segundo o caso for. E além disso, sendo de qualidade, que no-lo deva fazer saber o fará.128

Nos Açores, a elite de Angra dividia-se em dois partidos, os de cima e os de baixo.129 Essas denominações são uma referência à posição que cada grupo ocupava na topografia da cidade. Este era um tipo de cisão bastante freqüente que, muitas vezes,

127

Ainda que a opção não seja consciente, nós, historiadores brasileiros, fomos e continuamos sendo iluministas. Continuamos a ser narrados pelas falas do Morgado de Mateus ou do marquês do Lavradio, que são semelhante à de Capistrano ou de João Francisco Lisboa, que se repetem em Sérgio Buarque de Holanda ou Caio Prado, que resultam em obras recentes como o primeiro volume da História da vida privada no Brasil ou O teatro dos vícios, de Emanuel Araújo. 128

FILIPINAS, livro 1, tít. 58, § 9. Na prática, muitos desses magistrados também se tornaram partidários, envolvendo-se nas disputas e mesmo fomentando-as. 129

DRUMMOND, v.2, p.450.

87

reflete os interesses econômicos aos quais cada grupo estava vinculado. Em baixo, ou seja, junto ao mar, moravam as famílias ligadas ao comércio e ao tráfico marítimo. No alto, voltando-se para o interior, estava a elite agrária. A Guerra dos Mascates, em Pernambuco, é um típico episódio das desavenças entre dois desses grupos. Neste caso específico, acabou ocorrendo o desmembramento de Olinda, pela criação da câmara do Recife. Salvador é um caso semelhante. Porém, a participação dos comerciantes da cidade baixa foi eficazmente bloqueado pelos da cidade alta. Outro caso famoso de partidarismo exacerbado era São Paulo. Percebendo que não tinha forças para suprimí-lo, a coroa patrocinou uma concordata entre as partes. Refiro-me ao famoso acordo entre os Pires e os Sampaio, que dividia os cargos da câmara entre os dois “bandos”.130 Apesar do interesse do tema, vamos nos deter mais de perto em uma outra cisão que havia no interior dos concelhos. Até agora, estivemos enfocando os vereadores e as relações destes com os agentes do rei. No entanto, não eram os vereadores e juízes os únicos integrantes do núcleo decisório das câmaras. Em todas elas, existiam ainda dois tipos de procuradores, cujo poder foi bastante variável de município para município. Se o surgimento da magistratura de vereador é mal coberta pela documentação conhecida, a de procurador surge num vácuo documental ainda maior. Aparentemente, tratava-se de um ofício menor que progressivamente foi evoluindo para uma das mais altas magistraturas municipais. Em diversas câmaras, os procuradores das câmaras chegaram a ter pleno direito a voz e voto, como os vereadores e juízes. O professor Marcelo Caetano aponta a existência de procuradores dos concelhos desde 1297, aos quais cabiam duas ordens de competências: representavam os concelhos junto às cortes, ou a terceiros em geral, e agiam como procuradores públicos, na defesa do patrimônio e dos réditos dos concelhos.131 Creio, entretanto, que este jurista cometeu um

130

Esta concordata está publicada em DOCUMENTOS INTERESSANTES PARA A HISTÓRIA E COSTUMES DE SÃO PAULO. v.32, 1901. p.214-31. 131

CAETANO, A administração. p.40.

88

engano, ao reunir num mesmo oficial concelhio estas duas atribuições. Tal engano foi provocado pela coincidência de nomes entre dois ofícios completamente diversos. Os procuradores junto às cortes, de fato, aparecem nos finais do século XIII, advogando as causas dos concelhos. A nomeação de procuradores para questões específicas também era corriqueira naquele século. Todavia, essas pessoas não podem ser consideradas oficiais concelhios. No regimento dos corregedores de 1332, as menções feitas ao procurador do concelho caracterizam-no como responsável pelo recebimento das rendas e fintas e por fazer os pagamentos, cabendo-lhe escriturar a contabilidade. Para o exercício desta função, ele recebia uma das chaves da arca de dupla fechadura na qual eram guardados os dinheiros dos concelhos. Determinava o regimento que “uma chave tenha o tesoureiro ou procurador do concelho [....] e a outra chave um homem bom mais conveniável”.132 Como se depreende, o procurador nada mais é do que o tesoureiro do concelho. Progressivamente, os procuradores dos concelhos tiveram as suas atribuições ampliadas, passando a fazer as vezes de defensores dos bens públicos, e não de uma promotoria pública, como sugeriu Marcelo Caetano. Com a criação das câmaras municipais, eles passam a integrar a composição orgânica da nova instituição. A lei de 1361, que tornou inelegíveis, por 3 anos, os oficiais que acabavam os seus mandatos menciona os juízes, vereadores, procuradores e tesoureiros.133 Por tudo o que se conhece, não podemos confundir esses oficiais das câmaras com os procuradores junto às cortes ou a terceiros, que costumavam ter mandatos específicos. Todavia, o que nos interessa não são as funções de tesouraria desenvolvidas pelos procuradores mas um outro papel, que a documentação permite antever nos finais do século XIV. O regimento de Évora, de 1392, além de mantê-los como tesoureiros, confere-lhes o papel de zeladores ou defensores do patrimônio camarário.

132

CAETANO, A administração. p.135.

133

LIVRO DAS LEIS E POSTURAS. p.27.

89 Requeira bem todos os adubos que cumprir às casas e bens do concelho e seus feitos em tal guisa que se não percam por sua míngua e o que mal postado for requeira aos vereadores e o escrevam assim o escreva para se ver quem foi em culpa e o pagar.134

As Ordenações Afonsinas praticamente repetiam os regimentos dados a algumas cidades, entre eles o de Évora.135 Já o Regimento dos Oficiais introduziu duas alterações de monta, que seriam integradas nas Ordenações Manuelinas e Filipinas.136 A primeira, foi a separação, não obrigatória, das funções de tesoureiro e procurador. Além disso, a alçada dos procuradores, antes restrita aos próprios municipais, as “casas e bens do concelho”, passou a abranger a totalidade dos bens públicos do município.

Requererá bem todos os adubos e corregimentos, que cumprirem as casas, e pontes, e fontes, chafarizes, poços, calçadas, caminhos, e todos os outros bens do Concelho; e assim procurará todos seus feitos em tal maneira, que se não percam, nem danifiquem por sua míngua; e o que mal corregido for, requeira aos Vereadores, e Oficiais a que pertencer, que o mandem correger, o qual requerimento lhes fará perante o Escrivão da Câmara, o qual escreverá o dito requerimento, porque não se fazendo como deve, se saiba por cuja culpa se deixou de fazer, e se fazer pagar a perda por quem direito for.137

As

atribuições

dos

procuradores

foram

as

que

sofreram

menor

desenvolvimento nas Ordenações. Além das questões de tesouraria, que em muitos municípios passaram para um oficial específico, suas atribuições estavam concentradas neste único parágrafo, que era toda a fonte de seu poder nas questões urbanas. O menor desenvolvimento regimental das atribuições dos procuradores teve por resultado a diversificação das maneiras de inserção dos mesmos na dinâmica concelhia, que variou bastante, de lugar para lugar. Nas eleições de Loulé, de 1385, citadas anteriormente, consta que “fizeram procurador do Concelho Vasco Lourenço cavaleiro”. Em 1404, foi eleito Afonso Velho,

134

ÉVORA, Regimento. op. cit. p.159-60.

135

AFONSINAS, livro 1, tít. 29, § 8.

136

RO, f.18.

137

MANUELINAS, livro 1, tít. 50, § 1. FILIPINAS, livro 1, tít. 69, § 1.

90

um dos principais homens bons da cidade, que acabou não assumindo o posto. Em seu lugar, entrou Rui Lopes de Saria, seguramente um cavaleiro fidalgo. A escolha das pessoas mais proeminentes da elite local sugere que, em Loulé, o cargo de procurador era considerado como hierarquicamente superior dentro da estrutura camarária, no mesmo nível do de juiz. Contudo, esta não parece ter sido uma prática freqüente. Em Montemor-o-Novo, aparentemente não era este o costume, pois, de outra forma, não faria sentido a carta régia enviada por D. Manuel à câmara, em 1504.

Nós havemos por bem e nosso serviço que o procurador dessa vila seja tal pessoa que, sem pejo possa estar na câmara, com os juízes e oficiais, porque é carrego e ofício honrado e em uma tal vila deve andar nas pessoas honradas dela; e nas eleições quando se fizerem, sempre se tenha esse respeito, porque assim o havemos por nosso serviço.138

Este tipo de preocupação explica-se pelo exercício da função de tesoureiro, na qual o procurador responde com os seus bens pelos prejuízos causados por sua omissão. Diferente do que ocorria em Loulé, onde os procuradores pertenciam à elite local, era comum que o cargo fosse ocupado por comerciantes e outros moradores abastados, o que lhe conferia um caráter burguês. É provável que o exercício da função fosse encarado como possibilidade de ascensão social. No início do século XVII, tanto em Viana do Alentejo, como em Torres Vedras, as câmaras obtiveram o privilégio de que o vereador mais novo assumisse o ofício de procurador no ano seguinte. O objetivo expresso era impedir que oficiais mecânicos assumissem o cargo. A câmara do Porto também solicitou ao rei privilégio semelhante mas não obteve sucesso.139 Em Ponta Delgada, uma provisão de Filipe II permite a um mestre pintor, apesar do que

138

139

ANDRADE, Montemor-o-Novo. p.29.

SILVA, Francisco Ribeiro. O Porto e seu termo (1580-1640); os homens, as instituições e o poder. Porto: Arquivo Histórico da Câmara Municipal do Porto, 1988. v.1, p.474-5. Em Loulé, os procuradores recusavam-se a cumprir as funções de tesoureiro, considerada pouco “nobre”. A solução seria a mesma adotada nas outras cidade. O rei atende ao pedido da câmara para que os procuradores fossem os vereadores mais novas do ano anterior. ANDRADE E SILVA, José Justino de. Collecção chronologica da legislação portugueza. Lisboa: Imprensa Nacional, 1854. p.47. COELHO & MAGALHÃES. O poder. p.152.

91

dispunham as Ordenações deste mesmo rei, exercer os cargos de almotacé e procurador da câmara.140 Na prática das sessões de vereação, vamos encontrar muitos procuradores atuando como representante do ‘povo’, o que comporta distintos níveis de abrangência. Em muitos casos, povo é praticamente um sinônimo das elites locais, os homens bons. Noutros, o procurador demonstra ser uma figura mal inserida no grupo dominante e em freqüente desacordo com este. Depreende-se que ele representa um ‘povo’ que não coincide com a elite camarária. Há casos, inclusive, de procuradores imbuídos do espírito de representante do povo miúdo da cidade, tornando-se figuras polêmicas. No âmbito das vereações, a força dos procuradores vinha do verbo requerer, com que a legislação abria o item que configurava as suas atribuições. Aos requerimentos dos procuradores, os demais oficiais eram obrigados a dar resposta por escrito, ficando registrada a responsabilidade legal de cada parte. Por força deste poder, em muitos municípios, os procuradores acabariam assumindo o papel de organizadores das pautas de assuntos discutidos nas sessões ordinárias. Referindo-se aos procuradores do concelho de Velas, nos Açores, o historiador António dos Santos Pereira comenta que eles “condensavam em requerimentos autênticos programas de governo que tocavam as várias matérias da gestão municipal: as finanças, as obras públicas, a defesa, o policiamento, a agricultura, a manufatura e o comércio”.141 Em certas câmaras, os procuradores transformaram-se numa espécie de auditores permanentes dos atos dos outros oficiais, controlando os livros ficais e, inclusive, a presença dos vereadores às sessões e a escolha dos oficiais menores.142 Outra dificuldade enfrentada pelos procuradores foi sua inserção hierárquica na estrutura decisória. Em algumas câmaras, eles ocuparam lugar na mesa de vereação,

140

RODRIGUES, José Damião. Poder municipal e oligarquias urbanas; Ponta Delgada no século XVII. Ponta Delgada: Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1994. p.78. 141

PEREIRA, António dos Santos. A ilha de S. Jorge (séculos XV-XVII); contribuição para o seu estudo. Ponta Delgada: Universidade dos Açores, 1987. p.101. 142

SILVA. O Porto. p.455-67.

92

o que, simbolicamente, representava a sua inclusão plena no grupo dirigente. No Porto, eles obtiveram lugar na mesa no final da década de 1580, após longas disputas judiciais com vereadores e juízes. Essa vitória implicaria na alteração do mobiliário para que eles coubessem fisicamente na mesa.143 O ato de integrar a mesa era uma vitória que levava, paulatinamente, a uma ampliação do poder de interveniência. Ainda no Porto, ao longo do século XVII, os procuradores, progressivamente, tiveram sua participação ampliada, votando em assuntos nos quais, anteriormente, tinham apenas poder de veto.144 Como tendência, pode-se afirmar que este foi um processo geral entre as municipalidades. Todavia, a trajetória desses avanços não foi linear e comportou alguns revezes. Em Montemor-oNovo, por exemplo, uma sentença de 1568 retirava o poder de voz dos procuradores.145 Nas colônias, a posição dos procuradores na estrutura camarária também foi bastante variável. No entanto, era freqüente que eles tivessem um peso maior do que os seus congêneres da metrópole. Em Macau, a posição do procurador era bastante peculiar. Cabia a ele tratar dos assuntos da cidade com os mandarins. O conhecimento da língua chinesa era, portanto, um requisito essencial para os ocupantes do cargo. Além de fazer a ponte com as instituições regionais chinesas, o procurador do Leal Senado de Macau, desempenhava um papel importantíssimo na diplomacia portuguesa do extremo oriente. Em 1695, José da Cunha Eça saiu nos pelouros para ser procurador. Alegou “não ter suficiência para tratar com os Chinas” e acabou liberado, pois “era melhor para o serviço de sua Majestade”.146 Segundo Boxer, os procuradores de Macau receberam das autoridade chinesas o grau de mandarim “júnior”.147

143

SILVA. O Porto. p.468-9.

144

SILVA. O Porto. p.469-81.

145

ANDRADE, Montemor-o-Novo. p.30.

146

MACAU. Terceira série. v.1, n.1,. p.25.

147

BOXER, C. R. Portuguese society. p.45.

93

Outro caso especial era o da câmara de Santo Antônio do Príncipe, na qual os procuradores tornaram-se as figuras-chave da vereação. Quase sempre, eles eram capitães ou alferes da milícia, o que não ocorria com vereadores e juízes. Além disso, eram os únicos oficiais a serem designados por seus nomes nas atas da câmara. Estes são alguns indicativos de que eles ocupavam uma posição hierárquica superior aos demais oficiais. As sessões da câmara do Príncipe eram feitas quase que exclusivamente para atender aos seus requerimentos. As reuniões eram simplesmente canceladas se os procuradores não estivessem presentes ou encerradas quando eles nada tinham a requerer.148 Esses procuradores, tomavam ao pé da letra aquilo que estava previsto nas Ordenações do reino. Solicitavam periodicamente a limpeza das ruas e caminhos, o conserto das pontes e a conservação dos bens da câmara. Repetiam uma prática generalizada em Portugal e nas colônias, através da qual eles se tornaram os principais responsáveis pela manutenção e conservação dos espaços públicos. Nas colônias, os procuradores notabilizaram-se por conduzir a luta sem trégua que os nascentes núcleos urbanos travavam contra o mato e o exercício de práticas rurais dentro das vilas e cidades. A toda hora vamos encontrá-los requerendo que as ruas e praças fossem roçadas ou capinadas e que os porcos, galinhas, vacas, cavalos e mulas fossem expulsos do quadro urbano. Tomando as atas de vereação de Santo António do Príncipe, de Curitiba ou de São Paulo como exemplos, vemos que esta era uma de suas ações mais recorrentes.149 No exercício de função de defensores dos bens públicos, conforme estabeleciam as Ordenações, cabia a esses oficiais impedir que as áreas de domínio público fossem ocupadas por particulares. As câmaras como um todo tinham tal

148

São tanto os exemplos que é ocioso mencionar alguns. Basta consultar ACTAS DA CÂMARA DE SANTO ANTÓNIO DA ILHA DO PRÍNCIPE. 1672-1777. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1970. 149

Ver, por exemplo, BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE CURITIBA. Curitiba, v.29, p.54; v.31, p.101. ACTAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. São Paulo: Archivo Municipal, 1914 e ss.

94

obrigação. Todavia, juízes e vereadores, em muitos casos, eram coniventes com os interessados ou temiam enfrentar os poderosos, deixando aos procuradores a espinhosa tarefa. No Porto, os procuradores tiveram uma secular atuação nesta área, impedindo que as construções obstruíssem caminhos ou se apropriassem de ruas e praças.150 Em conseqüência, quando João Almada e Mello assumiu as reformas da cidade, durante o período pombalino, os oficiais que mais resistiram à interferência do estado central foram justamente os procuradores.151 Tratava-se de uma resistência legítima, pois todos os recursos da cidade eram drenados para a urbanização de novas áreas, enquanto se degradava, por abandono, o espaço já existente. Em alguns casos, encontraremos municípios onde os procuradores estenderam seu campo de atuação para além do que estabelecia a legislação. Na mesma cidade do Porto, acabariam envolvidos na administração do abastecimento da cidade.152 Da mesma forma, no Príncipe, vamos encontrá-los requerendo providências relativas ao abastecimento da vila ou promovendo o tabelamento de preços.

Aos oito dias do mês de Janeiro de mil e setecentos e vinte e cinco anos nesta Ilha do Príncipe vila de Santo nas casas da Câmara estando presente o juiz e vereadores e procurador do conselho o alferes António Ramos e pelo dito procurador foi requerido aos ditos oficiais venham as vendedeiras com suas varas e côvados apresentar licenças que tem de vender como também os oficiais de sapateiro apresentar suas cartas de examinação assim requereu mais o dito procurador que venham os martipombeiros para a primeira vereação para que se lhe faça vir martipombos e peixes à praça desta vila e assim mais requereu o dito procurador se mande botar pregão para que pessoa que tiver chãos testadas nesta vila os alimpe até dezenove deste mês porquanto se há de correr em corpo de câmara e como também assim mais requereu o dito procurador aos juizes e vereadores fação vir cousas comestíveis à quitanda assinando as pessoas que hão de vir.153

Outro município colonial onde o procurador alcançou os mais amplos

150

SILVA, O Porto. p.461

151

Ver ALVES, Joaquim Jaime B. Ferreira. O Porto na época dos Almadas; arquitectura; obras públicas. Porto: Câmara Municipal, 1990. v.1, p.187. 152

SILVA, O Porto. p.461-2.

153

ACTAS DA CÂMARA DE SANTO ANTÓNIO DA ILHA DO PRÍNCIPE. p.269.

95

poderes foi São Paulo. Ali, ele se definia como “procurador do povo e do concelho”.154 Semelhante ao que ocorria no Príncipe, boa parte das reuniões camarárias eram monopolizadas pelos seus requerimentos, que delimitavam um campo de atuação muito maior do que o previsto nas Ordenações.

Ao primeiro dia do mês de julho de mil e quinhentos e oitenta e três anos nesta vila de São Paulo nas casas do concelho dela foram juntos os oficiais da câmara os abaixo assinados para acordarem algumas coisas necessárias para bem do povo [....] requereu o procurador do concelho na dita câmara que suas mercês fizessem um juiz do ofício de sapateiro porquanto os sapateiros não tinham regimento de seu ofício nem muitos deles não eram examinados.155

As

características

das

funções

desempenhadas

pelos

procuradores

aproximam-nos das sedes urbanas dos municípios e fizeram com que, em diversas localidades de Portugal e das colônias, fossem obrigados a morar no quadro urbano das vilas e cidades. No século XVI, isto tanto ocorria no Porto quanto na vila açoriana de Velas.

Pena que se pôs ao procurador do concelho Em os onze dias do mês de Abril de mil quinhentos e cinqüenta e nove anos, João Varela escrivão da câmara notifiquei a Melchior Gonçalves procurador do concelho este presente ano em como o senhor corregedor mandava que ele procurador residisse na vila todos os dias que ele aqui estivesse sob pena de pagar dez cruzados de pena a metade para cativos e outra metade para o concelho ou quem o acusasse.156

Os vínculos menos evidentes com os grupos que dominavam as câmaras, a responsabilidade pela manutenção do espaço público, pelas obras e por outras medidas de interesse mais imediato dos moradores da cidade, permitem supor que os procuradores foram, no geral, oficiais mais próximos dos interesses urbanos do que

154

SÃO PAULO. Atas da câmara de 17 de setembro de 1639. Citado de SILVA, Janice Theodoro da. São Paulo 1554-1880; discurso ideológico e organização espacial. São Paulo: Editora Moderna, 1984. p.65. 155

156

SÃO PAULO. Ata da câmara de 1 de julho de 1583. Citado em SILVA, São Paulo. p. 47.

VEREAÇÕES DE VELAS; S. Jorge 1559-1570-1571. Angra do Heroísmo: Secretaria Regional de Educação e Cultura, 1984. p.95. Para o Porto ver SILVA. O Porto. p.469.

96

vereadores e juízes. Que o povo miúdo ordene-se em vinte e quatro dos mesteres A última alteração na composição do grupo decisório das câmaras municipais foi a inclusão de representantes dos oficiais mecânicos, ao final do século XIV. Contudo, é preciso ressalvar que, considerando o conjunto de municípios portugueses, essa participação foi bastante restrita, limitando-se a umas poucas cidades. Esa alteração insere-se em um movimento geral que se estendeu pela Europa, numa época em que as organizações corporativas de artesãos urbanos e pequenos comerciantes obtiveram algum poder de representação. A peculiaridade portuguesa, segundo Marcelo Caetano, é que no resto do continente tais organizações preexistiam à conquista desta participação. Já em Portugal, não há notícias de que essas camadas estivessem organizadas em corporações antes disso. Assim, as corporações portuguesas seriam tardias e sua criação coincide com a participação de seus representantes na câmara lisboeta.157 A obtenção deste privilégio por parte dos trabalhadores mecânicos de Lisboa foi um prêmio ao apoio dado ao mestre de Aviz, nos conflitos sucessórios e na guerra contra Castela, que o levaram ao trono português, em 1384, dando início à sua dinastia. Em recompensa, D. João I atendeu diversos pleitos das classes mesteirais lisboetas, procedendo à constituição de uma central corporativa, mais tarde denominada Casa dos Vinte e Quatro. Aqui, não nos interessa o funcionamento em si desta instituição mas a presença de seus representantes nas câmaras municipais.

[...] outrossim nos pediram por mercê que os juízes nem regedores nem procurador que ora na dita cidade são [e] ao diante forem não ponham nem façam posturas nem ordenações em nenhuma guisa nem alcem fintas nem talhas em nenhuma guisa nem

157

CAETANO, Marcelo. O concelho. p.276. Até pela inexistência de estudos sobre o tema a opinião de Caetano continua válida. Entretanto, há muito, os medievalistas europeus têm apontado que a origem dessas instituições são as irmandades religiosas, pois, algumas delas, ao longo dos séculos XIII e XIV, assumiram o caráter de corporações de ofícios. Faltam estudos em Portugal sobre as confrarias religiosas para saber se elas desempenhavam este tipo de papel. Ver HEERS, Jacques. O ocidente nos séculos XIV e XV; aspectos econômicos e sociais. São Paulo: Pioneira, 1981.p.270 e ss. A obra clássica sobre as organizações corporativas portuguesas é LANGHANS, Franz-Paul. As corporações dos ofícios mecânicos; subsídios para sua história. Lisboa: Imprensa Nacional, 1943.

97 prometam nem dêem serviços nem para outros nenhuns encarreguem nenhuma cousa nem outrossim não façam nem possam fazer eleição de juízes nem vereadores nem procurador nem dêem ofícios a nenhumas pessoas a menos que dois homens bons de cada um mester sejam chamados e que se façam segundo a maior parte deles acordar e que fazendo-se em outra guisa que não sejam firmes e nós vendo isto que nos assim pediam e querendo-lhes fazer graça o mercê outorgamo-lhes todas as ditas cousas e cada uma delas em o dito capítulo conteúdas e mandamos que assim se cumpra e guarde como em ele é conteúdo e em outra guisa não outrossim que as talhas e taxas e frutos e serviços que ora são postos ou ao diante forem de prazimento deles sobreditos dos mesteres ou dos que forem seus procuradores como dito é que eles os possam alçar e mandar que se não tirem quando morem [?] que se posam escusar posto que os juízes e Regedores e vereadores o contrário digam e pediram-nos por merece que para este serviço e ordenado como devia que lhe outorgássemos isto e nós vendo o que nos assim pediam e querendo-lhes fazer graça mercê temos por bem e outorgamo-lhes o que no dito capítulo é conteúdo e mandamos que assim se faça e guarde como por eles é pedido e doutra guisa não.158

De posse desses privilégios, os mesteirais passaram a integrar as câmaras abertas junto com os cidadãos e a nobreza da cidade, através de seus procuradores. Adquiriram, também, poder de veto sobre assuntos que lhes interessavam diretamente, como a taxação (tabelamento) da produção artesanal. Os poderes dos mesteirais de Lisboa sofreram muitas oscilações. Em 1433, na regência de D. Duarte, a câmara conseguiu que o príncipe limitasse a interferência das gentes de ofício nas vereações a uns poucos assuntos. “Manda o senhor Infante que alguns dos mesteres entrem e estejam na câmara ao eleger dos ofícios e quando se fizerem Ordenações que pertençam ao povo”.159 A criação de um corpo fixo de quatro procuradores dos mesteres na câmara de Lisboa, ocorre como uma limitação à presença dos representantes populares, ainda no reinado de D. Duarte. Com Afonso V esses procuradores passam a ser eleitos anualmente. Em 1506, D. Manuel suprimiu a Casa dos Vinte e Quatro de Lisboa e os seus representantes na câmara, restabelecendo-a em 1508. Antes que acabasse o século XVI, os quatro procuradores dos mesteres de Lisboa conseguiram praticamente equiparar-se aos vereadores da cidade, com direito a voto em todos os assuntos tratados na câmara.

158

Citado de CAETANO, A antiga organização dos mesteres da cidade de Lisboa. In: LANGHANS. As corporações. p.179-80. 159

OLIVEIRA, Eduardo Freire de (org.). Elementos para a história do Município de Lisboa. Lisboa: Typographia Universal , 1887. v.1, p.3.

98

Posteriormente, o instituto foi alargado a outras localidades, inclusive nas colônias. As Casas dos Vinte e Quatro de Coimbra e de Évora foram criadas em 1459; em 1518, a do Porto; e, em 1535, a casa dos Doze de Guimarães.160 Em Braga, uma Casa dos Vinte e Quatro foi criada por volta de 1647, após um motim popular contra a câmara.161 No Funchal, o Duque donatário da Ilha da Madeira ordenou, em 1483, que “os vinte e quatro dos mesteres tenham direito a dois lugares na vereação para representar em nome do povo”.162 Durante o reinado de D. Manuel, os mesteirais da Praia e de Ponta Delgada já contavam com representantes nas câmaras municipais. Ainda nas ilhas atlânticas, a participação dos mesteirais na câmara de Angra teve início, provavelmente, em 1578.163 No Oriente, havia procuradores dos mesteres em Goa e Cochim, pelo menos. As regiões do Império em que as classes mesteirais tiveram menor poder de representação foram a África e o Brasil. Nas colônias africanas não foi instalada nenhuma dessas organizações corporativas, no Brasil, apenas em Salvador, que teve a sua Casa dos Doze criada em 1641. O padrão era que as Casas dos Vinte e Quatro, ou dos Doze, elegessem dois procuradores para representar os interesses dos oficiais mecânicos nas reuniões ordinárias das câmaras. Todavia, em Lisboa e Goa eram quatro os procuradores dos mesteres e em Guimarães, Cochim, Angra e Salvador, apenas um. Nas câmaras abertas, quando todos os homens bons eram convocados para as eleições ou para discutir assuntos de maior gravidade, a representação dos mesteirais era ampliada. A situação

160

LOUREIRO, J. Pinto. Casa dos vinte e quatro de Coimbra; elementos para a sua história. ARQUIVO COIMBRÃO. v.3, 1936-7. p.170. Ver também GUIMARÃES, A. L. de. Os mesteres de Guimarães. s.l.: s.e., 1951. 161

OLIVEIRA, António de. Levantamentos populares no arcebispado de Braga em 16351637. BRACARA AUGUSTA, v.34, n.91. jan.-dez.1980. p.435. 162

VIEIRA, Alberto & RODRIGUES, Victor Luís G. A administração do município do Funchal; 1470-1489. In: ACTAS DO II COLÓQUIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA MADEIRA. Funchal: Comissão para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1989. p.28. Para a Madeira, ver também, GOMES, Fátima Freire. Oficiais e oficios no Funchal; século XVIII a princípio do XIX. In: ACTAS. p.201-11. 163

DRUMMOND. Annaes da Ilha Terceira. v.1, p.168.

99

corrente era, que nesses casos, todos os Vinte e Quatro ou Doze votassem. No Porto, para a escolha dos representantes da cidade nas cortes, houve casos em que votaram os Quarenta e Oito do povo.164 As cidades onde as corporações de ofício obtiveram maior poder de representação foram Lisboa e as outras que detinham os privilégios da capital. No Funchal, quando da criação da Casa dos Vinte e Quatro, o estatuto da organização dos mesteres de Lisboa foi enviado ao capitão-donatário com ordens de que fosse “inteiramente cumprido e guardado”.165 Na mesma situação encontrava-se Goa. De peculiar, nessa cidade adotou-se um nome indiano para os juízes de ofício: mucadão.166 No restante, ela se regia por normas idênticas às de Lisboa, conforme anotado no livro de privilégios da cidade.

V.- item. que o povo miúdo ordene-se em vinte e quatro dos mesteres assim como se fazem nesta cidade de Lisboa, e que quatro deles estivessem na Câmara assim e naquela própria forma, modo e maneira que estão na Câmara da dita cidade de Lisboa.167

Diferente do que ocorria na maior parte das cidades onde a participação dos procuradores dos mesteres era limitada, nessas três cidades eles detinham poderes praticamente idênticos aos dos vereadores, com direito a votar em todos os assuntos decididos em vereação, e não apenas nos de interesse das corporações de ofício.

Os mesteres tem vozes em todas as coisas seguintes, assim nem mais nem menos como os vereadores e procurador, a saber, na receita e despesa das rendas da cidade; na dada dos ofícios que à cidade pertence dar; nas vendas e dadas e aforamentos dos chãos maninhos, e assim dos outros que a cidade tem aproveitados em casas e outras benfeitorias; e nos arrendamentos das rendas da cidade, assim de pão como de

164

SILVA. O Porto. p.529.

165

Resposta a uma representação dos homens bons dos mesteres, datada de 21 de dezembro de 1483. Citado em PEREIRA, Fernando Jasmins (ed.). Índice dos documentos do século XV transcritos no tombo primeiro do Registro Geral da Câmara do Funchal. ARQUIVO HISTÓRICO DA MADEIRA; Boletim do Instituto Histórico do Funchal. 1958. p.71. 166

SOUZA. Goa medieval. p.154-5.

167

APO, fasc.2. p.4.

100 dinheiro; e em todas as cousas que seja da fazenda da cidade; e assim nas eleições dos almotacéis das execuções, e das propriedades, e Juizes dos órfãos. E os casos em que podem falar são em todos aqueles que redundam em proveito das rendas da cidade, e assim no que pertence ao bem comum dela.168

Por serem detentoras de 4 votos, e do privilégio que lhes dava o direito de tomarem parte em quase todos os assuntos da câmara, as corporações de ofício eram um poder respeitável em Goa. A aceitação deste fato nunca foi tácita por parte dos demais oficiais da câmara. Ao longo dos séculos XVI e XVII, os vereadores peticionaram insistentemente à coroa a redução desses poderes, tentando que a atuação dos procuradores dos mesteirais ficasse restrita apenas aos assuntos ligados diretamente às corporações de ofício. Nunca obtiveram uma resposta favorável. Este tipo de disputa não ocorria, contudo, apenas em Lisboa, Funchal ou Goa. Em todas as câmaras que tiveram procuradores dos mesteres, os oficiais maiores pressionavam para que o poder de intervenção dos mesmos ficasse restrito aos assuntos estritamente vinculados ao exercício das profissões mecânicas, como a criação de regimentos profissionais, os exames de proficiência nos ofícios e os tabelamentos de preços impostos pela municipalidade à produção artesanal. Já os procuradores dos mesteres procuravam alargar os seus poderes de intervenção o máximo possível. Em Coimbra, no início do século XVI, os procuradores dos mesteres experimentaram um súbito aumento de poder. Contudo, foi apenas um episódio de curta duração. No decorrer de uma epidemia, em 1508, os oficiais maiores da câmara abandonaram a cidade, deixando sua administração por conta dos mesteirais, os quais procuraram fazer permanentes os ganhos de poder obtidos naquele momento de crise. Ao retornarem à cidade, juízes e vereadores se acomodam com a nova situação. Mais tarde, porém, esses oficiais recorreriam ao rei, na tentativa de fazer com que a estrutura de repartição de poderes voltasse à situação anterior à sua fuga.

Os ditos vereadores e oficiais nos enviaram dizer por sua informação como de

168

Apontamentos que vieram da Câmara de Lisboa, transcritos no LIVRO DOS PRIVILÉGIOS DE GOA. APO. p.79.

101 antigamente os dois oficiais dos mesteres que estavam na Câmara da dita cidade soíam de estar sentados em um banco afastados da mesa onde ele juiz e oficiais estavam e que ora de pouco tempo a esta parte por negligência de alguns vereadores que a elo não atentaram e assim pela esterilidade das pestes passadas sendo os ditos vereadores dessa cidade arredados, os ditos mesteres por ficarem em seu lugar e terem o regimento dela chegaram o dito seu banco à mesa onde o ora tinham, dizendo que estavam de posse de o terem ali, o que se assim era o havíamos por mal feito e portanto mandamos ao dito licenciado que tanto que lhe apresentado fosse se informasse do dito caso e achando ser assim que de pouco tempo a esta parte se fizera a tal mudança lhes mandasse tornar seu banco e assento onde de antigamente soía de estar e aos vereadores e oficiais restituísse a sua posse; e que pelo conseguinte nos enviaram mais dizer que antigamente os vinte e quatro dos misteres não tinham na dita Câmara mais de duas vozes, assim na dada dos ofícios e eleições da dita cidade como nas vereações que se faziam e os tais vinte e quatro diziam seu parecer àqueles dois que estavam na Câmara, os quais dois em nome de todos os outros davam as ditas vozes e que isso mesmo de pouco tempo a esta parte todos vinte e quatro se metiam dar cada um sua voz na dita Câmara e estar nela como cada um dos ditos dois oficiais, no que eram muito agravados.169

A sentença dada pelo rei, em 1509, era completamente desfavorável às pretensões dos mesteirais. D. Manuel determina que apenas “dois de cada mester, estejam presentes e dêem suas vozes nas eleições dos juízes e vereadores e procurador, e assim nas dadas de ofícios e no fazer das posturas e em outras coisas graves que deva de haver ajuntamento”. Completando o revés, o rei restabeleceu a situação física dos procuradores dos mesteres nas sessões camarárias. “Os dois dos mesteres que estão nas câmaras quotidianas e ordinárias não darão suas vozes nem assinarão nos feitos que em a dita câmara houverem de despachar e os assentos estarão onde sempre estiveram antigamente”. Eles podiam continuar acompanhando as sessões em situação subalterna e sem poder intervir mais que nos assuntos que diziam respeito diretamente aos mesteirais. No Brasil, as disputas eram exatamente as mesmas. Desde 1643, os procuradores dos mesteres, enfrentaram a resistência dos demais oficiais da câmara, que punham em dúvida a legalidade da representação dos mesteres e a amplitude do seu poder de voto. Uma primeira vitória dos mesteirais foi o alvará de 28 de maio de 1644, em resposta a pedido do procurador, que concedia-lhes os mesmos direitos que

169

CARVALHO, José Branquinho de (ed.). Livro 2º da correia; cartas, provisões e alvarás régios registados na câmara de Coimbra. 1273-1754. Coimbra: Biblioteca Municipal, 1958.

102

possuíam “nas mais cidades deste reino”.170 Isto foi interpretado como uma autorização para intervir em todos os assuntos tratados na câmara. Contudo, a convivência nunca foi pacífica e, no início do século XVIII, deteriorou-se completamente quando os procuradores dos mesteirais foram proibidos de participarem das reuniões do senado.

Viessem somente a esse senado requererem os lugares que para seu assento estão deputados, aquilo que entendessem que era útil ao povo, e que feitos os ditos requerimentos saíssem para fora da [....] Casa do Senado e não assistissem nas vereações que faz este Senado, por haverem as resoluções dos negócios e segredos que só devem ouvir os vereadores; e com efeito se lhes mandou pela Mesa e vereação que não viessem mais às vereações e somente podiam fazer os seus requerimentos. S. C. M. de Salvador, 15 de fevereiro de 1710.171

O centro da questão que opunha os procuradores dos mesteirais e os demais oficiais da mesa era o abastecimento da cidade e o tabelamento do preço dos gêneros. Por este motivo, os mesteirais procuravam intervir na eleição dos almotacés.172 A repartição da carne e do pescado era particularmente problemática e reproduzia a hierarquia social. O historiador António de Oliveira Cadornega, descreve como se procedia nesta repartição em vila Viçosa, no século XVII.

E tudo se gastava, repartindo, assim a carne, como o peixe, por almotacéis, dando a cada um o seu lugar e aviamento, conforme a qualidade de cada um - Primeiro para Palácio, depois para Conventos de frades e freiras, fidalguia, nobreza* e povo.173

Pela ordem de precedência, depreende-se que, para o povo, ficavam os restos.

170

RUY, Affonso. História da Câmara Municipal da cidade do Salvador. Salvador: Câmara Municipal, 1953. p.176. 171

Citado de RUY. História da Câmara. p.181.

172

Às vezes eles sofrem alguns reveses. Em 1546, o corregedor dos Açores proibiu que os procuradores dos mesteres acompanhassem a eleição dos almotacés. DRUMONND. Annaes da Ilha Terceira. v.1, p.115. 173

CADORNEGA, António de Oliveira. Descrição de Vila Viçosa. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1982. p.112. *nobreza = homens bons, as famílias que detinham as governanças das cidades, oligarquia municipal.

103

Uma das lutas conduzidas pelos procuradores dos mesteres era pela obtenção do privilégio de que existissem açougues exclusivos para o povo. Ao menos no Porto, Coimbra e Funchal eles foram vitoriosos, conseguindo que os mesteirais tivessem açougues próprios. A questão do abastecimento e dos preços da carne, também estava presente no ciclo de revoltas tributárias que, na década de 1630, anunciaram o fim do reinado dos Habsburgos em Portugal. Filipe III (IV) ampliou os impostos sobre o consumo sem reunir as cortes. Para fazer valer estes tributos, considerados ilegítimos, teve que enfrentar a resistência das câmaras. Em diversas vilas e cidades, a chegada dos representantes do fisco, que deviam pactuar a cobrança dos novos impostos, serviu de estopim a levantes populares, principalmente contra o ‘real d’água’, que incidia sobre o consumo da carne, encarecendo-a. Enquanto a nobreza fazia jogo duplo, ora omitindose, ora incentivando ocultamente as revoltas, as organizações corporativas assumiram a condução do processo. Em muitos casos, o envolvimento das Casas dos Vinte e Quatro, ou dos Doze, nas revoltas não era uma escolha, mas imposição popular. Nos locais em que a cobrança foi aceita, a ira popular voltou-se, inclusive, contra os representantes dos mesteirais. Em Vila Viçosa, por exemplo, o levante inicia pela destruição das balanças dos açougues, um ato simbólico que se repetiu em diversas localidades. Logo, os revoltosos se voltam contra “o Letrado que tinha os papéis das fintas do Real d’Água, e os doze mesteres do povo que tinham cuidado em os açougues daquela cobrança”. Durante a noite, a casa do letrado foi incendiada, o que não bastou para aplacar a revolta.

Começou o povo, tanto que foi manhã, atumultuado, a irem buscar os doze do povo para neles fartarem sua sede. Começaram por um tendeiro, chamado de alcunha o Folgueta, que morava na mesma rua onde havia sucedido o sucesso ao triste Letrado. O bom tendeiro achava-se com barris de passas e figos. Começou a botar-lhas, dizendo: ‘Deixai-me, filhos, eu que mal vos fiz?’174

174

CADORNEGA. Descrição. p.98-100.

104

O mal tinha sido a conivência e a participação na cobrança do real d’água. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, as organizações corporativas envolveram-se em diversos outros levantes provocados por questões de abastecimento e de tributos. As figuras chave destas revoltas não seriam tanto os procuradores dos mesteres mas os juízes do povo, ou seja, os presidentes das Casas dos Vinte e Quatro e dos Doze. Em 1711, ocorre em Salvador a famosa revolta, chefiada pelo juiz do povo, contra o aumento do preço do sal e o tributo de 10% que passaria a ser cobrado sobre as mercadorias importadas.175 À mesma época em que Lisboa foi destruída por um terremoto também foi fatídica para as corporações dos mesteres. Nos Açores, em 1757, as classes mesteirais desafiaram as câmaras e desobedeceram ordens do rei, para impedir que o trigo que estava em falta nas ilhas fosse mandado para Lisboa. Em Angra, a câmara não atendeu ao pedido dos mesteirais. Em represália, estes depuseram os juízes e vereadores, colocando oficiais mecânicos em seu lugares. A revolta foi reprimida a bala e os chefes dos revoltosos foram presos. Pouco depois, os mesteirais da vila da Praia, da mesma maneira que os de Angra, comparecem em massa à casa do concelho, cobrando uma ação dos veredores.

Que visto acharem-se morrendo à fome, pois não havia quem lhes quisesse vender trigo nem milho, eles oficiais da câmara obrigassem as pessoas que tinham guardado esses gêneros lhes vendessem o que lhes fosse necessário para si e suas famílias.176

O exemplo de Angra estava bem vivo. A câmara da Praia simplesmente mandou requisitar os cereais que estavam na alfândega, para serem remetidos a Lisboa, por ordem do rei, e vendê-los ao povo a preço tabelado..

175

Sobre esta revolta, ver RUY. História da Câmara. p.182-4. No Brasil são raríssimos os trabalhos que examinam as relações entre as câmaras e os trabalhadores urbanos. FLEXOR, Maria Helena Ochi. Os oficiais mecânicos em duas regiões brasileiras: Salvador e São Paulo. UNIVERSITAS; Revista da Universidade Federal da Bahia. Salvador, n.37, jul.-set.1986. p.33-52. RABELO, Elizabeth D. Os ofícios mecânicos e artesanais em São Paulo na segunda metade do século XVIII. REVISTA DE HISTÓRIA, São Paulo, v.56, n.112, 1977. p.575-88. 176

DRUMMOND. Annaes da Ilha terceira. p.273.

105

Este tipo de ação levou a que muitas organizações corporativas fossem extintas. No Porto, o envolvimento da organização corporativa numa suposta revolta contra o papel selado, levou à sua extinção em 1661.177 Todavia ela voltou a funcionar à partir de 1668. Em Braga, não havia mais representantes dos mecânicos na câmara desde os finais do século XVII; em Ponta Delgada, a partir de1700.178 Nestes dois casos, não se conhecem os motivos da extinção. Nos levantes de Angra e Salvador a coroa tomou decisões salomônicas. Os próprios governadores do Brasil e dos Açores foram punidos ou advertidos por terem sido inábeis, e a punição dos revoltosos limitou-se aos cabecilhas. A contrapartida foi a supressão da Casa dos Doze de Salvador em 25 de fevereiro de 1713, e a de Angra em 29 de novembro de 1757.179 Situação limite foi o levante dos mesteirais do Porto contra a redução do número de tabernas na cidade. Esta questão pontual tinha por pano de fundo a insatisfação geral contra o monopólio da comercialização de vinho pela Companhia do Douro.180 No levante portuense, nada acontecera além dos distúrbios de Salvador, que levou à deportação de alguns cabeças, ou dos de Angra, onde apenas o juiz do povo foi executado. No Porto, as penas foram completamente desproporcionais ao delito. Vinte e seis pessoas foram condenadas à morte, entre elas dois juízes do povo.

Que com baraço, e pregão pelas ruas públicas desta cidade sejam levados ao campo da Alameda fora da Porta do Olival, onde principiou essa horrenda Sedição, e nas forcas, que para este suplício se levantaram, morram morte natural para sempre; depois do que lhes serão separadas as cabeças, e postas nas forcas, que também se levantaram defronte da porta do dito infame Juiz do Povo, e na Rua Chã, fora das portas de Cima de Villa, e no Terreiro de Miragaia, aonde tudo estará até que o tempo o consuma; e outrossim os condenam na confiscação de todos os seus bens para o fisco, e Câmara Real; e os declaram incursos no crime de lesa Majestade de primeira cabeça, e por isso infames para sempre sua memória, e seus filhos, e netos.

177

Isto é apenas uma suposição. Ver SILVA. O Porto. p.545.

178

RODRIGUES. Poder municipal. p.103.

179

Em Portugal, a instituição foi abolida por um decreto em 7 de maio de 1834.

180

SILVA, Francisco Ribeiro. Os motins do Porto em 1757; novas perspectivas. In: POMBAL REVISITADO. Lisboa: Editorial Estampa, 1984. pp.247-83.

106

Além das penas capitais, mais de duzentas pessoas foram condenadas a penas diversas, desde galé perpétua a 6 meses de prisão. A exemplaridade dessas punições, ficaria mais evidente com a publicação da sentença e outros documentos, “que aos Historiadores seriam muito estimáveis”, com objetivo expresso de corrigir os erros do que saíra na imprensa estrangeira. Conclui o editor, o escrivão do processo, que a publicação “será muito útil a todas as Monarquias, para que conservada nos tempos futuros a memória desse suplício, se contenham os que intentarem semelhantes desordens”.181 Pelo lado institucional, houve ainda a extinção da Casa dos Vinte e Quatro, por carta régia de 10 de abril de 1757. É interessante perceber que, passados os tumultos, as câmaras voltam a solicitar a reinstalação das casas corporativas e a admissão de seus procuradores nas vereações. Em Salvador, foi a própria câmara que pediu o fim dos representantes dos mesteres. Todavia, poucos anos depois (1715 e 1716) ela solicitou à coroa a reinstalação. Não obteve resposta. No Porto, os juízes e vereadores lamentavam-se do fim dos Vinte e Quatro. A casa foi restabelecida por D. Maria I, em 1795. Isso se explica pelo simples fato que entre as áreas do direito de almotaçaria em que atuavam as câmaras, a do mercado era a mais complexa e de efeitos mais explosivos. A administração do abastecimento e dos preços não podia ser feita de maneira impositiva e a presença dos procuradores dos mesteirais permitia que se estabelecessem consensos. Em algumas câmaras como a do Porto, eles eram oficialmente considerados fiscais dos atos dos almotacés, tendo por obrigação acompanhá-los nas correições que faziam pela cidade.182 No século XVII, quando a câmara de Salvador participou da criação da Casa dos Doze na cidade, os seus motivos eram explícitos. “Cessaria a queixa que o povo tinha de andar esta República tão mal governada sem que os almotacés possam acudir a

181

MELLO, José Mascarenhas Pacheco Pereira Coelho de. Sentença da alçada que El Rey Nosso Senhor mandou conhecer da rebelião succedida na Cidade do Porto em 1757. In: PORTUGAL. Collecção de Leis, Decretos e Alvarás, que comprehende o feliz reinado del Rei Fidelíssimo D. José o I. Lisboa: Officina de Antonio Rodrigues Galhardo, 1797. 182

SILVA. O Porto. p.539-40.

107

emenda dos vendeiros que em tanta soltura não dão comprimento as posturas da Câmara nem dos almotacés”.183 Em Loulé, onde a representação dos mesteres fora extinta, provavelmente devido aos motins do real d’água, a câmara solicitou ao rei autorização para a sua reinstalação, alegando que a vila “padecia algumas calamidades, por não se poder acudir a tudo, como quando os havia”.184 Motivações dessa natureza demosntram que, se a convivência com os procuradores dos mesteres era difícil, pior era envolver-se diretamente nos conflitos de mercado. Além disso, as corporações dos mesteirais desenvolviam algumas formas de controle social sobre a população trabalhadora. Em 1492, os representantes dos mesteres do Funchal assinam um acordo entre si para se reunirem no primeiro domingo de cada mês “levando cada um a lista dos homens e mulheres que mal vivessem, e fazerem um rol para que a câmara tomasse as medidas necessárias à boa governação da terra”.185 Em Salvador os mesteirais conseguiram proibir a fabricação de cachaça “por ser muito danosa ao bem comum. [....] Outrossim da abundância da aguardente morriam muitos negros”.186 183

SALVADOR. Ata da câmara de 22 de maio de 1641. DOCUMENTOS HISTÓRICOS DO ARQUIVO MUNICIPAL. v.2, p.15. 184

ANDRADE E SILVA. Collecção. p.153.

185

Confirmação de um acordo feito entre si pelos vinte e quatro dos mesteres, datada de 14 de junho de 1492. Citado em PEREIRA, Índice, p.81-2. 186

SALVADOR. Ata da câmara de 11 de agosto de 1646. DOCUMENTOS. p.313. Ver

108

também. p.321-6. Note-se que a proposta dos mesteirais foi levada a votação e aprovada pelo senado. Isso contraria bastante a noção corrente de que a câmara de Salvador representava os interesses agrários. A medida era de interesse dos comerciantes de vinho português e foi combatida pelos donos de alambiques do recôncavo. Mesmo assim, foi adotada, embora os seus efeitos práticos sejam duvidosos. A documentação refere-se à aguardente de “mel”, eu é que estou presumindo tratar-se de mel de cana, ou melado.

109

O DIREITO DE ALMOTAÇARIA

Feito este nosso rápido sobrevôo sobre a configuração institucional da cidade de Portugal e das suas colônias, chega o momento de colocar um ponto. Não um ponto final, mas um embaraçoso ponto de interrogação. É neste jogo de perde e ganha de autonomia política (seja frente aos senhores, ao rei, à metrópole ou ao estado) que se define o urbano? A resposta é ainda mais embaraçosa. Um sonoro não. Já vimos anteriormente, que as pessoas da Baixa Idade Média “não pensavam, ao obter os forais, as franquias, em criar uma cidade”.187 Da mesma forma, os conflitos políticos entre o poder local e os agentes do estado central ou dos donatários não criavam ou mantinham a cidade. Elas diziam respeito ao estatuto político dos moradores. Se não são as franquias, nem as magistraturas eletivas, nem os privilégios de cada comunidade que definem o urbano, como fazê-lo? Como a cidade toma consciência de si? Há, obviamente, uma consciência física, fornecida pela aglomeração de edifícios. O urbano é uma interioridade, um sentido de separação com o exterior não citadino. Isto não é tudo, no entanto. Vive-se neste espaço e para que isso seja possível alguém (todos, muitos ou poucos) precisa tomá-lo aos seus cuidados. Alguém precisa ser o responsável por veer a cidade. Administrá-la, no sentido mais lato. Se atentarmos

187

LE GOFF, Jacques. O apogeu da cidade medieval. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p.5.

110

para aquilo que é administrado, saberemos muito sobre o que é entendido como urbano num dado momento, sem a necessidade de recorrer a definições prévias. Na cidade portuguesa da Baixa Idade Média, a definição do campo da ação administrativa têm um nome muito preciso: almotaçaria.188 No norte da Europa, este campo precisou ser redefinido, podendo-se falar em uma invenção das instituições administrativas da cidade. Na Península, entretanto, não houve uma completa descontinuidade urbana e a instituição administrativa correspondente foi herdada com a cidade islâmica. Herança não estática, pois cidade e almotaçaria foram reformuladas pelos novos senhores cristãos. No entanto, especialmente em relação à almotaçaria, ao lado do processo de reelaboração existiram permanências, as quais, como veremos, se inscrevem no sentido mais profundo do urbano. Apesar de ser específica da cidade ibérica, a almotaçaria foi uma das instituições medievais menos estudadas pelos historiadores portugueses. Isto porque confundiu-se a pálida figura do almotacé da idade moderna com o instituto da almotaçaria, algo bastante mais amplo e complexo.189 Em geral, esquecem-se de um detalhe fundamental. Se, através da eleição de seus alvazis (juízes) os moradores da cidade medieval apresentam-se na cena histórica como pólis, comunidade política dos cidadãos, dotada de jurisdição e território; com a escolha dos almotacés ela tornou-se urbe, comunidade administrativa autônoma.

188

A palavra almotaçaria, desde a Idade Média, tanto em sentido geral, para designar a instituição ou suas atribuições, quanto em sentido particular, para designar as atividades mais correntes do almotacé e, depois, da câmara em relação ao abastecimento das cidades. Almotaçar era fiscalizar o comércio, ou garantir que todos pudessem encontrar alimentos no mercado, impondo racionamento quando preciso, ou, ainda, tabelar preços. Neste último sentido, que chegou ao século XIX, a almotaçaria era qualquer tabelamento de preços, mesmo os que não tinham origem nos concelhos. Ver, por exemplo, o famoso tabelamento geral dos preços do reino, de autoria de D. Afonso III. LEI DE ALMOTAÇARIA; 26 de dezembro de 1253. 2. ed. Lisboa: Banco Pinto & Sotto Mayor, 1984. 189

A historiografia brasileira praticamente ignora os almotacés. No entanto Taunay acreditava que, em São Paulo, a sua importância aumentou durante o século XVIII. Isto talvez aconteça devido ao crescimento da cidade no período. “À medida que avançam os anos setecentistas se apuravam as demonstrações civilizadoras. Assim iam os almotacéis tomando importância que jamais haviam tido.” TAUNAY, Affonso de E. História da cidade de São Paulo no século XVIII. 1701-1711. ANNAIS DO MUSEU PAULISTA. tomo 5, 1931. p.401.

111

AL MUHTASIB

A autonomia da administração urbana era algo completamente desconhecido na civilização muçulmana. Os oméias, califas de Bagdá, representam a passagem de uma confederação de guerreiros tribais nômades para um estado imperial e centralizado. O império omíada deixara para trás os tempos do deserto e a administração passou a ser feita através de uma cadeia de cidades. No entanto, tais cidades estavam completamente submetidas à autoridade central, através de seus delegados regionais e locais. Os muçulmanos reproduziam muito das estruturas administrativas do império bizantino, do qual se haviam apossado da maior parte do território. Foram esses mesmos oméias, apoiados em exércitos de berberes convertidos ao islã, que empreenderam a conquista da Península Ibérica, incluindo-a em seu estado imperial. Se tentássemos buscar as origens da instituição da almotaçaria seria fácil traçar a linha de filiação que vai do edil curul romano, ao agoranome bizantino e ao muhtasib islâmico, depois cristão. No entanto, essas genealogias mais confundem do que esclarecem, pois, da mesma forma que os cristãos, os muçulmanos são herdeiros e continuadores das tradições greco-romanas. Basta-nos, portanto, examinar o almotacé sob o ponto de vista da continuidade, ou não, entre as administrações das cidades pré e pós reconquista. Na cidade muçulmana, esse oficial era o responsável por uma de suas instituições urbanas características: a Hisba. Tal instituição tinha como missão a vigilância e aferição dos pesos e medidas; a eqüidade das transações comerciais; o controle dos diversos ofícios da cidade; a verificação do estado dos artigos de consumo alimentício; e, a sanidade urbana. Era também responsável pela cidade enquanto entidade física. Cabia à hisba a reparação das muralhas, a manutenção das vias públicas e o controle das construções, de forma a evitar que estas ultrapassassem os limites dos lotes, apropriando-se terras públicas ou de vizinhos, ou que infringissem as normas construtivas vigentes, provocando um excessivo estreitamento ou ensombrecimento das

112

ruas.190 Em árabe, o titular da Hisba era denominado Muhtasib. Quando o ofício foi incorporado, com algumas variações, nas diversas tradições municipais dos reinos da península ibérica o termo foi mantido: almotacé, em Portugal, almotacém, em Castela, e mustaçaf, nos reinos orientais da península e nas Baleares. Os reis cristãos não apenas mantiveram o cargo, após a reconquista, como a forma de provê-lo. Do mesmo modo que seus antecessores islâmicos, resguardaram para si a nomeação dos ocupantes, através de seus agentes locais, os alcaides, procurando manter o controle administrativo e econômico das cidades.191 Nos diversos reinos peninsulares, o processo de transformação do almotacé, de funcionário régio em oficial concelhio, não foi idêntico. Variou de reino para reino. Em Barcelona, por exemplo, ele só se concluiu no final do século XV. Mesmo nessa época, a escolha do mustaçaf era feita através de uma lista tríplice ou quádrupla apresentada pelos homens bons ao soberano de Aragão, a quem competia a escolha final. No caso português, as câmaras de algumas cidades importantes obtiveram o privilégio de eleger os almotacés em período bastante mais recuado. Já vimos que o foral de 1179, dado por D. Afonso Henriques a Lisboa, Santarém e Coimbra, atribuía àqueles concelhos o poder de escolha desse oficiais. Posteriormente, muitos concelhos ao sul do Tejo receberam forais que consignavam o mesmo privilégio, tornando a eleição concelhia dos almotacés princípio generalizado. Isto ocorre em algumas cidades que adotaram forais semelhantes ao de Coimbra, de 1111, e na generalidade das que tinham foros semelhantes aos de Ávila e Salamanca.192 Esta situação recobria parte da Beira, a Estremadura e o Alentejo. Mais tarde, com a conquista do Algarve, às cidades

190

SEVILLANO COLOM, Francisco. De la institucion del mustaçaf de Barcelona, de Majjorca y de Valencia. ANUÁRIO DE HISTÓRIA DEL DERECHO ESPAÑOL. Madrid, t.23, 1953. p.527. 191

CAETANO, Marcelo. A administração. p.16-7. SEVILLANO COLOM. De la institucion.

192

SOARES. Os vereadores. p.101.

p.530-2.

113

da região seriam dados forais semelhantes ao de Lisboa, o que as colocaria na mesma situação. Assim, do século XIII em diante, é mais ou menos padrão que o almotacé fosse um oficial do concelho. No entanto, a sua escolha foi, por muito tempo, compartilhada entre os concelhos e o alcaide, um delegado do poder régio. Esta prática aparece consignada nos forais e costumes de muitas cidades e vilas, como no caso dos costumes de Beja do século XIV.

Costume, que o alcaide e alvazis, e o concelho cada um mês façam seus almotacés, e ponham quais posturas quiserem e as tolham cada que quiserem, cada que é prol do concelho.193

Lembremos que essa região, onde a presença islâmica foi mais duradoura, era a porção do território português que concentrava os maiores núcleos urbanos, em oposição ao norte, onde prevalecia uma ocupação de tipo aldeão. Pode-se afirmar, portanto, que na tradição urbana portuguesa, descontadas as primeiras décadas após a reconquista, a almotaçaria foi precocemente integrada na estrutura concelhia. No entanto, isto também significou uma atrofia do cargo de almotacé, o qual, progressivamente, tornar-se-ia um oficial menor, de nomeação dos vereadores e a eles submetido. Muitas de suas atribuições acabariam migrando para a alçada dos próprios vereadores ou de outros oficiais concelhios. Ao contrário do que aconteceu no reino aragonês, exemplo que tomamos para contraste. Ali, o cargo de almotacé evoluiu para uma autêntica magistratura urbana, no mesmo nível dos juízes do cível e do crime. Das cousas que pertencem O instituto da almotaçaria expressa com perfeição as instituições políticoadministrativas da Baixa Idade Média. A almotaçaria portuguesa tomou forma durante

193

COLECÇÃO DE LIVROS INÉDITOS DA HISTÓRIA DE PORTUGAL, v.4, p.527. Citado de LANGHANS, As posturas. Lisboa: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1937. p.22.

114

um período que, comumente, tem sido denominado de corporativo, ou de sistema político corporativo, ou, ainda, mais abrangentemente, de sociedade corporativa. Este período tem sido examinado como o de uma sociedade que emerge de uma “crise feudal” mas que não é ainda uma sociedade moderna. Trata-se de mais um destes tantos buracos negros das periodizações, que costumamos esconder sob o conceito teleológico de períodos de “transição”. Com transição, queremos dizer que, no exame a posteriori que nos é permitido fazer do período, encontramos algumas coisas que identificamos como restos de um passado mais remoto e outras que consideramos pertencer à gênese da nossa sociedade contemporânea. O instituto da almotaçaria atravessa a última Idade Média e se estende por todo este período de múltiplas ‘transições’ que, conforme o ângulo de observação, chamamos de Idade Moderna, Antigo Regime ou Mercantilismo. Ela pertence a um período para o qual não existe nome, algo que está entre o não-estado e o estado, entre o não-mercado e o mercado, entre a não-cidade e a cidade. Do ponto de vista das instituições, a almotaçaria pertence a uma época em que o poder político era representado como “articulação (hierarquizada) de múltiplos círculos autônomos de poder (corpora, communitates) - as famílias, as cidades, as corporações, os senhorios, os reinos, o Império”.194 A escolástica medieval foi a principal responsável por forjar a imagem da sociedade como um grande corpo, que é o resultado do funcionamento harmônico de seus corpos componentes (intermediários e menores), cada um deles dotado de uma autonomia limitada pelo funcionamento do todo. Estes corpos componentes, integrados por um conjunto de homens (corporação, cidade etc.), equiparam-se aos órgãos de um ser vivo. São necessariamente desiguais entre si, dotados de finalidades próprias, irredutíveis uns aos outros, mas indispensáveis ao funcionamento geral. A cabeça, responsável pela harmonia entre as partes, é identificada com o rei, o centro desta ordem. Trata-se de uma concepção hierárquica de sociedade, na qual não há, portanto, a menor pretensão a uma igualdade. Porém, ela

194

HESPANHA, História das instituições. p.66.

115

trabalha com um sentido de anti-individualismo, de pertinência a um todo coerente, e de estabilidade das coisas. Todos têm o seu lugar e todos têm direito a viver. Mas, a cada um segundo o seu estado. Nesta ordem, os órgãos menores são concebidos como miniaturas do grande corpo. Devem encontrar uma harmonia interna entre as partes que o integram e com a cabeça real. E a cidade também tem a sua cabeça, representada pelos concelhos, comunas, ou câmaras, além de diversos corpos menores: clero, fidalgos, cidadãos, corporações de ofício, ou as próprias famílias que a habitam. O modelo proposto pela escolástica medieval afirmava que a administração do reino e da cidade eram diferentes escalas de uma mesma coisa, uma concepção ainda hoje aceita. O que dizem as atuais teorias sobre o estado e as instituições? António Manuel Hespanha caracteriza a administração régia do período como “passiva”, exercício de um poder mediador que agia apenas para reconstituir a ordem quando se instauravam conflitos entre os corpos constituintes do reino. Para ele, o poder administrativo da cidade se manifesta de maneira semelhante à ação do rei.

Isto é verdadeiro em relação aos poderes das cidades cujo governo visa, antes de tudo, a consecução da paz urbana, apesar de as circunstâncias da vida em comum de grande número de famílias criarem problemas novos - relativos ao abastecimento, à saúde, ao urbanismo - que as cidades têm que resolver. 195

Note-se que Hespanha, apesar de tomar o partido da semelhança entre as práticas administrativas do rei e da cidade, abre caminho para a constatação da diferença. Mesmo não se debruçando sobre o tema da almotaçaria, ele escolhe as suas atribuições básicas (abastecimento, saúde e urbanismo) para caracterizar os problemas advindos do viver em cidade que, a nosso ver, dão o recorte preciso da ação da almotaçaria. No entanto, ele nos deixa em suspenso. Quais são as conseqüências institucionais advindas deste tripé de dificuldades que não se configuram como a administração passiva do rei e nem é idêntica à administração econômica privada (no

195

HESPANHA, História das instituições. p.67.

116

sentido grego de prover as necessidades dos membros da casa - oikos). Foi para evitar este problema que introduzimos uma separação entre a pólis e a urbe. E para que não seja um recorte arbitrário, vamos tentar esclarecer esta separação. A pólis é a identidade política da cidade, a esfera de delimitação de seus direitos e deveres com o rei e dos direitos e deveres entre os ‘corpos’ que a compõem. A urbes é o lugar da prática de harmonização interna entre as partes constituintes da cidade (administração). Prática que não compete ao rei, nem aos corpos menores, mas que é um dos direitos da cidade: o direito de almotaçaria. Os reis preferiam representá-lo como um direito adquirido através de doação régia. Já as cidades, costumavam postulá-lo como direito radicado, costume imemorial do qual estavam em posse. A almotaçaria é, simplesmente, a prática quotidiana deste direito, a administração da cidade. A diferença entre a administração do rei e a da cidade reside exatamente neste ponto. Enquanto a administração do rei era eminentemente passiva (poder mediador e judiciário), a da cidade era tanto passiva, pois também exercia o poder de mediar, quanto ativa, uma vez que os concelhos administravam uma “economia”. A longa história da formação do estado ocidental centralizado coincide com a apropriação desta esfera de administração ativa pelos reis. A cidade, a quem pertencia tal esfera, vai resistir durante muito tempo, encarando a ampliação dos poderes régios como usurpação dos seus. O estado nacional moderno não nasceu, portanto, de aprofundamentos e desdobramentos da esfera administrativa do rei, mas pela apropriação da esfera administrativa da cidade. O direito de almotaçaria e suas práticas correspondentes, forneceram o modelo sobre o qual formou-se o estado administrativo centralizado. Este direito de almotaçaria apoiava-se na noção de ‘preço justo’, que lhe fornecia a chave do controle de todas as atividades comerciais e artesanais da cidade. O conceito também passou pela elaboração doutrinária tomística. Na imagem escolástica da sociedade, cada corpo, além de ter um lugar próprio, tinha um valor absoluto e outro relativo, razoável ou proporcionado (relação = razão = proporção). O valor razoável, diga-se preço razoável ou justo, deveria ser fixado de acordo com as estações do ano, a

117

produtividade da terra, a distância entre produtor e consumidor, sem se ater aos interesses de grupos ou indivíduos.196 Esta noção de que o mercado deveria ser pautado pela moral, na busca do preço justo, define muitas das práticas de almotaçaria que se destinavam a garantir a qualidade da produção, impedir fraudes, tabelar preços, evitar monopólios e intermediações que encarecessem os produtos, estabelecer acordos com fornecedores ou mesmo racionar alimentos, quando necessário. Racionamento desigual e proporcional à condição de cada um, obviamente. É bom lembrar que, no universo de origem portuguesa, todas estas práticas adentraram o século XIX. Em relação ao construtivo, cabia à almotaçaria conduzir as obras feitas em “comum benefício”, assim como mantê-las. Também se incluía neste direito geral da cidade, mediar os conflitos provocados pelas construções, de modo a garantir a paz. O acesso à terra urbana também deveria ser pautado por princípios morais. Enquanto este poder não sucumbiu às pressões da especulação imobiliária (que se manifestou muito cedo), a terra urbana costumava ser doada a quem fosse aceito como vizinho (o morador da cidade). Não seria dado novo lote a quem possuísse outro sem construir. As casas abandonadas e arruinadas podiam ser doadas a quem quisesse ocupá-las. Isto subsistiu por longo tempo nas localidades menores de Portugal. Na maior parte do Brasil, a concessão de cartas de data (de doação da terra urbana) foi uma realidade até a primeira metade do século XIX. O sanitário, sempre tão negligenciado pelos estudiosos, também integrava, como já apontamos, o direito e a ação da almotaçaria. Era atribuição básica da cidade garantir a própria existência da vida em seu interior, assegurando o acesso ao alimento e ao abrigo, mas também mantendo o estado de saúde dos moradores. Não se tratava de prover uma medicina ativa (curativa) mas de manter um estado de equilíbrio (profilaxia) que permitisse à vida prosperar num ambiente que muito cedo se demonstrou nefasto. Para o modelo tomista, a saúde corpórea não se diferenciava da saúde moral.

196

Num tempo e lugar específicos as coisas tinham um valor razoável mantidas as condições. Ver HESPANHA, História das instituições. p.196-7.

118

Os males que afligiam o corpo da cidade eram causados pelo desequilíbrio entre suas partes ou pela má circulação dos humores entre as partes. As doenças morais eram provocadas pela falência de alguns órgãos ou pelo agigantamento de certas partes em detrimento de outras. A exemplo de qualquer mortal, as cidades eram atingidas por males físicos, tão ou mais mortais que os males morais. O excesso ou a estagnação dos humores urbanos faziam o corpo da cidade apodrecer. Era preciso, portanto, mantê-los em boa circulação. Esse modelo era um ideal de harmonia a ser atingido. Na cidade real, o que não faltou foram os desequilíbrios responsáveis pelas doenças físicas e morais. Todos sabemos que as instituições da cidade foram apropriadas em benefício de certos grupos ou indivíduos. Mesmo assim, ela forneceu aos seus moradores uma sensação de pertencimento a uma ordem urbana estável, que se apoiava nestas noções de moral e equilíbrio expressas no direito de almotaçaria. Em Portugal, o mais antigo regimento de almotaçaria que se conhece está inserido numa recompilação de posturas municipais de Lisboa dos séculos XIII e XIV.197 Esse documento apresenta, logo em seu início, a definição do âmbito de competência dos almotacés. Percebe-se, de imediato, uma permanência das atribuições que lhes couberam no período islâmico. Se projetarmos para o futuro, veremos que algumas de suas atribuições chegariam intocadas ao século XIX. Apesar de ter variado quanto à forma de indicação, duração do mandato ou mesmo sua importância na estrutura de cargos administrativos das cidades, não podemos deixar de nos surpreender com essa espantosa continuidade de nome e função.

197

POSTURAS DO CONCELHO DE LISBOA. (sec. XIV) Lisboa: Sociedade de Língua Portuguesa, 1974. Como era freqüente em muitas recompilações, não houve a preocupação de datar todas as posturas. As datas que aparecem no documento são: 1281, 1316 (era de 1352) e 1324 (era de 1360). Alguns autores acompanham o que dizia Sousa Sampaio, ao findar o século XVIII, enganando quanto ao rei ou quanto à data. “Nas Leis antigas se acha uma do Senhor Afonso IV [1325-1357] sobre a Almotaçaria, pela qual se vê, que já no seu tempo haviam Almotacés de cada mês nos Concelhos. E nas mesmas Leis se acha uma do mesmo Senhor de 1363, que prescreve as formas de sua eleição para cada mês, e prescreve as suas obrigações, e dos Almotacés pequenos postos por estes”. SAMPAIO, Francisco Coelho de Souza e. Preleção do direito pátrio, público e particular. [1794]. In: HESPANHA, António Manuel. Poder e instituições na Europa do antigo regime. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. p.444-5.

119

Na Lisboa do período, eram dois almotacés grandes, “um cavaleiro e o outro cidadão”, ambos escolhidos pelo concelho, os quais, por sua vez, indicavam dois almotacés pequenos ou menores. Em qualquer dos casos, a duração do mandato era de um mês.

Das cousas que pertencem. Em toda demanda que façam assim de parede como de portal que diz algum a outro que o não deve ali fazer ou que lha faz é no seu; ou sobre demanda que façam d’azevel ou d’esterco ou sobre água verter ou sobre demanda de ruas e de frestas e d’azinhagas e de pardieiros e de janelas e de madeira por nas paredes e sobre fazer ou alçar casas e sobre enxurros e canos e sobre balcões ou sobre taboados fazer e sobre feitos das ruas e das carreiras e das calçadas fazer e sobre monturos e as fontes limpar e resguardar e adubar* e outrossim sobre vinho de fora pôr e sobre todas as coisas compradas que forem para vender todas estas cousas sobreditas fazem e pertencem à Almotaçaria198

Apenas a seguir, aparece a competência pela qual estamos habituados a identificar os almotacés, a de fiscal dos pesos e medidas.

Os Almotacés grandes e pequenos em sembra* [e] cada um por si devem ser tidos de ver e guardar os pesos e as medidas por que vendem e compram também nas casas como nas adegas como nos outros lugares onde quer em tal maneira que sejam todos direitos e iguais a todos comunalmente também para os estranhos como para os da vila e as medidas e os pesos que acharem falsos quebrantá-los-ão e devem levar os Almotacés de qualquer falsidade para a almotaçaria da primeira vez 5 soldos e na segunda 5 e na terceira vez que aí for achado seja homem quer mulher devem-no por no pelourinho e pague de lá suso* 5 soldos ou lhe farão como mandar o Concelho se algum seu degredo passar que seja por ele posto.199

Há que perceber uma ruptura na redação entre os dois segmentos. Seguramente não saíram de uma mesma pena e não são de uma mesma época. Arriscaria afirmar que o primeiro trecho, pela colocação invertida do verbo, foi redigido originalmente em latim e depois traduzido, um tanto literalmente, para o português. Já a segunda parte, que confere ao almotacé a competência de fiscal de pesos e medidas,

198

PCL. p.45. *Adubar = aumentar, incrementar 199

PCL. p.45-6. *Em sembra = conjuntamente *Suso = de baixo, sob

120

obedece à forma padrão dos degredos ou posturas, nos quais estão incluídas as penalidades aos infratores. Pode-se imaginar que, de fato, a competência original dos almotacés lisboetas está definida no primeiro segmento, em que a preocupação com a sanidade urbana e o construtivo é acentuada. A suspeita é corroborada pela fórmula de encerramento, “todas essas cousas sobreditas que fazem e pertencem à almotaçaria”. Percebe-se, assim, que a ênfase da competência original do almotacé recai sobre o construtivo e o sanitário. No restante, ela ficava restrita a “sobre vinho de fora pôr e sobre todas as coisas compradas que forem para vender”, de onde deriva a responsabilidade sobre pesos e medidas.200 Na seqüência, o documento entra no âmbito característico das posturas municipais, desdobrando a competência do almotacé em algumas normas de controle urbano. É de notar a semelhança deste regimento com seus congêneres do restante do mundo hispânico. O original do documento a que nos referimos não mais existe em Portugal. Só nos é permitido conhecer o seu teor devido a uma cópia bastante antiga encontrada num arquivo de Navarra. Presume-se que essa cópia tenha servido de subsídio à elaboração de outros regimentos de almotaçaria. Nos reinos peninsulares, não era incomum que um município adotasse forais, regimentos ou posturas de outros, independentemente das fronteiras nacionais, ainda em formação. Ao analisar as mustaçafias do sudeste da península, o historiador espanhol Sevillano Colom percebeu que os diversos municípios da região tomaram como exemplo os regimentos de Valência. No que respeita às edificações, os mustaçfs estavam encarregados de resolver questões relativas às “servidões de paredes medianeiras, abertura de janelas, etc.,” em perfeita consonância com o que ocorria em Portugal.201 Tal ordem de atribuições não era, portanto, uma peculiaridade da

200

Este último trecho do Regimento pode sugerir que, no que concerne à polícia econômica, os primeiros almotacés cristãos teriam sido fiscais dos direitos reais de relego e portagem. 201

SEVILLANO COLOM. De la institucion. p.536-7. Não tive a oportunidade de consultar diretamente os documentos originais, ou mesmo as suas transcrições, citadas pelo historiador. Todavia, por tudo que menciona, tem-se a certeza de que ele tinha em mãos regulamentos em tudo semelhantes aos portugueses.

121

almotaçaria de Lisboa, ou de alguns municípios portugueses.202 Neste aspecto, parece haver uma homogeneidade peninsular, herdada de um passado islâmico comum das cidades dos novos reinos cristãos. As atribuições dos almotacés de Lisboa aparecem muito mais desenvolvidas em um regimento de 1444.203 No entanto, neste documento, a definição das esferas de competência não é mais do que uma cópia do regimento anterior. O que se altera é o corpo de posturas que o acompanha, no qual as questões urbanas aparecem muito mais esmiuçadas. Não podemos, todavia, concluir que o desenvolvimento que a questão urbana sofre neste diploma seja exatamente deste período, ou redigidas em Lisboa. Nada nos garante que não temos em mãos uma recompilação de posturas mais antigas, ou cópia da legislação de outra localidade, apenas reiteradas por esse diploma.204 É o que nos sugere a comparação com regimentos de outros reinos da península, onde é possível encontrar os mesmos desdobramentos da competência dos almotacés em períodos bastante mais recuados e que consignam medidas idênticas às adotadas em Portugal. Ainda durante o século XV, o cargo de almotacé de Lisboa foi desdobrado em três. Os almotacés mores ficaram com a responsabilidade do mercado, enquanto a limpeza e os conflitos construtivos foram entregue a almotacés menores especializados. Note-se que estas especializações correspondem às três áreas básicas da competência da almotaçaria.

Digo que há três maneiras de almotacés desta cidade, a saber, dois das execuções e almotaçaria, e dois das propriedades, e dois da limpeza. E os dois das execuções

202

Na Santarém trecentista, cabia ao almotacé arrecadar as multas dos que infringissem as posturas “das azinhagas, e das paredes, e dos monturos e de peso falso”. Ver LANGHANS, Franz-Paul. As posturas. p.31. 203

204

LPA. p.98-113.

Em diversas posturas é empregado o termo vila, e não cidade, para designar Lisboa. Considerando que ela nunca teve o estatuto de vila, pode-se tomar este detalhe como indicativo de que estas posturas não foram originalmente redigidas em Lisboa, mas são cópias descuidadas da legislação municipal de alguma outra localidade. Outra hipótese a considerar é que o uso do termo vila refere-se à parte amuralhada da cidade.

122 servem de repartir a carne e tomar conta aos obrigados à cidade, e olhar pelo peso do pão, e almotaçar os mantimentos e frutas e legumes, que vêm à cidade, pondo-lhe o preço conforme ao tempo; prover nas medidas e pesos daqueles oficiais que vendem suas mercadorias por peso e medida; e assim prover nas mesmas mercadorias e obras dos oficiais mecânicos se são quais devem para desengano do povo; e fazer guardar as posturas e pregões; e fazer execuções contra aqueles que as ditas posturas e pregões não guardam, executando neles as penas das ditas posturas; e julgarão as soldadas e serviços e braçagens até a quantia de seiscentos réis, sem apelação nem agravo segundo forma da ordenação [....]. Há aí dois outros almotacés que se chamam da limpeza, os quais não servem de outra coisa, somente de fazer limpar a cidade. Estes têm alçada de penhorar e prender as pessoas que fazem sujidade nos lugares defesos, e dão execução às penas que pelas posturas da cidade são postas acerca da limpeza [....]. Há aí outros dois almotacés que se chamam das propriedades, que se elegem por um ano somente, os quais conhecem por ação nova das contendas que aí há entre partes acerca de um abrir janela sobre telhado, ou quintal doutro seu vizinho por maneira que o devasse, e coisas desta qualidade, não o podendo fazer, segundo forma do foral da cidade [....].205

É importante mencionar que o interesse do regimento de 1444 não se resume à cidade de Lisboa. Foi com base nele que muitas cidades portuguesas elaboraram os seus. No universo colonial, também vamos encontrá-lo em vigor, nas cidades do oriente e das ilhas atlânticas que receberam o privilégio de tomar a câmara de Lisboa como modelo para suas organizações municipais, casos de Funchal, na Madeira, e de Goa, na Índia. Nessas duas cidades, as câmaras solicitaram à sua congênere lisboeta que lhes enviasse os regulamentos pelos quais se regia, entre eles o da almotaçaria.206 Outro exemplo nos é dado por São Tomé. Entre os privilégios concedidos a Álvaro Caminha, terceiro donatário da ilha, estava o de poder fundar um município amparado nos regimentos de Lisboa. Como já mencionamos, o rei tomou o cuidado de escrever à câmara da capital para que esta desse cópias dos seus regimentos ao donatário.207 Diga-se de passagem que as funções dos almotacés foram mantidas em todas as colônias portuguesas, bem como o termo pelo qual eram designados. No Brasil, o

205

APO. fasc.2. p.76-7. Almotacés da limpeza apareceriam em outras cidades. Todavia o das propriedades parece que ficou restrito a Lisboa. 206

Diversos regimentos de Lisboa, entre os quais o da almotaçaria de 1444, foram copiados integralmente no LIVRO DOS PRIVILÉGIOS DA CIDADE DE GOA. Ver transcrição integral em APO. fasc.2. p.27-35. Para o Funchal, ver FERRAZ. A ilha da Madeira. p.65. 207

Carta régia de 22 de agosto de 1493 transcrita em ALBUQUERQUE, Luís (org.). A ilha de São Tomé nos séculos XV e XVI. Lisboa: Publicações Alfa, 1989. p.58.

123

nome só foi latinizado no século XIX, quando o termo foi substituído por fiscal.208 Mencionamos aqui alguns casos de transposição direta do regimento dos almotacés lisbonenses. Entretanto, há que considerar, ainda, que esse regimento está na base do que as Ordenações Manuelinas codificaram sobre os almotacés. Desta forma mediata, o seu alcance atingiu o conjunto do universo urbano português da Europa e das colônias. Neste ponto, a historiografia portuguesa mais recente costuma cometer um equívoco. Enquanto alguns historiadores, como Marcelo Caetano ou o próprio Herculano, chamaram atenção para o amplo leque de atribuições urbanísticas dos almotacés, outros, de gerações mais recentes, costumam apresentá-las como competências

adquiridas

tardiamente,

através

das

Ordenações

Manuelinas,

principalmente aquelas voltadas ao processo edificatório.209 É o que afirmam Banha de Andrade, em sua monografia sobre Montemor-o-Novo, ou António Manuel Hespanha, em sua História das Instituições.210 Tal engano é compreensível, uma vez que as Ordenações Manuelinas (século XVI) delegam algumas atribuições aos almotacés que não constavam das Afonsinas (século XV), o que levou à suposição de que fossem uma novidade. No entanto, elas não são mais do que redação modernizada dos antigos regimentos dos almotacés de Lisboa.

Os ditos almotacés conhecerão de todas as demandas, que se fazem sobre o fazer, e o não fazer de paredes de casas, ou quintais, e assim de portais, janelas, frestas ou eirados, ou tomar ou não tomar d’águas de casas, ou sobre meter traves, ou qualquer outras madeiras nas paredes, ou sobre estercos e sujidades, ou águas, que se lançam

208

No universo colonial castelhano, o quadro era mais complexo. Em alguns municípios parece não haver oficiais que reunissem as atribuições clássicas dos almotacés, em outros eles eram denominados diputados. Ver, por exemplo, as Ordenanzas del Cabildo de Quito transcritas no apêndice documental de DOMINGUEZ COMPAÑY, Francisco. La vida em las pequeñas ciudades hispanoamericanas de la conquista. Madrid: Ediciones Cultura Hispanica, 1978 209

HERCULANO. História de Portugal. v.7, p.320-1. CAETANO. A administração. p.16.

210

ANDRADE, Montemor-o-Novo. p.33-4. HESPANHA, História das instituições. p.249-50.

124 como não devem, e sobre canos e enxurros, e sobre fazer de calçadas, e ruas.211

O que se observa nas Ordenações Manuelinas, em relação aos almotacés, é a junção de duas tradições legislativas. A primeira, mais antiga, é esta que acabamos de traçar e que aparece de forma acabada no regimento de Lisboa. A outra é aquela resultante da lenta codificação das atribuições dos diversos oficiais concelhios, contida nos vários regimentos dos oficiais do reino e das câmaras, elaborados à partir da segunda metade do século XIV. Um bom exemplo destes regimentos é aquele dado a Évora, em tempos de D. João I, o rei que deu início ao processo de codificação que levaria às Afonsinas.212 Este mesmo regimento está contido nas próprias Ordenações Afonsinas e no Regimento impresso por Valentim Fernandes em 1504, por ordem de D. Manuel.213 Nestes textos, os almotacés recebem diversas atribuições em relação ao mercado e à limpeza urbana. No entanto, no que respeita ao construtivo, há uma completa omissão, que será superada com a inclusão das atribuições previstas nos regimentos de Lisboa. Feita esta fusão, não aconteceriam alterações de monta, pois as Ordenações Filipinas apenas repetem o anteriormente disposto.214 Note-se que as duas últimas Ordenações continuam atribuindo aos almotacés o papel de resolver “demandas”. No entanto, há uma diferença substancial entre o papel de mediador que os almotacés ocupavam em períodos mais recuados e o de polícia das normas municipais que, progressivamente, foram assumindo. Tal mudança corresponde à passagem do direito consuetudinário, no qual prevalecia a força do costume, para o direito positivo, determinado pelas normas legais escritas, no caso, as posturas municipais.

211

MANUELINAS. livro I, título 49, § 33.

212

ÉVORA, Regimento. op. cit. p.164-7.

213

Ver AFONSINAS. livro 1, tit.28. e REGIMENTO DOS OFICIAIS DAS CIDADES, VILAS E LUGARES DESTES REINOS. f.14-7. 214

FILIPINAS, livro I, título 68, § 22.

125

Degredos, posturas ou vereações Os registros mais antigos daquilo que pode ser identificado como postura municipal aparecem nos diplomas foralengos. Mesclando-se aos diversos itens que consignavam o pacto tributário e de direitos entre os concelhos e os reis, os forais registram outras matérias atinentes aos costumes locais. Quer aparecessem designadas como posturas, ou não, versavam sobre regulamentos das relações de mercado, tabelamentos de preço, disposições sobre a rotina agrícola e dos ofícios artesanais,

normas de higiene urbana etc. São os fragmentos remanescentes do direito

126

consuetudinário, época em que alvazis ou almotacés dirimiam demandas recorrendo aos costumes. Estes registros marcam a passagem do direito oral ao direito escrito. O termo postura é bastante antigo na etimologia da língua portuguesa e origina-se do verbo pôr. Na acepção que nos interessa, sempre foi utilizado para referirse àquelas deliberações que tinham força legal: pôr lei ou pôr regulamento. Inicialmente, era empregado como sinônimo de lei. É o que se pode deduzir da maior parte dos diplomas legais produzidos entre os séculos XIII e XIV. Veja-se, por exemplo, o Livro das leis e posturas, no qual está coligida a legislação elaborada no reinado de Afonso III (1248-1279).215 No entanto, se insistirmos em estabelecer alguma peculiaridade chegaremos à conclusão que, mais freqüentemente, o termo postura refere-se a leis novas, aquelas que atendiam a casos não previstos na legislação mais antiga, ou nos costumes estabelecidos.216 Apenas no século XIV, postura assume a denotação precisa e específica de lei municipal, mas não como único designativo. Concorre, ainda, com o termo degredo. Decreto, diríamos modernamente. Vimos que nos regimento dos almotacés de Lisboa estão previstas penas para quem “passar os degredos” do concelho, ou seja, infringir as posturas. Freqüentemente, a documentação refere-se a quebrar, romper ou britar degredos e posturas, terminologia que, vez por outra, ainda aparece nos séculos seguintes. O termo vereação também foi utilizado para designar as posturas. Originalmente, vereações são as reuniões dos oficiais da câmara. Por extensão, são o registro escrito destas reuniões: as atas das sessões da câmara. Como eram nestas sessões que se criavam posturas, adotou-se o seu nome para designar as normas que assim foram estabelecidas, ou que estavam registradas nos livros de atas. As Ordenações referem-se, quase sempre, a vereações e posturas, para indicar as normas de direito municipal.

215

LIVRO DAS LEIS E POSTURAS. Lisboa: Faculdade de Direito da Universidade de

Lisboa, 1971. 216

LANGHANS. As posturas. p.18.

127

A existência de códigos de posturas municipais, tal como os reconhecemos hoje em dia, sinalizam o término do processo de passagem do direito consuetudinário para o escrito. Foram as Ordenações Afonsinas que estabeleceram a obrigatoriedade de que as câmaras tivessem livros específicos para o registro de suas posturas.217 A preponderância das posturas sinaliza a decadência do almotacé como mediador. Um processo de inversão que se completa quando esses antigos oficiais passam a ser, eles próprios, alvo das posturas. A câmara de Braga, no século XVI, queixava-se de que, no mercado local, “tudo pendia do almotacé”. Em decorrência, tenta enquadrá-lo na ordem do direito escrito, criando um dispositivo ordenando “que os almotacés guardem e cumpram as posturas da cidade em todo”.218 No século seguinte, o senado de Lisboa foi ainda mais preciso, advertido os almotacés quanto ao exato limite de suas atribuições.

Que sejam advertidos em guardarem o capítulo de seu regimento em que lhes proíbe darem licenças contra as posturas da Cidade, porque eles são executores das posturas, porém não têm jurisdição para dispensar com elas, e é coisa de que a cidade recebe muito dano, e muito prejudicial por muitos respeitos, e assim lhos manda a Cidade expressamente, com todo o rigor, as quais não poderão quebrar, nem alegar que as não sabiam pois têm tão precisa obrigação de as saberem. Lisboa, 29 de dezembro de 1617.219

Apesar de integradas ao direito escrito, as posturas municipais, no entanto, guardariam certas peculiaridades do antigo direito consuetudinário concelhio. Mantiveram-se, até o século XVIII, como espaço de manifestação da autonomia municipal e do pacto com o rei. Em princípio, elas não podiam ser alteradas por ordem de nenhuma autoridade judiciária ou administrativa do reino. Corregedores e ouvidores não podiam criá-las ou alterá-las. Suas competências resumiam-se em verificar o cumprimento das mesmas e em ordenar a sua atualização. Nenhuma das instâncias ou

217

AFONSINAS, livro I, título 27, § 8.

218

BRAGA. Posturas municipais. op. cit. fasc.12, ago.1949. p.369.

219

LPA. 437-8.

128

tribunais intermediários do reino tinham alçada em processos que envolvessem o descumprimento deste tipo de legislação. Ultrapassado o âmbito das câmaras, o foro exclusivo de recursos contra as posturas era o próprio rei. Outra especificidade, era a pretensão de igualar a todos perante a lei, contrariando a tendência geral de estabelecer foros privilegiados para nobreza e religiosos. Ainda que as penalidades previstas nas posturas fossem diferenciadas segundo o estatuto pessoal de cada um, tanto mais altas quanto mais baixa a condição social do infrator, ninguém poderia alegar este mesmo estatuto para eximir-se das autuações por parte dos almotacés. Esta era condição essencial à situação de vizinho das cidades ou vilas, fossem os moradores nobres ou plebeus, religiosos ou leigos. Tal doutrina estava expressa em muitos forais e aparecia, também, no regimento dos almotacés de Lisboa.

E todos os clérigos e os frades e os fregueses e todos os outros que forem vizinhos da vila se forem demandados por razão d’almotaçaria não se podem escusar por nenhuma maneira que não respondam pelos almotacés maiores da vila.220

A eficácia das posturas residia na capacidade de ser direito sumário e rapidamente mutável, dando conta das cambiantes situações quotidianas, sem ficar aprisionado ao efeito procrastinatório dos ritos e processos do direito escrito. Os forais já autorizavam os concelhos a pôr “quais posturas quiserem” e a “tolhê-las” sempre que necessário.221 As ordenações praticamente forçavam a sua revisão anual. Assim, enquanto o cível e o crime encaminharam-se, rapidamente, para as formas rígidas e frias do direito letrado, as posturas continuaram como um direito ‘quente’, facilmente transformável ao sabor das demandas do momento e dos jogos de poderes que permeavam a vida local. No entanto, como já enunciamos, ao lado desta mobilidade, há um fundo de

220

LPA. p.100.

221

Ver, por exemplo o Foral de Beja, anteriormente citado.

129

permanência. As espécies jurídicas consignadas nas posturas, mantiveram-se, sempre, no quadro desenhado pelos regimentos de almotaçaria que, por séculos, tiveram a própria rua como o seu palácio da justiça.

E os almotacés maiores devem ambos em sembra ouvir os pleitos e darem os juízos que houverem a dar e em outra maneira não deve de valer e podem dar o juízo andando e estando cavalgados e de pé ou sendo em qualquer lugar ou a que horas quiser do dia.222

OS ALFINETES DE DÂMOCLES

O estudo das posturas municipais é mais um dos inúmeros vazios da historiografia sobre a cidade de origem portuguesa.223 O único estudo geral e sistemático disponível para Portugal foi editado há 60 anos. Trata-se de As Posturas, de Franz-Paul Langhan, que saiu do prelo em 1937.224 Desde então, o tema tem sido retomado apenas pontualmente.225 No Brasil, o interesse foi ainda menor, e as posturas municipais passaram praticamente desapercebidas. Os únicos a dar-lhes atenção foram alguns historiadores ‘locais’ que, episodicamente, convocavam-nas para ilustrar aspectos cotidianos da vida de algumas cidades coloniais e do Império. Raríssimos são os estudos acadêmicos recentes que utilizaram tal documentação de forma sistemática. No entanto, nos anos

222

LPA. p.101.

223

Ver HESPANHA, História das instituições. p.260-2.

224

LANGHANS, Franz-Paul. As posturas. Lisboa: Faculdade de Direito da Universidade de

Lisboa, 1937. 225

GONÇALVES, Iria. Posturas municipais e vida urbana na baixa Idade Média: o caso de Lisboa. ESTUDOS MEDIEVAIS. Porto, n.7, 1986. p.155-72. Mais recentemente, cobrindo as ilhas atlânticas tivemos VIEIRA, Alberto. As posturas municipais da Madeira e dos Açores nos séculos XV a XVII. In: ACTAS DO III COLÓQUIO INTERNACIONAL SOBRE OS AÇORES E O ATLÂNTICO. Angra do Heroísmo: 1989.

130

80, houve uma tendência historiográfica, que, sem ocupar-se especificamente das posturas, chamou-as à luz da ribalta, tirando-as da secular penumbra a que estiveram votadas. Naquele período, alguns historiadores foram aos arquivos em busca dos antigos códigos municipais. Entraram em verdadeiro êxtase, tal era a profusão de normas locais com que se depararam. Contudo, limitaram-se a examiná-las rapidamente e a proferir algumas conclusões solenes.

Nada escapava ao controle normativo da lei, nesse processo de investigação e ordenação dos espaços comuns que, no limite, traduz a crescente ampliação das funções do estado e da ordem burguesa.226

[A cidade do período] é caracterizada por enquadrar-se nos moldes de um urbanismo moderno, produto de uma concepção burguesa de sociedade. As principais características desta nova forma urbana concentra-se na excessiva preocupação com a organização do espaço, como também com o controle procedimental dos indivíduos que nele situam-se. O estado, a partir do discurso onde se coloca como o principal responsável pela promoção do bem comum, interpõe-se como legítimo organizador desta sociedade. A existência de um Código de Posturas Municipais, neste período, reflete claramente a ingerência estatal em todas as esferas da vida urbana.227

O primeira citação resume as apreciações de um autor sobre posturas de Niterói e Campos, datadas, respectivamente, de 1833 e 1874. A seguinte é resultado de um modismo que proliferou na academia brasileira. Trata-se de um comentário sobre a Código de Posturas de Curitiba de 1912, contido numa monografia de fim de curso de um aluno de história. A adesão de muitos professores a um vago foucaultianismo resultou em centenas de teses, dissertações e monografias deste tipo, produzidas por seus orientandos.228

226

CAMPOS, André Luiz V. de. Posturas municipais na província fluminense: os casos de Campos e Niterói. REVISTA DE ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL, 35(118):43-55, jul.-set. 1988. p.43. 227

BENKENDORF, Carlos A. Embriaguez, desordem e controle social em Curitiba; 19091912. BOLETIM DO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DA UFPR. Série monografias. Curitiba, n.1, mar. 1989. p.75. 228

O grande centro de difusão destas idéias foram as principais academias paulistas. Dali a coisa propagou-se, feito praga, pelo restante do país. Reconheça-se, de passagem, que Foucault não pode ser responsabilizado por tudo que foi escrito em seu nome.

131

Em ambos os exemplos citados, o móvel das conclusões é a vigência de posturas sobre alinhamento predial, obrigação de caiar, destinação de águas servidas, etc. Mudam os autores, os séculos, as cidades, e nada parece ter mudado. Dificilmente, qualquer das normas a que se referem os autores deixará de ter a sua correspondente em diversas cidades de Portugal e suas colônias, durante os séculos XVI, XVII e XVIII. Como veremos adiante, elas também existiram em profusão em qualquer concelho português da Baixa Idade Média. O anacronismo em que incorrem esses historiadores foi provocado por dois problemas de ordem metodológica. Em primeiro lugar, um manifesto desconhecimento da tradição institucional portuguesa, na qual se enquadram as posturas. Em segundo, eles foram traídos por um fenômeno que pode ser chamado de miragem das balizas cronológicas e geográficas. Delimitado o tema no tempo e no espaço, tudo parece ter ocorrido no interior deste recorte, e apenas nele. Assim, posturas de origem medieval tornam-se provas de uma modernidade burguesa das cidades brasileiras fin-de-siècle. Ao lado dos problemas metodológicos, convivem, nessa historiografia, outros de ordem conceitual, provocados por certas adesões teóricas apressadas. Neófitos da (nem tanto) recém-decretada inexistência do Centro, do Poder, os historiadores partiram com afã em busca do micro. E, quando se quer o micro, nada melhor do que um suculento código de posturas. Não mais a Espada de Dâmocles, mas centenas de alfinetes de dâmocles, prontos a desabar sobre a cabeça dos “desviantes”.

Até aqui, nenhum problema, cada um escolhe onde amarrar o seu cavalo. Eles começam a ocorrer quando se chega à conclusão de que a simples existência de um código cheio de minúcias é prova de uma suposta modernidade burguesa. Instaura-se, então, um denuncismo vazio, cheio de exclamações. Proibia-se que lixo fosse lançado nas ruas!!! Posturas que proibiam que se defecasse nas praças!!! Exclamações estas repletas de sentido, usadas para estabelecer cumplicidade com o leitor: “— Você sabe muito bem ao que me refiro, caro leitor. Você sabe, que, onde estiver o desviante, ele será alcançado e terá o seu corpo esquadrinhado e higienizando.”

132

E se alguém substituísse as exclamações por interrogações? Por que, afinal, essas coisas eram proibidas? Quem, como, onde, o que e porque se esquadrinhava? Em resposta, ouviria que isso é desimportante. Esses historiadores aprenderam com Foucault que o lugar privilegiado da apreensão do poder situa-se no plano de sua expressão e não no de seu conteúdo. Portanto, não é importante saber como, quais, quando, porque ou por quem as posturas foram criadas. É suficiente que elas existam, formando um vasto elenco de micro-normas que atinjam os corpos das pessoas e das cidades. Esquadrinha-se por esquadrinhar, higieniza-se por higienizar. Estratégias de poder vazias de conteúdo mas cheias de eficácia!!! Passada esta nouvelle vague historiográfica, as posturas voltaram ao esquecimento. A utilização de documentos legais, entre eles os códigos de posturas, como fontes para a história, não tem sido feita sem dificuldades. Algumas correntes historiográficas nos ensinaram uma profunda desconfiança, ou mesmo rejeição, em relação a fontes desta natureza, dada a suposição da manifesta parcialidade dos discursos legais. Para certos autores, o estado nada mais é do que um “balcão de ofertas da burguesia” e a legislação, em decorrência, um mero reflexo ideológico da estrutura de classes da sociedade. Para outros, como acabamos de ver, a legislação inclui-se no quadro de uma concepção conspiratória de história, onde a burguesia, numa espécie de desvario micro-legisferante, sai à caça de portadores de condutas consideradas desviantes. No entanto, para que possamos abordar a lei, apesar das desconfianças que suscita, devemos dar-lhe um crédito inicial. Acreditar nos enunciados que ela profere sobre sua própria natureza: um espaço, ainda que não de todo imparcial, de mediação entre indivíduos ou grupos sociais. A lei simultaneamente institui um espaço para relações, legitimando-as, e é instituída na medida em que a ela se recorre para o exercício concreto da mediação. Num dos “Apólogos Dialogais” de Francisco Manuel de Melo, dizia o relógio da cidade ao da aldeia:

133 — Há destes que, por teima de que seu vizinho não seja almotacel no couto de Leomil, vem a pé sessenta léguas à corte, e no cabo volta-se à sua terra, e, por dois magustos* que ambos merendam, depois de muito bem desonrados, ele e seu competidor, ei-los amigos.229

O direito é um sistema vivificado de significados, valores e práticas. A lei, ou melhor dizendo, o direito enquanto ideologia, procura circunscrever um espaço para interação de personagens sociais: o estado de direito. Para que a lei possa cumprir esse papel, é preciso que o vizinho do couto de Leomil ande 60 léguas à procura dos seus direitos e tente que um seu desafeto fique longe da almotaçaria. É necessário que à lei recorram todos os indivíduos ou grupos, e, nesse sentido, ela não pode ser patentemente facciosa. Tal necessidade leva a que os propósitos de diversos grupos, mesmo os daqueles econômica e politicamente não-dominantes, deixem as suas marcas, mais ou menos visíveis, na legislação. A partir destes pressupostos, que derivam do conceito gramsciniano de hegemonia, alguns historiadores anglo-saxões procuraram desenvolver uma abordagem da lei que não a restringisse a uma função reflexiva e meramente instrumental da estrutura de classes. Com pequenas nuances, são concepções como as aqui sintetizadas que estão na origem de algumas obras fundamentais da historiografia contemporânea, realizadas com base em documentação de cunho legal. Caberia lembrar o estudo que o historiador inglês E. P. Thompson produziu sobre as origens do Black Act: Senhores e caçadores. Do mesmo autor, é o memorável artigo sobre a “economia moral das multidões”, que utiliza documentação afim às posturas municipais.230 Outro autor com grandes implicações na historiografia brasileira foi o norteamericano Eugene Genovese.231 Sua abordagem da legislação escravista fez escola. Ao

229

MELO, Francisco Manuel de. Relógios falantes. Lisboa: Textos Literários, 1962. p.24. O original foi escrito entre 1654 e 1657 e não foi publicado antes de 1721. *magusto = castanha assada na fogueira 230

THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. THOMPSON, E. P. Tradición, revuelta y consciencia de clase; estudios sobre la crisis de la sociedad preindustrial. Barcelona: Editorial Crítica, 1979. 231

GENOVESE, Eugene. Roll, Jordan, Roll. New York: Pantheon, 1974.

134

estudarem a transição do trabalho escravo para o trabalho livre no Brasil, tanto Ademir Gebara como Maria L. Lamounier valeram-se proveitosamente do enfoque proposto por Genovese.232 O trabalho de Gebara é um dos únicos da historiografia brasileira a se debruçar sistematicamente sobre legislação municipal. Entre as fontes que utilizou, estão as posturas atinentes aos escravos, elaboradas pelas câmaras paulistas durante o século passado. Quanto a mim, o meu interesse pelas posturas municipais não é recente. Tive a oportunidade de lidar, anteriormente, com o conjunto das posturas elaboradas pelas câmaras municipais paranaenses do século XIX.233 Naquele momento, um dos aspectos que me chamou atenção foi o fato de que, a partir da década de 1860, algumas câmaras reuniram a maioria dos dispositivos que se voltavam à morigeração dos costumes sob títulos específicos que tratavam dos “Objetos que ofendem a moral e os bons costumes”. Entre as posturas congregadas neste título, estavam aquelas que procuravam interditar certas maneiras de se expressar consideradas grosseiras.

Toda a pessoa que em lugar público injuriar a outrem com palavras infamantes, ou indecentes, ou gestos de mesma natureza; pena de 20$000 e posto em custódia à ordem do fiscal, até o pagamento da multa, e não tendo com o que pagar, sofrerá oito dias de prisão. Curitiba, 11 de julho de 1861.234

Este tipo de postura se enquadra numa longa cadeia que, quando seguida, nos leva à Idade Média. Longe ia o tempo em que a legislação mandavam por freios na boca das mulheres que diziam “más palavras” em público, no entanto, prescrições semelhantes chegaram ao século XIX. No presente caso, são desimportantes as explicações que eu possa ter dado ao fato de os vereadores curitibanos terem buscado

232

GEBARA, Ademir. O mercado de trabalho livre no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986. LAMOUNIER, Maria L. Da escravidão ao trabalho livre. Campinas: Papirus, 1988. 233

PEREIRA, Magnus R. M.. Semeando iras rumo ao progresso. Curitiba: Editora da UFPR,

1996. 234

PARANÁ. Leis, decretos e regulamentos da Província do Paraná. Curitiba: Typ. do Correio Official, 1862. p.70.

135

no fundo do baú legislativo uma medida de tal natureza e a reeditado naquele momento. Importa reter que a secular reiteração de posturas de tal ordem solicitam interpretações menos, digamos, conjunturais. Na mesma época, devido ao fato de estar lidando com legislação sobre “bons costumes”, minha atenção foi despertada para uma das eternas arengas pessoais publicadas na imprensa do período. Tratava-se de uma pequena nota de jornal que, em outras circunstâncias, passaria desapercebida. Naquele momento, no entanto, ela me sugeria uma conexão insuspeita.

O Sr. João Marques que nunca leu mesmo algum exíguo compêndio de civilidade certo não compreenderá este texto mitológico: o tempo que o ensine e as palmatoadas do Comendador que não é.235

Segundo o “Comendador que não é”, o Sr. João Marques era uma pessoa grosseira, sinal de que jamais havia lido um compêndio de civilidade. O seu “texto mitológico” dizia que civilidade se aprendia com o tempo ou com as palmatoadas que ele próprio estava disposto a dar. Da mesma forma, as câmaras paranaenses estavam dispostas a punir com prisões e multas a todos os que infringissem as normas de civilidade, além de aplicar o castigo literal da palmatória, caso o infrator fosse escravo. De uma certa perspectiva, as posturas também compunham um manual de civilidade. Mais propriamente, um manual de civilidade urbana, ou de urbanidade, pois as regras de comportamentos ali contidas referiam-se ao que se passava no espaço público urbano, eximindo-se os vereadores de adentrar as casas ou intervir nas áreas rurais. Essa similaridade, me levou a indagar sobre as correlações entre os manuais de civilidade e os códigos de posturas, uma vez que ambos tinham por objetivo o estabelecimento de condutas consideradas aceitáveis. A própria polissemia da palavra urbano dá indícios da problemática em questão. Urbano é tudo aquilo que diz respeito à cidade mas, ao mesmo tempo, é um

235

O DEZENOVE DE DEZEMBRO. Curitiba, 5.fev.1859. p.4.

136

modo de comportamento. Viver na cidade implica numa urbanidade, termo que os dicionários apresentam como sinônimo de civilidade. Há séculos, a limpeza ou a contenção do gestual ou das palavras vêm sendo tomada como indicador geral de civilidade. Segundo esse critério, os habitantes das cidades, ou mesmo povos inteiros, seriam civilizados em maior ou menor grau de acordo com a limpeza corpórea ou do ambiente em que vivem, ou então, de acordo com o grau de expansividade do tratamento entre indivíduos. Como bem lembrara o “Comendador que não é”, estava em curso um tempo que civiliza. Eu conseguia identificar um processo de morigeração da população paranaense, mas percebia que era descabido pensá-lo como um “projeto social” ou que os envolvidos “dominassem a totalidade dos desdobramentos daquilo que procuravam por em curso”.236 Estava em andamento um processo de morigeração, sem sujeito definido, mas que era dotado de uma racionalidade interna, ainda que esta fosse construída a posteriori pelo historiador. Assim cortesão como morador da cidade Anos depois, fui descobrir um autor que havia enfrentado problemas semelhantes aos meus e os resolvera de forma semelhante. Refiro-me a Norberto Elias que, genialmente, conseguiu concatenar uma história da civilização ocidental a partir de uma psicogênese da elite guerreira européia, desde o momento em que foi submetida à crescente tutela da realeza.237 Tal psicogênese estaria na origem de uma sociogênese, a que ele denomina “processo civilizador”. Processo desprovido de autoria mas no qual ele detecta de um certo direcionamento.

236

PEREIRA, Magnus R. M. Fazendeiros, industriais e não-morigerados; ordenamento jurídico e econômico da sociedade paranaense; 1829-1889. Curitiba: Cursos de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, 1990. (dissertação de mestrado). _____. Semeando iras rumo ao progresso. Curitiba: Editora da UFPR, 1996. p.188-8. 237

2.v.

ELIAS, Norberto. O processo civilizador: Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990-1993.

137 O que aqui se coloca no tocante ao processo civlizador nada mais é do que o problema geral da mudança histórica. Tomada como um todo, essa mudança não foi ‘racionalmente’ planejada, mas tampouco se reduziu ao aparecimento e desaparecimento aleatório de modelos desordenados.238

Segundo o autor, o crescente controle emocional imposto (que tende a tornarse autocontrole) aos guerreiros obrigados a viver nas cortes da realeza estão na origem do processo civilizador do ocidente. A chave de tal processo seriam a autocontenção e sublimação da violência, no qual a civilidade ou etiqueta cortesã desempenha papel fundamental. Apesar das afinidade apontadas em relação ao que propõe Elias, é preciso anotar algumas discordâncias.239 Trabalhamos, ambos, com processos e, por vezes, com fontes afins, mas é preciso restabelecer certas especificidades. A começar pelo fato de que legislação municipal e etiqueta cortesã pertencem a ordens textuais muito distintas. As posturas, como vimos anteriormente, são uma persistência do direito consuetudinário da Baixa Idade Média. Já, os manuais pertencem a uma modalidade de texto culto, que reivindica para si o poder de civilizar. Nós, historiadores, herdeiros dessa tradição culta, costumamos dar primazia a tais textos, talvez por dever de ofício ou solidariedade corporativa.240 Acreditamos na equação proposta por Erasmo e outros, antes e depois dele, que civilidade é igual a etiqueta cortesã.241 O principal responsável por difundir tal noção na historiografia contemporânea foi justamente Norberto Elias. Perceba-se que a intelectualidade da época estava sujeita a um sistema de mecenato e que sua fala era prisioneira da corte. Ao assumirmos os seus pressupostos, somos levados a crer que os comportamentos passam da elite instruída pelos textos civilizatórios para o conjunto do corpo social: do palácio à rua. Desta forma, chega-se à

238

ELIAS, O processo. v.2.p.194.

239

Lembrando que, nem ele, nem eu, conseguimos escapar do círculo de ferro de uma concepção hegeliana de história. 240

Já sugeri que há uma certa predileção pelos textos iluministas em detrimento de outros que pertencem a uma tradição mais antiga. 241

ERASMO. A civilidade pueril. Lisboa: Editorial Estampa, 1978.

138

noção corrente de que a civilização, ou urbanização, da burguesia é um mero processo de imitação da aristocracia. A meu ver, a auto-contenção da violência e sublimação dos impulsos são, antes, inerentes à condição urbana. Voltemos à nossa indagação primária sobre a interconexão entre posturas municipais e manuais de civilidade. Uma resposta simples seria reconhecer uma homologia entre ambos, fazendo derivar as normas de comportamento à rua da etiqueta cortesã medieval e renascentista. Apesar de mais simples, não me parece a mais correta. É verdade que o viver cortesão nasce da confluência entre a cidade e a corte, na época em que os reis param de itinerar, lá pelo século XIII, o que provoca, por isso mesmo, momentos de grande aproximação entre as duas etiquetas. Todavia, cidade e corte confundem-se apenas no caso das capitais, as cortes propriamente ditas. Na maior parte dos casos, cidade e nobreza eram como que irreconciliáveis. Diversas cidades e vilas medievais tinham, inclusive, o privilégio da proibição de que a nobreza morasse na sede ou mesmo no termo do município. Alguns forais portugueses permitiam que os fidalgos fossem espancados e expulsos pelos moradores se desrespeitassem esses privilégios. O caso mais notório de cidade portuguesa vedada aos fidalgos é o Porto, onde, por séculos, eles estiveram proibidos de morar.242 Observa-se que mesmo nessas cidades, que se desenvolveram protegidas da vizinhança incômoda da nobreza de sangue, estavam em vigor detalhados códigos de comportamento, com efeitos semelhantes aos dos textos civilizadores. O viver em contato constante e permanente com um grupo alargado de pessoas, com todos os efeitos que isso possa acarretar, é antes próprio da condição urbana do que da cortesã. Portanto, civilidade e etiqueta cortesã não se confundem e nem a primeira é uma mera extensão da segunda para além da esfera da corte, como Elias nos quis fazer acreditar. Considero que a civilidade, numa acepção mais ampla e correta, é a confluência entre a etiqueta cortesã, que se volta sobretudo à nobreza e, depois, às elites letradas, e a urbanidade, cujos textos normativos originais são as

242

Ver, por exemplo, o interessante artigo de FERREIRA, J. A. Pinto. O Porto e a residência dos fidalgos. BOLETIM CULTURAL. Porto, v.11, fas.3-4, set.-dez.1948. p.266-338.

139

posturas municipais. Da mesma forma que o cortesão, o morador da cidade sujeita-se a um longo processo de contenção e sublimação da violência e de outros impulsos, que tem as posturas como texto normatizador, não os livros de etiqueta. Tais normas são necessárias ao viver em cidade e atingem igualmente cortesãos e outros moradores, apanhados genericamente através de fórmulas consagradas pelo texto português: “de qualquer condição que seja” ou “de qualquer qualidade que seja”.

Ouvide mandado do Corregedor, vereadores, procurador e almotacés da Mui Nobre e Sempre Leal Cidade de Lisboa, não seja nenhuma pessoa assim cortesão como morador da dita cidade tão ousado que leve espada nem punhal à carniçaria quando cortarem carne e qualquer que achado for na dita carniçaria com o dito punhal e espada seja preso e jaza 15 dias na cadeia e mais perca o dito punhal espada, nem isso mesmo nenhuma pessoa de qualquer condição que seja não suba nos telhados a tomar a dita carne sob pena de ser preso e jazer os ditos 15 dias na dita cadeia e pagará de pena duzentos reais a metade para os homens del Rei e a outra metade para a cidade. Feito a 30 dias do mês de setembro de [14]86 anos.243

Estamos diante de um exemplo de postura municipal que não se ocupa apenas da contenção e sublimação dos impulsos das classes guerreiras. Ela visa controlar o cortesão e o cidadão violentos, capazes de transformar a ida ao açougue numa carnificina, e também o citadino esperto, que se aproveita da confusão para subir aos telhados e quebrar as regras de precedência no atendimento. Se ficássemos neste tipo de leis municipais, tenderíamos a dar razão a Norberto Elias. Poderíamos imaginar que elas eram apenas mais um dos instrumentos usados na tentativa de limitar os efeitos da pulsão guerreira de fidalgos urbanizados, que, indiretamente, atingiam os outros moradores da cidade. Mas não é isso o que acontece. A violência própria do viver urbano não é privilégio dos fidalgos, nem são eles o alvo mais visado pelas posturas. Existem normas que passam longe do guerreiro

243

LPA. p.166. Na legislação de Coimbra e Braga, cidades que não se confundem com a corte real, como é o caso de Lisboa, também vamos encontrar dispositivos semelhantes. Ver COIMBRA. Posturas. Municipais. ARQUIVO COIMBRÃO, v.2. p.173. BRAGA. Posturas Municipais. op. cit. v.4, n.4, p.321. BEJA. Posturas Municipais de 1738. Em VIANA, Abel (ed.). Posturas camarárias de 1738. ARQUIVO DE BEJA, v.7, 1950. p.221.

140

tornado cortesão, para atingirem personagens muito diferentes mas nem por isso menos belicosas.

Item - Mandaram que qualquer mulher que doestar* outra mulher ou homem ou ferir ou escalavrar ou lhe romper véu ou touca ou doestar em feito de más palavras, por trejeito ou por remoque* que pague por cada vez 14 reais e meio e se for vezeira que os ditos juízes a mandem presa e que fique aos vereadores da dita cidade de a mandarem degradar ou enfrear* ou lhe dar outra pena que em semelhante caso couber. Lisboa, século XV.244

A mesma pena de enfreamento está presente no Regimento de Évora que lhes dedica um segmento específico, o “Título das bravas”. Nele está previsto que, na segunda reincidência, a infratora “seja enfreada e degradada publicamente com o freio na boca fora da cidade até mercê d’el-Rei”.245 Nos século seguintes, as penas foram reduzidas a multas somente, mas a trajetória das leis dedicadas a essas “bravas” continua.

Que toda mulher que guerrear ou armar pendências, pague por cada vez 240 réis, constando por fé de duas testemunhas, ou do porteiro do concelho. Setúbal, século XVI.246 Acordaram mais, vista a grande devassidade que vai em as mulheres, e pouco sentido e desconhecimento de Si mesmo não olhando com as línguas danam a si e a outrem a se desonrarem e dizerem palavras desonestas umas às outras e que assacam testemunhos falsos donde se sucedem muitos perigos que é muito pouco serviço do Senhor Deus e menosprezo das mulheres e querendo ver se se pode remediar porque hajam repreensão com penas pecuniárias, acordaram e mandaram que quaisquer mulheres de qualquer sorte e condição que sejam que pelejarem, a cometedora pague pena por cada vez, para o Concelho e quem acusar quinhentos réis e a outra pessoa que lhe responder e não se calou que pague de pena por cada vez, para o Concelho e quem acusar duzentos réis. Braga, 15 de outubro de 1550.247

244

LPA. p.255. *doestar = insultar *remoque = insinuação, zombaria. *enfrear = por freios, como nos animais de montaria. 245

246

ÉVORA. Regimento. op. cit. p.189.

SETÚBAL. Posturas municipais. Compilação editada em PIMENTEL, Alberto. Memória sobre a história e administração do Município de Setúbal. Setúbal: Câmara Municipal, 1992. p.97.

141

Eis as avós da postura oitocentista de Curitiba que previa a punição de “toda a pessoa que em lugar público injuriar a outrem com palavras infamantes, ou indecentes, ou gestos de mesma natureza”. Apesar de formuladas em termos genéricos, as ameaças contidas nessa modalidade de posturas dirigem-se a um tipo urbano muito preciso: as vendedoras. Talvez às peixeiras, proverbialmente desbocadas e beligerantes. Ou, às tantas outras adelas e regatonas, essas mulheres desenvoltas que dominavam parcelas expressivas do mercado de abastecimento urbano. O que há de comum entre estas posturas que punem as arruaceiras e aquelas que tentam impedir o uso de armas nos açougues? Na verdade, estamos diante de dispositivos cuja intenção primária não é a contenção da violência pela violência, mas impor a ordem do mercado. A relação entre o mercado e a contenção da violência é facilmente perceptível se observarmos as feiras medievais. Por toda a Europa, elas eram realizadas sob estatutos especiais que objetivavam a manutenção da paz. Tais estatutos ordenavam que cessassem todas as disputas e vinganças, todos os atos de hostilidade ou mesmo a cobrança de dívidas antigas, enquanto a feira se desenrolasse. Cada um respondia apenas por atos praticados na própria feira. A quebra desta trégua era punida com severas penas. A vigência deste período de paz era marcado por símbolos especiais, preferencialmente uma cruz, que permanecia ereta apenas enquanto durasse a feira. Para alguns autores é esta o origem dos pelourinhos ibéricos, que simbolizam a existência de magistraturas urbanas. O símbolo da paz da feira transforma-se no da paz urbana, da qual tais magistratura são guardiãs.248 Com isto estamos procurando mostrar que a sublimação dos impulsos violentos não é constitutivo tão somente do viver cortesão mas da vida urbana, e que o mercado, o lugar por excelência das múltiplas relações, da desordem, fornece simultaneamente um modelo de ordem. Não foi por acaso que o primeiro grande impulso das etiquetas teve lugar na

247

248

BRAGA. Posturas Municipais. op. cit. v.3, n.19, p.244-5.

Ver RAU, Virgínia. Feiras medievais portuguesas; subsídios para o seu estudo. Lisboa: Editorial Presença, 1983. p.41 e ss.

142

Itália. A região, enriquecida pelo comércio com o oriente, era dominada por um patriciado urbano, muito diferente das aristocracias do restante da Europa.249 O caráter sóbrio e contido deste patriciado (embora devasso) é resultado de sua sólida inserção urbana. A espalhafatosa etiqueta cortesã francesa, que depois espalhou-se pela Europa, é mais provavelmente uma deturpação disto por uma nobreza ainda mal situada na cidade do que origem de um processo civilizador. Trata-se de uma cortesia de aparências, na qual o importante era a adesão a sinais exteriores. A sua idéia força era a diferenciação das outras camadas sociais. Por isto a irritação com o “burguês ridículo” que a imitava. Esta é a origem do duradouro preconceito em relação à burguesia ascendente, que, sem perceber, muitos autores acabam reproduzindo. Provavelmente, este burguês era um participante, mais ativo do que a nobreza, do longo processo de aprendizagem de uma outra etiqueta forjada nas ruas da cidade. Diziam os vereadores quatrocentistas de Braga que “nas cidades e vilas o principal e melhor é a limpeza que se na rua há de haver”. Como havia “muito pouca cortesia em lançarem caqueiradas, ciscos, águas sujas” etc. pelas ruas, eles resolveram criar uma série de normas para atalhar estes hábitos.250 Creio, que esta modalidade de etiqueta pregada pela câmara bracarense é, ainda hoje, tomada como parâmetro de civilidade. O mesmo não pode ser dito dos rituais afetados da etiqueta cortesã francesa. O texto instaurador Se as repúblicas italianas foram um dos principais centros da elaboração das etiquetas, foram também da forma urbana ocidental. Nestas cidades, espaços e comportamentos foram, simultaneamente, submetidos a uma nova ordem formal, em que transparece tratar-se de processos de estabelecimento de limites. De uma maneira muito ampla, podemos dizer que a arquitetura é a

249

Este contato com o oriente não pode ser desprezado, pois ali a ritualização dos comportamentos é muito mais presente e antiga do que no ocidente. Peter Burke lembra a semelhança entre o patriciado de Veneza e o mandarinato chinês. BURKE, Peter. Veneza e Amsterdã; um estudo das elites do século XVIII. São Paulo: Brasiliense, 1991. p.89-90. 250

BRAGA. Posturas municipais. op. cit. v.1. fasc.1-2. 1935. p.83.

143

segmentação do espaço, dotando os segmentos de significação e destinado-os a práticas específicas. A arquitetura é a determinação do que pode ou deve ser feito onde. Não é necessário que tais determinações tenham uma expressão material. Entretanto, como mais freqüentemente a segmentação espacial ocorre materialmente, tende-se a identificar a arquitetura com o construído. Todavia, seja cidade, seja edifício isolado, a arquitetura é criação de limites: vivências e comportamentos ‘contidos’. A urbanização não inventa a arquitetura mas torna-a mais complexa, pelo processo de aglomeração que comporta. A cidade é o império dos limites. Nela, a todo o momento cruzam-se as fronteiras visíveis ou invisíveis que separam o dentro do fora (da casa, da muralha, da cidade). A tais fronteiras correspondem outras que separam o sagrado do profano, o público do privado, o íntimo do nem tanto. E a cada espaço assim delimitado, corresponde uma ordem de comportamentos e práticas.251 Mantendo-me dentro do universo de indagações a que me propus, é preciso voltar às posturas e ao direito de almotaçaria. Em que medida e como elas intervêm na produção da arquitetura, entendendo-a da forma ampla que acabei de apresentar? A maioria dos autores que exploraram a relação entre as posturas e o arquitetônico limitam-se a insistir no seu caráter normativo. Entre os poucos que foram além, está a arquiteta Françoise Choay, que ampliou a questão em seus comentários sobre o papel que os editos comunais de Siena e de outras cidades italianas desempenharam na produção do espaço urbano. Estamos diante de uma tradição legislativa municipal muitíssimo mais complexa que a portuguesa. Elas são um caso único, o que se pode ser atribuído a um precoce enriquecimento mercantil e à condição de cidades-estado. Mantidas as especificidades e proporções, o correspondente português de tais editos são as posturas.252

251

Neste trabalho procurei separar o espacial do comportamental, explorando, exemplarmente, para cada caso, a forma e o sanitário. No entanto, foi um esforço que, de antemão, sabia inútil, de separar o que não é separado. 252

CHOAY, Françoise. A regra e o modelo. São Paulo: Perspectiva, 1985. p.26-9. Precisamente, os editos são posturas municipais, uma vez que são a publicização das decisões normativas dos concelhos. No entanto, desde a Idade Média ocorre uma amalgamação semântica entre posturas e as atas de vereação onde ela são discutidas e aprovadas. Em português, a palavra que dá conta

144

A leitura que Choay realiza dessa documentação é, inicialmente, apaixonada.

Assim, entre o início do Trecento e a segunda metade do Quatrocento, o texto argumentador [o edito comunal] realiza um equilíbrio, jamais reencontrado depois, entre a cidade como realidade material e como conjunto de instituições, entre as forças da tradição e o poder da inovação, entre a iniciativa dos indivíduos e o consenso da coletividade.253

Note-se que é desta maneira que os historiadores da arte costumam referir-se à arquitetura medieval do período gótico. Arquitetura amada por realizar um múltiplo equilíbrio, exatamente o mesmo apontado por Choay em relação à prática expressa nos textos das municipalidades. Todavia, ela envereda por comentários que demonstram uma leitura redutiva do primeiro renascimento.

As decisões realizadoras enunciadas e argumentadas nos editos comunais não se estribam num pensamento teórico. Não são aplicáveis fora do quadro espáciotemporal em que foram formuladas. A despeito de seu alcance prospectivo, elas são parciais e, de ano para ano, são completadas e modificadas retroativamente, levando em conta a evolução dos dados. Respondem às situações particulares, encontradas hic et nunc por homens que não são especialistas, mas cuja condição de cidadão qualifica-os, sem distinção de classe social ou profissional, a lidar com todos os problemas da cidade. Para eles, ocupar-se da edificação da cidade é parte integrante de uma gestão onde entram em jogo determinantes religiosas, sociais, econômicas e técnicas que contribuem, tácita ou explicitamente, para a produção do espaço urbano. Não se trata, pois, de uma autonomia dos editos e decretos comunais. Ao contrário dos tratados de arquitetura, eles não postulam uma disciplina específica independente. Por isso, é conveniente renunciar à tentação de atribuir a esses textos o qualificativo instaurador. Todavia, na medida em que designam o edificado como seu campo próprio de aplicação e lhes reservam um tratamento reflexivo, será possível marcar sua especificidade e seu parentesco com os tratados instauradores, chamando-os argumentadores.254

Que diferença haveria entre textos instauradores e textos argumentadores?

deste duplo sentido é vereação, que costuma ser usada para designar reuniões, atas e posturas. Choay refere-se a tanto a normas quanto a atas camarárias. Todavia, optei por usar apenas o termo postura. 253

254

CHOAY. A regra e o modelo. p.29.

CHOAY. A regra e o modelo. p.28. A idéia de que as posturas são apenas uma resposta ao hic et nunc é desmentida pela sua circulação de cópias das mesmas entre diversos municípios, atravessando países e mesmo continentes. Muitas posturas tornam-se preceitos autônomos e são copiadas por serem propostas de uma idéia de cidade e não para atender a alguma questão imediata. Todos os indícios levam a concluir que a autora conhece esta documentação apenas indiretamente, através de autores que estudaram estes éditos.

145

Esta separação é o resultado de um raciocínio perfeitamente tautológico. Choay toma como paradigma o tratado De re ædificatoria, de Leon Battista Alberti. Decupa-o em algumas de suas características, batizando-o, em função delas, de instaurador. A seguir compara-o com outros textos. O de Alberti é instaurador porque apresenta as características por ela selecionadas para estabelecer que um texto é instaurador. Aqueles que não apresentam tais características não o são. C. q. d. Por tal raciocínio, as vereações não são textos instauradores. Ou seja, eles não são tratados do mesmo tipo do elaborado por Alberti. Simplificadamente, Choay afirma que os textos camarários (vereações, posturas) criam espaço mas não instauram a

Arquitetura (o Urbanismo). Trata-se de um preconceito que achou lugar na língua italiana na oposição entre os termos architettura (arquitetura) e edilissia (edificação).255 A diferenciação terminológica expressa um recorte entre as arquiteturas renascentista e medieval, modernamente atualizada pelas novas academias de arquitetura para marcar um suposto fosso que existiria entre a arquitetura de arquitetos (arte) e a dos não arquitetos (simples edificação, arquitetura dita popular, etc.). Não nos interessa aqui discutir o mérito da obra de Alberti, pois ninguém tem dúvida de que ele teve um papel fundante, junto com outros, na criação de uma arte ou ciência renascentista da arquitetura. O que se quer caracterizar é o poder, quase mágico, que certas leituras atribuem ao texto culto. Leitura acirrada por Choay, que atribui este poder a um único texto. Trata-se da mesma questão à qual me referi quando comentava algumas concepções de Norberto Elias.256 O intelectual do presente dá uma ênfase exagerada ao papel criador da produção de seus pares intelectuais do passado. Os tratados seriam textos maiores, por serem teóricos e sistemáticos, quando comparados

255

O segundo termo remete a edil, magistrado urbano de Roma, o que não deixa dúvidas em relação a um vínculo proposto entre o saber corrente e a ação das câmaras. Em português o edilício, ou edilitário, conforme têm proposto muitos tradutores, também reproduz este preconceito que atinge simultaneamente, igualando-os, o saber institucional dos concelhos e as práticas apontadas como de saber comum. Tratam-se de práticas menores quando comparadas, com as práticas renascentistas ou iluministas. 256

Acabei por colocar Elias e Choay num mesmo barco. Porém, enquanto a leitura proposta pelo sociólogo é enriquecedora, a da arquiteta, que parte de uma oposição primária entre pequena e grande arquiteturas, é extremamente reducionista.

146

às posturas camarárias, miscelânea produzida assistemática e coletivamente, voltada a dar conta do dia a dia. Ocorre que a produção “tradicional” da forma arquitetônica, bem como a sua regulamentação pelas câmaras, não cessaram abruptamente após o advento dos tratados renascentistas. Nem, tampouco, as posturas passaram a ser um mero veículo de transmissão do conteúdo tratadístico. As câmaras, com suas posturas, continuaram a participar da produção dos espaços renascentistas dentro de sua lógica peculiar, assim como haviam feito nos da Idade Média. Com a diferença que, desde o renascimento, as posturas passam a coabitar com as sistematizações teóricas dos tratados. A relação entre posturas e tratados, e destes com a produção do espaço urbano, nada mais é do que uma vertente da velha questão da difusão cultural. Entre os historiadores da arte e da arquitetura está ainda muito presente a noção de que há uma Cultura transmitida em mão-única, das elites econômicas e artísticas para a plebe rude, que se deturpa no processo de transmissão e vulgarização. A tal modo de conceber, poderíamos chamar de teoria do difusionismo abastardante.257 Bem mais profícua tem sido a produção dos autores que partem da suposição de uma troca constante entre cultura popular e erudita. Refiro-me à noção de movimento recíproco entre tradições, utilizada por Peter Burke, ou o conceito de circularidade, desenvolvida por Carlo Ginzburg, ou ainda o de dialogia, de Bakhtin.258 No que diz respeito à produção do espaço urbano, a formação da rua pode exemplificar a complexidade dessas trocas. Não é descabido propor que a rua linear, composta por um continuo de fachadas, é uma das experiências primárias de perspectiva, a que estavam sujeitos os moradores das cidades medievais. O próprio

257

Por exemplo, este é um dos pressupostos no qual se baseia a obra de Arnold Hauser, autor de um dos mais difundidos manuais de história da arte, hoje um tanto superado. HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Mestre Jou, 1972. 2.v. 258

BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. GINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem. São Paulo: Cia. das Letras, 1988. Quero esclarecer que tais noções estão presentes no meu horizonte como algo a levar em conta, o que não implica em assumir os respectivos jargões. O uso ad nauseam de certo vocabulário, querendo com isto exprimir uma filiação teórica, é, no mínimo, aborrecida. Tenho uma certa repulsa pelos textos que a cada duas passagens falam em circularidade, dialógico ou carnavalização.

147

Alberti estava atento para isto. Ele admirava as ruas mais estreitas e curvilíneas, tanto que propunha que nas cidade menores elas tivessem a configuração de um rio que serpenteia no terreno. Buscava o efeito de contínuo afastamento, pois, neste tipo de rua, o ponto de fuga se desloca a cada passo do observador. Este era um Alberti ‘conservador’. Quando ele escreveu o seu tratado, a noção de que a bela rua (voluptas) ou a boa rua (commoditas) era mais larga e retilínea, já estava bastante difundida na Europa. Simultaneamente, àquele conservador, existe um Alberti ‘inovador’. Para as cidades mais importantes ele prescrevia a rua larga e retilínea. Buscava os efeito de ordem e monumentalidade produzidos pela perspectiva geométrica retilínea. Em qualquer dos casos, Alberti parte de uma percepção da rua, elabora-a abstratamente como espaço perspectivado, para depois voltar a ela, propondo-a como norma. Note-se que estas ruas, que servem de ponto de partida a Alberti, não são representativas de um caos a ser ordenado. Há muito, estão submetidas a princípios de ordem ditados pelas posturas municipais. No entanto, esta ordem não é criada nem pelas posturas e muito menos pelo tratado. Elas nascem de algo mais profundo, o compartilhamento do acesso ao espaço exterior, ao ar e à luz. A rua, como já dissemos, é um modo de ocupar o espaço, uma forma específica de segmentá-lo, uma arquitetura. Esta arquitetura não é instaurada por autores individuais ou institucionais, mas pelas pessoas detentoras de uma dada tradição cultural. Referindo-se à modelação dos comportamentos pela corte, Elias afirmou que, da interdependência entre pessoas, “surge uma ordem sui generis, uma ordem mais irresistível e mais forte do que a vontade e a razão das pessoas isoladas que a compõe”.259 Não seria abuso dizer o mesmo sobre a produção de espaços. Eles são o resultado de um fazer corrente, anônimo. Posturas e tratados nada mais são do que planos isolados, que elaboram sobre este saber, visando sistematizar, conter e sublimar comportamentos, entre os quais os de produção espacial. A noção de que a beleza é

259

ELIAS. O processo. v.2. p.194.

148

posterior estetização da necessidade, já era corrente nos próprios tratados renascentistas. Os tratados de arquitetura nada mais são que livros de etiqueta da forma urbana. São tentativas de cristalização do desejável. Já as posturas e vereações medievais, embora não sejam expressão do fazer anônimo, estão mais próximas dele. Apesar de sua opção pelo texto tratadístico, a própria Françoise Choay define com perfeição a ordem textual a que pertencem posturas e vereações medievais.

Estes escritos se situam num lugar improvável e precário, entre o procedimento autoritário dos textos prescritivos ou consuetudinários e o processo racional dos tratados instauradores. Aqueles que tomam as decisões estão suficientemente distanciados da vida e do espaço urbano para poderem traduzir os problemas que colocam em termos de razão e eficácia. Mas, ao mesmo tempo, a rede institucional que os liga à cidade impede-os de considerá-la como objeto independente. De um lado, seu discurso somente se enuncia em várias vozes, é tomado numa estrutura de diálogo. De outro lado, sem estar subordinado a nenhuma, é ordenado por todas as práticas sociais.260

As comunas italianas, ou as câmaras portuguesas, que me interessam mais de perto, foram instâncias mediadoras do fazer a cidade. O caráter mais vivo e mutável das antigas leis municipais permitem acompanhar com vantagens este processo. Nelas, manifesta-se tanto o costume, quanto a articulação deste com as primeiras sistematizações medievais e depois renascentistas, que, na tradição portuguesa, se expressavam através de algumas intervenções régias nas cidades.

A INVENÇÃO DA RUA

Correntemente, a cidade que emerge do modo cristão de se apropriar do espaço, na presença ou não dos tratados renascentistas, é apresentada como uma espécie de inferno sanitário.261 Os indicadores disponíveis sobre as cidades medievais e

260

261

CHOAY. A regra e o modelo. p.28.

Basta ver obras recentes como SENNET, Richard. Carne e pedra; o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record, 1997. p.162 e seguintes.

149

renascentistas mostram um quadro propício à propagação de doenças: falta de luz e ar provocada pelo excessivo estreitamento das ruas, monturos de lixo por todo o lado e a contaminação generalizada das fontes de abastecimento de água. Lewis Munford é uma das raras vozes a tentar excluir a cidade medieval desta caracterização corrente. Para ele, esse estado calamitoso teve início na transição da Idade Média para a Idade Moderna, devido ao apinhamento populacional provocado pelas muralhas urbanas.262 Esta hipótese difundida por Munford acabou sendo assumida por muitos dos medievalistas portugueses. Comentando as condições de ambiência da cidade medieval, A. H. de Oliveira Marques diz que as muralhas “restringiram a área destinada às construções, obrigaram a casa a altear-se e a rua a estreitar-se”.263 Apesar desta adesão de peso, somos obrigados a concluir que o raciocínio desenvolvido por Munford não é, no todo, válido para Portugal, como, provavelmente, não o é para a Europa em geral. Existem, de fato, um processo de verticalização das cidades medievais portuguesas e uma tendência de avanço das construções para as ruas, estreitando-as e tornando-as sombrias. O problema é atribuir este processo às construções defensivas. Munford propõe um modelo específico de crescimento urbano medieval em que a cidade, numa primeira fase, se expande mantendo boa quantidade de áreas não edificadas. Apenas numa etapa posterior, o crescimento horizontal, e supostamente harmonioso, seria detido pela barreira das muralhas o que provocaria uma densidade excessiva de ocupação. Nessa fase, ocorreria a verticalização da cidade e o aproveitamento da profundidade dos lotes para construções, com a conseqüente redução dos quintais e o agravamento da insalubridade. Maria de Conceição Ferreira foi uma das raras estudiosas portuguesas a

262

MUNFORD, Lewis. A cidade na história; suas origens, transformações e perspectivas. São Paulo: Martins Fontes, 1991. 3.ed. p.314 e ss.; 388 e ss. As críticas que serão feitas a Munford não significam uma total discordância com o autor. Ainda que não compartilhemos de sua aversão à cidade contemporânea, ou de sua tentativa de resgate romântico da cidade medieval, é preciso reconhecer a sua importância por ter trazido para o centro das atenções o problema geral da ambiência urbana. 263

MARQUES, A. H. de Oliveira. A sociedade medieval portuguesa. Lisboa: Sá da Costa, 1981. 4.ed. p.65.

150

contrariar tal hipótese. Ela observa que, em Guimarães, mesmo as ruas criadas em terrenos completamente livres já nasceram estreitas.264 O modelo proposto por Munford também é contrariado em diversas outras vilas e cidades medievais portuguesas, onde as muralhas apenas sancionaram uma ocupação prévia, em que os sinais de apinhamento já estavam presentes. É consenso que as muralhas da maioria das cidades portuguesas do final da Idade Média comportavam muitos vazios urbanos. Mesmo assim, elas eram dotadas de núcleos que reproduziam a típica paisagem urbana medieval adensada, sombria e insalubre. É o caso de Lisboa, onde se multiplicavam os pavimentos das edificações, concentradas em algumas ruas estreitas, muito antes da saturação da cerca fernandina. Assim, o processo me parece um pouco diferente. Existiam no interior das muralhas medievais núcleos prévios de adensamento, muitas vezes conformados por muros mais antigos ou anteriores ao amuralhamento, os quais podem ser qualificados como o urbano propriamente dito, em oposição às reservas de terras intramuros e aos espaços rurais circundantes. O crescimento se dava pelo avanço deste núcleo adensado sobre as áreas de reserva. Avanço que, desde a origem, ocorria sob o signo de uma concentração considerada desejável. Se observarmos a iconografia das cidades medievais, veremos que havia uma tendência a representá-las como unidades muito compactas e desligadas do entorno, o que só vem a mostrar que o apinhamento urbano era um valor em si. A cidade compacta era algo perseguido pelos moradores, e não o resultado de um processo de adensamento que escapara de controle. Era exatamente este adensamento que caracterizava e definia a aglomeração urbana medieval. Tomemos, como exemplo, as bastides medievais. Por serem planejadas, elas se aproximavam daquilo que, na época, seria considerado um assentamento urbano desejável. As suas ruas eram mais retilíneas e um pouco mais largas do que as das cidades que haviam crescido lentamente, mas, mesmo assim, eram cidades muito

264

FERREIRA, Maria de Conceição F. Uma rua de elite na Guimarães medieval. REVISTA DE GUIMARÃES. Guimarães, v.96, jan.-dez.1986. p.109-12.

151

compactas que buscavam não deixar espaço para a interpenetração entre o urbano e o rural envolvente. Com essa argumentação, pretendemos ressaltar que o apinhamento é tanto algo desejável, como uma tendência geral observável na cidade medieval, que os limites impostos pelas muralhas não criam, apenas agravam. Diversos fatores levavam a esse tipo de escolha, a começar por um de ordem simbólica. Como já dissemos, a cidade definia-se em oposição ao campo circundante e não como o resultado do crescimento de um núcleo rural. Nesta maneira de organizar o espaço

urbano

pesavam,

também,

motivações

de

ordem

econômica.

O

compartilhamento de paredes tornava mais barata a construção de casas. Vimos anteriormente que os primeiros almotacés da Península Ibérica tinham entre suas atribuições a de mediar os conflitos entre vizinhos, provocados, justamente, pelo compartilhamento de paredes lindeiras. Também se inscreve na órbita econômica, a tendência a aumentar a renda da terra urbana, através da maximização do uso do lote. Desde o final da Idade Média, a nobreza portuguesa buscou complementar suas rendas agrícolas com outras provenientes da nascente urbanização, entre elas as propiciadas por casas urbanas construídas para arrendamento. O fenômeno da moradia exígua e superocupada, provocado pela especulação com terras urbanas, é mais antigo do que costumamos supor. No processo de adensamento das cidades medievais, além do amuralhamento, pesou, ainda, um outro aspecto defensivo. O medo era uma das características marcantes da cultura medieva, o qual se expressa na tendência a construir espaços fechados. O bloco compacto de casas funcionava como uma unidade de defesa: a única no caso de um conjunto de casas sem muralhas, o último reduto no interior da fortificação, quando ela existia. As casas dispersas nas redondezas da cidade poderiam tornar-se abrigo aos invasores e, portanto, eram encaradas como ameaça. Tanto a prática militar medieval, como as próprias câmaras, levavam tal aspecto em consideração.265

265

Mais tarde, nas colônias portuguesas, esta foi uma questão sempre presente entre os agentes da coroa, o que os levaria a pressionar os moradores a construírem casarios compactos.

152 Outrossim o dito João Afonso [camareiro mor de D. João I] disse que ele olhando por prol e defesa da dita vila vendo como a cerca da vila é erma e despovoada isto é pelos arrabaldes de fora que são grandes e os que em eles moram não têm casas a que se acolher e na dita vila há muitos pardieiros os quais há muito grã tempo jazem em terra [....] mandou que dêem todos os pardieiros da dita vila assim do Senhor como dos vizinhos da dita vila a todos os que moram fora nos arrabaldes e termo e que se colham logo à vila e façam casas em ela para suas moradas e [....] se tal cousa virem que inimigos querem a este Reino manda que logo toda a telha e madeira dos arrabaldes colham dentro à cerca em guisa que se inimigos vierem que não achem em que se acolher. S. C. M. de Loulé, fevereiro de 1385.266

A cidade medieval, dispersa e salubre, que Munford tenta nos mostrar é antes a ausência da cidade ou aquilo que mal é cidade. Ele esgrime, contra aqueles que procuram mostrar o estado de insalubridade calamitosa da cidade medieval madura, uma suposta bonomia à sua nascença, um estado característico da aldeia onde rural e urbano se interpenetram. Munford não parece dar-se conta de que muitos dos problemas de salubridade enfrentados pela cidade medieval, e moderna, eram resultado da tentativa, por parte dos moradores, de manter esta interpenetração. Ainda que tivesse crescido e procurasse definir-se como urbana, esta cidade foi, por séculos, pouco urbana justamente por manter em seu interior muito do mundo rural. Acredita-se que em Portugal e suas colônias houve uma “tendência exacerbada de ruralização do meio urbano”.267 É preciso ter em mente um detalhe. Ainda que as referências ao mundo clássico não se tivessem perdido totalmente, a urbanização da Europa Medieval era um processo novo, que ganharia dinamismo a partir do século XIII. Mesmo no caso da Península Ibérica, onde cidades islâmicas foram aproveitadas pelos cristãos, não se pode falar numa completa continuidade urbana, pois a maioria dos muçulmanos que permaneceram era composta de trabalhadores rurais. Aqueles que habitavam as cidades foram, em grande medida, expulsos ou mortos e os que ficaram foram impedidos de morar dentro dos muros. Os moçárabes e judeus que permaneceram compunham apenas uma parcela da população. O manancial de futuros citadinos seria, afinal, o campo.

266

LOULÉ. Atas da câmara. op. cit. p.59.

267

VIEIRA. As posturas municipais. op. cit p.692.

153

O fenômeno da urbanização medieval é um fazer de novo. Urbaniza-se com pessoas recém saídas do campo. Não importa, aqui, se elas viviam isoladamente ou na diminuta aldeia proposta por Munford, pois, independentemente de tal questão, naquilo que nos interessa, o resultado é o mesmo. Aqueles que chegavam à cidade acabavam de sair de uma economia de auto-subsistência e de um fazer quotidiano rural. Enquanto permaneceram no campo, esses camponeses medievais usavam os próprios excremento e os dos animais de criação como adubos, os quais, por terem um valor utilitário imediato e reconhecível, não eram vistos como contaminantes ou nocivos à saúde e, talvez, nem fossem malcheirosos. Até hoje, não apreciamos os bons odores do campo? Da mesma forma, os dejetos em geral ou eram adubos ou eram forragens e lavagens, comida de aves ou porcos. Outras formas de lixo, se é que existiam, eram produzidos e descartados numa velocidade que permitia sua absorção pelo entorno, sem que houvesse tempo para maiores acúmulos. Pensemos, agora, na situação urbana. Nos períodos que estamos focalizando, convencionalmente denominados Baixa Idade Média e Idade Moderna, uma boa parcela do processo produtivo permaneceu no campo. Entretanto, à medida que avançou o processo de urbanização, formou-se uma nova camada de moradores da cidade. Eram pessoas que mantinham hábitos de consumo próprios da economia rural dominante, com a qual deparavam-se toda vez que deixavam as muralhas urbanas. Os hábitos de consumo rural conformam um espaço contíguo à casa, onde se desenrola uma parte importante das atividades domésticas e econômicas. É no terreiro, ou no passal, que se faz o preparo final dos alimentos, tanto para o consumo imediato limpeza, descasque ou trituração -, como para sua conservação - curtidura, secagem, salga ou defumação. São exatamente as atividades dessa fase final de preparo, seja para consumo próprio, seja para a venda, que o morador da cidade, preso ainda a hábitos rurais, procura trazer para junto de sua casa urbana. Na medida do possível, o morador da cidade tenta reproduzir os espaços rurais utilizados nessas atividades, agregando à sua casa equivalentes urbanos dos terreiros. São os quintais, varandas ou terraços,

154

espaços

indispensáveis

ao

desenrolar do quotidiano das casas e oficinas.268 Os diversos fatores

que

conduzem

ao

apinhamento da cidade medieval e a da era moderna fazem com que

esses

urbanos

correspondentes

fiquem

aquém

do

necessário. Em conseqüência, as ruas foram apropriadas como terreiros domésticos ou como projeção da oficina. Uma apropriação que se dava tanto pelo uso, quanto fisicamente. Danavam as praças e faziam maus odores A tendência dos moradores a projetarem uma parcela das atividades domésticas e artesanais para o espaço público iria gerar uma legislação municipal em sentido contrário. Até os mais corriqueiros atos da vida precisavam ser contidos. Em alguns casos, temos proibições contra o ato de cozinhar nas ruas.269 Mais freqüentes eram as proibições tentando impedir que a rua fosse o destino das sobras de cozinha. As posturas de muitas cidades determinavam “que nenhuma pessoa bote escamas à sua porta”.270 Por todo o lado, vamos nos deparar com tentativas de impedir que a rua fosse colonizada pelas atividades artesanais. Por vezes, as câmaras agiam com o intuito de mantê-las fora do espaço urbano. Ordenavam os oficiais do concelho de Lisboa “que

268

A imagem acima mostra um grupo de azulejos do século XVIII representando um passal. Reproduzido de HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL. São Paulo: Cia. das Letras. 1997. v.1. p.91. 269

270

SETÚBAL. Posturas municipais. op. cit. p.81.

Ver, por exemplo, COIMBRA. Posturas Municipais. ARQUIVO COIMBRÃO. v.2, p.174. A difusão deste preceito pode ser sentida nas ilhas atlânticas. Ver ANGRA DO HEROÍSMO. Posturas Municipais de 1655. RIBEIRO, Luís da Silva (ed.). Reforma das posturas do concelho de Angra em 1655. BOLETIM DO INSTITUTO HISTÓRICO DA ILHA TERCEIRA. v.9, 1951. p.134.

155

não seja nenhum tão ousado que lance couros verdes nem secos a enxugar nem a secar em nenhuma parte da cidade dos muros adentro e aqueles que enxugar quiserem que o façam ao redor da cidade fora dos muros”.271 Outras vezes, as posturas procuravam, simplesmente, evitar os acúmulos resultantes dessas atividades. Em Évora, “os mesteirais e outros da cidade faziam grandes lixos ante suas portas”, o que levou os vereadores a impor-lhes a obrigação semanal de varrer as ruas à frente das oficinas.272 Em Braga, os moradores insistiam “em maçarem linho e espadalarem, e estrigarem nas ruas públicas e rocios por onde todas as pessoas andam vestidos e bem trajados”. Por força de uma postura, os que continuassem com este “vil costume” seriam multados em 200 réis.273 Os restos de peixes e mariscos eram considerados especialmente insalubres, pelo forte odor que desprendiam. As peixeiras de Évora estavam proibidas de “verter caldo do pescado na praça”.274 Em Lisboa, era proibido o corte e a limpeza de pescado graúdo nos açougues. Para este comércio, foi destinado um local fora dos muros da cidade. Os talhadores de peixe deveriam ter cestos onde colocar os restos para depois lançá-los em locais especialmente designados.275 Os fumeiros de peixes, além de incômodos, eram considerados perigosos, por provocarem incêndios. A câmara proibiria que fossem criados novos locais de defumação e que os já existentes fossem ampliados.276 A legislação lisboeta também proibia que as sardinhas fossem salgadas nas praças da cidade, pois “a qual salga era em grande dano da cidade porque danavam as praças e faziam maus odores”.277 Mesmo a salga doméstica do peixe era alvo de

271

LPA. p.142.

272

ÉVORA. Posturas Municipais. op. cit. p.133.

273

BRAGA. Posturas Municipais. op. cit. v.1, p.356.

274

ÉVORA, Posturas Municipais. op. cit. p.130.

275

LPA. p.9-10.

276

LPA. p.123-4.

277

LPA. p.120. Ver também p.29.

156

restrições.

Outrossim acordaram que não façam salgas de sardinha nem pescado nas sacadas sobre as ruas da dita cidade porque corre a salmoura por cima das roupas que os homens e mulheres trazem vestidas o que é grande dano e qualquer que o contrário fizer pague por cada vez que for achado cem libras. Lisboa, século XV.278

Posturas como essas, que à primeira vista parecem prosaicas, trazem consigo aquilo que é essencial na construção da urbanidade. Elas demarcam certos comportamentos, banindo-os como impróprios à rua, ao mesmo tempo em que afirmam a inviolabilidade daquele que anda pelos espaços públicos, ainda que em relação a simples respingos em seus trajes. Por outro lado, elas reforçam a divisão do quotidiano urbano em esferas, uma vez que delimitam o que pode e o que não pode acontecer no espaço público. Em muitos casos, a ocupação das ruas, principalmente pelos comerciantes, não era fruto exclusivo da vontade dessas pessoas. Existia toda uma legislação que puxava as atividades comerciais para o espaço público. O que levava a isto eram questões de ordem fiscal e moral. Apesar da forte vinculação entre o desenvolvimento do comércio e o da cidade, temos que levar em conta que o mercadores eram personagens mal situadas na sociedade medieval. Eles não criavam produto e, portanto, suas atividades assemelhavam-se à usura. A percepção que se tinha do mercador era a de alguém que, por princípio, sonegava do fisco e enganava os fregueses. A melhor maneira encontrada para fiscalizar a sua atividade foi trazê-la para a luz do dia. As mercadorias deveriam estar ou em tabuleiros na rua ou, como dizia a legislação de Braga, no “vivo da porta”, pois, do contrário, “as mercadorias parecem melhores do que são”.279 Em Lisboa, a venda no interior das lojas era permitida em certos locais, mesmo assim algumas precauções eram

278

LPA. p.120.

279

BRAGA. Posturas Municipais. op. cit. v.1, fasc. 5-6, maio-jun. 1935. p.135.

157

previstas pelos vereadores.

Em 15 dias do mês de novembro [de 1459] os sobreditos vendo como antigamente as janelas das sobrelojas da Rua Nova sempre estiveram abertas de couce a couce e ora as cerravam até a metade e [punham] um pano em cima que cobria a outra parte de cima o que era perda dos que iam comprar panos às ditas sobrelojas acordaram que todas fossem abertas de couce a couce segundo antigamente foi costume.280

O fato de muitos mercadores serem judeus trazia mais uma complicação. A segregação medieval de judeus e mouros atingia a própria corporalidade das pessoas. Sexo entre majoritários e minoritários era punido com pena de morte. A legislação procurava evitar que surgissem oportunidades para este tipo de relação. As mulheres estavam proibidas de entrarem sozinhas nas judiarias e mourarias, a não ser na companhia de um homem. Igualmente, elas só podiam entrar em lojas de judeus e mouros estando acompanhadas. Caso contrário, o comerciante deveria mostrar-lhes as mercadorias das portas para fora. Mais um fator que levava à preferência pelos tabuleiros colocados fora das lojas. Vivia-se, portanto, sob tendências opostas. Estavam em vigor leis que levavam à exteriorização do comércio simultaneamente a outras que procuravam disciplinar esta ocupação das ruas.

Puseram por postura que não seja nenhum tão ousado que na Rua Nova nem na Rua de Moraz tenha bancos nem tabuleiros que mais se estendam pela rua que seis palmos desde a parede da casa até o cano do tabuleiro contra a rua e qualquer que o contrário

280

LPA. p.91 No século XVIII esta percepção continuava viva. O Estatuto dos mercadores de Retalho de Lisboa afirmava que “de se vender em sobrelojas, e outras casas de sobrado, resulta o inconveniente de se ocultarem assim com maior facilidade os Contrabandos, e fraudes”. PORTUGAL. Collecção de Leis. Tomo.1, 1750-1760. s.p. No Distrito Diamantino das Minas Gerais, na tentativa de conter o descaminho dos diamantes, uma ordem de 5 de agosto de 1755 determinava que aqueles que tivessem “tendas, tavernas e quitandas estabelecidos em becos ou travessas, dentro de três dias os ponham em ruas públicas”. MACHADO FILHO, Aires da Mata. Arraial do Tijuco cidade Diamantina. São Paulo: Martins Fontes, 1957. p.80. Outro autor afirma que, em Diamantina, os negociantes “deveriam ter mostrador à porta saído para rua palmo e meio, e todo o negócio devia ser feito por cima dele à vista do público”. SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino. Petrópolis: Vozes, 1978. p.77.

158 fizer e se mais estender que pague por cada uma vez cem libras.281

Quanto à delimitação física das ruas, a cada reconstrução ou reforma, o proprietário procurava ganhar espaço avançando sobre o áreas públicas. Cabia aos almotacés evitar que isto acontecesse. Todavia, algumas formas de avanço eram toleradas, principalmente nas edificações assobradadas. Muitas vezes, as escadas que levavam aos pavimentos superiores eram construídas em plena via pública. A mais característica projeção do espaço privado sobre o público eram os balcões e sacadas. A legislação permitia que cada proprietário ocupasse com beirais ou sacadas até um terço da largura das ruas, deixando para iluminação e ventilação apenas o terço central da via pública. Mesmo este terço não estava de todo garantido, pois o costume e uma legislação tolerante permitiam, a quem tivesse casas frente a frente, “deitar traves por cima da rua de uma parte a outra e [fazer] aí para cima da rua balcão com sobrado”.282 O resultado eram os inúmeros passadiços que atravessam as ruas medievais, tornando-as mais úmidas e escuras. Neste caso específico, o uso do espaço público é entendido como concessão precária, e o passadiço o “pode desfazer o concelho cada vez que quiser”.283 Todas essas possibilidades de avanço sobre as ruas eram amplamente aproveitadas. Como resultado, apareciam seqüências de balcões dos dois lados da rua. Sobrava para a iluminação apenas o terço central, isto quando não existiam passadiços. Não podemos, portanto, estranhar que tanto no Porto, como em Guimarães, existissem vias que receberam o nome literal de Rua Escura. Não era incomum que problemas construtivos tornassem frágeis estes apêndices, exigindo a construção de estruturas de apoio. Um morador da cidade medieval não pensará duas vezes antes de cravar esteios em plena via pública para apoiar as sacadas de sua casa.

281

LPA. p.61.

282

LPA. p.112.

283

LPA. p.112.

159 Os ditos oficiais e os procuradores dos mesteres foram prover a rua de Santa Catarina [...] e indo acharam uma forca* tanchada* às casas de Beatriz Ruiz castelhana [em] que estava arrimada a sacada das ditas casas e porque pejava* a dita forca a rua mandaram logo derrubar [...]. S. C. M. do Funchal, 26 de setembro de 1485.284

Desta vez, a câmara agiu a tempo impedindo que a rua fosse atravancada pelos arrimos de uma sacada. Muitas vezes, isto não ocorria. O doutrina do direito consuetudinário medieval pregava que, após “ano e dia”, os fatos estavam consumados, transformavam-se em direito que não podia ser revertido. A ação dos almotacés, assim como a existência de uma legislação municipal restritiva, não foi capaz de eliminar as diversas formas através das quais as ruas eram apropriadas. A rua que se formou na Idade Média, e que subsistiu nas mesmas condições na grande maioria das cidades durante a Idade Moderna, era um lugar estreito e sombrio, onde o lixo e os excrementos se acumulam desprendendo odores nauseabundos. Era também um espaço muito vivo, onde se desenrolava uma parcela significativa do quotidiano dos moradores. Foi esta rua que deu origem à lenda negra da cidade medieval. A casa e a rua As múltiplas formas de apropriação das ruas pelos moradores da cidade não pode, contudo, ser entendida como algo indevido, uma deturpação. Mesmo porque, não havia um modelo diferente deste a ser deturpado. O espaço da rua não estava sendo tomado indevidamente, ele estava sendo produzido, com aquelas características que, ainda hoje, tomamos para defini-la. Esta rua, que está na âmago da própria concepção ocidental de cidade, só tomou a forma que tomou porque na sua origem estava uma casa rural extrovertida, transplantada para um ambiente urbano em formação. Há que considerar, no entanto, uma peculiaridade cultural que permitiu que

284

FUNCHAL. Atas da Câmara. COSTA, José Pereira da (ed.). Vereações da câmara Municipal do Funchal; século XV. Funchal: Região Autônoma da Madeira, 1995. p.110. *Forca = esteio, estaca, estrutura de madeira. *Tanchada = cravada no solo *Pejar = estorvar, embaraçar.

160

tal transplante ocorresse, sem obrigar transformações imediatas. Entre as populações cristãs, o sentido de intimidade era muito menos desenvolvido do que entre muçulmanos. O estatuto da mulher cristã era mais aberto, o que tornava a sua movimentação menos cerceada. Alguns autores vinculam o culto de Maria a uma tentativa de evangelizar as mulheres, fazendo concessão às religiões pagãs que precederam o cristianismo. O menor isolamento imposto à mulher é um facilitador do processo de colonização familiar da rua, pois permite a continuidade do fazer doméstico no entorno da casa, mesmo na presença de pessoas que não pertencem ao núcleo familiar. O lar pôde continuar conjugado à oficina, buscando espaço às vias públicas. O pequeno comércio, com uma expressiva presença feminina, teve facilidades para extrapolar o antigo suq e espalhar-se pelas ruas residenciais, povoando-as de bancadas e tabuleiros. As mulheres que estavam na rua, disputando ativamente os mercados, foram um dos alvos prediletos das posturas que buscavam conter costumes agressivos.285 Do ponto de vista da produção da forma urbana, a casa cristã, ao voltar-se para fora, torna-se dependente da rua, que passa a ser o fato gerador da ocupação do espaço. O verbo que rege a cidade cristã portuguesa é arruar, ao contrário da muçulmana, que era habitar. A rua linear (não confundir com retilínea), composta por uma seqüência de fachadas, é resultado de uma disputa entre vizinhos por um acesso ampliado à rua. Além de acesso à casa, a rua cristã era lugar de obtenção de ar, de luz e, inclusive, de espaço, uma vez que ela também era extensão da casa e oficina, onde se desenvolviam atividades da economia doméstica e artesã. Numa situação como esta, é fácil presumir que a tentação de apropriar-se privadamente de espaços públicos era mais forte do que entre os muçulmanos. No entanto, contrariando as expectativas, a rua cristã costumava ser mais larga. Existe aqui uma falsa contradição. É justamente porque o acesso à rua é desejável que, entre os cristãos, esta tentação esbarra no vizinho prejudicado pela perda de ar, luz ou espaço.

285

Sobre a presença da mulher no mercado urbano medieval, ver COELHO, Maria Helena da Cruz. A mulher e o trabalho nas cidades medievais portuguesas. in _____. Homens, espaços e poderes, séculos XI-XVI. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. V.1. p.37-59.

161

Depositar lixo nas ruas é fazê-lo na frente da porta ou janela de alguém, o que também é capaz de despertar reações. Este espaço de onde vêm a luz e o ar (acompanhados de seu cheiros), não é, em princípio, de ninguém. Mas tudo que aí ocorre tem efeitos imediatos sobre alguém. O direito de almotaçaria é a contrapartida institucional desta situação, que nasce da necessidade de mediar os múltiplos conflitos gerados pela interação dos moradores da cidade. Em essência, não há diferença entre a almotaçaria cristã e a de seus antecessores muçulmanos. Contudo, a mudança do uso quotidiano da rua trouxe consigo uma nova forma física e de agenciamento de atividades. Isto porque, nas cidades cristãs parece haver um agravamento das situações de tensão, que exigem com mais freqüência a intervenção medidora da almotaçaria. O resultado é a criação de um direito consuetudinário específico e, depois, um direito positivo, que substituem o espaço da mediação. Doutrinariamente, a almotaçaria transforma-se neste direito que a cidade têm de intervir nos conflitos entre vizinhos. Os efeitos deste poder acabariam por ultrapassar o seu âmbito inicial, pois é dele que emerge uma esfera pública, apartada daquilo que é privado. Até a metade do século XV, o espaço público urbano era, por definição, a rua. Uma e outra coisa pouco se diferenciavam. Em alguns raros casos, o morador da cidade medieval portuguesa identificava uma outra instituição com o público: o rossio, que, originalmente, era a terra de apropriação comunal entre os camponeses.286 Na situação urbana, as ruas e, depois, as praças serão consideradas como rossios. Contudo, o rossio urbano não se restringe à superfície da rua. Trata-se de um espaço que se define volumetricamente. Uma postura lisboeta diz, categoricamente, que a rua é “rossio do concelho” tanto “em cima como em fundo”.287 O que interessa à legislação medieval não é a abstração geométrica do volume, mas as qualidades concretamente sensíveis e utilitárias que nele se manifestam

286

Marcelo Caetano, reproduzindo J. Leite de Vasconcelos (Etnografia portuguesa, v.2, p.342) afirma que a palavra deriva de residuus, remanescente. Rossio seria o terreno vago, comunal, situado fora das muralhas de uma povoação. CAETANO, A administração. p.83. 287

LPA. p.112. Guardar nesta postura o uso do termo rossio como propriedade concelhia.

162

e podem ser apropriadas. O espaço de passagem e de estar fora de casa, o ar e a luminosidade são rossios, ou seja, são públicos. Todavia, a rua não se caracterizava apenas como espaço físico definidos por tais características. Era uma instituição que, do ponto de vista simbólico, psicológico ou mesmo jurídico, se opunha à casa. Saindo-se pela porta da frente da casa citadina entrava-se na rua, ou seja, no espaço público. Ato que representava cruzar uma fronteira que pouco tem a ver com aquilo que ocorre na casa rural, em situação semelhante. Do ponto de vista jurídico, estar na rua poderia ser uma situação adversa. A inviolabilidade da casa, era um dos mais apreciados privilégios urbanos, que muitas cidades lutavam por obter. A legislação refere-se aos privilégios dos que estão sob sua “menagem”. Trata-se de homenagem, a terra da nobreza por excelência, livre da jurisdição e da tributação do rei: a terra absolutamente privada. Dentro de sua casa, cada um era um nobre, com poder de vida e morte sobre os invasores. Aos que viviam sob esse privilégio, quando em casa, só era permitido a prisão com acusação formada, na presença de testemunhas e durante o dia.288 Fora do couto doméstico, estava-se sujeito ao arbítrio dos delegados das justiças do rei, dos senhores ou do concelho. Rua e casa, ou público e privado, eram jurisdicionalmente coisas distintas. Ainda do ponto de vista jurídico-institucional, quem estava no espaço público ficava sujeito a normas e leis que só à rua diziam direito. Ao disciplinarem os comportamentos urbanos aceitáveis, as posturas municipais concentravam-se na rua, eximindo-se de adentrarem as casas. No máximo, elas normatizavam a passagem entre a rua e a casa, tentando impedir que certos hábitos domésticos transpusessem a fronteira entre as duas. Ao definir o espaço público, a legislação urbana atingia, também, as testadas das casas, pois elas são algo dúbias, uma vez que pertencem, simultaneamente, às esferas pública e privada. Não é de se estranhar que uma das primeiras ações da cidade sobre as casas tenha sido a regulamentação daqueles elementos arquitetônicos que

288

As oligarquias camarárias obtiveram o privilégio, igual ao da nobreza, de serem presos apenas em sua menagem, ou seja, não estavam sujeitos ao cárcere comum mas à prisão domiciliar.

163

compunham as fachadas voltadas à rua. Todavia, essa legislação não se atinha aos limites entre o público e o privado, pois o limite entre dois privados é, também, público. A mediação dos conflitos entre vizinhos, provocados pelo compartilhamento de paredes, é definidora do âmbito original de competência dos almotacés. Mas não necessariamente ela se restringiu a paredes e muros, expressão material do limite. As fronteiras são abstrações inespessas, transparentes, que podem ser rompidas por um simples olhar. O devassamento de espaços considerados íntimos pelo olhar do vizinho era uma questão a ser resolvida na esfera pública. Feitas essas definições gerais, vamos passar a acompanhar mais de perto a prática desse direito de almotaçaria, não em suas três vertentes, mas em apenas duas: as do podre e da forma. Com esta escolha não estou subestimando a importância do mercado. Ao contrário, de tão importante e decisivo, o mercado merece um estudo à parte, que pretendo fazer num futuro breve. De qualquer forma, neste trabalho, o mercado estará sempre presente no desenvolvimento dos outros temas, como até agora esteve, uma vez que é difícil separar o que não ocorre separadamente.

164

DA FORMA

O interior da cidade será belo e deleitoso. Haverá leis que regulem as edificações e demolições e pessoas encarregadas do seu cumprimento. Francesch Eximeniç - El Crestiá, 1381- 1386.

165

PRODUZINDO A FORMA

Em Portugal, a existência das cidades muçulmanas não permite que se fale em uma completa descontinuidade urbana, durante a Idade Média, como ocorreu em outras regiões da Europa. Ao sul do Tejo, onde a presença islâmica foi mais constante e duradoura, há uma continuidade urbana que vem da Idade do Bronze. No entanto, para efeitos do estudo do renascimento da cidade cristã medieval, pode-se considerar que, em Portugal, houve um processo simultâneo ao do restante do continente. O aparecimento ou expansão de núcleos espontâneos, a transformação das cidades herdadas aos mouros e a criação de vilas-novas são ocorrências concomitantes, que se iniciam na segunda metade do século XIII, durante o reinado de Afonso III. Constituem a vertente local do processo geral de renascimento da cidade européia. É certo que Portugal não acompanhou o fenômeno com a mesma intensidade observada em algumas regiões além-Pirineus. A grande expansão urbana portuguesa ocorre no século XV; no entanto, ela já estava plenamente esboçada desde o século XIII. Apesar de pertencer a este quadro geral, a cidade portuguesa guarda algumas especificidades. A mais marcante delas é a nítida preferência locacional pela implantação em altitude. A colina ou a costa de relevo abruptamente recortado são verdadeiras idiossincrasias locacionais da cidade portuguesa. Como lembra o decano da geografia urbana portuguesa, “haverá poucos países com tantas cidades e vilas

166

alcandoradas como em Portugal”.1 Na realidade, a ocupação humana na Península Ibérica oscilou entre a colina e a planície, desde a pré-história. Os núcleos castrejos proto-urbanos, anteriores à romanização, situavam-se no topo de colinas. Pode-se atribuir tal tipo de ocupação a períodos de conturbação guerreira, enquanto nos períodos de paz a cidade tenderia a descer os morros buscando as planuras. As razões para a escolha dos sítios alcandorados eram, obviamente, de ordem defensiva. Procuravam-se locais de difícil acesso e a partir dos quais o inimigo fosse avistado a longa distância. Assim, muitas cidades portuguesas tiveram origem em acastelamentos situados no alto de morros e colinas. Pacificado o território, o primado da defesa perde importância. A cidade acastelada desce pelas encostas ou surge um núcleo urbano concorrente no sopé da colina. Formam-se, assim, cidades bipolares, onde convivem, de forma nem sempre harmoniosa, uma parte alta com outra baixa. Em cima a elite governante militarizada e em baixo a cidade propriamente dita. Na Baixa Idade Média, o quadro repete-se, resultando na dualidade característica de muitas cidades portuguesas. O período formativo da nação foi uma época de guerras contra muçulmanos e reinos cristãos concorrentes, na qual se manteve viva a preferência pelos sítios alcandorados. Passados os momentos de beligerância ou com o avanço das linhas de fronteira, a ênfase militar torna-se supérflua. Seguindo o clássico esquema, nas regiões pacificadas, formam-se cidades concorrentes que superam os núcleos originais. São os casos de Noudar, Ourém, Óbidos e Monsaraz, que acabariam substituídas, respectivamente, por Barrancos, Vila Nova de Ourém, Caldas da Rainha e Reguengos de Monsaraz.2

1

RIBEIRO, Orlando. verbete “CIDADE” in: Dicionário de história de Portugal. Lisboa, 1963.

v.1, p.574. Sobre as preferências locacionais da cidade portuguesa ver FERNANDES, José Manuel. O lugar da cidade portuguesa. Povos & Cultura, Lisboa, Universidade Católica, número 2, 1987. p.79-112. 2

1991. p.99.

FERNANDES, José Manuel. A arquitectura. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda,

167

Castro de Terroso3

Em outros casos, as cidades ou castelos originais permanecem integrados às novas áreas de expansão que se esparramam colina abaixo, às vezes integrados à nova trama urbana, outras como parte do aparato militar defensivo. O resultado foi a formação de muitas cidades duais, em que o processo de urbanização resulta do diálogo espacial entre as partes alta e baixa. O Porto e Tomar são exemplos característicos dessa situação, com resultados espaciais muito diferentes. Em Tomar, o castelo templário que estava na sua origem entrou em decadência, substituído pela nova vila desenvolvida em topografia mais plana às margens do Nabão. Já no Porto, permanecem o castelo bispal e a Ribeira, dando origem a uma cidade bipolar. A articulação entre os dois núcleos é complicada pelo grande desnível, o que resulta em vielas tortuosas. Em alguns casos extremos, à dualidade espacial corresponde outra institucional em que o castelo e a vila

3

Castro de Terroso em ALARCÃO, Jorge. A cidade romana em Portugal; a formação de “lugares centrais” em Portugal, da Idade do Ferro à romanização. In: CIDADES E HISTÓRIA. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992. p.64.

168

propriamente dita possuem forais ou mesmo concelhos diferentes. São os casos de Guimarães e de Lamego, nas quais esta dualidade seria superada apenas com a construção de novas muralhas unificadoras.4 Outra questão a observar é a progressiva litoralização da ocupação urbana portuguesa, provocada pelo desenvolvimento do comércio de cabotagem e, mais tarde, marítimo. Cidades ribeirinhas interiores, como Braga, Coimbra ou Évora, dão lugar à supremacia de outras, mais próximas à costa, como Lisboa e o Porto, situadas em estuários mais desafogados que permitem navegação de maior calado. Em muitos casos é o assoreamento dos rios, com a conseqüente mudança da linha da costa, que leva à decadência alguns portos importantes, fazendo a fortuna de seus concorrentes mais próximos ao mar. A cidade de Silves, principal porto algarvio do período islâmico, cede lugar à Vila-Nova de Portimão.

A CIDADE MUÇULMANA DA PENÍNSULA IBÉRICA

Quando da invasão muçulmana, já ia longe o período da pax romana, o que parece ter resultado no processo de desurbanização característico da Alta Idade Média. As cidades que permaneceram tendiam a assumir um caráter defensivo e já se haviam afastado do ordenamento urbano típico da ocupação romana. A cidade islâmica nasceu da transformação desse quadro urbano resultante das transformações que as cidades romanas sofreram nos reinos suevos e visigóticos.5 Mesmo no caso de novas fundações elas não se afastaram do quadro geral

4

Ver ALMEIDA, Carlos Alberto Ferreira de. Muralhas românicas e cercas góticas de algumas cidades do centro e do norte de Portugal; a sua lição para a dinâmica urbana de então. In: CIDADE E HISTÓRIA; ciclo de conferências promovido pelo Serviço de Belas Artes em novembro de 1987. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992. p.139. 5

Boas sínteses sobre a cidade ibero-muçulmana podem ser encontradas em CHUECA GOITIA, Fernando. Breve história do urbanismo. Lisboa: Editorial Presença, 1982. TORRES BALBÁS, Leopoldo. Ciudades hispanomusulmanas. Madrid: s.ed., s.d. ZOZAYA, Juan. Urbanismo andalusi. In: CIDADE E HISTÓRIA. Fundação Calouste Gulbenkian, 1992. PAVÓN, Basilio. Ciudades hispanomusulmanas. Madrid: Editorial Mapfre, 1992.

169

anteriormente proposto. Os árabes assumiram a idiossincrasia locacional da Península, dando preferência à altitude.6 Afinal, tratava-se de mais uma elite militar invasora a construir cidades para tempos de guerra. A localização em encostas de colinas e a presença de muralhas foram duas constantes na configuração das cidades islâmicas ibéricas. Na extremidade situada mais ao alto situava-se a alcáçova, o castelo ou recinto destinado à elite dirigente. Alargando-se progressivamente pela encosta, desenvolvia-se a almedina, a cidade propriamente dita. Essa disposição gerava a forma básica que tendia a um trapézio alongado, tão característica da Espanha islâmica.

Nos períodos de centralização, viviam nas alcáçovas os agentes locais do estados imperiais muçulmanos, e nos diversos momentos de pulverização política, os príncipes taifas que proliferaram na Península. Elas foram uma marca indelével de que se tratavam de cidades ocupadas. A segregação espacial correspondia a um sentimento de estrangeiridade das camadas dirigentes muçulmanas, que inicialmente eram árabes. Um sentimento que foi reforçado pelas posteriores invasões dos almorávidas e

6

São peculiaridades como esta que levaram A. H. de Oliveira Marques a denominá-las de cidades hamitas. Ele observa que as cidades islâmicas da Península Ibérica e do Magreb têm características peculiares que não se encontram nas cidades muçulmanas do oriente. Ver MARQUES, A. H. de Oliveira. Introdução à história da cidade medieval portuguesa. In: _____. Novos ensaios de história medieval portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte, 1988. p.23-35.

170

almohadas, vindos do norte da África. Enquanto a muralha como um todo protegia a cidade do exterior, a alcáçova, ao mesmo tempo em que era um último reduto de resistência em caso de ameaça externa, protegia a camada dirigente dos próprios habitantes da cidade. A alcáçova era uma muralha na muralha. Almedina Estruturalmente, a almedina, a cidade propriamente dita, estava centrada numa mesquita-maior, no entorno da qual se desenvolviam diversas outras atividades que lhes eram, de alguma forma, vinculadas. Na lateral, o pátio destinado às abluções purificatórias que precedem à entrada na mesquita. No pórtico dos templos ou em prédios anexos decorriam as aulas da escola corânica. Na mesma área ficavam as latrinas e os banhos públicos, freqüentemente administrados pela própria mesquita ou por organizações religiosas. Também neste núcleo central situava-se o mercado, ou as-sûq (o açougue, em português). Tratava-se de um conjunto de ruas, ou mesmo de uma única rua, nas cidades menores, onde se desenvolviam as atividades comerciais e artesanais. Uma das características do sûq era a setorização das atividades.

Vinham primeiro as velas, círios e perfumes, indispensáveis ao culto. Seguiam-se os livros e as lojas de encadernação. Depois era a vez dos couros e das babuchas. Os têxteis, formando o grupo imediato, guardavam-se em regra num armazém separada e fechado à noite, a qaysârîa - alcaiçaria em português - onde também se vendiam artigos preciosos e de luxo. Vinham seguidamente as lojas dos carpinteiros, serralheiros e picheleiros, prolongadas pelos dos ferreiros. O grupo dos seleiros formava o ciclo imediato. Avultavam depois os negócios de alimentação, continuados pelos vendedores de cestos e de lã crua e, por fim os tintureiros e oleiros.7

Entre as ruas do sûq e as demais haviam diversas diferenças, a começar pela largura. Fato que não passou desapercebido a um cruzado, que descreveu a conquista de Lisboa aos mouros.

7

MARQUES. Novos ensaios. p.21-2.

171 Os seus edifícios estão aglomerados tão apertadamente que a não ser entre os comerciantes, dificilmente se achará uma rua com mais de oito pés de largura. 8

Enquanto a arruamento residencial era formado por estreitas passagens, com muitas paredes cegas, o sûq era composto por seqüências de pórticos e casas voltadas para as ruas. Embora fosse uma região essencialmente masculina, não era incomum que muitos artesãos e comerciantes nela residissem com suas famílias, em sobrados que se desenvolviam por cima das lojas e oficinas. A concentração do comércio e do artesanato dava a este mercado grande movimentação. É desta região, e não das áreas residenciais, que provém a imagem tumultuada que fazemos da cidade muçulmana. A unicidade orgânica da cidade muçulmana é apenas aparente. Já observamos algumas cisões primárias, entre dirigentes e não-dirigentes (alcáçova e almedina), entre o sûq e a área residencial. A compartimentação desta cidade não se encerra nisto, pois a adoção do princípio da dhimma, resultava na segmentação das cidades em comunidades religiosas separadas, cada uma com seu foros de direito próprio. Tal prática deriva do direito revelado islâmico, em que os direitos civis estão indissociavelmente ligados à comunidade de credo. Assim, as cidades islâmicas eram compósitas e, às vezes, recortadas por muros internos que separavam os maometanos das comunidades judaicas e cristãs. Não foram os árabes os inventores desse princípio de segregação, eles apenas o acirraram. Em suas cidades maiores, o aspecto segregacional foi ainda mais acentuado, por compartimentações que correspondiam à origem étnica e geográfica dos habitantes. No norte da África, quase sempre vamos encontrar uma separação entre os árabes e os berberes islamizados, além dos bairros judeus e cristãos, quando era o caso. Isto, se não contarmos os requintes de certas cidades orientais onde viviam separadamente os clãs árabes que aderiram ao profeta no primeiro momento daqueles outros que foram apóstatas e só depois se converteram. Nas principais cidades orientais,

8

Citado em FERNANDES, Hermenegildo. Uma cidade no imaginário medieval: Lisboa muçulmana nas descrições de Idrise e Ranulfo de Granville. ESTUDOS MEDIEVAIS. Porto, n.7, 1986. p.6. Discute-se quanto à autoria desta carta, se de Osberno de Bawdsey ou de Ranulfo de Granville. Oito pés são, aproximadamente, dois metros e meio.

172

existiam ainda bairros específicos para os muçulmanos que para lá imigraram da Andaluzia ou do Magreb. O historiador António Dias Farinha, em seu estudo sobre ‘O imaginário da cidade muçulmana’, procurou uma explicação para tal fenômeno na tensão latente provocada pela adesão dos nômades do deserto a uma religião que era, em essência, urbana. A divisão em bairros segregados seria uma tentativa de manter na cidade os laços tribais das gentes do deserto.9 É preciso esclarecer que as certezas sobre a segmentação da cidade islâmica andaluza vêm mais de informações recolhidas sobre outras regiões, e não, propriamente, de um conhecimento preciso sobre o que, de fato, acontecia na Península. Oliveira Marques sintetiza bem o atual estágio do conhecimento sobre o tema.

Sabemos pouco sobre a compartimentação da cidade de Al-Andalus em bairros separados. Não há dúvidas que judeus e moçárabes viviam à parte. Encontramos ainda hoje os restos de grande número de judiarias e foi possível reconstruir a localização de algumas moçarabias. Mais difícil se torna aventar da divisão interna da área islâmica. Distinguimos a cidade aristocrática (alcáçova) da cidade plebéia (almedina). Mas pouco sabemos sobre a existência de bairros próprios para berberes ou para as vária tribos de berberes ou de árabes.10

As ruas e as casas Ao examinarmos a planta de uma cidade islâmica, aquela sensação de estarmos diante de um labirinto não subsiste por muito tempo. Logo se começa a perceber a lógica interna de seu sistema viário e que o mesmo é dotado de uma hierarquia. A essa hierarquia corresponde uma nomenclatura específica que, no entanto, era extremamente mutável. O nome dado a um tipo de rua em uma dada localidade servia para designar outro em outras cidades.11

9

FARINHA, António Dias. O Imaginário da cidade muçulmana. In: O IMAGINÁRIO DA CIDADE. Lisboa: ACARTE; Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. p.62-3. 10

MARQUES. Novos ensaios. p.30. É tão precário o que se sabe que alguns autores recentes preferem omitir estas questões a aventurar-se por elas. No máximo discutem o tema das judiarias. Ver, por exemplo, PAVÓN. Ciudades hispanomusulmanas. 11

Os termos aqui empregados para a denominação das ruas são apenas um indicativo geral,

173

Grosso modo, as vias que recortam a cidade islâmica estavam hierarquizadas em três níveis. Mahayya era a designação dada às ruas mais importantes, às vezes acompanhada da qualificação uzma (maior). Eram as ruas que atravessavam as cidades de porta-a-porta ou que conduziam desde uma das entradas principais até o conjunto composto pela mesquita-maior e pelos açougues. Em muitas das cidades que se desenvolveram sobre uma ocupação prévia de origem romana, pode-se perceber uma sobrevivência dos antigos cardus e decumanus, os eixos-chave da implantação urbana dos romanos. A mahayya corresponde à rua direita na tradição da cidade cristã portuguesa, em que direita não quer dizer retilínea, mas rua que leva diretamente a. Rua direita é o caminho direto a um local considerado importante. Algumas das mahayya eram ruas pavimentadas à beira rio, neste caso designadas por al-racif, termo que está na origem etimológica da palavra portuguesa recife ou arrecife. O segundo nível da hierarquia viária era ocupado pelas ruas secundárias que delimitavam os blocos de casas, e recebiam o nome de tariq. Por último, na malha viária aparece o mais característico acidente topográfico da geografia da cidade islâmica, os darv, aqueles becos que dão acesso às casas que compõem o núcleo interior dos maciços residenciais. Em castelhano, adarve conservou o seu sentido arábico de beco ou rua estreita. Mas, em português, o termo passou a ser empregado apenas para designar os caminhos que acompanham as ameias sobre os muros das fortalezas. Em Portugal, o termo utilizado, desde a Idade Média, para indicar aquele tipo de rua foi beco, cuja etimologia não está estabelecida com precisão. Todavia, a palavra beco traz consigo uma carga semântica negativa, enquanto os adarves eram altamente valorizados. Eles sintetizavam o ideal islâmico do bem morar, que buscava o maior afastamento possível dos espaços públicos. Os adarves eram uma espécie de transição entre o universo público e o privado, este tendendo a confundir-se com a noção de intimidade. Muitos deles dispunham de portões e eram policiados por guardas particulares postados à

contrariados a cada caso concreto. A elucidação desse segundo labirinto, o das palavras, já foi abordado pelos principais estudiosos da cidade islâmica da península, aos quais remetemos os interessados em maiores detalhes. TORRES BALBÁS. Ciudades hispanomusulmanas. PAVÓN. Ciudades hispanomusulmanas. p.86 ss.

174

entrada.

O adarve é o resultado de relações específicas entre rua e casa. A sua existência e a forma que lhe é peculiar devem-se ao fato de que, no caso muçulmano, o episódio gerador do traçado é a casa introvertida, que recebe insolação por um pátio interno. O verbo que rege a cidade islâmica é habitar. Como afirmou Torres Balbás, “nas cidade islâmicas são as casas que ao irem-se justapondo determinam o traçado das ruas”.12 No seu traçado, prevalece a iniciativa individual dos moradores. As instâncias regulatórias permanecem no nível da mediação entre esses agentes individuais. Mediação simplificada pelo fato de que bastava preservar o acesso à casa. Se compararmos as plantas das cidades romanas com o seu desenvolvimento subseqüente, no período islâmico, perceberemos que a usurpação dos espaços públicos era bastante tolerada. A rua, não tendo maior utilidade do que conduzir à casa, foi sendo tomada e reduzida às dimensões mínimas necessárias a tal uso. Ao redor dos espaços onde se desenvolviam as atividades públicas,

12

TORRES BALBÁS, Leopoldo. Resumem histórico del urbanismo em España. Madrid: s.ed., 1968. p.84.

175

localizavam-se as áreas residenciais. A casa muçulmana era um espaço exclusivamente destinado à vida doméstica, cujo caráter mais patente era o da intimidade.13 Como disposição básica, ela se desenvolvia em volta de um pátio central. A comunicação com o exterior era feita por uma única porta guarnecida de sólidos ferrolhos. Nos andares superiores de casas assobradadas, que raramente ultrapassavam os dois pisos, haviam janelas ou balcões voltados para fora. Entretanto, eles eram protegidos por muxarabis, tramas de madeira que permitiam aos moradores verem a rua sem serem vistos. Essa interiorização das casas explica em muito o arruamento das cidades islâmicas. As ruas não eram mais do que corredores, sem outro uso que levar às portas de acesso das casas. Como a iluminação era feita pelos pátios interiores, bastava um simples beco para cumprir a função de circulação. Desde que essa função fosse minimamente preservada, não havia maiores preocupações com o estreitamento da via pública. Nos níveis superiores, proliferavam balcões e passadiços que interligavam casas de um mesmo proprietário situadas em lados opostas das ruas, contribuindo para o escurecimento das ruas. Um outro fator, este de ordem climática, veio a incentivar a opção por ruas estreitas. A zona de ocupação e influência islâmica foi, em sua maior parte, de clima quente e seco, onde a sombra era algo desejável. O fato de a sociedade muçulmana mover-se no lombo de burros e cavalos é outra característica a favorecer o estreitamento das ruas. Preferência que foi transmitida aos cristãos. Na Península Ibérica, o uso de veículos a roda só foi retomado, muito lentamente, à partir do século XV. Não devemos, entretanto, buscar estabelecer um vínculo de obrigatoriedade entre casas com pátio interno e arruamento tortuoso e estreito. Basta lembrar que as casas do período romano também eram, freqüentemente, voltadas para o interior, e que, mesmo assim, a característica mais evidente de suas cidades era a ortogonalidade das quadras. Somos, portanto, obrigados a concluir que intervinha na rígida configuração das cidades romanas, um outro fator, ausente nas islâmicas. A organização espacial da

13

Ver CHUECA GOITIA. Breve história. p.11.

176

cidade romana, definida pelo par cardus - decumanus, reflete uma cosmovisão que se perdeu com as invasões bárbaras. Neste aspecto específico, nem muçulmanos nem cristãos foram herdeiros dos romanos.

Beja Romana14

A CIDADE CRISTÃ MEDIEVAL

Derrotados os mouros, na alcáçova instala-se o alcaide cristão e na almedina as casas são ocupadas pelos moçárabes, aos quais agregam-se os cristãos vindos do norte. Parte dos judeus também permanece, sem que tenhamos muita certeza se intra ou extra-muros. Os muçulmanos remanescentes são alojados fora dos muros, dando origem às mourarias. No mais, a cidade continua praticamente a mesma. A primeira alteração de monta era a reforma ou a demolição da mesquita, para dar lugar a um templo católico.

14

Ilustração reproduzida de CIDADE E HISTÓRIA; ciclo de conferências promovido pelo Serviço de Belas Artes em novembro de 1987. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992.

177

A alteração da forma das cidades é algo extremamente complexo. A propriedade privada do solo urbano enrijece o traçado, tendendo a mantê-lo na sua configuração inicial. No caso específico da Península Ibérica, esta tendência é reforçada pelo fato de que não havia um modelo alternativo em jogo. Para a maior parte da população da Península não existia outra cidade que não a muçulmana. Portanto, as manifestações de um urbanismo ADARVES EM LISBOA

cristão ocorrem muito lentamente, permanecendo as cidades,

nos primeiros séculos após a reconquista, praticamente inalteradas. Mesmo nos casos em que houve um crescimento urbano, ele se deu segundo diretrizes que pouco diferiam do antecedente modelo islâmico. Na cidade cristã portuguesa, os adarves permaneceram. Não apenas aqueles remanescentes da antiga ocupação islâmica, mas continuaram a ser produzidos ou reproduzidos pelos novos senhores. Um traçado de cidade portuguesa O estudo morfológico da cidade medieval portuguesa é extremamente problemático. A documentação escrita diz muito pouco à respeito, e as representações gráficas são escassas. As investigações arqueológicas são raras e incipientes, complicadas pelo fato de que muitas são cidades ainda vivas. Somos, portanto, forçados a utilizar uma iconografia bastante posterior, ou a configuração atual das cidades, como indicativos do passado. Operações que induzem a freqüentes enganos. Desde o final do século XV, como veremos, as cidades portuguesas foram submetidas a um processo de retificação e alargamento de ruas e eliminação de becos, o qual, agindo no detalhe, alterou profundamente a paisagem urbana herdada do islã ou produzida nos primeiros séculos após a reconquista. É essa cidade que conhecemos pela iconografia, e não a sua forma anterior. Mesmo assim, não podemos abandonar este tipo de fonte, pois ela traz informações únicas e preciosas. As plantas de Lisboa são exemplares a este respeito. A mais antiga planta

178

conhecida da cidade, a representá-la na quase totalidade, foi produzida por José Nunes Tinoco, na metade do século XVII. Mesmo assim, ela nos diz muito sobre as diversas modalidades de ocupação da cidade ao longo dos séculos anteriores. Se andássemos em direção ao ocidente, pelas ruas de Lisboa representadas no mapa de Tinoco, o trajeto geográfico coincidiria com um percurso pela história da forma da cidade portuguesa. Nas encostas da colina encimada pelo castelo de São Jorge, esparrama-se a cidade de traçado islâmico, com seus característicos maciços de casas. Na baixada ribeirinha, a Rua Nova dos Ferros, mandada construir por D. Dinis, marca a passagem da ênfase urbana do núcleo acastelado da colina de São Jorge para a ribeira do Tejo. No fundo de vale, entre a ribeira e o Rossio, a ocupação do século XIV, onde se manifesta uma característica tendência à linearidade das ruas, que desenham quarteirões oblongos. Ao nos aproximarmos da cerca Fernandina desenvolve-se a cidade dos tempos dos primeiros Aviz. Observa-se, nesta parte da cidade, um traçado mais regular, resultado provável do maior controle do processo construtivo assumido pela câmara municipal. A malha viária tanto na parte intramuros próxima à porta, como no segmento ribeirinho do loteamento dos Andrades, foi produzida com uma ênfase no arruamento e não por justaposição de edifícios. Muitas ruas parecem ter sido traçadas a cordel, e observa-se uma tendência ao desaparecimento dos becos islâmicos que, na época, passaram a ser execrados. Fora dos muros e afastando-se do Tejo, desenvolve-se o arruamento dos Andrades. Estamos já na cidade renascentista, onde as ruas ganham um traçado retilíneo e os quarteirões encurtam-se e formam losangos. Esse tipo de traçado viário atende perfeitamente as exigências de “regularidade” da cidade renascentista portuguesa na maior parte dos séculos XVI e XVII.

179

Esta configuração urbana, na qual o traçado se afasta do padrão islâmico à medida em que nos afastamos do núcleo mais antigo, é observável na maioria das cidades conquistadas pelos portuguesas. Em Évora, pese o desenvolvimento radial da cidade, estão tipicamente caracterizados os aglomerados islâmicos da antiga cerca e a cidade medieval cristã que se desenvolve fora portas. A oeste, o traçado de todo o segmento estruturado pelas ruas do Alconchel e do Raimundo, no qual se incluía a judiaria, mostra os característicos quarteirões medievais. Nas demais direções, o desenvolvimento urbano ocorre já sobre o influxo renascentista. Castelos, muros e cidades O primeiro grande surto de transformação da cidade portuguesa ocorre na segunda metade do século XIII. D. Afonso III e, depois, D. Dinis conduziram um vasto processo de alterações nas cidades existentes e a fundação de novas. Um dos principais marcos do período foi o amuralhamento de muitas vilas e a ampliação do perímetro das velhas cercas mouras, em diversas outras. O processo continua com os demais soberanos da dinastia de Aviz, culminando com as cercas ditas fernandinas de Lisboa e do Porto. A construção dessas cercas góticas é um dos fatos mais característicos da urbanização medieval européia, inclusive da portuguesa. Pesem as inúmeras exceções, a existência da cerca tornara-se um requisito à obtenção do estatuto de vila. Os novos muros tinham dimensões extremamente variáveis. Por vezes, restringiam-se ao arruamento da vila, em outras comportavam um ou mais núcleos de urbanização junto a amplas zonas rurais compostas de hortas e, até, áreas florestadas, como no Porto. Seja nas cidades novas, seja nas reaproveitadas, as cercas góticas produziam a tradicional cisão entre alcáçova e almedina. Dizia um tratadista do século XIV, “o palácio do príncipe, forte e elevado, deve levantar-se em um extremo [dos muros] com saída direta para o exterior”.15 Continua viva a tensão entre o castelo e a cerca. O castelo

15

Citado em SANTOS, Paulo F. Formação de cidades no Brasil colonial. Coimbra: Universidade de Coimbra; V Congresso de Estudos Luso-Brasileiros, 1968. p.31.

180

sediava os delegados do poder militar do rei, que conviviam em tenso equilíbrio com a cidade. A situação complicava-se nos núcleos urbanos submetidos à jurisdição de algum donatário, quando a alcáçova tornava-se a interface entre moradores e o poder senhorial. O castelo sob cerco da cidade não foi apenas uma possibilidade teórica. O conflito que opôs câmara e donatário da vila do Pinhel, na década de 1480, é um exemplo real deste tipo de ocorrência. Há longa data, esta vila detinha o privilégio de ser sempre realenga. D. Afonso V, mesmo tendo anteriormente confirmado este privilégio, acabou por inclui-la no senhorio de D. Fernando Coutinho, marechal do reino, que já era o seu alcaide. A situação entre a vila e seu senhorio deteriorou-se a ponto de se transformar numa guerra aberta entre o concelho e Henrique Coutinho, filho do donatário.16 O conflito entre os cidadãos e este representante da nobreza senhorial tomou a feição espacial de uma batalha entre a cidade e o castelo.

E então se tornara o dito dom Henrique ao castelo e dali por diante começara logo a combater a vila com bestas e tiros de fogo e pedras e destruir as casas. E feriam e combatiam por tal guisa que ninguém ousava andar pela vila.17

Na versão dos moradores, o fidalgo tentara inicialmente obter e controle de todas as portas da vila, mas a câmara conseguiu impedir o intento. Já na versão dos fidalgos, os moradores mantiveram o castelo sitiado por mais de 20 dias. Durante este suposto sítio, o bando dos fidalgos manteve-se saqueando os campos e aldeias do termo da vila, o que só demonstra a quem atendia a ‘sábia’ disposição das construções defensivas das cidades medievais. Outras vezes, a construção das cercas gera uma dualidade institucional entre os de dentro e os de fora. Em Montemor-o-Novo, a expansão extra-muros ganhou impulso na metade do século XIV. Verificando que a cerca desta localidade estratégica

16

Ver MORENO, Humberto Baquero. Um conflito social em Pinhel e seu termo, no século XV. In: _____. Marginalidade e conflitos sociais em Portugal nos séculos XIV e XV; estudos de história. Lisboa: Presença, 1985. p.172-211. 17

Trecho da sentença do rei contra o donatário. Transcrita no apêndice documental de MORENO. Um conflito. p.201.

181

estava “em ponto de se despovoar e cair por mingua”, D. Pedro I tomou medidas destinadas a estimular os moradores a permanecerem ou se transferirem dos arrabaldes para dentro dos muros. Tratou-se de isenções fiscais e de alguns privilégios de cunho político. Seu filho, D. Fernando, um dos principais construtores de muralhas góticas, com o objetivo de estancar o esvaziamento de praças estratégicas, concedeu muitos privilégios aos seus moradores, tanto para aquelas que construiu, como para as já existentes. À pedido dos habitantes do interior da cerca da mesma Montemor, determinou que, “aqueles que morarem dentro da cerca hajam os ofícios do concelho e os de fora não”.18 O mesmo rei dispensou os moradores da Almedina, a cerca de Coimbra, do pagamento da sisa, de dar aposentadoria aos senhores e de serem besteiros do conto. Proibiu, também, que os membros da família real confiscassem as galinhas dos moradores da cerca.19

Dom Fernando pela graça de Deus Rei de Portugal e do Algarve, a quantos esta carta virem fazemos saber que os juízes e vereadores e procurador e homens-bons da cidade de Coimbra nos enviaram dizer que alguns da nossa mercê e dos Infantes e infanta nossos irmãos e outras pessoas tomavam no campo da dita cidade galinhas, palhas e lenhas e que outrossim tomavam as bestas das cargas aos moradores da dita cidade e a outras pessoas que traziam as viandas e as outras mercadorias da dita cidade e enviaram-nos pedir por mercê que mandássemos que isto se não fizesse. E nós vendo o que nos pedir enviaram porque nossa mercê é de se povoar a cerca da dita cidade querendo fazer graça e mercê aos moradores de dita cerca temos por bem e mandamos e defendemos aos nossos galinheiros e estribeiros e aos dos Infantes e Infanta nossos Irmãos e aos da nossa mercê e dos ditos Infantes. e a outros quaisquer de nosso senhorio que não tomem nem mandem tomar galinhas, palhas nem lenhas nem bestas de cargas aos moradores de dentro de dita cerca da dita cidade e mandamos a todas as nossas justiças que se o fazer quiserem que lho não consintam e lho estranhem como aqueles que vão contra aquilo que por nós é mandado e em testemunho disto mandamos da dita cerca esta carta.

18

Este tipo de conflito está bem desenvolvido em ANDRADE, António Alberto Banha de. Montemor-o-Novo, vila regalenga; ensaio de história da administração local. Prim. parte: O poder político dos reis e a administração do concelho durante os séculos XIII-XVI. CADERNOS DE HISTÓRIA, Montemor-o-Novo, n.2, 1976. p.42 ss. 19

CARVALHO, José Branquinho de (ed.). Livro 2o da correia; cartas, provisões e alvarás régios registados na câmara de Coimbra. 1273-1754. Coimbra: Biblioteca Municipal, 1958. p.12, 13, 36.

182 Buarcos, 5 de outubro de 1372.20

Medidas desta natureza nunca atingiram completamente o fim desejado, pois as facilidades topográficas ou a possibilidade de estar menos sujeito ao fisco continuavam a exercer uma atração considerável sobre muitos moradores que optavam pelos arrabaldes intramuros. Em muitos casos, a exigüidade das muralhas provocou uma rápida saturação e o conseqüente desenvolvimento de bairros fora de seu perímetro. A cidade e o terreno A configuração desta cidade é resultado do diálogo entre os núcleos urbanizados (de nova fundação ou herança moura), as cercas, a topografia, o entorno rural e a casa extrovertida cristã. A construção das muralhas preserva a maioria dos caminhos rurais suburbanos, mas, ao incluí-los na área cercada, sela-lhes o destino: serão os eixos estruturadores da futura expansão urbana. Originalmente, tais caminhos são a ligação entre o núcleo urbano propriamente dito, as pequenas propriedades rurais e alguns equipamentos que costumavam estar localizados no entorno das cidades, tais como poços d’água, locais de lavagem de roupa, moinhos, potreiros, matadouros etc. A documentação refere-se a esses caminhos como azinhagas, termo originado do árabe azzinaiqâ, ainda em uso em Portugal. No caso das cidades de desenvolvimento espontâneo, os eixos viários estruturais são resultado, em grande medida, da trama suburbana intramuros, desenhada por caminhos rurais. Tais caminhos são um primeiro nível de articulação da vila com as vias de acesso ao campo ou com outras cidades. Quando se observa o desenho dessas azinhagas interiores percebe-se, de imediato, uma íntima conexão entre elas e as portas e portais que dão acesso ao exterior. É grande a tentação de atribuir aos portões um papel preponderante neste traçado. Todavia, devemos considerar que, na maioria das vezes, tais caminhos precedem a existência dos muros e que são eles os definidores da

20

CARVALHO. Livro 2º da Correia. p.4. Pode-se considerar que as ordens ou cartas régias foram uma modalidade de texto com efeito civilizador sobre a nobreza.

183

localização dos portões. Geralmente, o construtor das muralhas respeitava a estrutura viária preexistentes. Os grandes portões localizavam-se nas principais vias de acesso e eram complementados por postigos que atendiam à circulação quotidiana entre a vila e o entorno. Outros pontos focais destas rotas eram os mosteiros de algumas ordens religiosas mendicantes, como os agostinianos e carmelitas, que programaticamente estabeleciam-se na periferia urbana, gerando subcentros de urbanização. Diversos desses conventos suburbanos acabaram incluídos no interior das novas cercas medievais portuguesas, influenciando ativamente a conformação das cidades.21 O ir e vir quotidiano entre o núcleo urbanizado e os focos suburbanos de interesse, traça, indelevelmente, no solo, esta rede de caminhos que, mais tarde, é apropriada pela cidade em crescimento. Além de fatos espaciais, estes caminhos são fatos jurídicos, sacramentados pelo direito consuetudinário medieval, que reconhece neles uma servidão pública que dificilmente pode ser alterada. Os caminhos rurais suburbanos também estão na origem das ruas direitas das cidade medievais cristãs, assim como haviam gerado as mahayya uzma das cidades islâmicas. Não existe a intencionalidade que a grande maioria dos autores portugueses atribuem às ruas direitas. Ninguém as “projetou” e o nome resulta da constatação de um fato que se inscreveu no terreno, quase que naturalmente, cumprindo uma função que é sancionada e consagrada em inúmeros topônimos: ‘rua direita’, ‘rua direita da ...’ , ‘rua que leva a ...’. Se quisermos falar em uma espontaneidade da trama viária urbana medieval, podemos admitir que há nesses grandes delineamentos do traçado suburbano algo de natural. Como já dissemos, eles refletem um diálogo entre os moradores e certos pontos de interesse inscritos no terreno. Contudo, há que considerar a topografia, que também joga um papel preponderante. Quanto mais acidentado o terreno, ou quanto mais íngreme, mais tortuosos os caminhos. O andar humano acompanha as curvas de nível,

21

ALMEIDA. Muralhas românicas. p.140.

184

procurando os lugares de menor declividade para vencê-las. Anda-se traçando curvas e não esquinas. O linear e o curvilíneo são as constantes, o retilíneo e as esquinas, as exceções. Na cidade medieval portuguesa, a espontaneidade resume-se a essas grandes linhas, pois quando se passa dos grandes talhões desenhados no campo para o fracionamento urbano a intencionalidade torna-se manifesta. Entre os cristãos, esta intencionalidade atende pelo nome de rua. Os caminhos suburbanos desenham no terreno as figuras muito características de grandes polígonos de lados arredondados. O processo de urbanização consiste em fracioná-los pela criação de ruas, originando quarteirões, por sua vez subpartidos nos lotes das casas. As grandes diferenças entre as cidade espontâneas islâmicas e as cristãs devem-se à maneira de subdividir os grandes blocos rurais, pois as linhas estruturais são semelhantes. No primeiro caso, formam-se os maciços de casas, no segundo, os arruamentos. Entre as diversas fases do urbanismo cristão medieval observa-se a mesma constância de linhas mestras. Alteram-se as formas preponderantes dos quarteirões, inicialmente alongados e depois aquadradados, as ruas tornam-se, progressivamente, mais retilíneas e um pouco mais largas, no entanto, as estruturas viárias principais pouco variam. A principal interferência das cercas no traçado das cidades medievais são as muitas ‘ruas da cerca’ ou ‘ruas do muro’. A regra geral, ditada pela tecnologia militar da época, estabelecia que junto às muralhas deveria existir uma faixa de terras desocupadas. Quando as muralhas são construídas isto, de fato, acontece. No entanto, esta faixa é progressivamente ocupada. Os períodos de paz fazem com que se esqueça da necessidade de se manter essas áreas de reserva. Começava-se por dar concessões precárias para a construção de casas junto aos muros.

Todo homem que houver campo ou pardieiro a par do muro da vila pode se acostar a ele fazer casa sobre ele submetendo-se à pena do costume da vila que é tal se guerra

185 ou cerco vier que a derrube ou dê por ela corredoura e serventia.22

Com o tempo, o precário transformava-se em definitivo, e quando os exércitos invasores aproximavam-se era sempre tarde para tentar reverter o quadro. Existiam duas modalidades de rua da cerca. Em alguns casos elas corriam a par dos muros. Em outros, formava-se um correr de casas coladas à cerca, na frente das quais desenvolvia-se a rua. A síntese da maneira cristã de morar na cidade é mais perceptível nas cidades novas, uma vez que estas escapam das peculiaridades advindas da herança islamita ou de outras. A rua cristã é partilha prévia de benefícios, o que traz em si o prenúncio do desenvolvimento de uma noção de projeto. Em Portugal, o ato de projetar a cidade à partir da definição das ruas toma impulso já no século XIII, quando os reis começam a criar novas cidades com o objetivo de povoar regiões ermas ou de consolidar fronteiras ameaçadas pelos reinos vizinhos. Tal processo enquadra-se no movimento geral de renascimento da cidade européia. Cidades novas O desenvolvimento de um agenciamento urbano medieval pouco introduz em relação à cidade espontânea. Trata-se, antes, de uma sistematização de princípios consagrados pela prática. O espontâneo das cidades que cresceram lentamente é apenas parcial. Há, de fato, uma espontaneidade na urbanização das testadas dos caminhos suburbanos, transformando-os em ruas. Por outro lado, a subdivisão das hortas era feita por arruamentos perfeitamente intencionais, planejados, diríamos. Nas cidades novas, que nascem planejadas, o princípio utilizado no loteamento de espaços rurais circundantes transforma-se em princípio geral de urbanização. Na Península Ibérica, o aparecimento de cidades planejadas foi bastante precoce. Na passagem do século XI para o XII, Afonso, o Batalhador, procurou

22

LPA. p.113. Ver também ORDENAÇÕES MANUELINAS, título XLIX, § 43. A proibição de construir junto aos muros também aparece em Goa. Ver APO. fasc.1, parte 2, p.23.

186

melhorar a defesa do caminho de Compostela, criando as novas vilas de Sangüesa e Puente de la Reina, em substituição a antigos povoados que ali existiam. Apesar de a muralha de Sangüesa ser ovalada e a de Puente la Reina, aquadradada, elas têm uma espacialidade comum, definida pelo eixo viário principal, coincidente com o caminho de Compostela. Ao lado deste eixo, desenvolvem-se quarteirões alongados, tendencialmente retangulares. O objetivo básico das duas era a proteção de locais onde rios atravessavam o principal caminho da peregrinação a Compostela. Nessas novas vilas, a coroa leonesa já se debatia com uma questão enfrentada por todos os que se preocuparam em implantar cidades geométricas. Percebia-se que quanto mais rapidamente ela era implantada mais regular o resultado. Na época, era pouco freqüente o recurso a projetos desenhados no papel, ainda que simples esboços. Mesmo que ele existissem não haviam instituições capazes de transmití-los ao longo do tempo ou zelar pela continuidade da implantação daquilo que, aprioristicamente, decidira-se ser o correto. A solução era apressar ao máximo a execução da proposta, de forma a garantir a sua integridade. Em Puente de la Reina, os beneficiários tinham o prazo de um ano e um dia para levantar suas casas, após o que seriam multados em 60 soldos.23 O que definia o espaço bem urbanizado não eram casas isoladas, por melhores que fossem, mas o plano contínuo de fachadas. Já se manifestava a objeção estética à rua incompleta, que se tornaria um dos mais caros princípios do urbanismo ibérico, em especial do português. Nessa experiência leonesa, já estavam sistematizados todos os elementos que caracterizaram a criação de cidades novas nos séculos seguintes. Além de serem cidades sujeitas a um processo de planificação geral, elas faziam parte de uma ampla proposta de colonização. Foi um expediente adotado pela realeza para o povoamento de terras despovoadas ou fronteiriças. Regra geral, como forma de incentivo, os reis ou a grande nobreza responsável por tais projetos concediam, aos que estivessem dispostos a morar

23

GASPAR, p.206.

187

nestas terras ermas ou perigosas, as ambicionadas liberdades urbanas em troco de alguns compromissos militares. Quase sempre, a doação de um lote urbano no interior da muralha era acompanhada por uma parcela rural correspondente. Na França, o principal responsável pela construção de novas cidades foi Luís IX, posteriormente canonizado como São Luís. Este rei guerreiro empreendeu a conquista do Languedoc, a pretexto de destruir os hereges albigenses. Desta forma, o reino francês, até então confinado ao norte, começa a expandir-se em direção ao sul e ao Mediterrâneo. Para consolidar suas novas conquistas, Luís IX ordenou a edificação de diversas cidade, no que foi acompanhado por seu irmão Afonso, conde de Poitiers. Na segunda metade do século XIII, França e Inglaterra vão empreender a construção de diversas cidade novas, como forma de consolidar as suas posições na sudoeste do atual território francês, então disputado pelos dois reinos. Eduard I, conduziu pessoalmente a criação de novas vilas não só no continente mas, também, na Inglaterra e no País de Gales. Em todos estes casos observa-se uma acentuada geometrização do traçado urbano. Estas novas cidades ficaram conhecidas, na França, como bastides. Nome que, por extensão, acabou por ser usado para designar o conjunto de cidades novas, de planta regular, fundadas entre os séculos XIII e XIV. A utilização do termo bastide comporta alguns problemas. Muitos autores consideram que o termo deve designar especificamente as novas fundações francesas. E. J. Morris, considera legítimo o seu uso para as fundações ocorridas, no período, na França, Inglaterra e Gales, uma vez que elas são fruto de um mesmo momento e de um mesmo processo. Para os demais casos, ele prefere a denominação “cidades de nova planta”.24 Apesar destas advertências, prefiro utilizar bastide no sentido lato e alargado de cidade medieval, mais ou menos planejada, como tem feito a maioria dos autores. Por vezes, as bastides procuravam reorganizar a população local, de forma a melhorar o sistema defensivo. Na ausência de população suficiente, recorria-se ao

24

MORRIS, A. E. J. Historia de la forma urbana. Barcelona: Gustavo Gili, 1984. p.130.

188

chamamento de “estrangeiros”, principalmente de camadas mais tipicamente urbanas como artesãos e pequenos comerciantes. Esse expediente foi comum nas terras da Península Ibérica esvaziadas pela reconquista, para onde se deslocaram muitos alemães, flamengos e mesmo habitantes das ilhas britânicas. Em outros casos, as cidades novas eram parte de um processo de conquista ou de consolidação da presença de populações estrangeiras. É o caso de Gales, onde as bastides foram habitadas por ingleses, ou o caso dos assentamentos alemães e teutônicos estabelecidos em território eslavo. As bastides vêm chamando a atenção dos estudiosos pelo fato de serem cidades projetadas, contrariando o processo de crescimento espontâneo da maior parte das cidades medievais. O arruamento em grade ortogonal é encarado, por alguns, como ocorrência antecipatória das cidades ideais do renascimento. No entanto, a ortogonalidade da malha viária introduziu um problema que, por séculos, permaneceu irresoluto, ou seja, a articulação entre as muralhas e o sistema viário. As muralhas circulares que eram reconhecidamente mais eficazes do ponto de vista defensivo, demonstravam-se incompatíveis, do ponto de vista formal, em relação aos arruamentos em grade ortogonal. As respostas ao problema foram muito divergentes. Em muitos casos, arruamento e muralhas permanecem como dois sistemas autônomos. Em outros exemplos, o partido da muralha é conseqüência do arruamento. Casos em que temos muralhas quadrangulares, em prejuízo da defesa. Existiram, ainda, soluções de compromisso, em que apenas as esquinas das muralhas são arredondadas. A questão foi teoricamente resolvida no renascimento, com os planos radiais ou estelares.25 Como já foi possível perceber, esta forma de colonização não ficou restrita à França e às ilhas britânicas. A república de Florença utilizou-a para povoar a bacia do Arno, na passagem do século XIII para XIV. As novas cidades florentinas ficaram conhecidas como terre murata. Da mesma forma, a criação de novas cidades foi decisiva na expansão alemã para além do Elba. Os cavaleiros teutônicos utilizaram este

25

É importante reter este tipo de peculiaridade porque ele também é pertinente às cidades coloniais, onde as soluções adotadas estão muito mais próximas das bastides do que das cidades ideais do renascimento. Lembremos que, apesar da conexão que se procura fazer entre cidade colonial espanhola e cidades ideais do renascimento, as plantas radiais nunca foram utilizadas nas colônias.

189

tipo de base fortificada no seu avanço sobre os eslavos. No caso italiano, as muralhas eram quadrangulares, enquanto as bastides alemãs foram circulares. Nesta escolha, parece influir o grau de beligerância nos territórios onde foram instaladas, menor no norte da Itália, maior no leste da Europa, onde, de fato, estava ocorrendo uma conquista manu militari. No universo eslavo também houve o recurso a processos de colonização amparado em bastides. Da Boêmia, vem o interessante exemplo de Ceske Budejovice, construída por ordem de Premsyl II, entre 1263 e 1265. Neste caso, a preocupação era proteger-se contra o avanço austríaco. Na Península Ibérica, os reis de Navarra e Aragão foram responsáveis pela implantação de diversas bastides. É o caso de Villareal de los Infantes, mandada construir em 1274 por Jaime I, de Navarra. Independentemente das regiões onde foram implantadas, e de certas peculiaridades locais, podemos considerar que as bastides configuram um único modelo de cidade planejada, baseado num traçado viário que tende à ortogonalidade. Varia a forma da muralha, como já dissemos, e a dos quarteirões, freqüentemente alongados mas, às vezes, aquadradados e a existência ou não de praças. Também eram diversos os modos de compor tais praças, que, em muitos casos restringiam-se a funções comerciais. Eram raras as praças que agregavam igreja, mercado e sede do poder municipal. Na maioria das vezes, os templos estavam fora deste espaço, pois havia a preocupação em mantê-los afastados da mundaneidade usurária do mercado. Apesar de serem quase sempre exíguas, as bastides eram cidades multipolares, em que as sedes físicas dos poderes civis, religiosos e econômicos se apresentavam isoladamente. O único modelo europeu ocidental alternativo, por afastar-se desta morfologia urbana padrão, é constituído pelas cidades fundadas pelos Zähringer, no que é hoje a Suíça e o sul da Alemanha.26 A característica principal dessas cidades é o sistema viário composto de um conjunto de ruas paralelas, que atravessam todo o espaço urbano. A preocupação maior era estabelecer um sistema viário linear, sem

26

Ver MORRIS. Historia de la forma. 149-50.

190

insistir em que fosse retilíneo. Exemplo expressivo é Berna, cujas ruas ondulam no terreno, mantendo sempre o paralelismo. Outra característica destas bastides é o fato de não possuírem praças. Em seu lugar, existia a rua central do mercado, uma verdadeira praça linear, com 20 a 30 m de largura, conforme a cidade. Como em muitas bastides, igreja e sede do poder local não se localizavam neste núcleo mercantil, mas em uma de suas paralelas secundárias.

A ‘CONSTRUÇÃO’ DAS CIDADES EM PORTUGAL

Em Portugal, persiste uma certa polêmica vazia sobre a existência ou não de bastides. O excessivo particularismo da historiografia portuguesa leva a maior parte dos autores a afirmar que ali não existiram fundações semelhantes às bastides do restante da Europa. As objeções a este tipo de fundação urbana em solo português desenvolvem-se em torno de dois argumentos. O primeiro é político-econômico e insere-se na polêmica relacionada à existência, ou não, de instituições feudais na Península. A rejeição à hipótese feudal leva alguns autores a afirmar que nunca se edificaram cidades com as características das bastides européias, “face à inexistência de uma estrutura sóciopolítica de tipo feudal e à diminuta capacidade econômica dos senhorios medievais”.27 Há um erro de fundo, nesta modalidade de argumentação, que é a identificação sumária entre bastide e feudalismo. Embora as bastides francesas e inglesas pertençam a regiões consideradas tipicamente feudais, elas se inserem mais na corrosão do que na manutenção do feudalismo. Note-se que elas são, quase que invariavelmente, criadas pelos reis, ou por delegados a quem é especialmente dada a incumbência de fazê-lo. Tratavam-se de associações diretas entre os reis, e outros potentados das casas reinantes, e os moradores das cidades novas, passando por cima da grande nobreza territorial. Quase sempre elas implicavam na obtenção de privilégios

27

FERRÃO, Bernardo José. Projecto e transformação urbana do Porto na época dos Almadas. 1758-1813. Porto: Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 1989. 2.ed. p.29.

191

urbanos, seja por uma pequena nobreza fundiária local, seja por estratos burgueses. Mesmo que, em alguns casos, elas estejam ligadas à formação ou aparecimento de uma fidalguia local, não estamos diante de fórmulas feudais clássicas. O segundo tipo de negação da existência de bastides em Portugal, prende-se a objeções de ordem morfológica. O geógrafo Jorge Gaspar, por exemplo, embora considere que as novas vilas portuguesas tenham sido criadas com o mesmo espírito de suas congêneres do restante da Europa, afirma que “em Portugal nunca se construíram ‘bastides’ do tipo francês ou inglês, em que se estabelece um rígido geometrismo e se procura uma obra completa em si mesmo”.28 Aqui, o engano básico é a suposição corrente de um perfeito geometrismo das bastides francesas e inglesas. Embora existam algumas extremamente regulares, não se trata de um modelo absoluto. Em muitos casos, o suposto geometrismo é antes produto de representações simplificadas que aparecem nos manuais, do que aquilo que se encontra no terreno. Na realidade, as grelhas viárias das bastides são apenas tendencialmente ortogonais e comportam graus variados de distorções. O inglês A. Morris, um dos principais estudiosos contemporâneos da forma urbana, já chamou atenção para a excessiva simplificação das representações em relação a Monpazier, a bastide que com mais freqüência ilustra os livros sobre o tema.29 COMPARAÇÃO ENTRE A PLANTA DE MOMPAZIER E SUA REPRESENTAÇÃO ESQUEMÁTICA Como se observa nas ilustrações, há uma larga diferença entre a Mompazier de algumas representações estilizadas e o que sugere o levantamento realizado sobre a cidade atual. Morris supõe que o setor sudeste da cidade nunca chegou a ser totalmente ocupado. Não há, portanto, objeções pertinentes que impeçam a classificação das novas vilas medievais portuguesas como bastides. Quer pela cronologia, quer pela forma, quer

28

GASPAR, op. cit. p.207.

29

MORRIS. Historia de la forma. p.135.

192

pelo quadro político-institucional, a fundação de novas vilas a partir de D. Afonso III, inscrevem-se no processo geral europeu, ainda que persistam certas peculiaridades morfológicas. Existe uma particularidade que torna ainda mais legítimo utilizar o termo bastide para designar estas aglomerações urbanas portuguesas. D. Afonso III, o conde de Bolonha, viveu na corte de Luís IX por duas décadas. Como já vimos, São Luís, foi o principal responsável pelo impulso de construção das bastides francesas. Não é, portanto, de se estranhar que justamente no reinado de Afonso (1248-1279) tivesse início a construção de bastides em Portugal. São muitas as vilas iniciadas ou reconstruídas à partir de forais de povoamento concedidos durante seu reinado, as quais resultaram em implantações urbanas que deixam transparecer a procura por uma geometria

regularizada.

Estes

forais,

simultaneamente,

concediam

liberdades

municipais, lotes urbanos e terras agrícolas no entorno. O processo de ocupação territorial e de construção da cidade é conduzido por um “pobrador” indicado pelo próprio rei. Repetem-se, portanto, os métodos utilizados por Luís IX, na França, e com propósitos semelhantes. Tratava-se de povoar e, ao mesmo tempo, garantir fronteiras. Por outro lado, a instalação destas vilas enquadra-se no processo de limitação dos poderes da grande nobreza e do clero empreendido por D. Afonso. Um dos exemplos portugueses mais próximos às bastides francesas é a vila tramontana de Chaves, antiga ocupação romana reconstruída sob o comando de Fernão Fernandes Cogominho, à partir de 1253. O traçado quadrangular de sua muralha é pouco comum em Portugal. Todavia, é problemático estabelecer em que período formou-se a rede viária que chegou até nós. Reminiscência da Aqua Flaviæ romana para alguns.30 Para outros, ela só tomou a atual configuração geométrica no século XVI, quando foram construídos os seus baluartes.31

30

FERNANDES. A arquitectura. p.98.

31

FERRÃO. Projecto. p.47-8.

193

CHAVES

Na foz do Lima situa-se Viana do Castelo, que recebe foral em 1254, cuja construção é entregue a João Pobrador.32 Morfologicamente, Viana do Castelo caracteriza-se por uma malha aproximadamente ortogonal, formando retângulos alongados, enquadrada numa muralha circular, modelo recorrente em toda a Europa. No entanto, ela preserva uma das características formais da cidade medieval portuguesa. Nela não existem propriamente praças, mas largos situado junto a alguns dos portões de entrada. No interior do traçado há apenas um espaço aberto residual, onde ficava o poço da vila.

VIANA DO CASTELO

MONSARAZ

A maior parte das vilas novas iniciadas por D. Afonso não chegaram a ser concluídas no seu reinado. Todavia, seu filho, D. Dinis (1279-1325), seria um sucessor à altura. Não só deu continuidade ao processo, como ampliou-o. Este rei é considerado, por excelência, o urbanizador medieval de Portugal e é a ele que os autores costumam reportar-se quando referem-se às bastides portuguesas. A mais impressionante bastide afonsina-dionisina é Monsaraz, no Alentejo. Ela começou a ser povoada na década de 1250, e foi dotada de instituições municipais

32

Ver MOREIRA, Manuel Fernandes. O município e os forais de Viana do Castelo. Viana do Castelo: Câmara Municipal, 1980.

194

em 1264. Observando-se a sua planta, temos apenas mais uma cidade de morfologia aproximadamente regular. No entanto, se levarmos em consideração que ela está situada no alto de um morro bastante íngreme, chegaremos à conclusão de que este ‘aproximadamente’ é resultado de uma vontade e de um esforço extremos, que contrariavam uma topografia nada propícia. Monsaraz era envolvida por uma muralha oblonga, e a sua rede viária era um pouco mais irregular que a de Viana, mas manifestava a mesma tendência a delimitar quarteirões alongados. Não havia exatamente praça na vila, mas apenas um largo junto à igreja.33 Rui de Pina, autor da Crónica de D. Dinis, lembra que ele fez “quase de novo todas as vilas e castelos de Riba de Odiana”, além de ter construído “do primeiro fundamento” Vila-Real e Salvaterra.34 O geógrafo Jorge Gaspar observa que até nos nomes adotados pelos monarcas portugueses há uma nítida influência francesa: VilaReal, à semelhança das Ville-Réal do nordeste da França, e Salvaterra, como as várias bastides francesas denominadas Sauveterre.35 A obra urbana de D. Dinis foi extensa. No norte, além de dar continuidade à implantação de Viana do Castelo, foi responsável por outras cidades geometrizadas. Entre elas, Vila-Real, Caminha e Vila Nova de Cerveira. No Alentejo, além de Monsaraz e do Redondo, Alegrete, Vila-Viçosa, Campo Maior, Veiros, entre outras. Na maior parte destas vilas, os traçados viários do período perderam-se em sucessivas transformações ou pelo abandono das mesmas. Reunindo os pouco elementos ainda hoje disponíveis, Jorge Gaspar procurou fazer uma análise estrutural do traçado da cidade-nova dionisina. No geral, tal análise é valida para todas as bastides criadas pelos soberanos da dinastia borgonhesa, desde Afonso III.

Nos casos mais freqüentes temos uma rua central, retilínea, que liga duas pontas da

33

Ver GONÇALVES, José Pires. Monsaraz e seu termo; ensaio monográfico. Boletim da Junta Distrital de Évora. n.2, 1961. pp.1-158. 34

PINA, Rui de. Crónica de D. Dinis. Porto: Livraria Civilização, 1945. p.322-3.

35

GASPAR, op. cit. p.207.

195 muralha, como no Redondo, ou a porta principal e o castelo instalado no extremo mais facilmente defensável da aglomeração - caso de Monsaraz ou Alegrete. Sensivelmente a meio desta rua central, que nos casos mais desenvolvidos é cortada por travessa segundo ângulos retos, abre-se um largo, ao qual quase já se podia chamar praça. O eixo central pode ter ainda uma ou duas ruas, menos importantes e menos largas, que lhe são paralelas, como acontece em Vila Viçosa e Monsaraz. Note-se que o Largo Central fica sempre marginal à rua principal, esta nunca o atravessa, apenas o limita de um dos lados. Temos aqui uma primeira fase da passagem do largo, que nascera do alargamento da rua por necessidades funcionais, para a praça.36

A mais regular das cidades portuguesas do período é Tomar, que tecnicamente não pode ser chamada de bastide, por não contar com muralhas. A vila foi cabeça da Ordem do Templo e, depois, de sua sucessora, a Ordem de Cristo. Sua origem deve-se a um acastelamento iniciado pelos Templários, no século XII. A vila murada, situada no alto da colina, chegou a conhecer algum crescimento, contando com um arrabalde extramuros. No entanto, a ocupação urbana da antiga fortificação templária foi sendo abandonada e a cidade espraiou-se em direção às terras baixas que margeiam o Nabão: o Rio Grande de Tomar. Tomar não chega a constituir propriamente uma retícula. O traçado da vila está estruturado pela principais vias de acesso do rio ao castelo, em especial pela Corredoura, rua mais larga, que ligava a praça da cidade à ponte romana sobre o Nabão. Dos dois lados da Corredoura, desenvolvem-se seqüências de ruas aproximadamente paralelas e eqüidistantes entre si, o que indica a intencionalidade da implantação. Estas rua são cortadas por outras em ângulo quase reto, resultando quarteirões alongados, como era corrente na urbanização medieval portuguesa. Todavia, há uma desarticulação entre estas transversais, de forma que não chega a existir propriamente um sistema reticular. A pouca constância da largura das ruas, bem como os ângulos variáveis de interseção, indicam que não se trata de uma cidade traçada a cordel e que o processo de ocupação do espaço foi longo. Sabendo que as ruas da maioria das cidades portuguesas foram retificadas à partir do século XV, Tomar pode ter sido menos regular na sua

36

GASPAR, op. cit. p.209.

196

origem do que é hoje.37 Tangenciando esta estrutura corre a rua da Graça, ainda mais larga que a Corredoura, que vai desembocar na praça da ribeira, onde se erguiam os paços da câmara. Esta praça tem características bastante medievais, uma vez que é composta pela agregação de diversos espaços residuais. Em franco contraste com ela, uma vez que não se trata de um simples largo, está a praça da matriz, o elemento mais notável do traçado de Tomar. Ela ocupa todo um quarteirão, perfeitamente inserido na malha viária, que foi deixado sem edificações. Este esquema foge completamente ao dos adros das outras cidades do período. Numa de suas faces estava a igreja e na outra as boticas do Infante D. Henrique, onde, no século XVIII, foi construída a casa da câmara. Tudo indica que o traçado regular da vila baixa desenvolveu-se durante o século XIV, embora exista uma certa polêmica à respeito. Alguns autores associam o desenvolvimento da trama viária de Tomar ao Infante D. Henrique, senhor da cidade no século XV. O infante era grão-mestre da Ordem de Cristo, e chegou a viver em Tomar durante alguns períodos.38 No entanto, Manuel S. Conde verificou que na

TOMAR

documentação do século XIII, existem menções

a todas as ruas da vila baixa de Tomar, o que garante que o traçado em grelha já estava estruturado desde aquele período.39 Em qualquer dos casos, os autores exercitam a hipótese de um traçado feito pelos templários e seus sucessores, à semelhança do

37

Na Rua Direita de Óbidos, há toda uma seqüência de antigas fachadas externas transformadas em paredes internas. Um claro indício de que houve uma alteração intencional e drástica no seu traçado. Ver CÂMARA, Teresa Bettencourt da. Óbidos; arquitetura e urbanismo. Lisboa: Imprensa Nacional, 1990. 38

Ver FERNANDES, José Manuel. Angra do Heroísmo. Lisboa: Editorial Presença: 1989. p.46-8. Ver também FERRÃO. Projecto. p.35. 39

CONDE, Manuel S. Tomar Medieval; o espaço e os homens. sec.XIV-XV. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1988. p.91.

197

loteamento regular que a ordem implantou no Marrais de Paris, à mesma época. Se por urbanismo templário entendermos que ele foi conduzida pelos cavaleiros da ordem, não há objeção a fazer. Contudo, o emprego da palavra “templário”, por vezes, trás consigo uma carga de conotações místicas, presente, por exemplo, no uso que o arquiteto José Manuel Fernandes faz do termo. No entanto, carece de fundamentação a hipótese de que houve um traçado característico dos templários, em qualquer das acepções que o termo possa ter. Não existiram cidades especificamente templárias nem cidades “templárias”. As antigas ordens religiosas de cavalaria, na medida em que detinham imensos patrimônios fundiários, envolveram-se na criação de cidades novas, como os Cavaleiros Teutônicos a leste da Europa, ou no loteamentos de suas terras periurbanas, como ocorreu em Paris. Posteriormente, as ordens mendicantes amealharam vastas áreas suburbanas, algumas transformadas em arruamentos regulares. Estas ações das ordens militares e religiosas, juntamente com as dos reis e outros senhores laicos, são facetas pouco diferenciadas do processo geral da produção de espaços urbanos geometrizados da Baixa Idade Média e do Renascimento.

Estrutura muito semelhante à de Tomar, vamos encontrar em Portimão. O crescimento desta localidade pode ser atribuído ao assoreamento do porto de Silves. Embora Portimão já tivesse um foral, dado por Afonso III, ela só foi elevada a vila por volta de 1475, quando começam a ser construídas as suas PORTIMÃO

características muralhas serrilhadas.40 À semelhança do que ocorre em Tomar, a estrutura viária desta vila

algarvia é composta por um conjunto de ruas paralelas que arrancam em direção ao rio, cortadas por outras perpendiculares, formando quarteirões alongados. A topografia onde se desenvolveu Portimão era mais acidentada que a de Tomar e o resultado é uma maior

40

Ver CARRAPIÇO, Francisco J. et alii. As muralhas de Portimão; subsídios para o estudo da história local. Portimão: Câmara Municipal de Portimão, 1974.

198

irregularidade no traçado. Não havia praças no interior das muralhas de Portimão, o que no futuro seria compensado pelo desenvolvimento de uma praça-rossio extramuros, nas proximidades do postigo da igreja.

Rei, senhores, câmara e cidade O controle do processo edificatório pelas autoridades concelhia, senhorial e régia, tem a mesma idade do renascimento urbano medieval. Como vimos, a fundação de bastides é exemplo da tentativa de controle total do espaço edificado intramuros. Em menor escala, a abertura de ruas também manifesta o mesmo propósito. Na produção do espaço urbano medieval convivem saberes correntes, exercitados pela população em geral, com os que aparecem nas intervenções régias e senhoriais. O controle ora pende para um lado, ora para o outro. Mais freqüentemente, para a câmara, que se torna um espaço de múltiplas mediações com senhores e com os delegados régios, como os alcaides mores e corregedores, quando não com reis, rainhas ou príncipes em pessoa. Contudo, talvez seja a interação miúda e quotidiana entre vizinhos e entre estes e os concelhos que traduza melhor a conformação da cidade medieval. Isto não deixa de representar uma dificuldade para o historiador. A mediação direta, primeira forma do exercício do poder de almotaçaria, não deixou documentos escritos. Só mais tarde, quando as práticas camarárias passaram a ser alvo de uma escrituração, podemos acompanhar o exercício dessa mediação. As mais antigas atas de câmaras que se conhece, são do final do século XIV, momento em que está adiantada a passagem do direito consuetudinário para o escrito e no qual a mediação direta já foi, em grande parte, substituída pela lógica normativa das posturas municipais. Em contrapartida, a atuação do poder régio é melhor documentada e, portanto, alcança maior visibilidade. Ou por efeito da documentação, ou porque assim mesmo tivesse acontecido, a sensação que se tem é que as principais cidades portuguesas desenvolveram-se sob a supervisão direta da coroa. A começar por Lisboa, que começa a se caracterizar como a capital ao ser a cidade escolhida de D. Afonso III e D. Dinis para tal.

199

Muitas cidades alentejanas viveram sobre o acompanhamento direto de seus senhores. As grandes casas fidalgas, apesar de ostentarem títulos referentes a cidades localizadas ao norte, tinham sua sede de fato ao sul do Tejo: os Cadaval, em Évora, e os Bragança, em Vila-Viçosa, por exemplo. Nesta região, concentravam-se grandes extensões de terras das casas senhoriais da família reinante: a do próprio rei e o núcleo daquilo que seriam as casas da Rainha e do Infantado. O Alentejo sediava diversas outras casas aparentadas à do rei de ordens militares-religiosas, que foram sendo assumidas por parentes próximos dos reis. Ao norte, cidades bispais como Braga e Porto, enfrentavam conflitos quotidianos com seus senhorios religiosos. Por vezes, a escolha de uma cidade dileta era feita pelos mestres das ordens militares-religiosas, casos de Tomar e Setúbal. Estar na condição de cidade escolhida tem uma dupla face. O patrono da cidade encarrega-se de enobrecê-la, com boas construções defensivas e igrejas, ou pelos próprios edifícios dos passos senhoriais. Por outro lado, há uma maior ingerência nos assuntos da cidade. No século XV, vivia-se em Portugal um período de decadência agrícola, em contraste com a vitalidade da economia urbana. Como decorrência, a nobreza urbanizase e não hesita em investir em atividades mercantis e em criar um sólido patrimônio nas cidades. A construção de imóveis para arrendamento, os direitos sobre feiras, açougues e boticas, ou a exclusividade sobre certas atividades manufatureiras localizadas na periferia urbana, como as saboarias, lagares, moinhos, serrarias etc. tornaram-se muito mais rentáveis do que a simples exploração do camponês. Antigos direitos banais foram reinterpretados a ponto de se tornarem virtuais monopólios urbanos. Uma coisa era o direito/obrigação de os camponeses assarem o pão nos fornos do seu senhor. Outra, muito diferente, era explorar o exclusivo dos fornos numa cidade populosa. Tudo isso para não falar naquilo que era mais apetecível: obter direitos sobre a máquina fiscal e judiciária das cidades, concessão régia à qual estava atrelada e era a razão de ser do título de senhor das vilas. No patrimônio de qualquer senhorio importante, contam-se às dezenas, hortas, parreirais, figueirais, intramuros ou no contorno imediato das cidades. Era

200

comum que o patrimônio fundiário urbano e suburbano estivesse concentrado mais nas mãos dessas figuras poderosas do que nas dos moradores ou das câmaras (rossios, terras públicas). Assim, a expansão das regiões urbanizadas passava pela anuência e intervenção direta destes senhores. Tanto a urbanização, como a criação de ruas eram atos especulativos, mesmo que em certos casos, transformasse-se numa ação de benemerência de algum senhor, que concedia parcelas de suas terras para a cidade expandir-se. A relação com as instituições religiosas foram particularmente complexas, uma vez que eram extremamente ciosas de seus patrimônios e prerrogativas senhoriais. As câmaras das cidades cujos senhorios eram os respectivos bispados, como o Porto e Braga, tiveram extrema dificuldade em assumir o controle do processo de urbanização. No Porto, que à época não era ainda uma cidade importante, o crescimento da cidade foi alvo de sérias disputas entre o concelho e o bispo. O caso só foi resolvido com a interferência de D. Dinis. Os cidadãos mandaram uma petição ao rei, em que se diziam agravados pelo bispo e seus prepostos. O rei tomou o partido da cidade e enviou o seu meirinho com uma carta sentença contendo instruções para pôr o concelho em posse do patrimônio público. Acompanhemos a ação do meirinho através de J. M. Pereira de Oliveira, principal estudioso da formação do espaço urbano do Porto.

Na Minhota, deu-lhes posse das casas que, como os do concelho diziam , ‘sahiam pelo Ressio de mais que as outras casas de vedro que estão junto com elas’; doutras que tinham sido feitas numa viela que era também rossio do concelho; de um forno que na Ribeira fora também feito no terreno público; ainda outras casas que haviam sido construídas numa viela sem consentimento do concelho; de uma viela que havia sido tapada e que ficava defronte de S. Nicolau e vinha sair à rua pública da Ribeira; outrossim de várias casas que tinham sido abusivamente construídas ocupando terreno que os do concelho diziam ser seu rossio, por toda a Ribeira, e que prejudicavam as tarefas de carga e descarga dos barcos e baixéis; e ainda uma escada nas casas da Ribeira onde se vendia o pão e o pescado mas que tinham sido feitas também em terreno público; e também várias casas na Lada construídas abusivamente; e ainda de várias vielas e duas fontes na Ribeira e no Souto, todas indevidamente tapadas e apropriadas em prejuízo do serviço público.41

41

OLIVEIRA, J. M. Pereira. O espaço urbano do Porto; condições naturais e desenvolvimento. Coimbra: Centro de Estudos Geográficos, 1973. p.223-4.

201

O que se observa na carta sentença de D. Dinis são os muitos anos de crescimento urbano ocorrido sem qualquer controle aparente por parte da câmara. Ruelas que foram abertas ou fechadas, caminhos rurais que se transformaram em ruas urbanas, tudo sem a participação do concelho. A usurpação de espaços públicos consagrados, no caso a Ribeira, onde constróem-se casas, fornos e escadas externas sem a permissão do poder municipal é exemplo típico do processo de apropriação conduzido pelos moradores. No entanto, é preciso observar, que este descontrole ocorre debaixo da anuência de um bispo interessado em aumentar as suas rendas. É este, afinal, o motivo dos conflitos. Através da interveniência do rei, o concelho consegue recuperar as rendas e o controle de uma expansão urbana que lhe escapara das mãos. Outro complicador das relações entre as câmaras e as instituições religiosas eram os limites impostos à expansão urbana pelos muitos conventos de padres e freiras que se difundiam pela periferia das cidades. Essas instituições aferravam-se a este tipo de patrimônios e resistiam em ceder terras para urbanização. As cidades acabavam por crescer em volta das terras dos religiosos, que formavam verdadeiras tapadas urbanas.42 Hoje acharíamos isto vantajoso, mas, para o morador da cidade medieval e moderna, essas terras comprometiam as expectativas da aparência urbana. Nas cidades maiores, ou do patrimônio régio, sentia-se com maior intensidade todo o peso da mão dos monarcas. Quanto a isso, Lisboa foi um caso especial. Pelo simples fato de te ter-se tornado a capital do reino, foi a aglomeração urbana que mais sentiu a intervenção da coroa. A corte começou a fixar-se na cidade com D. Afonso III, com quem a cidade teve uma convivência cheia de conflitos. Ele construiu diversas casas, estaleiros navais e forjas, mas seria acusado de apropriação indébita de terras do concelho para fazê-lo. Outro conflito foi provocado pela tentativa de estabelecer um mercado régio. As casas perto da alcáçova, onde ele pretendia reunir mercadores e artesãos, eram de sua propriedade. Isto gerou sérias resistências e

42

Por tapadas, entende-se um espaço murado para recreio da nobreza.

202

acusações de estar agindo apenas em benefício próprio, o que o obrigou a recuar.43 Em Évora e Coimbra, D. Afonso conduziu empreendimentos semelhantes e, igualmente, foi derrotado em suas pretensões.44 Seu filho, D. Dinis, foi muito mais habilidoso. Para criar sua principal obra lisboeta, a Rua Nova dos Mercadores, envolveu-se numa complexa operação de troca e compra de parcelas do solo urbano, o que o livrou da pecha de usurpador. No entanto, não se tratava de uma ação diferente da conduzida por seu pai. Conseguiu reunir os mercadores e tornar-se o principal explorador imobiliário do empreendimento. Com a construção desta rua, teve inicio a transferência do centro de gravitação de Lisboa, do castelo de S. Jorge para a ribeira, definindo-lhe a vocação de entreposto comercial. A nova rua construída por D. Dinis destinava-se justamente aos comerciante de largo trato e de produtos suntuários. Era uma autêntica rua-mercado, ou rua-praça, um modelo pouco freqüente na Europa, comparável apenas, com devidas cautelas, às das cidades fundadas pelos Zähringer, no século XII. No entanto, diferentemente destas, era uma rua fechada, limitada por portões de ferro, trancados à noite, o que a levou a ser conhecida por Rua Nova dos Ferros. O seu caráter de ruapraça foi confirmado pela construção de inúmeros edifícios com arcarias, onde se abrigavam os mercadores. Do ponto de vista formal, ela não parece ter sido conformada por cordeamento mas pela simples junção seqüencial de edificações, o que explica o aspecto tortuoso de suas linhas de fachadas e as variações na largura. Existiram em outras cidades portuguesas exemplos de ruas que lembram bastante as de Lisboa. Em Santarém, havia algo semelhante no arrabalde da Ribeira. A rua Ancha de Évora, apesar de não se localizar à beira-rio, também lembrava a Rua dos Mercadores de Lisboa.45 Em todos esses casos, temos ruas de largura excepcional para a

43

PRADALIÉ, Gerard. Lisboa: da reconquista ao fim do século XIII. Lisboa: Palas, 1975.

p.30. 44

CARVALHO. Livro 2o da correia. p.1.

45

Évora é um dos poucos casos em que a documentação se refere a praças anteriormente ao século XV. A lei de 26 de junho de 1375, fala em ruas e praças como espaços. MORENO. Marginalidade. p.50.

203

época. Apesar de característico, este modelo de rua-praça foi pouco difundido em Portugal e se limitou a algumas cidades importantes. Os sucessores de D. Dinis deram continuidade ao processo de restruturação urbana de Lisboa. Com a construção de uma outra Rua Nova, perpendicular à primeira, que estabelecia ligação direta entre a ribeira e o rocio, defininiu-se a estrutura básica desta região que se tornou o centro urbano da Lisboa medieval. Durante um período ela ficou conhecida como Rua Nova d’el-Rei, até seu nome fixar-se em Rua Nova, simplesmente. No Porto, ocorre algo semelhante. A cidade gravitava entre o alto da Penaventosa, núcleo bispal acastelado, e a Ribeira situada às margens do Douro. A Rua Nova do Infante, iniciada por D. João I, na virada do século XIV para o XV, reforça a união entre estas duas partes e transforma-se no principal centro de referência da cidade. Ela seria a rua de moradia dos principais mercadores. Mais uma vez observamos os reis portugueses envolvidos num empreendimento imobiliário que resultaria em profundas alterações espaciais, da qual eles próprios eram os principais beneficiários. Nada menos que setenta e quatro casas da rua do Infante pertenciam à coroa.46 Tanto pela maneira como foram implantadas, quanto pelo seu impacto urbano, estas ruas, mais largas e mais retilíneas que a média, podem ser tomadas como protótipo das muitas ruas nobres que aparecerão em Portugal nos séculos XV e XVI. Foi nelas que se ensaiaram os primeiros passos de controle sobre as fachadas dos edifícios. Na Rua Nova de Lisboa, D. Afonso V ordenou que as edificações “fossem feitas sobre arcos de cantaria com paredes sobre eles de pedra e cal até o telhado, sem terem frontais de tabuado como ora têm”.47 Ruas por que possam ir carros e homens Pode-se presumir, pelo que se conhece do traçado das cidades medievais

46

Citado em FERRÃO. Projecto. p.139.

47

ANTT, Estremadura, liv.8, f.62. Citado em GONÇALVES, Iria. Posturas municipais e vida urbana na baixa Idade Média: o caso de Lisboa. ESTUDOS MEDIEVAIS. Porto, n.7, 1986. p.170.

204

portuguesas, que tal modalidade de rua, mais linear e mais larga, tornara-se expectativa geral após a segunda metade do século XIII. Trata-se de uma suposição baseada no que as plantas das cidades nos permitem ver. Contudo, a documentação escrita raramente menciona o que seria uma rua desejável. No máximo ela se refere à existência de ruas consideradas “fermosas” ou “conveniáveis”, sem dizer o porquê destes juízos de valor. No Porto, temos o caso de uma Rua Fermosa (mais tarde Rua Nova do Infante), cuja abertura foi iniciada por D. João I, em 1395. Tratava-se de uma rua muito mais larga e retilínea do que qualquer via, até então, existente na cidade. Ela tornou-se o local preferido de moradia da elite burguesa portuense e, no século XV, as casas aí construídas eram submetidas a um controle arquitetônico. As casas deveriam ser “de pedraria e carpintaria sem sobrelojas”, mas com “balcões e departimentos como são feitos em outras casas da dita rua”.48 Neste caso, o adjetivo formoso refere-se tanto à existência de edificações de luxo, cuja presença nobilitava a rua, quanto à sua largura e forma retilínea. Na segunda metade do século XV, um morador do Funchal propõe à câmara a abertura de uma nova rua sobre o traçado de uma antiga. A nova via seria “tal e tão boa e mais larga duas vezes que é a rua por onde se ora serve o dito concelho”.49 A câmara achou o negócio vantajoso e aceitou a proposta. Difundia-se, assim, no século XV, a noção de que rua boa é rua larga. Além de boas, as ruas deveriam ser “conveniáveis” (que atendessem a uma expectativa utilitária) ou “fermosas” (condizentes a um padrão estético estabelecido). Em qualquer dos casos, é sempre a largura que permite o uso destes adjetivos. No entanto, a largura desejável de uma rua projetada raramente ultrapassava os 4 metros. Como vimos anteriormente, na descrição do cruzado Ranulfo, as ruas da Lisboa mourisca dificilmente ultrapassavam os 2,5 m.50 Já, nas cidade novas, criadas

48

Citado em FERRÃO. Projecto. p.139.

49

FUNCHAL. Atas da Câmara. COSTA, José Pereira da (ed.). Vereações da câmara Municipal do Funchal; século XV. Funchal: Região Autônoma da Madeira, 1995. p.326. 50

FERNANDES. Uma cidade no imaginário medieval. p.3-27.

205

nos séculos seguintes à reconquista, ou nas ampliações e remodelações das cidades mais antigas, as ruas são um pouco mais largas. Em Ponte de Lima, a principal via tinha a largura aproximada de 4m. Na Guarda, o arruamento variava entre 2 e 4 metros e em Guimarães, entre 3 e 4.51 Em alguns casos, o arruamento dos séculos XIII e XV chegava a atingir os 7 metros ou mais, sem contar os casos específicos da Rua Nova dos Ferros, em Lisboa, ou da Rua Ancha de Évora. Este alargamento ocorre tanto pela adoção de um modelo teórico semi-pronto, representado pelas bastides, quanto pela maneira cristã de morar e relacionar-se com a rua. Em Ponte de Lima, um acordo assinado entre o concelho e o cabido de Braga, sobre a transferência do açougue da vila, nos dá alguns indicativos mais precisos sobre as expectativas em relação às dimensões das ruas. Neste acordo, estava previsto que o bispado poderia construir uma rua no local do açougue velho, que era de sua propriedade. No entanto, ao fazê-lo, deveria obedecer a certos requisitos.

Provê ao dito Concelho de a poderem fazer com condição que fique a Rua desembargada por que possam ir carros e homens em cima de cavalos. Braga, 1 de Março de 140652

Trata-se de mais um caso de rua ‘projetada’, que aparece como idéia antes de existir no terreno. Não é, portanto, o resultado da justaposição de fachadas de casas mas um elemento prévio definidor do traçado urbano. Em seu projeto, há um desejo manifesto de amplitude (rua desembargada); na largura, expressa na fórmula que possam ir carros, e na altura, suficiente para permitir a passagem de homens a cavalo. Em relação à altura, esta exigência vai ao encontro de uma tendência observável desde o século anterior, quando começam a aparecer normas que procuram impedir que balcões e passadiços obstruam as ruas. Uma lei de D. Afonso IV, datada de

51

FERREIRA, p.109-10.

52

CARTA DE COMPOSIÇÃO ENTRE O CABIDO DE BRAGA E O CONCELHO DE PONTE DE LIMA, de 1 de março de 1406. Transcrita no apêndice documental de ANDRADE, Amélia A. Um espaço urbano medieval: Ponte de Lima. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. p.239.

206

1329, já ordenava elas que fossem bem espaçosas em que possam as gentes por elas andar a cavalo sem embargo”.53 Mais tarde, em Braga, a colocação de latadas sobre as ruas estava sujeita à mesma condição.54 Mesmo elementos perecíveis, como os galhos utilizados para assinalar as tavernas, não deveriam embargar a passagem de cavaleiros.

Acharam por postura que os ramos que puserem nas portas das adegas não sejam de oliveira e ponham-nos tão altos nas portas que não possam os encavalgados a tangêlos com as mãos salvo se forem as adegas em tais ruas que não embarguem. Lisboa, 1314.55

O rearranjo da cidade em função das atividades comerciais não se encerra na construção destas ruas notáveis. Simultaneamente, esta em curso uma prática de intervenção urbana menos inovadora, pois ela é apenas a consolidação de algo que têm início nos séculos anteriores, mas que tem um alcance muito mais disseminado. Fazer praça, que atinge não apenas aquelas cidades que se inseriram com vantagens nas redes comerciais de longo alcance mas a generalidade dos espaços urbanos portugueses. Como essas praças estão associadas ao pequeno comércio, talvez elas sejam um indicativo de urbanização. Mais pessoas encontram-se desligadas do mundo rural e dependem de um mercado urbano de produtos alimentares, o que também exigia mecanismos de arrecadação mais eficientes. Conforme a época, uma cidade sentia-se desprestigiada se não contasse com um desses equipamentos urbanos. No período que se inicia com a metade do século XV e dura mais de um século, era indispensável “fazer praça”.56

53

MARQUES. Novos ensaios. p.66.

54

BRAGA. Boletim do Arquivo Municipal [BRACARA AUGUSTA]. v.1, fasc.5-6, maiojun. 1935. p.136. 55

POSTURAS DO CONCELHO DE LISBOA. (sec. XIV) Lisboa: Sociedade de Língua Portuguesa, 1974. p.53. 56

Não deixa também de ser um daqueles modismos que sazonalmente atingem as cidades. Ao longo dos séculos variaram os objetos deste tipo desejo. “Nobrecer uma cidade” já foi dotá-la de um igreja gótica ou de uma fonte nobre; mais tarde, de uma estátua ou coreto na praça; e, muito recentemente, de um estádio de futebol ou, simplesmente, de um semáforo. Um brasileiro do século XX, sabe perfeitamente o que é isto. Qualquer pequena cidade do interior, por menor que seja, precisa instalar

207

Esta constatação contraria muito do que tem afirmado a literatura portuguesa sobre o tema, o que nos obriga a formular uma pergunta prévia antes de enfrentá-lo. Anteriormente ao século XV, existiram praças nas cidades medievais portuguesas? A grande maioria dos autores portugueses, numa adesão apressada às hipóteses de Torres Balbás, tendem a dizer que sim. O geógrafo Jorge Gaspar, como vimos anteriormente, é cauteloso em sua resposta. Ao referir-se às bastides, define os pequenos espaços abertos como quase-praças, algo um pouco maior que os largos. No entanto, os exemplos que apresenta são os de exígüos adros de igrejas e não de praças incipientes. Quando comparamos as bastides portuguesas com as do restante da Europa, a primeira coisa que salta à vista é justamente a ausência ou a extrema exiguidade de espaços livres que possam ser qualificados ou classificados como praças. Se Jorge Gaspar é cauteloso, outros são categóricos. O imaginativo arquiteto José Manuel Fernandes, referindo-se ao período de D. Dinis, diz que “muitas das praças renovadas ou ampliadas apresentam esquemas que, embora simplificados, indicam a recuperação de uma tradição geométrica urbana”.57 Apesar do tom peremptório, em nenhum de seus textos o arquiteto dá o mais leve indício de comprovação da arriscada hipótese. O medievalista Oliveira Marques refere-se à existência de tais praças, mas seu texto é tão ambíguo quanto à cronologia que, pode-se dizer, ele preferiu não tomar uma posição declarada.

Ainda que a cidade cristã não dispusesse, em regra, de grandes espaços livres adentro das suas muralhas (excepto nos casos de cidades-somatórios de aldeias), possuía quase sempre uma praça central para mercados e ajuntamentos. Nisso, aproximava-se de tipo de cidade transpirenaica e afastava-se - no dizer de Torres Balbás, radicalmente - do modelo usual islâmico onde tal luxo era por norma desconhecido. Em muitas cidades reconquistadas à mourama, houve que deitar abaixo casas para abrir praças, que a necessidade da população e os novos conceitos de urbanismo mais e mais iam requerendo nos fins da Idade Média e no século XVI. A ‘praça maior’ que aparece na cidade cristã do norte e centro-norte da Península, é artificial no sul.58

um semáforo. No começo do século, eram os coretos nas praças. 57

FERNANDES. A arquitectura. p.97-8.

58

MARQUES. Novos ensaios. p.38.

208

Estas afirmações referem-se à totalidade da Península Ibérica. Todavia, deixemos de lado os outros reinos peninsulares e vamos nos concentrar em avaliar em que medida elas são válidas para Portugal. Como já observamos, é duvidosa a generalização de que as muralhas da maioria das cidades portuguesas não comportassem muitos vazios. O texto de Oliveira Marques pode sugerir que houve uma premência na abertura de praças no tecido da cidade islâmica após a reconquista. (Ou será que ele se refere aos séculos XV e XVI?). Tal premência é muito relativa, pois inúmeras cidades conquistadas no século XIII só irão receber algum tipo de praça na segunda metade do século XV. A comparação entre cidades do norte e do sul, usando como parâmetro um suposto artificialismo, ou não, das praças, é bastante problemática. Se entendermos “artificial” como um acréscimo posterior; em Portugal, a praça é um elemento “artificial” quer nas cidades do sul, de origem muçulmana, quer nas do norte cristão, de nova ou antiga fundação. Os alpendres de vendedores eram comuns desde o período islâmico, mas eles só se difundem com a designação de praças no século XV. Na realidade, é apressada qualquer afirmação que propugne a generalização de praças nas cidades portuguesas antes da segunda metade do século XV. Não existem elementos empíricos disponíveis que permitam tal conclusão. Nas áreas adensadas das cidades medievais portuguesas, os únicos espaços abertos eram alguns adros de igrejas, locais quase sempre exíguos que mesmo um morador dificilmente classificaria como praça. Além dos adros, os outros episódios urbanos diferenciados eram os largos. Porém, mesmo na documentação medieval, estes raramente recebem algum designativo específico, sendo chamados simplesmente de rua. A idéia de largo estava indissociavelmente ligada à de rua: tratava-se tão somente de um alargamento desta. Os largos mais característicos das cidades medievais portuguesas eram espaços residuais, localizados nas imediações das igrejas ou junto a portões de entrada. Tais espaços, desde o século XIII, ou talvez antes, eram utilizados para o comércio, sem que fossem chamados de praças. Com a conquista cristã, o suq muçulmano tendeu a dispersar-se pelas cidades.

209

O artesão cristão compartilha casa e oficina, dando origem às ruas de ofícios. Mesmo as antigas alcaiçarias, locais fechados onde se comerciavam artigos suntuários, parecem ter desaparecido. É prova disto, o esforço empreendido pela coroa, desde D. Afonso III, para reagrupar este tipo de comércio. Alguns poucos ramos comerciais permaneceram concentrados em locais específicos, casos do cereal, vendido nas fangas ou fanegas, e da carne, nas carniçarias, as quais acabaram assumindo solitariamente o nome do suq. Mesmo neste caso, não temos uma regra absoluta. Em certas cidades, existiram as ruas dos carniceiros ou da matança, nas quais se repete o esquema de locação de ofícios, ou seja, a reunião entre moradia e atividade econômica. Os demais ramos do comércio alimentar dispersaram-se pelos açougues de frutas, de verduras ou de peixes. Na Lisboa dos séculos XIII e XIV, era assim que se referia aos locais de venda deste tipo de mercadoria. No século XV, alguns destes locais seriam rebatizados de praças. Na legislação municipal de Lisboa do século XIV, o termo praça, aparece uma única vez, vinculado a um local específico. Uma postura de 1324 (Era de 1362) determinava que a madeira deveria ser obrigatoriamente vendida “em praça na ribeira”.59 Não se trata, obviamente, de uma Praça da Ribeira, mas da praça que se fazia na ribeira. Em Évora, no entanto, desde os finais do século XIV, o local de venda de frutas e verduras, situado na Porta de Arconchel, e o das padeiras, situado junto às estalagens, eram chamados de praças. Como se percebe, estamos no campo movediço das palavras. O emprego do termo praça, torna-se freqüente apenas no do século XV. Contudo, em muitos casos, temos mais uma mudança de vocabulário do que propriamente o aparecimento de um novo espaço. Muitas destas praças são apenas o resultado da reurbanização de largos preexistentes, sem que isto represente alterações urbanísticas de monta. Durante a maior parte do século XV, o uso do termo é ainda oscilante, e confunde-se com o de rua. É o que ocorre em certas posturas lisboetas, onde ambos são utilizados em aparente sinonímia.

59

POSTURAS DO CONCELHO DE LISBOA. p55.

210 Considerando que as padeiras assim da cidade com como do termo que vendem pão na padaria dela tem poiais e lugares devisados* onde hajam de vender o dito pão por guisa que não empechem a rua e praça e elas não querem vender onde lhes é devisado e mandado que vendam e se assentam na Rua a vender o dito pão e a empecham por tal guisa que as procissões e gentes que por a dita praça vão se enojam delo e às vezes não podem por ela ir com [o] empechamento das ditas vendedeiras de pão por bem do qual acordaram que qualquer padeira ou vendedeira de pão que daqui em diante se assentar a vender em a dita rua da padaria fora dos ditos poiais e lugares devisados que por a primeira vez pague 50 reais para o Concelho e por a segunda pague cento e por a terceira perca o pão e seja para os presos. Lisboa, 16 de abril de 1457.60

Os termos, no entanto, não são sinônimos perfeitos. Rua refere-se ao espaço e praça indica o seu uso. Tal rua é uma praça porque nela estão instalados poiais para as padeiras. Trata-se, portanto, de um local de reunião de vendedeiras. Na documentação, o termo praça está constantemente associado a padeiras, peixeiras, tendeiras, ou seja, a locais onde foram construídos alpendres e poiais para a instalação de certos ramos do comércio miúdo, ou a áreas demarcadas para a instalação de tendas de vendedores. Espacialmente, tais praças costumavam coincidir com trechos mais amplos das ruas (a que hoje denominamos de largos), pois de outro modo elas ficariam completamente bloqueadas. Em Óbidos, o alpendre de vendedores foi construído junto ao adro da igreja matriz de Santa Maria, na primeira metade do século XV. Diz um arrolamento dos bens municipais, de cerca de 1430, que “o dito Concelho há um alpendre que chamam a praça nova”. A praça “parte” (confronta, ou divisa, como diríamos atualmente) com algumas propriedades particulares mas, também, com a “rua pública” e com o “adro de Santa Maria”.61 É, portanto, ao dito alpendre que chamam de praça e não aos espaços abertos ao qual está associado. A vulgarização do uso do étimo praça está associada à proliferação deste tipo de construção. A praça é definida mais pela função do que pelo forma. No século XV, como já dissemos, para onde quer que olhemos, vamos encontrar os concelhos envolvidos em “fazer praça”. Vejamos o que isto significa, iniciando por uma

60

* devisado = planejado

61

Ver documento transcrito no apêndice documental de CÂMARA. Óbidos. p.152.

211

localidade do norte: Ponte de Lima, que, para todos os efeitos, é uma cidade de traçado tipicamente cristão. A vila, cuja existência está inextrincavelmente ligada à ponte sobre o Lima, recebe muralhas no século XIV. Desde então, ela se desenvolveu muito lentamente, fato que os moradores da época atribuem à exigüidade do termo do concelho. Tal lentidão, como já apontamos, pode justificar o seu traçado irregular. Por largo período, a vila da ponte concentrar-se-ia numa pequena parcela da muralha, a qual guardava muitas áreas rurais. Referindo-se ao espaço urbanizado da vila, uma inquirição do início do século XV menciona uma “rua detrás a igreja com as tendas [....] da marçaria em que são as tendeiras”.62 O local não era identificado, portanto, como uma praça. Posteriormente, esta região da cidade sofreu alterações significativas, uma vez que, algumas casas foram demolidas para dar lugar à uma nova igreja, construída no lugar da antiga, considerada insuficiente. Mais para o meio do mesmo século, a documentação refere-se a “uma mui boa praça com um chafariz muito solene”, construída nos entornos da nova igreja.63 Segundo Amélia Aguiar Andrade, historiadora que estudou a espacialidade da Ponte de Lima medieval, esta praça foi mais sonhada do que consumada.64 No entanto, a praça existiu plenamente. A expectativa contemporânea daquela autora, levou-a a buscar uma modalidade de praça que não era a da época, o que tornou difícil localizá-la no atual traçado. Isto porque, a tal praça não ia além de um alpendrado ou um conjunto de tendas que ocupava áreas remanescentes da construção da nova igreja. A documentação de Ponte de Lima passa a referir-se apenas a uma “rua da praça”, ou seja à rua onde estavam os alpendres. Dificuldade semelhante enfrentou José Garcia Domingues, para identificar uma praça que, sabe-se, foi construída em Silves, no século XV, mas não se conhece a

62

Ver ANDRADE. Um espaço urbano medieval. p.205.

63

Ver ANDRADE. Um espaço urbano medieval. p.22.

64

Ver ANDRADE. Um espaço urbano medieval. p.23.

212

localização exata. A observação ensina que praças (no sentido que atualmente damos à palavra) dificilmente desaparecem, o que indica que a dificuldade advém de uma confusão terminológica. Para a construção da praça, a cidade recebeu em doação de D. Afonso chãos no interior da muralha, junto às portas de Loulé.65 Repete-se o que já observamos em relação a Ponte de Lima ou Óbidos. Estamos diante de uma reurbanização em pequena escala de um largo já utilizado para fins de comércio, onde existiam algumas tendas e casas arrendadas pelo rei a comerciantes judeus. A praça de Silves é um daqueles freqüentes alpendres construídos nos largos que existiam junto às portas, locais onde se concentrava o fisco e algum comércio Desde a metade do século, todas as municipalidades parecem envolvidas em negociações com o rei, visando dotar suas cidades destas pequenas praças alpendradas. Quer na nortista e cristã Ponte de Lima, quer na mourisca Silves, esta vivendo uma acentuada decadência devido ao assoreamento de seu porto, quer em Faro, que se tornara um importante centro regional, quer na fronteiriça Olivença. Estamos diante de uma receita fixa, que se repete por todo Portugal, sem que se perceba a diferenciação proposta por Oliveira Marques entre praças artificiais ao sul e ‘naturais’ ao norte. Também não se encontram nestes episódios nada que se pareça com a recuperação renascentista do traçado geométrico, como propôs José Manuel Fernandes. Em Olivença, segundo documento de 1464, “a cava toda de longo desde a Madanela até a entrada da rua da Esnoga* era atupida e feita em praça por mando e autoridade do senhor Rei o que era grande formosura honra e vantagem desta vila”.66 Ainda no mesmo ano, Faro obteve do rei uma parte das terracenas reais para construir uma praça, para abrigar suas vendedeiras.

Em o terceiro capítulo nos pediram por mercê que lhe quiséssemos outorgar uma das nossas terracenas* para fazerem praça para vendedeiras e por nos parecer em alguma

65

LIVRO DO ALMOXARIFADO DE SILVES; século XV. Silves: Câmara Municipal de Silves, 1984. p.13-4, 79-80. 66

LIVRO DO ALMOXARIFADO DE SILVES. p.51. * esnoga = sinagoga

213 parte razão a nós praz de lhes darmos lugar que eles possam madeirar da derradeira parede da parte de fora à outra acerca para fazerem alpendre e hajam o chão todo dali até barreira para fazerem praça e não para outra coisa alguma.67

Em muitos destes episódios mencionados, e em outros semelhantes, existe um denominador comum: el-rei D. Afonso V. Embora os alpendres sejam freqüentes desde o século XIV, pode-se falar numa praça afonsina. Todavia, a intervenção régia não ocorre por alguma necessidade prevista na legislação. Voltamos necessariamente ao compartilhamento da administração espacial das cidades. Como já vimos, os reis e alguns grandes donatários incluíam-se entre os principais detentores de terras urbanas. Assim, qualquer intervenção de maior monta no tecido urbano passava pela aprovação desses grandes senhores, que às vezes faziam o papel de especuladores desses equipamentos, outras vezes eram beneméritos que cediam espaço para as câmaras explorarem-nos. Os beneficiários das rendas desses alpendres ou boticas eram, por vezes, os próprios reis, noutras vezes, os donatários civis e eclesiásticos, noutras, ainda, os concelhos ou, como no caso de Ponte de Lima, a igreja da cidade. Na imensa lista de propriedades e direitos do Infante D. Henrique, nas quais se incluía o virtual monopólio de tudo que rendessem as Ilhas Atlânticas, figurava, singelamente, as rendas resultante da exploração dos alpendres de Tomar.

ESPAÇOS DE SEGREGAÇÃO: MANCEBIAS E JUDIARIAS

Na cidade idealmente organizada, segundo a concepção do frade catalão Eximeniç, “os hospitais, leprosários, garitos*, bordéis e deságües das cloacas devem localizar-se do lado oposto ao de que procedem os ventos reinantes”.68 Leprosos e

67

BARROS, Amândio. Alterações urbanísticas em Faro e Olivença na segunda metade do século XV. In: Actas das III jornadas de História Medieval do Algarve e Andaluzia. Loulé: Câmara Municipal, 1989. p.49. 68

Trecho da enciclopédia El crestiá, do frade Francesch Eximeniç. 381-1386. Citado de

214

prostitutas, pertenciam ao lado podre da cidade, assim como as cloacas. Da mesma forma, imaginava-se que judeus e mouros podiam contaminar o ar ou a água. Na França, entre 1320 e 1321, milhares de leprosos e judeus, acusados de envenenarem os poços, provocando epidemias, foram massacrados.69 Usando uma imagem tomística, leprosos, judeus, mouros e prostitutas eram órgãos doentes, capazes de contaminar o grande corpo social.70 Por vezes, eram um mal a extirpar, como uma perna gangrenada, outras vezes, um mal necessário ou órgão que mesmo doente é preciso manter por ser indispensável à vida do todo. Assim, ora prevalecia a estratégia de os manter sob o remédio do isolamento, ora a de os “despejar” da cidades.71 O verbo despejar resume perfeitamente as ações adotadas em relação a leprosos, prostitutas e minorias religiosas. Ele exprime a mesma duplicidade contida na palavra italiana ghetto ou gueto, que atualmente utilizamos para os espaços de segregação urbana. Sua origem é o verbo gettare (lançar, despejar). Despejar é esvaziar ou por para fora e o despejo (dejeto) é tanto o objeto quanto o resultado desta ação. Quando temos dúvidas sobre a utilidade de uma coisa, nós a amontoamos num quarto de despejos: o ghetto. Em Portugal, a presença de mouros e leprosos ficaria restrita aos arrabaldes e ao mundo agrícola, assim, vamos nos deter no caso dos judeus e das prostitutas, cuja presença na cidade introduziu fortes marcas na morfologia urbana. A relação entre o

SANTOS. Formação. p.31. * garitos = casas de jogo 69

LE GOFF, Jacques. O apogeu da cidade medieval. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p.1748. DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente. 1300-1800. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. p.141. Em Portugal, não era freqüente a conexão entre judeus e leprosos, mas entre cegos e judeus, uma vez que eles não viam o caminho da salvação. Outra pecha que recaia sobre os judeus era a da covardia, covardia feminina, o que os transformava em sodomitas. TAVARES, Maria José P. F. Los judíos en Portugal. Madrid: Editorial Mapfre, 1992. p.120-22. 70

SENNET, Richard. Carne e pedra; o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record, 1997. 71

Uma vez que os quatro grupos eram equiparados às coisas putrescentes, lidar com eles também pertencia ao universo de práticas e concepções do saneamento da cidade, a que dedicamos, adiante, toda uma seção deste trabalho.

215

grupo dominante e essas minorias foi pautado pela ambigüidade. As prostitutas com certeza viviam em pecado, mas era este mesmo pecado que garantia a tranqüilidade das famílias. Sem elas aumentavam “forças” e “roussos”, os crimes de estupro e o rapto, tão comuns na Idade Média. Os judeus, haviam matado Cristo, mas faziam falta a um dos órgãos mais sensíveis dos citadinos: o bolso. Com sua usura pecaminosa davam movimento à economia urbana. Judeus alfaiates e sapateiros, ou oleiros mouros, eram hábeis artesãos indispensáveis às cidades. Os muçulmanos foram a mão-de-obra agrícola necessária à própria consolidação da reconquista. As que fazem por mais de dois homens Luís IX, o rei santo e guerreiro que semeou bastides pela França, é reconhecido como o inventor das zonas de prostituição urbana.72 Em 1254, ele tentou expulsar, sem sucesso, as meretrizes de Paris. Conformado com o fracasso da medida, resolveu criar ruas específicas para confiná-las. Em Portugal, até onde se sabe, a segregação das prostitutas começa com Afonso IV, que as proíbe de se vestirem luxuosamente e manda-as “viverem em lugares apartados em razão dos grandes escândalos”. A partir de então, as cortes voltam freqüentemente ao tema das prostitutas. Elas passam a ser obrigadas a usarem vestidos “desvairados”, ou seja, diferentes dos usados pelas mulheres casadas, e os homens casados, ou seja, as famílias, são proibidos de residirem “nos lugares onde sempre costumou morarem as mulheres mundanais”.73 D. João I, em uma carta régia de 1391, impinge às mancebas, “para que elas fossem conheçudas das mulheres casadas”, o uso compulsório de um “véu bem açafroado”, o qual e se tornou uma espécie de insígnia da prostituta.74 A diferenciação de diversos grupos sociais através da normatização do

72

Ver LE GOFF. O apogeu. p.175-6.

73

MACEDO, Luís Pastor. A rua e a horta da Mancebia. Lisboa: Amigos de Lisboa, 1948. p.4.

74

SEQUEIRA, Gustavo Matos. Rua da Mancebia. REVISTA MUNICIPAL. Câmara Municipal de Lisboa, n.32, 1947. p.24.

216

vestuário foi um princípio muito caro ao período medieval e moderno. Segundo esse princípio, as pessoas deveriam aparentar aquilo que eram. A imposição deste véu já fora determinada nas cortes de Évora de 1363 e, posteriormente, reconfirmada nas leis gerais do reino. A reiteração indica que não havia uma conformidade por parte das prostitutas com essa insígnia. Outra maneira de produzir a pretendida diferenciação era impedir que as meretrizes saíssem à rua com mantos. “E isto por serem diferentes das mulheres casadas”.75 Paralelamente à caracterização da mulher pública, a legislação se encaminhava no sentido de criar espaços segregados nos quais elas ficassem confinadas, verdadeiras zonas de prostituição oficialmente demarcadas: as mancebias. Talvez este nome fosse apenas um eufemismo oficial para designar algo que todos conheciam pelo nome correto. Na Guarda, existia a rua da Putaria e, em Évora, um documento de 1331 já se refere a uma área da cidade como a “putaria velha”. Forte indício de que as meretrizes estavam confinadas a zonas específicas antes mesmo que as leis de Afonso IV (1325-1357) obrigassem o arruamento das mancebas.76 A tarefa de fazer valer os princípios gerais de diferenciação e confinamento das prostitutas, emanados das cortes, coube às câmaras. Na legislação municipal, aparecem dois tipos de posturas que pretendiam obrigá-las a viver em lugares apartados. Uma era a imposição direta de que as meretrizes vivessem apartadas em uma rua ou zona da cidade especialmente destinada para esse fim.

Das mulheres Outrossim acordaram que quaisquer mulheres que fazem por mais homens do que por dois e de aí para cima pecado de fornízio fizer que vá morar a estas ruas que se seguem: na rua de João Divida e no beco e travessa que sai da dita rua e entesta da outra com a rua dos fornos e na rua do veado desde onde mora João Martins criado de João de Belas até onde mora o dito João de Belas e desde onde mora o dito João de Belas até a rua que vai para Santo Espírito e qualquer das ditas mulheres que em outro morar que pague por primeira vez cem libras e por a segunda duzentos libras

75

CARVALHO, Afonso de. As mancebias de Évora durante o Antigo Regime. In: PRIMEIRAS JORNADAS DE HISTÓRIA MODERNA. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 1986. v.2. p.700. 76

CARVALHO. As mancebias. p.702.

217 para as obras da cidade [....] e por terceira vez que seja degredada da dita cidade e seu termo com pregão e baraço na garganta até mercê d’el-Rei.77

Esta modalidade de norma era complementada com outra, que buscava impedir o aluguel de casas para as meretrizes fora da mancebia. Em 1461, a câmara de Lisboa solicitou a D. Afonso V a confirmação de uma “ordenança antiga” da cidade que proibia tanto o aluguel direto de casas a prostitutas, quanto o aluguel indireto feitos por terceiros para ali instalar “bordéis”.78 Nos códigos de posturas de Coimbra também se encontra legislação semelhante.

Nenhuma pessoa não alugue casas a mulher solteira que viva desonestamente estando as tais casas entre vizinhança de mulheres casadas. E fazendo o contrário pagará para a cidade trezentos réis e lhe farão logo despejar tal casa que não viva nela tal mulher. E sendo a tal casa dessa mulher que assim vive desonestamente, não viverá isso mesmo nela sob a dita pena e a farão logo tirar dela, pois não vive como deve.79

77

LPA. p.57. No início do século XVI, as mancebias de Lisboa foram transferidas para detrás dos estaus do rei, prédio transformado em sede da Inquisição portuguesa. Ver MACEDO. A rua e a horta da mancebia. 78

LPA. p.21-2.

79

COIMBRA. Posturas municipais. op. cit. p.174.

218

Por si só, a moradia das prostitutas nas mancebias não era garantia de mantêlas afastadas das ruas, o que levou a uma segunda rodada de posturas, que procuravam obrigar que as mancebas atuassem apenas nas áreas demarcadas. Em Évora, a legislação determinou que “estejam na mancebia e não ganhem fora sob pena de quinhentos reis”.80 Durante seu reinado, D. Manuel fez editar um preceito semelhante para Lisboa.

Ordenou el-Rei Dom Manuel, que santa glória haja, que qualquer mulher, que na corte ou na cidade de Lisboa fosse compreendida, e se provasse, que com seu corpo ganhava dinheiro publicamente, não se negando aos que a ela quisessem ir fora da mancebia, fosse presa e degradada por quatro meses fora da cidade, e pagasse mil reais para quem a acusasse. Por um alvará de 8 de julho de 1521.81

Brandão de Buarcos, conhecido pelos exageros que comete ao glorificar a Lisboa da metade dos seiscentos, estima que na cidade viviam 5.000 “mulheres solteiras”.82 Mesmo que o número real esteja algumas vezes aquém disso, e mesmo que consideremos que a cidade contava com uma segunda zona de meretrício extramuros, a “Horta da Mancebia”, é fácil perceber que o rei e a câmara lisboeta não foram eficazes na sua tentativa de arruar o ofício de prostituta. Todas as indicações disponíveis levam a crer que, ao lado daquelas que militavam nas mancebias, outras agiam livremente pelo restante do quadro urbano. Outra proibição corrente era a de que as prostitutas atuassem nas estalagens. Caso isto ocorresse, os estalajadeiros poderiam ser acusados de rufiões. Mas, como sempre, existiam as exceções. A “qualidade” de alguns homens impedia-os de freqüentar as mancebias. Assim, reis e câmaras, responsáveis pelo confinamento das meretrizes, punham-se a negociar para resolver a melindrosa questão. Em, 1434, o procurador de Évora pede uma solução a D. Duarte.

80

Citado em CARVALHO. As mancebias. p.699-700.

81

LIÃO, Duarte Nunes do. Leis extravagantes e repertório das ordenações. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987. (Reprodução facsimilar da edição “princeps” de 1569). p.170. 82

BRANDÃO [de BUARCOS], João. Grandeza e abastança de Lisboa em 1552. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. p.215.

219 Às vezes [....] alguns homens honrados vêm a esta cidade e vão pousar às estalagens e hão vontade de dormir com algumas mancebas e mandam, por os estalajadeiros que elas lhes vão falar às estalagens, porquanto ele não é tal homem que vá à mancebia, seja vossa mercê, que ainda que a dita manceba durma com ele na dita estalagem, que não haja pena o dito estalajadeiro posto que o consinta.

“Pedis bem”, responde o monarca. “Mandamos que as mancebas possam ir e vir aos estaus quando as mandarem chamar, contanto que elas não vivam nos mesmos estaus”.83 Este é apenas um exemplo do envolvimento das câmaras com as zona de meretrício. Cabia à municipalidade zelar pelo seu bom funcionamento, o que levaria à criação de posturas regulatórias. Em Coimbra, os vereadores ocuparam-se dos atos de violência que costumavam acontecer nesses locais.

E assim acordaram e mandaram logo que por não saberem em certo se há aí alguma provisão acerca dos que entram com armas na mancebia, e por verem que é coisa mui odiosa entrarem com armas em semelhante lugar, e por acharem sempre ser de costume serem defesas e se perderem para o alcaide e meirinhos e seus homens que as dentro achavam, acordaram que o dito costume se guarde e as ditas armas se percam para aqueles oficiais da justiça que as dentro tomarem. Coimbra, 18 de agosto de 1518.84

Em Évora, havia postura prevendo o controle sanitário das prostitutas. Ela determinava que “os almotacés as visitarão cada mês tomando certa informação se são ou se foram doentes destes males e as que acharem que são ou foram doentes [....] as lancem fora da cidade.” O historiador Afonso Carvalho, descobriu que, na mesma cidade, o funcionamento dos prostíbulos estava sujeito a um horário de inverno e outro de verão; de setembro a fevereiro, deveriam fechar às 9 horas da noite e no restante do ano, às 10.85 O funcionamento era diurno, porque as cidades eram sujeitas a toque de recolher.

83

ANTT. Chancelaria de D. Duarte, L.1, f.215v. Citado de CARVALHO. As mancebias.

p.700. 84

COIMBRA. Posturas municipais. op. cit. p.84.

85

Citado de CARVALHO. As mancebias. p.688-9.

220

Nas cidades das ilhas do Atlântico norte, fundadas ainda no século XV, o quadro parece repetir o do continente. Pelo menos na Madeira existiram mancebias. A do Funchal localizava-se próxima ao porto, como era freqüente nas cidades que pertenciam às rotas de navegação. Todavia, em 1495, o ouvidor propôs à câmara que ela fosse tirada de perto do mar pois quando aconteciam crimes os culpados fugiam para os barcos e escapavam da justiças.

E sobre o dito caso praticaram todos por as mais vozes se acordou que a dita mancebia se tirasse dali por assim ser odioso e estar perto do mar e porque se já ali aconteceram já mortes de homens e se alevantaram ali muitos arruídos e os que os levantam logo se acolhem ao mar que lhes busquem lugar dentro da vila onde estejam melhor possa fazer e que os oficiais provejam pela vila e busquem algum lugar que lhe pareça que se a dita mancebia possa fazer.86

A câmara criou uma comissão para a escolha do novo local, e a construção da nova mancebia foi entregue a João Afonso, que ficou com os direitos de explorá-la. Mal ficaram prontas as novas instalações, aparece na câmara Martim Mendes de Vasconcelos com uma carta de mercê de D. Manuel, concedendo-lhe o direito de construir a nova zona. Abre-se uma crise interna na câmara. Após marches e demarches, os oficiais do concelho resolvem cumprir a carta régia e demarcam o local para a construção das novíssimas casas das prostitutas, advertindo o novo rendeiro que elas deveriam ser “de vantagem das que tinha feito João Afonso e maiores”.

Se acordou com acordo do senhor corregedor que Martim Mendes de Vasconcelos faça a mancebia em Valverde na rua Direita onde lhe já foi mostrado pelo dito corregedor e oficiais e que a dita rua se tape da banda da rua e lhe faça portas contra a ribeira e que faça as casas na dita mancebia quantas abastem.87

Este caso ocorrido na Madeira nos revela uma faceta das mancebias que não pode ser esquecida. Elas se inseriam no mundo dos negócios, dentro da maior normalidade. Ser cafetão era moralmente condenável e, mesmo, um crime. Já, possuir

86

FUNCHAL. Atas da Câmara. op. cit. p.397.

87

FUNCHAL. Atas da Câmara. op. cit. p.540.

221

uma mancebia era uma forma respeitável de obter renda urbana. Os donos de casas das mancebias costumavam ser pessoas bem situadas na hierarquia social e recebiam dos donatários, das câmaras ou, freqüentemente, do próprio rei o privilégio de explorar este serviço público, em regime de monopólio. Quanto a isto não parecia haver diferenças em relação a qualquer outro empreendimento, como os açougues ou os alpendres dos mercados, que também funcionavam em regime de monopólio e eram altamente rentáveis para os beneficiários de licenças de exploração. Em Évora, o privilegiado parece ser Soeiro Mendes, responsável pela construção da fortaleza de Arguim.88 Os personagens envolvidos no litígio da mancebia do Funchal pertenciam à elite da Madeira. Vasconcelos, por exemplo, era fidalgo, juiz do cível e tinha ligações com D. Manuel. A disputa foi provocada pela alta lucratividade deste negócio imobiliário. A renda mensal, cobrada a cada prostituta, era de 150 réis. A superexploração imobiliária das meretrizes chegou a ser tratada entre a câmara de Lisboa e D. Manuel. O rei deu autorização ao senado lisbonense para mediar a fixação do aluguel entre as usuárias e os proprietários, de forma a impedir abusos.89 O século XVI assistiria a uma progressiva dissolução das mancebias. Em Lisboa, as meretrizes foram expulsas para fora dos muros da cidade na grande peste de 1569. Não demorou muito e elas estavam de volta. E foram arruadas por carta de D. Sebastião, datada de 2 de julho de 1570, que, realisticamente, ampliava as zonas de prostituição da cidade.

Que por evitarem os muitos inconvenientes, que se seguem de viverem e morarem misticamente com a outra gente, todas as mulheres solteiras que publicamente recolhem homens em suas casas por dinheiros, se passem logo, e vivam daqui em diante nos bairros abaixo declarados: nos becos dos Açucares; nos becos e travessas que estão passando os Fiéis de Deus; nas travessas e rua dos Vinagreiros; na rua das Canastras; nas travessas de Santa Marinha; e isto além das casas que ora chamam de

88

CARVALHO. As mancebias. p.705.

89

MACEDO. A rua e a horta da mancebia. p.5.

222 Mancebia detrás dos Estaus.90

Até onde se sabe, em Lisboa não voltaram a existir as mancebias clássicas, formadas por uma ou mais vielas fechadas por um único portão de acesso. Todavia, é difícil avaliar se para as prostitutas isto foi vantajoso. O fato de não terem mais um lugar oficial e reconhecido deixou-as ao sabor de um jogo de pressões do qual participavam em desvantagem. Cada vez mais, a questão que se colocava era a de mantê-las afastadas das áreas onde a sua presença pudesse causar queixas dos outros moradores. Assim, as prostitutas viram-se envolvidas num constante empurra-empura. Ora eram toleradas em qualquer lugar, ora eram concentradas em zonas, ora expulsas para os arrabaldes ou áreas rurais.91 Em muitas cidades, prevaleceu a estratégia de despejar as prostitutas e não a de confiná-las a um arruamento. Câmaras, como a de Braga, pareciam dispostas a acabar com o mercado da ‘carne’. O fato de esta cidade ser extremamente controlada pelos bispos, seus senhores, talvez explique a menor tolerância com as mancebas. No século XVI, o Senado de Braga passou a exigir que todos os homens de mais de quatorze anos que viessem de fora da cidade e ali permanecessem mais do que um dia fossem pedir licença à Câmara. A justificativa da instituição de tal controle era o “mau exemplo” dado por esses “estrangeiros” que andavam pelas estalagens e tavernas sem “ter o que fazer”.92 Este é o ponto de vista dos oficiais da câmara, mas para quem vinha do campo ou das vilas da região havia muito o que fazer em Braga. As cidades maiores

90

MACEDO. A rua e a horta da mancebia. p.17

91

As mancebias não estavam de todo extintas durante o século XVII. Houve casos em que as prostitutas foram concentradas justamente no centro antigo das cidades. É o que ocorria em Vila Viçosa onde a parte amuralhada da cidade apresentava sinais de degradação urbana. Na descrição que António de Cadornega fez do castelo da cidade, vamos encontrar uma menção explícita a uma mancebia. “Tem dentro de si a igreja de Nossa Senhora da Conceição e bastante povoação, que consta da Rua da Torre, Rua da Cadeia, a de Santa Maria, a do Bequinho e a do Postigo. E estas duas últimas eram habitadas de mulheres públicas, ali arruadas por estarem separadas da gente honrada”. CADORNEGA, António de Oliveira. Descrição de Vila Viçosa. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1982. p.107. 92

BRAGA. Posturas municipais. BRACARA AUGUSTA. Braga, v.1, n.13. dez.1949. p.452. A estratégia bracarense de impedir a prostituição parece ter falhado. No ano de 1800 os vereadores ainda andavam à voltas com os estalajadeiros que permitiam “juntar-se as meretrizes com os libertinos”. BRAGA. Pos turas municipais. op. cit. v.23, n.68, jul.dez.1969. p.203.

223

forneciam aos visitantes um mundo bastante ativo da bebida, dos jogos de azar e de uma mercadoria muito especial, o sexo a dinheiro fornecido por essas mulheres eufemisticamente conhecidas por mancebas ou solteiras. Se, por um lado, a câmara bracarense tentava conter a prostituição pelo lado da ‘procura’, impedindo a permanência de homens desocupados, por outro, procurava impedir a ‘oferta’, criando óbices à instalação de meretrizes na cidade.

Acordaram mais por verem as mulheres solteiras moças não quererem servir ninguém, nem trabalhar suas vidas, e nesta cidade e arrabaldes andarem muitas ociosas e viverem por si em casas de aluguel nas quais casas faziam e fazem muitas desonestidades e pouco serviço ao Senhor Deus, antes agasalhavam homens estrangeiros e outras pessoas de não bom viver e por se nesta cidade consentir o que se em outras vilas e cidade não consentem pela ordem do regimento se executar melhor e muitas mulheres estrangeiras solteiras se vêm a esta Cidade botando-as de suas terras, por não viverem bem, e aqui se lhes consente o que em suas terras lhes não consentiram, portanto acordaram e ordenaram que [....] toda pessoa que tiver Casas para alugar a não alugue a nenhuma mulher solteira sem licença dos regedores da Cidade para que em Câmara se veja e com sete ou oito cidadãos a qualidade do viver de tal mulher sob pena da pessoa que assim não fizer pagará para o concelho e para quem o acusar quinhentos réis e a mulher solteira que sem licença dos regedores da Cidade em casa de aluguel viver que pague de pena da Cadeia para o conselho e quem acusar quinhentos réis.93

Legislação semelhante à dos séculos anteriores, mas incompleta. Pois, não vem acompanhada da demarcação dos locais onde as prostitutas poderiam morar. Ocorre que os vereadores bracarenses não pretendiam criar uma zona de meretrício na cidade. Todavia, a inexistência de mancebias no interior do quadro urbano não significava o fim da prostituição. Provavelmente, a profissão assumiu uma feição rural. As posturas de Braga referem-se a “cabaneiras que fazem mau uso do seu corpo e vida”.94 Na mesma época, a regente D. Catarina ordenou a expulsão das meretrizes do quadro urbano de São Tomé.

Mandou el-Rei nosso senhor, que nenhumas mulheres públicas vivessem dentro na

93

BRAGA. Posturas municipais. op. cit. v.1, n.13. dez.1949. p.452.

94

BRAGA. Posturas municipais. op. cit. v.8, n.37-8, jul-dez.1957. p.399.

224 povoação da Ilha de São Tomé entre outra gente honesta. E do dia da publicação que desta ordenação se fizesse na dita ilha, a 15 dias, se saíssem de entre os ditos moradores, e não tornassem mais a viver entre eles: e tornando seriam presas e pagariam dez cruzados da cadeia pela primeira vez. E pela segunda vinte cruzados da cadeia. E pela terceira seriam degradadas da dita ilha, e embarcadas para este reino na primeira embarcação, que depois da condenação, para ele houvesse. E posto que tais mulheres públicas vivessem fora da dita povoação, e não estivessem entre os moradores da gente honesta, não agasalhariam nem dariam pousada em suas casas a mercadores, nem passageiros que de fora da dita ilha a ela fossem. E fazendo o contrário incorressem nas ditas penas pela maneira acima declarada. [...] Por um alvará de nove de novembro de 1559.95

Essas tentativas de expulsar as meretrizes foram, obviamente, mal sucedidas. Dissolvidas as mancebias, vamos encontrar, nos séculos seguintes, a prostituição inscrita no quadro dos conflitos vicinais, o que mostra que ela é algo difuso pelas cidades. Em 1651, os vereadores de Beja, atendendo às queixas dos vizinhos, experimentaram enfrentar a questão atingindo o bolso dos usuários das “mulheres suspeitas”, multando-os e tomando-lhes as armas.

Acordaram sobre as pessoas que se acharam em casa de mulheres suspeitas. E logo na dita câmara por grandes queixas que havia nesta cidade e de brigas e desinquietações que digo nas casas de mulheres de suspeita em as quais entram muitos homens assim de dia como de noite de que sucediam grandes brigas e mortes e para se poder juitar [?] este dano acordaram e mandaram que nenhuma pessoa entrasse em casa de mulher de suspeita e sendo nela achado assim de dia como de noite tivesse de pena cada pessoa quinhentos réis e as armas com que for achado qualquer pessoa perderão.96

Em Angra, uma postura da cidade prescrevia que “nenhuma mulher solteira viva em rua pública dentro da cidade, e quem o contrário fizer seja botado fora da rua e pague de pena oitocentos réis”.97 Em Ponta Delgada, a tolerância era um pouco maior.

95

LIÃO. Leis extravagantes. p.170-1. A mesma lei proibia que as mulheres da ilha “de qualquer sorte e qualidade que sejam, não tragam daqui em diante as saias e panos abertos por diante da cintura para baixo, como até agora algumas delas os costumam vestir, e trazer a modo de gentias” O Donatário Álvaro Caminha parece ter criado uma mancebia em S. Tomé. Em seu testamento ele conta que mandara queimar um herege “e uma casa que dele ficou e terras entreguei a algumas negras que mantinham homens para se delas servirem”. ALBUQUERQUE, Luís (org.). A ilha de São Tomé nos séculos XV e XVI. Lisboa: Publicações Alfa, 1989. 96

BEJA. Posturas municipais. VIANA, Abel (ed.). Vereações de 1651. ARQUIVO DE BEJA. Beja, v.9, 1952. p.58. 97

ANGRA DO HEROÍSMO. op. cit. p.137.

225

Estava proibido que as solteiras circulassem à noite, mas apenas as escandalosas e de má língua deveriam mudar-se das ruas principais.

Que toda a mulher solteira que vive escandalosamente dando motivos de queixa e inquietando a vizinhança usando mal a sua honestidade e tiver má língua não pode morar nas ruas desta cidade e em particular nas principais, e toda a pessoa que a quiser acusar fazendo-o certo o podem fazer para as degredar fora da cidade.98

Judiarias: os façais morar dentro Certa historiografia portuguesa, que insiste no caráter benévolo da índole nacional, têm insistido que, em Portugal, as judiarias seriam um fenômeno tardio. Já mencionamos que pouco se sabe sobre a localização dos judeus na cidade islâmica da Península. O mesmo ocorre à respeito da segregação, ou não, da população hebraica após a conquista cristã. No entanto, muitos forais dados a comunas de judeus pressupõem a adjudicação de um local específico de morada, imposto pelo próprio direito de manutenção do culto, o que leva a concluir que guetos existiram desde a reconquista. Presume-se que a maioria das judiarias encontravam-se fora das muralhas mouras. O mais provável é que os judeus ali estivessem durante o final do período islâmico, e ali permaneceram sob os novos senhores cristãos. A expulsão dos muçulmanos remanescentes do interior das muralhas, após a reconquista, deu visibilidade à segregação espacial dos mesmos. Já em relação aos judeus, uma ausência de mobilidade espacial talvez explique melhor o silêncio da documentação sobre o tema, do que uma propalada tolerância. Muito provavelmente, as leis de segregação espacial, que aparecem no século XIV, só fazem confirmar e enrijecer um fenômeno que era mais antigo. Desde o começo do século XIII, a igreja católica vinha criando uma

98

PONTA DELGADA. Posturas municipais. MARQUEZ, Jacome Corrêa (ed.). Posturas da câmara de Ponta Delgada do século XVII. ARQUIVO DOS AÇORES, v.14, 1927. p.139 e 175-6.

226

legislação que visava impedir o convívio e os casamentos mistos entre cristãos e os infiéis que entre eles viviam. Essas medidas emanadas do papado e, principalmente, do concílio realizado em Latrão em 1215, proibiam o intercurso carnal entre cristãos e nãocristãos e obrigavam os infiéis que morassem na cristandade a viverem em locais separados da maioria e a usarem trajes diferentes e insígnias que os tornassem facilmente identificáveis. Em Portugal, demorou mais de um século para que os reflexos de tais decisões da igreja aparecessem na legislação. Em 1361, D. Pedro I decretou que judeus e mouros morassem em locais apartados dos cristãos. Alguns autores lembram a coincidência cronológica entre a edição dos atos de restrição aos infiéis e a chegada da peste negra em 1348, que em muitos locais da Europa foi atribuída aos judeus. Seja qual for o motivo, a adoção de tais medidas parece ser resultado mais de uma pressão do clero e dos concelhos, provavelmente insuflados pela igreja, do que uma decisão autônoma da realeza. Pode-se atribuir a relutância da coroa portuguesa aos altos tributos pagos pelas minorias religiosas. A coroa era regiamente - nos dois sentidos recompensada pelo direito de manutenção dos cultos não-cristãos. Com Afonso IV, impôs-se aos infiéis o uso de trajes específicos, aos quais deveriam ser costurados sinais identificatórios em locais bem visíveis. Os judeus deveriam levar à altura do estômago uma estrela de Davi vermelha, coloração que, mais tarde, foi substituída pelo amarelo. Os judeus importantes acabavam sendo dispensado pelo rei do uso desta insígnia, considerada infamante. Aos mouros, as ordenações régias prescreviam o uso de um crescente azul, à altura do ombro. Pelas freqüentes queixas que aparecem na documentação e pela reiteração das leis pode-se imaginar que seu uso não era rigidamente observado. A questão dos trajes diferenciais foi tratada nas cortes de Santarém (1468) e de Évora/Coimbra (1481). As estimativas da população judaica portuguesa, antes der engrossada pelos expulsos da Espanha, variam entre os 75.000, de J. Lúcio de Azevedo, até números mais

227

cautelosos, como os 30.000, propostos por Maria José Pimenta Ferro.99 Números que significam algo entre 6 e 3% da população total da época. No entanto, esta população estava muito mal distribuída, concentrada nos principais centros urbanos e na região fronteiriça do centro de Portugal.100 A construção das cercas góticas entre os séculos XIII e XV acabam incluindo diversas judiarias dentro de seu perímetro, como em Lisboa e Évora. O caso do Porto pode indicar que havia uma intencionalidade nesta inclusão. Naquela cidade, existia uma judiaria no arrabalde de Monchique, a qual ficou fora da nova cerca fernandina, concluída em 1376. Decorridos apenas 10 anos, uma carta régia obriga a sua transferência para o interior da muralha. O novo gueto instalada no alto da Vitória, acabaria por assumir um traçado reticular característico das bastides. É a primeira região do Porto onde se desenvolve uma trama viária regularizada. A judiaria grande de Évora também se desenvolve segundo um traçado regular. Não fosse a ausência de muros, diríamos que os guetos de Évora e do Porto se tratavam de autênticas bastides medievais. Dadas a forma triangular comum e a linearidade das ruas há uma grande semelhança entre Aveiro e a judiaria de Évora. Situação muito diferente é a da judiaria velha de Lisboa. Nesta, que era a maior e mais importante judiaria do país, predominam os traçados mouriscos com característicos adarves. Lisboa, Porto, Évora e Santarém são grandes centros da Idade Média portuguesa e é natural que os judeus, que exercem preferencialmente profissões urbanas, se concentrem em grandes judiarias, ou que exista mais de um gueto. Em Santarém, haviam dois, e em Lisboa, além da judiaria original, aparecerão outras duas. Da obra urbana de D. Diniz também consta a instalação de um novo gueto na região onde se agrupavam os mesteirais de sapataria. Esta foi uma ocupação preponderante da comunidade judaica portuguesa. Desta forma, a sua Rua Nova era quase um largo de ligação entre uma judiaria e outra. Antes de fechar o século XIV, forma-se um terceiro

99

AZEVEDO. José Lúcio de. História dos cristãos novos portugueses. Lisboa: Clássica, 1975. 2.ed. p.43. TAVARES. Los judíos en Portugal. p.38. 100

TAVARES. Los judíos en Portugal. p. 38-41.

228

gueto em Lisboa, desta vez no arrabalde islâmico de Alfama. No século XV, estes espaços já se mostravam insuficientes e ocorre um espraiamento pela paróquia de São Julião, em casas de propriedade do rei alugadas a judeus. As grandes judiarias são quase que cidades autônomas enquistadas no corpo urbano, e contavam com diversos equipamentos que garantiam essa autonomia. Na Judiaria Velha de Lisboa, existiam uma sinagoga grande, outra menor, a casa da comuna, a cadeia, três escolas religiosas,

ou

midras

(beth-

hamidrash),

uma

biblioteca,

um

hospital, uma hospedaria, banhos públicos masculinos e um açougue para a matança ritual. Em Évora, existia

equipamento

urbano

semelhante. Espécie de gueto dentro de outro gueto era a existência de mancebias dentro das judiarias. Em 1488,

JUDIARIA DE ÉVORA

os

judeus

de

Lisboa

representaram a D. João II que

“houvera sempre judias mundanas que faziam sua mancebia e assim viviam”; no entanto, os judeus que as mantinham acabavam sendo acusados de rufiões, criando uma séria dificuldade legal para a comunidade.

A comuna sentia por sua honra, a conveniência que houvesse nelas as judias mundanas e tivessem judeus que se encarregassem delas para se livrarem dos ditos pecados e outras cousas que podiam acontecer: requeria, portanto que o soberano desse a isso algum remédio, e mandasse que, posto que algum judeu tivesse cargo de

229 judia mundana, o não prendessem como rufião.101

A carta régia, com a resposta positiva dada aos judeus de Lisboa, foi enviada a todas as justiças do reino e, portanto, pode ser entendida como uma licença geral para a manutenção de mancebas nas judiarias. Neste aspecto, não havia diferença entre a maioria e as minorias religiosas. A freqüência às prostitutas era considerada como um mal ou pecado menor, que evitava que as mulheres honestas fossem forçadas ou o desencaminhamento de donzelas de família. No caso dos judeus, a questão era agravada pela proibição, punida com pena de morte, de intercurso carnal com mulheres cristãs, na quais estavam incluídas as mancebas da religião dominante. O dia-a-dia de uma importante parcela dos judeus não se desenrolava, no entanto, nestes grandes guetos, mas nas pequenas judiarias espalhadas por todo o território português. A legislação impunha a segregação espacial assim que a população judaica, de uma vila ou cidade, atingisse as 10 famílias. A grande maioria das judiarias não passava de uma ou duas pequenas travessas, preferencialmente situadas nas áreas de concentração do comércio e do artesanato. Isto significa que costumavam estar situadas no centro urbanizado, junto às igrejas. Todavia, existem muitos casos de judiarias situadas fora deste núcleo central. Nas comunidades menores, a segregação parece algo frouxa. É o que indica, por exemplo, uma inquirição das rendas urbanas feita em Ponte de Lima, no século XV. Nela, observa-se que não há judeus morando fora da rua da Judiaria. Contudo, eles não estão isolados pois tal rua comporta uma curiosa mescla. Vivem lado a lado diversos mesteirais cristãos, um cavaleiro, um abade, e apenas 5 famílias judias. Na rua, moram sozinhas algumas padeiras cristãs, situação impensável nas judiarias maiores onde as vendedeiras da religião majoritária estavam proibidas de entrarem desacompanhadas de algum homem. O caso extremo de proximidade é uma casa, talvez dividida em duas, onde moram João Pires, tanoeiro, e Isaque Cru, judeu. O reduzido número de fogos

101

GAMA BARROS, Henrique. Judeus e mouros em Portugal em tempos passados; apontamentos histórico-etnográficos. REVISTA LUSITANA. Lisboa, v.35, n.1-4, 1937. p.182.

230

judaicos, talvez explique esta tolerância.102 São situações como estas que levam Maria Ferro Tavares a duvidar da existência de judiarias e comunas em todos os locais onde a documentação se refere a esta minoria. A autora argumenta que, em muitos casos, o número de famílias hebraicas era demasiado escasso para justificar a abertura de uma casa de oração. Nesses casos, teríamos sub-judiarias, submetidas ao domínio das comunas situadas nas grandes cidades. Caso do Porto, em cujo cemitério judaico eram enterrados os mortos de Arrifana e Azurara.103 No entanto, a judiaria de Ponte de Lima era uma comuna legalmente constituída, a confirmar pela moradia de um rabi no local. Durante o século XV, há um crescimento da população hebraica e a conseqüente superlotação de muitas judiarias. Em alguns casos, a questão foi resolvida com a transferência dos guetos para locais mais espaçosos, como ocorreu em Braga. Em outras localidade, diversos judeus, individualmente ou comunas inteiras, obtiveram permissão dos corregedores e do próprio rei para morarem fora das áreas restritas. Nesses casos, a tendência observada não é a de que eles se dissolvessem pelo tecido urbano, mas o estabeleçam outros núcleos de concentração hebraica, mesmo que não fossem propriamente novas judiarias. Dois motivos levavam a isso. O primeiro representa de uma tendência que podemos qualificar de natural. Por razões de ofício, eles buscam aquelas ruas onde se concentram as atividades comerciais e artesanais. O segundo motivo de concentração é dado pelos próprios instrumentos de concessão, que discriminam exatamente em que rua ou ruas devem morar os judeus que não mais cabem nos guetos. Tendencialmente, esses novos locais de concentração transformam-se em uma nova judiaria ou, quando a localização permite, são englobados nos guetos preexistentes. Esses processos de expansão não ocorrem sem uma boa dose de conflitos, e são provocados pela própria localização das judiarias naquilo que podemos chamar de

102

Ver ANDRADE. Um espaço urbano medieval. p.205. p.210-13.

103

TAVARES. Los judíos en Portugal. p.17.

231

centro artesanal e comercial das cidades. Tal localização não permitia que esses espaços de segregação crescessem da mesma forma que o restante da cidade. A expansão das judiarias não se dava por incorporação de áreas rurais ou suburbanas, ou pouco adensadas, mas, necessariamente, pela aquisição de outros segmentos do núcleo central e nobre das cidades; ou seja, por áreas onde estavam instalados comerciantes e artesãos cristãos. O resultado não é difícil de adivinhar. Em 1416, a comuna judaica e a câmara de Évora disputavam se a rua da sapataria deveria ou não ser incluída na judiaria.104 Por vezes, o crescimento da comunidade hebraica levava a verdadeiros impasses espaciais, forçando as partes envolvidas a recorrem à mediação de escalões administrativos cada vez mais altos, na tentativa de solucioná-los. Foi o que ocorreu na vila algarvia de Lagos.

A vós, juizes da nossa vila de Lagos, e a quaisquer outros juízes, etc. Sabede que perante nós foi apresentado um instrumento de agravo, feito por tabelião da dita vila em 19 de janeiro de 1461, no qual se continha que estando nesta vila por correição o ouvidor por D. Sancho de Noronha, conde de Odemira, comparecera perante ele José Alferce, judeu, morador da mesma vila, e lhe apresentara uma nossa carta, que a comuna dos judeus de Lagos de nós tinha, requerendo-lhe da nossa parte, em nome da comuna, que lha cumprisse. Por esta carta lhe mandávamos que, porquanto, a judiaria da dita vila era mui pequena, em a qual não podiam viver nem morar muitos judeus que, em tempo do infante, meu tio, que deus haja, à dita vila vieram morar, o qual, vendo como se em a dita judiaria não podiam acolher nem viver, lhes dera licença que morassem e vivessem fora da dita judiaria, onde assim ora viviam; se informasse bem e visse se os que viviam fora da judiaria podiam viver dentro, e se se poderão meter as casas em que eles [????] dentro em ela. Que o ouvidor, em cumprimento da carta, com os homens bons da dita vila se fora à judiaria e achara que era verdade que ela de seu começo não fora ordenada nem era maior que uma pequena travessa em que cabiam poucos judeus, e que os judeus que em ela moravam eram tantos que em ela não poderiam caber: que depois que ele ouvidor começara na vila a fazer correição, o meirinho da correição demandava os judeus perante ele por assim morarem fora da judiaria; e ele ouvidor, vendo como em uma rua, que era das principais da vila, por ser acerca da judiaria, muitos judeus tinham casas próprias, quisera ordenar de meter a dita rua em a judiaria; mas os bons da vila, assim homens como mulheres, se escandalizavam com isso e agravavam de tal maneira, que ele ouvidor se temera de o fazer, por ser a dita rua uma das principais e de boa serventia; e assim não soubera dar-lhes remédio, e mandara à comuna que se socorresse à nós. Pedindo-nos o dito José Alferce, em nome da comuna, que sobre isso lhe houvéssemos algum remédio com direito e mandássemos que eles pudessem morar e viver fora da judiaria, pois que dentro nela não podiam viver e morar; nós, em relação com os do nosso desembargo, acordamos e temos por bem e mandamo-vos que, visto a resposta do ouvidor, vades pessoalmente à judiaria ver se os judeus, que moram fora dela, podem todos morar dentro; e se achardes que dentro podem morar, os

104

GAMA BARROS. Judeus e mouros. op. cit. v.34, n.1-4, 1936. p.196.

232 façais dentro morar; e achando vós que dentro não podem caber, os deixareis morar fora, como moravam até agora por licença do dito infante, meu tio; e seja o mais perto das judiarias que lhes for possível. Carta régia de D. Afonso V, 18 de maio de 1463.105

A questão deve ter permanecido sem solução pois, em 1482, os moradores de Lagos queixavam-se de que na vila “moram grande parte dos judeus fora da judiaria”.106 Na mesma época, um processo semelhante está ocorrendo em Montemor-o-Novo. Aparentemente, os judeus abandonaram o gueto da cidade e estavam paulatinamente constituindo um novo e melhor localizado. O fenômeno não passou desapercebido aos olhos dos moradores cristãos e foi levado às cortes pelo procurador da câmara. Segundo ele, os judeus deixavam deliberadamente o antigo gueto arruinar-se, e depois “dissimuladamente se vão à Vossa Senhoria para viverem na cidade, dizendo-vos que o fazem por não caber na ditas judiarias”. A questão se resume ao fato deles terem ocupado aquilo que era considerado “a melhor rua da vila”, segundo as próprias palavras empregadas no agravo enviado ao rei. A câmara até se dispunha a aumentar a antiga judiaria, caso ela se demonstrasse insuficiente, desde que não incluísse a rua em questão.107 No mesmo período, outro ponto de conflito eram as casas que tinham portas e janelas que abriam tanto para a judiaria como para a “cristandade”. Essa situação era freqüente e ocorria com a cumplicidade do próprio rei que concedia tal tipo de privilégio a alguns de seus favoritos.

Nós El Rei por este alvará damos licença e lugar a Lázaro Latam, judeu morador em esta nossa cidade de Lisboa, que ele possa abrir nas suas casas que ele tem na Judiaria Grande da dita cidade uma porta para a cristandade e servir-se dela de dia e de noite como lhe aprouver, ele ou qualquer outro judeu que nas suas ditas casas morem, posto que as ditas casas tenham porta aberta para a judiaria. Isto sem embargo das nossas ordenações e defesas feitas em contrário. [....]

105

Chancelaria de D. Afonso V, livro 9, folha 68. Transcrito em GAMA BARROS. Judeus e mouros. op. cit. v.34, n.1-4, 1936. pp.258-9. 106

Chancelaria de D. João II, livro 2, folha 54 verso. Transcrito por GAMA BARROS. Judeus e mouros. op. cit. v.34, n.1-4, 1936. pp.263. 107

GAMA BARROS. Judeus e mouros. op. cit. v.35, n.1-4, 1937. p.216

233 Lisboa, 29 de setembro de 1461.108

Concessão régias desta natureza não eram aceitas tacitamente pela população cristã. Nas cortes de Santarém, de 1468, a questão foi levantada pelos concelhos de Viseu e da Covilhã, argumentando o “pouco serviço de Deus” que havia em terem os judeus essa dupla entrada em suas casas. Em ambos os casos, D. Afonso V atendeu o pleito dos procuradores das câmaras e ordenou que as portas e janelas das casas de judeus que abriam para a parte cristã das cidades fossem fechadas no prazo de quinze dias. Perceba-se o jogo duplo do monarca. Com poucos anos de diferença, ora ele concede permissões, como a dada a Lázaro Latam, acima mencionada, ora manda fechar portas e janelas das judiarias de Viseu e Covilhã, havendo por ‘muito mal’ que elas existissem.

Isto havemos por muito mal, a mandamos que da publicação deste a quinze dias primeiros seguintes se cerrem todas as portas e janelas das casas particulares que vão contra a cristandade, sem embargo de qualquer sentenças, privilégios nem alvarás que em contrário tenham; e quanto às janelas queremos que se cerrem nesta maneira, a saber, de pedra e cal, e à maneira de seteiras, com um ferro por meio delas ao longo, as quais sejam altas do chão e em guisa que não tenha lugar para olhar, salvo para receber lume, e de outra guisa não.109

Em alguns casos, as portas e janelas para a cristandade não se destinavam ao acesso de algum privilegiado mas eram uma extensão do comércio judaico. Os judeus de Cintra receberam permissão para que suas lojas tivessem portais voltados para a parte cristã da vila. Os moradores cristãos queixaram-se a D. Afonso V que esses portais estavam sendo utilizados como acesso. Em resposta, o rei não ordenou o fechamento, mas que fizessem “em os ditos portais umas verdizelas* de altura que dêem em um homem pela cinta” para que não fossem usados como porta e que nos domingos e festas cristãs não começassem a vender suas bufarinhas* antes de ser dita a missa. O

108

109

LPA. p.32-3.

Chancelaria de D. Afonso V, livro 28, folha 51. transcrito em GAMA BARROS. Judeus e mouros. op. cit, v.34, n.1-4, 1936, pp.259-60.

234

alvará afonsino foi reconfirmado por D. Manuel, no mesmo ano da expulsão dos infiéis do reino.110 O capítulo das judiarias portuguesas encerra-se bruscamente com a expulsão dos judeus. Os guetos acabariam assimilados, sem maiores problemas, à trama urbana, assim como deveriam ter sido os judeus, agora cristãos-novos, ao tecido social português. Não foi exatamente o que aconteceu. Nos séculos seguinte, continuou viva a questão judaica, seja pela ação inquisitorial contra marranos e judaizantes, seja pela exclusão dos cristãos-novos dos ofícios das câmaras municipais e outros cargos públicos. Todavia, as novas formas de discriminação já não dizem respeito à constituição do espaço urbano, a não ser pelo uso das praças nos espetáculos periodicamente programados pela Inquisição.

FAZENDO A CIDADE RENASCENTISTA

Em Portugal, o desaparecimento desses espaços de segregação faz parte do processo da passagem da cidade medieval para a renascentista. Durante os reinados de D. Manuel e de seu filho João III, a cidade portuguesa começa a abrir-se. As ruas tornam-se um pouco mais largas e retilíneas e busca-se desatravancá-las. Há um visível aumento do controle sobre o construído. Ocorre, também, uma mudança no padrão das praças, o que pode ser utilizado como um dos eventos que marcam a passagem para a cidade do Renascimento. Se, durante a maior parte do século XV, a praça era um simples alpendre ou um local de concentração de vendedores, a partir do reinado de D. Manuel ela começaria a assumir programas espaciais bastante mais complexos. Em algumas cidades menores, elas passam a reunir edifícios e equipamentos antes dispersos. A concentração de igrejas, casas de câmara, paços de tabeliães, hospitais,

110

GAMA BARROS. Judeus e mouros. op. cit. v.34, n.1-4, 1936. pp.264-5. * bufarinhas [bofominhas no original] = objetos de pouco valor, bugigangas. * verdizelas = armação feita de varas.

235

alpendres e poiais em uma única praça, introduz uma centralidade no espaço urbano, que, até então, não era usual. Nas cidades maiores, há um reforço da multipolaridade, dadas a criação e a remodelação de praças para usos específicos. O reinado de D. Manuel caracterizou-se pelo grande incremento das atividades mercantis e, com elas, uma ênfase nas praças portuárias à beira-rio ou beiramar. Por ordem desse rei, foram criadas desde a grande Ribeira de Lisboa, até pequenas praças de alfândega, às vezes isoladas, às vezes incluídas em espaços mais complexos, em outras cidades. Outra característica do período, foi a urbanização dos rossios. Durante o século XV, muitas cidades portuguesas extravasaram as suas cercas. A diminuição do valor estratégico de muitas construções defensivas já não provocava as conhecidas pressões para impedir o processo. Em muitos casos havia a própria anuência e colaboração dos reis. Em Montemor-o-Novo, por exemplo, D. Afonso V e, depois, D. Manuel isentaram do pagamento de foro “aqueles que no Rossio fizerem casa”. As terras deveriam ser entregues gratuitamente pela câmara, com a condição de que os agraciados construíssem suas casas dentro do prazo de um ano e um dia.111 As decorrências da urbanização dos arrabaldes foram a formação de diversos arruamentos regulares e o aparecimento das praças-rossios. Originalmente, os rossios eram terras apropriadas coletivamente pelos concelhos. À medida que avançou a urbanização, estas terras foram sendo ocupadas individualmente, seja por usurpação, seja por arrendamento, restando uma área residual, os rossios, ou campos das cidades, localizados, quase sempre, fora dos muros, nas imediações de algumas portas. As exceções foram uns poucos rossios interiores, englobados por ampliações de cercas, como foi o caso do de Lisboa. O processo completa-se com a transformação dos rossios em espaços totalmente urbanizados. Formam-se, assim, as características praças-rossios, que ultrapassam, em muito, a escala acanhada dos largos e adros intramuros. A partir do

111

Ver ANDRADE. Montemor-o-Novo. p.68.

236

século XVI, há uma preocupação em dar a estas praças uma forma retangular.112 D. Manuel também foi um grande incentivador da construção de ruas nobres, com arruamentos retilíneos traçados a cordel, marca da passagem da cidade medieval à renascentista. Como já vinha acontecendo desde o século XIII, estas ruas caracterizavam-se pela maior largura e pela imposição de restrições aos elementos de fachada. Ainda em relação às vias públicas, D. Manuel foi responsável por iniciar a desobstrução das ruas de Lisboa, limitando a construção de passadiços, sacadas e balcões.

Nós El-rei fazemos saber a vós vereadores procurador e oficiais desta nossa cidade de Lisboa que a nós praz havendo-o por mais serviço e nobreza da cidade que daqui em diante se não use do foral e capítulo que fala nas sacadas [o qual incluía os passadiços] que se fazem nas casas que possam tomar a terça parte da Rua. E havemos por bem que se não façam mais sacadas novas, salvo por nosso especial mandado. E que as velhas que são feitas querendo-as correger seus donos o não possam fazer e antes se desfaçam de todo E se faça parede direita sob pena de quem o contrário fizer encorrer em pena de vinte cruzados para as obras da cidade. Lisboa, 17 de junho de 1499.113

A medida, no entanto, era restrita a Lisboa, embora alguns autores insinuem que era extensiva a todo o território português. Mais adiante, ela seria reproduzida para algumas cidades onde a interferência régia era grande, caso de Setúbal.114 Já em outras localidades, a introdução de norma semelhante ocorreu por iniciativa das câmaras. Note-se que, tanto as Ordenações Manuelinas, quanto as Filipinas, reproduziram o

112

Embora não se refira ao termo rossio, A. M. Hespanha procurou caracterizar a origem deste tipo de propriedade concelhia. Ver HESPANHA, António Manuel. História das instituições; épocas medieval e moderna. Coimbra: Livraria Almedina, 1982. p.137. Outros autores acabaram fazendo uma grande confusão à respeito. Sérgio Carvalho chega ao extremo de avançar a hipótese de que os rossios foram obtidos pela demolição de partes da cidade muçulmana. CARVALHO, Sérgio L. Cidades medievais portuguesas; uma introdução ao seu estudo. Lisboa: Livros Horizonte, 1989. p.39. No Brasil, o processo repete-se no século XVIII. As sesmarias entregues para a renda das câmaras também se urbanizaram, resultando em diversas praças-rossios. No entanto, prevaleceu a ortografia rocio, indicando, na maioria dos casos, os bairros localizados nestas áreas. Como em Portugal, algumas das praças resultantes deste processo ficaram conhecidas como campos. 113

LPA. p.238. Em 2 de janeiro de 1500, a câmara criou postura ordenando que pedreiros e carpinteiros não fizessem “nenhuma sacada nova nem balcão saído”. Ver, p.240 114

PIMENTEL, Memória, p.272.

237

preceito que autorizava balcões e passadiços, sem observar o que fora disposto pelo próprio D. Manuel para Lisboa.115 No seu papel de capital do nascente Império, Lisboa sintetiza essa ação manuelina. O geógrafo português Orlando Ribeiro caracteriza a transformação urbanística manuelina da cidade.

No tempo de D. Manuel, sofre Lisboa alguns embelezamentos: Ruas que se alargam, arcos da muralha demolidos para facilitar o trânsito, fixação de praças principais, onde se erguem construções opulentas (Terreiro do Paço, assim chamado desde a edificação do Paço de Ribeira, Hospital de Todos-os-Santos e Paço dos Estaus ou Inquisição, no Rossio), limite em altura das casas encostadas à muralha, arranque de oliveiras densas , que davam à gloriosa cidade aspecto rústico.116

Todavia, o mais característico não foi conduzido pelos reis, nem pela câmara. Um empreendimento privado de loteamento, iniciado em 1513, foi responsável pela urbanização de todo um novo bairro, vila nova dos Andrades, situado fora do perímetro da cerca Fernandina. A área tinha sido comprada pela família Andrade durante as perseguições religiosas, em fins do século XV, da viúva de um dos mais influentes judeus do reino, o mestre Guedelha Palançano.117 Segundo o historiador José-Augusto França, a parte mais acidentada próxima ao Tejo foi ocupada por gente ligada a atividades marítimas, segundo princípios ainda tradicionais de arruamento.118 Na metade do século XV, o loteamento avançou para regiões mais planas e o resultado foi um dos mais regulares traçados urbanos do período em toda a Europa. Agora com o nome de

115

MANUELINAS. título XLIX, § 31.

116

RIBEIRO. “Cidade”, In: Dicionário, p.577.

117

FRANÇA, José-Augusto. Lisboa pombalina e o iluminismo. Lisboa: Livros Horizonte,

1965. p.26. 118

Embora o autor não veja aí qualquer interesse no que diz respeito às alterações nos padrões urbanísticos é bom notar que no lado ocidental de Lisboa, tanto na parte intramuros próxima ao segmento ocidental da cerca fernandina, como na parte ribeirinha do loteamento dos Andrades, a malha viária foi produzida com uma ênfase no arruamento e não por justaposição de edifícios. Muitas ruas parecem ter sido traçadas a cordel e observa-se uma tendência ao desaparecimento dos adarves islâmicos, os becos que agora são execrados, nas proximidades da muralha. Muito provavelmente, estes traçados são resultado de um maior controle do processo construtivo por parte da câmara municipal.

238

Bairro Alto de São Roque, devido à igreja homônima ali construída pelos jesuítas, a região foi uma das preferidas pela a elite lisboeta da época. Outra

cidade

a

sofrer

grandes

modificações no período foi Setúbal, que ganhou importância no reinado dos últimos monarcas da dinastia de Aviz, com a produção e comércio do sal. Para o Arquiteto José Manuel Fernandes, ela foi um “modelo perfeito” de vila “criada” portuguesa, a “filha dileta do urbanismo litoral e tardo medievo”.119 A Setúbal medieval era uma bastide

BAIRRO ALTO DE LISBOA

dotada de muralha quadrangular. A cidade desenvolveu-se nas regiões mais altas, a leste do

muro, segundo um traçado bastante regular. No oeste, ficavam áreas alagadiças, como indica o topônimo Sapal, onde a ocupação urbana foi mais lenta e irregular. Trata-se de uma inversão pouco comum do padrão da maioria das cidades portuguesas, no qual as áreas mais antigas correspondem a um arruamento mais tortuoso. Além do Sapal, já fora dos muros formou-se o arrabalde do Troino, com um característico arruamento em grade.120

119

FERNANDES, José Manuel. O Funchal e o urbanismo de raiz portuguesa no Atlântico. In: ACTAS DO I COLÓQUIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA MADEIRA; 1986. Funchal: Governo Regional da Madeira, 1989. v.1. p.252. 120

O Troino ilustra mais um caso de desenvolvimento regular da expansão urbana extramuros. Todavia, aquela área foi muito afetada pelo terremoto de 1755 e não se sabe se a malha viária ali existente é fiel à do passado ou uma reconstrução já segundo padrões do século XVIII.

239

SETÚBAL

No início do século XVI, D. Manuel se propôs a remodelar a região do Sapal, com a construção de uma praça que agrupava novos edifícios para o Paço do Trigo, a Casa da Câmara, a Cadeia e os Açougues. Aos poucos, a praça do Sapal foi incorporando outros espaços até resultar na sua forma atual, caracteristicamente fragmentária. Com estas obras, a zona mais viva da cidade desloca-se da freguesia de Santa Maria para a de São Julião, onde se abriu a nova praça e se concentravam as atividades comerciais e artesanais.121 D. Manuel não chegou a ver concluídas todas as suas propostas. D. João III, num trabalho conjunto com seu primo, o Mestre de S. Tiago, senhor de Setúbal, deu continuidade às obras e ampliou-as. Muitas das ruas da cidade receberam calçamento, retiraram-se os balcões e passadiços remanescentes e foram feitas melhorias nos sistemas defensivo e de abastecimento de água. Em 1533, um rol de melhorias urbanas a serem executadas em Setúbal foi enviado aos Mestre da Ordem de São Tiago. Por ele, podemos conhecer algumas das expectativas sobre a praça do Sapal (atualmente do Bocage). Além de conter os edifícios previstos e iniciados por D. Manuel, ela deveria ser ampliada e parcialmente rodeada de alpendres, onde seriam instalados os vendedores. Aparecem ainda outras ações típicas das intervenções urbanas do século XVI.



121

SILVA, Custódio Vieira da. Setúbal. Lisboa: Editorial Presença, 1990. p.31.

240 Se alargue a praça mais, tirando a mota* das casas do Cavalinho, e assim as outras a par delas, e as em que pousa Braz Dias, até Nuno Fernandes, nosso veador, e Fernão de Miranda, e também o licenciado vosso físico; para a praça se tirem as casas que houver, segundo tudo pratiquei convosco, e há feito debuxo. 8º Se fará alpendre ao longo das casa de Lourenço Rodrigues, até a travessa, para vender nele. 9º Outro alpendre se fará, depois da mota do licenciado ser fora, ali naquela parte. 18º Vereis o que pode custar a herdade que está no porto do trigo, tornando-se para casas e rocio: que parece que seria bom para desenvolvimento da vila. 19º Mandareis tirar os balcões, que ainda houver, e se parecer que seus donos recebem perda, fazei-a compor.122

Interessante notar a existência de um debuxo (desenho, ou projeto) da praça. Isto ainda era pouco usual e a maior parte das intervenções urbanas eram feitas através de diretrizes estabelecidas no próprio terreno. Contudo, não se trata de uma exceção, pois no período joanino há um aumento de referências à utilização de debuxos. A representação mais antiga que se conhece da praça do Sapal é da virada do século XVI para o XVII. Nesta planta há uma grande deformação na direção leste-oeste e as outras áreas, de urbanização mais antiga que a da praça, estão reduzidas às vias principais. Ela também regularizou excessivamente os traçados. Deve, portanto, ser lida mais como uma representação do desejável para o século XVI, do que como um esquema que se propusesse a ser fidedigno. Braga, ao norte, também SETÚBAL123

sofreu diversas alterações em seu espaço

urbano,

durante

as

três

122

Carta e apontamentos que o referido monarca [D. João III] dirigiu ao mestre da Ordem de S. Tiago. Citado em PIMENTEL. Memória, p.268-72. 123

Praça de Setúbal desenhada com base na planta reproduzida em RAU, Virgínia. Estudos sobre a história do sal português. Lisboa: Editorial Presença, 1984. p.19.

241

primeiras décadas do século XVI. Por se tratar de uma cidade bispal, não é de estranhar que o condutor das modificações tenha sido D. Diogo de Souza, seu bispo e senhor, que empreendeu a abertura de novas ruas, para as quais impôs que as edificações fossem de materiais nobres. Foram abertas novas portas na muralha medieval, próximas às quais foram deixadas áreas de reserva: os diversos campos do bispo.124 Essas ações desenharam uma estrutura urbana que persistiu até o século XIX. Há, no entanto, um certo mito sobre a presença de um renascentismo italiano em Braga, provocado pelo fato de D. Diogo ter vivido em Roma nos tempos do papa Júlio II. O sempre mencionado radiocentrismo de sua malha urbana, que alguns autores chegam a considerar um presságio barroco, em nada difere do que ocorre em dezenas de outras cidade portuguesas dos séculos anteriores.125 Mesmo os “campos” criados pelo bispo, nada são além de um outro nome para os rossios, que, no período, aparecem em todas as cidades que estavam extravasando os limites de suas cercas. Os de Braga são mais notáveis por terem assegurado uma boa quantidade de áreas livres, do que por sua forma. Basta compará-los ao próprio rossio de Lisboa, maior e mais regular do que os campos de Braga. No Porto, o que se observa é um crescente avanço sobre as áreas ainda rurais existentes no interior de sua muralha. Estas terras pertenciam ao bispado ou a diversos convento de religiosos. Entre 1490 e 1520, os frades Lóios e, depois, os de São Bento, vão conduzir um processo de loteamento de suas hortas. O resultado foi a completa transformação e urbanização da antiga rua do Souto. Contudo, maior envergadura teve a criação da Rua da Flores por ordem expressa de D. Manuel.

A qual rua era pelo meio dos chãos e enchidos e hortas que da Mesa Episcopal são e dele dito Senhor Bispo, os quais chãos jazem no meio quase da dita cidade e pelos ditos chãos jazerem assim no meio da dita cidade e a disformavam por não serem

124

OLIVEIRA, Eduardo Pires et alii. Braga: evolução da estrutura urbana. ESTUDOS BRACARENSES, Braga, Câmara Municipal. n.3, 1982. 125

FERRÃO. Projecto. p.24.

242 feitos em edifícios.126

É importante perceber o argumento estético utilizado para justificar a abertura da nova via: a mescla de paisagens rurais e urbanas tornava a cidade disforme. A boa forma urbana era aquela resultante da disposição lado a lado de edifícios, ou seja, a rua totalmente ocupada. A concessão de lotes nestas ruas nobres era acompanhada de uma série de preceitos construtivos e o compromisso dos proprietários ou arrendatários de construírem rapidamente em seus lotes. Na rua das Flores, em troca da celeridade da ocupação e da obediência aos preceitos arquitetônicos, foram dadas facilidades excepcionais aos moradores. O laudêmio cobrado pela mitra era 5 vezes inferior ao de costume e houve emprazamento perpétuo dos lotes, o que era proibido pelo direito canônico.127 O resultado, porém, foi bastante aquém das expectativas e a rua das Flores, como era comum acontecer, demorou décadas para ficar ‘pronta’. Uma das cidades que mais se envolveu com a reestruturação renascentista de seu espaço urbano foi Coimbra. O processo inicia-se com a regularização e ampliação da rua da Calçada, uma das principais vias da cidade, que fazia a ligação entre uma das entradas e o terreiro de Sansão, nas imediações do convento de Santa Cruz. No entanto, os frades Crúzios foram relutantes em conceder as áreas sobre o seu domínio para expansão urbana. Aliás, uma prática bastante comum. Para levar os seus intentos adiante, os vereadores tiveram que recorrer ao rei. Em 1520, D. João III passou uma provisão à câmara, autorizando a desapropriação “do quintal do Mosteiro de Santa Cruz que está no topo de uma rua que dizeis que quereis endireitar”. Em troca, os frades deveriam receber terras em outra região da cidade.128 Aparentemente, a condução do processo de inclusão das áreas próximas ao mosteiro na malha urbana escapou das mãos da câmara e foi assumida pelos próprios frades de Santa Cruz. Frei Brás de Braga, é apontado como o responsável pela

126

OLIVEIRA. Braga. p.245.

127

OLIVEIRA. Braga. 251.

128

CARVALHO. Livro 2º da correia. p.64.

243

regularização do terreiro de Sansão e pela abertura da Rua da Sofia, “a mais nobre cousa da cidade”.129 As fachadas das habitações construídas nesta rua deveriam ser, obrigatoriamente, de alvenaria e os vãos, guarnecidos com cantaria. Com a transferência da universidade para Coimbra, em 1537, a rua da Sofia acabaria concentrando diversos colégios e aposentos de professores e estudantes. D. João III acompanhou de perto a configuração desta rua, envolvendo-se muitas vezes com medidas polêmicas destinadas a consolidar a instalação da Universidade. Desapropriou terras para a construção e ampliação dos colégios e obrigou os moradores a alugarem as suas casas para dormitório dos lentes. Apesar de verificarmos a forte presença de Frei Brás de Braga e D. João III na reformulação renascentista do espaço urbano de Coimbra, seria um engano atribuirlhes exclusivamente a responsabilidade por essas obras. A atuação do rei, por sinal, foi bastante contraditória. Assim com ajudou a abrir algumas ruas, por expressa ordem sua, outra foi fechada; neste caso, para atender as conveniências dos jesuítas. De outra parte, também é patente que a câmara de Coimbra, usando de seus poderes de almotaçaria, atuou na configuração deste mesmo espaço.130

129

Sobre as transformações de Coimbra, no período, ver DIAS, Pedro. A arquitectura de Coimbra na transição do Gótico para a Renascença. 1490-1540. Coimbra: Epatur, 1982. (Tese de doutorado em História da Arte). 130

O quadro que acabamos de traçar pode ser resultado de ilusão documental. Adesão aos valores renascentista da autoria, que privilegia a ação de alguns indivíduos, em detrimento de instâncias coletivas que é verdade assumem pequenas alterações renascentistas, sem se afastar muito do modo corrente de fazer.

A CIDADE DOS PRIMEIROS TEMPOS DAS CONQUISTAS

Quase todas as cidades dos primeiros tempos da expansão ultramarina portuguesa

nascem

de

uma

construção

fortificada erguida pelos capitães donatários, ou por capitão, nomeados pelos reis. O local escolhido para a construção do um reduto fortificado

costumava

ficar

relativamente

afastado do mar. Acompanhando a tradição urbana medieval portuguesa, escolhia-se a encosta de alguma colina ou um pequeno planalto sobre uma falésia. Isto se repete no Funchal, na Madeira; em Ponta Delgada e Angra, nos Açores; e na Povoação de São Tomé, no arquipélago de mesmo nome; todas do século

VILA DO PRÍNCIPE

XV. Como toda a regra, esta também

comporta exceções. São Felipe de Cabo Verde, apesar da proximidade de uma falésia, não se desenvolveu sobre ela mas, no fundo de um vale escavado por uma ribeira perpendicular à costa. Algo semelhante ocorreu na vila do Príncipe, no arquipélago de São Tomé, outra cidade linear e perpendicular à linha do mar.

245

O crescimento dessas cidades não ocorreu, como se poderia imaginar, de beira-mar para o interior. A trama urbana tem origem no entorno deste acastelamento, de onde avança em direção ao mar. A regularidade ou irregularidade do arruamento dependerá dos obstáculos topográficos encontrados neste movimento. Completada a urbanização entre o núcleo da fundação e o mar, a cidade se espalha ao longo da costa. Uma vez que o mar é o elo de ligação com a metrópole, os núcleos urbanos eram instalados em sítios que atendessem à necessidade inerentes de atracação das naus. Há uma nítida preferência por enseadas, com diferentes raios de curvatura, o que acabaria por impor uma configuração “bananiforme” a estas cidades.132 No geral, o esquema de crescimento dessas cidades repete aquilo que já dissemos para a cidade medieval. Aos poucos, elas passam a incorporar os caminhos suburbanos e rurais do entorno, os quais delinearam-se condicionados por certos elementos de interesse, tais como poços d’água, locais de lavagem de roupa, moinhos, potreiros, matadouros e capelas, e pela topografia. Como resultado, observa-se que no centro de curvatura da ‘banana’ há um núcleo de arruamentos mais rígidos, compondo quadras mais ou menos regulares, traçadas a cordel, e à medida que há um afastamento deste centro, o traçado assume formas mais livres, pela incorporação dos caminhos suburbanos. Outra característica das cidades das ilhas é a ausência de praças em sua conformação inicial, o que lhes confere uma certa feição medieval. Como na maioria das cidades do continente, as praças foram abertas depois de consolidada a malha urbana. Praça muito direita e muito fermosa A carreira de urbanista de D. Manuel iniciara-se, muito antes de a fatalidade tê-lo colocado no trono português, sucedendo o cunhado. Ainda como Duque de Beja e

132

O termo ‘bananiforme’ foi empegado pelo historiador Luís Filipe Reis Thomaz, em um debate com o arquiteto José Manuel Fernandes. Ver FERNANDES. O Funchal e o urbanismo. p.267. Sobre a evolução dos traçados urbanos de Ponta Delgada e Angra ver SOUZA, Nestor de. A arquitetura religiosa de Ponta Delgada nos séculos XVI a XVIII. Ponta Delgada: Universidade dos Açores, 1986. p.31 e ss. Ver também FERNANDES. Angra do Heroísmo. p.33-9.

246

mestre da Ordem de Cristo, vamos vê-lo urbanizando cidades de seu senhorio nas ilhas atlânticas. O exemplo mais característico da ação de D. Manuel ocorreu na vila madeirense do Funchal onde, primeiro como donatário e depois como rei, conduziu, à distância, a abertura de novas ruas, a edificação da alfândega e a criação de uma praça. Mais tarde, tentou amuralhar a cidade, um projeto sucessivamente adiado pela resistência dos moradores a arcarem com os altos custo.133 De todos esses elementos urbanos nascidos da intervenção do duque, a praça é a mais peculiar e interessante. Junto com o terreno, doado por ele em 1485, o concelho recebeu um programa construtivo. A praça destinava-se à casa da câmara, ao pelourinho, à igreja matriz. Como era obrigatório na época, ela também daria lugar a um alpendre de vendedores. A documentação disponível sobre a construção da praça funchalense revela que na sua concepção, além da definição prévia de seus elementos arquitetônicos, pesaram outros requisitos. A praça não poderia ficar em ‘qualquer lugar’ e sua localização no tecido urbano foi fruto de uma decisão que costuma ser negligenciadas pelos estudiosos, uma vez que o resultado, aos olhos de hoje, parece algo muito natural. D. Manuel era proprietário de uma imensa área livre anexa à vila: o Campo do Duque. No entanto, ele desejava construir uma praça central e para atingir esse objetivo não hesitou em mandar demolir alguns edifícios da cidade. O requisito da centralidade aparece na própria doação do terreno, escolhido pelo duque por estar em “lugar mais conveniente no meio da povoação”.134 Perceba-se que os alpendres-praças, antes mencionados, eram feitos onde fosse possível encontrar espaço. Não existia uma exigência programática à respeito. Tanto servia uma lateral da igreja, como um largo próximo à entrada, como as sobras da demolição de uma muralha. Eram mais um tipo de equipamento do que propriamente

133

Ver GONÇALVES, Iria. Um projecto adiado; a muralha quatrocentista do Funchal. In: ACTAS DO III COLÓQUIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA MADEIRA. Funchal: Secretaria Regional do Turismo e Cultura; Centro de Estudos de História do Atlântico, 1993. 134

ARAGÃO, António. Para a história do Funchal; pequenos passos da sua memória. Funchal: Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1979. p.56.

247

um elemento de definição espacial da cidade. Eis a mudança profunda introduzida por D. Manuel. À partir dele pode-se falar com mais propriedade em espaços ou cidades renascentistas. A praça central, tentativa de fazer coincidir uma centralidade geográfica com outra simbólica, tem uma trajetória bastante antiga na história da forma urbana européia. Em muitas bastides medievais aparecem praças centrais onde ocorre o mercado. Embora possamos encontrar muitos exemplos, menos freqüentes foram aquelas em que a definição espacial era dada por edifícios cívicos e religiosos. Os adros das igrejas, por vezes situados no centro das bastides, em muitos casos comportavam atividades comerciais. No entanto, tratava-se de uma espécie de concessão precária (e interessada) dada pelos religiosos aos comerciantes. Preferencialmente, comércio, religião e administração isolavam-se cada um em seu espaço específico. As cidades medievais ibéricas também eram, em sua grande maioria multipolarizadas. Nas cidades ‘reconquistadas’ foram criados muitos adros de igrejas, mas o comércio e as sedes do poder local permaneceram errantes. Por um largo período, os concelhos municipais não contaram com locais específicos para reunião. Usavam os adros das igrejas, as torres de menagem das fortificações ou mesmo uma casa particular. Apenas algumas cidades maiores contavam com os seus paços ou casas do concelho. Quanto ao comércio ambulante, já vimos que alguns de seus ramos foram reunidos nas praças-alpendres, sem que houvesse uma exigência específica de localização. Tais alpendres eram construídos em qualquer espaço residual disponível. Não havia a exigência de que ocupassem o centro geográfico das cidades. Por tudo isto, percebe-se o quanto era inovadora a proposta de D. Manuel. Todavia, ele concebera apenas um programa e não uma forma. Esta fora decidida no próprio terreno, quando se reuniram o ouvidor e “os oficiais e homens bons e mandaram medir os ditos chãos e acharam que eram necessários se derrubarem umas

248

casas que estavam nuns chãos de Manuel Afonso”.135 Mais tarde, outras casas foram derrubadas para dar forma à praça. Como se percebe, apesar de ter-se originado de um programa expresso de antemão, não podemos imaginar que a praça funchalense tenha sido alvo de um projeto, se entendermos por projeto, uma concepção prévia total, posteriormente implantada no terreno. Esta maneira de projetar praças já era utilizada na Itália quatrocentista, mas não em Portugal. Ali, a maior parte das decisões eram tomadas durante longos períodos de implantação, incorporando acidentes de natureza muito variável e a intervenção das mais diversas personagens. A praça do Funchal exemplifica perfeitamente esta forma de ação. Por conta de um conflito fundiário, ficou-nos uma documentação preciosa que permite apreender a atuação dos múltiplos agentes envolvidos no seu fazer. Tal conflito teve origem na realocação dos segmentos não aproveitados dos terrenos das casas demolidas por ordem de D. Manoel para a criação da praça. Um dos proprietários quis incorporar às suas propriedades uma destas sobras e enviou uma petição à câmara, propondo a compra do “pequeno de chão” remanescente que confrontava com sua casa.

Senhores Francisco Vieira faço saber a vossas mercês como na praça que ora faz, se derrubaram umas casas que descobriram as casas em que eu vivo que estão juntas com as de João Saraiva e por que nas casas de João Saraiva ficam dois recantos muito feios, principalmente um que está no meio das casas, que faz a praça muito feia porque sai fora em uma vara e meia, pouco mais ou menos, porque [o dito?] recanto do meio, até entestar comigo no cabo*, é cousa que desfeia muito e achegando eu com minhas paredes até o olivél* do dito recanto fica a praça muito direita e muito fermosa e as boticas que se fazem para vender irão direitas e não haverá aí recantos que são odiosos e perigosos; digo que se vossas mercês são contentes mandem avaliar este pequeno de chão e eu quero pagar quanto que for avaliado e quero chegar com minhas paredes em direito no canto e não quero, posto que o pudesse, abrir portais,

135

Auto de posse das terras doadas pelo duque. 5 de novembro de 1485. Transcrito no apêndice documental de BRÁSIO, António. O padroado da Ordem de Cristo na Madeira. ARQUIVO HISTÓRICO DA MADEIRA. v.1960-1. p.214.

249 salvo janelas de ares e o telhado com ameias e tudo ameeiro do qual que pareça praça, [....].136

Obviamente, o que moveu Francisco Vieira foram os seus interesses particulares. Ele não se dispôs a nivelar o alinhamento predial apenas em função do ‘bem comum’ mas, oportunisticamente, aproveitou-se de um momento favorável para expandir o seu imóvel, comprando uma fração de terreno por preço abaixo do de mercado. O antigo ocupante, que foi desapropriado e indenizado pelo donatário, desejava permanecer com o restante de seu antigo terreno. Levou sua pretensão à justiça, onde foi derrotado. Argumentava que se tivesse havido pregão público ele teria arrematado por mais do que a avaliação providenciada pela câmara. É bom que se saiba que Vieira era pessoa de confiança do Rei, fidalgo da casa real e escrivão dos contos da Madeira. O caso caracteriza algo que foi uma constante na conformação das cidades de Portugal e suas colônias: as intervenções nos espaços urbanos foram usadas como moeda de troca política, seja para favorecer algum apaniguado, seja para punir um desafeto. Isto não desqualifica os argumentos que embasam a petição enviada por Francisco Vieira, que são excelentes indicadores das expectativas à respeito de como deveria ser uma praça na virada do século XV para o XVI. Para a praça ser formosa, ela precisava aproximar-se da regularidade de uma figura geométrica pura, no caso um retângulo. Outro aspecto não negligenciável é que o enobrecimento da praça se dá não só pela presença dos edifícios da câmara e igreja, mas por edificações notáveis de particulares. As “janelas fermosas que nobrecessem a dita praça as quais ele fez de mármores e ameias” foram um dos argumentos que favoreceram Francisco Vieira, na pendência judicial sobre a compra do terreno.137

136

Auto de uma petição feita por Francisco Vieira à câmara do Funchal. 25 de janeiro de 1525. Transcrito no apêndice documental de COSTA, José Pereira da. Notas sobre o Hospital e a Misericórdia do Funchal. ARQUIVO HISTÓRICO DA MADEIRA. v.1964-66. p.168-9. * no cabo = no fundo * olivél = nível 137

Treslado de um alvará do rei de 20 de agosto 1529. COSTA. Notas sobre. p.170-1.

250

Nos autos da avaliação da terra em litígio emergem outras personagens que participaram da configuração da praça: João Afonso e Rui Dias, os partidores da cidade, outro nome para designar a função de arruador.138 Eles foram chamados para, em companhia do procurador da câmara, realizarem a medição do terreno. Na prática, coube a eles a fixação do preço da área em oito mil reis, o que depois foi confirmado pelo avaliador. Na documentação, relativa o processo de delimitação e avaliação do terreno pelos arruadores, dois detalhes merecem a nossa atenção. Um deles é a existência de oficiais municipais com esse encargo numa nascente cidade colonial e num período tão recuado. O outro, é a afirmação de que o terreno seria “cordado”.139 Da maneira pela qual foi feita a praça do Funchal, podemos extrair diversas conclusões. O seu programa era muito mais complexo que o dos alpendres de vendedores. Apesar de contar com um desses alpendres, ela fora pensada como de um espaço aberto centralizando a malha urbana. Esta praça central, cívica, religiosa e comercial, não foi, portanto, o resultado de uma coincidência ou de um crescimento ‘orgânico’. Ela também não foi o resultado de uma experiência ‘histórica’, acumulada no próprio local, e não resultou simplesmente de uma exigência estética originada e transposta para a Madeira por intervenção direta do grande-donatário. Se, por um lado, D. Manuel determinou tanto a sua localização como os elementos constitutivos, por outro a sua configuração final resultou de decisões tomadas pela câmara e homens bons do Funchal. Ela, portanto, insere-se na charneira entre uma nova função simbólica da praça central, que podemos identificar com o renascimento, e as praticas correntes de agenciamento do espaço urbano, adotadas pela câmara. Quer pelos elementos que a compunham, quer por sua localização, quer pelo cordeamento que lhe conferiu a forma aproximada de um retângulo, a praça criada por

138

Essas duas funções coincidem apenas parcialmente. O oficial partidor dedicava-se à medição e partição de terras em geral. O centro de sua atuação era a área rural, mas também exercia o seu ofício na cidade, tratando do loteamento urbano. O ofício de arruador, por sua vez, era eminentemente citadino. Nas localidades menores esses ofícios costumavam ser atribuídos a uma mesma pessoa, ora com o título de partidor ora de arruador. 139

COSTA. Notas sobre. p.169.

251

D. Manuel é bastante precoce no quadro da forma urbana mundial e ibérica, o que não têm merecido o devido destaque pelos estudiosos da cidade portuguesa, em geral. A tendência historiográfica é considerar as praças que seguem o protótipo estabelecido pela do Funchal como réplica desleixada das plazas mayores espanholas. Um crasso engano, até por uma questão de precedência. No caso espanhol, a primeira plaza mayor foi a de Valladolid, construída em 1561, quando o centro da cidade, destruído por um incêndio, foi reedificado.140 Não há duvida que a praça de Valladolid é fruto de um projeto arquitetônico muito mais elaborado que a do Funchal, mas, do ponto de vista de sua concepção e do papel que desempenha na estrutura urbana, ambas são idênticas. Mesmo quando consideradas as colônias hispano-americanas, onde as influências renascentistas no traçado urbano se fizeram sentir antes do que na metrópole, este tipo de praça não foi usual na primeira fase da presença espanhola no novo mundo, quando foram conquistadas as Antilhas. As praças centrais, com igreja e edifícios públicos, começaram a ser implantadas apenas durante a conquista do continente, à partir da década de 1530. Tornar-se-iam exigência burocrática, implícita ao ato de fundação de novos estabelecimentos, apenas com as ordenações de Filipe II em 1573. Uma ‘cidade ideal do renascimento’? A cidade das ilhas atlânticas que mais tem chamado atenção por suas características morfológicas é Angra, na ilha Terceira. Diversos autores a tomam como exemplo de ‘cidade ideal do renascimento’. Longe disso, ela segue esquema geral de desenvolvimento das cidades das ilhas, pois teve como núcleo de origem os acastelamentos construídos pelos primeiros donatários. Angra não foi fruto de um projeto completo, mas o resultado de sucessivos acrescentamentos, os quais configurariam uma malha bastante regular. Todavia, apenas com muito boa vontade, pode-se qualificá-la de quadrícula renascentista. Para fazer uma comparação no âmbito

140

BONET CORREA, Antonio. Concepto de Plaza Mayor en España desde el siglo XVI hasta nuestros dias. In: _____. Morfologia y ciudad. Barcelona: Gustavo Gili, 1978. p.39.

252

da cidade portuguesa, perceba-se que o traçado de Angra é contemporâneo ao do Bairro Alto de Lisboa, e, no entanto, mais irregular do que este. A topografia de Angra assemelha-se à de Lisboa ou Rio de Janeiro, em pequena escala. São duas colinas separadas por uma baixa. Do núcleo mais irregular aos pés da torre dos donatários, a cidade expandiu-se em direção a esta baixada. Na primeira metade do século XVI, desenvolve-se um primeiro núcleo de expansão ao pé da encosta onde estavam as construções do capitão-donatário, cujo traçado é ainda bastante irregular. Foi somente na segunda metade daquele século, quando a cidade avançou em direção ao mar, que sua malha viária assumiu a feição de uma grade aproximadamente ortogonal. É esta a Angra representada na famosa gravura de Linschoten, de 1593, na qual a largura de algumas ruas foi exagerada.141

Contudo, a área mais viva de Angra não ficava beira mar, nem era a da malha ortogonal, mas a rua que passava ao fundo vale, articulando a cidade com o interior agrícola. Nesta rua localizavam-se a igreja e a Câmara municipal, ao lado da qual ficava uma pequena praça residual. Essa área passou por uma reformulação no início do século XVII, e da mesma forma que nas cidades do continente nos séculos anteriores, somente após a consolidação da malha viária é que se vai abrir uma praça.

141

LINSCHOTEN. A cidade de Angra na Ilha de jesus Cristo Da Terceira que está em 39 graus. 1593. Reproduzida de SILVEIRA, Luis. Ensaio de iconografia das cidades portuguesas do ultramar. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, s.d.v.1, p.97.

253 Por influência deste corregedor [Roque da Silveira] se repararam e acrescentaram as casas da câmara d’Angra, o paço do concelho, açougues, torre dos sinos e da vigia, e se alargou a praça que era muito pequena, comprando-se para este fim muitas casas que lhe ficavam à roda. Calçaram-se e alargaram-se várias ruas, tudo sem finta nem imposição, à custa dos fidalgos e cidadãos d’Angra, gastando-se nestas obra 8 mil cruzados.142

Apesar da imagem veiculada, o traçado regular de Angra foi resultado não de um projeto mas da evolução controlada do arruamento, no que a câmara deve ter desempenhado o principal papel. Segundo informações fornecidas por Francisco Drummond, historiador que, no século XIX, estudou a documentação das câmaras das ilhas, a única cidade dos Açores que parecer ter sido traçada antes da ocupação foi São Sebastião, também na Ilha Terceira

Foi então demarcado o terreno para se estabelecer a povoação em forma, e este negócio foi incumbido a um hábil engenheiro, que deu às ruas desta vila uma excelente direção e regularidade, com saída para seis estradas, que também lhe foram feitas em direção às povoações circunvizinhas.143

Os terremotos e aluviões que periodicamente atingiam as cidades das ilhas cumpriam um papel demolidor, do que se aproveitavam as câmaras para introduzir alterações urbanísticas desejáveis. Isso, desde 1522, quando Vila Franca do Campo, na ilha de São Miguel, foi completamente destruída por um terremoto. Durante a reconstrução, o seu traçado sofreu diversas alterações. Todavia, a vila jamais se recuperou da catástrofe, e acabou substituída por Ponta Delgada no papel de principal cidade da Ilha.144 Em 1614, um terremoto arrasou a vila da Praia, na Terceira. Em

142

DRUMMOND, Francisco Ferreira. Annaes da Ilha Terceira. Angra do Heroismo: Câmara Municipal, 1850. v.1. p.418-9. Em 1613, as obras ainda não estavam prontas e a câmara recebeu uma contribuição de mil cruzados da coroa. p.427. 143

DRUMMOND. Annaes. v.1, p.88-9. Muita da documentação consultada pelo autor já não mais existe e suas informações não podem ser corroboradas. Esta é a única menção que conheço sobre a origem do traçado de São Sebastião. 144

O episódio é, por vezes, superação do Domínio da nobiliarquia agrária da ilha pela burguesia comercial de Ponta Delgada. SANTOS, J. Marinho dos. Açores: etapas, ritmo e formas de urbanização. In: ESTUDOS DE HISTÓRIA DE PORTUGAL; homenagem a A. H. de Oliveira Marques. Lisboa: Estampa, 1983. v.2. p.70-91.

254

seguida, a câmara recebeu recursos da coroa para a reedificação dos principais edifícios, além de ordens precisas para aproveitar a situação e regularizar o traçado da vila, segundo relata Vitorino Nemésio, parafraseando tais instruções.

Que os donos das casas as reedificassem, ou pudessem vender os sítios a quem lhes parecesse para as levantar, e não o fazendo no espaço de 3 anos, ficariam devolutos ao concelho, para se darem a quem os aproveitasse edificando neles algumas casas, ou convertendo-os em ruas públicas, com tal ordem e traça que ficassem as ruas melhores do que dantes estavam, o que seria dirigido por um arquiteto que El-Rei mandaria a esta ilha se cá não houvesse algum.145

Não parece tanto cidade e povo No oriente, a questão básica que presidiu a configuração das cidade foram as fortificações. A realidade encontrada era muito diferente daquela das ilhas desertas do Atlântico. A maior parte dessas cidades foi obtida manu militari e militarmente tiveram que ser mantidas. Apesar de pré-existirem à conquista por parte dos portugueses, elas foram de tal modo modificadas que não podem ser consideradas como cidades híbridas. Por uma questão simbólica, algumas das feitorias mouras tomadas pelos portugueses foram impiedosamente destruídas. É o caso de Goa, onde Afonso de Albuquerque tentou apagar qualquer vestígio muçulmano. Até as pedras das sepulturas dos cemitérios mouros foram arrancadas, utilizadas na construção das fortificações da cidade.

Depois queimei a cidade e trouxe tudo à espada, e por quatro dias continuadamente a vossa gente fez sangue neles; por onde quer que os podíamos achar, não se dava vida a nenhum mouro, e enchiam as mesquitas deles e punha-lhes fogo; aos lavradores da terra e brâmanes mandei que não matassem. Achamos por conta serem mortas seis mil almas mouros e mouras, e dos seus piães archeiros, muitos deles faleceram.146 Nenhuma sepultura nem edifício de mouro não deixo em pé; os que agora tomam vivos, mando-os assar: tomaram aqui um arrenegado, e mandei-o queimar. A

145

NEMÉSIO, Vitorino (org.). Memorial da mui notável vila da Praia da Vitória; no centenário da acção de 11 de agôsto de 1829. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1929. p.53. Ver também DRUMMOND. Annaes. v.1, p.428 e ss. 146

p.7.

ALBUQUERQUE, Afonso de. Cartas para el-Rei D. Manuel I. Lisboa: Sá da Costa, 1957.

255 determinação em que fico, é não deixar viver mouro em Goa, nem entrar nela, somente gentios.147

Goa foi uma cidade que se desenvolveu segundo processos muito semelhantes aos das cidades de Portugal. O traçado da Goa portuguesa acabaria reproduzindo o de Lisboa, para o que contribuiu algumas semelhanças topográficas entre ambas.

Algumas cidades do império do oriente, como Malaca e Cochim, conjugaram arruamentos irregulares, criados no início da presença portuguesa, com áreas de expansão onde se vê a clara intenção de criar um traçado regular ortogonal. Uma vez que essas retículas foram criadas à partir de fins do século XVI, é possível atribuí-las a uma vaga influência espanhola.

147

ALBUQUERQUE. Cartas. p.8.

256

COCHIM Todavia, as cidades portuguesas do oriente que mais têm chamado a atenção dos estudiosos da forma urbana são Baçaim e Damão. A fortaleza de Baçaim começou a ser construída em 1536. O próprio governador da Índia presidiu o início da construção do primeiro fortim, para o qual foram utilizados os restos das edificações defensivas dos turcos. Após participar pessoalmente das primeiras escavações, ele assentou a pedra inaugural da “torre de menagem”, o que dá a entender que a concepção desse primeiro bastião era ainda medieval.148 Posteriormente a cidade ganhou uma poderosa muralha renascentista, de forma aproximadamente circular, guarnecida de 11 baluartes poligonais ou circulares. Esta muralha era claramente de inspiração italiana, ou foi concebida pelos fortificadores italianos enviados ao oriente. Do ponto de vista urbanístico, Baçaim representou um primeiro passo na construção de cidades regulares nas colônias portuguesas do oriente. Seu arruamento era bastante retilíneo, compondo um conjunto de quarteirões retangulares, tendo ao

148

CORREIA, Gaspar. Lendas da Índia. III, 689. Citado de PEREIRA, A. B. de Bragança.. Os portugueses em Baçaim. Bastorá: Tipografia Rangel, 1935. p.12.

257

centro uma praça cívica onde estavam a câmara, a misericórdia e o primitivo fortim, transformado em casa do capitão e último reduto defensivo.

Ao norte de Baçaim, os portugueses construíram Damão, na qual a tendência à regularidade foi de tal forma acentuada que quando pensamos em cidades regulares portuguesas nas colônias, a sua planta é o primeiro exemplo que nos vem à cabeça. Apesar de ter um desenho mais rígido, a planta de Damão aproxima-se, em muito, da de Baçaim. No centro da muralha, que também dispunha de 11 baluartes poligonais, estava localizada a primeira construção defensiva dos portugueses, levantada com os destroços do bastião muçulmano que haviam conquistado.149 As duas cidades, como já vimos, não eram, originalmente, entrepostos comerciais, mas locais de aposentadoria de fidalgos. Isto nos remete a uma outra questão. Existe uma relação entre a ordem social e institucional estabelecida nessas cidades e a forma urbana adotada. As duas cidades eram sinônimos de fidalguia e ordem. Um descrição da Baçaim do início do século XVIII, quando há muito acabara o período de esplendor do império português do oriente, mostra que mesmo na decadência ela não abandonara a ordem e a fidalguia que sempre a caracterizaram. “Esta cidade uma das mais limpas que hoje temos neste estado, donde não se acham pardieiros como

149

LUZ, Francisco Paulo Mendes da (ed.). Livro das cidades, e fortalezas que a coroa de Portugal tem nas partes da Índia, e das capitanias, e mais cargos, que nelas há, e da importância delles. Coimbra: Biblioteca da Universidade, 1952. p.41 e ss.

258

em Chaul nem os monturos de Goa”, mencionava o deão da catedral de Goa, em visita à cidade.150 Damão e Baçaim, não foram de forma alguma cidades ideais do renascimento, mas cidades reais das fronteiras da expansão ocidental quinhentista. Essas cidades, que agregavam os novos padrões de fortificação da renascença com o recrudescimento feudal ou senhorial das bastides, foram espalhadas nas fronteiras internas da Europa, nas regiões de colonização da Europa oriental, e nas colônias espanholas da América, além dos casos aqui mencionados. Na Índia portuguesa, o resultado não deixava de provocar um justo estranhamento nos observadores habituados à ‘desordem’ das cidades comerciais.

Não deixa de haver nesta cidade de Damão alguns canequins, tafaxiras, sueins e teadas, que se fazem em Damão de Cima, povoação de mouros e gentios e alguns cristãos, distante da cidade trezentos paços geométricos. São os mais deles oficiais de todo serviço mecânico, porque dentro dos muros de Damão não vivem mais que os homens de armas, o que a faz não parecer tanto cidade e povo.151

Esse comentário do cronista António Bocarro, um cristão novo, sobre Damão é expressivo do estranhamento que a cidade provocava em seus observadores. A ordem estabelecida em Damão ou Baçaim, cujo período de maior desenvolvimento ocorre durante os Filipes, nos faz questionar até que ponto se aproxima a forma de colonização ali desenvolvida e aquela adotada pelos espanhóis na América. Com todas as diferenças que possam haver, existem algumas semelhanças notáveis. Além de serem locais de recrudescimento fidalgo, existem semelhanças morfológicas entre Baçaim e Damão com São Domingos, a primeira cidade hispanoamericana bem sucedida a apresentar uma configuração indubitavelmente geométrica. A cidade foi iniciada por Bartolomeu Colombo, e acabou por substituir La Isabela, a sede urbana da malfadada experiência colonial empreendida por seu irmão Cristóvão.

150

151

PEREIRA. Os portugueses em Baçaim, p.19.

BOCARRO, António. O livro das plantas de todas as fortalezas, cidades e povoações do Estado da Índia Oriental. Lisboa: Imprensa Nacional, 1992. p.96.

259

São Domingos repete em muito a experiência acumulada na colonização das ilhas atlânticas, que foi crucial à primeira fase da expansão ibérica. Como era padrão nas ilhas, o assentamento urbano inicia-se pela construção de uma casa forte, que foi o episódio gerador da cidade. A novidade de São Domingos é o traçado aproximadamente reticular projetado pelo governador Nicolau Ovando, em 1502. Em seu projeto, Ovando usa o mesmo partido que, mais tarde, foi adotado nas cidades regulares portuguesas do oriente. A casa forte do governador foi o núcleo gerador da malha urbana. Tal solução não era corrente nas cidades européias fundadas à época, nas quais este bastião costumava estar conectado aos muros externos. Do posto de vista militar, esta solução milenar era adotada como garantia de uma rota de fuga para o exterior no caso de a cidade ser tomada. Era também, como já dissemos, a garantia de que os governantes não seriam cercados pelos moradores da cidade. A cidade medieval, árabe ou cristã, quase sempre obedecia a esse princípio. Eximeniç, o tratadista catalão do século XIV, que muitos autores apontam como uma das fontes de inspiração da cidade regular ibero-americana, expunha este princípio com todas as letras. “O palácio do príncipe, forte e elevado, deve levantar-se em um extremo, com saída direta para o exterior”.152 No caso de São Domingos, sacrificou-se esta norma secular, ditada por um sentido de autopreservação das elites governantes, em nome de um mero formalismo. Há, no traçado urbano de São Domingos, um manifesto desejo de centralidade, todavia não é a praça que está no centro mas o fortim do capitão, esquemas semelhantes ao adotado em Baçaim, Damão ou São Tomé de Meliapor mais para os finais do século XVI.153 Até pela época em que foram edificadas, as fortificações dessas cidades portuguesas da Índia são menos medievais que as de São Domingos. Aparentam-se com

152

EXIMENIÇ, Francesch. El crestiá. v.12, p.110. Citado de SANTOS, Paulo F. Formação de cidades no Brasil colonial. Coimbra: Universidade de Coimbra/V Congresso de Estudos Luso Brasileiros, 1968. p.31. 153

CORDEIRO, Luciano(ed.). Benguella e seu sertão por um anonymo. 1617-1622. Lisboa: Imprensa Nacional, 1881. pp.16-7.

260

outras construídas posteriormente pelos espanhóis no continente, caso de Trujillo, no Peru. Pode-se dizer de Damão ou Baçaim a mesma coisa que o arquiteto Gutierrez diz sobre as cidades amuralhadas regulares hispano-americanas. Elas “nada tem a ver com as cidades ideais de Filarete ou outros pensadores onde o sistema radial predomina nitidamente”.154

A falta de correlação entre o desenho teórico do amuralhamento e a regularidade do traçado indiano pode-se verificar em Trujillo (Peru) onde se optou por uma estrutura envolvente ovalada junto à qual morrem indiferentemente os quarteirões de moradia. Trata-se, definitivamente, de dois modelos resolvidos abstratamente que evidenciam sistemas de pensamento não integrados.155

Apesar das muralhas italianizantes, essas cidade estão muito mais próximas das bastides medievais do que das cidades ideais do renascimento, até pelo detalhe, que não é pequeno, desta desarticulação.156

BRASIL E ANGOLA

A segunda fase da expansão atlântica, representada pela colonização do Brasil e de Angola no século XVI e início de XVII, repete muito do que ocorreu nas Ilhas Atlânticas e no oriente. O polêmico Cerveira Pereira, enviado à África para criar uma capitania régia próxima a Angola, fundou a cidade de Benguela a partir de um projeto que foi enviado à corte madrilenha para conhecimento e aprovação. Tal projeto perdeu-se, mas temos uma descrição de época que nos dá uma idéia da forma da cidade no início do século XVII.

154

GUTIERREZ, Ramón. Arquitectura y urbanismo em Iberoamerica. Madrid: Ediciones Cátedra, 1992.. p.79. 155

156

GUTIERREZ. Arquitectura. p.84.

CHICÓ, Mário T. A ´Cidade ideal´ do renascimento e as cidades portuguesas da Índia. Separata de GARCIA DE ORTA, número especial, 1956. p.319-27.

261 A cidade que o conquistador Manuel Cerveira Pereira edificou já teve mais casas e edifícios, porque havia mais gente, as duas partes do que hoje há. Contudo o corpo da cidade é o mesmo, tem seu assento em uma terra plana e está traçado em quadra. A cerca dela, ao princípio foi de pau a pique, aterrada no meio, mui forte, mas o tempo a foi gastando e se foi reedificando com quantidade de ásperos espinhos, que para os negros é mais dificultosa a entrada deles. Tem dois baluartes para a banda da terra, com sete peças de artilharia grossa, e agora vão acabando os outros dois para a banda do mar, que ficam os quatro baluartes nos quatro cantos, e todos têm quatorze peças de artilharia, e outras que estão repartidas por vários pontos da cidade, no meio da qual está uma casa de taipa, forte, que serve de feitoria, onde estava colhida a pólvora e mais munições.157

Através desta descrição, pode-se presumir que a Benguela de Cerveira, reproduzia, em pequena escala, o mesmo esquema utilizado em Damão. Antes disso, o capitão-donatário Paulo Dias de Novais fundara Luanda, mais um assentamento que teve origem num fortim alcandorado. O núcleo inicial da cidade era bastante geométrico. Diferentemente do que ocorreu em outros casos semelhante, ao ultrapassar este reduto inicial, Luanda espalha-se de desordenadamente pelo terreno. Todavia, esta não parece ter sido a intenção do donatário. Paulo Dias de Novais foi morto pelas febres tropicais. Teve tempo de fundar apenas Massangano e Luanda. No entanto, ele examinava a paisagem angolana como um visionário multiplicador de cidades. Para ele, a escolha preferencial por uma topografia acidentada não levava, obrigatoriamente a uma configuração urbana irregular. Uma carta sua, datada de 1584, relativa à região do rio Cuanza, é especialmente expressiva quanto às suas preocupações com a regularidade do traçado e a salubridade dos sítios urbanos.

O sítio de Gaza é quase Alenquer; tem para mim uma tacha* incomportável que é serem os montes tão fragosos que não tem aonde se lhe possa fazer em riba deles uma praça de sessenta ou setenta braças, mais que um só lugar que fica tão longe como a do cais da Pedra ao Castelo de Lisboa, e tão alto como o mesmo Castelo; mas tem poder em se fazer cinco Ruas, três para o Rio de duas para o sertão, muito compridas e muito direitas, que vão subindo brandamente. [....] Afirmo a V. M.

157

CORDEIRO Benguella. pp.16-7.

262 que há por estas partes muitas Almerins e muitas Sintras com todos os seus penedos ou com todas as suas águas, e com toda a saúde, e muitas Évoras, e muitas Bejas.158

No Brasil, as coisas não parecem ter ocorrido de forma diferente. Muitas das primeiras cidades fundadas pelos donatários, ou pela coroa, foram lugares fortificados sobre colinas, como os já mencionados para as ilhas ou para Angola. Olinda e Rio de Janeiro seguem o mesmo esquema. Salvador foi edificada sobre a escarpa de uma baía, do mesmo modo que Luanda. Contudo, a escala inicial do projeto de Salvador ultrapassava qualquer fundação conduzida até aquele momento na área atlântica do império. A intenção da coroa manifestamente a de construir uma capital e cercou-se dos cuidados necessário a que ela nascesse respeitando os requisitos da boa forma e da boa localização.

No sítio que vos melhor parecer ordenareis que se faça uma fortaleza da grandura e feição que a requerer o lugar em que a fizerdes, conformando-vos com a traça e amostras que levais praticando com os oficiais que para lá mando e com quaisquer outras pessoas que o bem entendam e para essa obra vão em vossa companhia alguns oficiais, assim pedreiros e carpinteiros, como outros que poderão servir de fazer cal, telha, tijolos.159

Luís Dias, o mestre fortificador enviado do reino para a obra, passara por um aprendizado com fortificadores italianos e trouxe consigo modelos de plantas renascentistas para tomar como exemplo. O traçado inicial de Salvador parece uma solução intermediária entre a tradição das bastides medievais e a nova tratadística renascentista de fortificação. No entanto, a idéia de projeto era ainda muito flexível, instruções gerais que iam sendo alteradas por diversas injunções e dificuldades encontradas no terreno. Por diversas vezes, Luís Dias refere-se a ter executado “modelos”, mas dá indícios de que eles podem ser alterados. A obras iam avançadas e ele ainda discutia com Lisboa se a

158

ARQUIVOS DE ANGOLA. Luanda, n.17, 1960. p.111-7. * tacha = defeito 159

Regimento de Tomé de Souza. In: HISTÓRIA ADMINISTRATIVA DO BRASIL. Rio de Janeiro: DASP, 1956. v.2. p.225. Ver, também. SANTOS. Formação. p.41-2.

263

cidade seria construída segundo suas proposta ou se haveriam de “mandar modelo do que se há de fazer”.160 A cidade resultante mostrou-se perfeitamente adaptada ao terreno. Na época em que foi construída, Salvador superava em regularidade qualquer cidade portuguesa e, mesmo, a maioria das espanholas. O que não quer dizer que ela seguisse uma estrutura reticular. Em Salvador não ocorreu aquela desarticulação entre o sistema defensivo e o traçado viário, apontada por Gutierrez, pois ambas as coisas estavam completamente articuladas. No Brasil, os traçados ortogonais difundiram-se apenas no século XVII. É o caso de São Luiz do Maranhão, fundada segundo uma planta em quadrícula. O Rio de Janeiro desceu do Castelo em direção ao mar segundo arruamentos tendencialmente regulares. Outro exemplo significativo é Parati (1660) cujas ruas eram “direitas encruzadas rectamente”.161

p.23.

160

Carta de Luís Dias a Miguel de Arruda em 13 de julho de 1551. ABNRJ, v.57, 1935. p.20.

161

CASAL, Aires de. Corografia brasílica. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945. v.2.

264

O estudo das cidades fundadas pelos portugueses no Brasil, nos dois primeiros séculos da colonização, tem-se caracterizado pela presença de uma espécie de paradigma de comparação formal com a cidade hispano-americana. Criou-se uma quase-obrigatoriedade de percurso para quantos, até o presente, se envolvem com o tema. É como se a inteligibilidade da cidade colonial no Brasil, necessariamente, precisasse ser buscada na comparação com suas congêneres das colônias espanholas. Lembremos que se trata da busca de sua negatividade frente a uma positividade das cidades de origem espanhola, as quais são tomadas de forma idealizada. Em decorrência, a cidade colonial portuguesa no Brasil tem sido estigmatizada por uma suposta ‘irregularidade’, termo ao qual é atribuída patente carga negativa. De acordo com Sérgio Buarque de Holanda, a cidade “sem rigor e sem método” que os portugueses construíram na América não é um “produto mental”. Ela não chegaria a contradizer o quadro da natureza e seria expressiva de uma convicção

265

íntima de que “não vale a pena...”.162 Em oposição a este quadro, os assentamentos espanhóis teriam sido as primeiras cidades abstratas que os europeus edificaram no continente americano.

Já à primeira vista, o próprio traçado dos centros urbanos da América Espanhola denuncia o esforço determinado de vencer e retificar a fantasia caprichosa da paisagem agreste: é um ato definido da vontade humana. As ruas não se deixam modelar pela sinuosidade e pela aspereza do solo; impõem-lhe o acento voluntário da linha reta.163

Outro autor responsável por difundir este tipo de noção, foi o americano Robert. C. Smith.164 Tal leitura do espaço urbano é muito semelhante à dos funcionários ilustrados do século XVIII. Acompanhando a documentação portuguesa de períodos anteriores, percebemos que uma determinada cidade é valorizada, ou não, pela avaliação de outros quesitos: localização, sistema defensivo, grandeza do comércio, qualidade das edificações, etc. Chegando ao século XVIII, os textos descritivos passam a apresentar, como primeiro tópico de apreciação, a regularidade ou irregularidade do arruamento. Após a independência, esta abordagem setecentista transforma-se na equação ‘cidade irregular = negativo = portugueses’. Chegando ao século XX, ela foi assumida pela historiografia e incluída no amplo espectro das formulações relativas à auto afirmação da nacionalidade brasileira, na qual todas as mazelas nacionais são atribuídas ao antigo colonizador. A simplicidade rasteira de tal equação foi superada por autores que, a partir dos anos 60, se dedicaram ao tema. Entretanto, dado o fascínio permanente exercido pelos clássicos, alguns exageros cometidos por historiadores do passado continuam a ser tomados como verdades absolutas por uma historiografia

162

HOLANDA, Ségio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.

163

HOLANDA. Raízes. p.127

3.ed. p.152.

164

Ver SMITH, Robert C. Colonial towns of spanish and portuguese America. Journal of the society of architectural historians, Philadelphia, 14(4):3-12, dez.1955. _____. Urbanismo colonial no Brasil. REVISTA BEM ESTAR, n.1, fev.-mar.1958.

266

contemporânea mais apressada. Assim, subsiste, contra todas as evidências, a noção de que a colonização portuguesa jamais produziu traçados urbanos regulares. Meu intento não é polemizar com essa bibliografia considerando que a questão foi largamente ultrapassada por autores como Nestor Goulart Reis Filho, Paulo Santos e Roberta Marx Delson, que se dedicaram ao tema da cidade regular na colonização portuguesa no Brasil.165 A última autora faz uma excelente síntese desta polêmica mostrando a maneira como foi construído o mito.166 Hoje em dia, o mito correspondente da ‘cidade ideal’ construída pelos espanhóis em suas colônias americanas também está bastante abalado. Importantes autores, como Ramón Gutierrez, demonstram um certo enfado em relação à crença de que todas as cidades hispano-americanas eram regulares. O mesmo que sentimos em relação ao da irregularidade das cidades coloniais portuguesas.

Boa parte da realidade urbana da América não se gerou na ação concertada e planificada pelos conquistadores para a ocupação, domínio e evangelização dos nativos. Por isso muitas cidades nasceram sem ata explícita de fundação, sem câmara, pelourinho e repartição de lotes, e mais, sem sequer o traçado inicial.167

Por lhes mostrar que têm tudo que os cristão têm No Brasil, simultaneamente à instalação das cidades litorâneas, ocorre uma primeira expansão colonial para o interior, com a ocupação dos campos de Piratininga,

165

SANTOS, Paulo F. Formação de cidades no Brasil colonial. Coimbra: V Congresso de Estudos Luso Brasileiros, 1968. REIS FILHO, Nestor Goulart. Contribuição ao estudo da evolução urbana do Brasil. 1500-1720. São Paulo, Pioneira, 1968. 166

DELSON, Roberta Marx. New towns for colonial Brazil; spacial and social planning of the eighteenth century. Ann Arbor: University Microfilms International, 1979. Há um grande preconceito em relação a esta obra, que, significativamente, jamais foi editada no Brasil. Ela costuma ser apontada como coisa de brasilianist. A autora, de fato, cometeu alguns enganos. Quem não os comete? O seu grande engano, porém, foi ter bulido com quem não devia, ou com alguns totens da historiografia brasileira. Acabou incluída no index da toda poderosa academia paulista. 167

GUTIERREZ. Arquitectura. op. cit. p.85. Aliás, a maior falha de seu livro é, justamente, o tratamento dispensado às cidades portuguesas na América. Não é difícil entender o porquê. Simplesmente, ele se deixou contaminar pela historiografia brasileira

267

No planalto paulista, onde a colonização mesclaria iniciativas laicas e religiosas, a urbanização assumiria um caráter muito peculiar. O mesmo ocorreria no século XVII, quando novas frentes de interiorização foram abertas no sertão nordestino e a na Amazônia. Em todos esses casos, há uma disputa sobre a utilização da mão-de-obra indígena que opõe povoadores e religiosos. Todavia, a convivência entre índios, colonos e missionários teve implicações diretas na produção de um modelo urbano específico adotado nessas regiões. Os eventos iniciais relacionados à elaboração desta forma urbana, ocorreram na Bahia. A primeira tentativa consistente de ‘urbanização’ dos indígenas brasileiros foi feita por Mem de Sá, que, como já disseram, foi uma espécie de Afonso de Albuquerque da colonização portuguesa na América. O Governador e seus prepostos conduziram uma guerra implacável contra os franceses e os índios que se recusavam a se submeter ao domínio português, na Bahia, Ilhéus, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Vicente. Os índios derrotados no recôncavo baiano foram reduzidos a aldeamentos, com o objetivo de fornecer mão-de-obra aos engenhos da região. Nessas aldeias foi permitido aos índios um pequeno espaço de auto-administração, através da nomeação de um meirinho indígena, freqüentemente seus próprios caciques, ora denominados de morubixabas, ora de alvazis, os primitivos juízes locais dos concelhos medievais portugueses. O arcaísmo do título sugere que se pretendia reconstruir, em curto prazo e na medida em que os índios fossem aculturados, a trajetória histórica do município português. Em vez das varas utilizadas pelos oficiais cristão, os meirinhos indígenas portavam uma borduna, clara tentativa de fundir um símbolo indígena a um europeu. Mem de Sá, mandou que se erguessem pelourinhos nas aldeias “por lhes mostrar que têm tudo que os cristão têm”.168

168

Instrumento dos serviços de Mem de Sá. ABNRJ. v.27, p.130. Ver THOMAS, Georg. Política indigenista dos portugueses no Brasil. 1500-1640. São Paulo: Ed. Loyola, 1981. p.84-5. Este historiador considera que os aldeamentos administrados pelos jesuítas no recôncavo baiano foram o protótipo das missões jesuíticas em todo o continente americano, inclusive nas áreas de dominação espanhola.

268

A catequese dos índios aldeados foi entregue aos jesuítas que acabaram assumindo a administração de seus assentamentoss, apesar de os superiores da ordem terem inicialmente recusado a tarefa. Houve, então, um período de florescimento das aldeias. Todavia, a forte oposição dos colonos, a quem interessava a simples escravização dos indígenas, e as ambigüidades do estado português, puseram a experiência a perder. A grande epidemia de varíola que, em 1563, se espalhou por toda a América do Sul, encarregou-se de desestruturar esta primeira leva de aldeamentos. O próprio Manuel da Nóbrega, um dos responsáveis pelo envolvimento dos jesuítas nos aldeamentos nordestinos, transfere-se para São Paulo, onde continuam tanto as tentativas de aldeamento quanto os conflitos em torno da escravização dos índios. No século XVII, as principais frentes de expansão missioneira foram o vale do São Francisco e a região amazônica. Em ambas, outras ordens religiosas juntaram-se aos jesuítas no esforço de catequização e sedentarização dos indígenas. O difícil convívio com os colonos alterou profundamente a estratégia civilizatória dos jesuítas. Inicialmente, eles participaram conscientemente da montagem de um sistema de fornecimento de mão-de-obra para a lavoura da população de origem européia, acreditando que este contato redundaria na assimilação da maioria pela minoria. Após os diversos conflitos com os descendentes de europeus, assumiram abertamente a defesa do isolacionismo, que se manifestaria nas missões em outras regiões do Brasil, especialmente na Amazônia. As legislação indigenista portuguesa foi extremamente oscilante, no tempo e no espaço. O historiador Rodolfo Garcia foi preciso na apreciação dessa legislação. Enganou-se apenas ao afirmar que as mudanças acabaram com Pombal, pois no reinado de D. Maria novas alterações viriam.

O fato é que, em relação aos escravos índios, a dominação portuguesa foi [....] uma série ininterrupta de hesitações e contradições, até o ministério do marquês de Pombal, por meados do século XVIII. Decretava-se hoje o cativeiro sem restrições, amanhã a liberdade absoluta, depois um meio termo entre os dois extremos. Promulgava-se, revogava-se, transigia-se, ao sabor dos interesses em voga, e quando

269 enfim se supunham as idéias assentadas por uma vez, recomeçava-se com ardor a teia interminável.169

Além de alterar constantemente o estatuto do índio, se livre, se escravo ou se administrado, a legislação foi hesitante sobre o controle dos índios aldeados. Conforme o poder de barganha dos colonos, os índios aldeados foram submetidos à administração civil, mais permeável a seus interesses, à das ordens religiosas, ou a sistemas mistos. Alguns lances decisivos da política de aldeamento ocorreram à partir do Governo de Cunha Meneses, apontado como um dos principais responsáveis pela expansão da produção do açúcar no nordeste. A falta de mão-de-obra para essa expansão reacendeu os conflitos entre os plantadores nordestinos e a Companhia de Jesus, à respeito da administração dos índios. O governador, empenhado em seu projeto de multiplicar os engenhos, tomou abertamente o partido dos interesses canavieiros. As suas propostas de aldeamentos civis antecipavam em um século e meio as vilas de índios criadas no governo ilustrado do marquês de Pombal. Numa carta a Filipe III, ele deixou explícita a inspiração espanhola de seu projeto.

Me parece que V. Majestade deve mandar por estas aldeias e reparti-las por toda esta costa segundo a necessidade dos sítios e engenhos, e nas aldeias por um sacerdote que os doutrine, e seja seu prelado, e juntamente um homem branco que lhe sirva de seu capitão, e um escrivão e um meirinho, e a estes todos , eles mesmo dêem por cabeça uma certa porção para seu mantimento e isto mesmo tem V. Majestade no Peru, e este capitão lhe ordene seus alcaides e uma câmara e os faça vereadores, e que consultem suas cousas sendo porém o capitão presidente com seu escrivão e a este se lhe faça um regimento do que há de fazer, e que estes Índios possam ir trabalhar por seus estipêndios, e o capitão seja obrigado a lhe fazer arrecadar os jornais, e que não possam ir sem sua licença e que não possam mudar de umas aldeias para outras e que deixem ir as aldeias resgatar e vender e comprar suas mercadorias, contanto que não seja vinho de maneira que cada aldeia seja uma vila formada. E desta maneira não lhe poderá fazer velhacaria como cada dia fazem. Olinda, 23 de agosto de 1608170

169

GARCIA, Rodolfo. Ensaio sobre a história política e administrativa do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. p.130-1. 170

Correspondência do Governador D. Diogo de Meneses. 1608-1612. Carta a El-rei, Olinda, 23 de agosto de 1608. ABNRJ, v.57, p.39.

270

Apesar de seus esforços, a política indegenista da coroa hispano-portuguesa pendeu, inicialmente, em favor dos jesuítas. A legislação promulgada por Felipe II, em 1609, trazia a proibição incondicional de aprisionamento dos índios (embora mantivessem no cativeiro os que já fossem escravos), acabava com o trabalho compulsório e mantinha-os sob a administração dos padres. Essa lei mal chegou a ser aplicada, pela oposição dos fazendeiros e do próprio governador. Apenas dois anos depois, ela foi derrogada por uma legislação que instituía a administração civil das aldeias, atendendo ao desejo dos donos de engenho. Prevaleceu, finalmente, a visão imediatista da utilização semi-forçada da mão-de-obra indigenista.171 A legislação de 1611 era menos favorável aos indígenas do que as propostas do governador Cunha Meneses, pois não contemplava a criação de vilas de índios, mas apenas a de aldeias submetidas a administradores civis. Apesar de reconhecer os índios como homens livres, ela não abria espaço para a formação de uma elite municipal indígena. Através desta lei, os índios foram incluídos, subalternamente, na sociedade branca, pois os ‘vícios de sangue’ os impediam de ascender aos cargos municipais. São pouquíssimos os dados que permitam supor, com mínima segurança, a configuração espacial dos primeiros aldeamentos missioneiros no Brasil. Porém, tudo indica que nelas, a marca espacial mais evidente foi, também, a praça central quadrangular, em cuja face dominante despontava o conjunto formado pela igreja e, anexa a ela, os aposentos dos padres, seus administradores. Podemos observá-la numa planta de um dos aldeamentos fundados na Bahia, na década de 1560. Espírito Santo, mais tarde Abrantes, é fruto da associação entre os inacianos e Mem de Sá. A única representação conhecida deste aldeamento é muito posterior à sua fundação. Todavia, não há indícios de que ele tivesse sido diferente.

171

Para acompanhar estas oscilações na política indigenista dos Filipes ver THOMAS Política. p.136 e ss.

271

ABRANTES

CARAPICUÍBA

Levantamentos feitos no aldeamento paulista de Carapicuíba indicam a mesma estrutura morfológica. Este tipo de implantação sugere a pretensão ao desenvolvimento futuro de uma malha quadricular, o que raramente ocorreu. Os arruamentos não ultrapassam o estágio de caminhos que dão acesso à praça. Como resultado, evidencia-se predomínio da praça sobre a rua. No período em que se formaram as primeiras missões no Brasil, os jesuítas ainda não se haviam envolvido com a administração de aldeias em terras espanholas. Na Nova Espanha, a tarefa de criar e administrar aldeamentos indígenas foi entregue principalmente aos dominicanos. As palavras do historiador americano Sidney Markman, estudioso da espacialidade das fundações dominicanas da América Central poderiam perfeitamente aplicar-se à no Brasil. Essas missões participam do período formativo da cidade hispano-americana, que antecede a sistematização das Leyes de Indias. Os frades ensaiam a formação de retículas viárias em tabuleiro de xadrez. Todavia, o resultado foi “mais uma esperança do que um fato”. Apenas umas poucas evoluíram para uma autêntica malha urbana, que, como se observa numa planta atual, eram menos regulares do que costuma aparecer nos planos e representações de época. A

272

maior parte delas nunca ultrapassou o núcleo primitivo da praça, rodeado por uma ocupação caracteristicamente agrícola, “com a igreja como o único edifício monumental em toda a paisagem urbana, esbelta, branca e solitária, uma forma exótica em um dos lados da praça arenosa e estéril”172 No universo urbano do planalto paulista, não existiam maiores diferenças entre missões e vilas.173 Nas vilas, a praça central era uma figura geométrica que tendia à irregularidade. Os aldeamentos religiosos eram espacialmente definidos pelo adro ampliado das igrejas, mais regular que as praças das vilas. Considerando os dois tipos de assentamento, pode-se afirmar que no primitivo universo urbano paulista o acidente urbano dominante é uma praça central. O primeiro núcleo de expansão urbana paulista, fora de sua área original da bacia do Tietê, foi Curitiba, o que se deu longe de iniciativas oficiais e de qualquer esforço de missionação. No entanto, desde os seus primórdios, ela se desenvolve no entorno de uma praça central, onde estava a igreja e, mais tarde, seria ereto o pelourinho. Do que se pode concluir que, na região paulista, durante o século XVII, a praça da igreja era a expectativa urbana mais consistente, independentemente da ação oficial portuguesa, fosse civil ou religiosa. A recorrência deste tipo de implantação foi estudado por diversos geógrafos e arquitetos, hoje clássicos, como Pierre Defonteines, Aroldo de Azevedo, Lúcio Costa e Luís Saia.174 Mais recentes são os estudos de Pasquale Petrone e Renato Pereira

172

MARKMAN, Sidney D. El paisaje urbano dominicano de los pueblos de indios en el Chiapas colonial. In: HARDOY, Jorge E. & SCHAEDEL, Richard P. (org.) Las ciudades de América Latina y sus áreas de influencia a través de la historia. Buenos Aires: Ediciones SIAP, 1975. p.193. Apenas nos século XVII e XVIII, algumas praças das antigas missões dominicanas foram rodeadas de arcarias, transformando-se em réplicas coloniais das plazas mayores espanholas. 173

No séculos XVI, esse universo compunha-se da vila de São Paulo, alguns povoados, e diversos aldeamentos religiosos, como Barueri, Guarulhos, São Miguel ou Itaquaquecetuba. Durante o século XVII, os povoados Mogi das Cruzes, Santana do Parnaíba, Taubaté, Guaratinguetá, Jacareí, Jundiaí, Itu e Sorocaba foram elevados à categoria de vilas. 174

DEFFONTAINES, Pierre. Como se constituiu no Brasil a rede de cidades. BOLETIM GEOGRÁFICO, São Paulo, n.14, 1944; p.142. AZEVEDO, Aroldo de. Aldeias e aldeamentos de índios. BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA. n.33, out.1959. p.25. COSTA, Lúcio. Arquitetura jesuítica no Brasil. REVISTA DO SPHAN, n.5, 1941.

273

Brandão.175 A maior parte desses autores dá ênfase aos aldeamentos paulistas, contudo o mesmo tipo de espacialidade pode ser observado em diversas outras regiões brasileiras. No passado, alguns autores chegaram a especular sobre a origem tupinambá das praças centrais, que seriam uma sobrevivência da ocara.176 Atualmente, tal hipótese foi abandonada e chega-se a supor que influências européias tenham levado os tupis a adotarem uma disposição mais rígida das ocas, de maneira a compor uma praça quadrangular.177 Há, portanto, o consenso de que estamos diante de um modelo de origem européia. Todavia, é difícil determinar o quanto este modelo se deve aos jesuítas e o quanto ao urbanismo laico português. Como já observamos, ao findar o século XV, os princípios da cidade nucleada por uma praça já estavam sendo esboçados pelos portugueses. É mais prudente reconhecer que, em muitos casos, a praça central nasceu da confluência dos modelos laico e religioso. No centro-sul, São Paulo foi o lugar onde realizou-se tal síntese, com a transferência da vila de Santo André para o sítio do colégio dos jesuítas, em 1560. Do ponto de vista espacial, este ato representou a fusão entre o adro do colégio jesuítico e a praça central da vila. O preconceito corrente na historiografia brasileira sobre a irregularidade da forma urbana portuguesa acabou conduzindo a uma apreciação anacrônica deste fenômeno. Para o arquiteto Luís Saia, a praça central das cidades brasileiras foram uma cópia, mal sucedida, das que a Companhia de Jesus construiu em suas missões espanholas.178 Ocorre que diversos aldeamentos do nordeste brasileiro e da Capitania de São Paulo são anteriores aos jesuítas assumirem a tarefa de fundar e administrar missões nos Andes e no Paraguai.

175

PETRONE, Pasquale. Aldeamentos paulistas. São Paulo: EDUSP, 1995. p.227 e ss. BRANDÃO, Renato Pereira. A espacialidade missioneira jesuítica no Brasil colonial. In: A FORMA E A IMAGEM; arte e arquitetura jesuítica no Rio de Janeiro colonial. Rio de Janeiro: PUC-RJ, s.d. 176

Ver AZEVEDO. Aldeias. p.25.

177

SCATAMACCHIA, Maria Cristina Mineiro & MOSCOSO, Francisco. Análise do padrão de estabelecimentos tupi-guarani: fontes etno-históricas e arqueológicas. REVISTA DE ANTROPOLOGIA, São Paulo, v.30-2, 1987-9. p.46. 178

SAIA, Luís. Carapicuíba. 1939. (Trabalho inédito datilografado) Citado de PETRONE. Aldeamentos. p.230. Petrone parece assumir esta premissa equivocada de Saia.

274

Na América espanhola, a Companhia de Jesus também relutou muito antes de assumir a administração direta de aldeamentos indígena. O fracasso da evangelização dos índios peruanos e a constatação de que os sistemas de exploração da mão-de-obra indígena, através dos regimes de encomiendas e mitas, significavam uma perda na arrecadação de tributos, levaram a coroa espanhola a criar reduções afastadas dos colonos europeus. Os jesuítas cederam às pressões do vice-rei Toledo e, em 1576, assumiram a redução de Juli, situada às margens do lago Titicaca. O estabelecimento da missão coincidiu com a promulgação das ordenações urbanas de Filipe II, as quais foram aproximadamente obedecidas neste assentamento. Juli transformou-se numa das muitas vilas semi-regulares hispano-americanas. O sistema de catequização adotado no Peru acabaria sendo transposto para a bacia Paraná-Paraguai. Neste período, que corresponde à passagem do século XVI para o XVII, não foi utilizada uma tipologia fixa nos assentamentos. Em algumas regiões, os padres limitaram-se a construir igrejas e deixaram os indígenas livremente erguer as suas malocas. Não é muito diferente do que outros padres da mesma ordem vinham fazendo, neste exato momento, próximo ao Rio de Janeiro. Nesta região, as igrejas foram construídas sobre outeiros, o que lhes conferia uma proeminência estudada, e a ocupação indígena mal chegava a definir uma ocupação urbana.179 As missões espanholas fundadas na região que hoje corresponde ao oeste do Estado do Paraná tinham uma conformação espacial mais definida. Entretanto, elas tiveram curta duração. Os ataques dos paulistas levaram à transferência dos jesuítas e dos índios remanescentes para a bacia do Uruguai, mais ao sul. Foi nesta nova região que as reduções jesuíticas espanholas tomaram a sua forma final e desenvolvida, em finais do século XVII.180 A multiplicação de aldeamentos que seguiam este protótipo ocorreu, apenas, no século XVIII.

179

BRANDÃO, Renato Pereira. A espacialidade missioneira jesuítica no Brasil colonial. In: A FORMA E A IMAGEM; arte e arquitetura jesuítica no Rio de Janeiro colonial. Rio de Janeiro: PUC-RJ, s.d. p.162. 180

SPHAN, s.d.

GUTIERREZ, Ramón. As missões jesuíticas dos guaranis. Rio de Janeiro: UNESCO;

275

Uma leitura simplificada tende a reduzir a um único princípio todas as plantas ortogonais. No entanto, as missões as jesuíticas tinham características específicas que as afastavam do padrão espanhol corrente.181 As missões guaraníticas eram espaços fechados, no sentido que não era previsto que se difundissem indefinidamente, como as malhas ortogonais simples, adotadas pelo urbanismo laico das colônias espanholas. Um projeto deste tipo não suporta grandes ampliações sem se descaracterizar. Outro aspecto muito característico do espaço missioneiro é a sua organização teatral, que corresponde à ênfase dada pelos jesuítas à ritualização e coletivização da vida quotidiana. O peso do conjunto formado pela igreja e seus anexos destinados aos religiosos criava uma espacialidade descentrada. A parte traseira deste conjunto era urbanisticamente morta.182 Outra característica importante era a ausência do lote urbano e de casas para famílias unicelulares. As ocas indígenas originais foram substituídas por longos galpões de construção européia, sem que se alterasse a sua essência de oca .Esta singularidade resultava da tentativa de reunir o coletivismo indígena com o projeto coletivista jesuítico.

181

O arquiteto argentino Ramon Gutierrez já sistematizou as principais características dessas missões, o que as diferência de qualquer outro projeto de cidade. São elas a limitação ao crescimento físico,o desaparecimento das quadras, a visível hierarquização do acesso,a constituição de um núcleo edificado fixo, o tratamento do entorno imediato,o controle da dimensão do povoado e o uso cenográfico e ritual da praça. GUTIRREZ. Arquitectura. p.232. 182

No caso da redução brasileira do Espírito Santo, ocorria algo semelhante. Nas traseiras das construções religiosas começavam as fazendas dos jesuítas, que contrapunha-se às terras dos índios. No entanto, o pouco que se conhece sobre a espacialidade jesuítica no Brasil, não permite saber se estamos diante de um modelo ou de um caso específico. Ver OTT, Carlos. A aldeia de índios do Espirito Santo (Abrantes). UNIVERSITAS; Revista da Universidade Federal da Bahia. Salvador, n.37, jul.-set.1986. p.9.

276

Esta explicação é necessária para evitar uma confusão muito freqüente. Ouvimos falar em missões jesuíticas espanholas desde o século XVI, ao mesmo tempo que somos apresentados a uma iconografia do século XVIII. Caso típico de ilustrações que desilustram, pois elas nos induzem a atribuir às reduções do passado uma forma urbana que não lhes pertencia. A similitude entre o desenvolvimento das missões jesuíticas espanholas e portuguesas foi quebrada, ironicamente, durante a reunião das coroas ibéricas. Enquanto a Companhia de Jesus consolidava a autonomia de suas missões espanholas, em território português vivia-se um período de forte contestação ao poder dos jesuítas sobre os índios. Na maior parte do Brasil, o desenvolvimento de um sistema autárquico de missões, com o seu correspondente desenvolvimento espacial, foi abortado no início do século XVII. A possibilidade de que ocorresse algo semelhante às missões espanholas

277

ficou restrita à região amazônica, onde a tarefa era muito mais árdua e complexa, tanto por questões ecológicas como pela diversidade étnica dos indígenas.

A CIDADE DE D. JOÃO V

O reinado de D. João V representou um período de grandes alterações no panorama colonial português. As possessões da África e da Ásia viviam um período de abandono e decadência e, no Brasil, o ouro e os diamantes substituíram o açúcar como a principal fonte da riqueza colonial. Em decorrência, houve um deslocamento do principal eixo econômico para o sul, o que levaria à transferência do centro administrativo para o Rio de Janeiro. Além disto, exploração mineral provocou a urbanização de vastas regiões do interior da América Portuguesa. Do ponto de vista da morfologia urbana, o estado português passa a recorrer abertamente à utilização de traçados regulares, à espanhola. Todavia, isto não foi uma regra antes da década de 1730. Até então, a regularização dos traçados é mais fruto das intenções de alguns agentes da coroa do que uma norma. Além da multiplicação de estabelecimentos urbanos nas Minas Gerais, durante o período joanino foram abertas novas frentes de expansão e foram consolidadas frentes mais antigas com foi o caso dos territórios que hoje são o Paraná e Santa Catarina. Nesta região atuou um ouvidor da capitania de São Paulo, cujas propostas sintetizam muito do que seria uma cidade desejável à época. Proveu o ouvidor Pardinho O ouvidor Rafael Pires Pardinho veio ao sul com o objetivo expresso de refundar as vilas da região como se partisse da estaca zero. Essas vilas apareceram na segunda metade do século XVII, num período de vazio institucional. Após a restauração iniciara-se um processo de penetração partindo da capitania de S. Vicente em direção ao sul. Nascem as vilas litorâneas de Paranaguá, São Francisco e Laguna, e para o interior,

278

a de Curitiba. A descoberta de ouro na região desperta o interesse tanto da coroa como dos herdeiros dos donatários da antiga capitania de Santo Amaro, o conde da Ilha do Príncipe e o marquês de Cascais, que passam a disputar essas terras. O segundo cria na região a capitania de Paranaguá, de efêmera duração. A lacuna de poder é ocupada pela figura ambígua de Gabriel de Lara que atuou tanto como representante do conde da Ilha do Príncipe, como governador em nome do marques de Cascais ou como agente da coroa portuguesa. As disputas pela área onde se localizavam tais vilas só se resolveram totalmente com a compra das capitanias do sul por D. João V, que as incorporou às terras da coroa em 1711. Em conseqüência, elas viveram um longo período de abandono, que só terminou na década de 1720, quando ouvidor da Capitania de São Paulo veio fazer uma correição nas vilas do sul, quase um ato simbólico de assumi-las como vilas da coroa. A correição realizada nesses núcleos ultrapassava em muito a atuação burocrática da maioria dos ouvidores e corregedores do império, que, quase sempre, se limitavam a repetir burocraticamente o rol de perguntas que as ordenações do reino determinavam que fossem feitas aos oficiais das câmaras. Pardinho encontrou uma situação em que havia muito mais a fazer. Curitiba, São Francisco e Laguna nunca haviam sido correicionadas. Apenas Paranaguá recebera, num passado distante, a visita de um ouvidor. A correição feita por Pardinho assumiu a dimensão lata de corrigir tudo aquilo que, há décadas, vinha, sendo feito na ausência do estado central e que precisava ser emendado, quer do ponto de vista institucional, quer em relação ao espaço urbano. O seu instrumento de ação foram as listas de provimentos que ele fez anotar em livros camarários especialmente criados em cada uma das vilas. Cada um desses róis é composto de indicações gerais, algumas retiradas das Ordenações Filipinas, e que foram repetidas em todas as vilas; outras eram específicas e se destinavam a resolver problemas observados cada vila. O ouvidor tinha a preocupação de que os seus provimentos fossem seguidos à risca. Para dar-lhes peso, enviou-os ao Conselho

279

Ultramarino, solicitando que lhes fosse conferido força de lei, no que foi atendido.183 Em Curitiba, por exemplo, esses provimentos foram encarados como uma espécie de lei orgânica da câmara municipal até 1829, quando foram revistos. No que respeita ao ordenamento urbano, o código de posturas que resultou desta revisão mantém muitas semelhanças com o que determinara Pardinho.184 A principal peculiaridade dos provimentos deste ouvidor, foi veicular uma concepção global de vila, tanto do ponto de vista administrativo quanto do da forma urbana. Em relação à morfologia, a cidade que os provimentos se propõem a conformar tinha como módulo constitutivo a quadra retangular, perfeitamente adensada, vista a partir da rua como um conjunto compacto de fachadas, dando forma aos quarteirões, e objetivando a defesa. Por essa ótica, qualquer espaço livre entre uma casa e outra comprometia a unidade visual do conjunto e que ele cumprisse as outras funções às quais se destinava. Uma quadra em que houvesse espaços vagos, fosse um lote ainda não ocupado, ou ocupado por uma habitação em ruína ou fora do alinhamento predial, era uma quadra incompleta, que prejudicava a definição espacial da cidade como um todo. Induzir o adensamento da ocupação dessas vilas em formação foi, portanto, uma das principais metas assumidas pelo ouvidor.

39 - Proveu que dando o conselho chãos para quintais aos vizinhos será conforme a testada das suas casas e com tanto fundo como os mais tiverem, e sertão obrigados os vizinhos a fazerem neles seus cercados para ficarem fechados e livres de desastres e ofensas de Deus que resultam dos quintais estarem abertos e mal tapados. E por esta mesma razão obrigarão aos vizinhos a que tenham as portas das suas casas fechadas, sempre e que não haja na vila pardieiros e ranchos abertos de que se seguem os desserviços de Deus que se têm visto neste povo, sobre o que farão suas posturas e acórdãos.

183

184

MARCONDES. Documentos. p.

Ver, de minha autoria, PEREIRA, Magnus R. M. A gosto e capricho dos primeiros proprietários: a trajetória de uma cidade brasileira nos séculos XVIII e XIX. JARBUCH FÜR GESCHICHTE VON STAAT, WIRTSCHAFT UND GESELLSCHAFT LATEINAMERIKAS. Köln, v.32, 1995. p.343 e ss.

280

Com o condicionamento dos quintais às fachadas, este provimento obrigava as edificações a serem contíguas, parede a parede, o que resultava numa quadra compacta, onde não havia a possibilidade sequer de pátios ou corredores laterais. Isto nada mais era que a sistematização e transformação em norma administrativa dos costumes seculares que regiam a formação das ruas na Península Ibérica e que se difundira pelo continente americano. Delimitada pelos quatro planos de fachadas, a quadra deveria comportar-se como um volume único, separando o público do privado. Essa separação era reformada por minúcias, tal como a obrigatoriedade de cercar os quintais e de manter as portas fechadas. Procurava-se, assim, impedir que, mesmo visualmente, os vizinhos compartilhassem entre si, ou com quem passasse pela rua, o cotidiano desenrolado no interior de suas casas. O delineamento de quadras adensadas era reforçado por outros provimentos que enfrentavam a questão das habitações em ruína e dos terrenos desocupados.

40. Proveu para evitar o dano que muitas vilas desta comarca têm padecido na sua povoação de muitos vizinhos venderem as suas casas a outros para as desfazerem e se aproveitarem das madeiras, portais e telha não só para fazerem outras casas na mesma povoação mas ainda para as conduzirem para fora; que os juizes, e oficiais da Câmara não consintam nesta vila semelhante destruição de casas nem ainda com o pretexto de se fabricarem outras pois é melhor conservarem-se feitas nas ruas continuadas que ficarem entre estas pardieiros para se fabricarem outras em diferentes ruas: e o que fizer o contrário condenarão o vendedor no preço por que vender as casas e ao comprador com outra tanta pena em que tem incorrido, e os juízes e oficiais da Câmara devem cobrar para o fisco real, na forma da Ord. L. 2. Título 26, § 27. 41. Proveu que quando os donos das casas as deixarem cair e arruinar sem as mandarem e quererem reparar, ficando em pardieiros os oficiais da Câmara os farão citar e às suas mulheres para que dentro de um ano as reparem e aproveitem e não o fazendo assim passado o ano dará conselho os ditos pardieiros com os materiais que neles houver, para quem os aproveite na forma da Ord. L. 4. Tit. 43 § 1. 42. Proveu que ainda que o conselho de anos atrás tenha dado chãos na vila a muitas pessoas para fazerem casas que não têm fabricado, antes se acham devolutos, daqui por diante não guardem os oficiais da Câmara, as ditas datas de chãos antigos, salvo as pessoas a quem foram dadas dentro destes primeiros seis meses vierem fazer neles casas, aliás os darão às primeiras pessoas que lhas pedirem e neles edificarem logo casas. E os chãos que daqui por diante derem na vila sempre será com a condição de que dentro dos primeiros seis meses os hão-de edificar, e ainda que lhes não ponham a dita condição sempre se entenderá serem dados com elas; por que não edificando as casas nos chãos que pediram se darão a outro que os pedir, e quiser edificar. Em nenhum caso poderá o que pediu chãos e lhe foram dados vendê-los sem ter neles feito benfeitorias, pois não é justo quem haja que se atravesse a pedir chãos em que não pode ou não quer fabricar casas impeça ao que pode, e as quer fabricar, de que resulta verem-se nas povoações muitas ruas, meias por fazer e mais injusto é que

281 pedindo um chão ao conselho que lhe dá de graça, os venda a outro; que os quer fabricar.185

Um último provimento precisa ainda ser apresentado, pois ele sintetiza a proposta de cidade produzida pelo Dr. Pardinho.

84. Proveu que daqui por diante nenhuma pessoa com pena de seis mil réis para o concelho faça casas de novo na vila sem pedir licença à Câmara, que lha dará, e mandará ao arruador, que para isso tem nomeado, lhe assine chãos, em que as faça, continuando as ruas que estão principiadas e em forma, que vão todas direitas por corda, e unindo-se umas casas com as outras, e não consintam, que daqui por diante, se façam casas separadas e desviadas para os matos, e sós como se acham algumas, porque além de fazerem a Vila, e Povoação disforme, ficam os vizinhos nela mais expostos a insultos, e desviados dos outros vizinhos para lhe acudirem em qualquer necessidade, que de dia ou de noite lhe sobrevenha, e é melhor, que em pouco terreno esteja a Vila bem unida, do que em largo com tantos despovoados.186

A mesma provisão foi ditada à vila de Curitiba, com a diferença de não fazer referências a um arruador. Por ser menor e menos importante, a vila do planalto ainda não devia dispor de um oficial com esse encargo. A tarefa de arruar era, provavelmente, assumida pelos próprios vereadores. Tomadas em conjunto, tais proposituras deixam explícito como o estado português do início do século XVIII concebia a ocupação do solo urbano. Seguindo a tradição iniciada nas cidades portuguesas quatrocentistas, o próprio ato de construir deveria estar condicionado a uma concessão do concelho. No caso específico dessas vilas do sul do Brasil, ao ser feita, a concessão obrigava o solicitante às demais normas ditadas às Câmaras pelo Ouvidor. As ruas deveriam ser continuas e retilíneas “de forma que vão direitas por corda”. Dever-se-ia impedir a construção de casas isoladas para não tornar a cidade “disforme”, pouco defensável e devassável a olhares indiscretos. Um último aspecto dessa proposta de cidade, também sintetizado no emprego do termo “disforme”, era a oposição formal entre cidade e campo. O propósito de dar às

185

Ver PARDINHO, Rafael Pires. Provimentos. BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE CURITIBA. Curitiba, v.1, p.20. 186

MARCONDES. Documentos. p.74-5.

282

vilas uma configuração definida, passava por eliminar a interpenetração entre o rural e o urbano. Contrariando a forma, uma cidade com definição menos compacta era mais operacional para essas populações setecentistas. Um terreno maior permitiria conjugar habitações e atividades econômicas de subsistência, como a criação de galinhas e porcos, ou o plantio de pomares e hortas. Ocorria que, do ponto de vista da concepção oficial de cidade, estas não eram atividades apropriadas ao espaço urbano. A cidade deveria comportar apenas atividades comerciais e artesanais, bem como as residências de quem estava ligado a tais afazeres. No caso brasileiro, ela também abrigaria a segunda habitação dos senhores rurais, ocupadas apenas quando se dirigiam à cidade para comerciar ou assistir aos ofícios religiosos. Um dos provimentos do ouvidor para Curitiba previa justamente a demarcação de um pasto para as montarias dessas pessoas que esporadicamente iam à vila.187 Os agricultores de subsistência teriam, na melhor das hipóteses, que morar nos rocios. Enquanto que, para Curitiba, as indicação deixadas pelo ouvidor sobre a conformação do espaço urbano eram princípios gerais, em Paranaguá ele foi bem mais preciso. Pardinho tinha competência técnica para desenhar plantas e planos para a cidade, todavia, não o fez. Ele usou seus provimentos para traçar um projeto geral da vila e chegou, inclusive, a demarcar ruas no próprio terreno.

84. Proveu, que defronte da porta principal desta Matriz se povoe a rua, que agora mandou abrir direta ao Rio; que ao menos terá quarenta palmos de largo, por ficar assim mais decente, e vista a mesma Igreja: e outrossim farão povoar a rua que fica na baixa do meio da Vila, com casas de uma e outra banda, [....] 87. Proveu que o Concelho em nenhum caso dê chãos para quintais grandes às casas, que ficam para a parte do mar, com os quais chegue até onde ele bate, pois neste vão, e chão se poderá pelo tempo em diante fazer, e formar uma rua com a serventia, e vista para o mar, com que ficará a Vila mais vistosa, e bem fortificada, para qualquer ocasião do inimigo; e ainda que a câmara contra esta provimento dê os ditos chãos para quintais, em todo o tempo se poderão tirar a quem os tiver, para se fazerem casas, e ruas neles; porém, o porto que fica defronte donde se hão de formar novas casas do Concelho, se não darão chãos para casas a pessoa alguma, pois há-de ficar servindo de praça ao paço do Concelho, que lhe devem pelo tempo adiante mandar

187

PARDINHO. Provimentos. op. cit. p.20.

283 fazer seu cais e molhe, para melhor desembarcadouro das fazendas, e um muro forte na barranceira, para que a rua, e serventia do paço do Concelho fique direita.188

Percebe-se que ele era detentor da sensibilidade espacial de sua época. Procurou explorar as possibilidades plásticas da igreja matriz através de um efeito de perspectiva, criando uma nova rua especialmente com esse objetivo. Previu, ainda, a execução de uma futuro conjunto de rua e praça beira-rio. Neste caso ele pretendia reproduzir o tema seiscentista das praças de ribeira que conjugam atividades portuárias e administrativas. A expressão maior deste tipo de espaço foi a ribeira manuelinas de Lisboa. Chegou inclusive a esboçar a planta de uma casa de câmara e cadeia para a vila, a qual ocuparia o lugar de destaque na futura praça. Para São Francisco do Sul, o ouvidor Pardinho elaborou propostas muito semelhantes e também desenhou o edifício sede da corporação municipal, que ficou semi-pronto em 1726.189 Através desses artifícios legais, que aos olhos de hoje parecem muito simples, o representante do estado central português procurava fazer com que as câmaras municipais assumissem como sua a tarefa de impor à população brasileira uma espacialidade urbana específica, na qual a rua retilínea e as quadras adensadas são o termo chave. Uma questão que deve ser investigada é se, e em que medida, essas orientações dadas pela coroa portuguesa eram seguidas pelas câmaras municipais. Estudando as atas da câmara de São Paulo, a historiadora Janice Theodoro da Silva chegou à conclusão de que no Brasil do século XVIII as municipalidades não operavam com os conceitos de público e privado e de arruamento tal como os concebemos hoje, o que só seria cabível a partir do século XIX.

1984. p.80.

188

MARCONDES. Documentos. p.75-6.

189

PEREIRA, Carlos da Costa. História de São Francisco do Sul. Florianópolis: Ed. da UFSC,

284 Deve-se, todavia tomar um certo cuidado quando se trata desse tema, porque se tende a ver a cidade sempre como uma rede de ruas que delimitariam o lugar de implantação dos edifícios. Entretanto isso corresponderia, na história do Brasil, à ótica do século XIX. Por esse ângulo, é-se levado a atribuir prioridade na implantação de uma cidade a partir da rua. Pelo que pudemos observar ao longo da leitura das Atas da Câmara, a opção dos colonizadores até o final do século XVIII não era em momento algum marcada por um projeto urbanístico, mas apenas pela concessão de datas, nas quais se viam obrigados a edificar.190

Afora a extrapolação direta do caso específico de São Paulo para o Brasil como um todo, generalização redutiva bastante contumaz entre historiadores paulistas, a historiadora paulista comete um dos mais espantosos enganos da historiografia brasileira sobre o tema.191 Os provimentos aos quais nos reportamos dão uma excelente mostra de que as restrições colocadas pela autora são apenas parcialmente pertinentes. Uma política de ocupação do solo baseada na concessão de datas não significa necessariamente uma ocupação aleatória do espaço urbano. É preciso ter em mente o acanhamento dos núcleos urbanos sobre os quais recaía o efeito normatizador dos provimentos. As disposições que acompanhavam a distribuição de datas, na medida em que explicitavam uma concepção específica de quadra e de rua, de público e de privado, de divisão de funções entre cidade e campo, procuravam conformar o espaço urbano a um modelo previamente estabelecido.

190

SILVA, Janice Theodoro da. São Paulo 1554-1880; discurso ideológico e organização espacial. São Paulo: Editora Moderna, 1984. p. 191

O que talvez a tenha levado a tal equívoco foi o recurso sistemático a um único tipo de documento, no caso, as atas das reuniões do concelho.

285

Mesmo a trama viária paulistana, que é o objeto das suas conclusões, se não era ortogonal, era bastante retilínea. Este tipo de arruamento jamais seria obtido pela concessão aleatória de carta de datas ou se a ótica da formação urbana recaísse sobre o edifício isolado e não sobre o arruamento. Em 1642, a câmara paulistana determinou que “se avaliassem uns chãos de Francisco João; e se lhe pagassem para assim ficar a vila mais enobrecida [....] a praça dela e que ficasse por assento que qualquer daquelas casas da mesma carreira que cair e se derrubar não se levante mais”.192 Não só ocorria a intervenção da câmara no traçado urbano mas ela era pautada por uma noção de projeto. Desde o século XVI, pelo menos, a mesma estratégia vinha sendo adotada pelas câmaras do reino, como Coimbra e Braga. Dava-se tempo ao tempo, redesenhando a cidade à medida que os edifícios fossem sendo renovados. Ao contrário do que supõe aquela autora, o estabelecimento de uma rede de ruas em retícula, não necessariamente ortogonal, delimitando quadras compostas de edificações contíguas, é fundamentalmente uma ótica do século XVIII, e não do XIX.

192

p.66-7.

SÃO PAULO. Ata da câmara de 30 de agosto de 1642. Citada de SILVA. São Paulo.

286

A criação da norma Acima, acompanhamos a atuação de ouvidores e câmaras na tentativa de regularizar cidades existentes. Vejamos agora, como eram as normas vindas de Portugal para a criação de novas vilas. Na capitania da Bahia, ocorreram diversas fundações durante período joanino. No entanto, as cartas régias que as autorizavam não se detinham em considerações sobre o traçado urbano, sua principal preocupação era a de criar foros de justiça municipal que atendesse uma população que se encontrava dispersa e distante das localidades instituídas. Itapicuru, por exemplo, foi elevada a vila, em 1728, para que os moradores da região passassem a ter “por este meio forma civil e política e quem lhes administre justiça e que se evitem os insultos que na falta dela se experimentam, ficando em paz e quietação”.193 Não há, nesta carta régia, qualquer referência a cuidados a ter quanto à forma urbana. Isto pode ser explicado pelo fato de que, na maior parte dos casos, tratava-se apenas de elevar localidades existentes à categoria de vila. No entanto, mesmo no caso de vilas novas, criadas por ordem expressa da coroa, as instruções não cobriam tais aspectos. É o caso de Jacobina, também na Bahia, fundada em 1722. Do ponto de vista urbanístico, o ano de 1736 parece representar uma viragem. A atuação pontual de alguns governadores e ouvidores foi substituída por um esforço sistemático. A partir desta data, todas as cartas régias destinadas à fundação de novas vilas trazem incorporadas indicações padronizadas sobre o traçado urbanístico e a escolha do local dos novos estabelecimentos portugueses na América. Não podemos esquecer que neste mesmo ano foi criada a Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar, ao qual ficam submetidas as colônias portuguesas. Até onde se sabe, a série documental de cartas régias padronizadas ordenando a criação de vilas inicia-se por Vila Boa de Goiás e Icó no Ceará.194

193

Carta régia transcrita nos comentários de Boal do Amaral às cartas de Vilhena. In: VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. Salvador: Editora Itapuã, 1969. v.3, p.578. 194

DELSON. New Towns. p.33, reproduzindo SILVA BRUNO, p.84.

287 Fui servido determinar por resolução do 7 de outubro do ano passado em consulta ao Conselho Ultramarino que se erija uma nova vila no Icó junto aonde se acha a Igreja Matriz elegendo-se para ela o sítio que parecer mais saudável e com provimento de água, demarcando-se-lhe logo Lugar da Praça no meio da qual se levante Pelourinho e em primeiro Lugar se delineiem e demarquem as ruas em linha reta com bastante largura deixando sítio para se edificarem as casas nas mesmas direituras e igualdade com seus quintais competentes de sorte que a todo tempo se conservem a mesma largura das ruas sem que em nenhum caso e com nenhum respeito se possa dar Licença para se ocupar nenhuma parte delas e depois das ruas demarcadas se assine e demarque o sítio em o qual se hajam de formar a casa da Câmara das Audiências e a Cadeia para que na mais área se possam edificar as casas dos moradores com seus quintais na forma que parecer a cada um como fiquem a face das ruas [....]. Lisboa Ocidental aos 20 de outubro de 1736.195

No mesmo ano, foi expedida a carta régia para a fundação da Vila Boa de Goiás, que a não ser por alguns pequenos detalhes repete a de Icó.196 A de Vila Bela, expedida em 1746, a D. Luiz de Mascarenhas, Governador e Capitão-Geral de São Paulo, amplia as prerrogativas dos moradores mas, no que concerne às disposições urbanísticas, praticamente copia a de Icó.

O sítio que se eleger para a fundação da dita Vila seja o mais saudável, e em que haja a boa água para beber, e lenha bastante, e se determine o lugar da praça no meio da qual, se levante o pelourinho, e se assinale área para o edifício da Igreja capaz de receber competente número de fregueses, quando a povoação se aumente, e fará logo ele ouvidor delinear por linhas retas, a área para as casas se edificarem deixando ruas largas e direitas e em primeiro lugar se determine nesta área, as que se devem fazer para a Câmara, Cadeia, Casa das Audiências, e mais oficinas públicas, e os oficiais da Câmara depois de eleitos darão os sítios que se lhe pedirem para casas e quintais nos lugares delineados e as ditas casas em todo o tempo serão feitas todas no mesmo perfil exterior, ainda que no interior as fará cada morador á sua vontade, de sorte que se conserve a mesma formosura da terra e a mesma largura das ruas.197

Vale notar que um dos integrantes do Conselho Ultramarino que assinam esta instrução é o nosso conhecido Rafael Pires Pardinho. A partir do século XVIII, torna-se corrente que muitos funcionários públicos portugueses de escalões altos e

195

Ver transcrição em SANTOS. Formação. p.44-5.

196

Esta carta está transcrita na íntegra em FERREIRA, Tito Lívio & FERREIRA, Manuel Rodrigues. História da civilização brasileira. São Paulo: Gráfica Biblos Editora, 1959. p.362-3. Na mesma obra está transcrita a ata de fundação de Aracati, criada em 1748 segundo os mesmos princípios urbanísticos, à p.384. Citando Revista do Instituto do Ceará, v.9, p.395. 197

Citado de SANTOS. Formação. p.61.

288

intermediários, momento em que já é possível qualificar essas pessoas desta maneira, passaram previamente por um período na administração da colônia brasileira. Do Brasil, alguns voltam a Portugal, onde passam a ocupar cargos mais altos, outros são enviados às demais colônias. Mais para o final do século, este movimento é acentuado e enriquecido pela inclusão nesta corrente de muitos ‘brasileiros’ que farão carreira militar e administrativa também nas outras colônias. Essa circulação de militares e letrados tende a dar consistência e unidade às práticas administrativas, inclusive, no que concerne a este estudo, ao modo de proceder em relação ao urbano. O principal marco da urbanização regular joanina foi a vila do Carmo, transformada, em 1745, na cidade de Mariana, para ser a sede do novo Bispado das Minas. Segundo ordens vindas de Portugal, o arruamento inicial da cidade, que seguia o padrão linear de muitas cidades mineiras, não deveria ser aproveitado mas substituído por outro, projetado num sítio mais plano localizado nas imediações.

se lhe ordena que façam logo planta da nova povoação, elegendo sítio para praça espaçosa, e demarcando as ruas, que fiquem direitas, e com bastante largura sem atenção a conveniências particulares, ou edifícios que contra esta ordem se achem feitos no referido sítio dos pastos, porque se deve antepor a formosura das ruas, e cordeadas estas se demarquem sítios em que se edifiquem os edifícios públicos, e depois se aforem as braças de terra, que os moradores pedirem, preferindo sempre os que já tiverem aforado no caso em que seja necessário demolir-se parte de algum edifício para se observar a boa ordem que fica estabelecida na situação da Cidade [...] ficando entendendo eles oficiais da Câmara e seus sucessores que em nenhum tempo poderão dar licença para se tomar parte da praça, ou das ruas demarcadas, e que todos os edifícios se hão de fazer à face das ruas, cordeadas as paredes em linha reta.198

O projeto do Brigadeiro Alpoim seguiu à risca tais instruções e o resultando foi uma cidade dual. O antigo arraial mineiro permaneceu e desenvolveu-se. Ao seu lado a cidade joanina em rígido traçado reticular.

198

p.88.

Citado de VASCONCELLOS, Sylvio. Vila Rica. São Paulo: Perpectiva: 1977. op. cit.

289

Acompanhando o esforço do Conselho Ultramarino na busca de impor um padrão regular de traçado urbano à colônia, somos levados a identificar esta regularidade com o poder régio. No entanto, tal conexão não é necessariamente verdadeira. A maior parte das cidades das Minas Gerais, nascidas dos arraiais de mineração, tenderam a um desenvolvimento linear aos longo dos caminhos. Apenas a nova Mariana, projetada pelo Brigadeiro Alpoim, têm um traçado regular. Há, também, um certo mito da ortogonalidade de Diamantina. Alguns estudiosos têm buscado ver no Arraial do Tijuco um esboço de traçado reticular e lamentam a inexistência de documentação que possa explicar a sua origem. O mito da regularidade do traçado do Tijuco foi estimulada por uma planta setecentista, que se encontra na casa do visconde de Ega. Aires da Mata atribuiu-lhe a data aproximada de 1750, no que foi, com razão, contestado por Sylvio de Vasconcellos, que posterga o desenho para a década de 1770.199 A ortogonalidade do desenho é uma distorção comum entre desenhistas do século XVIII que, freqüentemente, ‘melhoram’ o traçado das cidades que representam em planta ou em perspectiva. A comparação com o sistema viário atual do centro de

199

Ver VASCONCELLOS. Formação urbana. In: ARQUITETURA CIVIL. v.2, p.113.

290

Diamantina, que pouco se alterou nos séculos seguintes, não deixa dúvidas quanto a isso. De maneira alguma há uma retícula ortogonal no traçado da cidade. Sylvio de Vasconcellos afirma que o arraial tomou sua forma definitiva entre 1720 e 1750, ou seja, ela pertence ao período joanino.200 Portanto, o Tijuco surpreende muito mais por sua irregularidade do que pela regularidade. Como já vimos, neste exato momento, a coroa esforça-se para implantar o padrão urbano específico caracterizado por ser uninuclear, cujo centro gerador é uma praça, à volta do qual estão os principais edifícios, e pelo arruamento cordeado em grade perpendicular. O Tijuco é o oposto de tudo isso. Trata-se de uma cidade polinuclear, onde a cada edifício importante corresponde um largo. A tortuosidade e a largura variável das ruas demonstram que apenas alguns poucos trechos de seu arruamento foram traçados a cordel. Em Diamantina, chegou a existir um passadiço interligando dois casarões por sobre a rua, algo comum no Portugal da Idade Média mas raramente difundido nas colônias.201 Não esqueçamos que D. Manuel tentou bani-los no início do século XVI. Tudo isto se torna ainda mais surpreendente, se levarmos em conta o estatuto especial sob o qual se desenvolveu a cidade. Ela não possuía uma câmara e era administrada

diretamente

pelos

todo-poderosos

Intendentes

dos

Diamantes,

especialmente nomeados pela coroa. A cidade consolidou-se sob os olhos de um Rafael Pires Pardinho, responsável pela implantação da Intendência e que permaneceu no cargo durante toda a segunda metade da década de 1730. Conhecendo a sua aptidão urbanística, demonstrada tanto em campo, no sul do Brasil, como no Conselho Ultramarino, não é de se esperar que ele tivesse deixado passar em branco a oportunidade oferecida pelo cargo. Por tudo que se sabe da atuação dos intendentes e dos contratadores, que encaravam a demarcação dos diamantes quase como um império pessoal, a cidade deve ter-se desenvolvido sobre a marca da descontinuidade. Alguns devem ter manifestado

200

201

Ver VASCONCELLOS. Formação urbana. op. cit. v.2, p.106 e 112.

Ver MACHADO FILHO, Aires da Mata. Arraial do Tijuco, cidade Diamantina. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. p.263.

291

preocupações urbanísticas, outros não. Nesta cidade, cada ato era urdido no jogo de intrigas que a caracterizava. A construção de casas não deve ter fugido disto. Cada autorização deve ter sido encarada como um ato gracioso da autoridade que, ao dá-la, procura ganhar um aliado e, ao negá-la, pune um desafeto. Por todo o Império, os emissários e altos funcionários da coroa mostraram-se melhores ‘projetistas’ do que executores da cidade. Permaneciam nos lugares por curtos períodos e raramente davam continuidade às propostas dos antecessores. A sua preocupação com o traçado urbano era mais retórica do que real. Ocupavam-se com algumas grandes obras, que, não raro, introduziam distorções no ortogonalismo pretendido. Não era incomum que eles próprios promovessem, diretamente ou por parte de seus apaniguados, a usurpação das terras municipais destinadas a ruas e praças. Não era em vão que as cartas régias joaninas insistiam neste aspecto.

A CIDADE POMBALINA

Durante seu longo reinado, D. João V pouca atenção dispensou à urbanização de Lisboa. Concentrou-se em construir igrejas e palácios, com impacto apenas indireto na configuração física da cidade. Rei carola, acalentou a idéia de complexos arquitetônicos reunindo igreja, convento e palácio. A maior obra realizada dentro deste programa específico não se localizava na capital, mas em Mafra. Em Lisboa, o complexo das Necessidades, construído no alto de Alcântara, é mais um exemplo deste programa arquitetônico joanino. Já em seu tempo, D. João V era acusado de ser completamente dominado pelos frades e desperdiçar o ouro e os diamantes das Minas Gerais nestas obras. Em seu reinado, foi também abandonado um projeto feito em 1742, para aterrar as margens do Tejo, onde seria construída uma rua monumental e um grande

292

jardim.202 A obra de maior impacto urbano de seu reinado foi o aqueduto das Águas Livres, erguido entre 1732 e 1749. A construção deste aqueduto já fora sugerida por Francisco Manuel de Holanda a D. Sebastião, no século XVI, em seu Da fábrica que falece a cidade de Lisboa. Todavia, esta obra não foi feita pelo rei mas por iniciativa da câmara de Lisboa, embora tivesse contado com o favor régio. O aqueduto sobreviveu à catástrofe de 1º de novembro de 1755, quando Lisboa foi completamente arrasada por um terremoto seguido de um monumental incêndio. Dos escombros da cidade destruída surgiria a nova Lisboa iluminista e, com ela, entraria no palco da grande cena política Sebastião José de Carvalho e Mello, o futuro Marquês de Pombal. Ao assumir o controle da reconstrução de Lisboa, ele pavimentou seu caminho para tornar-se plenipotenciário do reino, ocupando o vazio de poder deixado por um rei frágil e em pânico com o terremoto, que é a imagem que se faz de D. José I. Outro personagem que agiu com presteza no momento da catástrofe foi Manuel da Maia, o engenheiro-mor do Reino. Pouco mais de um mês após o sismo, ele encaminhou ao Duque de Lafões, Regedor do Reino, uma Dissertação onde avaliava cinco hipóteses para a reconstrução da cidade. Na realidade cinco variações sobre três escolhas básicas. A primeira, a mais fácil delas, era simplesmente deixar aos proprietários a tarefa, aproveitando, ou não, para alargar as ruas e impor um limite de dois pavimentos, precaução contra futuros tremores de terra. A segunda, era aproveitar o momento para dar uma nova feição à cidade. A última, mais radical, era mudar Lisboa para outro sítio. Maia, pessoalmente, inclinava-se por esta última hipótese e propunha a região “entre S. João de Bencasados e o convento de N. Srª da Estrela”. Justificava a escolha por ser o sítio “salutífero” e com boas ligações “para a cidade e para o campo”.203 Todavia, a opção do rei, diga-se, Pombal, foi por manter a cidade em seu sítio original.

202

FRANÇA, José-Augusto. Lisboa: urbanismo e arquitectura. Lisboa: ICALP, 1980. p.34.

203

FRANÇA. Lisboa pombalina. p.294.

293

Feita esta escolha, Maia encomendou aos engenheiros Gualter da Fonseca, José Domingos Poppe e Eugênio dos Santos seis projetos para a reconstrução da cidade. Cada um se responsabilizou individualmente por um plano e por outro feito com o auxílio de um praticante da casa do Risco. Maia estabeleceu um programa para cada um desses projetos. Os três primeiros, realizados em dupla, formariam uma seqüência progressiva de estudos que partiam da simples regularização da estrutura viária existente, respeitando a localização das igrejas. Nos três últimos, os projetos individuais, cada um dos engenheiros tinha total liberdade de fazer propostas. O resultado foram três variações sobre o tema da retícula ortogonal, estruturada à partir da praça da Ribeira e do Rossio. O projeto escolhido foi o do capitão Eugênio dos Santos, o mais laico deles, pois simplesmente eliminava as igrejas da área entre o Rossio e a Ribeira. Com pequenas alterações, foi este o projeto posto em execução. Junto com as plantas foram apresentadas sugestões de fachadas a adotar nas áreas reconstruídas. Enquanto resolvia-se a questão do projeto, era preciso enfrentar os intrincados problemas fundiários que Maia antevira e que o levara a preconizar solução diferente. Isto foi feito com uma série de medidas legais. A primeira delas, ordenava a criação de um cadastro imobiliário.204 A seguir, foi editada uma lei proibindo que se reconstruíssem os imóveis sinistrados, excluíam-se “os consertos precisos para a reparação, e conservação das propriedades, que os terremotos deixaram em estado de servirem a seus donos”.205

204

PORTUGAL. Alvará de 29 de novembro de 1755. Collecção de Leis, Decretos e Alvarás, que comprehende o feliz reinado del Rei Fidelissimo D. José o I. Lisboa: Officina de Antonio Rodrigues Galhardo, 1797. 205

PORTUGAL. Aviso de 10 de fevereiro de 1756. op. cit.

294

PLANOS DE RECONSTRUÇÃO DE LISBOA

PLANO 1

PLANO 2

PLANO 3

PLANO 4

PLANO 5

PLANO 6 (APROVADO)

295

A peça legislativa mais importante foi o alvará, de 12 de maio de 1758, que se propunha a resolver a questão fundiária, criando normas para a redistribuição dos lotes, maneiras de calcular as indenizações daqueles que ficariam de fora e criando garantias financeiras para os investidores do empreendimento da nova Lisboa.206 O alvará chegava ao detalhe de revogar as constituições zenonianas, antecipando-se a batalhas legais na realocação dos proprietários. Esta constituição é o regulamento das construções de Constantinopla, editado pelo imperador Zenon, no século V.207 Ela regulava o afastamento entre edifícios e a altura deles, transformando a vista para o mar num direito adquirido. Não me consta da aplicação da constituição zenoniana no direito urbano português, mas, uma vez que ela vinha atrelada aos códigos justinianos, poderia ser chamada como argumento jurídico nas disputas com aqueles que perderiam a vista para o Tejo. O único caso concreto que conheço de uma situação como essa era a dos Corte-Real, a quem D. Manuel havia dado um privilégio, em 1516, que impedia qualquer construção à frente de seu palácio, obstruindo a vista do rio.208 Contudo, tratava-se de uma mercê do rei e não da aplicação das leis de Zenon. Por fim, datado de 12 de junho de 1758, chegam às mão do Duque de Lafões, os planos para a reconstrução da cidade. Estes planos, com força de lei, trazem consigo uma réplica legal dos desenhos, uma série de determinações sobre aspectos construtivos, a hierarquização das ruas e projetos de padronização arquitetônica.209 A cada tipo de rua correspondia um alçado padrão, que nesta altura eram apresentados como esboçados gerais, pois os prospectos definitivos ainda não estavam aprovados.

206

PORTUGAL. Alvará de 12 de maio de 1758. op. cit.

207

SETA, Cesare de. L’illuminismo critico di Giovanni Carafa duca di Noja e l’utopia urbana de Vicenzo Ruffo. In: POMBAL REVISITADO. Lisboa: Editorial Estampa, 1984. v.2. p.153. 208

Ver ARCHIVO DOS AÇORES. Ponta Delgada, v.4, 1882. p.530.

209

PORTUGAL. Plano 12 de junho de 1758. op. cit.

296 14. O prospecto desta rua, parece que seja da mesma elevação dos edifícios do Terreiro do Paço, mas com diferente simetria: compondo-se do número de andares, que couberem na sua altura, sendo as lojas de dezesseis palmos de pé direito; da mesma proporção os primeiros andares; e repartindo-se o que resta para encher a altura, com proporção pelos outros andares, que couberem: contanto, que as portas das lojas sejam iguais na medida; as janelas do primeiro andar de sacada, as do segundo de peitoril um pouco maias pequenas, e as dos mais andares da mesma sorte; mas diminuindo sempre com proporção dos andares mais altos. 15. A largura da rua deve ser de sessenta palmos: divididos de sorte, que quarenta deles fiquem livres no meio para carruagens: tendo no meio sua cloaca de dez palmos de largo, e quatorze de alto, e que por cada lado fiquem dez palmos para a passagem de gente a pé, com seus colunelos em justa proporção entre a rua, e as ditas passagens, para impedir, que nelas entrem as carruagens, como se acha praticado em Londres.210

A padronização arquitetônica em larga escala foi responsável por um dos aspectos mais interessantes e inovadores da reconstrução de Lisboa. Ela possibilitou a produção seriada de elementos arquitetônicos, tanto estruturais como decorativos. As esquadrias, o madeiramento, a cantaria e os azulejos, por exemplo, eram peças padrão. A exigência da rapidez fez com que se abandonasse, provisoriamente, o costume de se utilizar peças feitas sob medida para cada obra. Além disto, as maneiras tradicionais de construir foram abandonadas, devido ao temor da repetição do terremoto. Maia propôs, em sua dissertação, que os edifícios não ultrapassassem os dois pavimentos. As pressões dos proprietários fizeram com que esse princípio fosse abandonado e os prospectos padronizados chegaram aos quatro pavimentos acima das lojas térreas. Contudo, os engenheiros da Casa do Risco procuraram desenvolver uma técnica construtiva que minimizasse os desabamentos em caso de sismos. A busca voltou-se para o desenvolvimento de uma estrutura flexível que resistisse aos abalos. A solução encontrada foi bastante engenhosa. Na novas edificações, primeiro passou-se a construir uma estrutura gradeada de madeira, a gaiola, que depois era preenchida com alvenaria. Outra ‘inovação’ introduzida nas obras da Lisboa pombalina era de cunho político. Simultaneamente aos planos de reconstrução veio um decreto em que era dado “ao Duque Regedor a jurisdição em todas as matérias concernentes à reedificação da

210

PORTUGAL. Plano 12 de junho de 1758. op. cit.

297

cidade de Lisboa”. Esta lei terminava afirmando que “para o senado da câmara desta cidade se passou outro decreto semelhante com a mesma data de 12 de junho de 1758”. Ou seja, através destes decretos, Pombal retirou a competência da cidade sobre o construtivo, delegando-a a um agente do estado central. Um outro alvará pombalino proibiria qualquer interferência da câmara nas obras da Alfândega e da Praça do Comércio, que estavam a cargo da Junta do Comércio.211 Isto contrariava as expectativas do próprio Manuel da Maia, que imaginava, até então, que a implantação da nova cidade seria conduzida pelo senado de Lisboa. Ao referir-se à execução, sugeria que a baixa fosse refeita por partes, pois “se não pode reedificar toda ao mesmo tempo”. Propunha, então, que se escolhesse um setor, onde “o Senado terminasse os arruamentos, para que segundo ele se formasse logo os edifícios com os cômodos proporcionados”.212 Não foi o que ocorreu. O estado centralizado pombalino chamou para si a condução de todo o processo. As leis, que progressivamente foram detalhando a nova cidade, não eram posturas municipais mas uma legislação régia elaborada fora do quadro da câmara.

3. Em beneficio da mesma formosura da Cidade, e da comodidade pública dos seus habitantes, proíbo, que em cada uma das Ruas novas dela se edifiquem casas com altura maior, ou menor ou com simetria diversa daquela, que for estabelecida nos prospectos, que mando publicar para a regularidade dos mesmos edifícios, e que não poderão nunca ser alterados, sem especial dispensa minha. 4. Semelhantemente proíbo, que nas sobreditas Ruas haja ângulos entrantes, ou salientes, que dêem lugar a serem neles surpreendidos insidiosamente os que de noite passarem pelas ditas Ruas. 5. Proíbo igualmente que nas mesmas Ruas, ou nas paredes e no ar livre delas, se fabriquem poiais por fora, degraus, ou escadas, cortes, ou entradas para lojas, ou oficinas subterrâneas, releixos, cachorradas e galarias em prejuízo do prospecto, e da passagem pública. 6. Proíbo da mesma forma que nas janelas, ou em qualquer outro lugar sobre as ruas públicas, se façam alegretes, prateleiras, ou qualquer outra estância, ordenadas se porem nela craveiros, ou cousas semelhantes.

211

PORTUGAL. Decreto de 12 de junho de 1758. op. cit. Ver, também, OLIVEIRA, Eduardo Freire de. Elementos para a história do Município de Lisboa. Lisboa: Typographia Universal, 1887. t.16, p.335 e 340. 212

OLIVEIRA. Elementos. p.306.

298 7. Proíbo da mesma sorte que nas janeiras das casas, situadas em ruas, que tenham quarenta palmos de largo, e daí para cima, haja rótulas, ou gelosias, que além de deturparem. o prospecto das ruas, tem o perigo de se comunicarem por elas os incêndios de uns a outros edifícios: Excetuando somente as lojas, e casas térreas, que se acharem no andar das ruas expostas à devassidão dos que por elas passam.213

Durante a reconstrução de Lisboa, a cidade do Porto deu início a um programa de obras que levaria a profundas alterações em sua fisionomia urbana. O crescimento desordenado nas áreas extra-muros, levaram a câmara a postular que os impostos criados em 1762, por ocasião da guerra com a Espanha, continuassem em vigor e fossem revertidos para obras de melhoria da cidade. Para a aplicação desses recursos, foi criada uma Junta das Obras Públicas, composta pelos oficiais da câmara (juiz de fora, vereadores e procurador) e presidida por João Almada e Mello, o Governador das Armas, e primo de Pombal.214 Apesar da supremacia do presidente da Junta, não ocorreu nada parecido com o intervencionismo pombalino em Lisboa. A Junta era uma extensão da câmara, que participou de todas as fases do planejamento e das obras. A historiografia deu ênfase a atuação de João Almada e Mello e fala-se no Porto dos Almadas ou na Época dos Almadas. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que o governador não era estranho à cidade. Através de seu casamento, Almada e Mello integrou-se à burguesia local, gozando, inclusive, dos privilégios dos cidadãos do Porto. O uso do plural é uma referência a seu filho, Francisco de Almada e Mendonça. Contudo, este segundo Almada, nem de longe teve a preponderância do pai. Foi apenas mais um entre os diversos presidentes que assumiram a Junta, após 1786, quando morreu João Almada. Além de ter ocupado a presidência da Junta, por pouco mais de um ano, o seu maior envolvimento foi com as obras da Praça da Ribeira, pelas quais foi responsável.

213

214

PORTUGAL. Alvará de 15 de junho de 1559. op. cit.

A data da criação da Junta das Obras públicas do Porto é controversa. Alguns autores, sem citar suas fontes, afirmam que foi em 1758. Outros, recorrendo aos Arquivos da câmara do Porto, datam o início dos trabalhos da Junta em 1763. ALVES, Joaquim Jaime B. Ferreia. O Porto na época dos Almadas; arquitectura; obras públicas. Porto: Câmara Municipal, 1990. v.1, p.175 e 179-80.

299

No Porto, o que parece ocorrer é uma união de interesses. João Almada queria mostrar serviço. Já a câmara, tentava explorar a ascendência que o governador pudesse ter sobre seus parentes melhor situados na estrutura de decisão do governo central para obter recursos financeiros. Não era uma tarefa fácil, pois tratava-se de abrir uma outra frente de obras num momento em que recursos de todo o império estavam sendo canalizados para a reconstrução de Lisboa. O interlocutor de João Almada não era outro senão o nosso conhecidíssimo Francisco Xavier de Mendonça Furtado, através de quem tenta obter a autorização do rei, diga-se Pombal.

Com efeito consegui da câmara o darem uma conta a Sua Majestade sobre a planta do novo bairro do Laranjal, do qual já há tempos te mandei uma planta, e por sinal que tu não me destes o teu parecer, porém como essa cidade é portuguesa, e País em que nascemos, e devemos amar, como bons compatriotas, espero que pelos teus bons ofícios e diligências minhas, mande Sua Majestade aprovar com as circunstâncias que aponta a conta da Câmara; e se eu valho alguma coisa para contigo me interesso todo, para se alcançar esta resolução com brevidade.215

Finalmente, foi concedida a autorização para levar em frente as obras do bairro. No entanto, aquilo que era uma proposta e um pleito de João Almada e da câmara do Porto tornara-se uma decisão do estado central que “ordena”

A Câmara dessa cidade do Porto me representou com o plano e alinhamento e prospecto que serão com esta assinados por Francisco Xavier de Mendonça Furtado ministro e secretário de Estado dos Negócios do Reino e Domínios Ultramarinos a utilidade que seria para o maior cômodo da serventia dessa cidade e para a formosura dela continuar a rua chamada das Hortas passando na forma do referido plano pelos laranjais e quinta de José Gomes até Santo Ovídio e atendendo a sobredita representação e a que sendo essa cidade a segunda deste Reino e uma das mais distintas da Europa assim pela sua situação e povoação como pelo comercio das três províncias delas adjacentes. E desejando concorrer para o seu aumento e decoro sou servido ordenar-vos que logo que receberes esta façais alinhar abrir e demarcar Pelos oficiais da Infantaria com exercício de engenheiros que acháreis mais próprios à sobredita rua na forma do referido plano.216

215

ALVES. O Porto. p.176.

216

Citado de ALVES. O Porto. p.204.

300

O preço da intermediação do Governador das Armas foi a sua supremacia na condução das obras da cidade. A convivência entre Almada e a câmara do Porto atravessou períodos difíceis. O presidente da Junta tentou, por mais de uma vez, autonomizá-la, tirando-a da alçada camarária. A principal fonte de atritos era a destinação das verbas. Os procuradores, no exercício de suas funções, precisavam de recursos para a manutenção da cidade. Entretanto, todo o dinheiro disponível ia para obras novas em regiões ermas da cidade, ainda mal habitadas, enquanto se deterioravam as ruas existentes. De qualquer forma, Almada nunca conseguiu ver-se livre da convivência incômoda com os oficiais da câmara. Por força da participação da câmara no processo de reformulação urbana do Porto, observa-se uma diferença de fundo em relação ao que ocorreu na capital. Em Lisboa, a legislação que deu suporte à nova feição da cidade, até ao detalhe da padronização dos alçados, era emanada do governo central, cabendo à câmara, no máximo, dar a sua chancela ao que era decidido fora de seu âmbito. Já no Porto, para o mesmo efeito, a câmara se responsabilizou, diretamente, por criar uma legislação específica. Os diversos padrões arquitetônicos adotados na cidade, foram detalhados através de posturas municipais. O que se conclui é que, apesar do vulto do empreendimento, as obras foram executadas dentro dos procedimentos correntes das câmaras municipais. Sob certo ponto de vista, intervir na malha urbana do Porto era mais complexo do que fazê-lo em Lisboa, onde o terremoto já se encarregara das demolições. Enquanto na capital, a realocação dos proprietários foi resolvida através de uma negociação, ou imposição geral, no Porto ela se deu caso a caso. A demora dos processos judiciais de desapropriação retardou o avanço de muitas obras. O problema só foi resolvido em 1769, quando a legislação lisboeta de 1758 foi estendida ao Porto.217 Assim, as reformas portuenses assumiram um caráter mais pragmático. Não houve a formulação de um plano global mas, a existência de sucessivos projetos.

217

ALVES. O Porto. p.196.

301

Apenas no Plano de Melhoramentos de 1784, aparece esboçada uma proposta geral para a cidade. Aos poucos, a Junta foi concebendo uma estrutura viária radial para a cidade nova. Esta configuração começara pela abertura da rua do Almada e foi sendo complementada com o alargamento, retificação e prolongamento das Ruas de Santa Catarina, da Cedofeita e Direita. Também foram esboçadas algumas ruas de interligação entre essas radiais; entretanto, essas conexões ficaram incompletas, sem chegar a formar anéis concêntricos. A ligação completou-se apenas à altura da muralha, onde foram abertas duas vias. Uma primeira bordejava a antiga cerca. Mais tarde, o espaço ocupado pela própria cerca fernandina, que foi sendo demolida à partir de 1788, deu lugar a uma segunda rua de contorno ao semicírculo da cidade velha. O núcleo urbano do interior da cerca fernandina também sofreu uma série de reformulações, cujo objetivo básico era articular a área baixa da cidade, a Ribeira, com a cidade alta, e esta com a nova estrutura viária suburbana. O novo eixo de ligação criado pela Junta foi a rua de São João, construída sobre o rio da vila, que foi canalizado e coberto. Além dos eixos viários os projetos previam a completa restruturação da praça da Ribeira e a reforma de diversos largos, aos quais se pretendia dar formas geométricas mais regulares.

302

O argumento de fundo das reformas portuenses era evitar que as construções fossem feitas segundo o “particular capricho” dos proprietários. Isto já aparece enunciado nos projetos da abertura da rua do Almada. Todas as novas ruas foram pensadas como eixos monumentais e eram acompanhadas de projetos de arquitetura padronizada, as vezes para ruas inteiras, outras para certos segmentos. As praças receberam projetos completos, que incluíam edifícios monumentais e dispunham sobre a arquitetura particular. A questão, no entanto, era fazer com que os planos, tanto dos arruamentos como das fachadas padronizadas, fossem seguidos pelos proprietários. O resultado no Porto ficou muito aquém das pretensões. Em parte, por hesitação da própria junta, que foi alterando os projetos, e em parte, pela recusa dos moradores em segui-los.

303

Outra intervenção urbana pombalina foi a construção ‘em cinco meses’ da Vila Real de Santo Antônio, às margens do Guadiana. As obras começaram em 1773, e tinham o intuito de marcar presença frente aos espanhóis na fronteira do extremo sudeste português.218 Tratava-se de efetivar o domínio de um território pela presença no terreno, um dos sentidos que preside as fundações setecentistas no ultramar. São do período, os tratados de definição das fronteiras luso-espanholas no continente sulamericano, nos quais vigorou o conceito do uti possidetis. A nova Santo Antônio foi concebida como um reticulado retangular, centrado por uma praça cívica e comercial, esquema semelhante ao utilizado nas colônias. O que difere, é que na vila algarvia o pormenor do projeto atingiu as edificações, diversas delas erguidas pelo próprio estado, o que não ocorreu no ultramar.219 Um fato surpreendente sobre Santo Antônio é que ela ilustra, com perfeição, a cidade colonial portuguesa. Se os governadores das capitanias brasileiras e africanas dispusessem dos recursos financeiros e dos meios técnicos utilizados na construção da vila algarvia, eles teriam construído vilas semelhantes às dezenas. Não era necessário ter visto alguma vez Santo Antônio ou seu projeto. Nem ao menos era necessário ser engenheiro. Qualquer funcionário burocrático minimamente qualificado seria capaz de projetar cidades como aquela, como, de fato, aconteceu. Quando da reconstrução de Lisboa, da edificação de Santo Antônio ou das vilas coloniais, essas soluções já pertenciam a um certo senso-comum.

218

A construção da Vila Real de Santo Antônio demorou mais de dois anos, entretanto, a propaganda pombalina alardeava tê-la concluído em cinco meses. 219

Ilustração reproduzida de IRIA, Alberto. Vila Real de Santo António reedificada pelo marquês de Pombal. 1773-1776. ETHNOS. 3, 1948.

304

Cidade colonial ou cidade iluminista? Apesar de ter produzido a mais completa obra sobre a reconstrução pombalina de Lisboa, José-Augusto França acabaria por construir algumas armadilhas nos quais acabou por se enredar. França, em primeiro lugar, enreda-se na hispanofobia, tão cara à historiografia lusitana, o que o fez passar ao largo de toda a experiência urbanística hispano-americana. Por outro lado, há nele um excessivo apego a exemplos europeus do século XVIII. Em conjunto, os pressupostos em que se baseia, acabam por dar, de antemão, os resultados a que chegará. Excluídas as experiências pertinentes, não lhe resta outra saída que não postular a autonomia, quase que absoluta, do caso lisboeta. Experiência fechada em si mesma, um pouco atribuída a um vago ‘espírito do tempo’ que nada deve a exemplos da Europa contemporânea e em quase nada influenciará outras experiências de urbanização e reurbanização

E, no entanto, a obra da Baixa, o processo urbanístico que ela concretiza, teve ecos fora, no Sul do País, tal como no Porto assim como no Brasil e Índia. Se o Algarve, muito atingido pelo terremoto, mereceu cuidados de reconstrução, nomeadamente em Tavira, em 1773, Pombal, querendo construir uma nova povoação, Vila Real de Santo António, perto da Fronteira de Espanha, para uma colônia de pescadores e servindo novos interesses programados para a região, fez imitar por Reinaldo Manuel, o plano da Baixa. No Porto, um governador, primo de Pombal, criou, em 1758, uma Junta de Obras públicas com o fim de promover o melhoramento da cidade - à qual o ministro aplicou, em 1769, a legislação lisboeta de 12 de Maio de 1758. [....] Note-se ainda que individualidades de origem pombalina, como o intendente Pina Manique e o capitalista Bandeira, viriam a realizar incipientes urbanizações em terras próprias, Manique do Intendente e Porto Covo.220

Quanto ao universo colonial português, as influências antevistas por França limitam-se ao seguinte.

Por seu lado, observamos rapidamente que, depois de ter visionado, em 1761, uma nova capital colonial no interior do Brasil (que não chegou a ser objeto de formulação urbanística), em 1770, em 1773, em 1777, também no Brasil, se traçaram planos geométricos para a nova cidade de Mazagão (Pará) e para Vila Bela de Mato Grosso,

220

FRANÇA. Lisboa Pombalina, p.144-5.

305 em 1775 e em 1776 pensaram-se para Goa arranjos semelhantes - embora, no caso brasileiro, se atuasse no quadro de uma tradição colonial jesuítica.221

A última afirmação ilustra a redução a que França submeteu a experiência urbanística portuguesa ao resumi-la a um episódio puramente metropolitano e lisboeta. A insistência européia do autor, levou-o a abandonar hipóteses investigativas que seriam fecundas ao seu trabalho. Em conseqüência, a experiência da baixa pombalina foi autonomizada. O que Maia procurou, em vão, não foi um modelo espacial para a cidade, mas informações sobre o processo decisório, argumentos que embasaram uma ou outra escolha e as implicações legais das escolhas feitas. Quanto a isso, não há duvidas sobre a autonomia do processo Lisboeta. No entanto, isto não o autonomiza in totum. Como se percebe, Maia não estava alheio ao que ocorria na Europa em matéria de urbanização. Ele tinha conhecimentos de dois casos em que havia similitudes com o de Lisboa: Londres, destruída por um terremoto em 1651, e Turim, recentemente reedificada. Todavia, como só obteve informações esparsas, presumiu que, nas duas cidades, as catástrofes tinham ficado aquém do que ocorrera em Lisboa.

A matéria de que se trata, ainda que não seja tão nova que deixe de ter havido outra semelhantes , é contudo necessário ponderar-lhes as diferenças das ocasiões em que se fizeram, porque nem Londres, nem Turim se achavam os povos flagelados como os de Portugal quando reformaram aquelas cortes, e vai muita diferença de obras em tempo mais ou menos calamitoso para ser mais ou menos facilitada a execução.222

Ainda assim, é possível imaginar que a reconstrução de Londres tenha fornecido a Maia a idéia de mandar elaborar diversos projetos alternativos pois, na capital inglesa, foi exatamente o que ocorreu. As informações que Manuel da Maia obteve estavam apenas aproximadamente corretas. As ruas de Londres não foram

221

FRANÇA.Lisboa Pombalina. p.144. Em obra posterior ele tomou o cuidado de retirar a referência aos jesuítas e substituíla por “experiência colonial anterior” FRANÇA. José-Augusto. A reconstrução de Lisboa e a aquitectura pombalina. Lisboa: ICALP. 1981. 2.ed. p.76. 222

FRANÇA. Lisboa Pombalina. p.301.

306

delineadas “como as nossas da vila de Tomar”.223 Caso tivesse obtido informações mais precisas, saberia que na Inglaterra prevalecera a solução que ele mais desaconselhava. Se os projetos elaborados na Casa do Risco fossem apresentados à mesma comissão inglesa que escolheu o plano de reconstrução de Londres teria vencido a proposta nº 1, que se limitava a retificar e ampliar as ruas preexistentes. Outros projetos, cheios de elucubrações formalistas, como o de Christofer Wren, foram deixados de lado. A City tinha pressa e não estava disposta a perder tempo com as dificuldades que acarretavam a opção por maiores mudanças. Por pouco, Londres não foi reconstruída pela simples substituição dos imóveis incendiados, mantendo a antiga malha urbana.224 Até agora temos aceitado a visão eurocêntrica de José-Augusto França. Ele consegue imaginar que a reconstrução pombalina de Lisboa teve no “Brasil e na Índia”. Em nenhum momento, parece ter imaginado que possam ter ocorrido influências em sentido contrário. A reconstrução de outras capitais européias forneceram a Maia informações um tanto vagas, frustrando-o. A única possibilidade, era voltar-se à própria a experiência portuguesa. É o caso de perguntar, qual era a experiência portuguesa em edificar cidades novas? O velho engenheiro, há anos a serviço da coroa, até por dever de ofício, deveria conhecer inúmeras plantas das novas cidades coloniais, que, nesta altura, é a mesma coisa que dizer do Brasil. A primeira metade do século XVIII, como já vimos, foi um período fértil em projetos de cidades regulares. Além disto, os engenheiros mandados às colônias levantaram o traçado viário de muitas das cidades brasileiras fundadas em épocas anteriores. Manuel da Maia permaneceu no reino, mas é impossível que não tivesse contato com essa produção. Mesmo porque, ele era colega de alguns dos engenheiros das colônias ou fora professor de outros. Também não é plausível que Maia ignorasse o que fazia o Conselho Ultramarino.

223

FRANÇA. Lisboa Pombalina. p.306.

224

MORRIS, A. E. J. Historia de la forma urbana. Barcelona: Gustavo Gili, 1984.

307

Todavia, onde a Dissertação de Maia cala-se, José Figueiredo Seixas é explícito. Este arquiteto portuense foi o autor de um tratado de urbanismo que sintetizava a experiência pombalina e procura torná-la norma geral para o país. Em seu Tratado de Ruação, ele foi diretamente ao ponto.

Raras vezes em muitos séculos de anos, sucede edificam-se inteiramente de novo uma regular povoação. Quanto a mim só me ocorre, que se edificasse a cidade do Rio de Janeiro, e por isso se acha com os seus arruamentos, edifícios e praças suficientemente regulares.225

Seixas nunca esteve no Brasil, e seu conhecimento do urbanismo colonial português deve ter sido mais precário que o de Manuel da Maia. O Rio de Janeiro estava muito longe de ser uma cidade edificada “inteiramente de novo”. Tratava-se de uma cidade semi-regular que cresceu lentamente. A forma urbana do Rio deve-se a diversos fortificadores que, desde o século XVII, permaneceram na cidade, à presença dos vice-reis na cidade e à atuação da câmara municipal. Para alguém como Seixas, preso a um ideal iluminista de superação da tradição, este método corrente de produzir o traçado urbano jamais produziria um resultado tão regular como no Rio de Janeiro, uma regularidade que as plantas exageravam. O arquiteto portuense deve ter conhecido alguma cópia do projeto das fortificações do Rio do Brigadeiro Messé (1713) ou, mais provavelmente, o levantamento feito pelo Capitão André Vaz Figueira (1750). Outro que deve ter tido contato com essas plantas foi Carlos Mardel, a quem foi entregue a responsabilidade pelas edificações da Praça do Rossio, em Lisboa. Mardel projetara um chafariz para as obras do Largo do Carmo, a ribeira do Rio de Janeiro, remodelada por José Fernandes Pinto Alpoim.226 Se Figueiredo Seixas, que permaneceu no Porto, possuía este tipo de informação, é difícil conceber que Maia não as tivesse.

225

SEIXAS, José Figueiredo. Tratado de ruação. f.10 BNL. Reservados. (manuscrito).

226

SANTOS. Formação. p.94-5.

308

Outro indício de uma provável influência colonial, é a ausência de diagonais nos projetos de reconstrução de Lisboa. No mesmo período, os arruamentos diagonais difundiam-se pela Europa. No entanto, os projetistas da nova Lisboa passam ao largo dessa experiência e repetem, sem grandes variações, aquilo que vinha sendo proposto como norma para as colônias, desde D. João V. A experiência colonial, em geral, e a americana, em particular, foram cruciais ao desenvolvimento do urbanismo ocidental. Não são alguns poucos exemplos escolhidos aqui e ali, através da Europa, que dão sentido à difusão e à preponderância do urbanismo regular. Estranhamente, os livros dedicados à forma urbana tratam a experiência americana, fundamentalmente a espanhola, como um capítulo à parte. O século XVIII, marca uma devolução desta experiência. Os quadros militares burocráticos, e mesmo religiosos, circulam constantemente entre as diversas partes do império. Muitos portugueses nascidos nas colônias passam a integrar os quadros administrativos do império, acelerado as trocas entre suas diversas partes. Assim, é difícil determinar se Lisboa foi o modelo do Rio de Janeiro ou viceversa. Em ambas, um arruamento regular, que se desenvolve num vale entre colinas, estabelece uma ligação entre uma praça de ribeira com outra interior. Algo semelhante acontecia em Goa. Angra, nos Açores, repete este modelo em escala reduzida. De certa forma, o traçado da nova Lisboa, só é compreensível de partíssemos dela no século XVII, fizéssemos uma peregrinação pelas cidades coloniais para, na segunda metade do século XVIII, voltar a Lisboa. O período iluminista não foi especialmente inventivo do ponto de vista das soluções urbanas. Ele apenas consolida conceitos e práticas vigentes desde o renascimento, para não falarmos da última Idade Média.

309

DE LISBOA A LISBOA PERCURSO DA CIDADE ORTOGONAL PORTUGUESA

LISBOA

ANGRA (AÇORES)

RIO DE JANEIRO

LISBOA POMBALINA

310

MENDONÇA FURTADO E A CIDADE POMBALINA

Tanto pelos princípios urbanísticos adotados como pela constância das personagens envolvidas, é inaceitável autonomizar as reformas urbanas que ocorrem em Portugal do processo de urbanização das colônias. O melhor exemplo dessas recorrências é a atuação de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão de Pombal. Há pouco, vimos que ele teve uma certa participação na reformulação do espaço urbano do Porto. Na mesma época, vamos encontrá-lo profundamente envolvido com a urbanização das colônias. Veja-se que a sua experiência nesta área foi adquirida nessas mesmas colônias e não em Portugal. Antes de ter participação ativa na administração da metrópole, ele passou pela experiência de Governador e Capitão-Mor do Estado do Grão-Pará e Maranhão. Entre as suas incumbências na Amazônia, estavam a de fundar a Capitania de São José do Rio Negro e uma vila para ser a sua sede, segundo as instruções contidas na Carta Régia de 3 de março de 1755. Mendonça Furtado não cumpriu à risca tais instruções e acabou escolhendo para sede da capitania local diferente do indicado. Opta pela antiga aldeia de Mariuá, onde fica à espera do plenipotenciário espanhol que viria para conduzir, juntamente com ele, a demarcação das novas fronteiras entre os territórios portugueses e espanhóis na América.

E para que a referida Vila se estabeleça com maior facilidade, e estas mercês possam surtir o seu devido efeito: Sou servido ordenar-vos, que aproveitando a ocasião de vos achardes nessas partes: passando à referida aldeia, depois de haverdes publicado por editais o conteúdo nesta, e de haverdes feito relação dos moradores, que se oferecerem para morar, convoqueis todos para determinado dia, no qual sendo presente o Povo, determinareis o lugar mais próprio para servir de Praça; fazendo levantar no meio dela o Pelourinho; assinando área para edificar uma igreja capaz de receber um competente número de fregueses, quando a povoação se aumentar; como também as outras áreas competentes para as casas das vereações, e audiência, cadeias e mais oficinas públicas, fazendo delinear as casas dos moradores por linha reta, de sorte que fiquem largas, e direitas as ruas. Aos Oficiais da Câmara, que saírem eleitos, e aos que lhes sucederem, ficará pertencendo darem gratuitamente os terrenos que se lhes pedirem, para casas, e

311 quintais, nos lugares que para isso se houverem delineado, só com a obrigação de que as ditas casas sejam sempre fabricadas na mesma figura uniforme pela parte exterior, ainda que na outra parte interior as faça cada um conforme lhe parecer, para que, desta sorte, se conserve sempre a mesma formosura da vila, e nas ruas dela a mesma largura que se lhes assinar na fundação. [....] Lisboa, 3 de março de 1755.227

A ação urbanística de Mendonça Furtado, durante seu governo no Grão-Pará, compreende dois aspectos. Um deles foi a elevação de algumas dezenas de aldeamentos indígenas, até então administrados por religiosos, à categoria de vila.228 Adiante voltaremos à abertura do município a populações antes excluídas. Quanto à sua ação urbanística mais direta, ela não foi particularmente notável. A sua vila de Barcelos ficou longe das expectativas. Mais característica, foi a criação da vila de Macapá, onde foram estabelecidos colonos especialmente trazidos dos Açores. No projeto de Macapá, houve uma quebra intencional da noção de rua como seqüência de fachadas. As casas previstas não ocupam a totalidade das testadas dos lotes. Belém, ganhou diversos edifícios monumentais que pretendiam caracterizá-la como a capital do Estado do Maranhão e Grão-Pará. Obras que marcam a introdução da arquitetura neoclássica no Brasil, antecipando o que ocorreria em Portugal. Não pela intervenção direta de Mendonça Furtado, mas dos engenheiros que com ele trabalhavam, em ambos os casos ocorreram ruptura com certos padrões vigentes. A sua maior obra, no entanto, seria feita após retornar a Portugal e assumir a Secretaria dos Negócios de Estado. Dessa secretaria ele passa a conduzir a criação sistemática de municípios em todos os cantos do Império, sem se descuidar de enviar instruções relativas à forma urbana aos responsáveis por promover as fundações.

227

FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Diário da viagem philosófica pela Capitania de São José do Rio Negro. 1758. RIHGB, XLIX, 1886. p.152-3. 228

Sobre o tema há já uma ampla bibliografia. Ver: ARAUJO, Renata Malcher de. As cidades da amazónia no século XVIII. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa:, 1992. 3.v. (Dissertação de mestrado policopiada).; DIAS, Manuel Nunes. Política pombalina na colonização da Amazônia. 17551788. STVDIA, Lisboa, n.23, abr.1968. (Separata p.7-26).;_____. Estratégia pombalina de urbanização do espaço amazónico. BROTÉRIA, Lisboa, v.115, n.2-4, ago.-out.1982. PEREIRA, Arnaldo António. Para uma caracterização da política colonial pombalina; a administração de Francisco Xavier de Mendonça Furtado no Estado do Grão-Pará e Maranhão. 1752-1759. In: PRIMEIRAS JORNADAS DE HISTÓRIA MODERNA. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 1986. v.2. p.1075-98.

312

Durante sua gestão, ele se encarregaria de difundir as instruções que recebera em 1755 para todos os territórios coloniais portugueses, transformando-as numa espécie de manual administrativo da criação de novas vilas. Uma cópia passaria a ser sistematicamente incluída nos regimentos dados a capitães-governadores e ouvidores das capitanias do Brasil e da África. Como ele próprio fez questão de deixar registrado em diversos documentos, os princípios urbanísticos então adotados não eram de sua invenção mas a reprodução das instruções que recebera da corte quando enviado ao Grão-Pará. É importante frisar, mais uma vez, que estas normas pertencem à primeira metade do século XVIII, uma vez que há um certo mito na historiografia especializada de que elas pertencem ao período pombalino. Algumas obras recentes continuam a afirmar que, como reflexo do que ocorreu em Portugal, “as instruções emanadas da coroa josefina para a criação de aglomerados passarão a incluir indicações precisas sobre planos a executar, fornecendo dimensões de ruas, praças e quarteirões”.229 O autor se refere às instruções enviadas por Mendonça Furtado, sem se dar conta que ele não passou a enviá-las mas continuou a fezê-lo. Com pequenas diferenças, encontramos cópias e referências ao diploma de 1755 na documentação relativa ao Piauí, Ceará, Bahia, Minas, São Paulo, Angola e Moçambique. Em relação às instruções joaninas, são poucos os acréscimos introduzidos. Elas passam a contar com um preâmbulo mencionado o quanto era útil à coroa a criação de novos município e criam a obrigatoriedade de substituir os nomes das localidades “impondo-lhes os nomes das vilas mais notáveis deste reino, ou conservando os das referidas freguesias, no caso que não sejam bárbaros”.230 Esta última ordem enquadra-se na proposta de substituir o uso das línguas nativas, que haviam sido mantidas pelos missionários, pelo português.

229

230

FERRÃO. Projecto. p.109.

BARRETO, Paulo Thedim. Casas de câmara e cadeia. REVISTA DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL, Rio de Janeiro, n.9, 1947. p.197.

313

Se multiplicam, e vão multiplicando A proliferação pombalina de vilas não pode ser entendida sem levarmos em conta a política de difusão municipal e de “civilização” de nativos que está sendo adotada no mesmo período e cujos efeitos se estendem a todo o império. Entre os séculos XV e XVII, havia uma espécie de divisão de tarefas: à coroa cabia a criação de cidades, enquanto aos donatários e outros agentes da conquista coube a criação de vilas. Mesmo nos casos de capitanias estabelecidas pelo poder real ou posteriormente assumida por este, tal situação permaneceu inalterada, criando-se uma assimetria quanto à distribuição das vilas. Este detalhe já não passava desapercebido no século XVII. Um comentário de 1656, a propósito de uma petição dos moradores dos Campos dos Goitacázes para que a sua povoação fosse elevada a vila, nos dá uma idéia sobre o assunto.

O que suposto; me pareceu representar a V. Majestade que convém muito a seu Real serviço conceder-se faculdade a este governo para poder criar vilas das povoações, que os moradores forem fazendo por toda a costa, tendo o números de vizinhos que V. Majestade determinar. A experiência mostra evidentemente, quanto a falta de jurisdição é causa de não estar mais povoado este estado: pois nas partes onde os Donatários a concedem aos seus capitães-mores, se multiplicam, e vão multiplicando sempre as vilas; como se viu na de Pernambuco, e se vê com maior excesso na de S. Vicente; e pelo contrário, nas donde o poder toca ao Governo, se não acrescentou uma só.231

A exata inversão da política restritiva mencionada acima pelo conde de Atouguia, foi uma das características marcantes da ação urbanística pombalina. No Brasil, a proliferação de municípios foi notável no Estado do Grão-Pará e Maranhão onde, por motivos estratégicos, os portugueses tinham pressa em marcar a sua presença. Nesta região, foram estabelecidos algumas dezenas de municípios, quase sempre resultantes da elevação de antigas missões religiosas à categoria de vila.

231

Citado do anexo documental de SILVA, José P. da. A capitania da Baía. REVISTA PORTUGUESA DE HISTÓRIA, Coimbra, v.11, n.1, 1964. p.62.

314

Todavia, a multiplicação da organização municipalística portuguesa não ficaria restrita à Amazônia. Por todo o lado um pouco, encontramos funcionários do estado português criando novas vilas. Na Capitania de Porto Seguro, por exemplo, foram criados 7 novos municípios. Na do Piauí foram expedidas ordens para a criação de outros 8, além da elevação da vila de Mocha a cidade. Em São Paulo, só o Morgado de Mateus ordenou a criação de mais de 10, excluindo o Paraná e o oeste de Santa Catarina, que na altura integravam a capitania. Quando possível, estes funcionários procuravam estabelecer traçados urbanos regulares nos municípios que fundavam ou elevavam a vila. Há uma tendência em identificar a cidade planejada com a presença de engenheiros militares. De fato, no século XVIII, a utilização de profissionais de engenharia, por parte da administração colonial portuguesa, tornara-se corriqueira. Na Bahia e no Maranhão, ainda no século XVII, foram estabelecidos cursos de fortificação. Na região amazônica e no Mato Grosso, onde conjuntamente à política de expansão municipal foi criado um sistema de fortificações, os engenheiros militares portugueses seriam presença constante. Recentemente, alguns autores tem insistido na vinculação estreita entre a cidade ortogonal e a presença de engenheiros. É o caso do historiador português Miguel Faria e da brasileira Renata Malcher de Araújo.232 Note-se, porém, que a tarefa de projetista não coube apenas aos engenheiros. Em muitos casos, foram ouvidores e outros funcionários burocráticos a conduzir isoladamente o processo de urbanização, chegando, inclusive, a desenhar plantas de novas vilas. Vejamos em ação, por exemplo, José Xavier Machado Monteiro, ouvidor da Capitania de Porto Seguro. Em carta de 1 de abril de 1772, sobre a fundação de Portalegre, diz o seguinte:

232

FARIA, Miguel Figueira de. A engenharia militar no Brasil setecentista: cartografia, urbanização e fortificação. Gênova: 1993. (provas para edição). ARAÚJO, Renata Malcher de. Engenharia militar e urbanismo. In: MOREIRA, R. (org.) História das fortificações portuguesas no mundo. Lisboa: Alfa, 1989.

315 Logo lhe fiz abrir, demarcar e alinhar os seus arruamentos em que ainda não se acha casa alguma coberta de telha e dos quais já remeti à Secretaria de Estado o borrão da planta; assim como fiz dos de Vila Viçosa.233

Se, independentemente de sua formação, os funcionários insistiam neste modelo urbanístico era porque tinham em mãos um conjunto de instruções que Mendonça Furtado se incumbira de irradiar para as colônias. Diferentemente do caso espanhol do século XVI, onde o princípio da regularidade urbana fora transformado em lei, Portugal, no século XVIII, adotou esse mesmo princípio como norma administrativa. A atuação dos ouvidores da Capitania de Porto Seguro tem chamado a atenção dos estudioso pelas peculiares experiências de “civilização” dos indígenas ali conduzidas.234 A criação de vilas de índios na região foi concomitante às da Amazônia, iniciando-se por Vila Verde (1758) e Trancoso (1759). No entanto, está melhor documentado o período de Tomás Couceiro de Abreu, que fundou Prado (1764) e Belmonte (1765). As instruções vindas de Lisboa enfatizam que ação do ouvidor deveria ser pautada tanto pelo Diretório dos Índios, quanto pelas normas urbanísticas adotadas pelo Conselho Ultramarino. Nos autos da elevação da vila do Prado, em 12 de dezembro de 1764, Couceiro de Abreu afirma que tudo fez

na forma da Carta Régia que Sua Majestade foi servido mandar escrever ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Governador e Capitão-General que foi do Pará e Maranhão, datada do dia 3 de março de 1755, a qual há de ficar registrada nos livros da Câmara ao diante do registro destes autos que também neles hão de ficar lançados para em tudo se lhe dar a mais exata e indefectiva observância, bem entendido que cada morada de casa de cada um dos moradores deve ter de frente cincoenta palmos, de fundo trinta e cinco e que se há de compor de uma sala com suas portas e janelas para a rua, um quarto para os pais dormirem, outro para os filhos, uma casa de despensa e outra para a cozinha, e o quintal há de ter de comprido oitenta palmos e de largo os cincoenta de fronteira da casa, os quais todos hão de ter a mesma frente, altura portas e janelas e para que se

233

REVISTA DO INSTITUTO GEOGRAPHICO E HISTORICO DA BAHIA, Salvador, 21(42), 1916. p.56. 234

O processo já foi abordado em DELSON. New towns. e FLEXOR, Maria Helena Ochi. Núcleos Urbanos planejados do século XVIII e estratégia de civilização dos índios do Brasil. In: SILVA, Maria B. Nizza da (coord.). Cultura portuguesa na terra de Santa Cruz. Lisboa: Editorial Estampa, 1995. pp.79-88.

316 não saia desta regularidade assistirá ele dito Ministro a fundação e factura de algumas moradas deixando-lhes demarcadas todas as demais.235

Segue o ouvidor Abreu dando conta dos demais atos, demarcação das terras da vila e das quatro léguas em quadrado para seu rendimento, conforme previsto na mencionada Carta Régia. No entanto, como se observa, ele vai além do estipulado. Estabelece uma planta padrão, em total discordância com a Carta Régia, a qual prescrevia que as casa deviam ser “fabricadas na mesma figura uniforme pela parte exterior” mas que no interior cada um fizesse “conforme lhe parecer”. Abreu, portanto, deu ênfase ao espírito civilizador do Diretório em detrimento à carta régia. Uma vez que os índios não dominavam a forma civilizada de morar, precisavam ser apresentados e submetidos a esta casa. Em outro documento onde explica as suas pretensões, ele detalha a possibilidade de existirem dois dormitórios para os filhos, de forma a separá-los por sexo.236 Como bem observou a geógrafa norteamericana Roberta Marx Delson, este ouvidor procura substituir a organização parental indígena pela família uninuclear cristã européia.237 Nisto, ele segue fielmente o que propõe o Diretório dos Índios.

Sendo também indubitável, que para, a incivilidade, e abatimento dos índios, tem concorrido muito a indecência, com que se tratam em suas casas, assistindo diversas Famílias em uma só, na qual vivem como brutos, faltando aquelas Leis da honestidade, que se devia a diversidade dos sexos; do que necessariamente se há de resultar maior relaxação nos vícios; sendo talvez o exercício deles, especialmente o da torpeza, os primeiros elementos com que os pais de família educam a seus filhos: cuidarão muito os diretores em desterrar das povoações esse prejudicialíssimo abuso, persuadindo aos índios que fabriquem as suas casas à imitação dos brancos ; fazendo

235

REVISTA DO INSTITUTO GEOGRAPHICO E HISTORICO DA BAHIA, Salvador, v.3, n.10, dez.1896. 1916. p.536-7. Instruções ainda mais detalhadas do que essas aparecem em suas Instruções para o Governo dos Índios da Capitania de Porto Seguro. ABNRJ, v.32, 1914. p.376. 236

ABNRJ v.32, 1914. p.38.

237

DELSON. New towns. p.125.

317 nelas diversos repartimentos, onde vivendo as famílias com separação, possam guardar, como racionais, as leis da honestidade, e polícia.238

É difícil estabelecer o quanto destes propósitos chegaram a ser postos em prática, ou permaneceram como um exercício de escrita, apenas. Pouco depois, morre Abreu no exercício do cargo. Em “Belmonte e Prado eretas por meu antecessor em que não havia ainda casas nem arruamento lhos fiz abrir”, afirma José Xavier Machado Monteiro, novo ouvidor-geral da capitania, desde 1767.239 Monteiro foi um substituto à altura, que não ficou aquém quanto aos propósitos urbanísticos e civilizatórios de seu antecessor. No início da década de 1770, ele fundou Vila Viçosa, Portalegre (Mucurí) e Alcobaça. Para nossa vantagem ele era dado ao desenho, o que nos permite conhecer melhor as suas propostas para o traçado urbano, tanto das vilas que acabara de fundar como para as estabelecidas pelo seu antecessor.

VILA VIÇOSA

238

Diretório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará, e Maranhão. Citado em DELSON. New towns. p.6. 239

REVISTA DO INSTITUTO GEOGRAPHICO E HISTORICO DA BAHIA, Salvador, não.21, v.42, 1916. p.56.

318

Machado Monteiro utiliza módulos retangulares padrão nas plantas em que desenha. No entanto, ele abandona por completo o unicentrismo que vinha sendo proposto pela seqüência das instruções do Conselho Ultramarino. Por vezes, ele cria uma praça da câmara e outra da igreja, como em Vila Viçosa e na do Prado. Outras vezes, propõe um esquema tríplice, acrescentando um largo para o cruzeiro. Suas soluções espaciais são mais ricas do que aquelas adotadas pela maior parte dos funcionários coloniais, fossem eles engenheiros ou letrados. Suas praças não eram o resultado da manutenção de uma quadra vazia, no interior da retícula. Tais espaços eram obtidos pela supressão de parcelas das quadras modulares, nos quais enquadra a igreja, o pelourinho ou o cruzeiro. Trata-se de um recurso de perspectivação freqüentemente utilizado desde o renascimento. É bom que se diga, que na legislação burocrática de planejamento colonial, quer espanhola quer portuguesa, estes preceitos são abandonados em nome de um esquema simplificado, que é a praça cívico-religiosa. Como se observa, tanto Monteiro como Couceiro de Abreu fogem completamente das instruções que se propõem a atender. No entanto, não se conhecem restrições por parte do Conselho Ultramarino, ao qual seus projetos e propostas foram submetidos. Há uma tendência a supervalorizar a retícula unicentrada, considerando-a como uma experiência crucial ao urbanismo ocidental. No entanto, estes simples reticulados estavam muito aquém do que pessoas sem formação em engenharia eram capazes de fazer. Eles foram propagados pela legislação, apenas e justamente por sua simplicidade. Eram uma espécie de exigência mínima, feita por desconfiança em relação aos executores, que, como vimos, eram detentores de capacidades técnicas muito desiguais. Apesar dos cuidados urbanísticos tomados por alguns de seus criadores, as vilas de índios, no geral, foram um fracasso. Uma das causas principais foi o regime compulsório de trabalho ao qual os indígenas estavam submetidos, o que os mantinha permanentemente fora da sede urbana de suas vilas. A conseqüência foi o perpétuo estado de abandono das mesmas.

319

No caso das missões transformadas em vilas, houve inclusive uma involução urbana. Praticamente não existem descrições dessas missões antes do período pombalino para que possamos fazer comparações seguras. Todavia, os dados disponíveis apontam para uma rápida dissolução da maioria delas após a implantação do Diretório. Tendência que leva a extinção institucional e física das mesmas, algumas ainda no século XVIII. Nas poucas que sobreviveram, os índios foram alijados dos ofícios municipais pelos outros moradores, como ocorreu em Paço do Lumiar e Viana, no Maranhão.240 A disposição espacial das missões transformadas em vilas pouco mudou após terem seu estatuto alterado. Em muitas delas, as áreas consideradas nobres foram apropriadas por parte dos moradores brancos. Os índios acabaram expulsos das ruas beira-rio e das imediações das praças. Com raríssimas exceções, elas nunca chegaram a ter uma casa de câmara e cadeia. A pobreza generalizada e o reduzido número de moradores impedia qualquer melhoramento urbano. O que o naturalista Alexandre Ferreira observou para a vila de Tomar é válido para quase todas as outras.

Nem há casa de câmara, nem tão-pouco de cadeia; serve de cadeia a do calabouço da povoação; o pelourinho, que existe, apenas mostra, que um dia o foi; a câmara não tem dinheiro, para o restabelecer; existia no cofre a quantia de 800 réis, na última função real, que ela teve de solenizar; comprou-se com eles um pote de manteiga para as luminárias, e acabou-se o dinheiro. Tão humilde e sincera é a confissão que os camaristas fazem de sua pobreza!241

À época, nem mesmo Barcelos, sede da Capitania do Rio Negro, contava com uma casa de câmara.

240

RÖHRING-ASSUNÇÃO, Mathias. Transferência de vilas no Maranhão oriental. CADERNOS DE PESQUISA, São Luís, v.5, n.2, jul.-dez.1989. p.3. 241

FERREIRA. Diario. op. cit. v.48, 1885, p.25.

320

Se pode facilmente erigir desta sorte Para completar, vejamos em que medida os mesmos processos estão ocorrendo nas demais colônias portuguesas. Mesmo porque a administração do império colonial português foi mais unificada do que costumamos supor e o seu estudo conjunto leva a um ganho de inteligibilidade em relação a recortes nacionais que não dizem respeito ao século XVIII. Comecemos por Angola, que, desde a expulsão dos holandeses, de lá e de cá, formava um todo econômico e social com o Brasil.242 Sem desconsiderar as intervenções urbanizadoras que Luanda sofreu sob os governos de Antônio Alvares da Cunha e de Antônio de Vasconcelos, Francisco Inocêncio de Souza Coutinho (1764-1772) pode ser tomado, por excelência, como o governador pombalino de Angola. Atendendo às sempre presentes instruções de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Souza Coutinho conduziu um vasto processo de fundação e de transferência de povoações, iniciando pela criação de Nova Oeiras em 1766.243 Nesta localidade, ele tentou instalar uma fundição de ferro. Face ao fracasso da experiência, a povoação foi posteriormente abandonada. No mesmo ano, ordenaria a transferência do ‘presídio’ de Caconda para um local que deveria ser “elevado, um pouco sobre a planície, com água boa, lenhas, e terras capazes de produzir trigo, e todas as mais plantas”. Em 1769, foi fundada Novo Redondo, cuja localização foi escolhida por uma brigada de engenheiros. Através de uma carta a Furtado, datada de 18 de outubro de 1769, podemos acompanhar Coutinho na descrição da continuidade de sua obra, que, pelo uso reiterado de topônimos portugueses, parecia transformar em profecia as palavras do donatário Paulo Dias de Novais.

A esta completa disposição se seguiu a formatura de uma povoação na Província de Huíla paralela ao Cabo Negro, porém muito no interior da Terra a que dei o nome de Alva Nova, e logo outra na província de Luceque a mais vizinha dos Rios de Sena a

242

Ver o caso de Benguela, que, no processo de independência do Brasil, queria ser incluída

no novo país. 243

A existência de diversas Oeiras, no Brasil e em Angola, é simplesmente uma homenagem a Pombal, que foi conde de Oeiras, antes de receber o título de marquês.

321 que dei o nome de Sarzedas, pouco depois se fez outra em Quitala com o nome de Contins, e se lhe seguiu uma em Quipeio a que chamei Passo de Souza, e em Galangue Grande outra com o nome de Linhares, fica-se trabalhando em outra nos Quilengues, e será das que permitir o número de vagabundos, que se vão juntando na maior força.244

A ação urbanizante de Coutinho foi além. Ordenou, ainda, a reinstalação da antiga feira do Dondo e a fundação de Benguela Velha, local de uma das primeiras tentativas de fixação portuguesa, no início da colonização de Angola. Em relação a este processo, são dois os pontos a merecer atenção. Quanto à concessão do foro de vila, a ação de Coutinho foi econômica, provavelmente por não conseguir reunir o número mínimo de moradores previsto na legislação. Em seu governo, apenas Benguela (1771) veio juntar-se a Luanda e Massangano como município português em terras angolanas. Na verdade, ele inventou uma espécie de estatuto pré-municipal. Criou, para cada localidade, um juizado de vintena e o cargo de “zelador do bem comum”, ambos elegíveis pelos homens bons. O segundo ponto diz respeito à forma da cidade. Coutinho contava com a presença de engenheiros portugueses e de desenhistas formados em Luanda. Ainda assim, as novas fundações angolanas não foram estabelecidas segundo traçados urbanos ortogonais. Há indícios de que em Nova Oeiras isto tenha ocorrido e Malange é tendencialmente ortogonal. O caso mais próximo de utilização do característico traçado pombalino foi na transferência da antiga feira do Dondo para as margens do Cuanza. Na ilha de São Tomé, embora nã tenha sido criada nenhuma nova câmara municipal durante o período, o governador João Manoel de Azambuja envolveu-se num projeto de urbanizar, à força, a população das freguesias rurais. Os núcleos resultantes deste processo ficaram conhecidos como “vilas”, sem que, legalmente, o fossem. O brigadeiro Raimundo José da Cunha Matos permaneceu durante anos na ilha, onde deve ter tomado conhecimento dos métodos nada ortodoxos utilizados pelo antigo governador para cumprir o desiderato urbanizatório.

244

ARQUIVOS DE ANGOLA, Luanda, n.1, out.1933. s.p.

322 A vila da Santíssima trindade foi fundada pelo Governador João Manoel de Azambuja no de 1779 junto ao alto monte em que existia a igreja paroquial, uma légua a oés-sudoeste da cidade. Antes desta fundação os moradores dos territórios das freguesias habitavam em barracas maiores ou menores e em algumas boas casas nas suas fazendas, e roças. O Governador obrigou-os a construírem casas junto às igrejas e deu-lhes os nomes de vilas, criou comandantes e juízes de vintena, e seus meirinhos e escrivães. Como a gente do mato não cumprisse imediatamente a ordem do Governador e lembrando ele das calúnias que vários cônegos parentes dos pretos mais grados das freguesias lhe haviam assacado, mandou fazer treze painéis grandes com os retratos ou coisa que parecia dos treze cabeças da revolução de 1744, quatro dos quais foram enforcados e nove sentenciados a galés na Bahia: e ordenou que tais painéis fixos em varas mui compridas acompanhassem um corpo de tropa e os ajudantes e sargentos em forma de procissão, tocando todos os tambores bando em que ordenava à gente que dentro de 15 dias construísse as casa nos lugares destinados para serem vilas, na certeza de que aqueles que o não fizessem seriam logo enforcados como o tinham sido os que estavam pintados nos painéis. O bando produziu o seu efeito: em 15 dias levantaram-se as vilas porque todos sabiam que o Governador não faltava à sua palavra, pois pelo menos os mandava apolear. Alguns cônegos eram filhos dos originais dos retratos. A vila da Trindade tem uma grande rua e várias travessas com 170 casas todas humildes e de madeira e a maior delas é a do Governo à qual dão o nome de Palácio ou Casa da Torre, e aí se conserva constantemente um corpo de guarda de um cabo e seis soldados.245

No mesmo processo, além da ‘vila’ de Santíssima Trindade, o governador Azambuja criou as de Santa Maria Madalena, Santo Amaro, Nossa Senhora de Guadalupe e Santa Ana. Todas junto às respectivas igrejas paroquiais e nas quais foi construído um ‘palácio’, ou casa da guarda. Ainda segundo Cunha Matos, em 1800, foi edificada a vila de Santa Cruz dos Angolares, quando “os povos angolares vieram prestar obediência ao Governo contra quem tinham estado em guerra desde o tempo em que naufragaram”.246 Em Moçambique repete-se o mesmo quadro do período. Voltamos a chamar atenção para o constante cruzamento de funcionários e instruções entre as diversas colônias portuguesas. Encontramos aqui, novamente, o ubíquo Francisco Xavier de Mendonça Furtado a repetir suas instruções. Desta vez, para João Pereira da Silva

245

MATOS, R. J. da Cunha. Compêndio histórico das possessões de Portuga na África. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça e Negócios Interiores / Arquivo Nacional, 1963. p.134. 246

MATOS. Compêndio. p.134. A origem dos angolares, a que se refere o brigadeiro, é bastante obscura. Alguns autores supõem que fossem remanescentes do naufrágio de um navio negreiro. Também é possível que fossem descendentes de escravos fugidos das plantações de cana-de-açúcar. Em qualquer dos casos, o termo designa uma situação semelhante aos quilombolas do Brasil.

323

Barba, Governador de Moçambique entre 1763 e 1765.247 Foi ele o responsável pela elevação de Moçambique a vila, em 1763. Durante o seu governo, as antigas feitorias de Tete, Sena e Quelimane foram transformadas, respectivamente, nas vilas de São Tiago de Tete, São Marçal de Sena e São Martinho de Quelimane. Sempre, cumprindo as ordens que Mendonça Furtado enviara, em 1761, a seu antecessor, que morrera antes de assumir o cargo. Nestas instruções, ordenava a elevação a vila das localidades de Zumbo, Manica, Sofala, Hinhambane e Ilhas Quirimba, além das acima mencionadas.248 Silva Barba, além de ter ficado pouco tempo no governo de Moçambique, não demonstrou maiores pendores para a urbanização. Ao que tudo indica, cumpriu burocraticamente as ordens recebidas de Lisboa, criando municípios em série, pouco se ocupando com a formação dos respectivos núcleos urbanos. Algumas dessas vilas não possuíam número competente de moradores para a criação da vila, como no Zumbo, por exemplo, cujos moradores escrevem ao governador, desculpando-se pela falta de população.249 Na região, apenas Moçambique era um assentamento urbano consolidado. Em relação às outras localidades elevadas a vila no período, pode-se dizer que Sofala era uma feitoria decadente, Sena e Tete eram núcleos urbanos incipientes e as demais eram vilas apenas no papel. Em diversas relatos sobre os assentamentos moçambicanos nas décadas seguintes, fica patente que eles frustravam as expectativas urbanas de quantos os descreveram. “Não tem regularidade alguma esta vila [de Quelimane], nem gênero de ruas, e mais é um misto de quintais, e casais vizinhos umas às outras, do que vila”.250 “No dito Zumbo há também Senado da Câmara totalmente inútil porque ali não

247

AHU. Avulsos de Moçambique. Códice. 1323.

248

AHU. Avulsos de Moçambique. Transcrito em SILVA, José Rui de O. P. A primeira carta orgânica de Moçambique. 1761. Lisboa: Universidade de Lisboa, 1957. 249

HOPPE, Fritz. A África Oriental Portuguesa no tempo do marquês de Pombal, 1750-1777. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1970. p.449. nota 77. 250

ANDRADE, António Alberto de (ed.). Relações de Moçambique setecentista. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1955. p.355.

324

há cultura, nem moradores estabelecidos, e só sim se demoraram naquela feira os já ditos mercadores volantes”.251

Alguns mais radicais diziam que mesmo Sena, Tete e Quelimane “nada mais têm de vila senão o nome”.252 António Pinto de Miranda, o autor desta afirmação foi secretário do governo de Moçambique durante um curto período. Se dependesse de sua vontade, teria transferido a vila de Moçambique da ilha onde estava situada. Miranda foi um visionário criador de cidades de pedra e cal.

De como em Moçambique se pode erigir da outra banda uma cidade, e dela abrir-se estrada real a Quelimane O aumento desta Conquista pende muito, da edificação desta cidade, a qual se deve edificar na outra banda, fronteira a Ilha de Moçambique, em o lugar mais proporcionado. Concorrendo os moradores da dita vila se pode facilmente erigir desta sorte. Cada pessoa estabelecida em Moçambique pode por vinte escravos prontos, e estes para que não fujam se prenderão como os forçados das galés, e com cada 10 andará um soldado municiado, primeiro para algum insulto ou fuga que eles queiram fazer, como para mais diligência trabalharem. Isto assim feito ficarão 100 com ofício de cabouqueiros a tirar pedra de cal, 100 com carros de mão a conduzir esta para a praia, 100 em embarcações para a porem na outra banda., outros 100 para a levarem ao lugar em carros de mão adonde se há de largar o fogo a cal, 100 para cortar madeira, e 100 para conduzirem pedra para o lugar da cidade, 100 para conduzirem cal e areia, e 50 para trabalhadores, ou para ajudarem

251

ANDRADE. Relações. p.334

252

ANDRADE. Relações. p. 258.

325 os oficiais que estes hão de ser 50 europeus, e casados, importa tudo 750 escravos os quais todos devem andar em ferros com guardas.253

Miranda não aceitava uma cidade que não fosse edificada em pedra e cal, o que causava algum embaraço, pois havia falta deste insumo na região. Mas isto era apenas um detalhe facilmente contornável. Bastava que o rei ordenasse que “os barcos que do Reino, América, Goa e Norte vierem para estes portos sejam obrigados a trazer por lastro tantas mil pedras de cal”. A mudança e reconstrução de Moçambique era apenas o começo de seus planos.

A tempo que a cidade de Moçambique e Quelimane se fabrica, se erige juntamente a de Sena, e Tete, e se abrem os caminhos para as minas de Manica e Zumbo, como agora direi. Também no Luabo se deve edificar uma vila, e pelas barras levarem-lhe cal as maxuas, e do lugar donde se tirar a pedra para a cidade de Quelimane levar-se para o Luabo.254

Segue explicando que “Manica forçosamente deve ser cidade” e “da cidade que deve haver no Zumbo”. “Depois disto se conquistará tudo pela terra dentro, e cada novo casal estabelecido se lhes dará uma légua de terra, a qual será dividida em marcos para cultivarem ao modo europeu”. Ou seja, António Pinto de Miranda concebeu um plano completo para, em poucos anos, transformar Moçambique em Europa. Foi destituído de seu cargo por Baltazar Manuel Pereira do Lago (1765-1779), o governador pombalino de Moçambique, por excelência, que recebeu o epíteto de “Pombal de Moçambique”, por parte de alguns autores.255 Este governador, que viveu uma espécie de exílio branco, pois seus pedidos para retornar a Portugal nunca foram atendidos, foi responsável por um conjunto de pequenas obras nas diversas vilas. Durante seu governo, algumas câmaras municipais ganharam sede própria, outras tiveram seus edifícios reformados. Pereira do Lago

253

ANDRADE. Relações. p. 272.

254

ANDRADE. Relações. p.277.

255

NORONHA, Eduardo de. Baltazar Pereira do Lago; o marquês de Pombal de Moçambique. CADERNOS COLONIAIS, n.23, 1939. p.1-37.

326

também se envolveu com a melhoria das construções defensivas. Na vila de Moçambique, ele deu início, em 1775, ao arruamento do novo bairro de São João de Deus. Numa descrição de 1788, esta nova área contava com “mais de sessenta moradas de casas de pedra, e cal, e algumas delas de sobrado, e bem fabricadas”.256 Apesar de bastante regular, o arruamento do bairro não chega a conformar uma retícula ortogonal, pois não houve uma maior preocupação com o paralelismo das ruas. Mais exemplos não faltam. Na Índia pode-se mencionar a criação dos municípios de Salcete e Bardez, ou os projetos para a reconstrução de Goa. Na África, o característico traçado de Bissau, à sombra da fortaleza edificada pela pombalina, Companhia do Maranhão e Grão-Pará.

A CIDADE QUE CIVILIZA

A maior especificidade do período pode ser encontrada no papel atribuído ás cidades, bem como na maneira como os seus moradores foram pensados. Pretendia-se um duplo enquadramento dos habitantes das colônias: pela cidade (forma) e pelo município (instituição). Isto nos permite falar num efeito ‘pedagógico-civilizatório’ da pertinência à cidade. O Diretório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará, e Maranhão era explícito quanto a isso.

Ordena o dito senhor que as povoações dos Índios constem ao menos 150 moradores, por não ser conveniente ao bem espiritual, e temporal dos mesmos índios, que vivam

256

ANDRADE. Relações. p.386.

327 em povoações pequenas, sendo indisputável, que à proporção do número de habitantes se introduz neles a civilidade, e comércio.257

Alguns observadores contemporâneos ao processo fariam a crítica às vilas então criadas no Brasil e na África, lembrando que, muitas delas, não eram vilas senão no nome. Outros argumentavam com o poder civilizatório da cidade, para justificar a alteração da política colonial, mesmo que as novas vilas não atendessem, de imediato, as expectativas quanto à forma e ao bom funcionamento das instituições. Para que as cidade pudessem exercer seus efeitos positivos, o primeiro passo seria encaminhar as pessoas até elas. Um exemplo da minha própria cidade, Curitiba, nos dá uma pista de como o processo foi conduzido. Em 1766, seria ordenado à câmara municipal que tomasse medidas obrigando a “que todos os homens que nos ditos sertões se acharem vagabundos ou em sítios volantes sejam logo obrigados a acolherem lugares acomodados para viverem junto a Povoações civis que pelo menos tenham cinqüenta fogos acima”.258 Os homens espalhados pelos territórios das colônias, sem vinculação a alguma câmara municipal, ou sem estarem empregados em algum estabelecimento agrícola, seriam comparados a “membros podres ou paralíticos do corpo humano que não são úteis para o bem comum, nem para si”.259 Em Angola, já vimos Souza Coutinho em ação, juntando na “maior força” os “vagabundos”. O regimento dado em 1761 a Calixto Rangel, quando de sua indicação para Governador de Moçambique, diz que um dos maiores serviços que se pode fazer à coroa é a criação de municípios de forma a “reduzirem-se os habitantes das mesmas vilas, e seus termos, à sociedade civil”.260 Como se percebe, há uma ação coerente, comandada a partir da metrópole, que atinge a totalidade das colônias.

257

PORTUGAL. Diretório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará, e Maranhão. Collecção de Leis, Decretos e Alvarás, que comprehende o feliz reinado del Rei Fidelissimo D. José o I. Lisboa: Officina de Antonio Rodrigues Galhardo, 1797. Tomo 1 - 1750-60. 258

Citado de PEREIRA, Magnus R. M. & SANTOS, Antônio C. A. Câmara Municipal de Curitiba: 300 anos. Curitiba: Câmara Municipal, 1993. p.23. 259

Citado de PEREIRA & SANTOS. Câmara Municipal. p.23.

260

SILVA. A primeira carta. p.201.

328

A municipalização, desde o início da expansão portuguesa, foi utilizada como instrumento colonial. Através das instituições municipais, os portugueses e seus descendentes são mantidos no papel de colonizadores. Pertencer a algum município era uma forma de privilégio restrito a esse núcleo de pessoas. Isto, apenas em teoria, pois existiram exceções em dois sentidos: os que desertaram a sua origem portuguesa e os que não se enquadravam em tal categoria mas acabaram sendo reconhecidos como colonizadores. No primeiro caso, tivemos alguns portugueses e descendentes, mais freqüentemente mestiços, como os ‘tangomaos ou lançados’, que se tornaram grupos autônomos ou se enquadraram nas sociedades receptoras, agindo à revelia do estado português. No outro extremo, a cidadania portuguesa foi garantida a grupos que, em princípio, estariam excluídos. Um caso bastante elucidativo foi o de São Tomé, onde o privilégio da participação na vida municipal foi dado aos mulatos descendentes de escravas e meninos judeus-espanhóis, para lá levados no início da colonização das ilhas. Casos como este, embora freqüentes, eram entendidos pela coroa como excepcionais e, portanto, podem ser incluídos numa categoria um tanto nebulosa de excepcionalidade corrente sem, contudo, perder a marca da excepcionalidade. No século XVIII, notadamente em sua segunda metade, ocorre uma mudança na forma de ser da colonização portuguesa e, no interior desta, no papel desempenhado pelas cidades. A cidadania, antes uma forma de privilégio, como acabamos de mencionar, torna-se extensiva a um grupo maior de pessoas. As antigas noções de ‘conquista e conversão’ são substituídas no ideário português por um novo termo chave: ‘civilização’. Neste sentido, a cidade deixa de ser encarada como um instrumento ‘colonial’, se identificarmos colônia com a idéia de conquista, para se transformar em instrumento ‘civilizacional’. Daí a superação da política exclusivista de cidades reais e a sua substituição por uma ativa política de elevação de antigas povoações a vilas e, onde não as havia, a criação material e institucional das mesmas. A elas caberia o papel de trazer para o seio da civilização os ‘lançados’, os segmentos antigamente proscritos e,

329

em alguns casos, o próprio ‘nativo’. O que antes era excepcional, torna-se a política corrente. Um alvará de 1761 deixa clara a nova política pombalina em relação aos indianos. O dispositivo ordenava que estes:

[....] sendo cristãos batizados e não tendo outra inabilidade de Direito, gozem das mesmas honras, preeminências, prerrogativas e privilégios de que gozam os naturais destes Reinos, sem a menor diferença, havendo-os, desde logo, não só por habilitados para todas as honras, dignidades, empregos, postos, ofícios e jurisdições deles, mas recomendando muito seriamente aos Vice-Reis do mesmo estado e Oficiais dele, para que as sobreditas honras, dignidades, empregos, postos e ofícios atendam sempre nos concursos, com preferência aos naturais das respectivas terras, mostrando-se capazes.261

Em relação aos índios do Estado do Maranhão e Grão-Pará, a alteração de postura da coroa começa com o incentivo aos casamentos mistos.

Sou servido declarar, que os meus vassalos deste Reino, e da América, que casarem com as índias dela, não ficarão com infâmia alguma, antes se farão dignos da minha real atenção, e que nas terras que se estabelecerem, serão preferidos para aqueles lugares, e ocupações, que couberem na graduação de suas pessoas, e que seus filhos, e descendentes serão hábeis, e capazes de qualquer emprego, honra, ou dignidade, sem que necessitem de dispensa alguma, em razão destas alianças, em que serão também compreendidas as que já se acharem feitas antes desta minha declaração. [....] O mesmo se praticará à respeito das portuguesas que se casarem com índios: e a seus filhos, e descendentes, e a todos concedo a mesma preferência para os ofícios, que houver nas terras, em que viverem; e quando suceda, que os filhos, ou descendentes destes matrimônios tenham algum requerimento perante mim, ma farão saber esta qualidade, para em razão dela mais particularmente os atender.262

O famoso Alvará de 17 de agosto de 1758, reserva os cargos municipais de suas vilas aos indígenas. Em outras regiões da América Portuguesa, ocorreria uma reserva parcial dos ofícios das câmaras aos índios. As instruções enviadas, em 1763, a

261

Alvará de 2 de abril de 1761. citado de ANDRDADE, António A. de. Relações de Moçambique setecentista. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1955. p.61. 262

PORTUGAL. Lei sobre os casamentos com as índias, de 4 de abril de 1755. Collecção de Leis, Decretos e Alvarás, que comprehende o feliz reinado del Rei Fidelissimo D. José o I. Lisboa: Officina de Antonio Rodrigues Galhardo, 1797. Tomo 1 - 1750-60. f.100.

330

Tomé Couceiro de Abreu, ouvidor da Capitania de Porto Seguro, continha uma cláusula específica sobre a questão.

Ordena Sua Majestade que V. Mercê em todas as quatro vilas que se acham estabelecidas e nas que de novo estabelecer na capitania que vai criar introduza sempre ao menos a metade dos oficiais das câmaras de uma das Nações de Índios naturais daquelas terras [....].263

Através deste conjunto de dispositivos legais, de promulgação paralela aos de expansão do municipalismo, a legislação portuguesa abria espaços na administração para os descendentes de ameríndios e indianos cristianizados. Mesmo quanto aos africanos, em relação aos quais a política racial portuguesa foi mais dura, assistiu-se alguma abertura. Em Moçambique, os mulatos descendentes de pai branco foram habilitados a suceder seus pais nas terras concedidas pela coroa. O óbice permaneceu para os mulatos descendentes de mãe branca. Há, ainda, uma última medida a lembrar. Esta relativa ao conjunto do império. Trata-se da extinção da categoria de cristão-novo. Ainda que em teoria, pois a prática foi um tanto diferente, aboliam-se muitos dos antigos impedimentos legais ao enquadramento municipal pretendido. O conceito de ‘civilização’ precisa ser melhor esclarecido. É preciso buscar entendê-lo tal como era explicitado pelo estado português naquele momento. Civil opunha-se a religioso. Neste aspecto, tratava-se de faceta da luta pombalina contra as ordens religiosas, em especial a dos jesuítas. Civilizado opunha-se a bárbaro, ou seja, a cultura nativa da América e da África em todas suas expressões. Ainda dentro deste quadro, o estado absolutista do século XVIII incorporava, como é sabido, diversas noções que vieram a ser desenvolvidas pelos filósofos do iluminismo. Uma delas era a de sociedade civil: administrativa e legalmente homogênea. Em alguns documentos da época, quase é possível ler o nosso conhecido ‘sem, distinção de credo, cor, raça, etc.’.

263

REVISTA DO INSTITUTO GEOGRAPHICO E HISTORICO DA BAHIA, Salvador, n.21, v.42, 1916. p.65.

331 restabelecereis no vosso Governo a boa administração da Justiça, fazendo-a distribuir sem distinção de pessoas a todos os que a tiverem a seu favor, posto que sejam Mouros, Gentios, Cafres, e outros semelhantes [....]264

O estado português parece ter como objetivo a implantação de uma espécie de cidadania padrão, laica e culturalmente européia. A noção de barbárie então utilizada, mesmo que a critiquemos a partir de um ponto de vista contemporâneo, já que pressupõe uma vontade manifesta de destruição de outras culturas, supera o conceito anteriormente adotado de pureza de sangue. O bárbaro é potencialmente um civilizado que, por sua vez, é um potencial ‘cidadão’. Assim, pertencer à cidade é considerado um passo na superação pretendida. Todavia, a europeidade tornada política global do Império deveria ser depurada de seu medievalismo remanescente. Em decorrência, a cidade não deveria ser aquela das oligarquias municipais e corporações de ofícios, individualizada nos seus privilégios e prerrogativas. O município multiplicado neste período, e por isso mesmo multiplicado, deveria ser uma instância administrativa local do estado central. Tivemos, portanto, o duplo embate contra o corporativismo e contra a barbárie, que se desenrolou concomitantemente na metrópole e fora dela. Nas colônias, alguns grupos privilegiados locais iriam entender tal intervencionismo estatal como ação colonializante. Este ponto de vista ainda hoje é compartilhado por um espectro significativo da historiografia brasileira que nos apresenta os conflitos entre município e estado central como uma espécie de luta protonacional. Entretanto, não podemos perder de vista que, de fato, estes conflitos representam uma reação a algumas facetas ‘esclarecidas’ do despotismo do século XVIII: a centralização e a padronização administrativas. Como entender o recurso à cidade regular nos quadros da ação políticoadministrativa da época? Um primeiro ponto a lembrar é que Pombal foi convocado para conduzir a administração central portuguesa com o objetivo explícito de assentá-la

264

SILVA. A primeira carta. p.194.

332

em ‘princípios geométricos’.265 Este geométrico diz respeito a um ideal de metodização, simplificação e padronização que se procurou exercitar em diversos níveis, entre os quais o da forma urbana. Ele contraria o intrincado (da legislação e da forma), o caso a caso (da relação pactista entre rei e município) e o privilégio (das diversas corporações). Pode, portanto, ser entendido como um reforço simbólico ou tentativa de transposição para a forma urbana destes ideais. As idéias iluministas tendiam a assumir o ‘classicismo’ em contraposição a tudo aquilo que era entendido como sobrevivências da medievalidade e da barbárie, as quais deveriam, a todo o custo, ser banidas.266

DEMANDAS DE PAREDES, JANELAS E PORTAIS

O projeto de cidades inteiras, a abertura de algumas ruas nobres, ou a criação de praças, ações que até agora privilegiamos, compõem uma faceta específica de produzir o espaço urbano. As câmaras participam diretamente delas, mas, nestes casos, evidencia-se o protagonismo do rei, dos donatarios ou dos prepostos destes. Todavia, essas grandes ações urbanísticas são apenas eventos, que, embora marcantes, não conseguem dar conta da totalidade do processo. Passamos, agora, a acompanhar uma outra maneira de produzir este mesmo espaço. Mais próxima do quotidiano dos moradores e da administração da cidade. Uma das atribuição primevas da almotaçaria, como já vimos, era resolver “demandas de janelas, paredes e portais”. Tal competência refere-se aos elementos construtivos existentes nas divisas dos lotes urbanos, confrontando-os com o terreno vizinho ou com o espaço urbano. Já foi dito que paredes, portais e janelas são, por excelência, locais de tensão que chamam para si o exercício da mediação ou o poder de legislar.

265

Ver GARCIA, Rodolfo. Ensaio sobre a história política e administrativa do Brasil. (15001810) Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. p.264. 266

Já abordei esta questão em PEREIRA, Magnus R. M. Considerações sobre a ação urbanística do período pombalino. Ágora. Santa Cruz do Sul, 1(1): 61-82, mar.1995.

333

No século XV, ia longe o período em que os almotacés usavam de seu poder de mediador oficial para dirimir as questões entre vizinhos. Em vez disto, estava em vigor uma complexa e minuciosa legislação municipal escrita que procurava prever todas as possibilidades de conflitos, prevendo, de antemão, as soluções a adotar. Apesar destas codificações, permanece um poder mediador residual nos casos em que havia impasse. O simples compartilhamento de paredes entre duas casas ou de divisórias, quando dois proprietários dividiam um mesmo imóvel, poderia exigir a mediação do concelho. Os almotacés tinham a última palavra, por exemplo, quando um dos coproprietários queria dividir o imóvel e o outro não.

Se dois homens tiverem uma casa de sembra e quiserem fazer parede de permeio ou se taparem com tabuado por tal que cada um haja sua parte extremada se pela ventura um deles o quer fazer e o outro não o que não quer deve ser constrangido para fazê-lo de permeio e devem ambos a dar o lugar para fazer permeio e fundamento e de si haverão a parede de permeio ambos se fizerem à sua custa e se um deles fizer à sua custa por si em lugar d’ambos como dito é quando o outro aí quiser meter madeira deve-lhe antes a dar a meia da custa que nela fez.267

Quando um quer fazê-lo com parede de madeira e o outro, de alvenaria, cabia ao almotacé ir ao local e “esguardar quamanha* é a casa e se vir que é mais prol d’ambos o tabuado que a parede deve mandar fazer o departimento de tabuado e se a parede virem que é mais proveitosa” deve mandar fazer de alvenaria. A questão vai mais longe, pois “se um deles não quiser dar a sua parte do lugar para fazer o fundamento nem para fazer a parede” aquele que fizer a obra sozinho tem direitos exclusivos sobre ela “e aquele que não quiser fazer a parede não pode nela arrimar nenhuma coisa nem fazer nada nela nem pode nela meter madeira”.268 Aquilo que as posturas lisboetas quatrocentistas dispunham sobre o compartilhamento de paredes foi

267

268

LPA.op. cit. p.106.

LPA.op. cit. p.106-7. * esguardar = avaliar, olhar com atenção * quamanha = quão grande

334

integralmente transposto para as Ordenações Manuelinas e, depois, para as Filipinas.269 A legislação atual sob o tema ainda adota os mesmos princípios. As demandas de portal ocorriam pelo costume de se construir acessos exteriores aos pavimentos superiores dos sobrados, as vezes em prejuízo do vizinho. As posturas procuravam acautelar tais situações.

Outrossim não pode fazer nenhum nem por escada direito do portal doutro seu vizinho por que lhe embargue a entrada de seu portal.270

Outros conflitos característicos da conformação das ruas medievais, que passam à Idade Moderna, são aqueles que dizem respeito à aeração e iluminação das edificações. Já vimos anteriormente a conexão que existe entre a casa que se volta para fora e a rua linear, uma vez que esta facilita a distribuição do acesso à aeração e à iluminação. Uma das atribuições originais dos almotacés medievais era a de mediar os conflitos de vizinhança causadas pelas disputas por ar e luz. As posturas municipais de Lisboa e Évora no século XIV, eram completamente omissas a este respeito. No entanto a questão aparece plenamente desenvolvida no século XV. Pode-se presumir que, antes dessa codificação escrita, as questões fossem resolvidas pelo costume e pela intervenção mediadora dos almotacés, enquadradas nas suas atribuições relativas a “demandas de paredes e de portais”. O surgimento de um corpo específico de posturas sobre o tema pode também indicar que neste século ganhou força o fenômeno de verticalização das construções, agravando os problemas de ventilação e aeração das casas e gerando um novo foco de disputas entre moradores.271 No século seguinte, estas posturas lisboetas foram incluídas nas

269

MANUELINAS. Livro I, Título XLIX, § 37-40; FILIPINAS. Livro I, Título LXVIII, §

35-9. 270

271

LPA.op. cit. p.111.

Corresponde ao surto urbano do século XV identificado por Oliveira Marques e outros medievalistas MARQUES, A. H. de Oliveira. Portugal na crise dos séculos XIV e XV. Lisboa: Editorial Presença, 1981. p.81.

335

Ordenações Manuelinas, alçando-se a leis gerais do reino, aplicáveis em todo o espaço português, inclusive o das colônias.272 As posturas municipais acompanham a tendência, permitindo a verticalização dos edifícios, contudo elas incorporam uma ressalva muito direta. “E quem quer podese alçar pelo seu quanto quiser que não tolha lume ao outro seu vizinho”.273 A questão que se apresenta diz respeito à maneira como são abertas as janelas das casas. Sendo as testadas do imóveis bastante exíguas e voltadas para uma rua mal ventilada e mal iluminada, além de foco de odores pouco apreciados, é compreensível que aquele que transformasse sua morada térrea em sobrado fosse buscar luz e ar sobre os telhados e quintais dos vizinhos, procurando abrir frestas e janelas nas divisas dos lotes. Uma janela aberta na lateral era um direito adquirido e não podia ser tapada se o proprietário ao lado resolvesse acrescentar pavimentos ao seu imóvel. Por outro lado, essas janelas laterais devassavam os quintais alheios. Dissemos anteriormente que os cristãos tinham um senso de intimidade menos desenvolvido que o dos muçulmanos, o que não quer dizer que não existisse. Os quintais eram consideradas áreas íntimas a preservar do olhar dos vizinhos, situação complexa numa cidade em que as construções se verticalizam.

Item que nenhum não pode fazer fresta nem janela nem eirado* com beira sobre casa de outro nem sobre quintal per que o descubra pero se passar por ano e dia que aí seja feito ante em face do que o demanda e sendo na terra não lha pode depois tolher que aí não seja mais [....].274

Percebe-se que, inicialmente, a tendência geral foi a de proibir essas janelas laterais, a não ser que houvesse acordo entre os vizinhos. Posteriormente, houve uma

272

MANUELINAS. Livro 1, tít. 49. § 26 e ss.

273

LPA. p.105.

274

LPA. p.105. * Eirado = terraço.

336

progressiva liberalização, a qual, todavia, foi acompanhada de tentativas de resguardar um proprietário contra a aquisição de direitos através do costume.

Item quem quer que tiver casa pode fazer eirado com peitoril e janelas e frestas quantas hende quiser e balcão saído e portais e alçar-se o quanto quiser e tolherá o lume a outro seu vizinho diante si se quiser e quem quer pode fazer na parede sua sobre casa d’outrem fresta estreita como seteira por lumeeira e quando o outro sobre que a faz se quiser alçar pode lha tapar como quer que passe ano e dia que aí fosse feita.275

As inúmeras queixas encontradas na documentação mostram que estas janelas e aberturas, além de servirem à iluminação, eram usadas para o lançamento de lixo sobre os telhados e quintais alheios, o que as tornaram um constante ponto de atritos vicinais. Em Guimarães, em 1449, Joana Domingues acusava Álvaro Martins de ter aberto janela por sobre seus telhados, de onde lançava água e sujeira.276 Situação semelhante ficou registrada nos livros de vereação do Funchal.

Sábado 18 dias do mês de julho [de 1496] os oficiais que no dito dia atrás fizeram vereação foram ver um litígio de uma janela que era entre João Gonçalves filho de Gaspar Gonçalves e Fernando Álvares carpinteiro a qual era feita no frontal da casa do dito Fernando Alvares contra um quintal do dito João Gonçalves e presentes os ditos oficiais apareceram as ditas partes dizendo o dito Gonçalves que pena fora posta pelos almotacés ao dito Fernandes que pregasse a dita janela e que ela a fechara e tornara abrir que lhes pedia que vissem bem a dita janela como era feita para o seu quintal e como era odioso e que lhe mandassem tapar como pelos almotacés lhe fora mandado. Dizendo o dito Fernando Alvares que os almotacés que lha mandaram tapar esses lhe mandaram que abrisse e que ele tinha feito a dita janela no seu frontal e sobre o seu e que ele se não serve dela somente por ela haver claridade para a sua câmara [....] que lha não deviam mandar tapar e visto tudo pelos ditos oficiais em como a dita janela era feita em lugar odioso por bem do quintal do dito João Gonçalves e em como o regimento tal janela não dá lugar que se em semelhante lugar se faça e mandaram ao dito Fernando Alvares que ele tape ou pregue a dita janela por tal modo e maneira que ele nem outro nenhum não possa por ela ver nem lançar nenhuma coisa contra o dito quintal do dito João Gonçalves isto sob pena de quinhentos réis para o concelho

275

LPA. p.107. Como forma de se precaver contra este tipo de situação vamos encontrar alguns proprietários assinando contratos que lhes permitissem revertê-la. Podemos citar um exemplo da Madeira, onde vigário da paróquia do Calhau, querendo abrir uma janela da igreja para um terreno da Misericórdia, em 1669, recebeu autorização,mas teve que assinar um compromisso que permitia o fechamento da janela “quando a casa queira fazer alguma obra”. COSTA, José Pereira da. Notas sobre o hospital e a Misericórdia do Funchal. ARQUIVO HISTÓRICO DA MADEIRA, v.1964-6. p.115. 276

FERREIRA, Maria de Conceição F. Uma rua de elite na Guimarães medieval. REVISTA DE GUIMARÃES, v.96, jan.-dez.1986. p.112.

337 por cada vez que lhe for aberta achada e que se por ventura para haver luz e claridade para a dita câmara quiser abrir uma lucerna no dito frontal que a abra alta que por ela se não possa ver nem lançar nenhuma coisa contra o dito quintal que abra de largura de dois dedos até três para por ela haver claridade e outra coisa não e doutra maneira não faça.277

Que nenhuma pessoa possa abrir alicerces Além da mediação entre vizinhos, as câmaras, como já vimos, tinham que enfrentar a apropriação dos espaços públicos por esteios, balcões e passadiços e inúmeros outros elementos arquitetônicos que entulhavam um espaço que já era exíguo. No Porto trecentista, queixaram-se os vereadores a D. Dinis de uma escada externa feita nas casas da Ribeira, onde se vendia o pão e o pescado, avançando sobre o terreno público.278 No século XV, os oficiais da câmara de Lisboa adotaram postura acauteladora contra este tipo de apropriação indébita.

Outrossim em rua não pode nenhum fazer ramada nem alpendre nem pôr escada nem outra cousa que seja embargo nem estreitura da rua e o que fizer devem-lho a derrubar.279

No entanto, esta mesma câmara encarregou-se de abrir exceções à medida, acrescentando, posteriormente, à postura que “sendo em terreiro ou rua muito larga podem pedir licença aos vereadores e eles lha darão quando à serventia pública não fizer nojo”. Assim, foram os moradores da cidade autorizados a continuar com o costume de construir escadas externas de acesso aos sobrados. No Funchal, encontramos diversas vezes o concelho às voltas com muros que tomam serventias do concelho, ou casas que invadem os chãos públicos ou, ainda,

277

FUNCHAL. Atas da Câmara. COSTA, José Pereira da. (ed.). Vereações da câmara Municipal do Funchal; século XV. Funchal: Região Autônoma da Madeira, 1995. p.371-2. 278

OLIVEIRA, J. M. Pereira. O espaço urbano do Porto; condições naturais e desenvolvimento. Coimbra: Centro de Estudos Geográficos, 1973. p.223-4. 279

LPA. p.111.

338

fornos que avançavam para as ruas.280A vigência de uma legislação baseada no direito costumeiro era um condicionte à atuação da câmara. Passados “ano e dia”, qualquer situação, por mais irregular que fosse, tornava-se irreversível: era posse, servidão ou direito adquirido. Em pouquíssimos casos a legislação revogava preliminarmente este direito. No caso dos passadiços, o morador não podia alegar a posse da parte de cima das ruas e o concelho podia mandar desfazê-los quando quisesse.281 Entre a norma e a prática, havia, entretanto, uma certa distância. Muitas vezes, as câmaras preferem negociar a enfrentar conflitos com os vizinhos das vilas. Foi o que fizeram os vereadores do Funchal, em 1471. O galego Martim Afonso tinha dois esteios numa obra que fazia na rua de Santa Catarina. Para livrarem a rua do empecilho, “lhe deram lugar que tomasse do chão do concelho no canto um côvado e meio e do outro meio côvado” com a condição de que fizesse balcões com esteios para o lado da ponte.282. Assim, ficou a rua de Santa Catarina livre de balcões e esteios mas, o espaço público, ficou com uma fração a menos. A iniciativa contra a ocupação das ruas nem sempre era tomada pela câmara. Existem casos em que a sua intervenção era provocada pelos próprios moradores, que convocavam os vereadores para mediar conflitos vicinais provocados por este tipo de apropriação. No Funchal, Diogo Gonçalves pediu à câmara que obrigasse seu vizinho, Lopo Vaz, a desfazer um parreiral que “tinha sobre a rua e subia acerca da sua janela a qual lhe fazia nojo assim por razão da vista como por outras coisas que se poderiam seguir por cima da latada”. No entanto, a municipalidade estava impedida de agir devido ao direito de posse e tentou uma saída negociada entre os litigantes, os quais concordaram com a proposta dos oficiais do concelho.

280

FUNCHAL. op. cit. 76, 89, 527.

281

LPA. p.112.

282

FUNCHAL, op. cit. p.77. 1 côvado = 66 cm

339 Cometeram ao dito Diogo Gonçalves que porquanto o dito Lopo Vaz tinha a benfeitoria da dita latada feita de longo tempo e estava de posse dela e não era razão de a desfazer nem eles lho podiam mandar salvo a seu prazimento que lhes parecia ser bom à dita sua casa e proveitoso ao dito Diogo Gonçalves que ele desse mil réis ao dito Lopo Vaz e que desfizesse toda aquela latada que a ele dito Diogo Gonçalves fazia nojo. S. C. M. do Funchal, 2 de setembro de 1472.283

Na passagem do século XV para o XVI, já estava generalizado, na legislação municipal portuguesa, o princípio de que o início de uma nova construção - ou a reforma das já existentes - estava condicionado à obtenção de uma licença prévia junto às câmaras. Este é o mais sólido indício de que algo estava mudando e pode servir de marco convencional da passagem da Idade Média para a Moderna. Câmaras com as de Lisboa ou Braga, tornaram manifestos os seus objetivos, ao tentar obrigar que todas as obras realizadas nas cidades fossem de seu prévio conhecimento. Nas reformas ou novas construções os proprietários não deveriam “ocupar mais das ruas e serventias bem como tomar delas senão aquilo que dantes tinham”.284 Nas seções da câmara de Braga vamos encontrar os vereadores exercendo o efetivo controle sobre as construções da cidade.

Na dita câmara acordaram que Gonçalo Fernandes notificasse a Jmo ao [?]tendeiro que amostrasse a Provisão da Licença que tinha para poder travessar e Sobradar e Romper a torre que está nas costas da casa onde pousa até a primeira Câmara sob pena de se lhe mandar derrubar toda a obra que tiver nela feita. S. C. M. de Braga, 22 de março de 1581.285

Em outros casos, não se tratava de iniciar uma construção, mas forçar o proprietário a se enquadrar no modelo proposto. A câmara de Viseu intimou um morador da rua da Cadeia a desmanchar um velho balcão que “parecia muito mal” e que

283

FUNCHAL, op. cit. p.43.

284

LPA. p.267-6. ver também BRAGA. Posturas Municipais. BRACARA AUGUSTA. v.6.

285

BRAGA, op. cit. v.24, n.69-70, jan.-dez.1970. p.348

p.320

340

podia representar perigo a quem passasse. Logo se percebe o verdadeiro intuito dos vereadores. Todas as casas daquela rua estavam a cordel, menos aquela.286 Coimbra é um bom exemplo de municipalidade seiscentista efetivamente empenhada em controlar o processo edificatório no quadro urbano e em seu entorno.

177 - Item - Acordamos que nenhuma pessoa, de qualquer qualidade que seja, possa abrir alicerces, fazer paredes, nem outra obra alguma à face dos terreiros e ruas e rocios da cidade sem primeiro o fazerem saber ao juiz e vereadores em câmara para mandarem pessoa que veja abrir os tais alicerces e olhar que se não tome nada da cidade, nem se saiam mais para fora sob pena de, qualquer que o contrário fizer, pagar quinhentos réis por cada vez que o fizer, metade para a cidade e a outra para quem os acusar.287

Posteriormente, ao reeditar a postura, a câmara coimbrã explicitou um outro motivo que a levava a impor tal tipo de controle. Eles buscavam não apenas impedir a apropriação de espaços públicos mas pretendiam aproveitar a oportunidade propiciada pelas reformas para obrigar a que, “se pela ventura os tais edifícios velhos faziam recanto e tortura nas tais ruas, praças e rossios, que se endireitem segundo parecer bem aos regedores da cidade”.288 Tratava-se, portanto, de por em prática uma ação programática a longo prazo que visava a retificação das ruas e a eliminação de recantos e becos que aparecem qualificados, na documentação da época, como “perigosos e odiosos”.289 O resultado destas medidas pode ser observado numa gravura quinhentista de Braunius, onde o retilíneo das ruas de Coimbra aparece exagerado. Neste caso, as posturas e a representação gráfica convergem na sua busca da linha reta.

286

LANGHANS, Franz-Paul. As posturas. Lisboa: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1937. p.82. reproduzindo ARAGÃO, Maximiano. Viseu: instituições sociais. 287

COIMBRA. Câmara Municipal. Livro de regimentos e posturas desta mui nobre e sempre leal cidade de Coimbra. ARQUIVO COIMBRÃO. Coimbra, v.3, 1930-1. p.175-6. 288

289

COIMBRA. Posturas. op. cit. v.5, p.52. 1940.

FUNCHAL. Câmara Municipal. Petição de Francisco Vieira em 25 de janeiro de 1525. No apendice documental de COSTA, José Pereira da. Notas sobre o hospital e a Misericórdia do Funchal. ARQUIVO HISTÓRICO DA MADEIRA, v.1964-6. p.168-9. * no fundo * nível

341

D. João III foi um rei que se ocupou em aproximar Portugal daquilo que se praticava na Itália em termos de arquitetura e urbanismo, tendo enviado alguns artistas portugueses, entre eles Francisco de Holanda, em viagem de aprendizado a Roma. As suas preocupações urbanísticas podem ser vistas na reurbanização de Setúbal, ou na construção de Salvador, na Bahia. No entanto, em relação a Coimbra, ele teve atuação contraditória. No episódio da instalação do colégio dos jesuítas, agiu de forma contrária ao que fizera na criação das ruas da Calçada e da Sofia. O rei arruador transformou-se num autoritário desarruador quando, em 1547, doou aos padres da Companhia “o caminho que vai ao longo do muro da dita cidade” da Porta Nova para o Castelo.

E hei por bem que possam edificar o dito Colégio sobre esta parte do caminho assim tapado e sobre o muro pegado com o dito caminho; e isto sem embargo de quaisquer leis, ordenações ou posturas da câmara da dita cidade em contrário.290

Com isto, ficou aberto o caminho para outras ordens solicitarem os mesmos favores. Em 1561, os Jerônimos pediram à rainha regente o restante da via pública apropriada pelos jesuítas, para a instalação do seu convento. Em 1585, foi a vez do bispo de São Tomé.291 A câmara de Coimbra teve que lutar sozinha contra estas pretensões. Além de atender propósitos diretamente ligados à definição de uma nova forma urbana, a Câmara de Coimbra levava em conta outros fatores na decisão de autorizar ou não uma nova construção. Numa carta enviada ao rei, solicitando que este proibisse ao Bispo de São Tomé a construção de um colégio para recolhimento dos sacerdotes negros enviados de sua arquidiocese, podemos tomar conhecimento dos fatores que levaram a uma negativa.

Primeiramente por estarem no meio da cidade e místicas com outras dos moradores dela e tomam duas Ruas públicas de grande serventia de carros para toda a almedina e

290

TEIXEIRA, A. J. (ed.) Documentos para a história dos jesuítas. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1899. p.126. LOUREIRO, Elementos, op. cit. v. 5, 1940. p.41. 291

COIMBRA, Livro 2 da correia., op. cit. p.119. MMA. v.3, 1953, p.314-5.

342 muito freqüentadas de homens e mulheres para o colégio da companhia e devassam muita parte da cidade e muitas casas de homens casados, que é coisa muito indecente para religiosos; e o que pior é, que por estarem em lugar muito eminente e alto, forçadamente com suas imundícies, assim secretas como canos de cozinha, hão de correr e evacuar pelo meio da cidade, que será coisa muito prejudicial, assim para a saúde da cidade como limpeza dela, do que resultará notável escândalo e prejuízo de todos. Coimbra, 21 de abril de 1585.292

Como se percebe, além de se preocupar com a manutenção da integridade do sistema viário, pesava, na decisão da câmara, a velha questão do devassamento de espaços considerados íntimos. O outro argumento para vetar a construção dizia respeito a questões de limpeza e saúde. O controle do processo edificatório através da concessão de licenças prévias, passou integralmente às municipalidades coloniais. Em muitas localidades este poder se estendia para fora do núcleo urbano e as construções nos rossios e caminhos rurais também dependiam de autorização do concelho. É o caso da vila açoreana de Velas, onde uma postura determinava “[q]ue nenhuma pessoa faça parede nem bardo nem outro nenhum tapume em face de caminho nem rossio do concelho sem licença da câmara com pena de mil réis para concelho e cativos”.293 É bom que se diga que não era indispensável a existência de uma postura com esse teor, pois isto era função precípua da câmaras, uma vez que elas eram detentoras do direito de almotaçaria. Além disso, as ordenações do reino atribuíam às câmaras o direito de embargo, que lhes permitia agir pela negativa, caso uma edificação contrariasse o bem comum ou direitos privados.

Aos almotacés pertence embargar qualquer obra ou edifício, que se dentro dela, ou seus arrabaldes fizer, a requerimento de qualquer parte, pondo-lhe aquela pena que lhe bem parecer, até ser determinado por direito sobre elo; e se depois fizer mais obra, sem mandado de justiça, que para elo tenha poder, além de encorrer na dita pena,

292

MMA. v.3, 1953, p.314-5. Como na maior parte dos casos desta natureza, a negativa é provavelmente política. Parece estar em curso um conflito entre os Jesuítas e outra religião, como diriam na época. Todavia, isto não invalida os argumentos usados pelos vereadores. 293

VELAS. Posturas Municipais. In: PEREIRA, António dos Santos.. A ilha de S. Jorge (séculos XV-XVII); contribuição para o seu estudo. Ponta Delgada: Universidade dos Açores, 1987.p.291 e 309.

343 desfar-se-á toda obra que aí depois fizer, posto que queira mostrar, ou mostre, que de direito a podia fazer.294

Em muitas câmara de Portugal e das colônias, o poder de autorizar as construções aparece como norma escrita somente no século XVIII. O que não quer dizer que estas câmaras fossem omissas em relação ao construtivo. Nas cidades maiores, não era o simples ato de construir que estava em jogo, mas a o atravancamento das ruas por passadiços e sacadas. Em Salvador, por exemplo, o senado aprovou, em 4 de janeiro de 1626, postura que proibia a abertura de alicerces sem sua licença. A mesma postura determinava “que não se faça nenhum passadiço, nem varanda, nem sacada, que passe de três palmos sobre a rua”.295 No fim do século a distância foi reduzida a dois palmos e meio.296 A necessidade de licença para construir, além permitir um maior controle do arruamento das cidades, era um instrumento de defesa da integridade dos espaços públicos. Quanto a isso, mesmo naquelas localidades onde não sabemos se havia uma legislação específica sobre o tema, podemos acompanhar a atuação dos concelhos.

Foi acordado por todos os ditos oficiais, que a dita praia, e testada, ficasse e estivesse na forma que dantes estava, e como agora está visto ser a dita praia e testada desta cidade, e serviço comum da vizinhança, e assim agora, nem em tempo algum, e assim se não poderá fazer na dita praia obra alguma. S. C. M. de Macau, 12 de setembro de 1635.297

A decisão do Leal Senado foi provocada pela construção, sem licença, de algumas boticas por comerciantes locais. Para conter a apropriação de espaços públicos, as câmaras por vezes se viam obrigadas a enfrentar, não um simples morador, mas

294

MANUELINAS. Livro 1, tít. 49, § 26.

295

SALVADOR. Atas da câmara. DOCUMENTOS HISTÓRICOS. Salvador, v.1, p.19. RUY, Affonso. História da Câmara Municipal da cidade do Salvador. Salvador: Câmara Municipal, 1953. p.149. 296

SMITH, Robert C. Arquitetura civil no Brasil colonial. In: ARQUITETURA CIVIL. São Paulo: FAU-USP; MEC-IPHAN, 1975. p.152 297

ARQUIVOS DE MACAU. op. cit.

344

autoridades de peso na administração colonial. Há casos em que é preciso recorrer ao próprio rei para bloquear obras feitas contra a sua determinação. É o que faz a câmara de Goa, em 1561, tentando embargar a “parede do muro que Aleixo de Sousa mandou fazer até o tapume da parede da ribeira, tapando a serventia da Porta de Santa Catarina”.298 Em 1601, Aires da Gama, vice-rei da Índia, concedeu a um seu apaniguado um “pedaço de chão” na ribeira de Cochim, ato que foi impugnado pelos oficiais da câmara, alegando que a perda do “dito chão ser em muito prejuízo do serviço de Sua Majestade e do bem comum”. O vice-rei voltou atrás mas ensaiou um processo de retaliação contra a cidade.

Outrossim vos mando que havendo na dita ribeira algum outro chão dada a alguma parte por algum vice-rei saibais dos títulos que eles tiverem e me aviseis para se fazer nisso justiça e mais serviço de Sua Majestade e o mesmo se alguma pessoa se meteu com casas ou outra via no chão dos armazéns do dito senhor porque sou informado que pessoas particulares o têm feito e para que este alvará haja efeito e serviço de Sua Majestade mando que se registre nos livros da câmara da dita cidade. Goa a 22 de outubro de 1601299

Entenda-se o “fazer nisso justiça”, como uma ameaça de rever antigos processos de doação a particulares feitas por vice-reis que o precederam ou pela própria câmara. É como se Aires da Gama tivesse afirmado que uma vez que a câmara alegou o serviço de Sua Majestade, que seja o serviço de Sua Majestade por inteiro e para todos. No ano seguinte, a câmara de Goa, viu-se ocupando um papel invertido ao que estava acostumada a desempenhar. Ela própria foi acusada de se apropriar do espaço público. O problema que se colocava era complexo do ponto de vista legal, pois entravam em jogo os direitos de jurisdição da câmara sobre a almotaçaria. O litígio foi remetido ao almotacé, que, em princípio, poderia embargar a obra da própria câmara.

298

299

APO. fasc.1, parte 1, p.51.

COCHIM. Câmara Municipal. Livro dos privilégios da cidade de Cochim. transcrito em MATHEW, K. S & AHMAD, Afzal. (ed.) Emergence of Cochin in the pre-industrial era; a study of portuguese Cochim. Pondicherry: Pondicherry University, 1990. p.106-7.

345

No entanto, frente ao visível conflito de interesses, o juíz de apelação assumiu a causa, sobre protestos da câmara, que se queixou ao rei.

Mas inda as queixas, que os anos atrás se fizeram a V. Majestade da pouca guarda de nossos privilégios, não chegou a uma que este ano temos do Juiz dos feitos, que totalmente nos tomou nossa jurisdição na matéria d’almotaçaria, que só a nós pertence, cousa em que até agora ninguém tocou, mormente encontrando umas obras, que a própria cidade fazia, porque estando as casas da Câmara com menos comodidade da que convinha para seu nobrecimento, intentamos fazer uma escada mais larga tomando do terreiro, que o da própria cidade, alguma cousa, o começandose a obra, a requerimento do um vizinho da outra banda, quo dizia prejudicarem-lhe, o qual remetemos aos almotacés, o juiz dos feitos tomou conhecimento do caso, o sem nos ouvir, nem dar vista, mandou embargar a obra com pena de degredo.300

O que se percebe é que os concelhos têm uma atitude extremamente oscilante em relação à forma urbana. Não há um empenho absoluto em garantir a ‘boa forma’ ou mesmo o domínio público sobre as terras públicas. Estas questões permanecem como um objetivo presente mas que é burlado a todo instante, tanto pela câmaras, quanto pelos agentes do estado central, como pelo próprios reis, que fazem doações à revelia dos interesses locais. Numa organização política ainda corporativa e pactista, sempre há lugar para concessões e privilégios. No exemplo que acabamos de ver, o que deve ter movido a reação dos vereadores à benesse concedida pelo vice-rei foi o fato de ela ter vindo de fora. Neste caso específico de Cochim, o delegado do poder régio acabaria derrotado em suas pretensões, mas não era esta a regra. A tentação de favorecer alguém com áreas de uso comum era grande. Sem embargo do Embargo Acompanharemos agora, algumas câmaras brasileiras século XVIII usando de seu direito na configuração dos espaços urbanos das respectivas vilas. Periodicamente a Câmara de Curitiba, como era padrão em todo o império, ordenava uma correição geral na vila. As preocupações do ouvidor com a presença de edifícios arruinados no quadro urbano não ficaram no vazio.

300

APO. fasc.1, parte 2, p.102.

346 Condenaram os ditos oficiais da Câmara a Maria de Escudeiro em seis mil reis por esta ter as suas moradas de casas e um lanço delas estar feito pardieiro as quais casas estão citas nesta vila e assim condenaram Antônio Alves Martins em seis mil reis por este ter umas moradas de casas nesta vila e ter feito o almotacé, Antônio Francisco de Siqueira já feito aviso ao dito para as mandar consertar e como nesta correição se achou as ditas casas incapazes em modo que serviram de pardieiros houveram os ditos oficiais por condenar ao dito Antônio Alves Martins nos ditos seis mil reis e assim mais condenaram os ditos oficiais da Câmara aos herdeiros de defunto João Ribeiro Cardoso em seis mil reis por terem umas moradas de casas nesta vila e estarem incapazes. S. C. M. de Curitiba, 1 de julho de 1744.301

Alguns anos depois, a câmara produziria o que pode ser chamado de primeiro código de posturas de Curitiba. A diferença entre os artigos de posturas que seriam então criados e os anteriores provimentos dos ouvidores está na origem local dos primeiros. As posturas acompanhavam a legislação portuguesa, está claro, mas não eram ditadas de fora como os provimentos. Elas nasciam da decisão dos próprios vereadores de enfrentar questões urbanas como o desalinhamento dos lotes e, mais uma vez, a presença de animais na cidade.

desde hoje em diante todos os quintais que se fizerem de novo e os desmanchados que se reformarem se farão com as paredes fronteiras todas por alinhamento na forma da lei com pena dos que o contrário fizerem pagar para este conselho seis mil réis e trinta dias de cadeia e se lhe botar abaixo o que de novo fizerem e renovar a sua custa [....] e bem assim se não ponha janela nem portal em beco esquisito o que nisso terão os Almotacés grande cuidado [....] como também junto às casas desta vila nem ao pé dela se não façam currais de gado por ser contra o bem comum e o que o contrário fizer pagará seis mil réis para o conselho pela primeira vez e dois meses de cadeia sendo por duas testemunhas denunciado ou sendo por nós visto ou quem nos suceder e pela segunda se procederá criminalmente para ser punido como de direito for. S. C. M. de Curitiba., 18 de novembro de 1747.302

No ano seguinte, podemos acompanhar, novamente, a câmara usando de seu poder de policia contra os que deixavam as suas edificações arruinarem-se.

correndo as ditas ruas houveram por condenado a José Palhano de Azevedo em três mil réis por não ter as suas casas nesta vila concertadas antes as ter cheias de buracos como também condenaram a João Rodrigues do Rio Grande fazendeiro da fazenda do defunto Tenente General Manoel Gonçalves de Aguiar por não ter consertado as

301

CURITIBA, op. cit. v.18, p.18-9.

302

CURITIBA, op. cit. v.19, p.25.

347 casas que estão nesta vila pertencentes às mesmas fazendas sendo administrador delas o qual condenaram em outros três mil reis e assim mais houveram por condenado ao Sargento-mor Felix Ferreira Neto em outros três mil réis por ter o seu quintal todo descomposto e cheio de buracos e assim mais condenaram a Manoel Pinto do Rego por não ter as suas casas nesta vila consertadas e estarem também cheias de buracos. S. C. M. de Curitiba., 29 de fevereiro de 1748.303

É interessante lembrar que, no século XVIII, a câmara ainda não estava organizada para prover a cidade de serviços públicos. Ela exercia um poder de fiscalização, impondo o modelo urbanístico vigente, mas as obras públicas, com raras exceções, eram atribuição direta dos moradores. Veja-se o caso da pavimentação das ruas. Em 1786, os vereadores “determinaram aos moradores que fizessem as suas calçadas até o meio da rua e outra parte cada um a sua testada”. No século XIX a Câmara assumiria como sua a tarefa de pavimentar o terço central das vias públicas. Os terços restantes seriam aos moradores de ambos os lados das ruas. Outra cidade onde a documentação permite acompanhar a câmara em ação, é Vila Rica. Esta municipalidade assumiu a tarefa básica de transformar dois arraiais mineiros, o do Ouro Preto e o de Antônio Dias, em uma cidade. Observa-se que um dos objetivos mais persistentemente perseguidos pela recém criada câmara de Vila Rica era o de estabelecer o controle sobre o processo edificatório.

Resolveram que porquanto muitas pessoas que fabricam Ranchos nesta vila o fazem sem licença deste senado não obstante o ter posto edital em que lhes proíbe o levantálos sem licença deste senado, e aforamento dele o que é em prejuízo das rendas do concelho ordenaram que toda a pessoa que levantar Rancho sem a dita licença seja condenado na postura do concelho e se lhe mande botar abaixo à sua custa e o mesmo se entenderá com os que tiverem principiado antes do dito edital não estando Realmente acabados, e com todos aqueles que quiserem consertar ou reedificar alguma casa das que estão feitas, para que desta sorte se vão endireitando as Ruas [...] A. C. M. de Vila Rica, 5 de março de 1712.304

O último trecho sintetiza um programa de ação voltado à forma urbana: “para que dessa sorte se vão endireitando as Ruas”. Não se tratava, portanto, de estabelecer

303

CURITIBA, op. cit. v.19, p.32.

304

VILA RICA. Atas da câmara. p.230.

348

um plano global para a nova vila, mas de torná-la “vistosa” e com ruas “direitas” à medida que fosse crescendo. Nas novas áreas, as edificações seriam condicionadas por um arruamento prévio e, nas preexistentes, deveriam ser aproveitadas todas as oportunidades para corrigir as características formais consideradas “defeituosas”. A consecução deste programa requeria a contratação de um profissional específico. A ata de 15 de julho de 1712 nos dá a notícia de que a câmara, em alguma data anterior, passou a contar com os serviços de um “Ruador e medidor”: Manuel Frias de Castello Branco. Da maneira como até agora foi colocado, tudo parece muito simples. É que ainda não introduzimos um dos integrantes dessa história: o antigo morador. A transformação dos arraiais em vila passava pela transformação dos antigos moradores “povoadores”, como se auto definiam - em habitantes da nova vila.

Os oficiais dela resolveram o seguinte: que porquanto alguns moradores desta vila se lhes oferecia dúvida aforar ou arrendar as terras do concelho pela pensão de pagar os laudêmios sendo esta uma nova criação em que deviam ter a Regalia de povoadores, Resolveram uniformemente as mais vozes que para convidar os ditos moradores a virem aforar, em ordem a este senado ter mais Rendas, se lhes fizesse a graça de não pagar laudêmios; e com essa condição se lhes aforassem, e o mesmo se atenda com os que têm aforado até aqui. A. C. M. de Vila Rica, 30 de junho de 1712.305

A dispensa do pagamento de laudêmio não satisfaz a muitos dos antigos moradores, que se recusam a pagar qualquer renda à municipalidade. Eles insistem em ter “regalia de povoadores, sem que pudessem ser obrigados, nem constrangidos” a aforar a terras do concelho. Nomeiam o padre Luiz Barbosa de Araújo como procurador, para negociar com a câmara. Pressionados, os vereadores acabam voltando atrás e assinam um acordo reconhecendo as regalias desses moradores.

Resolveram uniformemente que o edital deste senado se não entendia com as casas que se achavam feitas antes de sua criação; salvo as pretendessem alargar, tomando terra da possessão do concelho; e as que de novo se alevantassem em terras devolutas da mesma possessão, que estas não poderiam fazer; nem alargar aquelas sem primeiro

305

VILA RICA. Atas da câmara. p.239.

349 aforar neste Senado; e o mesmo se entenderá com os quintais que ocupam o frontispício da Rua; ou parte donde se pode fazer outra para melhor arruamento desta nova vila [...] A. C. M. de Vila Rica, 13 de julho de 1712.306

A assinatura do acordo pelos vereadores foi um ato a contragosto e, portanto, a reação não tardaria. Em 3 de agosto a Câmara multa alguns moradores por fazerem reformas em suas casas sem a devida licença e aforamento: Manoel Alvares “por dar princípio ao conserto da casa em que vive”, Manuel Marques “por alargar a varanda”, Antônio Gomes Crespo “por acrescentar as casas em que vive”, e Manoel Lourenço, “por fazer uma cozinha”.307 No mês seguinte, outros moradores são autuados: Inácio de Souza “por levantar um quintal tendo-se-lhe mandado aforar” e André Ramalho “por levantar um esteio no canto de suas casas”.308 Em quase todos os casos houve um posterior acordo com a câmara. As multas foram reduzidas ou suspensas em troca do enquadramento da situação fundiária das terras em questão dentro do modelo pretendido.309 As oportunidades de agir sobre os arraiais preexistentes não ficavam restritas às reformas das antigas habitações. Os vereadores estavam atentos a incidentes de outro tipo que lhes permitissem intervir. Um sinistro ocorrido em 1714 foi um desses pretextos.

Acordaram se fizesse vistoria no bairro do Ouro Preto nas casas donde tinha sucedido o incêndio medindo e arruando-as de sorte que recuassem para os fundos e ficasse uma praça para melhor arruamento desta nova Vila e por ficar defronte da matriz daquele bairro [...] A. C. M. de Vila Rica, 7 de abril de 1714.310

306

VILA RICA. Atas da câmara. p.242

307

VILA RICA. Atas da câmara. p.243-4.

308

VILA RICA. Atas da câmara. p.249.

309

VILA RICA. Atas da câmara. p.245-6 e 251.

310

VILA RICA. Atas da câmara. p.319.

350

Dessa forma, ficamos conhecendo mais um dos elementos constitutivos da cidade desejável: “praça suficiente por ser defronte da igreja para ficar mais vistosa aquela rua”. No entanto, a nova configuração da praça vai esbarrar em uma personagens que já conhecemos. Reentra em cena André Ramalho, aquele do caso do esteio, que parece estar insistindo numa posição de resistência sistemática à ação urbanística da câmara.

Resolveram com a mesma uniformidade conceder Licença a André Ramalho para continuar as casas por trás das que morava sitas defronte da igreja de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto sem embargo do embargo que se lhe tinha feito desde o princípio do ano por ordem do Juiz ordinário o mestre de campo Ventura Ferreira Vivaz em confirmação do impedimento que a dita obra teve pelos oficiais da câmara do ano próximo passado pela disformidade que causava ao arruamento desta nova Vila e a dita licença se lhe concedeu sem a pensão de foro com fundamento de serem chãos que o dito André Ramalho havia comprado [...] A. C. M. de Vila Rica, 20 de novembro de 1714.311

Moral da história: quem espera sempre alcança? André Ramalho esperou duas legislaturas - outros vereadores, outros tempos - e conseguiu tudo o que pretendia. Reformou ou reconstruiu suas casas sem levar em conta a “disformidade” da praça da vila e sem pagar foro. A moral da história é outra: a forma da cidade era uma moeda de troca política. Ao iniciar o assento de uma ata da câmara de 1715, o escrivão, recentemente nomeado pelo rei, cometeu um pequeno ato falho. “Nesta vila de Vila de Santarém em as casas da câmara dela digo Vila Rica”, anotou e emendou.312 Já, André Ramalho era, provavelmente, um paulista. Homônimo daquele outro, fundador de Santo André e desafeto dos jesuítas. A sua luta contra uma câmara muitas vezes dominada por reinóis é um episódio miúdo da ‘guerra dos emboabas’, mas que deixaria marcas visíveis no traçado da Vila Rica.

311

VILA RICA. Atas da câmara. p.346.

312

VILA RICA. Atas da câmara. p.368.

351

Apesar deste tipo de ocorrência, a câmara desta cidade mineira conseguiu criar uma trama viária bastante regular, por vezes inadequada à topografia acidentada do terreno. Convém frisar que o eixo longitudinal da povoação e as suas ruas mais importantes fazem-se no mesmo sentido do vale e da serra do Ouro Preto, vencendo, com inadequada valentia, as ondulações dos contrafortes que se antepõem à diretriz estabelecida, sem maior obediência, como seria de desejar-se, à topografia do lugar. Raramente, procuram adaptar-se às curvas de nível do terreno, só aproveitadas quando impostas por interesse especial, tal o caso da Rua do Rosário. Em geral, não atendem às conveniências dos planos naturais, amenizando-se apenas, nas ladeiras, pelo colear tão característico dos caminhos abertos pelo trânsito.313 Prospecto muito ligeiro Em muitas cidade brasileiras do século XVIII, principalmente nas capitais, a atuação da câmara em relação ao construtivo estará condicionada pelo acompanhamento e a interferência constante dos funcionários ilustrados. A preocupação em padronizar os alçados nas ruas mais importantes foi uma delas.

Daqui em diante nenhuma pessoa posa fazer casas nem reedificá-las sem primeiro recorrer à câmara, para lhe mandar fazer a arruação, segundo a qual devem ser fundadas e com especialidade nas que se fizerem na praça da Sé Nova e o que o contrário fizer, perderá 6$000 para as obras do concelho e terá trinta dias de cadeia. Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 1749.314

Um provimento do ouvidor do Rio de Janeiro, datado de 27 de agosto de 1783, obrigava que, da vala até o mar, os pardieiros fossem reedificados e que todas as construções fossem assobradadas, pelo menos na frente das ruas. O ouvidor justificava

313

VASCONCELLOS, Sylvio. Vila Rica. São Paulo: Perspectiva: 1977. p.79.

314

PERERECA. p.135.

352

sua medida “para assim guardar o prospecto e a regularidade das cidades mais civilizadas deste reino e da Europa”.315 Se como já disse, há uma clara influência dos traçados regulares das colônias na reconfiguração de Lisboa e do Porto, certos modismos arquitetônicos adotados nessas cidades seriam difundidos nas colônias pelas mãos dos governadores.316 Em Salvador, quem iniciou o processo foi o marquês do Lavradio.

tenho mandado fazer um prospecto muito ligeiro, mas em forma que todo fique regular, para que debaixo dele se hajam de edificar daqui em diante as casas que ou de novo se edificarem, ou as que pela ruína em que se acham necessitam de reedificação 317

Não tenho conhecimento sobre o que propunha o prospecto ligeiro do marquês do Lavradio, todavia a antiga capital da colônia adotou, em 1785, posturas que impunham uma completa padronização arquitetônica. Tanto as medidas, quanto o detalhamento proposto para os vãos, inspiravam-se na arquitetura da baixa pombalina de Lisboa.

Qualquer pessoa que quiser edificar nesta Cidade, e fora de suas portas qualquer edifício, o fará na forma seguinte. Do plano da rua até o inesgamento do primeiro sobrado, terá de altura 15 palmos e meio, e para cornija dois palmos e meio, e querendo fazer segundo andar ou sobrado, será com altura proporcionada conforme delinear o Mestre de obras do Senado. No primeiro andar não farão sacadas, mas sim janelas divididas de púlpito, e estas não subirão para fora mais de palmo, e quando muito palmo e meio e com grades de ferro ou de pau pintadas, ou janolosias não excedendo a altura destas de quatro palmos e sem postigos para cima; as janelas do segundo andar serão de parapeito, não excedendo estes de quatro palmos, as portas terão de largura cinco palmos e meio, e de altura na ombreira, ou pé-direito, dez palmos, e serão de volta, ou sem ela, fazendo aquela figura no ornato que for vontade e melhor gosto dos donos, de sorte que na largura poderão exceder mais, ou menos, meio palmo, porém nada na altura; nas lojas poderão fazer janelas de parapeito, não excedendo este os quatro palmos, seguindo porém as vergas o mesmo alinhamento das portas; nas ladeiras quando o terreno

315

PERERECA. p.129. Ver, também a padronização arquitetônica das casas da rua das Marrecas e a proibição de contruir casas térreas na cidade nova. p.50 e 355. 316

Um desses modismos foi o dos passeios (as calçadas) ao longo das ruas. “Por direção do vice-rei marquês foram calçadas as ruas da cidade velha, e seus lados cobertos de lajeado à imitação das ruas da cidade nova de Lisboa”. PIZARRO. Memórias históricas. v.7. p.41. 317

LAVRADIO, p.174.

353 declinar cinco palmos, se retesará o prospecto, fazendo a sua fachada em forma de redente; esta mesma formalidade se observará quando houverem de reedificar quaisquer propriedades; e necessitando alguma das sacadas antigas de conserto considerável, se não poderá fazer da forma que existia, mas sim se reduzirá a sacada às janelas divididas com grades, ou rótulas na fórmula determinada. Declara-se, que do plano da rua até o vigamento do primeiro sobrado, terá de altura quinze palmos, e um para o vigamento e assoalhado, que fazem dezesseis, e deste até o cornijamento quinze palmos e meio, como já se declara a princípio, e para a cornija dois palmos e meio, e para todas estas obras dará a forma expressada o Mestre do Senado, remetendo-se-lhe esta diligência para o delineamento. E quem quiser fazer alguma propriedade nobre, e de maior grandeza das ordinárias, apresentará neste mesmo Senado o risco do prospecto, e da formalidade do edifício, conforme o terreno para se averiguar se é ou não conveniente, a fim de se lhe conceder ou não a faculdade. Toda e qualquer pessoa que o contrário fizer será punida com 30 dias de Cadeia, e 6$rs. de condenação, além de demolir à sua custa a obra que tiver feito, e nas arruações, que se fizerem, se mandará observar o que fica determinado. O Mestre de obras que der o risco contrário ao que se acha expressado nesta postura, ficará compreendido nas mesmas penas e será privado do ofício.318

A exemplo do que ocorreu nas ribeiras dos principais centros portuários portugueses, a cidade baixa de Salvador sofreu um processo de adensamento e verticalização. A ribeira foi, por excelência, o lugar do sobrado. A iconografia de Salvador e as descrições permitem que acompanhemos o processo.

Para o ocaso tem a marinha, que, apelidando-se bairro da Praia, se divide em duas paróquias, a de Nossa Senhora da Conceição e a do Pilar, ambas povoadas de inumeráveis moradores e ornadas de grandes edifícios [....]. As [casas] dos particulares em ambas são magníficas e mui elevadas; umas se fabricam sobre o mar e outras encostadas aos penhascos da terra, abrindo-se neles por muitas partes, com grande artifício e despesa, repetidos trânsitos, para subir com mais brevidade a todas as da cidade [....].319

Na década de 1730, quando escreve Rocha Pita, já está perfeitamente consolidada a dualidade espacial da cidade. Uma parte alta, residencial e administrativa, e outra baixa, com sobrados e edifícios do fisco.

318

A BAHIA DE OUTROS TEMPOS; as posturas do Senado da Câmara em 1785. REVISTA DO INSTITUTO GEOGRÁFICO E HISTÓRICO DA BAHIA. ano 4, v.4, n.11, mar.1897. p.68-9. Em Salvador, como em outras cidades brasileiras e metropolitanas de maior porte o processo construtivo foi sendo codificado na segunda metade do século XVIII. Ressalve-se que o mesmo está longe de ser verdade para a grande maioria das localidades menos importantes. A codificação arquitetônica no Brasil se alastrará apenas, a partir da década de 1830. 319

ROCHA PITA, História. pp.47-9. citado de CEAB, A cidade, pp.14-15.

354

A cidade baixa tinha uma configuração linear imposta pela exiguidade da faixa costeira. O meio pelo qual tal limitação física seria superada já estava em andamento. A existência de uma primeira linha de sobrados construídos “sobre o mar” indica um processo de aterro em andamento. Desde esta época até a segunda metade do século XIX, os aterros seriam sucessivos e a cada avanço corresponderia uma linha de sobrados. Esses edifícios sofreram diretamente os efeitos das posturas de padronização, culminando com as réplicas perfeitas dos sobrados lisboetas de Carlos Mardel, construídas no cais das amarras já na década de 1850.320 Na segunda metade do século XVIII, o Recife também entrara na onda dos prospectos padronizado, não sei se por interferência dos governadores ou não. Uma ata da câmara nos permite acompanhar o modus operandi dos oficiais municipais da cidade. Por diversas vezes a câmara recifense era chamada a intervir na configuração urbana da vila na condição de mediadora de conflitos vicinais, como o que levou José Pais dos Santos a tentar embargar uma obra que José da Silva Braga queria fazer no beco das Miadinhas.321

E logo, no mesmo dia [5 de outubro de 1765], acordaram que sendo presente a este Senado que José Feliciano da Costa pretendia tomar com uma nova Casa o beco da Rua Nova primeiro da parte esquerda que faz rua para a nova que se tem principiado que vai findar no Pátio dos Religiosos de Nossa Senhora do Monte do Carmo da Reforma a que procedendo-se a vistoria o [colocar?] por este Senado com citação da parte para exibir a cordeação antiga que diz tinha, e juntamente compareceram os mais moradores e senhores dos prédios como também o procurador do mesmo convento da Reforma assentou-se uniforme que não era a dita rua somente servidão mas juntamente rua cordeada e desenhada há muitos anos pela qual se pode estender uma dilatada rua e fazendo-se a dita casa se perde a nova rua e o regulamento que devem ter todas com a mesma igualdade; pelo que se tentou que não se fizesse a dita casa e se notificasse o dito José Feliciano da Costa para que assim ficasse entendendo pena de se demolir e ser autuado por rebelde e contumaz e se ordenou que no termo de três dias exibisse em mão do escrivão a dita cordeação e no mesmo termo arrancasse os alicerces a que tinha dado princípio pena de se mandar proceder à sua custa e que o escrivão lhe intimasse este acórdão e passasse a pedir-lhe certidão

320

Nestor Goulart, o único historiador a enfrentar as questões suscitados por esse conjunto de edificações, hoje desaparecidas, infelizmente enredou-se numa tese axiomática que mais obscureceu do que resolveu os problemas que se propôs a enfrentar. Ver REIS FILHO, Nestor Goulart. Notas sobre o urbanismo barroco no Brasil. CADERNOS DE PESQUISA DO LAP. n.3, nov.-dez.1994. 321

RECIFE. Ata da câmara de 28 de julho de 1764. ARQUIVOS; nova série. Recife, n4, out.1985. p.39-40.

355 de como assim o mandaram de que para constar mandaram fazer este termo em que assinaram Silvestre Antônio de Laje escrivão da Câmara o escrevi.322

Segundo o governador Gama Freitas, os moradores da vila de Nossa Senhora do Desterro (Florianópolis) não abandonavam os “antigos usos de fazerem uns prospectos muito baixos, umas portas muito pequeninas ou umas janelinhas”. Para acabar com as “enfeiadas obras”, enviou um prospecto à câmara “pelo qual se deverão regular todas as casas que novamente se edificarem nesta vila”, em especial as dos moradores mais abastados. Afora esta medida, de caráter mais geral, ele chegava a acompanhar e interferir diretamente nas obras particulares executadas na cidade. É o caso da nova casa que estava sendo erguida pelo pároco, que, segundo ele, parecia “uma imitação de Cadeia, coisa na verdade feíssima”. A construção adotava um partido corrente no período: uma porta ao centro e de cada lado a seqüência de janelas. O governador queria impor suas preferência arquitetônicas, e ordenou à câmara que obrigasse o padre “que em lugar de janelas lhe há de por portas, vista a fealdade e mau gosto de um edifício construído por aquela forma”.323 Mais um pequeno ato que caracterizava a apropriação dos direitos da câmara pelos agentes do estado central.

322

323

RECIFE, op. cit. p.64-5.

Ver CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Os juízes de fora; Nossa Senhora do Desterro. ANAIS DO PRIMEIRO CONGRESSO DE HISTÓRIA CATARINENSE. v.2. Florianópolis: Imprensa Oficial, 1950. p.151.

DO PÚTRIDO AO DELEITOSO

Toto homine qui in calle aud in castello uel in carcaua iectare sterco pectet I morabitinum al concilio. Costumes e Foros de Castelo Bom, 1188-1230

A AGENDA DO PODRE

A competência dos almotacés em relação à limpeza das cidades, incluí-se, como já vimos, no núcleo de suas atribuições originais, configurando uma das mais antigas agendas do viver urbano. O primitivo regimento da almotaçaria de Lisboa já lhes atribuía a tarefa de os “monturos e as fontes limpar e resguardar”.1 Nos regimentos de outras cidades, como no de Évora, de 1385, tais competências eram melhor detalhadas.

Item. Cada mês farão alimpar a cidade cada uns as portas das ruas dos estercos e maus cheiros e farão em cada freguesia tirar cada mês uma esterqueira e lançá-lo o esterco fora nos lugares onde se há de lançar. Item. Não consintam que lancem bestas mortas nem cães nem outras coisas sujas e fedegosas na cidade e os que as lançarem façam-lhas tirar pondo-lhes pena se as não tirarem e aos negligentes dê-lhes logo a execução.2

O regimento quinhentista dos almotacés de Coimbra detalhava, ainda mais, a forma de proceder com as esterqueiras.

Quando quer que acharem feitos tais monturos na cidade ou arredor dela que mereçam ser tirados e limpos dos lugares de onde jazem terão em elo a maneira

1

2

PCL. p.45.

ÉVORA. Regimento da cidade de Évora feito pelo corregedor da corte João Mendes em tempo del Rei D. João I. In: PEREIRA, Gabriel Vítor do Monte (ed.). Documentos históricos da cidade de Évora. Fascículo I, Foros e costumes ou direito consuetudinário municipal nos séculos XII e XIII. Évora: Typographia da Casa Pia, 1885. p.166. Este item foi transposto, na íntegra, para as ORDENAÇÕES AFONSINAS. Livro 1, título 28, § 15.

357 seguinte, a saber, catarão almocreves ou boieiros se for lugar para que possa ir carro, e se lho quiserem tirar de empreitada concertem-se com eles por aquilo que honestamente bem merecerem e não o querendo tomar de empreitada então lho façam tirar por seus jornais costumados por dia, e eles ditos almotacés alvitrarão quanto dinheiro haverá mister para se tirarem os tais monturos e tanto que o assim tiver assomado fará rol com o escrivão de seu ofício de todas aquelas pessoas que viverem mais ao redor donde se fizeram as tais esterqueiras e assim de quaisquer outras que eles almotacés tenham já por informação que ali costumam a lançar a tal sujidade e lançará a cada uma aquilo que lhe parecer que deve de pagar, respeitando o azo e maneira que cada uma pessoa pode ter para lançar mais ou menos sujidade e isso faça logo tirar e pague aos que as tais esterqueiras assim por seus mandados tiraram e tudo o que assim mandar pagar o faça assentar em livro pelo seu escrivão e desta maneira o façam e não doutra nenhuma guisa. Coimbra, século XVI.3

Era costume que, ao fim do mês de exercício do ofício, os almotacés prestassem contas de sua atuação às câmaras. Assim, chegaram até nós as primeiras notícias de sua atuação nesta área.

Outrossim no dito dia Vasco Lourenço almotacé por si e Vasco Afonso seu parceiro deram conta de seu mês por livro de Vasco Esteves e João Afonso tabelião e se mostrou que usaram segundo deviam afora a esterqueira que disseram que não tiraram pelos* invernos. S. C. M. de Loulé, 7 de abril de 14164

Neste exemplo, os almotacés não parecem ter cumprido satisfatoriamente as suas atribuições. Os poucos indícios disponíveis não nos permitem generalizar que havia uma inoperância desses oficiais no quesito da limpeza urbana. Todavia, desde o século XV, vamos encontrar muitas cidades em busca de outras formas de resolver o problema do lixo, indicativo de que aquilo que pregavam os regimentos era insuficiente.5

3

COIMBRA. Posturas municipais. Livro I da correia; Livro de regimentos e posturas desta mui nobre cidade de Coimbra. ARQUIVO COIMBRÃO. v.5, 1940. p.146-7. 4

LOULÉ. Atas da câmara. ACTAS DAS VEREAÇÕES DE LOULÉ. Porto: Câmara Municipal de Loulé, 1984. p.17. Esta é a data sugerida por Oliveira Marques. Para Luís Miguel Duarte seria 1378. * pelos = por serem os 5

Ao longo de séculos os concelhos fizeram tentativas de impor aos moradores a obrigatoriedade de varrer as ruas, mas sem resultados aparentes. LPA. p.27; COIMBRA, op. cit. v.2, p.175; SETÚBAL. Posturas municipais. In: PIMENTEL, Alberto. Memória sobre a história e administração do Município de Setúbal. Setúbal: Câmara Municipal, 1992. p.100.

358

Houve tentativas de criar serviços de limpeza, mas elas também deixaram a desejar. Em finais do século XV, a rainha D. Leonor criou um desses serviços em Óbidos. Para esse fim, foram utilizados alguns degredados aos quais foi dada a obrigação de limpar todos os sábados as ruas de cidade.6 Não se sabe até quando isto durou. Já em Lisboa, a limpeza das ruas foi entregue a um empreiteiro, que, para isso, utilizava sete animais de carga. Mesmo assim, acumulavam-se as esterqueiras. Em 15 de outubro de 1489, existiam três grandes monturos junto às portas da Alfofa, de São Vicente e de Santo Antão. O empreiteiro considerava que seriam “trabalhosos de tirar por o inverno ser tão acerca”.7 Apenas um deles seria removido. Mais uma vez os invernos. Se considerarmos que abril era inverno, como alegavam os almotacés de Loulé, e em outubro já era quase inverno, sobravam apenas seis meses, em cada ano, para a remoção dos detritos acumulados. Não admira o acúmulo. Em algumas cidades, tentou-se outra forma de agenciar o problema. Se as múltiplas atribuições dos almotacés e o seu constante revezamento não permitiam que eles se dedicassem a contento à limpeza da cidade, a solução talvez fosse contratar um oficial específico para cuidar do assunto: o almotacé da limpeza. No século XV, Lisboa especializou os seus almotacés, entregando a vigilância sanitária a duas pessoas. Em Coimbra, o cargo de almotacé da limpza foi criado em 1559. Tratava-se de um ofício remunerado, que conferia ao titular a renda anual de 6.000 réis.8 Mesmo assim, o problema do lixo não se resolveu. Tanto o progressivo detalhamento dos regimentos dos almotacés, como as tentativas infrutíferas de criar serviços de limpeza são indícios precisos de que as cidades estavam perdendo a batalha contra as esterqueiras. Como já vimos, por séculos,

6

Ver CÂMARA, Teresa Bettencourt da. Óbidos; arquitetura e urbanismo. Lisboa: Imprensa Nacional, 1990. p.35. 7

DOCUMENTOS DO ARQUIVO HISTÓRICOS DA CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA. v.3, 1959. p.281. Citado de GONÇALVES, Iria. Posturas municipais e vida urbana na baixa Idade Média: o caso de Lisboa. ESTUDOS MEDIEVAIS. Porto, n.7, 1986. p.166. 8

CARVALHO, José Branquinho de (ed.). Livro 2º da correia; cartas, provisões e alvarás régios registados na câmara de Coimbra. 1273-1754. Coimbra: Biblioteca Municipal, 1958. p.112-3.

359

a cidade abrigou a diversas práticas trazidas do mundo rural, apesar da existência de uma legislação restritiva. As ruas foram apropriadas como sucedâneo dos terreiros e passais, ou como projeção do mundo doméstico e das oficinas. Todavia, a condição urbana, não permitia um processo de absorção de resíduos semelhante ao que ocorria na economia camponesa. O espaço urbano simplesmente não dava conta de digerir os restos associados ao artesanato e ao consumo doméstico. Os detritos e os excrementos produzidos pelos moradores acumulavam-se, instaurado na cidade o reino do pútrido. A urbanização foi a grande inventora dos cheiros nauseabundos. A economia camponesa não gerava esses odores, pelo menos, não na escala em que passariam a ser produzidos na cidade. Simultaneamente ao pútrido, instalou-se no espaço urbano medieval o reino da peste, o que levaria os moradores a estabelecer uma interconexão de causa e efeito entre ambas as coisas. A podridão orgânica dos dejetos urbanos era apontada como a principal causa do adoecimento dos habitantes.9 É o que nos diz o regimento dado por D. João I a Évora, em 1392.

Porque das sujidades e estercos e coisas podres e nojosas e fumos que se delas fazem nos lugares recrescem muitos danos e dores aos corpos e ainda parece mal os lugares onde tal cousa consentem.10

FUGIR OU FICAR, ABRIR OU FECHAR

Na Europa, o século XIV foi o século das grandes pestes que, em muitas localidades, levaram mais da metade da população. Esta debacle populacional provocou

9

Mais tarde, no século XVIII, essa capacidade vetora do ar seria sistematizada numa entidade etérea denominada miasma (partículas voláteis). No período medieval ou idade moderna, não era este o termo empregado, mas já estavam lançadas as bases do sanitarismo miasmático, cujos princípios foram considerados válidos ainda no século XX. 10

ÉVORA, Regimento. op. cit. p.188.

360

uma profunda renovação das estruturas sociais e na distribuição da riqueza, que, para muitos autores, sinalizam o fim do período medieval.11 Em decorrência das epidemias, observa-se uma tomada de consciência em relação à insalubridade urbana e, como conseqüência, a elaboração de normas e a introdução de medidas práticas que objetivavam a melhoria das condições sanitárias das cidades. Em Portugal não foi diferente. As cidades também foram assoladas pelas epidemias, o que levou tanto os reis portugueses como os concelhos municipais a adotarem medidas muito semelhantes às prescritas no resto do continente. O quadro de propostas e práticas que a coroa e as municipalidades adotaram com o intuito de debelar as pestes e melhorar o estado sanitário das cidades era orientado por uma concepção eminentemente olfativa de salubridade. Os historiadores costumam associar a emergência da sociedade burguesa, que se inicia com a reurbanização da Europa, a uma negação do sentido do olfato. Todavia, quer me parecer que há nisso uma boa dose de esquematismo e simplificação do problema. Se, anteriormente ao retorno da cidade ao ocidente, havia uma maior competência olfativa, esta competência seguramente não estava voltada ao mefítico. Por séculos, o morador da cidade medieval e moderna esteve condenado a tais cheiros, que a seqüência de epidemias inauguradas pela peste negra fez associar à doença e à morte. Se, por um lado, a convivência secular com as imundícies urbanas pode ter levado a um aumento da tolerância olfativa, por outro, essa mesma convivência tornava necessário que não se perdesse a capacidade de reconhecer os maus odores. Segundo o que se acreditava na época, a própria sobrevivência individual e coletiva dependia desta capacidade. A relação que se estabelece entre o morador da cidade e as suas esterqueiras é, portanto, ambígua. Ela oscilava entre a convivência pacífica e o pavor. Oscilação ditada principalmente pelo ritmo das epidemias. Não se deve, assim, estranhar que essa sociedade tenha desenvolvido precocemente uma “ciência” olfativa

11

Ver MORENO, Humberto Baquero. Conseqüências sociais da peste negra. BRACARA AUGUSTA. v.14-15, 1963. p.26 e ss.

361

da salubridade urbana na qual se apoiavam as medidas emergenciais adotadas com o intuito de debelar as pestes. As grandes epidemias da Idade Média fizeram que retomasse consistência um dos mais antigos programas do viver urbano: o afastamento da podridão e dos maus cheiros. É certo que esse grande objetivo não foi perseguido com a mesma intensidade e persistência em todas as ocasiões e lugares. Todavia, os periódicos surtos de “pestenências” obrigavam a manter o pútrido na agenda das preocupações. Ao estudar a atuação dos concelhos medievais portugueses diante das pestes, a historiadora portuguesa Maria José Tavares nos mostra que o primeiro dilema enfrentado pelos habitantes das cidades era o de ficar ou partir.12 Contudo, tal tipo de solução era ainda uma decisão pessoal, ao alcance de poucos. El-rei D. Duarte, em seu Leal Conselheiro, diria que “cousa perigosa é escolher homem estar no lugar onde morrem de pestelença, é coisa mais segura partir-se”.13 O conselho do rei estava em perfeita consonância com a sugestão dos doutores da Sorbonne: fugir “logo, para longe e por muito tempo”.14 Os mais pobres costumavam fugir para os arredores, ou para cidades vizinhas. Apenas a elite tinha meios e poder para empreender fugas de maior distância. Uma atitude que muitas vezes mostrava-se inútil. Na peste de 1438, o próprio D. Duarte fugiria, em vão, de Lisboa, pois a morte iria alcançá-lo em Tomar. Muito cedo, as opções pessoais com que se enfrentavam as pestes seriam condicionadas por decisões tomadas na esfera pública. O rei e os concelhos passariam a decidir entre fechar ou abrir, as cidades ou as casas, ou entre obrigar a partida ou a permanência, com o que a doença deixaria de ser um acidente pessoal para tornar-se acontecimento pertinente à esfera de decisões estatais. De forma remota, começava a

12

TAVARES, Maria José P. F. A política municipal de saúde pública; séculos XIV-XV. REVISTA DE HISTÓRIA ECONÓMICA E SOCIAL. Lisboa, n.19, jan.-abr.1987.p.17 e ss. 13

TAVARES. A política. p.18. Na época, utilizavam-se os termos pestelença ou pestenença para os casos da peste negra vinda do oriente. No entanto, não é possível estabelecer uma relação unívoca entre pestelença e peste negra. Esta doença não foi responsável por todas as epidemias do período. Pestelença acabaria tendo um uso alargado para designar qualquer surto epidêmico. 14

DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente. 1300-1800. São Paulo: Cia. das Letras,

1989. p.119.

362

emergir da cidade medieval, assolada pela peste, aquilo que, muito mais tarde, se transformaria em políticas públicas de saneamento e de saúde. O mau ar, que é grande impedimento A noção de que o apodrecimento de matéria orgânica era capaz de ser transmitido através do contato, causando o apodrecimento dos corpos vivos - as doenças - tem longa história na tradição ocidental. Também, não era nova a idéia de que o ar e as águas tivessem a capacidade de transmitir a contaminação pútrida. A Idade Média não inventou essas noções, assim como não optou por nenhuma das duas em exclusivo. Ambas desempenharam papéis decisivos na definição das práticas públicas de saneamento. Nos momentos em que a pestenença ameaçava entrar ou já tinha entrado em alguma cidade, a noção de contágio direto ganhava relevância. Era ela que induzia as tentativas de fuga para localidades distantes. Deve-se, também, a ela o pavor generalizado de qualquer contato com os doentes e com os cadáveres dos mortos pela peste. A noção de contágio indireto, por sua vez, orientava algumas ações nesses momentos. Todavia, o seu maior efeito era nortear aquilo que, hoje, denominaríamos profilaxia. O medo de contágio pelo ar informa a maior parte das posturas municipais destinadas a sanear o espaço urbano. Nota-se, contudo uma hesitação ou embricamento entre as duas maneiras de encarar a contaminação. Uma carta de D. João II, endereçada à Câmara de Lisboa, nos dá uma mostra da oscilação entre as duas estratégias de enfrentar a peste do final do século XIV. Cada uma derivada de um dos princípios acima mencionados.

E o que nos parece deveis fazer é que mandeis apregoar que onde quer que adoecer alguém que o digam, pondo-lhe todas as penas que bem parecer, as quais todas aprovaremos. E nas casa onde assim adoecerem não devem ser cerradas, como se costuma fazer mas devem ser despejadas e muito bem varridas e lavadas com vinagre e perfumadas com alecrim por algumas vezes com janelas abertas, por sendo cerradas fica sempre aquele mau ar dentro, que é grande impedimento. E [....] depois desta diligência assim fizerdes nas ditas casas doentes, fazei por às portas das ditas casas ou janelas onde bem parecer cada uma seu ramo d’alecrim ou outro sinal algum

363 para se saber a casa onde adoeceram e seja causa de se arredarem de irem por aquele lugar.15

Fechar ou abrir? eis a questão. O medo do contágio direto, ou pelo toque, recomendava o enclausuramento dos doentes e seus familiares em suas próprias casas ou em lugares fora da cidade. Em casos extremos chegava-se a emparedar regiões inteiras da cidade, como aconteceu com a rua do Olival, no Porto, ou com a judiaria de Évora, em finais do século XV.16 Prática que ofendia a sensibilidade cristã da época, pelo sacrifício que impunha a muitos “inocentes”, além de gerar atitudes de resistência entre os moradores atingidos. Afora tal dilema ético, a questão complicava-se pela crença de que a atmosfera desses locais fechados corrompia-se. Ao trancafiar-se o doente, trancava-se simultaneamente o ar corrupto, mantendo, desta forma, um foco de contaminação permanente dentro da cidade. No exemplo acima, o rei opta pelo arejamento, contrariando, como ele mesmo diz, a solução mais corrente do entaipamento das casas dos doentes. Complementando a aeração dos ambientes, a ordem régia prescrevia mais alguns cuidados: a desinfecção com vinagre e o uso de perfumes como contra-aromas, que ajudariam a purificar o ar pestilencial. Por via das dúvidas, a casa era marcada com um ramo de alecrim para que ninguém se aproximasse, de maneira a evitar qualquer contato possibilidade de contaminação. Nesses momentos, os corpos dos mortos despertavam um verdadeiro horror. Urgia fazê-los desaparecer, antes que começassem a exalar os odores pútridos que contaminavam o ar, ainda que isso contrariasse os preceitos religiosos de algumas comunidades.

Ordenação por que mandam que como judeu morrer ou judia que logo o levem a soterrar

15

LISBOA. Câmara Municipal. Livro primeiro do Provimento da Saúde. Carta de D. João II à Câmara. Citado de TAVARES. A política. p.26-7. 16

TAVARES. A política. p.23-4.

364 Ouvide. Mandado do corregedor, vereadores, procurador e homens bons desta mui nobre e sempre leal cidade de Lisboa que daqui em diante se tenha maneira que tanto que qualquer judeu ou judia for morto de pestenência que logo o levem a enterrar antes que mais cheire, porque os tais cheiros corrompem e trazem a tais tempos muito grande dano ao povo, e isto se entenda assim ao sábado como em outro qualquer dia, e se morrer de noite, que logo pela manhã seja enterrado sem o mais terem na judiaria, e qualquer que o contrário fizer e o assim não cumprir o hão por condenado em mil reais por cada vez que em ele incorrer, a metade para as obras da cidade e a outra metade para quem o acusar.17

Desde o século XIV, quando se passou a adotar a estratégia do arejamento, as medidas mais utilizadas para sanear as cidades atingidas por surtos eram, resumidamente, as que acabamos de ver: evacuação e limpeza dos edifícios, dispersão de perfumes e o rápido enterramento dos cadáveres. Antes, porém, que a peste chegasse à cidade, outras medidas já haviam sido tomadas. Quando se espalhava a notícia de que o flagelo se aproximava, tratava-se de impedir qualquer contato com pessoas provenientes de lugares contaminados. A grande preocupação era com aqueles que fugiam de suas cidades de origem e buscavam abrigo na casa de parentes e amigos em localidades ainda não atingidas. Para aqueles que abrigassem algum desses fugitivos, a legislação previa multas e expulsão, junto com o presumido disseminador da epidemia.

Ouvide. Mandado do corregedor e vereadores e procurador e homens bons da mui nobre e sempre leal cidade de Lisboa, não seja nenhuma pessoa tão ousada, de qualquer estado e condição que seja, que for desta cidade para alguma parte fora dela ou vier dalgum lugar e lhe der esta enfermidade de pestelença, que deus apraza de alevantar, pague de pena 500 reais brancos e quem quer que agasalhar em sua casa pague outros quinhentos reais e seja lançado fora dela.18

Fazer cumprir tais determinações não era coisa fácil. Os moradores surpreendidos fora das cidades pelas medidas de isolamento, usavam de todos os

17

LPA. 1979. p.42-3. A postura não está datada, mas deve ser do último quartel do século XV, quando Lisboa foi assolada por diversos surtos de peste. No caso específico, a legislação vai contra a interdição religiosa judaica de sepultamento durante o shabat, o que não quer dizer que não houvessem medidas semelhantes dirigidas aos cristãos e muçulmanos. Há um possibilidade que ela reflita um sentimento anti-semita, tão comuns na Europa durante as pestes. 18

LPA. p.39-40.

365

subterfúgios imagináveis para voltar às suas casas. Chegavam a escalar-lhes os muros, durante a noite.19 Além do mais, as câmaras ficavam sujeitas ao poder individual da nobreza e de outras figuras de proeminentes, que obtinham privilégios contra as medidas preventivas. Assim, é bom que se diga, as normas que proibiam a entrada de pessoas provenientes de locais contaminados nem sempre eram seguidas à risca. Muitas vezes eram os próprios reis que ordenavam às câmaras a quebra dos degredos para alguns de seus apaniguados, o que não os impedia de admoestar os concelhos quando estes agiam por iniciativa própria.20 O historiador Francisco Ribeiro da Silva afirma que o medo do contágio “sobrepunha-se a todos os argumentos de exceção”. Cita o exemplo do fidalgo D. Duarte de Meneses, obrigado a ficar em degredo durante 15 dias, durante a epidemia de 1599, antes de poder entrar no Porto.21 A documentação de Aveiro permite acompanhar um caso exatamente ao contrário, em que houve abertura de exceções a alguns poderosos. Em 1580, o medo de contaminação da cidade levou os oficiais da câmara a decretar quarentena para todos os que viessem de Coimbra, Lisboa e da vizinha vila de Mira, onde quatro pessoas haviam sido mortas pela doença.22 Mesmo assim, eles permitiriam a entrada de algumas figuras locais de destaque que vinham daquela vila.

E logo por ele Juiz e vereadores e procurador do concelho foi praticado acerca da entrada da senhora dona Joana entrar nesta vila, de Mira de onde veio, e estava recolhida na ermida de São Sebastião, e praticaram que para se determinar se entraria ou não mandaram chamar algumas pessoas da [...] governança da vila abaixo assinadas, e juntos praticaram se entraria ou não e assentaram que a dita senhora dona Joana entrasse com seus filhos e um com sua mulher.

19

Para o Porto, ver SILVA, Francisco Ribeiro. O Porto e seu termo (1580-1640); os homens, as instituições e o poder. Porto: Arquivo Histórico da Câmara Municipal do Porto, 1988. v.2, p.815. 20

ver TAVARES. A política. p.21.

21

SILVA. O Porto. p.812.

22

AVEIRO. Atas da câmara. Citado de NEVES, Francisco Ferreira (ed.). Livro dos Acordos da câmara de Aveiro de 1580; subsídio para o estudo da vida municipal e nacional portuguesa no século XVI. Aveiro: Câmara Municipal, 1971. p.86.

366 S. C. M. de Aveiro, 1 de setembro de 1580.23

Durante os surtos de peste, a pressão sobre as câmaras não se limitavam àquelas feitas pelos potentados. Longos períodos de isolamento urbano eram dificultados por interesses difusos de cunho econômico. As cidades do período não eram auto-suficientes e dependiam, ou para a sua subsistência ou para a manutenção das atividades produtivas, do deslocamento de pessoas e mercadorias.24 Percebe-se as limitações que essa interdependência impunha ao combate das epidemias, observandose a relação entre os centros pesqueiros de Portugal e a região salineira centrada em Aveiro, atingida por um surto de peste em 1466. Mais ao norte, a Vila do Conde, onde a principal atividade era a pesca, necessitava sal de Aveiro para a conservação do peixe, o que obrigava a constantes deslocamentos entre as duas localidades. A vila era extremamente dependente do comércio de peixe salgado, o que levava seus homens bons, muitos deles diretamente envolvidos nesta atividade, a protelar ao máximo a suspensão do fluxo de pessoas e mercadoria entre ambas as vilas, apesar da consciência do perigo de contágio. A dubiedade na atuação da câmara durou até que o filho de um carregador de sal, morador da Vila do Conde, aparecesse com sintomas de peste. Desencadeado o alarme, a ação da câmara foi imediata. Os oficiais do concelho enviaram dois barbeiros à casa do doente para examiná-lo. O diagnóstico foi concludente: o rapaz estava acometido de “levaçom de pestenença”. Frente à terrível constatação, os oficiais do concelho, finalmente, tomam a difícil mas improtelável decisão.

Acordaram e mandaram que logo sem mais delonga seja levado e lançado o dito menino e sua mãe e quantos há na casa com eles fora da vila e termo. E que logo fechem as portas e janelas das casas e as perfumem d’alguns bons cheiros que em elas queimem como se costuma. E que seja logo lançado pregão por toda a vila e daqui em diante não seja nenhum tão ousado de qualquer condição e estado que seja que venha donde morrem a esta vila e termo sob pena de ser preso e pagar mil reais para os cativos e qualquer morador da dita vila e termo que os acolher em sua casa ou com

23

AVEIRO. Atas da câmara. op. cit. p.91.

24

Ver comentário em DELUMEAU. História do medo. p.118.

367 eles falar dentro da vila ou fora dela que pague a dita pena de cadeia jazendo preso até que pague os ditos mil reais. E se porventura algum morador da dita vila e termo vier de algum lugar donde morrem que não entre na dita vila e termo até primeiro serem passados 20 dias, sob a dita pena. S. C. M. de Vila do Conde, 5 de julho de 1466.25

As medidas adotadas pelos oficiais e homens bons do concelho de Vila do Conde eram coerentes com a estratégia padrão utilizada pelas câmaras para tentar conter as pestes. A exemplo do que já vimos para Lisboa, foi decretada a proibição do contato com as localidades acometidas pela epidemia. Na Vila do Conde, porém, o poder municipal foi mais drástico, resolveu expulsar os seus próprios doentes juntamente com os familiares, antes que a peste se alastrasse. Expulsá-los não só do quadro urbano como de todo o termo do município. Todavia, por motivos óbvios, as vilas vizinhas tomavam apressadamente medidas idênticas, o que gerava um impasse e tendia a tornar a decisão de expulsar os doentes em letra morta. Em situações como essa, a solução encontrada pelos concelhos era a de isolar os doentes em algumas hortas ou outros locais fora do quadro urbano. Quer por determinação do rei, quer das câmaras municipais, tal solução ganhou força nas duas últimas décadas do século XV. Foi o que ocorreu em Évora e Lisboa durante a peste de 1480. No Porto, durante o grande surto de pestenência dos últimos anos do século XV, progressivamente foram sendo requisitados novos lugares para internamento dos doentes.26 Muitos dos lugares usados para isolamento dos empestados estão na origem da criação de hospícios, como eram chamados os hospitais no Portugal medieval. A necessidade de mantê-los levaria à criação de sociedades beneficentes, as Misericórdias, a começar pela de Lisboa, que serviria de modelo para todas as demais, inclusive aquelas estabelecidas nas colônias.

25

VILA DO CONDE. Atas da Câmara. MARQUES, José (ed.). A administração municipal de Vila do Conde, em 1466. BRACARA AUGUSTA. Braga, v.37, n.83-4, jan.-dez.1983. p.85. Acompanhando as subseqüentes sessões camarárias, percebe-se a pressão que se exercia sobre os vereadores, para que levantassem o embargo o mais rápido possível. Ver em TAVARES. A política. p.20-1. uma profusão de medidas semelhantes em diversos concelhos. 26

Ver TAVARES. A política. p.24 e ss.

368

Uma última solução, adotada em alguns casos extremos, era a de evacuar totalmente a cidade. Este ato desesperado era acompanhado da adoção de medidas destinadas à purificação do ar. Acendiam-se fogueiras, espalhavam-se ervas e perfumes e traziam-se os animais de pasto para dentro da cidade. Acreditava-se que a respiração destes animais tinha a propriedade de purificar o ar corrompido pelas emanações pestilenciais.27 Ao lado de todas essas medidas sanitárias, as autoridades eclesiásticas recomendavam algumas outras. Rezar e rezar e fazer penitências. Peste e pecado ainda não eram coisas dissociadas. No entanto, suspendiam-se procissões e até missas, pois havia a percepção que os ajuntamentos de pessoas propiciava o contágio. As grandes celebrações religiosas ficavam para quando a peste “levantava”. As práticas comerciais do período, impunham outro tipo de dificuldade ao controle da disseminação de epidemias. Mais do que os deslocamentos terrestres, a navegação comercial de curta e longa distância servia de vetor de contágio. Em Portugal, onde a navegação desempenhava um papel econômico preponderante, tinha-se uma clara noção deste papel dos navios, o que levava ao controle de barcos, tripulações e mercadorias. Em casos mais graves chegava-se a incendiar os navios com suas cargas.28 A imposição de quarentena, no entanto, era a prática geral a que recorria o rei e seus emissários e, também, as câmaras municipais. O termo quarentena é aqui utilizado em sentido lato, pois o isolamento durante quarenta dias, que deu origem à palavra, ainda não era empregado. Os variados períodos de isolamento a que estavam sujeitos os suspeitos de contaminação eram conhecidos como degredos.

27

Ver DELUMEAU. História do medo. p.111 e 121. Delumeau refere-se, sem explicitar melhor, à matança de bois e cavalos para combater a peste. Em Portugal, pelo contrário, acredita-se no efeito benéfico destes animais. Nem mesmo praticavam-se as matanças de cães e gatos, comuns em outras partes da Europa. Apenas sobre o porco recaía uma vaga desconfiança. 28

Em 1626, uma barca proveniente do norte da África foi queimada em Portimão. SILVA. O

Porto. p.811.

369

A noção de que não só as pessoas, mas que também as coisas podiam transmitir a contaminação, levava a que as mercadorias fossem igualmente deixadas em quarentena. Algumas mercadorias, como ferro e outros metais, eram submersas nas águas das praias ou dos rios. A prática mais corrente, no entanto, era assoalhá-las, ou seja, deixá-las expostas ao sol durante um período de tempo pré-determinado. Acreditava-se num poder desinfetante dos raios do sol. Há um caso no Porto em que se discutiu, se os papéis, de uma carga vinda da França, deveriam ser molhados folha a folha ou se deveriam ser expostos ao sol. Prevaleceu a segunda opinião. Durante um mês e meio, as resmas foram diariamente submetidas ao poder curativo do sol e do ar, antes de saírem da quarentena.29 Enquanto as mercadorias permaneciam ao sol, as tripulações eram submetidas a diferentes formas de isolamento. Ora nos próprios navios, ora em terra, em local fixo designado pelos oficiais. Na peste de 1492, o rei ordena à câmara de Lisboa a construção de um alpendre para abrigo dos marinheiros em quarentena.30 No Porto, os vereadores pareciam ser bastante cautelosos. Há um caso, em que, tripulação de um navio, oriundo de região acometida de peste, foi isolada, apesar de estar toda saudável. Os marinheiros foram obrigados a permanecer no cabedelo durante “vinte e quatro dias por se escusarem os inconvenientes que seja de semelhantes casos”.31 Freqüentemente, a tripulação era impedida de desembarcar e permanecia em quarentena nos próprios navios. Foi o que decidiram os oficiais da câmara de Aveiro, na epidemia de 1580.

E assim, assentaram mais que para os navios que vieram de Lisboa que estavam em Sama, se lhes pusessem uma guarda que os guardasse e lhes pudesse levar de comer e isto à custa dos ditos mestres senhorios e marinheiros, que todos pagariam ao guarda

29

SILVA. O Porto. p.810-11.

30

RODRIGUES, Maria Teresa Campos. Aspectos da administração municipal de Lisboa no século XV. REVISTA MUNICIPAL. Lisboa, n.104-5, 1965. p.11. 31

Citado de TAVARES. A política. p.22.

370 o que lhes coubesse a cada um e que dariam ao guarda, por dia, setenta reais com o barco que lá teria e que estariam em degredo, os dias que parecesse.32

O pagamento feito pela tripulação introduzia mais um problema, pois o próprio dinheiro poderia produzir o contágio. Uma norma do Porto, mandava que o dinheiro recebido dos confinados fosse imediatamente desinfetado com vinagre.33

OS ARES MAUS CONTAGIOSOS

As preocupações com o contágio, e mesmo com as própias doenças, pode ser acompanhado no contexto da expansão marítima portuguesa. No primeiro momento desta expansão, representado pelas conquistas no Marrocos e pela ocupação dos arquipélagos da Madeira e dos Açores, este panorama sanitário não sofre alterações de monta. Quer no norte da África, quer nas ilhas temperadas ao norte do Atlântico, repetese o quadro das pestenências européias. Os arquipélagos dos Açores e da Madeira eram desabitados e os colonos ali instalados trouxeram consigo tanto as pestes, quanto os hábitos higiênicos europeus. A Ilha da Madeira foi o primeiro grande centro populacional português fora do continente e, muito cedo, seus habitantes tiveram que conviver com o quadro epidêmico europeu. Durante o século XV a vila do Funchal foi, por diversas vezes, fechada para os que provinham do Machico, Santa Cruz, Cabo Verde ou das Canárias.34 Em 1488, a pena para quem quebrasse o degredo era de dois mil réis e nos casos em que o transgressor fosse “homem de pé e baixa sorte” ele deveria ser açoitado. Posteriormente, além do açoite para os escravos, seriam adotadas penalidades de um

32

AVEIRO. Atas da câmara. op. cit. p.83.

33

SILVA. O Porto. p.810.

34

FUNCHAL. Atas da câmara. COSTA, José Pereira da (ed.). Vereações da câmara Municipal do Funchal; século XV. Funchal: Região Autônoma da Madeira, 1995. p.208 e 221.

371

ano de degredo em Ceuta e outros lugares de “além”, de acordo com a condição social do infrator.35 Por razões óbvias, nas colônias insulares, os navios eram considerados como veículos principais da transmissão dos “maus ares”. Os oficiais concelhios do Funchal ordenaram, em 1491, que “nenhuma pessoa fosse tão ousada que recolhesse em sua casa nenhuma pessoa que viesse no navio de Cabo Verde porquanto lá morrem”.36 Em Velas, nos Açores, pode-se acompanhar a câmara deliberando sobre as maneiras de evitar o contágio da vila por via marítima.

Os ditos oficiais acima nomeados puseram por acordo e mandaram que de hoje por diante havendo respeito aos muitos lugares de portos do mar que há iscados* dos ares maus contagiosos de peste de que o senhor Deus nos guarde e o mal que é tanto em prejuízo do povo seria de que o senhor Deus nos guarde apegar-se na terra, pelo que mandam que nenhum arrais de barco e batéis, nem caravela, nem outra nenhuma pessoa seja tão ousada que vá a nenhuma passagem navio ou caravela ou barco que de fora deste porto vier ou pelo canal passar sem licença desta câmara ou sem primeiro serem despachados pelos oficiais dela, nem os mercadores que de fora trouxerem mercadoria para a terra a não descarreguem em terra sem licença deles oficiais sendo certo que quem o contrário fizer pagará vinte cruzados de pena para o concelho e cativos ou quem os acusar e dois anos de degredo para um dos lugares d’além e a mercadoria que descarregarem sem a dita licença será perdida para cativos e quem os acusar. S. C. M. de Velas, 10 de junho de 1570.37

Aos poucos, a inspeção dos navios deixaria de ocorrer apenas nos momentos de ameaça de contágio, passando a ser um procedimento da rotina portuária. É o que se observa nas posturas setecentistas de Angra.38 Apesar destes cuidados preventivos as ilhas não deixaram de ser visitadas pelas mais variadas pestes. Quando acontecia de

35

FUNCHAL. Atas da câmara. op. cit. p.221 e 402.

36

FUNCHAL. Atas da câmara. op. cit. p.296.

37

VELAS. Atas da Câmara. VEREAÇÕES DE VELAS; S. Jorge 1559-1570-1571. Angra do Heroísmo: Secretaria Regional de Educação e Cultura, 1984. p.243. * iscados = contaminados 38

ANGRA DO HEROÍSMO. Posturas Municipais de 1788. RIBEIRO, Luís da Silva. Posturas da Câmara Municipal de Angra em 1788. In: Obras. II - História. Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1983. p.420.

372

alguma vila ser flagelada, as velhas práticas medievais voltavam à baila. É o que se observa na vila de São Sebastião, em 1743.

Ordeno a Vossas Mercês, por serviço de Deus nosso Sr. e de el-Rei, que o mais pronto que lhes for possível, façam ir de faxina todos os carros desta jurisdição, com 4 pessoas dos que os não tiverem, com cada um aos matos a conduzir louros, rosmaninhos, murtas, e alecrins, e os façam queimar pelas ruas da vila, em que padecerem mais doenças, na maior quantidade que lhes for possível: e recomendem a todos que dentro de suas casas façam fumos das referidas ervas, o que continuará até cessarem as doenças, com a maior repetição que for possível, como também mandarão vir algum gado para as ruas, e afastarão os porcos para fora delas.39

Em pleno século XIX, ainda veremos a adoção das velhas medidas de saneamento quando ocorriam crises sanitárias. Ponta Delgada, em 1815, foi atingida simultaneamente pela febre e pela seca. Em decorrência, a câmara municipal, reunida com os dois médicos da cidade, resolveu prover sobre o abastecimento de água, sem deixar, contudo, de lembrar das velhas medidas saneadoras de limpeza das ruas.

Que enquanto à limpeza se passe efetivas ordens aos almotacéis para fazerem, e tirarem as estrumadas tanto existentes nas ruas desta cidade como nas casas para um quarto de légua para fora da cidade e que todo aquele que tirar musgo do mar o conduzirá para a mesma longitude sem se depositarem na cidade observando-se também que as estrumadas não fiquem próximas às povoações de fora da cidade tudo com pena de seis mil réis. S. C. M. de Ponta Delgada, 9 de agosto de 1815.40

Do arquipélago de Cabo Verde para baixo, a questão sanitária assumiria, porém, uma nova feição. Com o aumento das distâncias e do tempo das viagens, os navegantes viram somar-se o escorbuto a todas as pestes que traziam consigo. Os navios eram o reino do pútrido: águas podres, alimentos podres, gengivas podres, corpos podres. Lançar corpos ao mar era uma das mais constantes rotinas das viagens.41 Por

39

DRUMMOND, Francisco Ferreira. Annaes da Ilha Terceira. Angra do Heroísmo: Câmara Municipal, 1850. v.2. ano 1743. s.p. 40

PONTA DELGADA. Posturas Municipais 1801-1834. MARQUEZ, Jacome Corrêa (ed.). Posturas da Câmara de Ponta Delgada. (1801-1834). ARCHIVO DOS AÇORES. v.14. p.445-6. 41

Não apenas os naufrágios, mas as privações e a morte a bordo, estão na origem das histórias trágico-marítimas, que se tornariam um gênero autônomo de literatura muito apreciado no período. Ver

373

fim, chegava-se ao império dos trópicos, onde os viajantes acreditavam que as pestes européias não grassavam.

Primeiramente, é de notar como aqui é o princípio dos Etiópios e homens negros; e porque são duas Etiópias, bem é que se saiba como esta primeira se chama Inferior ou Etiópia Baixa Ocidental, na qual é certo e sabido que nunca nela em algum tempo morressem de pestelência; e não tão somente tem este privilégio que lhe a majestade da grande natureza deu, mas ainda temos , por experiência, que os navios em que para aquelas partes navegamos, tanto que naquele clima são, nenhuns homens dos que neles vão, desta enfermidade morrem, posto que desta cidade de Lisboa, sendo toda deste mal, partam e neste caminho alguns aconteçam de adoecer e outros morrer; como na Etiópia são, nenhum dano recebem.42

Se a experiência, “madre de todas as coisas”, ensinava que a pestelença talvez não resistisse aos climas tropicais, ensinava, também, sobre novos contágios. Do rio Senegal para baixo, os roteiros de viagem anotam repetitivamente o perigo das febres. Em um comentário sobre a feitoria de São Jorge da Mina, o cosmógrafo Duarte Pacheco Pereira menciona o quanto a África era letal para aqueles que vinham da Europa. Mas, lembra também, porque era preciso correr o risco. “Neste trato que aqui é dito se ganha cinco por um e mais. Mas esta terra é muito doentia de febres e razoadamente morrem aqui os homens brancos”.43 Contra tudo o que haviam afirmado os clássicos da antigüidade, a zona tórrida era habitável.44 Sim, a vida era possível entre os trópicos e ali foram sendo instaladas diversas feitorias e colônias. Mas para se viver nesta região havia um alto preço a pagar.

Os habitantes brancos da Povoação [São Tomé], ordinariamente em todo ano, todos os oito ou dez dias, sofrem uma espécie de sezão, isto é: primeiro o frio, depois a BRITO, Bernardo Gomes de. História trágico-marítima. Lisboa: Oficina da Congregação do Oratório: 1835-6. 3.v. 42

PEREIRA, Duarte Pacheco. Esmeraldo de situ orbis. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988. 3.ed. p.95-6. No texto, como era corrente na época, o termo Etiópia é empregado como sinônimo de África. 43

PEREIRA. Esmeraldo. p.43.

44

Ver VASCONCELOS, Luís Mendes de. Do sítio de Lisboa; diálogos. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. p.86.

374 febre, e em duas horas passa tudo, segundo a compleição que têm. Este acidente acontece àqueles que habitam ali de contínuo, os quais se sangram três ou quatro vezes ao ano; porém os estrangeiros que ali vêm com navios a primeira febre que os acomete é mortal, e costuma-lhes durar vinte dias. Sangram-se sem conta de onças, tirando da veia do braço quase um pichel, e quando estão sangrados, lhes fazem uma sopa de pão em água, sal e um pouco de azeite e se passam o sétimo dia, esperam ainda o catorzeno e depois o dão por salvo.45

Quem nos descreveu esses constantes acessos de malária, que periodicamente acometiam os colonos brancos, foi um piloto anônimo dos navios que iam buscar açúcar no arquipélago equatorial de São Tomé, durante a primeira metade do século XVI.46 Tal como ele nos apresenta, parece estar em curso um processo darwiniano de seleção. Só àqueles que sobrevivessem ao primeiro impacto microbiano seria dada a oportunidade de crescer (pois muitos dos colonos de São Tomé não passavam de crianças), multiplicar (pela cópula desenfreada com as escravas) e acumular as riquezas das conquistas. Vencida a etapa da seleção era preciso aprender a viver sob as novas condições impostas pelo clima equatorial.

Na cidade da Povoação têm um costume muito ordinário no tempo em que dura a atmosfera carregada e sem vento, o que é poucos dias, nos quais sentem um calor extraordinariamente grande e tão úmido que parece uma caldeira de água a ferver, e vem a ser: juntam-se quatro ou cinco famílias vizinhas e comem juntas em alguns quartos térreos e grandes, com as suas mulheres e filhos, e para estas casas leva cada um o que tem preparado na sua, e, posto tudo sobre uma mesa comprida, parece que cada um se serve de melhor vontade das iguarias de seus vizinhos do que das preparadas na própria casa, tanto se sentem fracos e desalentados; com várias conversações passam aqueles dias tormentosos, sem poderem fazer negócios fora de casa.47

Os doentes eram submetidos à sangria porque, sendo europeus, “suas compleições tendiam ordinariamente ao sangüíneo” e o excesso de circulação

45

ANÔNIMO. [século. XVI] Navegação de Lisboa à ilha de São Tomé. In: ALBUQUERQUE, Luís (ed.). A ilha de São Tomé nos séculos XV e XVI. Lisboa: Publicações Alfa, 1989. p.31-2. 46

A malária não era exatamente uma novidade para os portugueses. Ela grassava em toda a região mediterrânica e fazia sérios estragos nas cidades do sul de Portugal. As febres quase fizeram a cidade algarvia de Silves desaparecer. 47

ANÔNIMO. Navegação. p.31

375

provocado pelas febres poderia “afogar-lhes o coração”. Todavia, enganara-se o piloto anônimo: escapar à primeira febre não era garantia de longa vida. O capitão-donatário que deu impulso à colonização de São Tomé resistiu-lhe seis anos, mas, finalmente, chegou o seu dia.

Adoeceu Álvaro de Caminha, de febres, as quais teve 12 ou 15 dias, de que foi são. E andou assim uns dias, até que um dia, mandando por um navio em monte, com a fadiga que nisso levou e grandes calmas, tornou outra vez a cair de febres, que o não deixaram, até que, passados 10 ou 12 dias, lhe tiraram a alma.48

Junto com a do capitão, perderam-se as almas da maior parte de seus insólitos colonos, meninos e meninas judeus, devorados pelas febres, pela fome e pelos enormes “lagartos” que infestavam as ribeiras.49 Na vizinha Ilha do Príncipe, conforme se observa na carta escrita pelo preposto de outro donatário, as coisas não eram diferentes.

Eu Senhor fui muito doente, e não de muitos dias, deus seja louvado. Porém de corrimento me trata a ilha mal. Beijarei as mãos de vossa mercê mandar quem nela fique, porque estes dois anos basta para mim vos nela servir, porque é razão ir por ver minha casa e filhos e ofícios de que não recebo nenhum proveito ao presente. Não lhe dou Senhor mais conta de sua fazenda porque o deixo já para quando embora for. Senhor, o mestre dos ferreiros é falecido e o calafate acaba para este ano, ainda que fica com a candeia na mão. Tenha vossa lembrança de o prover para o ano. E também o barbeiro que eu fiz vir comigo também esta do bordo do calafate. Um Francisco Lopes vosso morador e outros dois e um criado meu que me veio de Portugal depois de vossas naves partidas faleceram, e crede que essa vossa terra não perdoa ninguém. Ilha do Príncipe, 24 de agosto de 1517. 50

48

AMBRÓSIO, Pe. António. A fundação da “Poçom” (S. Tomé): uma capital em África. In: ACTAS DO CONGRESSO INTERNACIONAL BARTOLOMEU DIAS E A SUA ÉPOCA. Porto: Universidade do Porto; Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1989. v.1. p.492. 49

Os crocodilos de São Tome são descritos da seguinte maneira no manuscrito de Valentin Fernandes (1506). “Lagartos havia muitos e agora poucos, de 12 côvados [9m] em longo. E comem homens e mulheres, vacas e bois e toda a animália. Estes lagartos não vêm fora d’água, senão que sempre lhes fica o rabo n’água doce e qualquer animália que toma e logo dá com ele n’água o mata e come e empina-se sobre o rabo como um homem em pé”. MMA. v.4, 1954, p.36. 50

SÁ-NOGUEIRA, Isabel Bettecourt & SÁ-NOGUEIRA, Bernardo. A ilha do Príncipe no primeiro quartel do século XVI; administração e comércio. In: ACTAS DO CONGRESSO

376

Os primeiros momentos da ocupação do arquipélago de São Tomé, são apenas um dos muitos capítulos trágicos da experiência portuguesa de colonização dos trópicos. Os colonos foram praticamente largados à própria sorte, a apodrecer em um mundo desconhecido para o qual estavam despreparados. As sementes trazidas de Portugal não germinavam, ou, quando o faziam, as plantas que nasciam eram de viçosas folhas mas sem frutos.51 Perdiam-se as colheitas por se desconhecer os solos tropicais ou o regime de chuvas. As febres faziam vítimas fáceis entre uma população depauperada pela fome. O socorro demorava a chegar de Lisboa e quando finalmente chegava, triste constatação: os suprimentos vinham todos podres, conduzidos por marinheiros doentes que em vez de ajuda, tornavam-se pesado encargo para os famintos colonos. A morte de Álvaro Caminha, o donatário de São Tomé, não é um caso isolado. Pertence a uma vastíssima galeria de ilustres figuras consumidas pelas pestes tropicais. Afonso de Albuquerque morto pela corrupção das águas de Goa, Paulo Dias de Novais, conquistador de Angola, consumido pelas febres em Massangano. Nas colônias tropicais, onde quer que se observe, a mortandade do homem branco se repete indefinidamente. Ao chegarem ao oriente, os portugueses depararam-se com diversas formas de disenterias, algumas mais brandas outras letais como o cólera. Durante o surto de 1570, foi utilizado um método que conhecemos bem, numa tentativa infrutífera de sanear a cidade: “para limpar os ares povoaram de Gado o lugar porém que de nada o aproveitou”.52 Os resultados foram nulos, assim como os remédios europeus demonstraram-se completamente ineficazes. De nada servia a medicina européia nas novas condições. A ineficácia dos medicamentos gerou tal clima de desconfiança que a INTERNACIONAL BARTOLOMEU DIAS E A SUA ÉPOCA. Porto: Universidade do Porto; Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1989. v.3. p.113. 51

MMA. v.4, 1954, p.38.

52

GOA. Pareceres que os médicos, cidadãos como peritos deram do estado em que se achava a cidade, e do exame e vistoria que procederam dos poços, canos, e mais lugares da mesma cidade, e seus subúrbios, em execução da carta de Sª Exª. In: ALBUQUERQUE, Viriato A. C. de (ed.). O senado de Goa; memória histórico-arqueológica. Nova Goa: Imprensa Nacional, 1909. p.355.

377

câmara de Goa criou, em 1618, uma legislação específica contra os boticários. Eles eram suspeitos de fraude e de venderem remédios velhos demais para surtirem efeito.

Haverá quarenta anos que as doenças tem entrado nesta cidade, as quais com não serem contagiosas, nem pestilenciais tem consumido muita parte da gente mesquinha, muitos soldados, muitos casados de toda a sorte, muitos Fidalgos, e Capelães ilustres, e geralmente a Cidade está notavelmente minguada da gente, e alguns bairros despovoados, o que pior é que a todos estes males não tem achado remédio nenhum bastante, posto que se praticou muitas vezes sobre ele, mas considerando-nos que provendo-se as boticas como cumpre, e fazendo os Boticários seu ofício com verdade, e limpeza não haverá tantas mortes o perda da gente. Ordenamos, e pomos por Postura que os oficiais da Câmara duas vezes no ano cada seis meses uma vez ou quando lhes parecer com o Físico-mór ou quaisquer outros que lhes melhor parecer serão obrigados a visitar todas as Boticas donde se vendem mezinhas ao Povo, e as que acharem podres, velhas, falsificadas, ou tais que não parecer ter virtude e eficiência para obrar, as queimem logo diante de si, e do Boticário, cujas são conforme ao Regimento do Físico-mór, a quem estas também pertencem por razão de sou cargo como El-Rei Nosso Senhor manda, e além disto o Boticário a quem as tais mezinhas podres, velhas, falsificadas, ou tais que não tiverem virtude para obrar forem achadas incorrerá na pena que pela cidade lhe for julgada.53

A ineficácia das práticas sanitárias européias talvez explique a adesão de alguns ocidentais a certos métodos largamente empregados pelos indianos. Cedo os portugueses passaram a “embostar” as suas casas. O viajante Pietro Della Valle, que passou pelas colônias portuguesas da Índia, no início da década de 1620, entusiasmouse com o processo a ponto de planejar experimentá-lo na Itália.

Considerava uma tal prática como um rito supersticioso de religião: mas, agora fico sabendo que é um uso de elegância e asseio, porque não havendo, nem se conhecendo aqui o nosso sistema de pavimentos fortes e duráveis, fazendo-os esta gente de terra leve, que facilmente se deterioram, cobrem-nos, para os ter planos, lisos e firmes, de uma camada de bosta aguada, se já a bosta não for líquida (sendo-o, não ha necessidade de água) com a mão ou qualquer outro instrumento, e assim o pavimento fica liso, brilhante, resistente e dum belo verde, visto serem herbívoras as vacas cuja bosta se aproveita. Isto tem vantagens; o polimento é feito logo, seca imediatamente e resiste ao piso, ou a qualquer outra cousa que sobre o pavimento se faça. As casas. onde nos alojamos, tinham sido recentemente embostadas e estavam suficientemente secas para as podermos ocupar. Achei isto uma cousa deveras curiosa, e pretendo experimentar na Itália, tanto mais que se diz que as casas com pavimentos embostados garantem contra a peste, o que não é para desprezar. Apenas há um senão: a beleza e o polimento não dura; mas tem de renovar-se a operação freqüentes vezes, e quem quiser ter suas casas limpas, terá de mandá-las embostar cada 8 ou 10 dias. Como isso é mui fácil e custa uma bagatela, fazem-no até as pessoas pobres. Os portugueses também costumam embostar suas casas em Goa e outras partes da Índia;

53

GOA. Posturas municipais. 3 de novembro de 1618. ALBUQUERQUE. O senado. p.424.

378 e, para concluir, é certo que este uso não é supersticioso mas tem origem na limpeza e asseio.54

Os religiosos não acreditavam que se tratava apenas de um uso de “elegância e asseio”. Consciente de que o embostamento das casas era também um rito hinduísta de purificação, a igreja via a prática com maus olhos. Havia a suspeita de que os indianos convertidos não separassem o uso laico do embostamento, que era tolerado, de sua faceta cerimonial e religiosa. No século XVIII, um edital da inquisição de Goa, contra a “herética pravidade e apostasia”, procurava demarcar esta diferença ao determinar “que morrendo alguma pessoa, se não bosteie o lugar, ou casa em que morrer, como condição para o dito lugar, e casa se poder assistir; e quando seja necessário alimpar o dito lugar, se fará por diverso modo, que não seja bosteando-o”.55 Em Macau, uma das principais endemias era a varíola, com a qual os portugueses se deparavam logo no desembarque.

Julho 30 [de 1718] - Neste dia desembarcou igualmente a gente da Nau do reino a qual vem comerciar, e nela mandou Sua Majestade pólvora, bala e 43 soldados portugueses que não tiveram a melhor fortuna porque com bolhas morreram alguns e outros afogueados na Fortaleza da Guia, e outros desertaram, de forma que em poucos dias não havia um só nesta cidade.56

A varíola foi, também, a principal peste do Brasil. O primeiro surto da doença começou na Bahia, em 1561, e dali se espalhou por toda a colônia. A bexiga, como ficou conhecida, foi trazida pelos colonizadores europeus e encontrou campo fértil entre uma população nativa desprovidas de defesas. Os escravos africanos eram outras vítimas preferenciais desta doença, o que levou a câmara de Salvador, já no

54

GRACIAS, J. A. Ismael. A Índia em 1623-24; excerptos das memórias do viajante italiano Pietro Della Valle. O ORIENTE PORTUGUEZ; Revista da Commissão Archeológica da Índia Portugueza. Nova-Goa: Imprensa Nacional. v.1, 1904. p.349-50. 55

GOA. Inquisição. Edital de 14 de abril de 1736. MENDES, A. Lopes. A Índia portuguesa. Lisboa: Fundação Oriente, 1992. p.257. (fac-símile da edição de Lisboa: Imprensa Nacional, 1886). 56

BRAGA, Jack M. (ed.). Collecção de vários factos acontecidos nesta mui nobre Cidade de Macao pelo decurso de annos. In: _____. A voz do passado; redescoberta de um velho manuscrito de Macau. Macau: Instituto Cultural de Macau, 1987. p.43.

379

século XVII, a criar um serviço de inspeção das embarcações do tráfico que se aproximassem do porto. Em 1626, um navio proveniente de Angola foi impedido de atracar e os seus tripulantes mantidos em quarentena na Ilha dos Frades. No mesmo ano, o Senado da câmara votara a primeira legislação sanitária adotada na cidade.57 Apesar dela, em 1663 e 1732, Salvador foi novamente atingida por letais epidemias de varíola. Além de se manifestar em surtos epidêmicos, a varíola tornou-se endêmica, matando um pouco por todo lado. Provavelmente foi a mais letal doença da colônia. Todavia, por se tratar de uma peste conhecida dos europeus, não foi a que mais chamou a atenção dos cronistas e autoridades coloniais. Em 1685, inicia-se em Pernambuco a desconhecida epidemia de bicha, a febre amarela. Para não fugir à tradição, a primeira medida lembrada pelo governador de Pernambuco foi ordenar a limpeza das ruas de Recife.58 Por uma década, a bicha assolou o litoral brasileiro até Paranaguá, espalhando pânico e morte entre os moradores. O historiador oitocentista Antônio Vieira dos Santos recolheu a seguinte passagem, no Livro de Memórias de Cananéia, para explicar o nome dado à peste.

No ano de 1686 sai a lembrança de uma peste ativa, e mortífera, que não dando tempo para experimentar remédios, repentinamente matava; sua causa eram dores do estômago, esta deu fim a famílias inteiras, nesta povoação - A esta peste deram o nome de peste da - Bicha - porque dada aos enfermos a bebida do cozimento da erva chamada Bicho - aconteceu a alguns em vômito, ou na evacuação lançarem um bicho cabeludo da grandeza, e semelhança da lagarta das hortas, os quais enfermos, nem ainda assim escapavam todos da morte.59

Salvador foi duramente atingida pelo flagelo. Sebastião da Rocha Pita, historiador e integrante da elite municipal da cidade, chamou-nos a atenção para o

57

SALVADOR. Atas da câmara. DOCUMENTOS HISTÓRICOS. Salvador, Prefeitura Municipal. v.1, p.19. 58

Ver ENNES, Ernesto. As guerras dos Palmares; subsídios para a sua história. São Paulo: Nacional, 1938. p.464-6. 59

VIEIRA DOS SANTOS, Antônio. Memória histórica, cronológica, topográfica e descritiva de Paranaguá e seu município. Curitiba: Mundial, 1922. p.56.

380

despreparo dos médicos da época em lidar com a nova doença.60 O Padre Vieira foi outro contemporâneo a relatar o flagelo.

[A Bahia,] de abril a esta parte padece de um novo gênero de peste, nunca visto nem entendido dos médicos, de que já morreram dois. [....] Morreram mais, das pessoas conhecidas nessa corte, o tenente-general e cinco ou seis desembargadores [....]. A maior perda foi a do nosso Arcebispo, com que ficam essas ovelhas sem pastor, como também estão sem o eleito as de Pernambuco, onde começou e fez o mesmo e maior dano o contágio.61

Por fim, morreria até o governador-geral do Brasil, Matias da Cunha. Nas palavras de Afonso Ruy, o historiador da câmara soteropolitana, conhecemos as medidas adotadas pela municipalidade com o intuito de debelar o mal.

Alimpara-se a cidade, removeram-se os esterquilínios, destruíram-se os monturos e para purificarem-se os ares, por ordem do governo, manadas de bois, trazidas dos pastos próximos, enchiam as ruas, aproveitando-se os seus excrementos em cremações constantes, como forma de saneamento.62

Ou seja, mesmo para as novas pestes, sempre as velhas medidas.

QUE NÃO LANCEM ÁGUA NEM LIXO

A Lisboa real foi constantemente assolada por surtos epidêmicos desde a grande pestelência de 1348. Goa, Salvador ou Ponta Delgada, cedo estavam às voltas com a queima de ervas aromáticas, a expulsão dos doentes e o enterramento apressado dos mortos. Concomitantemente com as medidas emergenciais adotadas para debelá-las,

60

Ver ARAÚJO, Emanuel. O teatro dos vícios; transgressão e transigência na sociedade urbana colonial. 2.ed. Brasília: Editora UNB, 1997. p.57. 61

VIEIRA, Pe. Antônio. Cartas. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1949. p.328. Carta ao Conde da Castanheira, de 1 de julho de 1686. 62

RUY, Afonso. História da Câmara Municipal da Cidade do Salvador. Salvador: Câmara Municipal, 1953. p.152.

381

as epidemias são momentos de acirrar a consciência do estado de insalubridade dos núcleos urbanos. Consciência que desemboca numa farta produção de degredos e posturas voltadas a extirpar os monturos de lixo, ao desentupimento de canos e à preservação das fontes de abastecimento de água. Essas posturas, em oposição às práticas emergenciais, tinham um caráter permanente, a despeito de serem ou não respeitadas. As posturas municipais, como discutido precedentemente, podem ser apontadas como textos formuladores de regras constitutivas de comportamentos urbanos tidos como aceitáveis. Nos textos normativos elaborados pelo poder municipal, percebemos que o sanitário é um dos componentes fundamentais na construção da urbanidade. A questão complica-se, se considerarmos que, ao mesmo tempo, o sanitário desempenha papel crucial na separação da vida em duas esferas: a pública e a privada. Como se articulam todas estas coisas? A literatura sobre o tema tornou corrente a idéia de que é próprio da sociedade burguesa uma tendência a privatizar os excrementos e outros dejetos. A meu ver, a questão é mais complexa que isto, pois a condição de morador da cidade impõe pressões em sentidos contrários. Há, na realidade, um duplo movimento. O primeiro deles é o de privatização, ou domesticação, de resíduos e excrementos. Tal movimento ocorre por mútua pressão entre vizinhos, que não querem ver a frente de suas casas, ou as suas roupas, conspurcadas pelo lixo ou pelos excrementos alheios. Mais tarde, os poderes municipais passam a mediar tais conflitos para, finalmente, elaborar posturas referentes aos problemas sanitários. Nesta seqüência, é determinante o reconhecimento da capacidade contaminadora da matéria orgânica em decomposição. Nada aqui é arbitrário ou vazio. Há, concretamente, o receio de ser contaminado pela podridão. Receio reavivado pelos diversos e variados surtos pestilenciais. O segundo movimento é o de tornar pública a matéria podre, o que deveria ser feito segundo normas expressas de urbanidade. Esse duplo movimento tende a consolidar a separação da vida em duas esferas. Uma ação doméstica perfeitamente ‘natural’, como varrer para fora de casa

382

algumas poucas sobras, que, no campo, seriam imediatamente consumidas pelos animais do terreiro, torna-se, na condição urbana, um ato de ruptura de uma fronteira que passa exatamente na soleira da porta.

170 - Item - Não lançarão escamas do pescado nem de sardinhas nas ruas nem terão cisco às portas sob pena de cinqüenta réis.63

Ultrapassado o limiar da porta ou da janela, entra-se num outro universo: o do público. A construção da urbanidade implica, portanto, num movimento inicial de privatização dos dejetos, sejam eles excrementos ou resíduos domésticos ou de atividades econômicas. A cidade não está aparelhada, física ou institucionalmente, para tratar dos excrementos e lixos, o que requer estabelecer o vínculo entre os dejetos e seus produtores. Relação definida por lei como privada, o que leva à punição de quem tentasse torná-la pública.

892 - Qualquer pessoa que fizer seus feitos na praça ou em ruas e quelhas públicas, se for homem ou mulher pagarão trinta réis e se for moço ou moça pagarão dez réis. E porém isto se não entenderá em meninos de quatro anos para baixo.64

O “feito” pertence a alguém, que por ele é responsável. Não devemos, portanto, estranhar que na língua portuguesa a noção abstrata de privado tenha se tornado concreta nos objetos e locais onde se depositam as fezes. Para um português medieval, o privado nada mais é do que o penico e a privada, ou secreta, o local onde se defeca.65

63

COIMBRA. op. cit. v.2, p.174.

64

COIMBRA. op. cit. v.5, p.61.

65

Desde o século XIV, alguns concelhos construíam sanitários públicos. Em Lisboa, as posturas medievais faziam referência a um rego das privadas. O concelho de Braga, em 1581, encarregou o procurador de fazer privadas na “torre do meio que vai para São Sebastião”. No Funchal, existem referências a uma “ponte das privadas”, provavelmente sobre a atual Ribeira de Santa Luzia. Ver LPA. p.6.; BRAGA. Atas da Câmara. op. cit., v.24, n.69-70, jan.-dez.1970. p.400.; ARAGÃO, António (ed.). A Madeira vista por estrangeiros; 1457-1700. Funchal: Secretaria Regional de Educação e Cultura, 1981. p.216. O período coincide, também, com o aparecimento de privadas nas casas da alta nobreza. Ver MARQUES, H. O. de Oliveira. A sociedade medieval portuguesa. Lisboa: Sá da Costa, 1981. 4.ed. p.91.

383

Todavia, o reconhecimento de que, no limite, a solução privada é impossível, leva a que o lixo e os excrementos ganhem uma dimensão social e sejam encarados como um ônus do viver urbano. Configurando o segundo momento do movimento dos dejetos, eles necessariamente voltam ao público. Todavia, para voltarem, devem obedecer a determinadas regras que desonerem a cidade ou que minimizem ou camuflem a sua existência.

165 - Item - Defendemos* que nenhuma pessoa lave privados senão do padrão que está defronte da casa onde se mata a carne para baixo e qualquer pessoa que do dito padrão para cima lavar privado pagará oitocentos réis da cadeia, metade para a cidade e a outra para quem os acusar. E levarão os ditos privados cobertos sob pena de cinqüenta réis. Coimbra, século XV.66

Como se percebe pelo exemplo, a passagem dos excrementos pelo espaço público deveria respeitar um código de etiqueta excrementícia. “Que não lancem água nem lixo de janela que seja em cima de casa em rua pública sem primeiramente dizendo água vai”, exigiam as posturas de Évora, no século XIV.67 Começa-se, assim, a apertar a trama que, ao mesmo tempo, estabelece uma etiqueta urbana e a separação entre público e privado. A seqüência é o detalhamento destas normas. Em algumas cidade maiores, como Lisboa, Coimbra, Porto ou Évora, os códigos tornaram-se minuciosos. Em outras, permanecem restritos a esta que era a mais difundida das regras de etiqueta excrementícia: a obrigação de gritar “água vai”, sempre que algum líquido fosse atirado da casa para o espaço público.

816 - Quem lançar água nas ruas sem dizer água vai três vezes se for de noite pagará cinqüenta réis e de dia dez reis. E se tal água que deitar de dia for fedorenta pagará os ditos cinqüenta réis. E os que em tais penas incorrerem serão os senhores da tal casa sempre citados em pessoa e demandados. E se se a dita água lançar de noite o jurado

66

COIMBRA, op. cit. v.2. * defendemos = proibimos

67

ÉVORA, Posturas municipais. In: PEREIRA. Documentos históricos . p.134.

384 que a tal água encoimar será obrigado a catar* a porta ou janela donde vir que se lançou a tal água. Coimbra, século XVI.68

Uma particularidade da legislação municipal de Coimbra, era a distinção entre estercos e cisco - dejetos em geral, orgânicos e inorgânicos - e aqueles contidos nos “privados”, os recipientes para os excrementos humanos. Em relação às águas, a legislação municipal coimbrã procurou estabelecer uma diferenciação. O lançamento das águas servidas à rua, como em todas as outras cidades, deveria ser precedido do grito de “água vai”, enquanto o lançamento de urina estava proibido por dispositivo específico. “Não lançarão urina nem água fedorenta nas ruas sob pena de cem réis”, previam as mesmas posturas.69 Em outras localidades, a legislação era bem mais tolerante. Em Braga, já no século XVIII, a proibição do lançamento de “águas imundas ou fétidas” vigorava apenas até às 11 horas da noite.70 É certo que a desobediência aos códigos municipais é generalizada, contudo, percebe-se que, lentamente, eles produzem algum efeito, até atingirem o seu ponto de maior eficácia, quando passam a ser obedecido não apenas por serem leis, mas por se transformarem em prática social corrente, o costume. No caso dos excrementos, o controle internalizado assume outras formas, como “pudor” ou “educação”. É o que se observa no relato de um viajante britânico, que, no final do século XVII, passou pela Madeira. Estabelecendo uma oposição ao que ocorria em sua terra de origem, John Ovington louvou os bons hábitos higiênicos que vigoravam nas reuniões sociais promovidas pela elite madeirense.

68

COIMBRA. op. cit. v.4, p.178. No século XIV, norma semelhante já vigorava em Évora. Ver ÉVORA. Posturas Municipais. op. cit. p.134. * catar = apontar, indicar. 69

COIMBRA. op. cit. p.174.

70

BRAGA. Atas da Câmara. op. cit., v.21. p.406-7.

385 Quando a reunião se interrompe, são utilizados como mictórios certas partes nos átrios e entradas das casas e, muito especialmente, um recanto privada atrás da porta, isto porque urinar na rua é considerado indecente.71

Neste caso específico, deixava-se de urinar na rua, não porque fosse ilegal, mas porque era indecente. Etiqueta resultante da vida cortesão ou da vida na cidade? As formas de lidar com o lixo urbano e com os excrementos, prescritas tanto pelas câmaras quanto pela coroa e seus emissários, derivavam diretamente do conceito de contaminação do ar que estabelecia uma correlação direta entre saúde e odores. Tudo que exalasse cheiros considerados desagradáveis era apontado como foco potencial de doenças, além de provocar objeções estéticas, como já vimos no regimento dado por D. João I a Évora. É das “coisas podres e nojosas” que se originam os “muitos danos e dores” que atingem os corpos.72 Em decorrência, as estratégias de detecção e combate às doenças eram eminentemente olfativas. Era pelo odor que se identificavam os focos de doenças provocadas pela corrupção do ar. Portanto, as medidas propostas pela legislação sanitária tinham por objetivo impedir todas as práticas que pudessem gerar focos de mau cheiro, tarefa extremamente ingrata, pois passava pela alteração de costumes arraigados. A primeira preocupação das câmaras era acabar com os monturos que se acumulavam pelas cidades. Nas localidades menores, eram criadas posturas proibindo que lixo e excrementos fossem lançados pelas ruas, às vezes acompanhadas da indicação de um local apropriado para fazê-lo, por vezes um córrego transformado em esgoto a céu aberto. As inquirições de Guimarães, em 1258, já se referiam a um “riuulum merdarium”.73 Nas cidades maiores, o quadro proposto pela legislação

71

OVINGTON, John. Uma viagem a Suratt no ano de 1689. Citado de ARAGÃO. A Madeira. p.200. 72

ÉVORA. Regimento. op. cit. p.188.

73

FERREIRA, Maria de Conceição F. Elementos para um estudo sociotopográfico na Baixa Idade Média; um espaço residencial de elite. CADERNOS DO NOROESTE. Braga, v.2, n.2-3, 1986. p.179-216. p.214.

386

municipal era semelhante, mas havia uma tendência em detalhar essas mesmas situações, através da produção de um amplo conjunto de dispositivos, determinando onde, como e quando jogar os diversos tipos de sujidades urbanas. Parece que os locais escolhidos pela população para fazer esterqueiras eram as imediações das portas da cidade. Pelo que se conhece do estudo de diversas localidades, a própria legislação municipal costumava indicar estes locais para a deposição dos lixos urbanos. O crescimento das cidades, com o conseqüente aumento do lixo, ou o sempre presente medo da peste, levaria muitas câmaras a tentar alterar tal costume. Na Lisboa do século XV, esta questão foi amplamente detalhada pelo poder municipal. Reiteradamente, as posturas proibiam que se lançasse “nem esterco nem azevel* nem outras lixarias quaisquer que sejam”, diante das portas da Oura, da Alcáçova, da Cruz, de Alfama e da Erva.74 As proibições se estendiam às barrocas de São Francisco, às traseiras da nave principal da igreja do Carmo, ao rossio e suas abertas e ao caminho que ia de São Mateus para São Domingos, onde, parece, havia o costume de abandonar animais mortos. A legislação municipal lisboeta também tinha a preocupação de evitar que se formassem esterqueiras junto à muralha velha, nem à nova, bem como junto às barbacãs ou no fosso dos muros.75 Em contrapartida, estavam destinados para o lançamento do lixo, os fornos velhos da cal e alguns segmentos da ribeira do Tejo, especialmente demarcados para isso, com a condição de serem jogados na vazante, para que os dejetos fossem levados pela maré “que naquele dia ou noite vier”. Quem contrariasse tais preceitos estava sujeito a multas diversas.76

74

LPA. * Azevel = coisa suja em árabe e hebraico

75

Nos séculos seguintes a proibição se estenderia ao Tabuleiro da Sé e aos Arcos do Rocio. DOCUMENTOS PARA A HISTÓRIA DA ARTE EM PORTUGAL. n.2. Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Lisboa; Posturas diversas dos séculos XIV a XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1969. p. 71- 72, 77. No entanto as posturas de Évora, do século XIV, ordenavam que o lixo fosse amontoado junto aos muros. Ver ÉVORA. Posturas. op. cit. p.133. 76

LPA. p.5-6, 9, 11-2, 17 ,24, 28, 55, 59, 87 e 119. Outra ‘matéria perecível’ muito especial deixas nas praias do Tejo eram os corpos dos escravos mortos. Eles eram apenas cobertos de areia e acabavam sendo devorados por cães e porcos. As preocupações sanitárias de D. Manuel, levaram-no, em

387

Não é preciso recorrer a uma cosmogonia do ocidente, como fez o historiador francês Alain Corbain, para justificar a secular repugnância dos moradores das cidades pelo estirâncio, a faixa beira mar, ora coberta, ora descoberta, pelas marés.77 Talvez a percepção desta faixa como local de deposição dos “excrementos do mar” se deva a um simples processo de antropomorfização da natureza. Como num espelho, o mar imita o homem no gesto diário de lançar os rejeitos pútridos no limite onde se encontram terra e água. Ambos são cúmplices em transformar o estrão em cloaca urbana. A repugnância ao estirâncio se repete em relação à faixa marinha ou fluvial próxima à terra. Algumas leis municipais proibiam que se pescasse ou recolhesse água nestes locais. Em Setúbal, por exemplo, uma posturas proibia a pesca de camarão nas marinhas da vila.78 A reiteração das posturas que regulamentavam os locais de lançamento de dejetos e as freqüentes referências documentais a monturos que se disseminavam por toda a cidade, exalando ares pestilenciais, autorizam supor um generalizado desrespeito aos regulamentos concelhios. Ocorre que as instituições municipais ainda não haviam assumido o papel de prestadoras de serviços públicos e a limpeza da cidade e o transporte de dejetos até os locais demarcados para o seu lançamento eram tarefa privada dos moradores da cidade.79 Por sua vez, os mesmos moradores consideravam tal tarefa como um ônus, do qual muitos procuravam escapar. As raras tentativas de criação de serviços municipais de coleta de lixo não tiveram continuidade. Em contrapartida, nas cidades maiores, o transporte de dejetos

1515, a ordenar que se fizesse “um poço o mais fundo que pudesse ser, no lugar que fosse mais conveniente, no qual se lançassem os ditos escravos”. Em Lisboa ainda existe a rua do Poço dos Negros. Ver PIMENTEL, Maria do Rosário. O escravo negro na sociedade portuguesa até meados do século XVI. In: ACTAS DO CONGRESSO INTERNACIONAL BARTOLOMEU DIAS E A SUA ÉPOCA. Porto: Universidade do Porto; Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1989. v.4. p.175. 77

CORBIN, Alain. O território do vazio. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. p.23-4 e em diversas outras passagens do livro. 78

SETÚBAL. Posturas municipais. op. cit. p.75.

79

Como já havíamos adiantado, as tentativas de criar serviços de limpeza urbana não foram

adiante.

388

inscreveu-se no multifacetado mercado de pequenos serviços urbanos.80 Junto com carregadores de lenha ou de água, vamos encontrar escravos de ganho que passavam pelas casas a recolher o lixo. Na Lisboa seiscentista, Brandão de Buarcos, sempre exagerado em seus números, fala em “mil negras que andam pela cidade com canastra alimpando a cidade”.81 O mesmo autor procura nos mostra que Lisboa era rica até em seu lixo, o que teria gerado uma outra ‘profissão’, a de garimpador dos restos urbanos.

Andam nesta cidade 20 homens ao longo do mar, com gamelas, a lavar o lixo e esterco que lançam fora das casas. Aonde acham muitas coisas, tais como colheres de prata, cadeias de ouro e anéis, pontas de ouro, vinténs, tostões e às vezes bons portugueses*. De maneira que estes vinte homens não vivem de outra coisa.82

Nas demais cidades portuguesas, a legislação municipal nos mostra um quadro sanitário idêntico ao de Lisboa, assim como uma semelhança na forma de agir do poder concelhio. A legislação coimbrã também era farta em posturas que procuravam delimitar os locais onde os moradores da cidade deveriam lançar os seus dejetos.

166 - Item - Defendemos que nenhuma pessoa faça esterqueiras nem lance cisco dentro na cidade nem à Porta de Belcouce, nem à porta nova, nem ao cais e podê-loão lançar ao longo do rio do padrão que está defronte das casas de Manuel Dias para baixo contra o rio e não o lançarão nas bocas das ruas, nem na rua que vai da porta do castelo para S. Martinho e poderão lançar o dito cisco em uma barroca que está no fundo da Couraça, de maneira que não fique nenhum na calçada, nem no peitoril sob pena de, quem o contrário fizer, e for achado ou se lhe provar, pagar por cada vez cem réis.83

Tudo muito semelhante entre a Coimbra quinhentista e a Lisboa quatrocentista, da proibição de se lançar lixo junto às portas da cidade à demarcação de

80

TAVARES. A política. p.31.

81

BRANDÃO [de BUARCOS], João. Grandeza e abastança de Lisboa em 1552. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. p.705. 82

BRANDÃO. Grandeza. p.107. * Portugueses = moedas da época.

83

COIMBRA. op. cit. v.2, p.174.

389

um segmento do rio para utilizar como escoadouro das imundícies. É provável que, já no séculos anteriores, as portas da cidade e as barrocas da couraça servissem de esterqueiras, pois, muitas das posturas municipais coimbrãs são simples confirmações de outras que vigiam há longa data. Saltando ao longo dos séculos, e por diversas regiões de Portugal, o panorama se repete indefinidamente. Na Setúbal dos século XVI a XVIII, acumulam-se as proibições de lançar “esterco nem imundície nas ruas”. Também estavam vedadas para fazer esterqueiras, o rocio e as portas, postigos, abertas e valas da banda da terra, o que nos leva a deduzir que o destino das sujidades urbanas eram as águas do Sado.84 No Porto, eram proibidos os monturos dentro da cidade e junto aos muros, pelo lado de fora. Os estercos deviam ser lançados “nos lugares deputados que para isso havia”.85 Nas localidades não tão caracteristicamente ribeirinhas, a preocupação maior era evitar a contaminação do entorno urbano. Em Viseu, as posturas do século XVI, proibiam que se lançasse esterco ou cisco nos rocios da cidade, e indicavam os locais apropriados para fazê-lo.86 Na cidade alentejana de Beja, além de tentar impedir o lançamento de lixo no espaço urbano e nos arrabaldes, a legislação ocupava-se das terras usadas para a debulha de cereais.

Acordaram por postura que nenhuma pessoa lance nem mande lançar esterco ou outras imundícies nem animais mortos ou aves mortas nas ruas ou travessas da cidade de Muros Velhos adentro, nem nas ruas do arrabalde sob pena de quem compreendido for pagar por cada vez quinhentos réis. E nenhuma pessoa poderá fazer esterqueiras senão fora dos Muros Velhos da Cidade e arrabaldes dela, sob pena de dois mil réis, nem outrossim farão as ditas esterqueiras nos lugares destinados para as eiras onde se debulha o pão.87

84

SETÚBAL. Posturas municipais. op. cit. p.69, 72, 77, 84 e 102.

85

SILVA. O Porto. p.799-800.

86

ARAGÃO, Maximiano. Viseu: instituições sociais. Viseu: s.ed, s.d. p.209-10.

87

BEJA, Posturas de 1738, op. cit. p.233-4. e BEJA. Despachos e acórdãos. VIANA, Abel (ed.). Despachos e acórdãos da Câmara Municipal de Beja; livro I, anos de 1604 a 1735. Arquivos de Beja, v.13, 1956. p.176.

390

Um detalhe a considerar é que em quase todas as cidades mencionadas a proibição de esterqueiras não se estendia àquelas que tinham por finalidade a adubação da terra, ainda que dentro das muralhas. As posturas quatrocentistas de Évora ao mesmo tempo em que proibiam que se “façam esterqueira no corpo da vila”, liberavam as que estavam em “forrajais e hortas que são no corpo da vila porque são proveitosas em elas”.88 As particularidades do direito corporativo medieval faziam com que algumas áreas das cidades estivessem fora do alcance das medidas adotadas pelas câmaras em relação ao lixo urbano. A cidade, considerada uma corporação entre outras, esbarrava nos limites de outras corporações, como as mourarias e as judiarias, que ficavam fora de sua área de atuação Além enclaves espaciais, mourarias e judiarias eram guetos jurisdicionais. Assim, a questão da limpeza urbana geravam freqüentes conflitos de jurisdição entre as câmara e as comunas das minorias, que eram bastante ciosas de seus direitos. Em 1436, um representante dos mouros forros de Elvas compareceu à uma reunião da câmara para protestar contra as multas que lhes estavam sendo aplicadas por infração das posturas de limpeza.

Por si e em nome da comuna disse que os mouros dela eram muito agravados dos rendeiros da almotaçaria, por os acoimarem dentro de suas mouraria por alguma coisa que eles faziam entre si, assim como algumas varreduras de suas casas, e por muitas outra coisas que aos rendeiros não pertenciam de acoimar, porque tais coisas não diziam respeito senão a eles mouros da comuna.89

A câmara concordou com o pleito, “julgando bom e justo o que pediam”, e ordenou que os rendeiros “não encoimassem nenhum mouro ou moura das portas adentro da mouraria”. Precavendo-se contra futuras revisões dos seus direitos, os muçulmanos enviaram petição ao rei D. Duarte, que confirmou o privilégio.

88

ÉVORA. Posturas municipais. op. cit. p. 130-1.

89

GAMA BARROS, Henrique. Judeus e mouros em Portugal em tempos passados; apontamentos histórico-etnográficos. REVISTA LUSITANA. Lisboa, v.35, n.1-4, 1937. p192.

391

Algumas judiarias também estavam isentas da disposições camarárias respeitantes à limpeza, regendo-se por normas próprias. Em 1489, os judeus de Serpa pediram a D. João II os mesmos privilégios dos de Beja. Segundo esses privilégios, eles “podiam despejar suas águas ante as portas, assim de mãos como de pescados, não as lançando pelas cabeças de quem fosse passando pelas ruas, outrossim podiam matar e degolar reses dentro da judiaria”.90 Mas nem todas as judiarias estavam fora da alçada dos oficiais camarários. Na maior delas, a Judiaria Grande de Lisboa, os almotacés da cidade mandaram lançar pregão sobre a limpeza das ruas, sem que se conheça alguma contestação.

Aos 29 de fevereiro de 1464 anos sob a capela de santo Antônio em audiência Gomes Eanes de Óbidos e Torpe de Bivaldo almotacés mandaram a João Lopes rendeiro d’almotaçaria mandaram que logo mandasse apregoar em toda a judiaria grande que não seja nenhum judeu de nenhum estado e condição que seja que nas ruas nem becos nem nas quintas em que morem moradores que em as ditas ruas nem becos nem nas quintas lancem nenhum esterco nem sujidade nem outra água suja nenhuma sob pena de pagarem cinqüenta reais brancos para o rendeiro d’água vai. E isso mesmo que os que moram em gibaltar da judiaria assim na gibitaria como na ferraria como nas casas da dona e em outras semelhantes casas e pelas portas deitarem na rua sujidade alguma que paguem cada morador quatorze reais e meio brancos ou digam quem o fez. E se deitarem nas quintas ou dentro nos corredores das casas que paguem os sobreditos cinqüenta reais brancos.91

Em Coimbra, outra corporação que estava fora da alçada camarária era a Universidade, que contava com almotacés privativos. A principal função destes oficiais era garantir o abastecimento da Universidade. Todavia, eles se arvoravam a exercer todos as competências dos almotacés urbanos, procurando isentar os integrantes dos diversos colégios universitários da observância das posturas conimbricences, inclusive em relação à limpeza, o que gerava freqüentes disputas de jurisdição. Uma provisão régia, de 1 de outubro de 1546, pôs fim a tais conflitos, dando ganho de causa à câmara.

90

GAMA BARROS. Judeus. v.34, n.1-4, 1936. p.239.

91

LPA. p.32-3. * gibitar, gibitaria: adelo roupavelheiro, mas não parece ser remendão.

392 Eu El-Rei faço saber a vós juiz, veredores, procurador e oficiais da cidade de Coimbra, que ora sois e ao diante fordes, e a quaisquer outras justiças, oficiais e pessoas a quem o conhecimento disto pertencer, que por alguns justos respeitos que me a isto movem, hei por bem e me praz que os almotacés dessa cidade que ora são e adiante forem tenham jurisdição sobre os lentes, oficiais e estudantes e pessoas da Universidade da dita cidade em tudo que tocar à limpeza dela assim como a tem sobre as outras pessoas da cidade que são da sua jurisdição e isso sem embargo de quaisquer privilégios e provisões que a dita Universidade em contrário tenha, porque neste caso quero que não se cumpram, nem tenham vigor algum.92

Com esta decisão, e com a expulsão dos mouros e judeus, em 1496, pode-se perceber que, entre o fim do século XV e a metade do XVI, as cidades portuguesas foram unificadas no que diz respeito às normas de limpeza. Nas cidades coloniais este tipo de questão não parece ter ocorrido. Na área atlântica, não existiram comunidades com estatutos especiais deste tipo. No Império do Oriente, onde algumas comunidades islâmicas e hinduístas viviam sob jurisdição específica, também não há notícias de que isto tivesse ocorrido. A exemplo das cidades do reino Se acompanharmos a expansão colonial portuguesa, vamos encontrar um panorama praticamente idêntico em relação ao tema da limpeza urbana. Para não dizer que não havia diferenças, elas existiam, mas dessas que nada alteravam. O destino do lixo não era mais as margens do Tejo, Mondego, Lima ou Douro, mas as do Mandovi, do Amazonas, do Capiberibe ou Beberibe, as baías de Todos os Santos ou da Guanabara, ou as ribeiras e praias das Ilhas Atlânticas. Na Madeira, por onde se iniciou a expansão atlântica, muito cedo vamos encontrar os moradores do Funchal envolvidos com a questão dos lixos urbanos. Em 2 de setembro de 1472, os oficiais da câmara da então vila de Santa Maria do Calhau foram chamados a resolver um conflito entre o ourives Lopo Vaz e seu vizinho, o escrivão Diogo Gonçalves. O ourives acusava o escrivão de lançar água suja “por uma sua janela a qual ia ter ante a sua porta e lhe fazia grande nojo”. Para evitar “brigas e arruídos”, a câmara reuniu as partes envolvidas e ordenou ao escrivão que “não lançasse

92

CARVALHO. Livro 2º da correia. p.99.

393

nenhuma água suja nem fedorenta nem limpa tanta que fizesse nojo ao dito Lopo Vaz”, no que ele concordou afirmando que “tudo lhe aprazia”. Por fim, os oficiais mandaram passar transcrição da sentença a ambas as partes.93 Esses pequenos atritos vicinais provocados pelo lançamento de águas servidas não foram incomuns na Madeira, ou em outras cidades de origem portuguesa. Tais conflitos demonstram, com perfeição, como as questões sanitárias agem na conformação das esferas pública e privada. A rua, onde Diogo Gonçalves jogava as suas águas servidas, não era extensão de sua casa, mas um espaço de uso comum, o que gerava reações indignadas entre os vizinhos. Mesmo naquelas localidades em que, como no Calhau, não existia legislação específica proibindo o lançamento de água nas vias públicas, a câmara era chamada a assumir um papel de mediação, caracterizando a questão como de ordem pública. A própria pressão vicinal fazia com que o destino dos dejetos domésticos se tornasse questão de direito positivo, ainda que em nível local.94 É o que ocorreria no Funchal. Duas décadas depois, a câmara abandonaria o costume de mediar, caso a caso, os conflitos entre vizinhos e criaria um dispositivo regulamentando o destino das águas servidas. Muito provavelmente é essa a primeira postura de uma vila colonial portuguesa a tratar do tema.

Se acordou que não seja nenhum e tão ousado de qualquer condição que seja que lance em a rua água suja em que antes estava ou tripas de pescado nem de carne salgada nem nenhuma sujidade que vierem de casas nem de testos* nas azinhagas (...) que estejam ao longo da ribeira ou rua e que todos levem ao mar sob pena de qualquer que o contrário fizer pague de coima 14 reais e meio. S. C. M. do Funchal, 20 de janeiro de 1492.95

93

FUNCHAL. Atas da câmara. op. cit. p.43.

94

Em Lisboa, houve um caso semelhante. Os moradores da Rua Direita, em 1458, foram citados pelo lançamento de águas sujas. Eles próprio solicitaram aos almotacés que fosse criada uma postura proibindo o lançamento de águas naquela rua e prevendo multa aos infratores. Ver LPA. p.26. 95

FUNCHAL. Atas da câmara. op. cit. p.431-2. * testo = testeira, testada.

394

Tanto nos Açores, quanto na Madeira, a situação sanitária urbana parece ser menos crítica do que na península. A disposição das cidades ao longo de costas cortadas por sucessivas ribeiras facilitava o escoamento de dejetos e águas servidas.96 Também pode-se atribuir esse quadro mais favorável ao fato de que, nas ilhas, não chegou a ser tão intenso o processo de adensamento e verticalização. No início do século XVIII, o padre Cordeiro, em sua História Insulana, faz uma comparação entre Angra e o continente, atribuindo uma suposta limpeza da capital terceirense à existência de amplos quintais, ou seja, à baixa densidade de ocupação.

[Em Angra] sempre as ruas estão muito limpas até de noite, sem necessitarem de outros alimpadores, porque das janelas não se lança na rua cousa alguma, e assim nunca se ouve Água vai, porque não há casa, não tenha seu quintal e algumas muito grande e muitas tem da fonte água dentro, e nunca nas ruas se vê despejo humano algum, o que tanto se estranha em outras terras.97

O comentário desse historiador deve ser lido tendo em conta que a limpeza das cidades era tomada como índice de urbanidade. Apesar das suas afirmações, as posturas de Angra reiteravam a obrigação de gritar “água vai”, apenando os infratores em um tostão em 1655 e em duzentos réis em 1788, quando a câmara determinou que após o aviso o morador deveria demorar-se “algum espaço em a lançar”. As posturas de 1655 proibiam que se lançassem sujidades em qualquer rua, travessa ou praça da cidade, nem por cima dos peitoris do Colégio Velho, do porto e das prainhas. A legislação municipal angrense também procurava impedir que os moradores jogassem detritos na alcaiçaria e na “ribeira” da cidade. No século XVII, a câmara não indicava quais os locais permitidos para as esterqueiras e o lançamento de animais mortos, mas, muito provavelmente, o lixo deveria ser encaminhado para os mesmos locais prescritos no

96

À respeito do Funchal ver VIEIRA, Alberto & alii. O município do Funchal. (1550-1650) In: ACTAS DO I COLÓQUIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA MADEIRA; 1986. Funchal: Governo Regional da Madeira, 1989. v.1. p.1027-8. 97

CORDEIRO, António. História Insulana. Lisboa Ocidental, 1717. p.274.

395

século XVIII: “qualquer sítio público fora da cidade, onde não embaracem as servidões”, ou a “Grota do Vale”.98 As posturas setecentistas de Angra também se referem a uma outra categoria de dejetos, a dos “entulhos”, que provavelmente compreendia os lixos não perecíveis, cujo lançamento era proibido “no campo detrás da cadeia, nem na ribeira, [....] como também na rocha da prainha”. Os local destinado pela câmara aos entulhos eram “acima do Carreiro, à forca, e rocha da Silveira”.99 Ainda no universo das ilhas atlânticas, podemos acompanhar, mais ao sul, na Ilha do Príncipe, a câmara municipal a lançar pregão, em 1718, para que “se não lançasse lixo do corpo da guarda para a ponte, até onde esteve uma cruz”.100 A existência de quintais, como anotou o padre Cordeiro, não era garantia de salubridade. Vilhena, comentado o deplorável estado de limpeza de Salvador, no século XVIII, refere-se à corrupção da atmosfera em decorrência, justamente, “das muitas imundícies que por dentro da cidade se lançam por diversas passagens, além das que, há em quase todos os quintais, e que percutindo o sol faz subir aquelas partículas pútridas de que impregnam a atmosfera contaminando o ar”.101 Em Salvador, o problema das esterqueiras em terrenos particulares parecia existir há longa data. Em reunião do Senado, em 1626, decidiram os oficiais “que toda a pessoa, que tivesse Casas nesta Cidade donde fizessem esterqueiras as mandassem alimpar, com pena de seis mil réis”. Inicialmente, a câmara autorizava que as esterqueiras fossem feitas junto às portas da cidade o que, mais tarde, seria proibido por um dispositivo que mandava lançar os dejetos nas hortas da Fonte Nova ou conduzi-los em canastras até a praia na altura da “fonte que chamam dos Padres e da praia de Nossa

98

ANGRA DO HEROÍSMO. Posturas Municipais de 1655. op. cit. p.128-35

99

ANGRA DO HEROÍSMO. Posturas Municipais de 1788. op. cit. p.426-31.

100

PRÍNCIPE. Atas da Câmara. ACTAS DA CÂMARA DE SANTO ANTÓNIO DA ILHA DO PRÍNCIPE. 1672-1777. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1970. p.210. 101

VILHENA, Luiz dos Santos. Recompilação de notícias soteropolitanas e brasílicas. Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1921. Citado de RUY. História da Câmara. p.149.

396

Senhora da Conceição até a Preguiça”. Outra postura setecentista, proibia que se botasse “lixo nem imundícies no adro da Sé nem junto aos estudos, nem em outra rua ou travessa, antes mandem botar no brejo que está atrás da rua Direita, sob pena de mil réis”.102 Na capital baiana, assim como em Lisboa, o transporte dos excrementos era feito ou por escravos domésticos ou por negros de ganho. Carregando as mencionadas canastras, eles passavam de porta em porta oferecendo seus serviços. A legislação dirigia-se aos escravos, punindo os seus proprietário em caso de desobediência às posturas.

Toda a pessoa que mandar botar lixo nas ruas desta cidade, assim no adro da sé, e terreiro, e só o botarão na banda do dique e logo o negro que acharem botando lixo noutra parte, pagará seu senhor quinhentos réis pela primeira vez, e pela segunda mil réis. S. C. M. de Salvador 18 de janeiro de 1631.103

Nas antípodas de Salvador, mudam algumas personagens, decerto, mas para os conhecidos problemas, as mesmas soluções. Em 1783, a câmara de Macau, a cidade do Nome de Deus da China, tenta resolver o problema do lixo urbano criando o ofício de Vigia das Ruas e Praias. Através da regulamentação deste novo emprego municipal é-nos possível saber o destino que deveria ser dado aos dejetos da cidade. A legislação macaense era relativamente permissiva, pois tolerava as esterqueiras nos baldios em geral, sem determinar locais mais precisos. Como alternativa, apontava o lugar de sempre: o mar.

Instruções e obrigações que devem observar as duas pessoas que agora se nomeiam para vigiar o que abaixo se declara. [....] 5o - Terão mais a obrigação de saber quem são os chinas, ou cristãos, que deitam o sujo de suas casas, ou boticas, nas ruas públicas desta mesma cidade deixando de o fazer nas praias, ou baldios desta mesma cidade.104

102

SALVADOR. Atas da câmara. op. cit. v.1, p.19 e 33, v.2, p.68 e v.5, p.180.

103

SALVADOR. Atas da câmara. op. cit. v.1, p.176.

397

A existência de fiscais encarregados da limpeza pública não é propriamente uma novidade. Algumas cidades portuguesas da Europa tinham os seus almotacés da limpeza. Em Goa, ainda nos seus bons tempos, foi atribuído aos meirinhos, à revelia dos mesmos, o poder de polícia sanitária da cidade.

O senhor vice-rei mandava por ele [procurador] dizer à cidade que provessem da limpeza dela, porquanto estavam as ruas e travessas cheias de imundícies de que se causavam enfermidades e desnobrecimento da mesma cidade e para esse efeito chamassem todos os meirinhos e lhes pusessem penas de perdimento de seus cargos e as mais que parecesse à mesa, que tenham particular cuidado daqui em diante de correr os bairros que a cada um for dado vigiando de noite e de dia as pessoas que lançam as tais imundícies para as apenarem e executarem conforme as posturas. S. C. M. de Goa, 3 de novembro de 1601.105

Segundo o historiador indo-português Teotónio de Souza, em 1644, o senado de Goa arrendou um campo de arroz pertencente à cidade por 400 xerafins. Com esses recursos pagava-se o estipêndio de quatro mukadãos aos quais competia a limpeza da cidade.106 Na Salvador do início do século XVII, a fiscalização da limpeza estava a cargo do rendeiro do verde.107 Mais para o final do século, atendendo proposta do juiz do povo, preocupado com a onda de epidemias que vinha se abatendo sobre a cidade, os oficiais do Senado de Salvador chegaram à conclusão de que “era muito conveniente que fizessem dois almotacés de limpeza, a exemplo das cidades populosas do Reino de Portugal”. O que foi feito imediatamente, sem que, aparentemente, tenham conseguido por cobro às “muitas imundícies que se lançam pelas ruas e praças dela”.108 As

104

MACAU. Atas da Câmara. ARQUIVOS DE MACAU, v.2, n.4, abr.1930. p.211.

105

Ata transcrita na íntegra no apêndice documental de SOUZA, Teotónio de. Goa medieval; a cidade e o interior no século XVII. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. p.252. 106

SOUZA. Goa medieval. p.132-3.

107

SALVADOR. Atas da câmara. op. cit. v.2. p.68.

108

SALVADOR. Atas da câmara. op. cit. v.6, p.211. Ver também, REIS FILHO, Nestor Goulart. Contribuição ao estudo da evolução urbana do Brasil. 1500-1720. São Paulo: Pioneira/ Editora da USP, 1968. p.141.

398

descrições de Salvador continuariam a apresentá-la como uma cidade coberta de monturos de lixo. Em relação a outras cidades brasileiras, pouco se conhece à respeito do modo de agenciar os detritos urbanos. No entanto, os esparsos registros disponíveis permitem supor que tanto o quadro legal existente, quanto a desobediência a ele, eram semelhantes ao que se estabeleceu até aqui. Em Vila Rica, a câmara municipal criou norma proibindo que se jogassem dejetos “nas ruas ou becos públicos, nem nos canos, que deságuam para eles debaixo da pena de meia oitava de ouro”. 109 No Rio de Janeiro, sabe-se que existiam posturas proibindo que se acumulasse lixo junto às portas das casas e disciplinando o lançamento de águas servidas.110 Mas, sabe-se também do hábito de utilizar os canais de drenagem das lagoas como esterqueiras, “onde se fermentava a putrefação do ar ambiente da cidade”. Monturos “dispersos pelo cento da povoação, aumentavam as causas de moléstias graves”.111 No início do século XVIII, a câmara de São Paulo procurava resolver, com uma única leis, três problemas da cidade: a limpeza das testadas, o entupimento de cavas e a destinação do lixo.

E outrossim, façam tapar todos os covões, das mesmas testadas; como também façam roçar as matas; e carpir os chão, que por direito lhes pertencem, mandando botar somente os ciscos, ou lixo nas partes assinaladas, a saber nos covões da Misericórdia nova; e em outros que se acham por dentro desta cidade, para que se vão estes entupindo, que depois destes arrasados se lhes consignará paragens de outros para o mesmo efeito. S. C. M. de São Paulo, 21 de março de 1718.112

109

VASCONCELLOS, Sylvio. Vila Rica. São Paulo: Perspectiva: 1977. p.92.

110

PIZARRO, Monsenhor (ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro). Memórias históricas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945-51. v.5, p.174 e v.7, p.41. 111

112

PIZARRO. Memórias. v.5, p.162.

Citado de TAUNAY, Affonso de E.. História da villa de São Paulo no século XVIII. ANNAIS DO MUSEU PAULISTA. 1711-1720. tomo 5, 1931. p.526.

399

A câmara foi precisa em determinar que apenas o mato carpido e os resíduos secos (ciscos) deveriam ser utilizados para nivelar os covões. O destino dos excrementos e outros lixos orgânicos era, provavelmente, o Tamanduateí.

TRAZER AS RUAS E ÁGUAS SEMPRE LIVRES DE IMUNDÍCIES

Que homem nem mulher não crie porca na vila O grande lixeiro das cidades medievais e modernas foi o porco. Apesar disso, a relação que se estabelece entre ele e a cidade é bastante complexa. O porco é um dos elementos centrais da reciclagem de restos operada na economia camponesa. Trazido para a cidade, transforma-se numa verdadeira máquina de limpeza, pois alimenta-se dos dejetos dos moradores, mas, ao mesmo tempo, torna-se impuro ao fazê-lo. Não é à toa que é considerado animal maldito pelos livros sagrados, no qual judeus e mouros não podem tocar sob pena de se tornarem também impuros.113 A presença do porco no quadro urbano, encerra, ainda, uma segunda contradição. Por um lado, o fato de pertencer ao mundo rural transforma-o numa afronta simbólica à cidade e, em conseqüência, as elites procuram expulsá-lo. Por outro, o porco é um animal de fácil criação em espaços exíguos, o que o transforma em item usual da dieta das camadas urbanas menos favorecidas, que lutam por mantê-lo na cidade. Diferentemente da carne de animais de pasto, que cedo insere-se no circuito mercantil, a de porco resiste a tornar-se mercadoria e permanece no universo de produção doméstico. Assim, durante séculos, o porco esteve em toda parte e em toda parte era proibido. Seria enfadonho enumerar as posturas que expulsam o porco da cidade e, de tanto se repetirem, sabemos que ele nunca saiu.

113

Segundo Mary Douglas, a impureza do porco, para os judeus, refere-se a prescrições alimentares contidas nas antigas escrituras: ‘Entre todos os animais da terra ... não comereis aqueles que só ruminam e não têm a unha fendida, ou só têm a unha fendida mas não ruminam ... E enfim, o porco, que tem a unha fendida e o pé dividido, mas não rumina; te-lo-eis por impuro. [Levítico XI, 2-7] DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. Lisboa: Edições 70, 1991. Ver, especialmente, p.57-74.

400

Na cidade medieval portuguesa há uma relativa tolerância em relação à presença do porco no quadro urbano. Pelas posturas lisboetas do século XIV, sabe-se que os moradores estavam autorizados a ter alguns porcos em casa para cevá-los, sem que fosse permitida a sua reprodução dentro da cidade.

Item. Acharam por postura que homem nem mulher não crie porca na vila para fazer criança. E aquele ou aquela que acharem que o criar desde aqui adiante perca-as e seja da almotaçaria.114

Se, no século XIV, a proibição abrangia apenas as porcas reprodutoras, no século seguinte, ela se estende a todas as fêmeas, tolerando-se a presença apenas do porco macho. Medidas dessa natureza queriam evitar que a criação de porcos na cidade se tornasse uma atividade comercial e tentavam mantê-la restrita a uma economia doméstica de subsistência. A criação comercial de porcos para revenda deveria permanecer fora da cidade.

Outrossim mandaram que não seja ninguém tão ousado que em toda a dita cidade criem porcas fêmeas presas nem soltas e àquele que acharem porca a perca.115

Tudo leva a crer que os porcos que se consentia criar nas cidades eram deixados soltos pelas ruas. Na Lisboa medieval, havia uma única restrição espacial. Esses animais não podiam ser criados na ribeira do Tejo, nem ao menos se aproximar dela, por uma questão de salubridade muito específica. A ribeira era o local preferencial do lançamento de excrementos humanos. Os porcos confiscados pelo almotacé, por se acharem na ribeira, não poderiam ser imediatamente abatidos. Eles deveriam permanecer fora da cidade durante três meses para, só então, serem vendidos nos açougues para renda do concelho.116

114

PCL. p.50. Em Évora, há uma disposição semelhante. Ver ÉVORA. Regimento. op. cit.

115

LPA. p.73.

116

PCL. p.50-1.

p.190.

401

Como já dissemos, o porco estava essencialmente ligado a uma economia de subsistência. Era a carne mais acessível aos pobres, que compravam um pequeno leitão e podiam engordá-lo com os restos domésticos ou mesmo criá-lo solto, a comer os refugos da cidade. A legislação municipal da Idade Média reconhecia essa peculiaridade. Os animais de criação doméstica estavam isentos de taxação, inclusive na primeira venda. A comercialização da carne de porco só era atingida pelo fisco quando os animais eram trazidos de fora para venda na cidade ou quando o morador vendia o seu porco de criação doméstica a um intermediário, fosse um açougueiro ou um regatão. Estes intermediários ao venderem carne de porco eram taxados. Em muitas cidades portuguesas a tolerância à criação doméstica de porcos durou até o século XVIII. As posturas de Beja, de 1768, autorizavam a criação de dois porcos por família.117 A questão dos porcos, com todos os seus desdobramentos, transfere-se com os portugueses para as vilas e cidades coloniais. Os vereadores de São Paulo, em 1575, já discutiam se os chiqueiros deveriam ficar dentro dos muros da cidade, ao longo dos quais estavam, ou se deveriam ser transferidos para fora.118 Nos Açores, a câmara da vila de Velas depara-se com a inutilidade de multar os proprietários de porcos criados soltos e resolve adotar medida mais drástica, decretando o seu confisco pelo alcaide. A postura emanada deste concelho, em 1599, traz uma peculiaridade que merece exame mais detalhado. Ela supõe o descaso ou conivência deste funcionário com os donos dos porcos, prevendo uma multa em mil réis, em caso de omissão no cumprimento do dever confiscar os animais.119 Isto ocorre porque os alcaides menores, que exerciam a função de polícia, não pertenciam ao extrato dos homens bons, que parecem ser os principais incomodados com os porcos. Na África, as medidas legais adotadas contra os suínos eram ainda mais radicais. No século XVII, os oficiais do concelho da vila santomense do Príncipe,

117

BEJA. Posturas de 1768. op. cit. p.83.

118

TAUNAY, Affonso de E. São Paulo nos primeiros annos. 1554-1601. Tours: E. Arrault et Cie., 1920. p.168. REIS FILHO. Contribuição. p.140. 119

VELAS. Atas da Câmara. op. cit. p.113 e 120.

402

mandariam sumariamente “matar todos os porcos que se achassem no meio desta cidade”.120 Em Luanda, os porcos foram responsáveis por mais um lance daqueles eternos conflitos que caracterizavam a administração colonial, provocando uma séria questão de estado, que só foi resolvida com a direta intervenção do rei.

Os oficiais de câmara tinham mandado lançar Bando, que não andassem pela rua animais cevados a respeito de causarem enfermidades na terra, e que por não se haver dado cumprimento a este Bando [o governador] ordenou aos soldados que matassem todos os animais que daquele gênero achassem pela rua, e que sucedendo acharem dois e querendo matá-los acudiram uns negros, os quais ajuntando-se com outros procuraram ofender os Soldados, com que não puderam ser presos mais que três.121

Ocorre que os referidos negros eram escravos dos jesuítas. A prisão daqueles foi retaliada com a sumária excomunhão do governador e dos soldados. Indignado, o governador consultou Lisboa sobre a legitimidade do ato. Em resposta, o rei mandou tirar devassa e prender os escravos, além de advertir duramente os jesuítas “que se outra vez em qualquer parte deste Reino, ou de suas conquistas cometerem semelhante excesso os havereis por privados de tudo o que possuem nesta coroa”.122 Tudo causado por dois leitões. Em São Paulo, a legislação municipal setecentista autorizava que o alcaide matasse qualquer porco encontrado solto, por “não ser conveniente à limpeza das ruas, e causarem peste”.123 Na vila paulista de Curitiba, mais uma vez a questão dos porcos. Em 1748, esses animais provocaram a convocação de uma sessão camarária aberta, daquelas que as ordenações prescreviam para assuntos de grande importância. Após os debates, os vereadores chegaram a um consenso.

120

PRÍNCIPE. Atas da Câmara. op. cit. p.648.

121

ARQUIVOS DE ANGOLA. Luanda,. Primeira série, v.2, n.7, abr.1936. p.13.

122

ARQUIVOS DE ANGOLA. p.14.

123

SÃO PAULO. Atas da câmara. Vereação de 14 de fevereiro de 1756. ACTAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. v.14, p.26. Postura semelhante já fora votada em 1718. ver TAUNAY. História. 1711-1720. p.526.

403 O exterminar-se desta vila os porcos e fazer-se sobre eles posturas e acórdão para que quem os tivesse os pusesse fora desta vila ou os enchiqueirasse de sorte que nunca mais tornasse a andar soltos pela vila pelo grande prejuízo e dano que faziam em arrombar os quintais e ainda as paredes das casas desta vila de que os moradores que nela tem casas tem experimentado grande dano tanto nas ditas casas e quintais como nas Roças vizinhas desta vila. S. C. M de Curitiba, 19 de agosto de 1748.124

A postura seria elaborada e aprovada na sessão subseqüente do dia 7 de setembro. Todavia, a ameaça de punição não foi suficiente. Tanto por uma questão de hábito arraigado, quanto por necessidade de subsistência, os moradores da vila continuaram a criar porcos soltos pelas ruas. Como nos Açores, parece que os alcaides curitibanos não se empenhavam em fazer valer a determinação do concelho, o que, algumas décadas depois, geraria uma crise entre os diversos oficiais da vila. Em 1770, o alcaide e o porteiro, os encarregados de “exterminar” os porcos, acabaram sendo presos por omissão no cumprimento de suas atribuições.

Requereu o Procurador deste Concelho a eles oficiais que sendo determinado por esta Câmara que se matassem os porcos que andassem nesta vila e cachorros bravos e daninhos por queixas que tinham ouvido dos donos dos porcos e distúrbios e malfeitorias dos cachorros e se tendo por esta Câmara mandado botar edital para o mesmo efeito de se recolherem os Porcos e determinarem os ditos cães para fora desta vila e os oficiais e Alcaide e Porteiro os matassem ou outra qualquer pessoa que recebesse algum prejuízo [....], e como nem os moradores desta vila nem os oficiais têm satisfeito a sua obrigação de que no dito mandado lhe foi determinado requeria a eles ditos oficiais da Câmara fossem servidos mandarem prender aos ditos Alcaide e Porteiro pelo pouco caso que fizeram do que vos lhe foi mandado [....] e ouvido por eles ditos oficiais seu requerimento ser justo mandaram se cumprisse tudo o requerido. S. C. M. de Curitiba, 19 de maio de 1770.125

À primeira vista, a preocupação com porcos e outros animais soltos na cidade pode parecer excessiva. No entanto, os animais afrontavam as elites dirigentes por provocarem um quadro de indefinição entre o urbano e o rural, contrariando o próprio modelo de urbano que se procurava instaurar.

124

CURITIBA. Atas da câmara. NEGRÃO, Francisco (ed.). BOLETIM DO ARCHIVO MUNICIPAL DE CURITIBA. v.19, p.37. 125

CURITIBA. Atas da câmara. op. cit. v.29, p.54.

404

Esse lado simbólico da presença suína pode ser melhor apreendido em dois outros tipos de posturas municipais. Nas localidades maiores, desde o século XV, manifesta-se a tendência a impor limites espaciais à perambulação desses animais no tecido urbano, banindo-os das principais rua e praças.

Outrossim mandaram que quaisquer porcos que forem achados nas fangas de trigo e nas carniçarias da carne e assim como se diz pelo açougue do pescado e da fruta e por toda a rua nova e por Moraz e por toda a tanoaria assim vai [pela] rua direita até onde morava o alcaide pequeno e pela ferraria e pela ribeira pela porta do mar até a porta d’Oura e na praça de São João e na de São Nicolau e na porta de São Vicente onde se faz a praça e na de São Miguel e na da Cruz e a porta de São Pedro e em outras quaisquer praças onde se venda pão e outras coisas se os aí acharem que sejam perdidos para o Concelho. Lisboa, século XV.126

Algumas municipalidades não adotavam restrições espaciais, mas sim temporais, o que era freqüente nos Açores. Na Horta, as posturas de 1721 previam “Que a pessoa que em dia em que houver procissão nesta vila lance porco nas ruas dela, [pague] pena de um tostão”.127 A mesma restrição aparece nas posturas de Angra de 1788.

Que nenhuma pessoa que tiver porcos os deixe andar pelas ruas públicas desta cidade, por onde passar procissão, qualquer que seja; com pena de duzentos réis por cabeça.128

Chega-se ao fim do século XVIII, para não falar do XIX, ou do XX, com a certeza de que o porco estava a vencer esta inglória batalha. Descrições de camaristas, funcionários régios, sanitaristas ou viajantes continuam a encontrá-los onde sempre estiveram: à solta na cidade. Ei-los em Luanda a fechar o setecentos.

126

LIVRO DAS POSTURAS ANTIGAS, p.67. A mesma postura ainda estava em vigor na metade do século XVI. 127

HORTA. Posturas Municipais. LIMA, Marcelino (ed.). Código de posturas da Horta, de 28 de dezembro de 1719. Anais do Município da Horta. Famalicão: Grandes Oficinas Gráficas Minerva, 1940-43. p.118. 128

ANGRA. Posturas municipais de 1788. op. cit. p.428.

405 Os Porcos, estes animais imundos, sempre prisioneiros nos países saudáveis, gozam de inteira liberdade no centro da Cidade. Os que mendigam sustento sobre as praias são de tão mau sabor, que escandaliza o paladar, pela incompatibilidade de saber a peixe o que é carne.129

E para que ninguém pense que o porco era um problema exclusivo das colônias, basta ver que na cidade do Porto, no período de 60 anos estudados pelo historiador Francisco Ribeiro da Silva, foram editadas posturas contra os suínos em 1590, 1591, 1593, 1634 e 1640. Ali, estes animais eram acusados de comprometerem as bases das paredes e dos próprios muros da cidade. Como em qualquer cidade colonial, o porco instalou a cizânia entre os oficiais da câmara portuense. Em 1663, os responsáveis por fazer respeitar as posturas contra os porcos foram repreendidos pelos vereadores por não estarem cumprindo a tarefa a contento.130 Ao estudar o concelho de Santarém, durante a segunda metade do século XVIII, a socióloga Virgínia Coelho deparou-se com a mesma repetição, o que a levou a concluir que “basta a freqüentíssima alusão, nos Livros de Vereação, à existência de porcos à solta pelas ruas da vila, para se saber como a Postura que tal proíbe é ineficaz”.

E outrossim se determinou que um Porco que se achava na Estalagem do Sítio apanhado pelo rendeiro por ordem deste Senado de que se ignora o dono se passe ordem ao Almotacé para pelo dito Juízo se vender e que o mesmo se pratique com todos aqueles que se acharem pelas ruas ou se saiba ou não o dono e se lance pregão com esta declaração. S. C. M. de Santarém, 24 de março de 1763.131

Aliás, no século XVIII, constata-se um aumento de referências aos porcos no quadro urbano e o recrudescimento da legislação que visava expulsá-los. Uma das causas é o crescimento da população urbana desligada da terra e que dependia diretamente do mercado de abastecimento. O problema foi agravado pelo

129

CORREIA, Elias A. da Silva. História de Angola. Lisboa: s.ed., 1937. v.1, p.81.

130

SILVA. O Porto. p.798.

131

Citado em COELHO, Maria Virgínia Aníbal. Autonomia e despotismo: a câmara e a vila de Santarém no reinado de D. José. CADERNOS CULTURAIS, Câmara Municipal de Santarém, n.4, mar.1993. p.80-2.

406

desaparecimento de terras comunais, provocado pela apropriação privada dos rocios, o que tornava mais difícil a obtenção de carne fora do mercado. A criação de porcos e galinhas dentro da cidade era, cada vez mais, uma alternativa atraente, mas carregada de conflitos. Devemos observar que, no século XVIII, tanto as autoridades do estado central português como as elites locais estavam mais preocupadas com a aparência das cidades. A presença de animais no espaço público era considerada uma afronta simbólica ao urbano, o que explica a profusão de posturas com vistas a expulsá-los. O açougue: sujo e em lugar desconveniável A comercialização da carne era outro dos focos de maus odores contaminantes de que se ocupavam as câmaras municipais. Durante toda Baixa Idade Média e Idade Moderna, os açougues foram locais particularmente tensos do sistema de abastecimento das cidades. Os preços, a constância do fornecimento e os privilégios no atendimento geravam outras modalidades de atritos entre câmara, nobreza e povo. Quando mencionamos aa relação entre cidade e contenção da violência, vimos como a disputa pela carne podia descambar em duelo de capa e espada. Vamos nos deter, agora, na relação entre açougues e sanidade urbana, uma vez que esses locais eram considerados particularmente molestos e insalubres. A palavra açougue, provém do termo árabe as suq, literalmente o mercado. No português medieval, lentamente a palavra vai deixando de designar o lugar de mercado em geral para tornar-se mais específica, referindo-se apenas ao mercado de carnes. Apesar disso, o termo era ainda usado para indicar outros mercados. Na Lisboa quinhentista, a documentação se refere a açougues de frutas e verduras. Nosso interesse volta-se, no entanto, para os abatedouros e açougues de carnes, ou carniçarias. Desde a Idade Média, os concelhos procuraram manter concentrado em um único local o mercado de carnes. Era uma decisão de cunho fiscal, na acepção mais ampla do termo. A complexidade das relações geradas pelo abastecimento de carne levou as câmaras a procurarem ter os açougues bem debaixo de suas vistas, ou seja, no centro das cidades e vilas. Além do mais, os açougues eram uma importante fonte de

407

receita concelhia. O abastecimento de carne costumava ser feito por “estanco”, ou seja, através de um direito de monopólio vendido pela câmara a um ou mais fornecedores. Em diversos casos, o direito de açougagem não pertencia aos concelhos mas a algum senhor a quem o rei concedia o privilégio. A forma de agir desses senhores era em tudo semelhante à das câmaras. Aqueles que arrendavam o monopólio do comércio de carne, seja da câmara, seja de algum privilegiado, comprometiam-se a manter constante o abastecimento e, na maioria das vezes, antecipavam as receitas fiscais que este comércio gerava. Assim, as reses abatidas e vendidas fora deste sistema oficial significavam evasão fiscal. Se, por um lado, a concentração deste comércio nos açougues localizados no centro dos núcleos urbanos tornava mais fácil a vigilância, por outro, trazia sérios inconvenientes do ponto de vista sanitário. Os odores pútridos, que deles costumavam exalar, geravam os conhecidos receios de contaminação. Com o crescimento das cidades, o fenômeno amplificava-se, gerando transferências, ou tentativas de transferências, para locais mais afastados do centro urbano. O deslocamento dos açougues pode ser observado em todo o período estudado. Na primeira década do século XV, a câmara de Ponte de Lima, com o apoio do ouvidor, que “achava os ditos açougues em lugar mal feito e desconveniável e sujos e tais que não eram pertencentes para tal lugar”, resolveu mudá-los para local mais conveniente.132 Na Madeira, os vereadores do Funchal determinaram aos carniceiros que “quando houverem de matar e esfolar que o façam no Calhau a cabo do mar em modo que não façam mau cheiro”.133 Dois séculos depois, a mesma preocupação seria manifestada pelo corregedor geral dos Açores.

Achou que se fazia o açougue na Vila, de que causava grande fedor e que poderá suceder doença, pelo que proveu e mandou que visto o mar estar perto e a casa onde

132

PONTE DE LIMA. Carta de composição entre o cabido de Braga e o procurador do concelho de Ponte de Lima, 1406. Transcrita no apêndice documental de ANDRADE, Amélia A. Um espaço urbano medieval: Ponte de Lima. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. p.238-9. 133

FUNCHAL. Vereação de 30 de março de 1496. op. cit. p.458.

408 se ora cortava a carne era de aluguer, se fizesse uma casa junto ao mar, onde esteve a casa de Pedro Gonçalves, que Deus tem, ou onde melhor parecer, que terá suas grades, com cepo e cadeira que servirá de açougue. Vila Franca do Campo, Correição de 27 de junho de 1628.134

Se atentarmos para os preceitos de limpeza que as câmara municipais impunham aos açougues, fica fácil entender o motivo dos odores fétidos que exalavam desses locais. Visando explicitamente a acabar com o “mau cheiro”, algumas câmaras obrigam a limpeza dos açougues, contentando-se com a retirada semanal dos detritos. Em Setúbal, a retirada dos “estercos” deveria ocorrer à quintas-feiras, e, em Beja, aos sábados.135

Acordaram por postura que os carniceiros e obrigados, mandarão, os dias que houverem de cortar carne, antes que se comece a cortar, a limpar o cepo bem, e tábuas em que se costuma cortar e pôr a carne, e cada sábado mandarão varrer a casa dos açougues, e portas deles e levarem o esterco fora, e quem o contrário fizer pagará de pena quinhentos réis cada vez que compreendido for, para o concelho ou para o rendeiro sendo o encoimador. Beja, década de 1738.136

No mesmo código municipal é determinado que o marchante “trará raspada cada quinze dias as conchas da balança”.137 Todavia, essa medida tem por preocupação a pesagem correta da carne e não a limpeza. No universo colonial português, encontra-se a mesma tendência à concentração do comércio de carnes, gerando os mesmos problemas sanitários e as conseqüentes tentativas de minorá-los. Já observamos as preocupações sanitárias que motivaram a criação de um açougue à beira-mar na Vila Franca do Campo. São as mesmas que se manifestam na criação do “telheiro”, ou abatedouro, da vila do Recife,

134

VILA FRANCA DO CAMPO. Correições de 1575 a 1716. DIAS, Urbano de Mendonça (ed.). A Vila; publicação histórica da Vila-Franca do Campo. Ponta Delgada: Tip. Central, 1927. v.6, p.126-7. 135

SETÚBAL. Posturas municipais. op. cit. p.97.

136

BEJA. Posturas municipais de 1738. op. cit. v.7, p.219. BEJA. Despachos. op. cit. v.9,

137

BEJA. Posturas municipais de 1738. op. cit. p.83.

p.181.

409

no Brasil. Em ambos os casos, o destino dos restos é o mar, esta grande cloaca dos dejetos urbanos.

E acordaram que os Marchantes sejam obrigados a fazer tanques com telheiros fortes para dentro deles matarem as reses e recolherem o sangue o qual serão obrigados a mandar deitar em tinas, da mesma sorte que o manda executar o contratador o que serão obrigados a executar com a pena de quatro mil réis cada rês por cada vez que constar que mataram fora do telheiro, e não lançaram o sangue ao mar; [....] e outrossim acordaram que as pretas que compram e beneficiam os fatos sejam obrigadas a beneficiá-los na praia e lançarem as imundícies ao mar, o que farão debaixo da pena de cinco tostões de condenação; [....] e outrossim acordaram que os mesmos marchantes carniceiros sejam obrigados a trazer sempre limpo o terreno de arrobação da matança do gado lançando ao mar todos os ossos, e imundícies que procedem da mesma matança debaixo da pena de cinco tostões [....]. S. C. M. do Recife, 18 de março de 1772.138

A defesa das águas Simultaneamente à batalha contra as esterqueiras, a contaminação atmosférica e a presença dos porcos soltos nas ruas, as câmaras municipais de Portugal e suas colônias travam uma outra guerra: a da defesa das fontes de abastecimento de água potável. O uso de rios como o destino preferencial para o lançamento de excrementos levou à transformação de muitos deles em esgotos. O quadro complicavase ainda pela contaminação dos rios por certas atividades artesanais que geravam efluentes insalubres. Em resposta, as câmaras procuraram criar uma espécie de zoneamento hídrico, demarcando regiões específicas para lançamento de lixo, abastecimento de água potável, lavagem de roupas e alguns usos artesanais específicos. Vimos, anteriormente, as delimitações impostas ao lançamento do lixo, que, no caso dos rios, era sempre a jusante. O amanho do linho era considerado particularmente nocivo e só era admitido em locais especialmente indicados. No Porto, os médicos advertiam contra o consumo das águas de Mijavelhas, onde os lavradores punham as fibras de molho, as quais

138

RECIFE. Atas da Câmara. ARQUIVOS; nova série. Recife, n.4, out.1985. p.212.

410

podiam causar apoplexia e morte súbita.139 O diagnóstico da insalubridade repete-se em Coimbra.

164 - Item - Temos sabido que a água dos linhos é muito prejudicial e danosa à saúde do povo e que de a beberem, se causa etegidades* e outras doenças. Portanto defendemos que nenhuma pessoa alague linhos no rio, a saber, desde a foz da Ceira até a ponte desta cidade, sob pena de perder o linho que assim alagar e mais pagar mil réis de pena, metade para a cidade e a outra para quem acusar. Coimbra, século XVI.140

Preocupação idêntica tiveram os vereadores da vila açoreana de Velas, que proibiram “alagar” linho na ribeira do Poço, “que era principal serventia de lavagem”, e na Fonte de João Varela, onde muitos moradores proviam-se de água.141 Pelo mesmo motivo, a câmara de Angra criou uma postura com vistas a impedir este tipo de prática nas proximidades dos canos reais.142 Na ilha do Pico, a câmara da Madalena tentava impedir que os eflúvios dos alambiques de aguardente contaminassem o poço do concelho.143 A construção e manutenção das muralhas e o fornecimento de água são capitais à própria idéia de que as instituições urbanas devem prestar um ‘serviço’ aos moradores. Aliás, o Regimento dos Corregedores de 1340, no qual, aparecem as atribuições dos vereadores pela primeira vez, dava a estes a incumbência de zelar pelos muros, calçadas e fontes das cidades.144 Água e muralhas são questões correlatas porque

139

SILVA. O Porto. p.803.

140

COIMBRA. op. cit. v.2, p.173-4. * etegidade = ou pode ser entejidade, de entejo ou entojo, que leva à acepção nojeira ou enteguidade, de entego, que, neste caso, significaria tísica. 141

VELAS. Atas da Câmara. op. cit. p.383.

142

ANGRA. Posturas municipais de 1788. op. cit. p.429.

143

MENESES, Avelino de Freitas. O município da Madalena (Pico): 1740-1764; subsídios para seu estudo. BOLETIM DO INSTITUTO HISTÓRICO DA ILHA TERCEIRA. Angra do Heroísmo, v.45, t.2, 1987. p.1011. 144

COELHO, Maria Helena da Cruz & MAGALHÃES, Joaquim Romero. O poder concelhio; das origens às cortes constituintes. Notas de história social. Coimbra: Centro de Estudos e Formação Autárquica, 1986. p.113.

411

as construções defensivas são inúteis sem que se garanta o abastecimento hídrico. Esses primeiros ‘serviços públicos urbanos’ nos mostram um movimento das instituições municipais em direção ao que viriam a ser no futuro. Superado o estágio de detentoras do pacto político e de agência de mediação de conflitos internos, passariam a prestar benefícios materialmente palpáveis aos moradores. Essa tendência se manifesta, primeiramente, nas áreas onde as soluções individuais são de difícil concretização. Água, calçamento e fortificações, apesar de aparecerem juntos nas atribuições dos vereadores, são aspectos da atuação das câmaras que conheceram histórias muito diferentes. A construção e manutenção de muralhas pertencia à esfera de competência do rei ou do senhor da cidade, os responsáveis diretos pela defesa. A área em que a constituição dos primeiros “serviços municipais” acabaria por se afirmar foi a do abastecimento de água potável.145 O que, na prática, se observa é uma espécie de divisão de tarefas. Cabia aos concelhos construir e manter fontes e chafarizes. Obras de maior envergadura, como aquedutos ou grandes canalizações, eram da responsabilidade direta da coroa ou de alguns senhores e donatários, que as executavam diretamente ou abriam mão de receitas repassando a responsabilidade às câmaras. Em muitas localidades, a documentação menciona os “canos reais”, querendo com isso se referir à principal adutora da cidade. Em alguns casos, esses canais ou canos reais não eram, de fato, feitos por ordem do rei. Trata-se apenas de uma noção corrente, estabelecida pelo costume, que levava a identificar as grandes obras hidráulicas com a intervenção direta da coroa. Neste aspecto do saneamento urbano, ao mesmo tempo em que construíam fontes, bicas, poços e pequenas condutas, as câmaras municipais tinham que se ocupar em defender as obras contra a ação dos próprios usuários. Em qualquer vila ou cidade de origem portuguesa, desde a Idade Média até o século XIX, vamos encontrar repetidas posturas proibindo a lavagem de roupas, panelas e recipientes, ou o

145

Lentamente, o calçamento foi sendo assumido pelos concelhos e as despesas costumavam ser partilhadas entre a municipalidade e os particulares.

412

lançamento de dejetos nos locais de abastecimento de água. Enquanto existiram fontes, foi grande a tentação de dar-lhes uso mais amplo do que o previsto na legislação.

GRUPO DE AZULEJOS DO SÉCULO XVIII146

Em Lisboa, a proteção de fontes e chafarizes gerou uma secular tradição legislativa. A construção de cada nova fonte era acompanhada de postura específica proibindo usos diferentes do abastecer-se de água. No século XV, as posturas proíbem que se lave roupa em qualquer fonte ou chafariz do concelho, dentro ou fora dos muros.147 A Fonte da Rua Nova, a Fonte Nova da Ribeira, o Chafariz de São Jordão e mesmo o Tanque dos Cavalos mereceram leis específicas. Outras posturas, provavelmente datadas do século XVI, regulamentaram o uso do chafariz d’el-Rei e do

146

Reproduzido de HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL. São Paulo: Cia. das Letras. 1997. v.1. p.105. 147

LPA. p.52.

413

de Arroios. No século XVIII, as normas municipais referem-se aos chafarizes do Rato, da Esperança, do Rossio, de São Pedro de Alcântara e do cais do Tojo.148 Esta tradição legislativa repete-se, na íntegra, em todas as cidades portuguesas, configurando um dos mais recorrentes corpos de posturas municipais. Não houve localidade onde os vereadores não criassem uma legislação objetivando proteger as fontes e chafarizes urbanos. Fora da capital do Império são encontradas normas muito semelhantes.149

POSTURAS DA LIMPEZA Item. Foi mais acordado e determinado que toda pessoa que tomar água acima das bicas que pague de pena vinte réis e assim mesmo qualquer pessoa que lançar cisco senão donde for determinado que pague pena de quatorze réis. Item. Qualquer pessoa que lançar água da janela sem dizer água vai que pague pena de quatorze reais. Item. Foi mais acordado e determinado que qualquer pessoa que lavar roupa às bicas até o porto onde lavam que pague quatorze réis. Item. Qualquer pessoa que fizer sujidade na fonte do chão do Salgueiro que pague de coima cinqüenta réis. E do Prior e da fonte do Ouro e do Chorudo pagará vinte réis. Abrantes, 11 de agosto de 1515.150

Ou em Braga;

Item - Acordarão que vista a devassidade e pouco temor que a gente mal inclinada tem de Nosso Senhor Deus em lançarem sujidades na fonte de Sousa e nas mais desta cidade e fora dela, lançar qualquer sujidade que seja nem lavar cueiros sujos pagar para o Concelho por cada vez da Cadeia dois mil réis e mandaram que se apregoasse e desse a fé do pregão. Braga, década de 1550.151

Passando ao universo colonial, permanece o mesmo quadro de proibições.

148

LPA. p.3; 16-7; 121; 255. e DOCUMENTOS PARA A HISTÓRIA DA ARTE EM PORTUGAL. p.1-2; 71; 93-4. 149

Para o Porto, ver SILVA. o Porto. 802-4.

150

ABRANTES. Posturas Municipais. SILVA, Joaquim Candeias (ed.). O Livro de Posturas da Vila de Abrantes de 1515. CADERNOS PARA A HISTÓRIA DO MUNICÍPIO. Abrantes, 1982. p.86. (incompleta) 151

BRAGA. Atas da Câmara. Livro das Vereações. op. cit., v.4, n.1-3. dez.1952. p.141.

414 E assim acordaram e houveram por bem que nenhuma pessoa de qualquer condição que seja não lavem no chafariz das fontes e dentro nas cercas das fontes e não façam barrelas nem desmanchem as paredes nem estendam roupa dentro nem aponham sobre o chafariz nem enxuta nem molhada nem metam dentro na cerca nenhuma alimária sob pena de por cada vez que o contrário fizerem e cada uma das cousas fizerem pagarem por cada vez quinhentos reais para o concelho e cativos ou quem os acusar. Velas, 22 de julho de 1559.152

Em outros concelhos dos Açores, como Angra e Ponta Delgada, a legislação que procurava obstar a lavagem de roupas nos locais de abastecimento de água repetese ao longo dos séculos. Aliás, o que só vem a confirmar a reiterada desobediência a tais normas.153 Os açorianos levados para fundar São José de Macapá, ao criarem o primeiro código de posturas da vila, não esqueceram de legislar sobre a lavagem de roupa nas fontes.

Foi acordado que toda a pessoa, assim homem como mulher que lavar roupa, ou outras coisas nas fontes e poços donde as gentes hajam de beber, paguem duzentos réis para o concelho. Macapá, 3 de julho de 1761.154

Outra preocupação generalizada entre as câmaras das cidades coloniais portuguesas era impedir a contaminação das mães d’águas. O concelho de Vila Franca do Campo adotou uma legislação específica sobre o tema.155 Em Ponta Delgada, lamentavam-se os vereadores de que “no nascimento da água se iam muitas pessoas, e

152

VELAS. Atas da Câmara. op. cit. p.113-4. Para outras posturas que, em Velas, disciplinavam o assunto ver a coletânea documental editada em PEREIRA, António dos Santos.. A ilha de S. Jorge ( séculos XV-XVII); contribuição para o seu estudo. Ponta Delgada: Universidade dos Açores, 1987. p.305, 309, 313. 153

PONTA DELGADA. Posturas do século XVII. MARQUEZ, Jacome Corrêa (ed.). Posturas da câmara de Ponta Delgada do século XVII. ARQUIVO DOS AÇORES, v.14, 1927. p.130, 136, 173 e 183. ANGRA. Posturas de 1665. op. cit. p.137. ANGRA, Posturas de 1788. op. cit. p.428. MENESES. O município. p.1096. 154

MACAPÁ. Posturas Municipais. ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO. Pará. Caixa

21. cód.739-I. 155

NOGUEIRA, Maria Margarida de Sá. A administração do concelho de Vila Franca do Campo nos anos de 1683-1686; subsídios para o seu estudo. In: OS AÇORES E O ATLÂNTICO (Séculos XIV-XVII). Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1984. p.591.

415

faziam lume com que a sujavam”. Para impedir o costume, impuseram uma multa de 500 réis para quem insistisse nesta prática considerada danosa.156 Já a contaminação da mãe d’água de Salvador, era atribuída a uma causa totalmente diversa.

Atendendo a que esta cidade não tem fontes capazes de suprir ao povo em todo o ano, por serem todas subterrâneas, e faltas de água, de sorte, que nos verões costuma ser pouca a que se acha, assentaram que se dê conta a S. Majestade para providenciar esta necessidade; afim de se introduzirem na mesma os Rios, que ficam adiante das Armações do Mestre de Campo Fortunato Luiz de Sousa e Oliveira, até o Jaguaribe, por serem excelentes águas, batidas, cristalinas, e capazes de abundar a cidade; e porque o cemitério em que se enterram os cadáveres dos pretos e outras pessoas necessitadas, ficando próximo à Mãe d’água, que expede pela fonte do Gravatá, onde todo o povo dela, e de muitos bairros mandam buscar para serviço da casa, e ainda para beberem, tendo-se conhecido a sua corrupção pelos muitos insetos que criam, e mau cheiro que lança de si, de que resulta o padecerem os Povos grandes enfermidades, se assentou que se escrevesse ao Ex.mo. Sr. Arcebispo, para impedir que no dito Cemitério se sepulte cadáver algum, fazendo-se este em outro lugar que não fique próximo ao Dique, nem a qualquer outra fonte da cidade.157

Em outras localidades do Brasil, o problema da contaminação dos mananciais não era diferente. Em São Paulo, o uso dos locais de abastecimento para a lavagem de roupas e animais fez com que o tema entrasse na pauta das discussões camarárias, em 1734.158 Na documentação da câmara de Curitiba, as alusões a este tipo de problema são freqüentes.

[Foi determinado] que se continuasse com as obras precisas da limpeza das fontes desta vila cujas obras serão por nós vistas e aplicadas e não só estas como também aquelas nativas que são permanentes em os arredores desta vila para que todos os moradores dela participem deste benefício tão preciso para evitar o uso das imundas águas que correm pelos rios mestres que por admitirem imundos e perniciosos cheiros muitas vezes acontecem ocasionar doenças: Pelo que acordaram eles ditos oficiais em procurar o melhor meio, e mais acomodado para se utilizarem das referidas fontes nativas por mais que se farão os mais termos necessários.

156

PONTA DELGADA, Posturas do século XVII. op. cit. p.131.

157

SALVADOR. Posturas Municipais de 1785. REVISTA DO INSTITUTO GEOGRÁFICO E HISTÓRICO DA BAHIA. ano 4, v.4, n.11, mar.1897. p.69-70. 158

SÃO PAULO. Atas da câmara. ACTAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. v.14, p.26. Vereação de 13 de fevereiro de 1734. p.134. SILVA, Janice Theodoro da. São Paulo 15541880; discurso ideológico e organização espacial. São Paulo: Editora Moderna, 1984. p.112.

416 S. C. M. de Curitiba, 9 de janeiro de 1779.159

O que se observa, é que mesmo em vilas diminutas, como a de Curitiba, a contaminação dos principais rios já era tal que, para beber ou cozinhar, os moradores viam-se obrigados a recorrer à água de pequenas ribeiras e olhos d’água.

CONSTA QUE ESTE LOCAL NÃO É DOS MAIS APROPRIADOS

Se as epidemias tomavam conta de Salvador, não fora por falta de cuidado na escolha de sítio onde fora instalada a cidade. O Regimento de Tomé de Souza, de 1548, trazia menção expressa sobre sua transferência, do local onde o donatário Francisco Pereira Coutinho iniciara o povoamento português da Bahia, para outro menos insalubre.

Todavia, como consta que este local não é dos mais apropriados, o estabelecimento que fizer nele será de natureza provisória, e deve escolher outro mais pela baía a dentro, tendo atenção à capacidade do ancoradouro, à bondade dos ares e águas, e abundância dos provimentos, com que pelo tempo adiante venha a povoação a ser cabeça de todas as mais capitanias.160

Tomé de Souza, além de procurar respeitar estas recomendações, teve preocupações defensivas na escolha do sítio da nova cidade. Fundou-a no alto de uma falésia, como ensinava a tradição portuguesa. Todos esses cuidados fazem parte do desenvolvimento de uma ciência ou arte renascentista da escolha do sítio urbano. Na Europa, ao mesmo tempo em que se desenrolavam os diversos atos da tragédia das pestes, os pensadores italianos do século XV, apoiando-se em autores da antigüidade greco-romana, estavam sistematizando uma teoria da cidade, em que as

159

160

CURITIBA. Atas da Câmara. op. cit., v.13, p.55.

REVISTA DO INSTITUTO GEOGRÁFICO E HISTÓRICO DA BAHIA. ano 3, v.3. mar.1895. p.31-2.

417

qualidades do sítio das cidades ocupava um lugar de destaque. No século XVI, os seguidos surtos de fomes e pestes na Europa e a alta mortalidade nos estabelecimentos coloniais mantinha este tipo de preocupação na ordem do dia. Um dos clássicos a exercer maior influência no pensamento humanista sobre a cidade foi De architectura, obra escrita em 27 a. C. pelo arquiteto romano Marcus Vitrúvio Pollio.161 Redescoberta entre 1412 e 1414, foi, a seguir, apropriada por diversos estudiosos italianos.162 Pode-se buscar em Vitrúvio o principal impulso para a sistematização do moderno conceito de sítio urbano, em que a salubridade é um dos pontos focais. Após o sucesso que conheceu no século XV, esta obra passaria por uma fase de relativo esquecimento até entrar novamente em voga durante o século XVI.163 No que respeita à cidade e à arquitetura, a produção teórica do humanismo quatrocentista não parece ter tido maiores divulgações em Portugal. As influências italianas só se intensificam no período que a história da arte costuma denominar por maneirismo. Nos meios especializados portugueses, a leitura dos clássicos grecoromanos e da produção dos tratadistas italianos que se dedicaram ao tema da cidade só ganhariam maior difusão na metade do século XVI. Foi neste período que a obra de Vitrúvio foi difundida em Portugal e traduzida pelo cosmógrafo-mor Pedro Nunes. Seja em cópias manuscritas, sejam edições impressas italianas, De architectura era comum nas bibliotecas portuguesas do século XVI.164

161

Utilizei a edição VITRUVIO, Marco Lucio. Los diez libros de arquitectura. Barcelona: Editorial Iberia, 1977. 162

Sobre a existência e uso de manuscritos da obra de Vitrúvio na Idade média ver GIMPEL, Jean. A revolução industrial na Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. p.117-26. 163

Não é de todo assente que, de fato, a obra de Vitrúvio tenha sido redescoberta nesta época, pois há freqüentes referências ao textos desde a Alta Idade Média. CHOAY, Françoise. A regra e o modelo. São Paulo: Perspectiva, 1985. p.25. 164

O historiador Diogo Ramada Curto, lamentando que se desconheça o grau de difusão de Vitrúvio em Portugal, procurou fazer um breve levantamento da presença da obra em arrolamentos de bibliotecas portuguesas da época. ver CURTO, Diogo Ramada. Descrições e representações de Lisboa. 1600-50. In: O IMAGINÁRIO DA CIDADE. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. p.141. Ver, também, CORREIA, Vergílio. Obras, II. Coimbra, Universidade de Coimbra, 1949. p.283.

418

O fato de Vitrúvio ter sido traduzido para o português, não por arquitetos mas por um cosmógrafo, mostra uma apropriação peculiar do pensamento deste autor, que difere da que ocorreu em outras regiões européias. A ênfase portuguesa recai justamente sobre as questões relativas à escolha do sítio urbano e não sobre a busca da forma ideal da cidade, uma temática que tanto suscitou a imaginação dos italianos e dos vizinhos castelhanos. No mesmo período, acompanhando uma tendência geral européia, os arquitetos e fortificadores portugueses passam a utilizar as coleções de desenhos e os grandes manuais enciclopédicos como os de Sebastiani Serlio e Pietro Cataneo. No entanto, o mesmo viés lusitano informa a recepção de tais manuais. Um bom exemplo é dado pelo uso português dos Quattro libri del l’architectura, de Cataneo, impressos em 1554. Esta obra costuma ser apontada entre as principais fontes de difusão dos modismos formais da cidade ideal. Há, na obra de Cataneo, diversos estudos de cidades ideais elaborados à partir de polígonos regulares. Entre eles está uma das raras propostas de planta urbana reticular, às vezes apontada como uma das prováveis origens do característico xadrez das cidades hispano-americanas. Contudo, apesar do sucesso que a obra conheceu, este aspecto específico não parece ter chamado a atenção de seus leitores portugueses. E tendo o sítio bons ares A peculiar recepção de Vitrúvio e dos manuais de arquitetura é facilmente perceptível na produção teórica portuguesa do século XVI. Bom exemplo é um tratado de urbanização de autor desconhecido, às vezes atribuído ao fortificador português Antônio Rodrigues, no qual são abordadas sistematicamente questões relativas à fortificação de cidades e à escolha do sítio urbano. O autor tinha por objetivo superar o espontaneismo dos fortificadores portugueses. Para ele, a localização de povoações ou edifícios não devia ser fruto do acaso mas da “necessidade”. Acompanhando aquilo que diziam os “antigos” ele estabeleceu um elenco de nove quesitos que deveriam ser levados em conta na eleição do local adequado ao estabelecimento de uma cidade.

419 - Disseram [os antigos] que estando o sítio em boa região posto que viveriam os homens sem suspeita do quente nem do frio; - E tendo o sítio bons ares não sofreriam de enfermidades; - E tendo boas águas seriam os homens galhardos e bem dispostos e não teriam enfermidades de olhos nem de pernas, nem seriam papudos nem seriam doentes de fígados os que em tal sítio habitassem; - A quarta razão por si está clara, porque povoação que não tiver terras aptas a produzir os mantimentos à geração humana não deve ser habitada; - A quinta disseram que os mantimentos se não podiam semear sem animais que lavrassem na terra, para os quais era necessário como cousa importante ao viver dos homens terem terras separadas donde esses animais comessem; - A sexta razão disseram que o sítio que não tivesse matos para lenha perto de si que era ocasião por onde os moradores da nova povoação levassem mais trabalho ou despendessem mais dinheiro ao trazer da lenha pois que não o podiam escusar para seu viver, e por isso disseram que o sítio havia de ser abundoso de matos; - A sétima, concluíram que habitação não se havia de fazer entre serros nem vales, porque os homens que em tal sítio nascessem não seriam de claro engenho. [....] - A oitava razão é que o sítio seja visto de longe, porque sendo de longe visto os inimigos não se poderão alojar perto de sua povoação e o chegar a ela lhes custaria muito trabalho e lhes consumiria muito tempo; - A nona, disseram que o melhor instrumento que havia para serviço era o carro, que por isso dizia que sendo possível quando fizerem qualquer povoação que a fizessem em sítio que pudesse servir dele. E com isto concluíram as partes que havia de ter o bom sítio.165

Esta lista de tópicos é uma tentativa de síntese do que Vitrúvio e outros autores da antigüidade, lidos diretamente ou através de seus comentadores medievais e renascentistas, diziam sobre os cuidados que se deveria ter na eleição dos sítios urbanos. O autor enfatiza os estudos astronômicos, os Tratados da Esfera, que buscavam estabelecer uma correlação entre a astronomia e o clima. Suas fontes são Aristóteles e Ptolomeu Alexandrino, que não devem ter sido lidos diretamente mas através de João Sacrobosco, um comentador medieval, e dos cosmógrafos renascentistas portugueses D. João de Castro e Pedro Nunes, o tradutor de Vitrúvio. Há também uma tendência a incorporar a experiência colonial portuguesa, o que se percebe pelas referências a O sucesso do segundo cerco de Diu, de Jerônimo Corte-Real. Outras fontes utilizadas foram os já mencionados manuais enciclopédicos de arquitetura de Serlio e Cataneo. Não devemos, todavia, imaginar que a síntese produzida pelo fortificador anônimo fosse uma mera colagem construída a partir de suas fontes livrescas. Trata-se,

165

BNL cód. 3675. Manuscrito anônimo e não datado, atribuído, por Rafael Moreira, a António Rodrigues, arquiteto militar português que, segundo a mesma atribuição, o teria escrito na década de 1570. Utilizamos a transcrição que consta de MOREIRA, Rafael. Um tratado português de arquitetura do século XVI. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1982.

420

na realidade, de uma síntese interessada. Os diversos autores foram lidos através do filtro da experiência histórica portuguesa, que tendia a identificar os lugares altos como os que apresentavam as melhores possibilidades de defesa. No geral, o tratado procura articular a idiossincrasia locacional portuguesa com as novas técnicas de amuralhamento desenvolvidas na Itália, passando ao lado de certas questões formais propostas pelos tratados. Vitrúvio é recuperado para confirmar o acerto do posicionamento da cidade tradicional portuguesa no terreno. A questão das cidades ideais, simplesmente, não chama a atenção de nosso autor. Pelo conjunto das obras utilizadas como referência para a produção de seu texto, pode-se qualificar o fortificador como alguém relativamente bem informado. Se não há desinformação, como entender essa peculiar recepção, que deixa se lado a questão da morfologia urbana em uma literatura que privilegia aspectos formais? A que atribuir esse verdadeiro desinteresse? Um lado da resposta pode ser dado por uma característica cultural lusitana muito reiterada pela historiografia. As cidades estelares e reticulares, produzidas menos por Vitrúvio e mais por seus comentadores e ilustradores, eram a expressão de um fantástico cósmico que pouco dizia ao ‘espírito prático dos portugueses’. Também pode-se atribuir a essa mesma praticidade a ênfase dada às questões climático-sanitária. Como apresentamos anteriormente, no século XVI, as cidades de Portugal enfrentaram uma seqüência de epidemias. Muitas das novas cidades coloniais, estabelecidas fora da região temperada, revelaram-se verdadeiros túmulos do homem branco. Este quadro de sérios problemas de salubridade urbana explicaria a relevância dada pelos teóricos portugueses ao climático e ao topográfico na escolha dos sítios urbanos, em detrimento de questões formais. O tratado do fortificador anônimo, pelo simples fato de não ter sido publicado, teve circulação restrita. Todavia, há uma obra de outro autor português em que o conceito de sítio urbano é central e que teve larga difusão. Trata-se da obra já mencionada, Do sítio de Lisboa, um tratado em forma de diálogos, da autoria de Luís

421

Mendes de Vasconcelos, publicado pela primeira vez em 1608.166 O livro voltou ao prelo em 1786 e em 1808, período em que se afirma o sanitarismo urbano em Portugal. As outras edições são do século XX, quando a obra é já um documento histórico. Além de se apoiar na obra de Vitrúvio, citação obrigatória para quem abordava temáticas que incluíam a cidade, Vasconcelos remete a Tito Lívio, Plutarco, Plínio, Vegécio, Sócrates, Aristóteles e Platão. É difícil determinar o quanto as referências foram feitas baseadas em leituras diretas ou quanto se tratam de citações indiretas, colhidas nos livros dos muitos autores italianos que circulavam em Portugal. O historiador português António Sérgio considera que o livro de Vasconcelos “é fundado principalmente na observação do próprio autor” mas reconhece, além das influências de Platão e Aristóteles, a de João Botero, autor italiano do final do século XVI, que escreveu um tratado sobre a causas da grandeza e magnificência das cidades.167 Vasconcelos antecipa certas categorias analíticas ainda hoje válidas entre os geógrafos. Para ele, o que define o urbano são três ordens de relação entre as atividades humanas e o sítio: salubridade, abastecimento e defesa. Mais uma vez emergem os grandes medos medievais da peste, da fome e da guerra. Apesar deste ‘arcaísmo’, em sua obra, já está plenamente esboçada uma teoria de organização geo-econômica do espaço, que corresponde a circos concêntricos de mercados. Junto com os trabalhos de Giovanni Botero, nos quais foi buscar inspiração, podemos situar Vasconcelos na origem da teoria geográfica dos lugares centrais. Teoria que Christaller e seus seguidores encarregaram-se de dar vigor e continuidade em pleno século XX.168 A experiência colonial portuguesa também está presente nas referências a Diogo do Couto, um ácido crítico da fidalguia do oriente e dos métodos utilizados na

166

A primeira edição é VASCONCELOS, Luyz Mendez de. Do sítio de Lisboa; Diálogos. Lisboa: Officina de Luyz Estupinan, 1608. Utilizamos a edição mais recente VASCONCELOS, Luís Mendes de. Do sítio de Lisboa; diálogos. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. 167

VASCONCELOS. Do sítio. p.9. BOTERO, Giovanni. Delle cause della grandezza della citá. Roma: Giovanni Martinelli, 1588. Ver CURTO. Descrições. op. cit. p.131-45. 168

CURTO. Descrições. op. cit.

422

colonização da Índia. O próprio Vasconcelos é partidário das mesmas críticas, o que o levou a enxertar em seu tratado uma longa digressão sobre o tema, além de ter escrito outro livro especialmente dedicado a demonstrar o quanto a conquista da Índia era nociva a Portugal e a Lisboa. Para ele, o modelo ideal de colonização fora o adotado nas Ilhas e, depois, no Brasil. Em relação a Vitrúvio, percebe-se em Vasconcelos o mesmo tipo de recepção que caracterizou os demais autores portugueses do período.169 A questão da forma urbana é deixada de lado e as atenções voltam-se ao climático e ao topográfico. Vasconcelos foi buscar em Vitrúvio os argumentos destinados à afirmação da cidade portuguesa tal como ela existia e não à sua negação. Seus comentários sobre o sítio de Lisboa são exemplares quanto a esta maneira de se apropriar do autor romano. Em Vitrúvio, e em outros autores da antigüidade, estariam os argumentos que levavam a concluir pela excelência do sítio onde Lisboa estava localizada e o acerto de sua implantação no terreno. A leitura dos trechos onde Vitrúvio recomenda a instalação de cidades em lugares altos, em oposição aos baixios que seriam insalubres, é manobrada de forma a conduzir os leitores a concluir por sua preferência pelas meias-encostas, tal qual Lisboa.170 O autor romano é apresentado como defensor das cidades que derramamse por colinas, uma conformação bastante freqüente em Portugal e na Europa Meridional, onde, como já vimos, muitas cidades tiveram origem em castelos situados no alto de colinas e se desenvolveram ao longo das encostas. O autor procurou estabelecer a confirmação teórica da excelência da insolação de Lisboa através de um termo médio entre a preferência de Vitrúvio pelo leste e a de Sócrates pelo sul. Em sua orientação mais geral, Lisboa desenvolve-se em vertentes de colinas voltadas a sudeste. Conforme observou o arquiteto José Manuel Fernandes, esta é uma locação urbana muito freqüente em Portugal e nos Açores, onde

169

Até mesmo Francisco de Holanda, divulgador do maneirismo em Portugal, passaria ao largo da questão da cidade ideal. HOLANDA, Francisco de. Da fábrica que falece a cidade de Lisboa. Lisboa: Livros Horizonte, 1984. 170

VASCONCELOS. Do sítio.

423

predominam cidades ribeirinhas ou a beira-mar, instaladas em declives expostos a uma insolação sul ou sudeste.171 Vasconcelos ainda chama atenção para mais uma vantagem deste tipo de implantação urbana. Também no requisito da limpeza, as cidades localizadas nas encostas seriam favorecidas, já que, nas ladeiras, as chuvas se encarregam de levar os detritos até os rios. Esta vantagem era percebida pelos moradores das cidades, gerando certos hábitos que as câmaras municipais procuraram conter. Em Coimbra, por exemplo, os vereadores do século XV votaram uma postura ordenando “que nenhuma pessoa lance privados* nem lance cisco nas enxurradas que correm pelas ruas da cidade”.172 Muito se tem escrito sobre uma suposta incapacidade portuguesa de produzir cidades ideais renascentistas. Talvez, estejamos todos fazendo uma leitura errada da questão. E se, em vez de partirmos de um cânone italiano ou espanhol, tentando localizar exemplos em territórios portugueses, invertêssemos o processo, iniciando por outras perguntas? Qual era a cidade ideal portuguesa? Ela atendia a um cânone específico? Tomados em conjunto, os teóricos portugueses não deixam de projetar uma cidade ideal. Todavia, não se trata de uma idealidade definida pelo novo, como no caso espanhol, mas por aquilo que já existe. A preocupação maior recaía sobre as condições climáticas e topográficas e imaginava-se uma cidade de clima ameno, que se desenvolvesse em encostas e colinas e que dispusesse de um bom porto, para realizar sua vocação comercial. A cidade ideal da renascença portuguesa, simplesmente, confundia-se com Lisboa. Em decorrência de todas essas disposições corretas que os fados tinham dado a Lisboa, teríamos uma cidade imune às pestes e às fomes. Todavia, a Lisboa do tempo de Vasconcelos era o exato oposto disso.

171

FERNANDES, José Manuel. O lugar da cidade portuguesa. POVOS & CULTURA, Lisboa, Universidade Católica, número 2, 1987.p.86-8. 172

COIMBRA. op. cit. v.2. p.174. * privados = penicos (aproximadamente)

424

Como articular a Lisboa real, a fétida Lisboa assolada pelos surtos de pestes de toda ordem, a Lisboa das constantes fomes, com a Lisboa idealizada que nos apresentam Vasconcelos e tantos outros autores? Ocorre que a Lisboa produzida pelos textos apologéticos e afetivos é uma cidade ideal da mesma forma que as cidades ideais renascentistas. Uma é a projeção de uma lógica afetiva enquanto a outra quer ser materialização de abstrações geométricas, ou de fantasmagorias cosmológicas, disfarçadas em racionalidade formal. A transferência de ambos os modelos para o universo colonial foram experiências frustradas. A cidade reticular espanhola reduziu-se a um mero formalismo burocrático e repetitivo. Da mesma maneira, a cidade ideal portuguesa, ao ser espalhada pelo mundo insistiu em afastar-se da Lisboa ideal e assemelhar-se à real. Na segunda metade do século XVIII, assiste-se à emergência daquilo que pode ser considerado uma ciência do saneamento propriamente dita. Buscava-se superar as sistematizações empíricas do renascimento e conformar uma política sanitária, em substituição às atuações episódicas dos séculos anteriores.173 Quem melhor definiu o sanitarismo do século XVIII foi o historiador francês Alain Corbain, um dos principais estudiosos contemporâneos deste tema.

[A] política sanitária que então se estrutura inspira-se num passado já distante, assombrado pelo nauseabundo; ela assume práticas herdadas da ciência antiga, ressurgidas no campo dos regulamentos urbanos [as nossas posturas municipais] por volta do século XIV. No entanto, esse higienismo não se restringe à reutilização (do dejeto): a evolução das convicções médicas e, mais ainda, os progressos da química já asseguram sua modernidade. A estratégia sanitária que se modela então não mais se reveste com o caráter episódico daquela que se desenvolvia quando grassavam epidemias; ela pretende chegar à permanência; ela opera uma síntese; ela coordena as decisões de uma forma edilitária.174

173

Não é de se estranhar, portanto, que os diálogos de Vasconcelos, sobre o sítio de Lisboa, tenham sido reeditados em 1786 e em 1808. 174

CORBIN, Alain. Saberes e odores; o olfato e o imaginário social nos séculos dezoito e dezenove. São Paulo: Cia. das Letras, 1987. p.119.

425

Como ele mesmo afirma, tratava-se de uma pretensão. No mundo português, é duvidoso que, no século XVIII, o sanitarismo tenha atingido tal amplitude. Diga-se, de passagem, que seu alcance foi muito limitado, em toda a Europa. Manuel da Maia, para fazer a sua Dissertação sobre a reconstrução de Lisboa, informou-se sobre as maneiras utilizadas nos diversos países europeus para “preservar as ruas livres dos embaraços que as fazem imundas”. Assim, apresenta três métodos alternativos para que fosse escolhido aquele que seria adotado em Lisboa. O primeiro, fazer “pelo meio das ruas principais cloacas com capacidade para receberem as águas e todas as superfluidades dos edifícios”. O segundo, criar um serviço de “carretas visitando de manhã as ruas”.

Consiste o terceiro em deixar livre entre cada duas ruas, e as duas ordens de edifícios que as formam por uma de suas partes uma rua estreita de cinco ou seis palmos que chamam, alfugere, sem que hajam para ela portas, mas só janelas de que se lancem nela as tais superfluidades, que no Outono costumam ser extraídas pelos carretões, para serem lançadas em lugares determinados; e em algumas partes da Cidade se achavam as tais alfugeres, posto que com o inconveniente de infeccionarem o olfato dos moradores daquelas casas a que ficam contíguas, que necessitam de vidraças para moderarem aquele inconveniente, ou costumarem a sofrê-lo.175

O próprio Maia se encarrega de deixar claro que não há nada de muito novo nessas soluções. Os tais alfugeres já existiam na cidade. As carretas significavam apenas a adoção de um novo meio de transporte em substituição aos antigos carregadores de canastras ou às mulas, que nesta época, passavam por Lisboa recolhendo detritos. Cloacas também existiam, há muito, em Lisboa e em outras grandes cidade de Portugal e das colônias. Essa ciência sanitária estava ainda por demais submetida ao saber olfativo medieval, para permitir que ela atingisse uma nova efetividade. No entanto, não se pode dizer que a ação foi nula. Basta lembrarmos a construção dos aquedutos de Lisboa e do Rio de Janeiro, as duas grandes capitais do Império.

175

MAIA, Manuel da. Dissertação sobre a reconstrução de Lisboa. 19 de abril de 1756. conforme transcrito em FRANÇA, José Augusto. Lisboa pombalina e o iluminismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1965. p.303.

426

Em Belém, capital do Estado do Maranhão e Grão-Pará, iniciou-se a drenagem do alagado do Piri, que dividia a cidade em duas metades. A lagoa do Junco, em São Tomé, foi dessecada na década de 1780, pelo capitão da ilha, que se valeu de soldados e de escravos fornecidos pelos moradores.176 No Rio de Janeiro, nova capital do Estado do Brasil e cidade portuguesa que mais se expandiu no século XVIII, foram drenados alguns charcos, como os do Boqueirão e do Desterro, e aterrado o mangue utilizado para implantar o Passeio Público.177 Todavia, não se pode afirmar que o saneamento dos baixios cariocas seja representativo do novo sanitarismo setecentista. Trata-se apenas da continuidade de um longo processo que se iniciara no século XVII, quando a cidade progressivamente abandonou o seu núcleo inicial acastelado e espalhou-se pela planície alagadiça. Este, e não outro A nova eficácia pretendida pelo salubrismo setecentista e, também, os seus limites, são mais visíveis nas propostas de mudança de cidades do que na drenagem de algumas áreas alagadiças. No século XVIII, os antigos dilemas sanitários foram levados a um novo patamar. Não se tratava mais de fugir ou ficar ou de trancar ou abrir as casas atingidas pela peste. O clássico dilema ganhara uma nova dimensão: mudar ou não mudar cidades inteiras, eis a nova questão. Algumas transferências de cidades chegaram, de fato, a ocorrer. No entanto, o setecentto foi mais pródigo em planos mirabolantes que nunca saíram do papel. A perda de cidades inteiras por motivos sanitários não era exatamente uma novidade no universo português. Veja-se o caso de Silves “toda ela despovoada e com pouca gente que todos moram fora em quintas e pelos lugares do termo, e isso dizem ser

176

NEVES, Carlos Agostinho das. São Tomé e Príncipe na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Instituto de História do Além-Mar, 1989. p.171. 177

O diálogo entre a cidade e suas regiões pantanosas BERNARDES, Lysia M. C. Evolução da paisagem urbana do Rio de Janeiro até o início do século XX. In: ABREU, Maurício de Almeida (org.). Rio de Janeiro: Prefeitura Municipal, 1992. p.43 e ss.

427

por causa do Ar, mau, e ser ela pouco sadia”, segundo o engenheiro italiano Alexandre Massaii, que a visitou no início do século XVII.178 Nas colônias, a transferência de cidades ou planos de fazê-lo devido a insalubridade dos sítios onde foram instaladas vinha ocorrendo desde o século XVI. Fora este o motivo apontado para criar Salvador em local diferente da vila do Pereira. Salvador Correia de Sá fez planos para transferir Benguela da região pantanosa onde se encontrava, para a Catumbela, “sítio alto e sadio de terras frutíferas de mantimentos”. Todavia “o primeiro donatário da área destinada à tranferência morreu e o segundo enloqueceu e a transferência jamais foi realizada”.179 Por duas vezes pensou-se em transferir Belém de seu sítio original.180 A resistência dos moradores e o custo desta transferência impediram que a cidade fosse levada para a ilha do Marajó. Em 1699, o padre Bettendorff explicava tanto os motivos para a mudança, como os para a permanência da cidade em seu sítio original.

Todos até agora julgam a eleição do sítio do Pará um erro, e que muito era se estivesse mais para o mar, onde há bom porto, boas terras, bons ares, melhores águas, e abundância de peixes e mariscos; mas isto já não tem remédio, principalmente já estando edificadas as igrejas e conventos, e mais edificadas as fortalezas, e ultimamente a de Nossa Senhora das Mercês que está à vista da cidade, feita de pedra e cal.181

Todavia, algumas pequenas vilas foram transladadas pela própria iniciativa dos habitantes. A câmara da vila maranhense de Icatu, por exemplo, solicitou à coroa, em 1755, permissão para mudança de sua sede urbana. Na representação enviada a

178

GUEDES, Lívio da Costa (ed.). Aspectos do Reino do Algarve nos séculos XVI e XVII; a “Descripção” de Alexandre Massaii (1621). Lisboa: Arquivo Histórico Militar, 1988. p.120. 179

DELGADO, Ralph. História de Angola. Lobito: Livraria Magalhães, 1961. 2.ed v.3, p.43-

4. 180

PENTEADO, Antonio Rocha. Belém do Pará; das origens aos fins do século XVIII REVISTA DO INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS, São Paulo, 3, 1968. p.40. 181

BETTENDORFF, Pe. João Felippe. Chronica da missãodos padres da Cia de Jesus no Estado do Maranhão. Citado de MEIRA FILHO, Augusto. Evolução histórica de Belém do Grão-Pará. Belém: s. ed., 1976. v.1, p.412.

428

Portugal, solicitando a autorização necessária, o principal argumento mencionado pelos moradores foi a insalubridade do local onde fora edificada a vila.

[A vila de Santa Maria do Icatu] mandada fundar por S. Majestade, há mais de 60 e tantos anos, se achava toda extinta de moradores e sua escravatura pela paragem ser muito doentia, e por essa causa se não animavam muitos moradores deste Estado a viverem para ela pelo que estavam presenciando na mortandade [....] como também pela falta de comércio por ficar fora de passagem, e o porto de mar distante.182

Em resposta à petição, a coroa encarregou o governador de tomar as medidas cabíveis. Após consulta ao “ouvidor, câmara, nobreza e povo” foi escolhido o novo sítio da vila, a Boca do Muni, “pela razão de ser este lugar de bom terreno para a fundação, com planície suficiente para a planta da dita vila, bom porto e passagem de todos os viandantes que desciam e subiam o rio Iguara”.183 Percebe-se que, mesmo no caso desta pequena localidade, a insalubridade não pesou isoladamente na decisão de transferir os moradores. Ela também aparece vinculada a um fator de ordem econômica. A facilidade com que os habitantes de Icatu dispõem-se a abandonar o sítio original pode ser atribuída ao fato de que a vila era de recente fundação e mal chegara a ser ocupada. Em cidades mais antigas, os habitantes eram mais arraigados e os planos de transferência conduzidos pela coroa com propósitos sanitários costumavam frustrarse pela surda resistência dos moradores. Foi o caso de Sena, cujo sítio era considerado dos mais insalubres de Moçambique. Como forma de viver naqele local inóspito, os habitantes de Sena passaram a utilizar certos preceitos sanitários inovadores, se lembrarmos que se vivia numa época pré-microbiana. Embora, desde a Idade Média, houvesse o costume de ministrar ‘água cozida’ aos doentes, esta forma de prevenção não era, de forma alguma, usual no século XVIII.

182

MARQUES, César Augusto. Dicionário Histórico-geográfico da Província do Maranhão. São Luís: SUDEMA, 1970. p.66. Citado de RÖHRING-ASSUNÇÃO, Mathias. Transferência de vilas no Maranhão oriental. CADERNOS DE PESQUISA, São Luís, v.5, n.2, jul.-dez.1989. p.148. 183

RÖHRING-ASSUNÇÃO. Trnasferência. p.149.

429 É esta vila situada na margem do rio, em uma baixa, situação antiquíssima; cercada à roda de montes altos, e cheios de matos, o que a faz ser doentia. Bebe-se a água do rio, por não haver na Vila fontes, e é o outro motivo que concorre para ser doentia. Costuma-se deitar esta água em grandes talhas para assentar, e ao depois, filtrada por umas pedras, que há para isso, se bebe; porém algumas pessoas usam da precaução de mandar ferver, ou simplesmente ou com grama, e ao depois de fria a bebem, e dão-se melhor com esta receita.184

Em 1752, ainda antes de Sena ser elevada à condição de vila, levantou-se a hipótese de mudá-la dos baixios onde se situava para a serra de Marambala “em melhor sítio, muito saudável”185. A coroa encarregara Inácio Caetano Xavier de desenhar o prospecto da serra para se estudar a mudança. Todavia, o próprio funcionário chegou à conclusão de que se o sítio da vila não era bom “os primeiros moradores acharam alguma conveniência em escolher este, e não outro, que fosse melhor”.186 A idéia foi oficialmente abandonada pela coroa face aos altos custos da operação de transferência e a uma provável resistência dos moradores. Tem razão Braudel, quando afirma que quando uma “cidade se desenvolve num dado lugar, agarra-se a ele e não o deixa mais, salvo raríssimas exceções”.187 O autor atribui tal fenômeno a certas vantagens competitivas oferecidas por determinados locais, os quais levam à sua escolha, apesar da existência de aspectos negativos. É o mesmo raciocínio desenvolvido por Xavier para justificar a permanência de Sena em seu sítio original. A vila situava-se em local comercialmente estratégico do delta zambeziano e ali permaneceu apesar da insalubridade.

184

MOÇAMBIQUE. Instrução que o governador Baltazar Manuel Pereira do Lago deixou para quem o sucedesse. 1768. In: ANDRADE, António Alberto de. Relações de Moçambique setecentista. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1955. op. cit. p.356. 185

MOÇAMBIQUE. Carta de Diogo Corte Real, 20 de abril de 1752. (AHU. cód. 1307). In: ANDRADE. Relações. p.579. 186

MOÇAMBIQUE. Notícia dos domínios portugueses na costa da África Oriental. In: ANDRADE. Relações. p.162. 187

BRAUDEL, Fernand. Civilização material e capitalismo. Lisboa: Cosmos, 1970. p.420.

430

Qual outra Tróia ou a famosa Palmyra! Icatu ou Sena foram vilas relativamente desimportantes no conjunto do Império Colonial Português quando comparadas a algumas cidades notáveis, cujas perdas também foram atribuídas à insalubridade. A progressiva atrofia da cidade de São Tiago, cabeça do arquipélago de Cabo Verde, e grande centro do tráfico de escravos, chamou a atenção de quantos a visitaram. Suas ruínas costumavam estimular a sensibilidade livresca dos funcionários ilustrados portugueses do final do século XVIII e começo do XX.

A cidade está qual outra Tróia, só com a diferença do sucesso. Está deserta de seus habitantes que conhecidos de uma conhecida e vergonhosa inação a desampararam, buscando os campos, onde vivem de tal sorte aborrecidos, que para ela voltarem são necessárias ordens positivas [....].188

O feitor Antônio Pinto descreve uma cidade ainda semi-habitada, mas, quatro décadas depois, José Conrado Chelmicki, parceiro de Varnhagen na Corografia caboverdeana, iria encontrá-la em quase completo abandono. O texto de Chelmicki é saturado de influências românticas e é com prazer que ele percorre os escombros da antiga cidade.

Esta noutro tempo possuiu muitas e boas casas de pedra e cal, e até muita cantaria de Portugal; havia ali casas acasteladas, no gosto da arquitetura do 16 século, resultado da combinação dos elegantes arabescos e suas esbeltas e soberbas colunas, com grandiosos maciços góticos; algumas ainda arrostando as injurias do tempo, ficaram em pé, como se fossem protegidas por brasões gloriosos, que lhe avultam sobre as vergas das suas portadas!... hoje uma térrea choupana procurou abrigo debaixo da massa desta ou daquela torre, e rente do chão, à sombra das folhas das palmeiras, vegeta uma desgraçada família de negros, ignorante do passado, deixando correr o presente e sem curar do futuro, quais vemos os pastores que ora habitam nas ruínas da famosa Palmyra!... 189

188

CARREIRA, António. Documentos para a história das ilhas de Cabo Verde e “Rios da Guiné”. Lisboa: Ed. do autor, 1983. p.176. 189

CHELMICKI, J. C. C. & VARNHAGEN, F. A. Corografia Cabo-verdeana. Lisboa: Typ. de L. C. da Cunha, 1841. v.1, p.68-9.

431

A referência à Palmira não era fortuita. Na última década do século XVIII, Volney publicara o seu famoso Les ruines, ou Meditations sur les révolutios des empires, obra de imensa repercussão no oitocentto.190 No frontispício, existe uma gravura onde Volney aparece a contemplar as ruínas desta cidade romana da Síria, por onde circulam os pastores a que se refere Chelmicki. Ruínas, como as de Palmira ou São Tiago, convidavam a refletir sobre a efemeridade dos impérios. Ao lado destas descrições românticas, os funcionários portugueses exercitam outro de seus discursos correntes: o do salubrismo. A cidade estava deserta por fatores de ordem locacional e sanitária.

A Cidade é exposta todos os dias aos ardentes raios do sol, rodeada de montanhas tão altas que não deixam penetrar o vento, a não ser pela ribeira que também em pequena distância acaba entre as contíguas serras. Este vale ou ribeira regadia exala vapores, que naturalmente são prejudiciais; as casas por dentro estão sempre úmidas; os freqüentes danos que causavam as grossas pedras destacadas dos rochedos, e além disso o péssimo porto, motivaram o abandono desta povoação.191

É mais provável que o abandono de São Tiago tenha sido provocado pela quebra da equação mencionada por Duarte Pacheco Pereira. Rompera-se o equilíbrio entre a insistência em ficar e as vantagens econômicas que o local proporcionava. O sítio da cidade era reconhecidamente insalubre, desde a sua fundação. Mesmo assim ela prosperou como um grande entreposto de escravos no Atlântico e como centro de tributação do tráfico. O historiador cabo-verdiano António Carreira também atribui o abandono da cidade à aspereza do clima do arquipélago. Freqüentes secas são seguidas de anos chuvosos, os quais não constituíam exatamente um alívio, pois, nessas ocasiões, os moradores da Ribeira eram acometidos da carneirada, nome pelo qual a malária ficou

190

VOLNEY, Comte de. Les ruines, ou méditations sur les révolutions des empires. Paris: Desenne, 1792. Ver JUNOD, Philippe. O futuro no passado. GÁVEA; Revista de história da arte e arquitetura. Rio de Janeiro, PUC-Rio, n.4, jan.1987. p.106-29. Segundo o autor, Volney não conheceu pessoalmente as famosas ruínas, mas através das gravuras do arqueólogo inglês Robert Wood. 191

CHELMICKI & VARNHAGEN. Corografia. v.1, p.68-9.

432

conhecida nas possessões africanas. Todavia, Carreira não se restringe à questão climática e menciona um aspecto de ordem econômica. Era em São Tiago que os navios negreiros procedentes da Guiné, com destino ao Brasil, faziam o registro de sua carga e pagavam os tributos correspondentes. A partir de 1795, a tributação passou a ser feita no próprio continente e a cidade perdeu a maior parte de suas receitas fiscais, o que provocou um êxodo dos habitantes para as fazendas no interior da ilha, para a vila da Praia ou mesmo para o Brasil.192 Do outro lado do mundo, a capital do Estado da Índia, padeceu de um mal semelhante. A principal causa do processo de decadência de Goa, a Dourada, foi a perda da maior parte das possessões portuguesas do oriente para os holandeses, que, durante o século XVII, submeteram a cidade a prolongados períodos de sítio. Mas não foi apenas isso que provocou o progressivo abandono da cidade. Desde sua fundação, Goa foi um sorvedouro de homens brancos. Assim que desembarcavam dos galeões, soldados, marinheiros, fidalgos, sacerdotes e comerciantes eram logo acometidos de febres e disenterias que consumiam um bom percentual dos recém chegados. Para ‘fazer a Índia’, antes era preciso sobreviver. O problema agravou-se a partir de 1535, quando a cidade foi acometida por uma severa epidemia de cólera. Desde aquele momento, a questão da salubridade sempre esteve nas preocupações da coroa portuguesa e dos seus moradores. Todavia, a mais famosa epidemia de Goa foi a de 1570, atribuída ao apodrecimento de um elefante. A imagem do elefante morto, decompondo-se lentamente na lagoa da Carambolim, permaneceu indelével na memória dos goeses, transformando-se num fantasma sanitário que periodicamente assombrava a cidade. Apesar deste fantasma, Goa conseguiu permanecer e expandir, mas apenas enquanto a perspectiva de enriquecimento conseguiu sobrepor-se aos riscos. Ao longo do século XVII, a conjunção entre as guerras holandesas e os periódicos surtos de cólera causou o despovoamento da cidade. Acabado o ciclo das riquezas do oriente, a

192

CARREIRA. Documentos. p.204.

433

insalubridade de Goa assusta cada vez mais. A cidade não mais oferecia a ilusão da riqueza fácil e, portanto, já não valia a pena correr o risco viver naquele local pestífero. Lentamente, Goa se dissolveria, “desamparada” dos moradores que partiam “buscando cada qual a sua saúde que não achavam na mesma cidade”.193 Goa e São Tiago foram casos clássicos de desurbanização. Em São Tiago, a população urbana simplesmente desertou a cidade, trocando-a pelas propriedades rurais. Já, em Goa, ocorreria um processo de suburbanização. Os moradores remanescentes mudaram-se, aos poucos, para o equivalente indo-português das quintas de recreio. As moradias secundárias tornaram-se permanentes enquanto o núcleo urbano foi-se arruinando. Em ambos os casos, o desaparecimento físico da cidade não foi acompanhado do desaparecimento imediato das instituições urbanas. As câmaras municipais de Goa e da Ribeira Grande sobreviveram às respectivas sedes, principalmente pela incapacidade operacional do estado português nestas colônias, que, à altura, eram um ônus a carregar em nome das glórias passadas. As duas cidades sofreram atabalhoadas tentativas de transferência, marcadas pela hesitação e pelo insucesso.194 Do juízo que formaram das doenças e das mortes A tentativa de reconstrução da capital do Estado da Índia permite perceber, com perfeição, os limites do sanitarismo do século XVIII. Durante o período pombalino, os portugueses propuseram-se a reconstruir a velha Goa em seu sítio original, num ato simbólico de revivescência das glórias passadas do Império do Oriente. Entretanto, o projeto esbarrou na alta mortalidade dos trabalhadores indianos convocados para a obra, o que levaria a um breve abandono do projeto.

193

194

GOA. Pareceres. op. cit. p.359.

A primeira tentativa de transferência de Goa foi conduzida pelo Vice Rei Conde de Alvor, que em 1684 transferiu a sede do governo para Mormugão. O projeto foi abortado pela própria reação dos moradores. Ver PEREIRA, A. B. de Bragança. As capitais da Índia Portuguesa. Nova Goa: Imp. Gonçalves, 1932. p.41 e ss. MARTINS, J. F. Ferreira. Mudança da cidade de Goa para Mormugão. O ORIENTE PORTUGUÊS. v.7, 1910. p.34-42, 89-100.

434

Em 1779, já no governo de D. Maria I, o Capitão-Governador da Índia, responsável por dar continuidade à reconstrução de Goa, enfrentaria pessoalmente a questão de salubridade do lugar. Tanto ele, como o regimento sob seu comando, estacionado no colégio de São Roque, dentro da cidade velha, foram atingidos por diversas doenças. Acometidos por um surto de cólera, os trabalhadores indianos requisitados das aldeias vizinhas para a reconstrução da cidade desertaram. Frente a todas essas dificuldades, o governador acabaria ordenando que a câmara, em conjunto com diversos peritos, produzisse um relatório circunstanciado sobre o problema sanitário de Goa, o qual deveria contemplar os seguintes tópicos.

1o - Do que viram e examinaram; 2o - Do juízo que formaram das doenças e mortes; 3o - Quais serão os remédios que pareçam mais próprios para purificar o ar para preservar os cidadãos e habitadores da cidade contra as doenças, e para cessarem as causas delas; 4o - Se a cidade no atual e presente estado se pode habitar sem grande risco dos cidadãos e vida dos vassalos de Sua Majestade que forem residir, ou, pelo contrário, se exporão a adoecer e morrer uma grande parte indo morar.195

Os pareceres produzidos em resposta à solicitação do governador constituem uma das mais ricas fontes para se conhecer o salubrismo setecentista português. Tomados em conjunto com outros documentos produzidos por funcionários coloniais, durante os reinados de D. José e de D. Maria I, é possível perceber que a nova ciência do sanitarismo ainda não ultrapassara os limites olfativos dos séculos anteriores. É verdade que alguns dos velhos métodos medievais, utilizados na purificação de atmosferas corrompidas, haviam entrado em desuso ou eram criticados pelos funcionários ilustrados do final do século XVIII. Vamos encontrar, em muitos relatos, um certo consenso sobre a inutilidade da queima de alfazemas e outras ervas perfumadas, procedimento que havia sobrevivido por séculos e ainda era uma prática corrente em muitas localidades do império.

195

GOA. Pareceres. op. cit. p.361.

435 Os Magistrados ignorando talvez de onde dimanam as pútridas exalações que sentem, se contentam em as corrigir com alfazema e açúcar; porém a experiência nos adverte que esses momentâneos aromas não evitam as suas péssimas conseqüências.196

Neste comentário sobre os odores nauseabundos da Luanda setecentista, Elias Correia estava convicto da ineficácia do uso de contra-aromas e de que a única forma de combater as doenças era a limpeza e a conseqüente desodorização da cidade. No caso de focos de odores putrefatos resultantes de atividades econômicas consideradas essenciais (tráfico de escravos, comercialização e conservação de carnes e peixe) o remédio era transferi-las para a periferia dos núcleos urbanos. Todavia, as teorias aromáticas de purificação atmosférica ainda sobreviviam entre os especialistas do saneamento, mas com uma alteração radical. Desde a década de 1720, houvera uma progressiva substituição dos aromas perfumados por odores de origem química. Como forma de minorar os efeitos nocivos da irremediável atmosfera pestilencial goesa, alguns de seus estudiosos propuseram “fazer muita fumaça, queimando por toda cidade barris de alcatrão e pólvora”.197 O mesmo procedimento era adotado para desinfetar a atmosfera nauseabunda dos porões dos navios negreiros. Apesar do descrédito quanto à sua eficácia, a queima de ervas aromáticas nunca foi de todo abandonada. Quando a peste se instalava, por via das dúvidas acendia-se uma vela aromática para Deus e outra, química, para o Diabo. Ou seja, os “louros e alcatrões” queimados na epidemia que atingiu a ilha de São Miguel, nos Açres, em 1793.198 Se as teorias aromáticas já viviam o seu ocaso, as de aeração estavam mais vivas do que nunca. Entre aqueles que apresentaram pareceres sobre o caso de Goa, havia quase consenso de que o grande problema da cidade era a sua localização num baixio úmido, ao pé de um conjunto de morros que impediriam a boa circulação do ar. Dizia um deles.

196

CORREIA. História de Angola . p.80.

197

GOA. Pareceres. op. cit. p.364.

198

PONTA DELGADA. Posturas século XVIII. op. cit. p.375.

436 Vi e observei que a cidade de Goa está situada em vale que formam quatro montes que esta situação, a qual sem dúvida é a mais triste que consideram os geógrafos, é a mais funesta para se formar qualquer povoação.199

Os mais radicais quanto à inviabilidade de se reconstruir a capital indiana em seu antigo sítio valiam-se de argumentos retirados nas teorias da aeração. Um dos peritos envolvidos aproveitou para exercitar a sua ironia sobre as maneiras de eliminar as causas das epidemias de Goa.

Para se tirar as causas e cessar os efeitos há um só único e impraticável remédio que é demolir os montes e levantar o plano de sorte que fique a cidade enfiada para todos os ventos.200

Entrava em cheque o próprio costume português de se construir sobre ou junto a morros, escarpas e colinas. As cidades a beira mar, ou beira rio, que seguiam os paradigmas locacionais de Lisboa e Porto, tornaram-se, nos discursos deste final de século XVIII e começo do XIX, intrinsecamente insalubres por sua própria localização. À freqüente divisão das cidades portuguesas em uma parte alta e outra baixa passaria a corresponder a uma outra cisão, que as dividia em metades salubres e insalubres, da qual Luanda é um típico exemplo.

É notavelmente sensível a diferença, que há de salubridade desta parte da cidade [a cidade alta], para aquela da parte baixa. A falta de viração, a exalação das Casas da escravatura, e a que resulta das palhas, com que são cobertas as muitas cubatas dos pretos, e menor limpeza, que, apesar de muitos cuidados, existe às vezes junto às praias, produzem nos tempos imediatos às chuvas, os terríveis efeitos, que com muita razão tornam a Cidade de Luanda temível, principalmente nos meses de abril e maio.201

No outro lado do Atlântico, um diagnóstico idêntico aos de Goa e Luanda. Os morros do Castelo e de Santo Antônio eram acusados da insalubridade do Rio de

199

GOA. Pareceres. op. cit. p.353.

200

GOA. Pareceres. op. cit. p.358.

201

[AHU. Angola, Caixa 69, 1824-1826]. Citado de AMARAL, Ilídio do. Luanda; estudo de geografia urbana. Lisboa: s.ed., 1968. p.53.

437

Janeiro pois impediam “toda a viração do mar, tão necessária debaixo da zona tórrida”.202 A grande diferença entre Goa e o Rio, é que na cidade que se tornou a capital do império, a idéia de “demolir os montes” não era tomada como pilhéria. Após um longa seqüência de planos mirabolantes, que começa no século XVIII, a tecnologia do século XX veio mostrar que não era tão impraticável transformar drasticamente a paisagem. e a solução seria finalmente aplicada para modernizar e sanear o Rio de Janeiro. Voltemos, porém, às ruínas da velha Goa. A teoria da aeração dava azo não só a reprovar o sítio da cidade mas, também, a maneira como ela fora edificada. A orientação de suas ruas também era apontada como causa de insalubridade.

Além dos edifícios públicos e casas novas não tem na cidade mais ruas do que a direita e dos canos. E as casas destas ruas e de outras poucas que existem fora delas e os vestígios destas ruas mostram que a Cidade não estava situada na direção dos ventos principalmente o do Noroeste mais útil neste clima sentindo-se nela assim de dia um insuportável calor de verão.203

Perceba-se que, quanto à orientação das ruas, há uma clara inversão entre o que está sendo proposto no final do século XVIII e as prescrições dos tratados renascentistas e a legislação derivada deles nos séculos seguintes. As famosas Recopilaciones de las Leyes de Indias previam uma atitude exatamente contrária. A orientação das ruas nunca deveria coincidir com a direção dos ventos dominantes, para evitar que os mesmos fossem encanados. Afora a má orientação das ruas, as cidades coloniais portuguesas estariam comprometidas pela própria arquitetura, que era sumariamente reprovada no quesito da aeração sanitária. A principal condenação recaía sobre as camarinhas, os quartos, que

202

Sobre o arrasamento dos morros cariocas ver as notas de Noronha Santos à conhecida descrição que o padre Perereca fez do Rio de Janeiro, nos tempos em que a corte portuguesa adotou-a como capital do império. SANTOS, Luiz Gonçalves dos. (Pe. PERERECA). Memórias para servir à história do reino do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Editora Zélio Valverde, 1943. v.1. p.74-5. 203

GOA. Pareceres. op. cit. p.345

438

tanto na matriz como nas colônias, eram construídos sem que suas janelas abrissem para fora das edificações.

As ditas casas existentes manifestam que foram edificadas sem consideração alguma de saúde não lhes entrando ar em alguns quartos e tendo outros encostados a quintais mais altos do que os mesmos quartos: observo pela grossura do ar deles que tendo estado as mesmas casas [....] fechadas muito tempo não têm ventilação precisa do dito elemento.204

Diagnóstico muito semelhante àquele feito pelo naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, à respeito da arquitetura de Barcelos, sede da capitania amazônica de São José do Rio Negro.

Sendo a terra tão úmida como é, vê-se bem quão pequeno é o cuidado que lhes merece a conservação da sua saúde, porque em vez de levantarem da terra os pavimentos dos edifícios, e tratarem de dissipar deles a umidade que os persegue, rasgando nas casas um suficiente número de portas e janelas que as arejem, pelo contrário e rentes com o chão, ajudando a encarcerar mais o ar as chamadas gurupemas, de um tecido de palha tão miúdo, que apenas se distingue o vulto de quem espreita de dentro para fora das janelas.205

Em Goa, o uso de janelas feitas com conchas translúcidas, engenhosa solução local adotada pelos portugueses nos primeiros séculos da conquista, causava espanto e era elogiada pelos viajantes europeus que conheceram a cidade.206 No século XVIII, as mesmas janelas foram sumariamente condenadas, pois eram consideradas insuficientes para afastar a nociva umidade que consumia a saúde dos moradores. Da mesma forma, condenavam-se as esteiras - urupemas ou gurupemas - solução também local, adotada na Amazônia e em outras regiões do Brasil.

204

GOA. Pareceres. op. cit. p.345

205

FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem philosophica pela capitania de São José do Rio Negro. RIHGB, XLIX, 1866, p.182. 206

“Os edifícios [....] não usam vidraças, mas em vez delas servem-se de cascas do ostras mui delgadas e lisas, que encaixilham em grades de madeira; e deixam passar a luz como se fosse papel ou chavelho, porque não são tão transparentes como vidro”. LAVAL, Francisco Pyrard de. Viagem. Porto: Civilização, 1944.

439

Em 1769, o marquês do Lavradio expediu ordem aos habitantes de Salvador obrigando que retirassem “uma espécie de esteiras velhas, que todos tinham nas portas, e nas janelas, fazendo a cidade mais fúnebre e ridícula”. Em sua correspondência, gabava-se do feito, afirmando que “as memoráveis urupemas já fiz desaparecer em forma que nem uma só se vê”.207 No Rio de Janeiro, quando assumiu o cargo de vice-rei, ele tomou medida semelhante e mandou arrancar os peneiros, nome que na cidade era dado às gurupemas.208 Passadas três décadas, a mesma medida seria adotada no Recife pelo governador Tomás de Melo.209 Todavia, alguns relatos de viajantes nos mostram a persistência do uso de esteiras em portas e janelas de todo o Brasil ainda no século XIX. A difusão de vidros planos em Portugal foi bastante tardia em relação aos demais países da Europa. Embora, desde a Idade Média, existissem janelas envidraçadas, elas eram raridades encontradas nas casas de um ou outro nobre ou cidadão abastado. Com mais freqüência, as janelas eram guarnecidas de rótulas, tramas de madeira que eram reminiscência dos muxarabis das casas muçulmanas. Com a construção da fábrica de vidros da Marinha Grande, incentivada pelo marquês de Pombal, o uso de janelas envidraçadas difundiu-se em Portugal e nas colônias, tornando-se, para os funcionários ilustrados, numa quase obrigatoriedade.210 Com a chegada da família real ao Brasil, a guerra da aeração faz novas vítimas, desta vez as rótulas e gelosias. Uma ordem do intendente geral da polícia, datada de 11 de junho 1809, daria um prazo de apenas oito dias para acabar com o “gótico costume”. Elas deveriam ser arrancadas de todos os sobrados porque, “além de

207

LAVRADIO, Marquês do. Cartas da Bahia. 1768-69. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1972. p.95 e 100. O fato é relatado em VILHENA, Luiz dos Santos. Recompilação de notícias soteropolitanas e brasílicas. Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1921. v.1, p.91-2, que explica que “são as urupemas um tecido, de canas bravas rachadas”. 208

PIZARRO. Memórias. v.5, p.174.

209

Ver SMITH, Robert C. Arquitetura civil no Brasil colonial. In: ARQUITETURA CIVIL. São Paulo: FAU-USP; MEC-IPHAN, 1975. v.1, p.172. 210

Sobre a difusão de janelas envidraçadas em Portugal e no Brasil, ver SMITH. Arquitetura. p.173-5. Ver, também, CASTELO-BRANCO, Fernando. Lisboa seiscentista. Lisboa: s.ed., 1969. p.77-8.

440

serem incomodas, prejudiciais à saúde pública, interceptando a livre circulação do ar”, mostravam “a falta de civilização dos seus moradores”.211 Sob o signo do elefante morto Um dos pareceres mais interessantes sobre as causas da insalubridade do sítio de Goa foi produzido por Matthias Fernandes de Noronha e Cosme Gabriel Fernandes, cujas qualificações desconhecemos. Para aqueles que consideravam, como causa das doenças, o estado de consevação em que foram encontrados canos e poços, eles lembravam que a situação deplorável em que estavam era resultado dos muitos anos de abandono da antiga capital do oriente. Mesmo porque, a primeira grande epidemia se instalara muito antes do entulhamento, precisamente em 1570, quando “na alagoa de Carambolim se tinha lançado um elefante morto com cuja corrupção entrara a peste”.212 Aos que consideravam o excesso de vegetação como causador das moléstias, contraargumentaram que os palmares eram uma conseqüência das pestes e não causa. Eles só passaram a existir no interior do quadro urbano quando a cidade foi abandonada devido às epidemias. Após examinar, ponto por ponto, as diversas hipóteses aventadas pelos outros pareceristas, acabam por confessar o despreparo para lidar com a situação. “Dizemos que só a Deus é patente a verdadeira causa de ficar doente o sítio da cidade.”213 Estávamos em 1779, ou seja 431 anos desde que a peste negra irrompera na Europa. No entanto, persistiam as mesmas dúvidas expressas pelo carmelita Jan de

211

SANTOS (Padre Perereca). Memórias. v.1, p.298.

212

GOA. Pareceres. op. cit. p.355. Através deste relato é possível saber quem, no século XVIII, atualizara a lenda do elefante morto. Eles se referem ao “historiador do Oriente conquistado”. Trata-se de Francisco de Sousa, um jesuíta nascido no Brasil, que escrevera a crônica dos inacianos no oriente. Segundo Sousa, o episódio levou a Companhia a transferir, inutilmente, o seu colégio para outra rua de Goa inicialmente livre do flagelo. SOUSA, Francisco de. Oriente conquistado a Jesu Christo pelos padres da Companhia de Jesus da Provincia de Goa. Lisboa: Oficina de Valentim da Costa Deslandes, 1710. 2.v. 213

GOA. Pareceres. op. cit. p.354.

441

Venette, em 1348, quando Paris foi acometida pela pestenença, “talvez a vontade de Deus, talvez humores corrompidos ou a má qualidade do ar ou da terra?”.214 Em Goa, ao fim e ao cabo, prevaleceu a idéia de que era impossível reviver esta cidade símbolo das glórias passadas. Após imensos gastos, as obras foram finalmente abandonadas. Falharam todas as medidas intentadas com base nas práticas correntes que vinham da Idade Média ou nos conhecimentos científicos do século XVIII. Três séculos depois da ocupação portuguesa, a maldição do elefante morto continuava a assombrar o sítio da cidade.215 O caso de Goa nos mostra os limites impostos pelo olfativo ao novo ferramental sanitarista do século XVIII. Ele, simplesmente, não foi suficiente para tirála da condição de lugar maldito para a vida humana. Os limites a que estava sujeita a ação saneadora, não impediam, no entanto, a proliferação de discursos e diagnósticos sobre a insalubridade. Ao contrário, estimulavam esses discursos, que, na falta de um caráter operacional efetivo, aproximam-se de uma verdadeira mania olfativa. Assim, os funcionários coloniais tornam-se exímios cheiradores. Dedicam-se com paixão ao judicioso exame do nauseabundo e à sua descrição. Não houve cloaca, pântano, poço, encanamento ou maloca que não fosse cheirado na insaciável busca das partículas mefíticas que a tudo e a todos contaminavam. O resultado é um verdadeiro inventário olfativo das colônias. Luanda, por exemplo, é apresentada como uma cidade decadente cheia de edificações pomposas prestes a desabar. A cidade é descrita como se estivesse num estado mais deplorável do que o de Lisboa que “já não mostra vestígios tão sensíveis” do terremoto.216 Elias da Silva Correia, o militar brasileiro autor deste relato, nos legou

214

DELUMEAU. História do medo. p.141.

215

Num texto da década de 1920, “a putrefação da carcassa de um elefante numa alagoa perto da igreja da S. Trindade, que infeccionava a atmosfera” ainda era incluída entre “as verdadeiras causas que tornaram a cidade insalubre”. SALDANHA, Mariano J. Gabriel de. História de Goa: política e arqueologia. New Delhi. Asian Educational Services, 1990. v.1, p.135. 216

CORREIA. História de Angola. p.78.

442

um curioso arrolamento olfativo de Luanda, caracterizando-a como uma espécie de inferno sanitário.

O artigo da limpeza sendo assaz vigiado nos benignos climas, neste é o menos atendido. Os habitantes da Capital, não se enojam de acacular monturos à roda das suas habitações: fermentados com as chuvas se evaporam com insuportável fétido; e todos participam da inundação volátil destas partículas corruptas.217

Se as casas da elite afro-portuguesa são alvo de ácidas condenações, imaginem as dos nativos.

As cubatas [....] além de humildes, negras e sórdidas, passam a ser escuras e oprimidas: a sua triste arquitetura, não lhes permite mais do que quaisquer frestas com o nome de janelas; ali existe o ar em sossego; e assim mesmo amam os miseráveis, que as ocupam, este gênero de prisão em que gemem com sezões. malignas, disenterias, etc., respirando a corrupta atmosfera que os cerca.218

O quadro é complementado com a descrição de fossos de água estagnada nos barreiros de onde se extrai material para as construções. Casas feitas de palha que apodreciam desprendendo odores nauseabundos, negras quitandeiras vendendo peixe apodrecido, cadáveres abandonados no adro da igreja, a serem consumidos pelos cães e porcos que vagam por todo lado. Para finalizar, Corrêa menciona um ponto central da questão sanitária, o qual, como veremos, não é monopólio angolano.

As armações dos negros, que sucessivamente concorrem para a Cidade, ocupam tantos quintais, quantos são os armadores, que os exportam, espalhados pela cidade inferior. O hálito desta imunda negraria seria bastante, para por em paralelo o ar de Sintra com o de Angola, se ali existisse. O projeto de erigir um Lazareto, proporcionado, ventilado, e distante para reclusão destes indivíduos, jamais foi ideado; ou proposto aos Comerciantes deste Africano Reino. Desta falta provêm as deserções que fazem, e ensaiam fazer esses miseráveis, submergidos em imundícies, misturados com os que padecem agudas moléstias, e sem reserva dos que sofrem a

217

CORREIA. História de Angola. p.80.

218

CORREIA. História de Angola. p.79.

443 funesta epidemia das bexigas, que grassando livremente reduz ao túmulo a maior parte.219

Atravessando o Atlântico, há, no Brasil, a contrapartida do que ocorre em Angola. As impressões olfativas do marquês de Lavradio sobre a colônia americana podem ser consideradas exemplares entre as de altos funcionários ilustrados. Seu primeiro contato com o solo brasileiro foi com a cidade do Recife. Ali ele deixou anotada sua impressão inaugural sobre os odores coloniais, que o acompanhariam em sua carreira. No Recife, segundo o marquês, “todos os sentidos padecem, os olhos sumamente escandalizados, os narizes da mesma forma do fedor da catinga”.220 Dias depois, ele chega a Salvador para assumir a governança da Bahia.

Cheguei a esta capital no dia 18 de abril [de 1769], e no dia 19 desembarquei, e vim tomar posse deste Governo, os primeiros perfumes com que me incensavam quando desembarquei, e pelas ruas por onde eu passava, eram da mais refinada, e especial catinga que conservavam em suas casoilas todos estes moradores; acompanhava-me uma grande cáfila de cafres gritando à roda de mim, que me entonteciam; nas ruas olhava para as janelas, parecia-me tudo gentes doentes, e que havia muito tempo que já não logravam saúde; todas com as cabeças atadas com lenços brancos, de forma que me obrigou a perguntar se tinha acabado de haver nesta terra alguma epidemia; [....].221

Uma parte dos odores que sentiu na Bahia, era da responsabilidade de seu pai, o primeiro marquês do Lavradio que aportara nestas paragens. Estamos acostumados a ver o estado central português na dianteira das obras de saneamento. Todavia, nem sempre isto é verdadeiro. Na mesma época em que, na reconstrução de Lisboa, se estudava a criação de um sistema de cloacas, a câmara de Salvador resolveu fazer algo semelhante na cidade.

219

CORREIA. História de Angola. p.80.

220

LAVRADIO. Carta ao Conde de Prado, datada de 21 de julho de 1768. Cartas da Bahia..

221

LAVRADIO. Carta a Joaquim José de Miranda, datada de 8 de março de 1769. Cartas da

p.29.

Bahia. p.118.

444 Pomos na presença real de Vossa Majestade o grande dano e prejuízo, que padece esta cidade com os canos de várias casas particulares, as inundam por forma que não só faz dificultosa a passagem nos atos de procissões e saída do Santíssimo. Sacramento; mas ainda resulta grave prejuízo na saúde pública, e como os senhorios dos ditos canos se acham com posse de mais de ano e dias, talvez pelo descuido dos antepassados, se fazem precisas multiplicadas demandas a este senado para os obrigar a recolher os ditos canos por debaixo da terra, e metê-los nos canos reais, e para que possam ser obrigados os ditos senhores a este fim, sem que sejam necessários os dispêndios de muitas demandas, recorrem a Vossa Majestade para que se digne mandar que todos os senhorios dos edifícios que tiverem canos particulares que deságuam para a rua, sejam obrigados a subterrá-los por força que fique a cidade livre dos maus hálitos que resultam de semelhantes imundices, ficando aos moradores o transito livre não só nos atos particulares, mas ainda nas funções de procissões e saídas do Sacramento, e não fazendo os ditos senhorios no tempo que assinar por esta câmara o mandará fazer este senado à custa dos mesmos donos; Vossa Majestade, porém, mandará o que for servido. Bahia, em câmara de julho de 21 de 1759.222

Face à petição do senado de Salvador, o Conselho Ultramarino solicitou um parecer ao Vice-rei, o primeiro marquês do Lavradio, que sepultou o projeto.

Parece-nos que só nas ruas onde há condutos reais se podem recolher as águas imundas, do que não duvidaram os moradores por ser útil, tendo a saída das suas casas limpas, e nas casas sem esses vapores pelo verão; porém nas ruas onde não há aquedutos [encanamento de esgoto] reais, que são as mais delas, não é possível introduzir nelas os que saem das casas particulares por ser preciso fazer passagem de umas ruas para outras por baixo dos alicerces de muitas casas que medeiam e assim parece-nos impraticável o que se representa.223

O segundo marquês, um hipocondríaco confesso, encontra na questão da saúde um dos mais recorrentes temas de sua correspondência. Ele se surpreende com o fato de ter permanecido saudável na colônia. Suas mazelas não foram além de uma sarninha no pé e alguns acessos de defluxos e catarrais. Como prêmio por ter ficado “entregue a negros, macacos, e mais savandijarias”, durante seu período no governo da Bahia, ele foi promovido a vice-rei do Brasil. Segue para o Rio de Janeiro, assombrado com a perspectiva de enfrentar um clima menos benigno que o de Salvador.224 Chegando à capital do império americano, ele deu seqüência à sua carreira de cheirador emérito.

222

Citado de RUY. História da Câmara. p.150.

223

Citado de RUY. História da Câmara. p.151.

224

LAVRADIO. Cartas da Bahia. p.153, 188, 197, 273.

445

No relatório de 1779, com o qual encerrou o exercício do vice-reinado, fechou, com chave de ouro, os dez anos de seu périplo olfativo pelas colônias, iniciado sob o impacto da catinga recifence. É expressiva sua descrição das condições sanitárias do tráfico de escravos no Rio de Janeiro.

Havia mais na cidade o terrível costume de que todos os negros que chegavam da costa d’África a este porto, logo que desembarcavam, entravam para a cidade, vinham para as ruas da cidade e principais delas, não só cheios de infinitas moléstias, mas nus; como aquela qualidade de gente, enquanto não tem mais ensino são mesmo que qualquer outro bruto selvagem, no meio das ruas onde estavam sentados em tábuas, que ali se estendiam, ali mesmo faziam o tudo que a natureza lhes lembrava, não só causando o maior fétido nas mesmas ruas e suas vizinhanças, mas até sendo o espetáculo mais horroroso que se podia apresentar aos olhos. As pessoas honestas não se atreviam a chegar às janelas; as que eram inocentes ali aprendiam o que ignoravam, e não deviam saber, e tudo isto se concedia sem lhe dar providência, e só por condescenderem com as ridículas utilidade que tinham os negociantes, a que pertenciam aqueles escravos, com os recolherem de noite nas lojas ou armazéns que ficavam por baixo das casas em que assistiam, porque com os alugueres que percebiam par ali se recolherem os escravos, vinham a ficar de graça, ou por preços muito diminuto, morando no resto das casas que sobejavam à acomodação daqueles hóspedes.225

Assim como em Luanda, os comerciantes de escravos do Rio de Janeiro mantinham a sua mercadoria em suas próprias casas. Quadro idêntico ao encontrado em São Luís, Recife, Salvador ou em qualquer outro porto dedicado ao tráfico de escravos, fosse, de exportação fosse de importação. Na África, as senzalas eram localizadas nos quintais da cidade baixa, no Brasil, serviam de depósito os sobradões portuários, cujos andares superiores eram utilizados como moradia. Neste aspecto, não havia maiores diferenciações com qualquer outra atividade comercial. Mantinha-se o costume, adotado desde a Idade Média, de agregar num mesmo imóvel as atividades comerciais e artesanais com a residência dos envolvidos. Todavia, em oposição a outras atividades econômicas, que por serem consideradas insalubres foram transferidas para os arrabaldes, o comércio de escravos foi mantido até muito tardiamente no interior do quadro urbano. Para esta permanência devem ter pesado a capacidade dos negociantes

225

Relatório apresentado pelo vice-rei Marquês do Lavradio ao seu sucessor, transcrito em AVELLAR, Hélio de Alcântara. História administrativa do Brasil. 5. Administração Pombalina. 2.ed. Brasília: UNB/FUNCEP, 1983. p.262.

446

em impor as suas “ridículas utilidades”, ou seja, a redução dos custos de alojamento e vigilância. Não esqueçamos que estes mesmos comerciantes fazem parte das elites concelhias de todo o império colonial português. Neste final de século XVIII, as preocupações de Elias Correia não eram isoladas e o remédio proposto para Luanda já era adotado em algumas cidades. Entre as intervenções urbanas realizadas pelo marquês do Lavradio no Rio de Janeiro, pode-se contar a efetivação de uma das medidas “jamais ideadas” para Luanda: mudar os depósitos desta especial mercadoria para lugar distante. O marquês ordenou que comércio de escravos fosse transferido para o Valongo. Depois de comprados, eles deveriam aguardar no Campo de S. Domingos, até que fossem levados para as fazendas ou minas. Tentava-se poupar o morador das cidades do triste espetáculo deste comércio, o qual, em muitos casos, era a própria razão de ser econômica do lugar. Tudo infui sobre a malignidade de sua atmosfera Na Amazônia, um dos principais cheiradores foi o naturalista baiano Alexandre Ferreira. Toda a região passou por seu crivo olfativo, mas foi em relação a Belém que ele deixou um relatório contundente para explicar a proliferação das doenças.

1. Porque sendo ela uma cidade situada em um pantanal, cercada em roda de espessos matos, e quotidianamente banhada de águas do mar misturadas com as do rio; sendo uma cidade, em cuja extremidade existe um curtume tão nocivo pelos seus vapores e em cujo centro existe um forno de cal; o que tudo influi sobre a malignidade de sua atmosfera, particularmente nos meses em que não reinam os ventos gerais: sem embargo de tantas causas juntas, acresce outra a de ancorarem no seu porto sem quarentena alguma as embarcações dos transportes dos escravos, que vem dos portos de Cabo-Verde, Bissau, Cacheu, Angola e Benguela. Os lavradores que os compram, não poucas vezes levam com eles para suas casas um contágio geral para todas as suas famílias. [...] 2. Porque dentro da mesma cidade existe um açougue, onde se sangram as rezes, cujo sangue fica ali mesmo estagnado, além de se exporem os couros ao sol para enxugarem, e além de ficarem pelo pátio e pela praia adjacente, as vísceras abdominais das ditas rezes; donde procede um tão terrível vapor, que mal o podem suportar os que passam por aquela rua. 3. Porque os alumnos, de que usa a maior parte da plebe e dos escravos, não passa de uma pouca de farinha, muito mal beneficiada, servindo-lhe de conduto o peixe-boi, a piraíba, o pirarucu, e as tainhas ardidas e podres.

447 4. Porque se despejam nas ruas as imundícies das casas, e se espalham as sementes do algodão que se descaroça, e as cascas e a moinha, do arroz, que se descasca nos engenhos daquele uso. 5. Porque há dolo e ma fé nos negociantes de fora, os quais embarcam os viveres para o consumo do estado, falsificando os gêneros secos e molhados tanto em fraude, dos negociantes do país, como em prejuízo da saúde dos que os compram; sendo poucas as barricas de farinha, ou podres, ou falsificadas com gesso; os vinhos contrafeitos, gessados, ou encorpados com diversas drogas que alteram a saúde dos que os bebem. 6. Porque, apesar da razão e da experiência, prevalece no estado a reputação, e o curativo dos empíricos, os quais afetando de saber o que ignoram, impunemente se constituem árbitros das vidas, sem outra carta de aprovação na arte, do que a que lhes passa a credulidade da plebe.226

Para o naturalista, as causas primárias das doenças da região eram o calor e a umidade, que tudo faziam apodrecer, liberando os miasmas deletérios. No entanto, a ocupação humana também contribui para a propagação das terçãs, das quartãs, do beribéri, das bexigas ou do cólera morbus. O rol de causas composto por Ferreira aborda, ponto por ponto, quase todos os quesitos da insalubridade sobre os quais nos temos debruçado: o sítio insalubre, a contaminação pelas embarcações que vêm de fora, o açougue, o lixo doméstico e os restos das atividades econômicas espalhados pelas ruas. Acrescenta ainda, a alimentação adulterada, pobre e podre, além do despreparo dos responsáveis por curar. Tudo isso se reúne para compor o quadro da Belém mefítica e insalubre onde Ferreira exercita o seu sentido olfativo. Um dos principais aspectos discutidos pelos que analisaram o sítio de Goa dizia respeito à salubridade ou insalubridade da vegetação. Estava longe de ser assente e concorde entre os médicos e outros responsáveis pela salubridade urbana que o contato com a vegetação exercesse algum tipo de influência benéfica sobre a saúde das pessoas. Neste período, o mundo português era atravessado por uma onda de construção de passeios públicos e jardins botânicos, o que pode nos levar a supor que fosse dominante uma apreciação positiva da vegetação. Entretanto, há muitas evidências de que era extremamente difundida uma noção exatamente contrária.

As árvores são uma espécie de bombas que metendo o ar na terra conservam a sua umidade mas enquanto esta umidade é útil, as folhagens que apodrecendo no chão as

226

FERREIRA. Viagem philosophica. op. cit. LI, 1988. p.145-6.

448 fazem tanto mais nocivas quanto é certo que apodrecendo levam ao ar exalações impuras. Por isso é que assentam os Filósofos naturalistas que os bosques são constantemente perniciosos à saúde.227

Para alguns, a presença de toda e qualquer árvore na cidade era considerada nociva à saúde. Para outros, existiam exceções. As palmeiras deviam ser poupadas “porque não impedem o vento porém fazem sombrio”.228 As árvores cítricas, como limoeiros e toranjeiras, também eram consideradas benéficas, pelo perfume que exalavam.229 Neste caso, temos uma reminiscência da teoria dos contra aromas. Além das qualidades intrínsecas reconhecidas nas palmeiras e nos cítricos, há um outro motivo que levava a considerar tais árvores como salubres. Ambas são espécies cultivadas e pertencem, portanto, ao universo da natureza domesticada. O reconhecimento de que as espécies cultivadas eram benéficas à saúde aparece em diversos relatos de agentes coloniais. No mesmo período em que o estado português está envolvido com o destino a dar ao antigo sítio de velha Goa, em outras partes do império questões muito semelhantes eram enfrentadas pelos responsáveis pela efetivação da política pombalina de fundação de novas vilas nas colônias. A escolha de sítios aptos à urbanização seguia, ainda, o receituário prescrito pelo tratadistas do renascimento, que mandavam ter em conta a existência de boas águas, terrenos para a agricultura, lenha e ares salutíferos. Contudo, a experiência acumulada mostrava a todos os enganos anteriormente cometidos. A questão que se colocava era a de como reconhecer, fora da Europa, locais que preenchessem os requisitos de salubridade. Como resposta, procurou-se sistematizar um conhecimento indiciário que permitisse a distinção entre locais salubres e insalubres. É interessante notar, que, nesse ponto alguns europeus são obrigados a assumir uma posição de relativa humildade. De acordo com o Morgado de Mateus, Capitão-General de São Paulo, os indícios de

227

GOA. Pareceres. op. cit. p.347.

228

GOA, Pareceres. op. cit. p.355.

229

GOA, Pareceres. op. cit. p.364. Da mesma forma, na Amazônia, as partícula aromáticas exaladas pelo cravo, puxiaçu, puximirim e umiri eram apontadas com capazes de se contrapor aos miasmas provenientes do solo florestal. Ver FERREIRA. Viagem philosophica. LI, 1888. p.139.

449

salubridade deveriam ser buscados entre aqueles que conheciam a região a colonizar, fossem índios, fossem animais, “que por instinto natural evitam sempre os lugares pestíferos e de ar corrupto”.230 Esse método indiciário também foi utilizado para confirmar a renitente insalubridade de Goa.

Achei que a falta de aves que tendo a providência Divina destinado para habitarem a Região do Ar pela má disposição da atmosfera na Cidade que elas melhor percebem que os homens como alteração desse Elemento é total a falta delas nas suas próprias estações.231

Ainda no século XVIII, não era questão resolvida a forma de identificar o local adequado para a fundação de uma nova localidade. Em resposta aos repetidos enganos, os agentes encarregados pelas novas fundações acabaram por comungar da noção de que a natureza era originalmente maligna e que ela pedia um preço em vidas para ser domada. É este, por exemplo, o ponto de vista do Morgado de Mateus.

[O clima] sempre se costuma mostrar infesto e letal em todas as partes, adonde se fundam Povoações novas, pois mais ano menos ano vêm a experimentar rigorosas doenças, de que falece grande número de povoadores; enquanto as terras não se rompem, e os ares não se purificam com os fogos, com as criações de gado, que são muito úteis para este benefício, e com o costume que forma nova natureza.232

Sob esse novo conceito reaparece a antiga crença de que os animais excluídos os porcos - eram capazes de regenerar a atmosfera corrompida. Como já vimos, desde a Idade Média persistia a prática de enfrentar epidemias de “pestenença”

230

MATEUS, Morgado de. Projecto ou plano ajustado por ordem de S. M. F. entre o Governador e Capitão-General de São Paulo D. Luís Antônio de Souza & o Brigadeiro José Custódio de Sá Faria. 1772. MONUMENTA, Curitiba, v.1, 1987. p.100. 231

232

GOA. Pareceres. op. cit. p.362.

MATEUS. Projecto. p.106. Em 1789, o francês J.-B. Theodore Baumes publicou um tratado sobre as doenças causadas pelas águas estagnadas, no qual há plena concordância com o que dissera anteriormente o morgado. O tratado advertia para o perigo de arrotear os solos virgens: “quantas colônias, no Novo Mundo, foram infelizes vítimas das febres terríveis produzidas pelos vapores mortíferos de um solo virgem limoso.” Ver CORBIN. Saberes. p.35.

450

com a evacuação das cidades e a soltura de gado de pasto em seu interior. Nas cidades de nova fundação, apenas as práticas econômicas rurais, como a introdução de espécies agrícolas e arbícolas cultiváveis e da pecuária, seriam capazes de afastar a malignidade da natureza inexplorada, criando, desta forma, uma nova natureza. No entanto, tal hipótese não é consensual porque a observação mostra casos exatamente opostos. É o que ocorre em Macapá, onde a malária dizimou muitos dos colonos açorianos levados para o estabelecimento da vila.

Ora, sendo certo o que dizem aqueles moradores, que referida vila do Macapá, não haviam as mencionadas febres no princípio do seu estabelecimento, lembro-me de atribuir à mesma causa, de que elas procedem em Veneza, em Guilão, na Pérsia e no reino de Sião, onde se cultiva o arroz. Quero dizer, que cultivando-se elo nos pantanais de que constam aqueles campos, onde apodrece a sua palha com o calor do sol no tempo do verão, se elevam na terra exalações tão pestíferas, que causam os ditos contágios. Isto não é increpar a cultura daquele gênero, é sim recomendar aos lavradores o cuidado que devem facilitar a escoanta das águas encharcadas; de não deixarem nas ruas da vila, e nos quintais das casas tanto a palha, como a moinha do arroz, porque uma e outra apodrecem, e da podridão a que passam resulta o perigo de suas vidas.233

A hipótese levantada pelo naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira afirma que a corrupção atmosférica e, portanto, a doença são provocadas pela ação humana sobre uma natureza à princípio benigna. O salubrismo setecentista oscilaria, sem chegar a uma solução, entre os princípios inversos da malignidade ou da benignidade primária da natureza. Na porção oriental do Império, repetem-se os diagnósticos olfativos. A mais antiga povoação portuguesa da África Oriental era a feitoria de Moçambique. Em comum com diversos assentamentos portugueses do século XVI, Moçambique estava localizada numa pequena ilha junto da costa, coisa que o novo salubrismo não via com bons olhos. Um autor anônimo, da segunda metade do século XVIII, deixou uma análise da ação do clima sobre a saúde dos habitantes da vila. Muito provavelmente, o texto saiu da pena de um cirurgião, pois ele critica a substituição do prático da ilha,

233

FERREIRA. Viagem philosophica. LI, 1988. p.143-4.

451

talvez ele próprio, por físicos acadêmicos enviados da metrópole, que seriam pouco versados em doenças tropicais.

Nesta vila respira continuamente um ar salino, que não permite todo o alívio por ser esta ilha muito rasa, estreitíssima, e sem arbustos mais, que algumas palmeiras, motivo porque é muito árida, e por isso o ar salino faz nos corpos grande impressão. O tempo mais favorável neste país é de maio até novembro, em que então principia a ser penoso mais o passar-se nesta ilha, passando neste mês o sol ao trópico sul até ao meado de dezembro, tempo em que aquece a atmosfera, tanto quanto mais o sol se avizinha, e retrocedendo este planeta, segue-se comumente principiar a maior abundância de chuvas, e com intenso calor e vapores crassíssimos, que subindo se vão condensando em grossa atmosfera, e cheia de exalações podres, e com a causa da má combinação que faz água salgada com a doce da chuva, nesta ilha, procede de aos seus habitantes encherem-se de náuseas, nasce a dor de cabeça, vem a febre e caem enfermos, que em as mais das naturezas demorando-lhes os remédios, azeda-se a biles e procede as biliosas, e nascendo mais a fermentação, forma-se a febre podre, havendo-se passado pelos miseráveis todos os ácidos inflamatórios, de forma que a qualidade desta febre vem a produzir as perniciosas, os delírios e ultimamente as malignas, e conforme as contagiosas estações dos anos, como também as deploráveis naturezas por desordenadas nos seus regimes, e ao mesmo tempo impróprios e insípidos os alimentos deste país, vêm a formar-se tão repentinamente as gravíssimas moléstias, que em breves dias não lhes valendo as aplicações de alguns condicentes remédios, acabam depressa as vidas; durando enfim este flagelo em alguns anos, e muito mais nos antecedentes até fim de maio e junho: e por estas ponderáveis circunstâncias, é a displicência, assim como é pernicioso de passear-se esta ilha das nove horas da manhã até as quatro da tarde nos meses de dezembro até fim de abril. No mês de maio ou junho até outubro e novembro, se conhece a estação já mais benigna, sendo tempo fresco e suportável, produzindo os ares que então decorrem somente defluxos, catarrais e pleurises; como também alguma indisposição, por causa da diferente aceitação ou combinação da natureza com o clima, nascendo daqui o variável cozimento do estômago, de que produz algumas febres, e mais fácil no seu curativo.234

A esses fatores de ordem natural, o narrador, assim como boa parte dos religiosos e funcionários ilustrados que descreveram a porção tropical do império, enumera outros de ordem moral. A saúde era consumida pela lascívia que provocava o “contágio gálico” e pelo uso imoderado de bebidas alcoólicas.235 Ao sul de Moçambique, nos Rios de Sena, os sempre alerta narizes dos agentes coloniais detectavam uma outra fonte de contaminação, que era comum à maioria dos locais onde se utilizava o barro como material de construção. Na região da

234

MOÇAMBIQUE. Descrição da capitania de Moçambique, suas povoações, e produções. 1788. In: ANDRADE. Relações. p.386-7. 235

MOÇAMBIQUE. Descrição. op. cit. p.386-7.

452

vila de Sena não havia rochas, as casas eram feitas de adobe e taipa. As cavas abertas para a obtenção da argila eram apontadas como outra causa da insalubridade da vila.

O assento desta vila é plano, os seus moradores nos anos antecedentes faziam, junto da povoação, abrir covas profundas, e larguíssimas para tirarem terra, ou barro de que formavam adobes*, e para as taipas de que edificavam as casas de suas residências; o que ainda hoje fazem, as quais pelas invernadas, se enchiam sempre de água, entrando-lhe também a do Rio Zambeze, quando costuma transbordar as suas enchentes: e como no verão se corrompiam, como ainda hoje, causando alguns maus vapores.236

O mesmo problema fora apontado em Luanda e em Santo Antônio do Príncipe, onde a câmara criou uma postura específica contra este costume.237 Além da contaminação provocada pelas cavas, Sena sofria a interferência de nefastos vapores que tornavam mortal a atmosfera. A causa desses vapores era atribuída a uma fonte muito peculiar.

[....] por arrojarem os ventos das terras daqueles sertões circunvizinhos outros maus vapores por causa das continuadas guerras daqueles régulos, e elefantes mortos de que nasce haver mortandade tanto de cafraria como dos outros à disposição do tempo de que procede contagiar o ar que naqueles sítios se respira causando gravíssimas moléstias àqueles habitantes.238

Á maneira de Carlo Ginzburg, é possível identificar um sintoma neste fragmento de texto. Não é difícil rastrear a passagem, da Índia para a África, da noção de que elefantes mortos eram capazes de contaminar a atmosfera. A maioria dos letrados de Moçambique eram de origem indiana, o que explica a referência. Aqui como na Índia, os limites do salubrismo setecentista são claramente visíveis. Proliferam os discursos mas as cidades permanecem assombradas pelo nauseabundo, sem conseguir

236

MOÇAMBIQUE. Descrição. op. cit. p.397. * adobe = tijolo de barro cru

237

Sobre cavas em Santo Antônio do Príncipe, ver MATOS, Raimundo José da Cunha. Compêndio histórico das possessões de Portugal na África. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça e Negócios Interiores; Arquivo Nacional, 1963. p.163. Postura proibindo cavas, em PRÍNCIPE. Atas da câmara. op. cit. p.26. 238

MOÇAMBIQUE. Descrição. op. cit. p.397.

453

exorcizar este fantasma. Vive-se, ainda, sob o signo do elefante morto decompondo-se lentamente na lagoa do Carambolim. No entanto, neste exato momento, há uma área do salubrismo que está sofrendo um grande impulso. Nas cidade de todo o Império, começam a surgir jardins públicos, a outra face da mesma moeda sanitária. Suprimir o pútrido da cidade implica em instalar no seu interior o reino do deleitoso.

A VEGETAÇÃO E A CIDADE

Um dos aspectos mais evidentes da cidade portuguesa foi a total ausência de vegetação nos espaços públicos. Era como se houvesse uma incompatibilidade entre a cidade e seu entorno. Por outro lado, sabe-se que, nesta mesma cidade, o desenvolvimento de uma economia especificamente urbana era relativamente fraco. Portugal inclui-se no modelo da maior parte da Europa Meridional, no qual as elites urbanas mantinham um forte vínculo com o universo agrário do alfoz municipal. Os cavaleiros vilãos, que monopolizavam os ofícios concelhios na maior parte de Portugal, eram proprietários rurais. Mas não era apenas a elite camarária que se mantinha vinculada ao campo. Muitos dos artesãos e comerciantes eram simultaneamente foreiros, que oscilavam entre a economia rural e a urbana. Como entender que essa cidade, onde as relações sociais eram totalmente permeadas pela economia agrária que a envolvia e garantia a sua existência, fosse tão avessa a ser permeada fisicamente pela vegetação? O que se pode supor é que a fraca separação existente no dia-a-dia tivesse que ser compensada por um maior apego a formas simbólicas de expressar a cisão entre a cidade e o seu entorno. Muito do que aqui foi dito pode ser generalizado a outras regiões da Europa. O que, na realidade, parece ser característico de Portugal, é a lentidão com que foi superada esta forma de dicotomia entre cidade e campo, ou cidade e vegetação. Quando comparado com o restante da Europa, verifica-se que em Portugal foi bastante tardia a incorporação da vegetação à paisagem da cidade. Esse retardamento

455

foi transmitido às colônias, onde a rejeição ao verde urbano foi acentuada. No universo português, a disseminação de praças ajardinadas, alamedas, passeios públicos e jardins botânicos ocorreu apenas na segunda metade do século XVIII. Contudo, antes de pensarmos na existência de jardins e outras áreas vegetadas destinadas ao recreio dos habitantes da cidade, é preciso lembrar que, na origem, eles foram espaços extra urbanos. A alta nobiliarquia portuguesa era particularmente aferrada ao campo. Mesmo quando passou a morar na cidade ou a viver de rendas urbanas não rompeu com o esta ligação. Sendo o nobre, por definição, um guerreiro, tendia a se exercitar em atividades que requeriam vigor físico. As caçadas, as justas, as cavalgadas e outros jogos rústicos eram considerados indispensáveis à formação da juventude fidalga. Os reis medievais portugueses eram grandes aficcionados desses jogos, principalmente das caçadas. Alguns, como Afonso IV, foram alvo de censura por abandonarem as funções de estado e passarem meses longe da corte envolvidos em caçadas. Para

essas

atividades

eram

reservadas

imensas

áreas

florestais,

principalmente na região do centro de Portugal. Eram as terras coutadas para a caça, privilégio dos reis e outros grandes senhores, das quais estavam excluídos os camponeses e os moradores das cidades. As penas para quem não respeitasse os coutos eram extremamente severas. A necessidade de novas terras para a agricultura levou à progressiva redução desses coutos, ao longo do século XV. No mesmo período, acelera-se o processo de transformação do nobre em cortesão. Talvez por necessitarem desta mão-de-obra guerreira para o seu projeto de expansão portuguesa no norte da África, os reis da dinastia de Aviz tornam-se ideólogos dos jogos rústicos. D. João I escreveu (ou encomendou a escrita) de um Livro de Montaria, que era principalmente um tratado de caça. D. Duarte, autor do famoso Livro de ensinança de bem cavalgar toda sela, foi explícito em condenar o afã da nobreza pelos cantos, danças e outros jogos galantes, nos quais participavam as damas, e o descuido com os exercícios belicosos. Do seu ponto de

456

vista, a nobreza estava ficando gorda e sedentária, e a arte de cavalgar é apresentada como panacéia para a forma física dos nobres, fossem crianças, adultos ou velhos.1 No século XVI, a alta nobreza contenta-se com os espaços mais reduzidos das tapadas de caça, como as de Salvaterra e Vila Viçosa, onde D. Sebastião, rei jovem e solteiro, exercia ardorosamente seus dotes de caçador. O arquiteto Francisco de Holanda foi porta-voz da apreensão nacional com os prolongados afastamentos deste rei, que se enfadava da vida na corte, quando propôs a construção de uma tapada de caça em Enxobregas, na parte ocidental de Lisboa.

E se lhe parecer [....] ser pesada Lisboa, de ser amigo da liberdade do campo e da caça do monte; acabe Vossa Alteza os Paços de Enxobregas que são muito para isso; e se tiver saudade do monte e da caça (enquanto é obrigado a ter conta com Lisboa e com sua corte) cerque meia légua de terra dali até Chelas e até além de S. Bento e faça um parque; com muitos porcos, e veados, e aves, e matas, e arvoredos, e fontes e casas de prazer muito melhores que as que fez em Fontainebleau o Rei de França; que tudo pode ter dentro.2

A construção dos paços de Enxobregas fora iniciada por D. João III, que morreu antes da conclusão da obra. D. Sebastião, que o sucedeu, desapareceria em suas cavalgadas no norte da África sem que a execução do projeto de conclusão do paço e criação de uma tapada de caça, esboçado por Francisco de Holanda, sequer tivesse sido cogitada. Continuou Lisboa sem a sua Fontainebleau ou qualquer tipo de área que se assemelhasse no uso ou na aparência.

1

Os tratados de caça e montaria de D. João I e de D. Duarte conheceram inúmeras edições. Ver, por exemplo, D. JOÃO I. Livro de Montaria. Coimbra: F. M. Esteves Pereira, 1918; D. DUARTE. Livro de ensinança de bem cavalgar toda sela. Lisboa: J. Piel, 1944. 2

HOLANDA, Francisco de. Da fábrica que falece a cidade de Lisboa. Lisboa: Livros Horizonte, 1984. p.22.

457

QUINTA ESSÊNCIA DE CIGANARIA

Desde o período islâmico, observa-se a tendência a uma fragmentação fundiária no entorno das cidades, onde as elites urbanas mantinham as suas almuinhas, terrenos regados onde desenvolviam hortas e jardins, às vezes ligados a uma casa fortificada. A cidade portuguesa da Idade Média também era rodeada de pequenas propriedades agrícolas, as hortas e quintas, que em algumas regiões mantiveram o designativo árabe de almuinhas. Mesmo no interior das muralhas, as áreas não urbanizadas eram destinadas a usos semelhantes. Os moradores da cidade medieval portuguesa resistiam a uma rígida separação entre o rural e urbano e, aqueles que podiam, procuravam manter essas propriedades para auto-subsistência e venda de algum excedente no mercado urbano. As quintas, hortas e as terras comunais nos arredores das cidades, além de cumprirem sua função econômica sempre foram utilizadas para passeios, jogos, festas e outras atividades lúdicas de seus vizinhos urbanos. A partir do final do século XVI, difunde-se entre a nobreza tornada cortesã e outras camadas abastadas de moradores da cidade um verdadeiro modismo da volta à natureza e outras formas menos agressivas de diversão. Não houve, de maneira alguma, o abandono do esporte da caça mas, ao lado dele, outras formas de lazer fazem sucesso. A pesca, uma forma de ‘caça’ que tanto favorece a introspecção, parece estar em voga entre os lisboetas.

Pois da pescaria, quem não vê a grande comodidade que nos oferece este Rio [Tejo], e o mar desta Costa, onde me dizem que é coisa de grande recreação ir pescar com linhas nos dias de bom tempo; porque pondo as barcas em paragem, que os pescadores têm marcado pela terra, ficando sobre penedos, que estão no fundo do mar, é mui grande a quantidade de peixes que tomam, e a pressa com que picam, e não tiram pardelhas, ou saramugos, senão salmonetes, pescadas, pargos, e outros pescados semelhantes.3

3

1990. p.139.

VASCONCELOS, Luís Mendes de. Do sítio de Lisboa; diálogos. Lisboa: Livros Horizonte,

458

Nas grandes tapadas, a alta nobreza também se dedicava à pesca. Em sua Descrição de Vila Viçosa, o cronista Antônio de Oliveira Cadornega mais do que a descrição da vila faz o elogio à casa de Bragança, o ramo da nobiliarquia portuguesa que se tornara preponderante no século XVII.4 Cadornega escreveu este opúsculo a partir de suas memórias pessoais de infância ou de relatos correntes dentro da tradição familiar destes cristãos-novos, estreitamente vinculados com a futura casa reinante. Eram os Bragança os proprietários e moradores da tapada de Vila Viçosa, contudo não há nas memória de Cadornega alusão a que os duques fossem vigorosos caçadores. A recreação destes altos aristocratas ainda envolvia a caça, mas sob formas muito mais amenas: o tiro às aves, a caça com redes, ou as pescarias.

Havia um Lago naquela realeza da Tapada, em que aqueles Senhores se recreavam em barcos, onde o vadeavam de uma parte a outra, fazendo tiros a diversas aves, além do Rio Borba, em que tinham grande passatempo de pesca, com pegos de lindas e gostosas pardelhas e outros peixes de rio. Havia também a ribeira chamada d’Asseca, que também cingia aquela espaçosa Tapada, tendo o mesmo recreio nela. A de Borba era a de maior estima, por passar com a corrente de suas cristalinas águas ao pé do paço da tapada.5

Outra forma de lazer ameno em grande voga no século XVII era o passeio. Havia um reconhecimento geral da capacidade revigorante dessa atividade que comportava exercício físico moderado e uma atitude mais contemplativa do que ativa em relação à natureza. A literatura portuguesa do período nos mostra os lisboetas, nobres e burgueses, envolvidos em passeios nos arredores ou dentro da cidade.6. As pessoas saíam em busca de paisagens, fossem na escala intimista das fontes, regatos e outros recantos reconhecidos como belos, fossem as vistas panorâmicas obtidas a partir de lugares elevados.

4

CADORNEGA, António de Oliveira. Descrição de Vila Viçosa. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1982. A obra foi escrita em Angola, em 1683. 5

6

CADORNEGA. Descrição. p.127.

MELO, Francisco Manuel de Visita das fontes; apólogo dialogal terceiro. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1962.

459

O historiador francês Alain Corbain nos fala de uma tendência à santificação da paisagem e da natureza, comum ao Ocidente em meados do século XVII. Portugal não parece incluído neste Ocidente. Ali, o que se percebe é uma observação muito laica, voltada à excitação de certos estados de espírito. Entre os portugueses, a tendência era olhar mais para a paisagem produzida do que para a natural. Em seus passeios, o citadino detinha o olhar nos campos cultivados quando não o dirigia para a própria cidade. Mendes de Vasconcelos nos defronta com a exigência de as cidades possuírem qualidades estéticas paisagísticas que as qualificassem a esse tipo de olhar. Trata-se de mais um de seus parâmetro para julgar a excelência de um sítio urbano, no qual, para o autor, Lisboa novamente se sobressai.

É necessário que o sítio [de uma cidade] seja alegre à vista. Porque o artesano, o oficial de justiça, e os ministros maiores, que se não podem apartar da comunicação da Cidade, possam com dar um passeio e pôr-se em um lugar eminente, recrear o ânimo, aliviando-o com a alegre vista, do trabalho de seus exercícios, para tornarem a ele com novo alento, em benefício comum, como o homem que leva algum peso, que descansando um pouco cobra forças para chegar com ele ao determinado fim. 7

A essa prática de sair da cidade para ver a cidade, não é estranho o simultâneo sucesso dos álbuns de vistas panorâmicas urbanas, em especial os 6 volumes da Civitates orbis terrarum, acabados de publicar em 1628, por Braun e Hogenberg.8 O autor inglês Robert Burton, em sua The anatomy of melancholy, 1625, receitava o exame dos álbuns de panorâmicas para a cura da melancolia.9 Se o estudo desses álbuns tinha efeitos terapêuticos, muito maiores teria a observação direta do panorama urbano a partir de algum morro em suas proximidades. Vivia-se uma onda, avant la lettre, de spleen urbano. O enfado deixara de ser um estado de espírito excepcional, próprio da

7

VASCONCELOS. Do sítio. p.136.

8

Ver BRAUN, Georg. (1541-1622) The city maps of Europe - Braun & Hogenberg´s; a selection of 16th century town plans & views. London: Studio Editions, 1991. 9

1987. p.127.

Citado por WALLIS, Helen. Cartografia Urbana do Renascimento. LER HISTÓRIA. n.10,

460

juventude fidalga obrigada a viver na corte, e passara a ser encarado como condição inerente ao morador da cidade. Todos necessitam de recreação: o trabalhador braçal (o artesano), o burocrata (o oficial de justiça) e a elite governante (os ministros maiores). É dentro deste espírito que as antigas quintas e almuinhas, periodicamente visitadas por seus proprietários citadinos, passariam a ser ordenadas segundo uma nova ênfase. Transformam-se, cada vez mais, numa extensão da cidade, assumindo a forma de quintas de recreio, segunda morada e local de desenfado dos citadinos. A existência destas quintas também era um dos critérios utilizados por Mendes de Vasconcelos para aferir o caráter deleitoso de certos sítios urbanos.

Para um sítio ser perfeitamente deleitoso há-de ter três coisas: ser agradável à vista, de suave temperamento para o corpo, e ter comodidade dos exercícios deleitosos. Em particular, há-de ser apto para haver nele particulares recreações, como são Jardins e Quintas retiradas [....].10

Lisboa era pródiga nessas quintas. O modismo terá assumido tal proporção, que mereceu o reparo de D. Francisco Manuel de Melo.

O ir às quinta louvo, o morar nelas não gabo; não porque me pareça indecente, mas porque o tenho por desacomodadíssimo; vindo a ser essas quintas uma quinta essência de ciganaria. Estraga as casas, desbarata os móveis, destroça os criados; nada se forra, antes se gasta mais; e os homens nem gozam da quietação do campo, nem da autoridade da Corte. Entendo por estas quintas aquelas das quais se pode vir cada dia a Lisboa, onde com comodidade, ou sem ela, nenhum dos vizinhos deixa de vir cada dia; pelo que disse com a graça que costuma, um nosso discreto, que o coche de fulano ia três vezes cada ano a Jerusalém.11

O modismo das quintas de recreio comporta diferentes explicações. Era um meio pelo qual o cortesão procurava reafirmar a sua condição de nobre. A quinta era,

10

VASCONCELOS. Do sítio. p.136.

11

MELO, Francisco Manuel de. Carta de guia de casados. Lisboa: Editorial Verbo, s.d. p.155. No Brasil, onde andou cumprindo pena de desterro, o autor ficou famoso pelo libelo “Paraíso de mulatos, purgatório de brancos, e inferno de negros”.

461

em parte, uso suntuário de terras agrícolas.12 Neste sentido, quinta e tapada não se diferenciavam a não ser pelo tamanho. Para o burguês, a construção de uma quinta faria parte do processo imitativo pelo qual tentava demonstrar a sua nobilitação. Outro aspecto a considerar, é a forte deterioração ambiental das cidades do período. Apesar dos discursos de Vasconcelos e de outros autores sobre a salubridade de Lisboa, sabemos que as coisas não eram bem assim. Lisboa e as cidades em geral são descritas como ambientes sombrios e fétidos, campo privilegiado da contaminação atmosférica que consome a saúde de seus habitantes. O século XVI assistiu uma seqüência infindável de surtos e epidemias de todo tipo, e viver no campo era sabidamente um antídoto para prevenir-se da contaminação. Assim, a volta ao campo pode ser entendida como uma estratégia sanitária daqueles moradores da cidade que tinham recursos suficientes para isso.

Estas ausências trazem grandes e muitos proveitos à vida, à saúde, à fazenda, à salvação. À vida porque no campo se vive mais; à saúde porque seus exercícios a conservam; à fazenda porque se gasta menos; à salvação, porque faltam as ocasiões porque a arriscam, anda o ânimo mais livre para cuidar em Deus, e em si mesmo.13

Bizarros e deleitosos jardins Depois de acompanhar o processo de difusão de quintas de recreio em Portugal, verifiquemos tais quintas sob o ponto de vista da forma e das atividades que nelas eram desenvolvidas. Nas grandes tapadas continuam a acontecer caça ou as corridas de touros, tão a gosto da alta fidalguia. É bom que se diga, que a ênfase dada ao lazer não significou a supressão das atividades agrícolas. Os proprietários e convidados se compraziam em observá-las, supervisioná-las ou até mesmo em participar, episodicamente, de algumas delas. Jogar a

12

THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

p.291. 13

MELO. Carta. p.157.

462

bola, passear, participar da ordenha, colher frutas, conversar com os camponeses, ouvilos cantar, andar a cavalo são exemplos da imensa gama de atividades consideradas como recreação. Todas ajudam a dar uma forma característica às quintas. Mas há uma modalidade de ‘recreio’ cujas implicações morfológicas são especialmente manifestas: o gosto pelos jardins. Cadornega nos descreve em rápidas pinceladas os jardins da tapada de Vila Viçosa.

O Paço que tem a Tapada o pudera ser do maior Príncipe da Corte: na suntuosidade dos edifícios, boas salas, vistosas galerias, com diversidade de pinturas, quartos excelentes, mui bem ornados, bizarros e deleitosos jardins, com cravos e rosas e toda a diversidade de boninas, toda a hortaliça, com muitas boas hortas, pomares com variedades de frutas, latadas de todas as uvas.14

Ao lado do grande solar ducal, localizado à entrada da vila, os Bragança usufruíam de mais dois jardins.

Em frente das janelas das salas e galerias do Paço, se viam dois vistosos e aprazíveis Jardins, muito bem cultivados e preparados de muitas murtas e boninas, fazendo-se das murtas artificiosas figuras. Não havia flor cheirosa que ali se não achasse, com fontes de muitas bicas saídas pelas bocas de figuras de pedras de jaspe, feitas com bizarra arte.15

No século XVII, apenas esboçava-se o desenvolvimento de uma arte da paisagem em Portugal. A mescla de jardim, pomar e hortas, tão característico das quintas portuguesas, era fruto de um lento desenvolvimento histórico. Os jardins propriamente ditos difundem-se nas quintas e nas tapadas; todavia, eles ainda desempenhavam um papel secundário. O historiador português Ilídio de Araújo nos fornece uma síntese de como teria sido o processo.

14

CADORNEGA. Descrição. p.126.

15

CADORNEGA. Descrição. p.88.

463 Tendo começado por ser, nos séculos XV e XVI, um recatado horto (nem sempre subordinado à casa) onde se cultivavam flores e plantas medicinais ou de virtude e também espécie de discreto gineceu onde as damas tomavam sol, no século XVII (talvez por influência de algumas das mais conhecidas villas italianas) aparece-nos quase sistematicamente colado a uma das fachadas da habitação a ocupar um terreno retangular aberto para a paisagem envolvente, mas ainda com característica de horto botânico onde se aclimatavam espécies exóticas trazidas das zonas do globo recentemente descobertas.16

Os jardins das Villas italianas renascentistas, a que se refere o autor, podem ser tomados não só como a fonte de inspiração do paisagismo das quintas portuguesas, mas como a origem da arte européia da paisagem. Não se tratava de uma arte autônoma, como aliás, não o eram as artes visuais em geral. Os jardins renascentistas italianos eram uma ampliação do universo edificado para o entorno, que passava a ser submetido a princípios composicionais semelhantes aos da arquitetura. Do mesmo modo que ocorreu na cidade, onde a interferência urbanística teve geralmente um caráter localizado e integrador com o entorno preexistente, os jardins renascentistas também tiveram as mesmas características de intervenção limitada. Eram uma zona de transição, onde se tentava articular o natural e o construído. Referindo-se aos jardins italianos do quinhentos e do seiscentos, Leonardo Benevolo chama atenção para os limites visuais segundo os quais eles eram organizados.

O jardim fica integrado à casa na medida em que possui uma dimensão proporcionada a ela; as visuais arquitetônicas definidas não superam de fato os 200 metros, e todo o jardim, como objeto arquitetônico regular e mensurável, se integra na paisagem irregular e incomensurável, em contraposição ou gradualmente mesclado com ela. Daí, que em muitos casos se prefiram os lugares elevados, desde os quais se pode desfrutar um panorama natural de ilimitada amplitude, contraposto ao panorama artificial e limitado da arquitetura e do jardim.17

Ao longo do século XVII, a influência dos jardins italianos começava a ser sentida em Portugal. Os jardins passam a merecer um tipo específico de cuidado, em que se manifesta a tendência à geometrizá-los. Todavia, apenas no século seguinte, o

16

ARAÚJO, Ilídio de. Quintas de recreio. BRACARA AUGUSTA, v.27, n.76. 1973. p.328.

17

BENEVOLO, Leonardo. Historia de la arquitectura del renacimiento. Barcelona: Gustavo Gili, 1981. v.2. p.935.

464

fenômeno generalizar-se-ia e os jardins geométricos passariam a ser elementos de destaque nas tapadas e quintas de recreio. Seguindo o padrão das villas do sul da Europa, eles eram dispostos na frente ou nas laterais das casas, onde ocupam um ou mais terraços terraplanados. A localização era criteriosamente escolhida para que desses terraços se descortinasse o entremeado de paisagens naturais e agrícolas que recreava o olhar do proprietário. Os princípios geométricos então adotados para a construção da paisagem não se limitavam aos jardins. Eram estendidos a uma área mais vasta que, às vezes, compreendia pomares e matas anexas, chegando, em casos extremos, a ordenar a totalidade da quinta. Os modelos italianos e franceses exigiam que o acesso à casa ou ao pavilhão principal fosse feito por uma alameda monumental que servia de grande eixo de simetria da paisagem construída. Em Portugal, isto raramente aconteceu, a alameda principal adaptava-se às exigências da topografia ou ao formato irregular da propriedade, atingindo a casa obliquamente. O traçado das composições geométricas paisagísticas era complementado por uma malha de áleas, que conduzia a elementos decorativos e instalações de recreação

(esculturas,

pequenos

pavilhões,

labirintos de cerca viva, fontes, capelas, falcoarias, recintos para o jogo da bola) ou mesmo a outros equipamentos

de

cunho

mais

propriamente

agrícola. Uma das marcas características das villas italianas, também adotada em algumas quintas portuguesas, era a sucessão de terraços suportados por muros de arrimo, junto aos quais eram instalados tanques, fontes ou pequenas cascatas, que serviam de pontos focais ou nódulos de amarração que organizavam visualmente o desenho da paisagem. Os sistemas de terraceamento e de controle das águas eram exigências do clima

465

relativamente seco, que obrigava ao uso de sistemas de regadio. A forma geral da intervenção paisagística mediterrânica deriva imediatamente da exploração plástica das estruturas de rega. No geral, considerado o padrão europeu da época, os jardins portugueses podem parecer acanhados, o que não é necessariamente um defeito. Como raramente assumiu a grandiosidade espalhafatosa dos jardins palacianos do seiscentto e setecentto, dos quais nos ocuparemos a seguir, o paisagismo português manteve a escala integradora dos jardins mediterrânicos. Sans-souci de Queluz Além de ter assistido à continuidade da tradição paisagística mediterrânica, o século XVII viu nascer uma outra que, apenas em parte, foi derivada da primeira. Tratase dos grandes jardins palacianos, dos quais os de Versalhes, projetados pelo paisagista francês André Le Nôtre, constituíram o novo paradigma. Estamos diante de um daqueles casos em que uma mudança quantitativa implica numa mudança qualitativa ainda maior. Com Le Nôtre, o paisagismo muda de escala, e as visuais, que nos jardins renascentistas não passavam dos 200m, saltam para a casa do quilômetro. Desta forma, um observador situado no interior dos jardins fica impedido de estabelecer contrapontos com o mundo exterior. A localização preferencial em lugares planos reforça a sensação de total imersão no mundo perspectivado da paisagem construída. Tratava-se de uma inversão em relação ao paisagismo renascentista, no qual, como já dissemos, os jardins representam uma busca de articulação entre o natural e o construído. O novo paisagismo francês afirmou a supremacia do construído. Ao mesmo tempo, excluiu o entorno, tirando-o para fora do alcance da vista, e o submete, pela extensão das linhas de perspectivação para além dos seus limites. Desta forma, trouxe consigo um sentido de ordenamento do território envolvente. Tal sentido ordenador manifestou-se ainda em um segundo aspecto. A transferência das cortes para estes

466

novos locais implicou na criação de novas cidades que, plasticamente, costumavam estar submetidas aos jardins do palácio. O exemplo francês seria seguido por toda a Europa. A Alemanha, então dividida em pequenos reinos e principados, seria a região mais pródiga em imitações dos jardins de Luís XIV. Apenas para citar alguns exemplos, pode-se mencionar o SansSouci de Potsdan, o Nymphemburg de Munique ou a Karlsruhe do margrave de Durlach. Na Península Ibérica, o exemplo mais espetacular foi Aranjuez, a cidade jardim construída pelos Bourbons nas proximidades de Madri. Além do paisagismo em grande escala, o projeto previa uma cidade de 20.000 habitantes a serviço da corte, o mesmo que Versalhes. Em Portugal, a influência do grand goût se faz sentir apenas no século XVIII. Segundo Ilídio de Araújo, o afrancesamento da corte portuguesa, promovido por D. João V, atingiria também a concepção dos jardins palacianos.

Neste século XVIII, por influência da corte de D. João V, agente de divulgação de modas francesas ( a começar por uma maior participação da mulher na vida social) o jardim, - tal como acontecera no século anterior na França de Luís XIV, - deixa de ser o que era e passa a desempenhar a função de palco de festas galantes, transformandose a sua fisionomia de acordo com essa nova função. [....] Os antigos canteiros pujantes de vegetação, por entre a qual alvejavam delicadas estátuas de mármore, dão lugar aos rasos ‘porterres de broderie’ - verdadeiras tapeçarias de areão e murta, por entre cujos rendados as damas e cortesãos passeiam os seus trajes coloridos.18

As festas galantes, a que se refere Araújo, eram realizadas ao ar livre, sob iluminação artificial. O gosto pelas luzes e pelos fogos de artifício é muito característico do século XVIII português. Os jardins privados, e mais tarde os públicos, eram o palco predileto dos espetáculos de luzes e fogos de artifício. O inglês William Beckford teve oportunidade de participar de uma dessas festas galantes do final do século XVIII, deixando-nos uma descrição em seu diário de viagem.

A casa, bem como os jardins cobertos de flores, escondem-se no meio de uma mata com grandes árvores, laranjais e imensas murtas. Pelas moitas havia orquestras e os

18

ARAÚJO, Quintas. p.328.

467 brilhantes pavilhões, todos iluminados no meio da escuridão da espessa folhagem, eram como edifícios feéricos. Os convidados do conde de Pombeiro, cuja festa principiou antes do crepúsculo, só o deixaram às seis horas da madrugada.19

É preciso ressalvar que essa adesão aos modismos Luís XIV foi pontual e tardia. Portugal jamais conheceu projetos da magnitude do paisagismo áulico francês. O único exemplo de jardins cortesãos em maior escala foram aqueles concebidos pelo decorador francês Jean-Baptiste Robillion para o Palácio de Queluz.20 Entretanto, contrariando ao que era de se esperar, a sua construção não ocorreu no reinado francófilo de D. João V, mas no de D. José, simultaneamente à reconstrução de Lisboa. O historiador da arte José Augusto França chama-o de “Sans-Souci” da corte portuguesa, com pretensões a uma Versalhes tardia. Paisagismo áulico que se opunha ao modernismo pombalino.21 Entretanto, à diferença do que ocorrera em diversas cortes européias, este jardim palaciano português não teria maior impacto urbanístico. Além do de Queluz, os palácios reais de Belém e Caxias também receberam tratamento paisagístico. Ilídio de Araújo cita outros exemplos de jardins providos de alguma monumentalidade: os “da Palhavã em Lisboa, do Freixo no Porto, dos Arrochelas na Quinta de Vila Flor em Guimarães, e o do Paço episcopal de Castelo Branco, os quais ocupavam vários terraços, ordenados ou não em relação à respectiva moradia”.22 O próprio marquês de Pombal não esqueceu de dotar de jardins o seu palácio de Oeiras. Assim, independentemente do fato de os diversos proprietários buscarem imprimir marcas burguesas ou palacianas na paisagem construída, o século XVIII foi o período da difusão dos jardins em Portugal e suas colônias.

19

BECKFORD, William. Diário de William Beckford. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1957. p.223-4. 20

FRANÇA, José-Augusto. Lisboa pombalina e o iluminismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1965. p.267 e seguintes. 21

FRANÇA. Lisboa pombalina. p.261.

22

ARAÚJO. Quintas. p.329.

468

Amenos jardins Nas colônias portuguesas, a difusão de jardins foi ainda mais tardia do que na metrópole. Desde o século XVII, eram comuns nos subúrbios das cidades coloniais a existência de pequenas propriedades rurais equivalentes às quintas portuguesa, as quais, conforme a região, ficaram conhecidas por sítios, chácaras, ou casas de campo. Não há evidências de que os seu proprietários tivessem o costume do plantio de jardins renascentistas ou barrocos. Apenas em alguns mosteiros, há indicações de que isso ocorresse. A iconografia do século XVIII traz freqüentes imagens desses jardins. Numa planta que representa Vitória, em 1767, os jardins dos capuchinhos e carmelitas estão perfeitamente delineados.23

Outros responsáveis pela difusão de jardins ao gosto europeu foram os altos dignatários do governo colonial. Nas ilhas atlânticas, na África ou na América, diversos palácios de governadores ou bispos passaram a contar com espaços ajardinados a partir da metade do setecentos. Não podemos qualificar esses jardins como públicos, pois se destinavam ao uso exclusivo dos dignatários portugueses e seu círculo mais próximo, o que os muros que os rodeavam tornavam explícito. Durante o século XVIII, percebe-se que, nas cidades maiores de todo o império, a elite abandona progressivamente as áreas de ocupação urbana mais densa, transferindo-se para os arrabaldes despovoados. Tanto em Goa, como no Rio de Janeiro,

23

Reproduzida de TEIXEIRA, José de Oliveira. História do estado do Espírito Santo. Rio de Janeiro: s.ed., 1951. Outras plantas posteriores confirmam a existência desses jardins.

469

por exemplo, uma parcela das elites passou a morar em quintas suburbanas. Por vezes, essas chácaras eram muradas ou, então, utilizavam-se sebes de cítricos e outras espécies vegetais para delimitar as divisas. Em Belém do Pará, os moradores mais abastados moravam nas “rocinhas” que se abriram nas cercanias da cidade.24 La Condamine, de passagem por Belém, em 1743, ficou hospedado numa “casa cômoda e ricamente mobiliada, com um grande jardim”.25 Todavia, o que se sabe à respeito do agenciamento paisagístico das quintas das colônias ou bem como do costume de plantar jardins, é ainda pouco para termos uma noção mais abrangente sobre o tema. Uma das raras regiões brasileiras onde a existência de jardins particulares está minimamente documentada é Minas Gerais. No Arraial do Tijuco, existiam alguns grandes jardins urbanos privados. Em suas Memórias do Distrito Diamantino, Joaquim Felício dos Santos refere-se a um sobrado que contava com “amenos jardins, chafarizes, tanques, bosques artificiais alamedados com graça, e labirintos de roseiras, entrelaçadas”.26 O fato de esse sobrado ter originalmente pertencido à coroa, talvez explique a existência dos jardins, que, neste caso, deve ser incluído entre aqueles mandados edificar pela elite burocrática portuguesa nas colônias. A exemplo de Portugal, o desenvolvimento do paisagismo artificial no Brasil encontra terreno propício mais nas chácaras do entorno urbano do que propriamente nas cidades.27 Para não sairmos do Tijuco, basta lembrar da aparatosa chácara de Chica da Silva, onde o contratador teria construído um tanque para a navegação de réplicas de grandes navios.

24

PENTEADO, Antonio Rocha. Belém do Pará; das origens aos fins do século XVIII. REVISTA DO INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS, São Paulo, n.3, 1968. p.42. 25

LA CONDAMINE, Charles Marie de. Viagem na América Meridional descendo o Rio Amazonas. Rio de Janeiro: Pan Americana, 1944. p.125. 26

Ver MACHADO FILHO, Aires da Mata. Arraial do Tijuco cidade Diamantina. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. p.263. 27

Apesar das muitas evidências, existem autores que afirmam que “em Minas Gerais não há notícias de casas de arrabalde ou chácaras”. Ver BITTENCOURT, Maria das Mercês Vasques. Urbanização Colonial; estudo de um modelo de espaço urbano em Sabará. BARROCCO, Ouro Preto, n.12, 1982-3. p.249.

470

Nos arredores de Vila Rica, a topografia acidentada da região estimula o desenvolvimento de um paisagismo em moldes mediterrânicos. As primeiras descrições disponíveis dos jardins de Ouro Preto são todas do início do século XIX. Debret referese a “belos jardins em degraus, rasgados por fontes elegantes”.28 O inglês James Fox Bunbury diz que, em alguns pontos da cidade, as casas eram “espalhadas entre jardins com terraços, rampas cobertas de relva e decrividades de rochedo”.29 Segundo Sylvio de Vasconcelos, “bancos, bicas d’água, tanques e chafarizes, árvores frondosas e esbeltas palmeiras completam o ambiente em boa disposição paisagística”.30 Ao que tudo indica, tais jardins eram ordenados segundo figuras geométricas, alternando vegetação e caminhos pavimentados. Os morros são cortados em terraços sucessivos, sustentados por muros de pedra. Assim como nas quintas portuguesas de recreio, das quais descendiam as chácaras mineiras, os proprietários reuniam nestes espaços tanto jardins como atividades de cunho agrícola e de suporte à moradia, gerando uma característica paisagem híbrida. Enquanto alguns dos socalcos serviam para o cultivo de flores, pomares e hortas, outros destinavam-se à lavagem de roupas ou, até, ao pasto de animais. A viçosa vegetação plantada nas quintas suburbanas de Vila Rica distinguia-se na paisagem pelo contraste com o que sobrara da flora nativa, rasteira em sua maior parte.

28

DEBRET, Jean-Baptist. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Martins, 1949.

v.1, p.104. 29

BUNBURY, James Fox. [atribuição] Narrativa de viagem de um naturalista inglês ao Rio de Janeiro e Minas Gerais. 1833-35. ANAIS DA BIBLIOTECA NACIONAL, v.63, 1941. p.69. 30

VASCONCELLOS, Sylvio. Vila Rica. São Paulo: Perpectiva: 1977. cit. p.104.

471

PASSEIOS PÚBLICOS

O mesmo retardamento que se observa na difusão de jardins privados em Portugal e suas colônias, ocorre em relação aos jardins públicos, quer o parâmetro de comparação sejam outras regiões da Europa quer seja a própria América. Na cidade do México, por exemplo, as obras da Alameda tiveram início em 1592, por ordens de D. Luís Velasco, vice-rei da Nova Espanha.31 Em Paris, os primeiros parques públicos urbanos são da mesma época. No século seguinte o exemplo seria generalizado e os jardins e parques urbanos se espalham pelas cidades européias dentro de uma certa gama de variações. Uma primeira variante a considerar é a das alamedas, aqui entendidas como composição linear de árvores rigidamente enfileiradas. O objetivo explícito do plantio de árvores era obtenção de sombra mas, plasticamente, buscava-se uma exacerbação do efeito de perspectiva. Historicamente, as alamedas aparecem como um recurso de enquadramento paisagístico da arquitetura palaciana. Em seu uso urbano, elas raramente apontavam para algum palácio. Tornaram-se, assim, um exercício de perspectiva pela perspectiva ou recurso retórico para a afirmação de que se tratavam de paisagens construídas. As alamedas urbanas plantadas a partir do final do século XVI destinavam-se ao passeio das classes abastadas, a pé ou de carruagem. Foi a prática desse tipo específico de passeio que mais se assemelhava a um desfile, o corso, que deu nome aos Cours franceses. O mais famoso deles foi mandado construir pela rainha italiana da França, Maria de Medicis, em 1616: Cours de la Reine. Outro fator a incentivar a difusão das alamedas foi o sucesso dos jogos de bola e do palla maglio, os quais

31

SEGAWA, Hugo. Ao amor do público; Jardins do Brasil. 1779-1911. São Paulo: USP, 1994. Tese apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. policopiada.. p.49.

472

requeriam espaço ao ar livre para a sua prática.32 Este jogo de origem italiana emprestou o seu nome ao Pall Mall londrino. Outra vertente paisagística era constituída pelos jardins públicos inspirados nos das villas italianas ou naqueles construídos segundo o modelo de Le Nôtre. Em alguns exemplos, eles eram projetados especificamente para o uso do morador da cidade, rompendo o vínculo com casas e palácios que estava na origem de sua concepção de mediador entre o construído e o natural. São jardins palacianos sem palácios. Em outros casos são os próprios jardins palacianos que foram abertos a público determinado. Uma terceira vertente é constituída pelos hortos botânicos, que correspondem ao espírito científico da época e à necessidade de aclimatação de plantas exóticas. O Brasil seiscentista conheceu um desses hortos, mandado construir pelo Príncipe Maurício de Nassau, em Recife. Alguns desses jardins botânicos eram fechados mas, em outros, admitiu-se o uso para recreação. Que nenhuma pessoa possa cortar choupo Em Portugal, desde a Idade Média, era comum que nos rossios e campos do entorno das cidades fossem plantadas algumas árvores de sombra. Contudo, isto não chegava a configurar uma intenção paisagística. A criação dos primeiros jardins públicos só ocorreria no século XVII, quando, por influência espanhola, começam a ser plantadas algumas alamedas. A mais conhecida das alamedas portuguesas foi a da Porta do Olival, no Porto, plantada por ordem de Filipe III próxima ao novo tribunal da relação. A intenção era abrir um postigo nos muros da cidade de forma a facilitar a comunicação entre o tribunal e este espaço arborizado, plano que não se concretizou. Todavia, o inusitado da proposta provocou fortes resistências por parte da câmara. Em 1612, o procurador da cidade tentou impedir o início das obras, alegando

32

O palla maglio era um jogo italiano, jogado com um bastão e uma bola, que está na origem do cricket inglês, do beisebol americano ou mesmo do bete (ou taco), jogo infantil muito difundido no sul do Brasil.

473

que o crescimento das árvores comprometeria o sistema defensivo portuense, pois os inimigos poderiam usá-las como abrigo para se aproximarem dos muros. Outra restrição apresentada era que os mesteirais fabricantes de cordas perderiam o espaço onde costumavam trabalhar. A essas objeções o Desembargador da Relação e Corregedor da cidade respondeu ironicamente. Se o inimigo se aproximasse, bastava cortar os choupos e, quanto aos cordoeiros, estes já haviam manifestado a sua concordância que era muito melhor trabalhar à sombra. Assim, mandou que a obra da alameda tivesse seqüência. A câmara recorreu ao monarca protestando contra a atitude do desembargador, o que foi inútil. Segundo o historiador Francisco Ribeiro da Silva, a Alameda da Cordoaria “era constituída por um enorme retângulo, distribuindo-se as plantas por 17 ruas de 110 a 120 metros de profundidade e de 5 a 6 metros de largura.”33 A resistência concelhia a esta modalidade de paisagismo deve ter diminuído com o tempo. Nas décadas seguintes, a própria câmara portuense arborizou o entorno das fontes de abastecimento de água situadas fora dos muros. Numa delas, fez instalar bancos de pedra sob as árvores. Em 1718, a câmara de Setúbal encarregar-se-ia de mandar plantar uma alameda no

A CORDOARIA

rossio da vila. Simultaneamente, ela criou uma postura que estabelecia severas penas para quem danificasse as

árvores.

Que nenhuma pessoa possa cortar choupo ou álamo dos que novamente se andam pondo, e ao diante se puserem, Do campo do Rocio, que vai para o Senhor do Bom Fim, nem possa cortar ramo das árvores que já estão postas e criadas em o dito campo e alameda; com pena de que sendo peão será publicamente açoutado, com baraço e pregão, e degredado dois anos para África; e sendo pessoa de maior qualidade a que fizer o dito corta mento, incorrerá em o mesmo degredo, com pregão em audiência, e

33

SILVA, Francisco Ribeiro. O Porto e seu termo (1580-1640); os homens, as instituições e o poder. Porto: Arquivo Histórico da Câmara Municipal do Porto, 1988. v.1. p.90.

474 ruas; e outros serão condenados em vinte mil réis metade para o acusador e outra metade para o concelho.34

As árvores devem ter resistido à depredações e crescido, pois outra postura municipal, de 1742, proibia o trânsito de carros pela Alameda do Senhor do Bom Fim.35 Passeio bonito e asseado, ao velho gosto francês Lisboa esperaria um pouco mais para contar com jardins públicos. D. João V, além de ter introduzido o gosto francês, foi responsável pela primeira proposta de criação de um espaço deste tipo na cidade. Em 1742, um projeto de aterro das margens do Tejo previa a criação de uma rua direita e de um Passeio Público em Lisboa. Plano que nunca saiu do papel.36 A idéia seria retomada durante a reconstrução de Lisboa após o terremoto de 1755, momento simbólico de aggiornamento de Portugal. Os planos iniciais da nova Lisboa não previam a criação de nenhum jardim público. Todavia, no andamento da reconstrução, tal lapso seria preenchido. Em 1764, tiveram início as obras do Passeio Público, apresentado como uma especial doação do conde de Oeiras à população lisboeta. Considerando a magnitude das obras de reconstrução, o espaço reservado a esse jardim era tímido. Tratava-se de um retângulo, de aproximadamente 90 x 300 m, aproveitando o vale formado pelas colinas de S. Roque e Santana. A linearidade desse espaço foi acentuada no projeto de Reinaldo Manuel dos Santos que concebeu uma simples alameda.

34

SETÚBAL. Posturas municipais. In: PIMENTEL, Alberto. Memória sobre a história e administração do Município de Setúbal. Setúbal: Câmara Municipal, 1992. p.94. 35

SETÚBAL. Posturas municipais. p.97.

36

FRANÇA, José Augusto. Lisboa: urbanismo e arquitectura. Lisboa: ICALP, 1980. p.34.

475

Não existem fontes iconográficas que nos dêem uma visão mais precisa da primeira configuração do parque. A mais antiga representação do Passeio é um projeto de detalhamento, datado de 1771, existente no acervo da Casa do Risco. Trata-se, entretanto, de um estudo posterior à inauguração, que jamais foi executado. Em tal projeto, a alameda aparece ocupando a totalidade do retângulo desapropriado para a instalação do Passeio, o que nunca aconteceu. De fato, este espaço não foi ocupado exclusivamente pelo parque. Nas duas extremidades foram deixados pequenos largos, de onde partiam as ruas que ligavam o parque às praças do Rossio, ao sul, e da Alegria, ao norte. O Passeio propriamente dito era cercado por altos muros, que, em cada lateral, eram vazados por cinco janelas gradeadas. Nas extremidades existiam portões de madeira bruta, colocados provisoriamente para a inauguração, mas que acabaram por permanecer durante décadas.

476

A simples alameda proposta por Reinaldo Manuel, foi sendo paulatinamente acrescida de novos elementos. Na virada o século XVIII para o XIX, o sueco Carl Ruders descreveu-o como “bonito e asseado, ao velho gosto francês”.37 Talvez a configuração, descrita por Ruders, seja a que aparece numa planta de Lisboa, da primeira década do século XIX, onde o Passeio não é mais uma simples alameda mas uma composição geométrica mais complexa.

A partir de 1835, o Passeio Público passaria por uma grande reforma. Os antigos muros foram substituídos por pilares de cantaria e grades de ferro. Na extremidade sul, os antigos portões de madeira deram lugar a outros, de ferro forjado.

37

RUDERS, Carl Israel. Viagem em Portugal. 1798-1802. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1981. citado por SANTOS, Piedade Braga et alii. Lisboa setecentista vista por estrangeiros. Lisboa: Livros Horizonte, 1987. p.73.

477

Ao norte, foi construído uma espécie de mirante italiano, rodeado de balaústres, ao pé do qual havia um tanque redondo. Ao fundo, inserida em um nicho sob o terraço, havia a estátua de uma romana portando ânfora, de onde brotava a água que enchia o lago. Todo o conjunto, numa situação um tanto forçada, destinava-se a imprimir ao jardim aquela feição mediterrânica, à qual já nos referimos. Na década de 1880, o jardim foi destruído para dar passagem à avenida da Liberdade, transformando-se num bulevar. Durante o período compreendido entre essas duas balizas cronológicas, o jardim conseguiu cumprir a função prevista em sua concepção: lugar de passeio de citadinos abastados. Apesar do nome, o público a que se destinava o passeio era restrito. O populacho deveria permanecer do lado de fora dos muros e, quando muito, espreitar pelas grades que o cercavam. Após o Passeio Público, outros espaços vegetados foram implantados em Lisboa, a começar por uma praça no novo bairro das Amoreiras, ajardinada em 1771.38 No início do século XIX, foram iniciadas as obras de reformulação do Campo Grande, com o plantio de um Bois ou Hyde Park que, segundo José-Augusto França, não teve maiores conseqüências urbanísticas na época.39 Apesar do exemplo lisboeta, a difusão de passeios públicos em Portugal foi bastante lenta. Na cidade do Porto, somente com o Plano de Melhoramentos de 1784, previu-se a realização de diversas obras urbanas nas quais transparece um sentido paisagístico.40 O plano portuense, além da regularização de diversas praças apontadas como locais de “recreio público”, propunha que se preservasse o monte fronteiro à igreja de Nossa Senhora da Lapa, “por ser ele muito próprio, para nele se formar um edifício público, que pela sua dilatada vista sirva de recreio a esta cidade”. Junto à ponte da Cedofeita, onde havia um manancial de águas minerais, deveria ser construída uma

38

FRANÇA. Lisboa pombalina. p.131.

39

FRANÇA. Lisboa: urbanismo. p.61.

40

Ver SILVA. O Porto. v.1. p.91.

478

fonte “rústica”. Por último, o plano previa a mudança da cordoaria, de modo a liberar a alameda do campo da Porta do Olival, para transformá-la em Passeio Público, o que acabou não acontecendo.41 Como se percebe, a antiga alameda portuense ainda existia, mas não era considerada um Passeio Público. A praça de São Lázaro, oficialmente o primeiro Passeio Público do Porto, seria aberta apenas em 1834, já na segunda voga dos passeios, época em que os de Lisboa e do Rio de Janeiro foram reformados. Só depois disso, a antiga cordoaria seria transformada e reconhecida como passeio. Mais para o final do século, seria aberto o grande jardim da Torre da Marca, onde, em 1865, foi construído o Palácio de Cristal.42

INTERESSE PELA CAUSA PÚBLICA Nas colônias, o início da difusão de espaços arborizados ou ajardinados, criados especificamente para o recreio dos moradores das cidades, ocorreria na década de 1770. Independentemente de suas peculiaridades formais, eles foram descendentes diretos daquele criado por Pombal em Lisboa. Sob dois aspectos, o marquês estabeleceu uma tradição. A maior parte dos jardins públicos das colônias imitava no nome o modelo lisboeta: Passeio Público. Além disso, faria escola o caráter de doação pessoal que o marquês procurara imprimir à sua obra.43 O ato pombalino de apresentar ao público urbano o jardim como doação graciosa da autoridade de governo foi copiada por diversos governantes das colônias. Não foi à toa que os dísticos AO AMOR DO PÚBLICO e INTERESSE PELA CAUSA PÚBLICA foram gravados em pedra nos marcos de fundação dos Passeios Públicos do Rio de Janeiro ou de Luanda. O primeiro Passeio de que se tem notícias nas colônias foi mandado construir, em 1771, pelo governador de Angola D. Francisco Inocêncio de Sousa

41

ALVES, Joaquim Jaime B. Ferreira. O Porto na época dos Almadas; arquitectura; obras públicas. Porto: Câmara Municipal, 1990. p.231. 42

MARQUES, H. & alii. Porto; percursos nos espaços e memórias. Porto: Edições Afrontamento, 1990. p.41-3. 43

SEGAWA. Ao amor. p.69.

479

Coutinho. Como tantos outros governadores ilustrados, Coutinho aliava preocupações militares, econômicas e urbanísticas que redundaram em grandes mudanças no panorama urbano de Luanda. São de seu período de governo a Alfândega, o Trem Nacional (arsenal) e a Casa dos Contos, edifícios monumentais para a época e que ainda hoje existem. A leste da cidade, mandou construir a fortaleza de São Francisco, no local do antigo baluarte do Penedo. Entre a igreja de N. S. de Nazaré e a nova fortaleza fez abrir um passeio arborizado. Não existem plantas ou descrições mais detalhadas deste espaço. Pode-se apenas supor, com os poucos elementos disponíveis, que se tratava de uma espécie de alameda arborizada. Elias da Silva Corrêa, militar nascido no Brasil, que permaneceu em Angola entre 1782 e 1789, refere-se ao Passeio de Souza Coutinho nos seguintes termos:

A rua, que mandou abrir da Nazareth, à Fortaleza de S. Francisco, conhecida pelo nome de Passeio do Penedo, a fez ornar de frondosas árvores, que deleitavam pela vista, e pela sombra: o tempo, e o descuido as Consumiram depois da época do seu governo.44

Esta primeira tentativa de criação de um passeio arborizado, teve vida efêmera. Sabe-se que, já em 1779, ele havia sido transferido “para mais dentro da terra para melhor cômodo”.45 A história dos passeios públicos de Luanda não termina aqui e mais adiante voltaremos a ela. Pode-se presumir que, na mesma época, tenha sido criado um passeio na costa oriental da África. Trata-se de uma questão ainda por esclarecer. Desde a década 1780, as plantas de Moçambique insistem em representar um grande jardim retangular na região norte da ilha. A contrapartida embaraçosa é o extremo silêncio das muitas descrições da cidade feitas no mesmo período. O grande urbanizador de Moçambique foi Baltazar Manuel Pereira do Lago, que governou a capitania de 1765 até 1779,

44

CORREIA, Elias A. da Silva. História de Angola. Lisboa: s.ed., 1937. p.31.

45

BATALHA, Fernando. A urbanização de Angola. Luanda: Museu de Angola, 1950. p.10.

480

quando morreu no exercício do cargo. A sua atuação corresponde ao perfil dos governadores que, no final do século XVIII, iniciaram o paisagismo público nas colônias. No continente, em frente à ilha de Moçambique, ele estabeleceu uma ermida e uma quinta onde foram plantadas árvores de espinho e construídos poços de água doce, “servindo as casas, e seu pomar excelente, para residência e recreio dos capitães generais”.46 Isto, porém, não nos fornece qualquer certeza quanto à autoria e a época da fundação do mencionado jardim. Todavia, há uma grande possibilidade de que este tenha sido o primeiro passeio público colonial português, anterior, inclusive, ao de Luanda. Na

região

da

cidade onde se localizava o jardim, ficava uma das fontes que a abasteciam. É provável que ele tenha sido criado

aproveitando

este

manancial, já que a ilha era carente de água. A primeira representação deste lugar, no qual ele, positivamente, é indicado como Passeio é uma vista do início do século XIX.47 No Brasil, a historiografia costuma considerar que o primeiro Passeio Público foi o do Rio de Janeiro, iniciado em 1779, e inaugurado em 1783. Entretanto, antes disso, foram criados pelo menos dois jardins públicos, de menor porte que o carioca. Tudo indica que o primeiro jardim público da colônia americana foi construído em Vila Bela, localidade especialmente projetada e edificada para ser capital do Mato Grosso. O fundador da vila, D. Antônio Rolim de Moura, construiu um grande palácio que

46

ANDRADE, António Alberto de. Relações de Moçambique setecentista. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1955. p.379-80. 47

Ver seqüência cartográfica e de vistas da cidade em ILHA DE MOÇAMBIQUE EM PERIGO DE DESAPARECIMENTO; uma perspectiva histórica, um olhar para o futuro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987.

481

ocupava três quarteirões da planta quadricular da cidade. Dentro dos muros do palácio foi criada uma alameda, como aparece numa planta de 1773. Em outra planta, datada de 1780, este jardim aparece segmentado pela junção dos dois trechos da rua da Virgem, que, até então, era interrompida pelos muros do palácio de Rolim de Moura. Formaramse, assim, dois jardins. Um deles era tipicamente palaciano. A planta representa-o dividido em quatro retângulos. Em dois deles estão inscritos trapézios, no centro dos quais estão localizados elementos circulares. Uma disposição muito semelhante à da atual bandeira do Brasil. Na segunda seção do jardim aparece a antiga alameda que, na representação, estava sendo ampliada pelo plantio de novas árvores. Da seqüência de mapas, pode-se inferir que no intervalo compreendido entre a elaboração dos mesmos, 1773-1780, o jardim do antigo palácio de Rolim de Moura foi aberto ao público.

Na mesma época, D. Luiz da Cunha Menezes, que assumiu o cargo de governador de Goiás em 1778, ordenou a criação de um outro passeio público. Tratavase de mais um daqueles funcionários ilustrados, que, seguindo o padrão da época,

482

ocuparam-se da urbanização das sedes de suas capitanias. Ele foi o responsável pelo “alinhamento das ruas da capital, o aperfeiçoamento dos seus edifícios [... e pela] criação de um passeio público na praça mais importante da vila”.48 O governador aproveitou um logradouro preexistente, o largo do chafariz, onde mandou plantar uma alameda ou Passeio Público. Note-se que no local já haviam existido árvores, as quais tinham sido cortadas no governo de João Manoel de Menezes, por se dizer que as suas raízes danificavam as águas da fonte pública.49 Uma planta de 1782 confirma o traçado em alameda do Passeio Público de Vila Boa. O projetista utilizou o chafariz barroco da vila como ponto focal da composição em perspectiva.

Uma encantadora vista das orlas A tendência a criar alamedas, iniciada com o Passeio Público de Lisboa, só seria rompida com o do Rio de Janeiro, construído por ordem do vice-rei, D. Luís de Vasconcelos. São bastante raras as informações disponíveis sobre as obras do Passeio carioca, que se desenvolveram entre 1779 e 1783. O vice-rei foi bastante lacônico a esse respeito. Em seu relatório de transmissão do cargo ao sucessor ele explicou, em tom lamentoso, a origem dos recursos que foram “consumidos nas obras do Passeio Público, a que as pequenas rendas da Câmara, e as poucas forças da Fazenda Real não podiam acudir”.

48

SOUZA, S. A. Silva e. Memórias goianas. citado em ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Anais da Província de Goiás (1863). Goiânia: Secretaria de Planejamento e Coordenação, 1978. p.241. 49

SOUZA. Memórias goianas. p.241.

483 Segui o meio termo de mandar para a fortaleza da Ilha das Cobras todos esses vadios, que se encontram em algum comisso, fazendo-os trabalhar nos seus ofícios; e passando o rendimento e produto das obras que se vendem para um cofre, que mandei estabelecer no calabouço, para se aplicarem as importâncias que ali se vão ajuntando às obras públicas desta cidade. No mesmo cofre se guardam as que respeitam os açoutes dos escravos que os seus senhores mandam castigar [....].50

O projeto foi encomendado a Valentim da Fonseca e Silva, polivalente artista do século XVIII, que era ao mesmo tempo ourives, entalhador, escultor, pintor, arquiteto e urbanista. O mestre Valentim, como ficou conhecido, era um mulato brasileiro que havia estudado em Portugal, e foi o parceiro de D. Luís na maioria das obras urbanas de seu governo. A escolha da área para a execução do passeio recaiu sobre um dos alagadiços costeiros que eram apontados como causa da insalubridade do Rio de Janeiro. A construção do passeio foi, simultaneamente, intervenção paisagística e obra de saneamento de um manguezal, aterrado com o desmonte de um morro vizinho. Para impedir o retorno da água do mar, o aterro foi consolidado com a construção de uma muralha de contenção que estabeleceu uma nova linha de costa. A proposta de Valentim previa um jardim em hexágono irregular recortado por uma trama de áleas retilíneas. Sobre a muralha de contenção foi projetada uma esplanada com balaustres, onde foram dispostos bancos e dois pavilhões octogonais. Este terraço foi concebido como um mirante, de onde se podia apreciar o panorama da baía da Guanabara. Na base do desnível entre a esplanada e o jardim, foi localizado um conjunto escultórico aquático ladeado por duas escadas que interligavam os dois níveis de que se compunha o Passeio Público. O jardim era murado e seu acesso se fazia por um portão monumental. O eixo de simetria da composição era constituído por uma alameda que ia do grupo escultórico ao portão.

50

RIHGB, tomo 4, 1842, p.165. CARVALHO, Anna Maria Monteiro de. Um programa de sombra e água fresca para o carioca; o Passeio Público e o Chafariz das Marrecas de mestre Valentim. BARROCCO, Ouro Preto, n.15, 1990-2, p.242.

484

No geral, o Passeio Público do Rio de Janeiro foi bastante apreciado por quase todos que o descreveram. Os viajantes estrangeiros apenas estranhavam o seu abandono e o péssimo estado de conservação em que era mantido.

Este terreno é disposto com arbustos, gramados, alamedas e canteiros. Aqui e ali se elevam caramanchãos, nos quais se entrelaçam jasmins, clematites e maracujás com seus galhos trepadeiras. Nós observamos várias plantas nativas de grande beleza, mas uma veemente vontade parecia prevalecer em cultivar, preferencialmente, plantas de origem européia, não obstante sua doentia e pouco apreciável aparência, contraídas num clima tão inadequado para sua constituição. Mas o mais desprezível objeto no jardim era uma miserável imitação de um pé de papaia em cobre [na realidade uma palmeira fundida em ferro], de tamanho natural e pintado de verde, enquanto a planta verdadeira, ao seu lado em toda sua exuberância tropical, desdenhada sua desajeitada e desfigurada imitação. Um grande terraço na parte final do jardim, mirando uma parte da enseada, dominava uma encantadora vista das orlas emergindo das águas, em toda parte rendilhada com matas. Em cada ponta do terraço há um elegante pavilhão quadrado, cujos interiores abrigam pinturas.51

51

BARROW, John. A voyage to Conchinchina in de years 1792 and 1793. London: T. Cadell, 1806. p.81. citado em SEGAWA, Ao amor. p. 76-7.

485

No quadro do paisagismo português, o projeto de Valentim era bastante original, pois afastava-se da maioria dos jardins palacianos ou das quintas, nos quais a composição geométrica era quase que invariavelmente quadrangular. Um dos raros casos de composição paisagística radial eram os jardins do Palácio de Queluz. É difícil estabelecer o quanto Valentim inspirou-se neste exemplo áulico de gosto francês, pois as semelhanças entre os dois jardins pouco vão além do traçado radial. O Passeio do Rio de Janeiro, por fugir da composição em alameda, rompia, também, com um costume que até então vinha sendo mantido no nascente paisagismo público português. Os jardins concebidos pelo mestre carioca tinham um vincado acento mediterrânico, tanto mais notável porque em relação ao terreno isto não era natural. Ele tinha diante de si uma topografia invertida em relação aos seus protótipos do Mediterrâneo. Os jardins à beira-mar da Europa meridional derivavam, quase sempre, de uma colina aplainada em sucessão de socalcos, terminando num terraço equipado com balaustradas e bancos para apreciação da paisagem. Inversamente, no caso carioca, a parte mais alta do terreno era a muralha de contenção situada junto ao mar. A solução encontrada pelo mestre Valentim foi criar uma espécie de jardim mediterrânico invertido. Instalou sobre a muralha a esplanada para contemplação da barra da baia da Guanabara e na sua base o grupo escultórico aquático. A disposição é típica do sistema de rega mediterrâneo, mas no caso temos um recurso apenas retórico pois o nivelamento do terreno é invertido. Isto só foi possível pelo artifício de conduzir a água das nascentes do morro vizinho por cima do muro de contenção de forma a criar esse ‘tanque de rega’.

486

A decoração dos pavilhões foi entregue a dois artistas de sobrenome Xavier. O resultado da intervenção dos dois foi tão, digamos, característica que acabaram definitivamente incorporados a seus nomes. Ao acompanhar a descrição dos pavilhões, feita por Marianno Filho, não será causa de admiração saber que Francisco Xavier Cardoso, se tornasse conhecido como Xavier dos Pássaros, e Francisco dos Santos Xavier, como Xavier das Conchas.

A ornamentação desses espaços livres [do Pavilhão de Apolo] se compunha de arabescos, ramalhetes e flores feitas com penas de pássaros indígenas, sendo branco o fundo da composição. Ornatos mais vigorosos também compostos com penas de aves decoravam as padieiras das portas. [....] No pavilhão de Mercúrio esforçou-se o cascateiro “Xavier das Conchas” por apresentar trabalho ainda mais interessante do que o seu competidor. O programa ornamental desse pavilhão era marítimo. Sobre um fundo geral azul, formavam-se quadros cuja ornamentação era obtida por toda sorte de conchóides de Cabo Frio, búzios, mariscos, conchas pequenas e grandes. Caramujos de todos os gêneros formavam combinações bizarras. Nas sobreportas, encaixou o decorador ornatos em forma de peixe, também arranjados com auxílio de conchas das nossas praias. O efeito ornamental desses pavilhões deveria ser simplesmente grotesco. Mas o povo achou-os admiráveis.52

O termo grotesco, empregado por Marianno Filho como crítica, transposto para o significado da época em que os pavilhões foram construídos, muito provavelmente seria tomado como um elogio. A raridade de manifestações de artes pitorescas e grotescas no Brasil oitocentista, faz com que a maioria dos atuais

52

MARIANNO FILHO, José. O Passeio Público do Rio de Janeiro; 1779-1783. Rio de Janeiro, s.ed., 1953. p.13. O padre Perereca descreveu os pavilhões no início do século XIX. Ver [Padre PERERECA]. SANTOS, Luiz Gonçalves dos. Memórias para servir à história do reino do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Editora Zélio Valverde, 1943. v.1. p.29-30.

487

comentadores do passeio carioca deixe escapar o caráter suigêneris dos pavilhões e do grupo escultórico da fonte dos amores, com seus “jacarés repelentes”.53 Por que o Mestre Valentim, que atendeu suas outras encomendas oficiais com projetos bastante sóbrios, escolheu o Passeio Público como campo de experimentação imaginativa? E por que o vice-rei aceitou um projeto que escapava ao padrão corrente? Pode-se apenas supor que, por tratar-se de uma encomenda não usual, as expectativas do governante fossem pouco consolidadas. Essa falta de parâmetros teria aberto um leque de possibilidades, habilmente exploradas tanto por Valentim como pelos artistas chamados a decorar os pavilhões. Se fossemos traçar um panorama das artes plásticas e decorativas do século XVIII perceberíamos o predomínio de um caráter essencialmente galante. Todavia, essa mesma arte comportou momentos de exacerbação da fantasia representadas por tendências ao grotesco ou ao pitoresco que buscavam provocar nos espectadores um agradável tipo de horror ou diverti-los pela estranheza e novidade.54 Tanto os pavilhões como o grupo escultórico de Valentim, trazem exatamente esse tipo de apelo. O amaneiramento da decoração dos pavilhões de Apolo e Mercúrio nos remete imediatamente a Arcimboldo, pintor do final do século XVI, famoso por seus retratos composto de cereais, frutas, legumes, livros e outros objetos.55 Um outro detalhe a chamar atenção é a escolha das sobreportas como local para os ornatos de penas “mais vigorosos” ou para o peixe composto com cascas de moluscos. As sobreportas foram lugares prediletos dos artistas adeptos do rococó pitoresco. De certa forma esta arte pressagia o romantismo do século seguinte e é interessante perceber o aggiornamento desses dois Xavier e de Valentim.

53

SEGAWA, Hugo M. Os jardins públicos no período colonial e o Passeio Público do Rio de Janeiro. BARROCCO, Ouro Preto, n.12, p.147-59, 1982-3. CARVALHO. Um programa. p.237-50. 54

SYPHER, Wylie. Do rococó ao cubismo. São Paulo: Perspectiva, 1980. p.53 e ss.

55

Para uma interpretação desse tipo de representação ver HOCKE, Gustav. R. Maneirismo: o mundo como labirinto. São Paulo: Perspectiva, 1974. p.229-54.

488

Dentro do mesmo espírito, o mestre concebeu o grupo escultórico da Fonte dos Amores. Trata-se literalmente de uma gruta, à porta da qual “estão dois jacarés de bronze enroscados entre si, lançando pela boca cópia de água em um tanque semicircular”.56 A afirmação artística da flora e da fauna locais parecia estar entre as preocupações de Valentim, que recusou alguns estereótipos, “os eternos tritões de cabelos verdes, ou as sereias achatadas dos jardins da Europa”, como mencionou Ribeirolles.57 A opção pela fauna e flora nativa nas esculturas e na decoração dos pavilhões era contrastada com a preponderância de espécies européias no paisagismo dos canteiros. Isso pode ser explicado pela tensão simbólica provocada pela vegetação nativa que tendia a ser confundida com ‘mato’. O recurso à vegetação européia era uma das formas encontradas para garantir o caráter de paisagem construída que se imaginava condizente com um jardim. O Passeio Público carioca não foi, portanto, um exemplo de paisagismo palaciano em escala reduzida, nem tomou como modelo as grandes alamedas urbanas da Europa. Tratava-se de um pequeno jardim à italiana, como já vimos, no qual se manifestavam elementos que pressagiavam o romantismo. Uma Política Pública Até esse momento, os passeios públicos tinham sido fruto da iniciativa isolada de alguns altos funcionários portugueses. A etapa seguinte foi a do estabelecimento de uma política oficial de criação de espaços de vegetação nas principais cidades do Império. Essa fase não corresponde ao estabelecimento de Passeios Públicos, mas de

56

PERERECA. Memórias. p.29.

57

RIBEYROLLES, Charles. Brésil pitoresque. Citado em MARIANNO FILHO, José. O Passeio Público do Rio de Janeiro. 1779-1783. Rio de Janeiro: Próspero, 1953. p.25

489

hortos ou Jardins Botânicos. Na verdade, uma não sucede à outra propriamente, aparecem quase que concomitantemente. Com a decadência das lavras de ouro das Minas Gerais, o estado português começa a buscar uma alternativa econômica para sua colônia americana. É neste momento que a região amazônica ganha importância. Uma das possibilidades para a região, e também para o império, era desenvolver a exploração de novos produtos tropicais exportáveis para a Europa. Correspondem ao período, os surtos agrícolas do arroz e do algodão no Maranhão. Com o mesmo propósito, empreende-se a busca de essências nativas para uso industrial e medicinal: as drogas do sertão. Simultaneamente, iniciam-se tentativas sistemáticas de aclimatação de espécies trazidas do Caribe, da África e, principalmente, da Ásia. Entre as espécies introduzidas ou difundidas no período conta-se, entre outras, o cânhamo, o anil, o café e o cacau. O estudo da botânica em Portugal ganha impulso com a reforma pombalina da Universidade de Coimbra, e a criação de um jardim botânico naquela cidade (1772). Todavia, o período de apogeu ocorre no reinado de D. Maria I, quando o principal impulsionador dessa política botânica era o italiano Domingos Vandelli, responsável pela criação do Jardim Botânico de Lisboa. Como era freqüente na maioria de seus congêneres europeus, este espaço aliava o colecionismo botânico à função de permitir o contato com a vegetação, possuindo um terraço com balaustradas, construído especificamente para a apreciação da cidade e seu entorno.

O Jardim está extraordinariamente bem situado. Goza-se dele uma vista deliciosa que dá ao mesmo tempo sobre o Tejo e sobre o mar, donde se descobre, como no Jardin des Plantes de Paris, uma grande parte da cidade.58

58

LINK, M. Voyage en Portugal depuis 1797 jusqu’en 1799. Paris: 1803. v.1. p.299. Citado em SANTOS, Lisboa setecentista. p.73.

490

Vandelli foi também o mentor das viagens filosóficas à Amazônia, Angola e Moçambique, as quais tiveram à frente três naturalistas nascidos no Brasil, entre eles, Alexandre Rodrigues Ferreira, mandado à capitania do Rio Negro. No Brasil, a criação de Jardins Botânicos começaria, justamente, pela Amazônia, região considerada mais propícia à exploração de drogas nativas e aclimatação de espécies exóticas tropicais. O primeiro Jardim Botânico estabelecido na colônia americana foi o de Belém do Pará. Na criação deste horto, tiveram papéis decisivos dois dos filhos de D. Francisco Inocêncio de Souza Coutinho, que fundara em Luanda o primeiro passeio público das colônias, se não se levar em conta Moçambique. Em 4 de novembro de 1796, foi expedida a D. Francisco Maurício de Souza Coutinho, Governador da Capitania do Pará, uma ordem régia determinando o estabelecimento do horto belenense. Costuma-se creditar tal iniciativa a D. Rodrigo de Souza Coutinho, que acabara de ser nomeado por D. Maria I para o cargo de Ministro da Marinha e Negócios Ultramarinos. D. Francisco Coutinho entrega a tarefa de criar o Jardim Botânico de Belém primeiro, a Michel du Granuiller e, depois, a Jacques Sahut, dois jovens fazendeiros franceses fugidos de Caiena em 1795, com medo dos escravos libertados pela Revolução francesa. Existia a suposição de que entendessem alguma coisa de botânica.59 No entanto, ambos morrem logo após assumirem o encargo. Quem teria concluindo o jardim botânico esboçado pelos franceses foi um antigo ajudante de Granuiller, o capitão Marcelino José Cordeiro. As descrições que se conhecem do Jardim Botânico de Belém são já do século XIX.

É um espaço quadrado, e toda quadra de cinqüenta braças, todo cingido de um valado com tapume vivo de limão, cujo centro um poço ocupa com parapeito de alvenaria que o contorna e com uma bomba para a irrigação das plantas. o qual e coberto por um grande teto de telha acoruchado. Desta casa pavimentada de ladrilho

59

BARATA, Manoel. Formação histórica do Pará; obras reunidas. Belém: Universidade Federal do Pará., 1973. p.97.

491 vermelho e alvo e guarnecida de poiais partem renques de plantas domésticas e forasteiras já climatizadas, que se cruzam com outras, e dentro dos quadriláteros que elas formam existem latadas cobertas de várias flores, que em torno adereçam o espaço interior, e algumas drogas necessárias ao homem que prova desmancho na saúde.60

Ladislau Monteiro Baena, autor desta descrição, publicada em 1839, foi extremamente crítico em relação ao horto belenense. Tinha sérias dúvidas sobre a competência botânica de seus criadores e considerou que lhe faltava “a competente extensão e uma distribuição metódica” das plantas. Dizia, ainda, que ele não possuía “a mais remota analogia com qualquer estabelecimento do mesmo gênero”. Entretanto, na época em que estava sendo implantado, o jardim botânico de Belém foi considerado um sucesso. A partir de 1798, sempre por ordem de D. Rodrigo de Souza Coutinho, ocorreram diversas tentativas de instalação de outros jardins botânicos no Brasil. As cartas régias que ordenavam a criação de hortos para colecionismo e aclimatação de plantas, mandavam que se seguisse o exemplo paraense. Nesta fase, a maior parte de tais ensaios acabaria por fracassar. Em Salvador, não se foi além da compra do terreno, o qual, no início do século XIX, seria utilizado para a instalação do passeio público da cidade. Os governos das capitanias de São Paulo, Pernambuco e Minas Gerais também receberam instruções com esse objetivo. Apesar disso, pouco foi feito naquele momento. Para Ouro Preto, existe o projeto de um Horto Botânico, datado de 1799 e assinado por Manuel Ribeiro Guimarães, que previa o terraceamento do terreno e a instalação de repuxos.61 No entanto, é pouco provável que o projeto tenha sido executado. Apenas em 1825, teria início a execução do Jardim Botânico mineiro, localizado em local diferente do que fora previsto no plano setecentista.62

60

ver BAENA, Antonio Ladislau Monteiro. Compêndio das eras da Província do Pará. Belém: Universidade Federal do Pará, 1969. 235-6. 61

VASCONCELLOS. Vila Rica. p.105.

62

SEGAWA. Ao amor. p.113-4.

492

Pernambuco era a terra Manuel de Arruda Câmara, um dos mais conhecidos naturalistas brasileiros do período. No entanto, ele estava envolvido em freqüentes viagens de exploração. Apenas em 1810, seria indicado para instalar o horto de Olinda, morrendo antes de assumir a tarefa. A instalação do Jardim Botânico de Pernambuco teve início em 1811, com a chegada de Paul Germain e de espécies trazidas do Jardim de Caiena. No entanto, o projeto não foi muito adiante. O viajante francês Tollenare, considerou que seu conterrâneo que dirigia o horto era inepto, chamando-o de “pensionista de sinecura”.63 A pequena extensão, o desinteresse e a falta de verba mantiveram este Jardim Botânico em permanente estado de abandono. Três décadas depois, o americano Daniel P. Kidder, um protestante enviado ao Brasil para difundir a leitura da bíblia, estranhando a falta de jardins em Olinda, comentou que o mesmo horto da cidade, “apesar de ostentar esplêndidos renques de fruta-pão, mangueiras e altas palmeiras, servia de pasto a uns poucos cavalos velhos”.64 Em São Paulo, no final do século XVIII, um jardim botânico chegou ser esboçado pelo Capitão-General Castro e Mendonça, entretanto foi abandonado logo a seguir. O presidente da província, José Carlos Pereira de Almeida Torres, em 1830, dizia “estar ele transformado em pasto de gado”.65 Pode-se supor que esses jardins botânicos não foram levados adiante por que Souza Coutinho, seu principal mentor e incentivador, havia deixado o Ministério do Ultramar. Iniciado o século XIX, há uma nova onda de criação de praças e parques ajardinados. Na maior parte dos casos, tratava-se do aproveitamento de alguns logradouros preexistentes que, após arborizados e jardinados passaram a ser oficialmente designados de passeios ou passeios públicos. Foi o que ocorreu, por exemplo, no Funchal, a capital da Ilha da Madeira. Na primeira década do século, o

63

TOLLENARE, Louis-François. Notas dominicais. Recife: Secretaria de Educação e Cultura de Pernambuco, 1978. p.133. 64

KIDDER, Daniel P. Reminiscências de viagens e permanências nas províncias do norte do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. p.115. 65

Citado em SEGAWA. Ao amor. p.117.

493

antigo Terreiro da Sé foi arborizado e aparece em mapas da época designado como Passeio. Sabe-se que esse nome não vingou. Entretanto, o terreiro tornar-se-ia, ao longo do século, num efetivo local de passeio galante. Na vila da Praia, a nova capital de Cabo-Verde, o governador António Pusich mandou arborizar o largo da vila, criando um Passeio. Posteriormente, esse passeio foi transferido para a Fonte Ana, na encosta da achada (platô), onde se desenvolvia a cidade.66 O local da antiga fonte de abastecimento de água recebeu melhoramentos, poço revestido e baldes de metal. À volta do poço foram plantadas árvores e instalados bancos. Além dessas iniciativas de menor vulto, o período vai conhecer a instalação de alguns grandes jardins públicos e alamedas no Brasil e na África. Belém era uma cidade contida por uma região pantanosa triangular, o Piri, que a dividia em duas partes e lhe fechava a retaguarda. Após a plena ocupação das regiões ribeirinhas da Cidade e da Campina, a única possibilidade de crescimento era o avanço sobre o Piri que foi, lentamente, ocupado. Em sua passagem pelo governo do Pará, no início do século XIX, o Conde dos Arcos mandou melhorar o acesso entre a cidade e o Jardim Botânico, transformando o antigo caminho coleante em uma via retilínea, que atravessava esta área pantanosa. Perpendicularmente a ela, por iniciativa do Conde ou, mais provavelmente, de seu sucessor, José Narciso de Magalhães e Menezes, foi criada outra via ladeada por mangubeiras (paineiras) que formaram uma imponente alameda, a qual chamava a atenção de quantos descreviam Belém. “A cidade do Pará é por trás contornada pela mais linda alameda arborizada que tivemos ocasião de apreciar no Brasil”, anotou o americano Daniel P. Kidder, em 1839.67 Na lateral desta estrada das Mangubeiras, foi instalado um segundo jardim botânico na cidade, desta vez para acolher as diversas espécies trazidas do saque do Jardim Botânico de Caiena, ordenado por D. João VI, em 1809. O novo horto ficou

66

CHELMICKI, J. C. C. & VARNHAGEN, F. A. Corografia Cabo-verdeana. Lisboa: Typ. de L. C. da Cunha, 1841. v.2. p.231-2. AMARAL, Ilídio do. Santiago de Cabo Verde. Lisboa: s.ed., 1964. p.329. 67

KIDDER. Reminiscências. p.184.

494

conhecido como Jardim das Caneleiras, pois eram estas as árvores preponderantes nas suas instalações. Monteiro Baena e os viajantes que descreveram este jardim são concordes em afirmar que ele nunca atendeu ao seu objetivo, e cedo foi abandonado pelas autoridades paraenses. Também não há notícias que ele tenha sido utilizado para o lazer da população.

Assim, Belém nunca chegou a ter oficialmente um passeio público. No entanto, o conjunto de ruas arborizadas existentes na região do Piri, foi uma exceção no quadro de aridez das cidades brasileiras.

Estes são cortados por estradas bem macadamizadas, das quais a principal é a estrada das Mongubeiras, de cerca de uma milha de comprimento. [....] Cortam-na em ângulos retos vários caminhos relvados e todo o distrito é drenado por um sistema de pequenos canais ou valas que se enchem e esvaziam com o fluxo e refluxo da maré, mostrando como o local é baixo. Antes de eu deixar o país, outros governadores progressistas haviam rasgado certo número de avenidas, arborizadas com coqueiros, amendoeira e outras árvores, em continuação da estrada das Mongubeiras, nas partes mais altas e mais secas, a nordeste da cidade.68

Em Salvador, como já vimos, o Jardim Botânico não chegou a ser implantado. O terreno comprado para essa finalidade, junto ao forte de São Pedro, foi posteriormente utilizado para sediar o Passeio Público da cidade. O responsável pela urbanização do recinto foi o Conde dos Arcos, D. Marcos de Noronha e Brito, que

68

BATES, Henry Walter. O naturalista no Rio Amazonas. São Paulo: Editora Nacional, 1944.

p.39-40.

495

permaneceu no governo da Bahia entre 1810 e 1819. Em 1813, o médico sueco Gustavo Beyer inaugurou a seqüência de descrições elogiosas do passeio soteropolitano. Ele foi “agradavelmente surpreendido por um belo extenso e bem tratado jardim público, que de noite costuma estar caprichosamente iluminado”.69 Como tantos outros passeios coloniais, o de Salvador parece ter permanecido vazio na maior parte do tempo. Contudo, ao contrário da maioria dos seus congêneres, ele foi corretamente mantido, até entrar em decadência mais para o final do século XIX. Em 1860, um outro viajante, o príncipe naturalista Maximiliano de Habsburgo, sempre tão detalhista e propenso a ridicularizar o império tropical de seu primo Pedro II, deleitou a sua sensibilidade romântica no Passeio, sem deixar registrado um único reparo. Apesar de ser tardia em relação ao período estudado, vale a pena reproduzir a descrição deixada pelo desafortunado futuro imperador do México.

O Passeio Público da Bahia fica situado entre dois terraços, no alto da colina já muitas vezes mencionada, no estilo arquitetônico do Sul [da Europa], no qual natureza e arte se unem, de maneira harmoniosa. Os terraços são maravilhosamente ornados com ricas balaustradas vasos e estátuas, de mármore de Carrara, no estilo barroco italiano. Fontes - em forma de monumentos - e terraços com muitos bancos enfeitam os pontos principais. Canteiros com as flores mais perfumadas, nas cores mais brilhantes, orlam os caminhos e demais áreas, enquanto as trepadeiras mais encantadoras pendem sobre as balaustradas das escadas.70

Nesta descrição, fica patente o caráter europeu meridional impresso ao passeio baiano. A implantação em colina, a sucessão de terraços em desnível ligados por escadarias, as balaustradas encimadas por compoteiras, os muros de arrimo, os elementos escultóricos aquáticos, tudo isso conferiu ao Passeio Público de Salvador o ar de mediterraneidade castiça, reconhecido pelos viajantes nórdicos que o visitaram no século XIX.

69

BEYER, Gustav. Ligeiras notas de viagem do Rio de Janeiro à capitania de São Paulo. REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE SÃO PAULO, São Paulo, 1908, v.12. p.275. 70

HABSBURGO, Maximiliano de. Bahia 1860; Esboço de viagem. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1982. p.97.8.

496

A localização alcandorada eximiu o projetista de recorrer a subterfúgios topográficos, como no Rio de Janeiro. Entretanto, a exemplo daquele parque, a escolha de espécimes vegetais do Velho Mundo foi usada para acentuar o apelo artificial e europeu da composição paisagística. “Entre todos os jardins que vimos no Brasil, este é o que mostra mais os característicos da floricultura Européia”, anotaram os naturalistas Spix e Martius.71 Em Angola, o Passeio do Penedo, iniciado por D. Francisco Inocêncio de Souza Coutinho, seria consolidado apenas em 1816, pelo vice-almirante Luís da Mota Fêo e Torres, que, junto com o primeiro, foi um dos governadores mais preocupados com a urbanização de Luanda. O almirante fez acoplar ao traçado linear do primeiro passeio um novo espaço, que ficou conhecido por Passeio da Ponta da Isabel. Se a experiência levada a cabo por Coutinho parece ter sido isolada, as raízes da de Mota Fêo podem ser encontradas no Brasil. Antes de ir para a África, ele fora governador da Paraíba e, posteriormente, participou do Supremo Conselho Militar no Rio de Janeiro, de onde saiu para Angola, em 1816. Entre as obras mais notáveis deste “suavíssimo” governante, destacam-se, justamente, dois jardins. Além do Passeio Público da Ponta da Isabel, foi de sua autoria uma nova praça construída na cidade alta, em frente ao Palácio do Governador, de onde se descortinava a paisagem. Autoria em strictu sensu, pois ele pessoalmente projetou os dois espaços e supervisionou as obras. O novo Passeio Público de Luanda, localizado junto ao mar, em uma saliência arenosa da baía de Luanda, teve a salubridade como justificativa. Só que, neste caso, não se tratava de sanear um local insalubre, mas de apropriar-se urbanisticamente de uma região reconhecida pelos moradores pela qualidade de seus ares. A escolha do local foi assim justificada pelo almirante: “a freqüência por aquele sítio me fez observar, que todos os doentes em estado de convalescença, procuravam aquele lugar como meio para

71

MARTIUS, C. F. P. von & SPIX, J. B. von. Viagem pelo Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938. v.2. p.287.

497

mais facilmente obterem o seu restabelecimento”. Dizendo-se penalizado com o triste espetáculo de ver os doente a passear num areal estéril, o governador, resolveu urbanizar o local.

Desejando pois melhorar a sorte de todos os Habitantes em geral que tenho a honra de governar, não era possível que eu perdesse de vista, procurar meios de livrar os enfermos daquele penível apuro, e em conseqüência tendo observado a salubridade do ar, e a formosura da situação, onde dirigiam os seus trêmulos, e aflitos passos. Eu procurei logo fazer construir um passeio público naquele sítio, cuja obra se acha quase concluída, tendo já bastantes arbustos em vegetação, faltando a plantação de outros, a qual terá lugar nas primeiras chuvas; mas graças ao Todo Poderoso que já os desgraçados enfermos acham ali um passeio cômodo, espaçoso e ameno. 72

Não se conhecem planos ou plantas deste Passeio Público, que já não mais existe. Entretanto, uma descrição deixada pelo filho do governador nos permite fazer uma idéia bastante precisa de como teria sido.

Contém 434 árvores de sombra, além das frutíferas, formando 5 ruas, sendo a do meio dividida em nove quarteirões, tendo cada um uma Pirâmide nos dois extremos: a largura, do seu terreno, é de 60 braças 5 pés Oeste, e o comprimento 189 bas Sul, contando da casa até a entrada. Esta descreve um círculo, a que serve de diâmetro a estrada, que vai para a fortaleza do Penedo e na qual também se plantaram 570 árvores. Os dois semicírculos estão ornados com pirâmides e gradarias, tendo o lado oposto ao passeio, assentos para descanso dos viajantes, e o da entrada um Magnífico Portão entre 4 colunas e seis lampiões. No fim do passeio, levantou o Governador, para Casa de Campo dele e de seus Sucessores, um edifício construído à Chinesa, com varanda sobre uma meia laranja, possuindo a agradável e triplicada vantagem, de descobrir em um golpe de vista, a Cidade, o Campo e o Porto, gozando também da entrada dos navios e da passagem dos Barcos, que vem do Coanza, Dende ou Bengo. Era este jardim, destinado para um horto farmacêutico, do qual fornecessem as Boticas de Luanda: a água para as regas, tira-se com bombas de um poço para tanques.73

A chinesice, ou chinoiserie, foi outro dos modismos exóticos ligados à arte rococó, principalmente na Inglaterra. É bem provável que a fonte de inspiração do

72

TORRES, J. C. Feo Cardozo de Castelobranco e. Memórias; contendo a biographia do Vice Almirante Luiz da Motta Feo e Torres, a história dos Governadores Geraes de Angola, desde 1575 até 1825 e a descripção geographica e política de Angola e de Benguella. Pariz: Fantin livreiro, 1825. p.90 73

TORRES. Memórias. p.316-7.

498

“suavíssimo almirante” tenha sido o pavilhão chinês que, no século XVIII, a princesa D. Maria fizera construir nos jardins do palácio de Queluz. Neste sentido, o pavilhão do almirante era uma manifestação tardia pois, quando foi construído, em Portugal e no Brasil, afirmava-se já o gosto neoclássico. O jardim do Palácio do Governador, mais do que o próprio Passeio Público, parece ter sido a menina dos olhos do almirante Mota Fêo. Ele empenhou-se particularmente em acabar rapidamente essa obra, com o objetivo de fazer coincidir a sua inauguração com a data da aclamação de D. João VI ao trono português. Para tanto, não

poupou

esforços.

Estava

previsto

que

os

trabalhos

fossem

tocados

ininterruptamente, 24 horas por dia, desde 17 de fevereiro até a inauguração, em 7 de abril de 1817. Durante o dia deveriam trabalhar escravos cedidos pelos moradores de Luanda, que, à noite, seriam rendidos pela tropa.74 O esquema não parece ter funcionado a contento, pois a praça foi inaugurada semi-pronta na data prevista.

À exceção do que falta a concluir no dito pedestal, a obra da Praça pode-se dizer finalizada: ela ficou, ao meu ver, magnífica, e envio o seu plano para melhor conhecimento de V. Ex.a. explicando que a entrada é majestosa, e vai ficando muito aprazível, pois é ornada com mais de oitenta árvores silvestres, que já vão brotando, e fazendo sombra aos assentos, que mandei fazer para comodidade do público: no dia da Aclamação já o terreno da mesma praça estava terraplenado, o que deu maior garbo às grandes Paradas, que tiveram lugar nos dias 7, 8 e 9, dando muito espaço para as manobras que a Tropa fez nos referidos três dias.75

Neste jardim, a influência brasileira também se faz notar. O pedestal inconcluso, a que se refere o governador, era bastante semelhante ao do chafariz instalado no largo do Carmo, no Rio de Janeiro.76 Outro jardim cuja construção homenageava D. João VI, foi criado na Vila Real da Praia Grande, mais tarde, Niterói. Neste passeio, há uma série de inversões de

74

TORRES. Memórias. p.65-7.

75

AA, v.18, p.90.

76

BATALHA. A urbanização de Angola. p.13.

499

sinal em relação ao que até então vinha sendo praticado. Desde Pombal, firmara-se a tradição de que os passeios eram uma oferta dos dignatários ao público. No entanto, o de Niterói é uma oferta da câmara ao monarca.

A Câmara de Vila Real da Praia Grande, depois de levantar a Vossa Majestade um monumento de lealdade, amor, e gratidão, sobre assento puro de seus corações fiéis, desejando levar à eterna posteridade a Saudosa Memória do Faustíssimo Dia 13 de Maio de 1816, no qual Vossa Majestade se Dignou Honrar este Sítio com a Sua Real Presença, celebrando tão sagrado Dia sobre o Campo chamado de Dona Helena: concorrendo ali a Corte formalmente, com Tribunais: tem a honra de pedir a Vossa Majestade licença para levantar sobre o dito Campo, chamado de Dona Helena, um Passeio Público, segundo o Plano junto, que será denominado - Passeio da Memória.77

Outra diferença notável, é que o Passeio da Memória foi construído por iniciativa da câmara municipal. Desde a resistência oposta pela câmara do Porto à construção da Alameda da Cordoaria, ordenada por Felipe III, as câmaras de Portugal e das colônias notabilizaram-se mais pelo combate ao verde do que por uma adesão às árvores e jardins. O Passeio público de Niterói é uma das raras exceções. A iniciativa de sua criação é creditada a José Clemente Pereira, juiz de fora da vila, que, depois, se notabilizaria por sua participação na independência brasileira. A Vila Real da Praia Grande, foi uma das diversas vilas novas criadas nos reinados de D. Maria I e D. João VI. Neste período, primeiro era criada uma infra-estrutura urbana mínima, executada segundo um projeto, para, só então, oficializar-se a instalação, dando novos foros à localidade. O projeto de Niterói foi encomendado ao francês Armand Jullien Pallière, que chegara ao Brasil no navio que trouxera da Europa Dona Leopoldina, futura imperatriz do Brasil. Pallière foi responsável pelo projeto reticular do arruamento da futura vila, concebido em 1818, no qual já está previsto o futuro

77

Citado em SANTOS, Francisco Marques dos. O ambiente artístico fluminense à chegada da missão francesa em 1816. REVISTA DO SERVIÇO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Rio de Janeiro, n.5, 1941. p.238. A solenidade de 13 de maio de 1816, a que se refere o documento, foi uma revista às tropas de voluntários reais feitas na Praia Grande por D. João, no dia de seu aniversário.

500

Passeio Público. Trata-se do único caso em que o projeto de uma vila nova já incorporava um espaço ajardinado para o público.

501

O TERRITÓRIO DO VAZIO: O JARDIM ÀS MOSCAS

A construção deste conjunto de espaços vegetados que se espalhava pelas principais cidades do universo português sugere uma transformação nos hábitos das elites de Portugal e de suas colônias. Para o historiador Miguel Calmon, a construção de passeios públicos no Brasil era um indicador do progressivo refinamento das elites coloniais. Entretanto, há que considerar um certo descompasso entre a existência desses parques e o uso efetivo dos mesmos. As descrições disponíveis para o final do século XVIII, e início do século XIX, são unânimes em apresentá-los como espaços em permanente estado de abandono ou em ruínas. Mesmo o de Lisboa não escapava a essa situação. O pastor luterano sueco Carl Ruders, mesmo achando-o “bonito e asseado”, comentava:

A julgar pela considerável população da cidade o jardim devia achar-se muitas vezes cheio de gente. Pois não é assim, e se as senhoras estrangeiras não o apreciassem mais do que as do país, não seria raro ver o jardim às moscas.78

Um quadro de abandono que se repete em Angola.

No fim da Cidade Baixa, e numa ponta de areia que sobressai ao mar, e à qual chamam ponta da Isabel, há um extenso passeio público com algum arvoredo e um edifício construído à chinesa em três divisões de recreio, à borda do mar, que em 1843 estava em completa ruína. Esta obra, ora em total abandono é um dos monumentos do governo ilustrado e suavíssimo do almirante Luís da Motta Fêo, que será lembrado sempre com veneração.79

No Brasil, a mesma desolação. O viajante alemão Hermann Burmeister anotou em seu relato sobre o Rio de Janeiro (1850-52), que “o único lugar para

78

RUDERS. Viagem em Portugal. p.73.

79

MENEZES, Joaquim Antônio de Carvalho e. Demonstração geographica e politica do territorio portuguez na Guine Inferior, que abrange o Reino de Angola, Benguella e suas dependencias. Rio de Janeiro: Tipografia Clássica de F. A. de Almeida, 1848. p.25.

502

divertimentos coletivos, o Passeio Público, encontra-se vazio todos os dias e todas as horas”.80 É curioso perceber que para explicar esse fenômeno, que atinge unitariamente o universo português, os estudiosos acabam por buscar explicações de cunho regional. No Brasil, como era de se esperar, a historiografia recorre à sempiterna explicação latifundiária, já ensaiada por viajantes do século XIX. O próprio Burmeister, que nos deixou o comentário acima, usou argumentos dessa natureza para explicar o estado de abandono do Passeio carioca.

Não existe propriamente vida de sociedade. Os que têm recursos vivem no campo, na sua “chacá” ou, melhor dito “chácara”, residência campestre, casa e jardim instalados com as posses do dono, donde os elementos femininos da família saem apenas uma vez cada oito ou quinze dias por motivos especiais. É lá que recebem os amigos e lá é que o forasteiro pode conhecer a família do dono, pois as relações sociais, na cidade, limitam-se a uma apresentação muito formal e superficial.81

Para um mesmo efeito, podemos encontrar do outro lado do Atlântico uma explicação diametralmente oposta. Joaquim Antônio da Cunha Menezes, o mesmo que nos descreveu o estado de ruína do Passeio Público de Luanda, vislumbrou a sociedade angolana através de um princípio explicativo que podemos qualificar de ‘urbanista’.

As hortas da Mainga Velha e Nova, que distam da capital uma milha, servem de recreio pouco freqüentado dos habitantes. Há também casas de campo nos sítios da Samba, Belas, Boavista e Cassandoma, uma légua distante dos extremos da cidade. Estes sítios são mui raras vezes visitados, como também sucede aos de Quicuxe e Bembem. Os habitantes, em geral, parecem condenados a viver sempre envolvidos no tráfico, na intriga a mais nojenta, e muitas vezes cruenta em seus resultados, e no deboche habitual a que se entregam sem reserva.82

Segundo ele, os luandenses não freqüentavam as quintas do entorno da cidade devido a um excessivo envolvimento urbano. Contudo, ainda que

80

BURMEISTER, Hermann. Viagem ao Brasil através das províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. p.63. 81

BURMEISTER. Viagem ao Brasil p.63.

82

MENEZES, Demonstração geographica. p.27.

503

permanecessem exclusivamente na cidade, ao contrário dos brasileiros, os angolanos também não freqüentavam o seu passeio público, que acabaria em ruínas. Quanto ao caso de Portugal, podemos exemplificar com a explicação dada por Ilídio de Araújo para a menor difusão de jardins em Portugal, quando comparado ao restante da Europa.

Durante os séculos XVII e XVIII os nossos aristocratas, (e até os nossos reis, salvo talvez D. José) conservaram quase todos uma certa dose de rusticidade, ocupando sua juventude em caçadas, pegas de touros, e cavalgadas.83

Como se depreende dos exemplos citados, conforme a região foi criada uma explicação para o pouco sucesso de espaços ajardinados em Portugal e suas colônias: rusticidade das elites, excessivo apego ao mundo rural ou à intriga urbana. Como quadro geral, há que observar o mencionado descompasso entre as propostas dos funcionários ilustrados e o hábito das populações, mesmo das elites concelhias. Tais espaços não atendiam a nenhuma expectativa do moradores dessa cidades, salvo um segmento dos próprios funcionários coloniais, um ou outro intelectual e alguns poucos estrangeiros. Como tal, foram um fracasso. Durante o século XVIII, e boa parte do XIX, esses parques estariam condenados a um cíclico abandono. Ganhavam certa animação quando, por iniciativa de algum governador ou outro alto funcionário, eram organizados eventos festivos. Mesmo nestes casos a permanência do público coincidia com a duração do evento, findo o qual restabelecia-se o quadro de abandono. Afetando o não saberem andar a pé Ocorre que, entre as elites da sociedade colonial portuguesa, quer falemos de América, África ou Ásia, não estavam presente os hábitos de exposição pessoal, que eram a própria razão de ser desses locais. Entre as classes abastadas, a quem se

83

ARAÚJO. Quintas. p.329.

504

destinavam esses jardins, o tipo de relacionamento previsto nestes espaços pertenciam à esfera privada. Nas colônias, em especial no que se refere às mulheres das famílias enriquecidas, as suas pouco freqüentes aparições no espaço público eram marcadas por atitudes de não-movimento e não-exposição. Tratava-se de presenças ritualizadas em que as elites eram sempre carregadas por escravos, acompanhadas por um séquito de outros cativos que desempenhavam uma função principalmente suntuária. Eram hábitos próprios de sociedade movidas a trabalho escravo, na qual manifestações de vigor físico desqualificavam o autor perante os seus pares. Em Macau ou na Índia, o meio de transporte dos abastados eram os palanquins e liteiras, conduzidos por escravos asiáticos. Desde o século XVII, a coroa portuguesa tentava acabar com estas formas de locomoção em Goa, onde os passageiros ficavam ocultos por uma esteira. Uma carta régia de 1602 proibiu, sem resultados aparentes, o uso de “cadeiras, redes, andores, palanquins, ou

outra

qualquer

espécie

de

carruagem”.84 Alguns anos depois, o

DETALHE DE GRAVURA DE JAN bispado de Goa ordenou que os VAN LINSCHOTEN palanquins fossem descobertos, de modo

que os passageiros fossem reconhecidos, o que levou o senado da cidade a se queixar ao rei.

84

SILVA, José Justino de Andrade e. Collecção chronologica da legislação portugueza. Lisboa: Imprensa de J. J. A, Silva, 1854. v.1. 1603-1612. p.133.

505 O ano passado deu esta cidade conta a V. Majestade conta de como o Arcebispo Primaz tratara de ordenar como as mulheres andassem com os palanquins descobertos, ou ao menos meio descobertos, sobre o que lhe fizeram as lembranças e requerimentos necessários por parte de todo este povo, e se deram as razões que contra isso havia, que também se enviaram a Vossa Majestade, contudo em um Concílio que fez este verão passado, se tratou essa matéria, e se assentou pedir-se a vossa majestade mandasse que os ditos palanquins andassem de feição que se pudesse ver quem neles ia. A matéria é tão odiosa, e de qualidade, que em nenhuma forma deve V. Majestade conceder, nem mandar tal, pois esta terra é fronteira. as razões.85

Plácido Francesco Ramponi, que esteve em Goa, em 1698, conta que “as mulheres dos principais comerciantes são conduzidas em liteiras levadas por escravos e acompanhadas de quatro a seis servas mulatas e vários escravos com almofadas, tapetes e chinelas para usarem na igreja quando vão à missa”.86 Na sua descrição, as liteiras são abertas, sinal de que ocorrera um empate. Os goeses de posse continuavam a ser transportados por escravos, contra o que determinavam as ordens régias, mas haviam abandonado as casinholas fechadas contra as quais pregavam os religiosos. Na África, eram as tipóias, ou manxilas, transportadas por escravos negros mas, em essência, o sistema não mudava. Este tipo de ritual, há muito estabelecido nas colônias, ainda persistia no final do século XVIII e início do XIX, quando da criação dos Passeios Públicos. Em sua Memória sobre a costa da África (circa 1766), António Pinto de Miranda tocou num ponto crucial. Referindo-se às moçambicanas abastadas, afirmou que elas se locomoviam “de contínuo, em manxilas (que tem a semelhança das redes da América) e as mais vezes para partes tão pouco distantes, afetando por esse modo o não saberem andar a pé”.87 Em Angola, mudava apenas o nome deste meio de transporte.

O principal luxo das senhoras em visitas, funções de casamentos, ou batizados, consiste em uma Tipóia em que cada uma se transporta pelas ruas: algumas vezes em cadeirinha de braços, principalmente no dia em que vão satisfazer à igreja o preceito

85

GOA. Câmara Municipal. Carta da cidade de Goa a Sua Magestade, que foi nas naus de Bras Telles o ano de 1605. APO. p.186. 86

AZEVEDO, Carlos (ed.) Um artista italiano em Goa; o diário de Placido Francesco Ramponi. Separata de GARCIA DE ORTA, número especial, 1956. p.302. 87

ANDRADE. Relações de Moçambique. p.253

506 da quaresma. [....] O público adereço; com que nas ruas se anunciam os homens de bem, é rede, guarda sol ou tipóia. Quando deixam de passear sobre os pés dos escravos, estes o precedem com a viatura.88

A tipóia, segundo o autor, é “uma rede em que vão sentadas, ou recostadas, cobertas de um tejadilho, rodeada de cortinas. O luxo tem feito assear esta espécie de palanquins”. Interessante notar, que quem descreve os luandenses é um brasileiro, Elias da Silva Corrêa. Há nele um falso estranhamento, talvez motivado pelo fato de sua obra destinar-se a um público português metropolitano. Na colônia brasileira, de onde ele provinha, o costume era exatamente o mesmo e adentrou o século XIX. As imagens produzidas por Carlos Julião que representam a elite brasileira conduzida em redes e cadeirinhas sãos suficientemente eloqüentes sobre essas formas de locomoção a ponto de dispensar comentários.

DESENHO DE CARLOS JULIÃO - SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII Em Portugal, o costume de ser carregado por escravos já fora superado no século XVIII. Entretanto, a imobilidade das elites fora garantida pela adoção dos carros puxados a cavalo ou mulas. Como dizia um embaixador da França em Portugal, afora as pessoas de classe baixa, os únicos que transitavam a pé pela cidade eram “ingleses ou

88

CORREIA. História de Angola. p.83-4.

507

cães”.89 Os viajantes estrangeiros são unânimes em afirmar que em Portugal, mais do que em qualquer parte da Europa, vivia-se uma tirania dos veículos e montarias. Como causa deste costume, eles apontavam o péssimo estado dos pavimentos, as ladeiras e a insalubridade imperante, que tornavam as caminhadas perigosas e impraticáveis. Houve quem achasse muito incoerente A criação de Passeios Públicos, Jardins Botânicos e mesmo de algumas praças ajardinadas não significa a superação da esterilidade urbana, uma das características das cidades de origem portuguesa. Apesar do desenvolvimento de um gosto pela paisagem e pela natureza, que se verifica desde o século XVII, permanece a tensão entre o urbano e o rural que impede a difusão da vegetação. Durante muito tempo, encarou-se a vegetação como algo incompatível com a cidade. Ainda que se reconhecesse o caráter utilitário de parte da vegetação, ou se apreciasse a sombra proporcionada pelas árvores, ou mesmo que elas fossem tomadas como “delicioso aparato de recreação” do olhar, sua presença no espaço urbano resultava num permanente estado de tensão simbólica. Esta tensão tendeu a ser resolvida de duas formas. A primeira, na qual já nos detivemos, foi projetar a cidade para fora de seus limites urbanos, criando espaços onde era possível aproveitar das possibilidades estéticas e recreativas da vegetação sem violar o caráter urbano da cidade. Estou falando das quintas, chácaras ou casas de campo criadas no entorno do espaço urbano. Outra forma encontrada para resolver tal tensão, foi “culturalizar” a vegetação. O mundo das plantas, entendido como caótico, para entrar na cidade teve que ser submetido a princípios de ordem geométrica. Nas colônias, esta tensão era particularmente grave. O estado embrionário da maioria dos assentamentos acirravam a tensão entre cidade e vegetação. A precariedade dos núcleos urbanos, sempre

89

BOMBELLES, Marquis de. Journal d’un ambassadeur de France au Portugal. 1786-1788. Paris: P. U. F., 1970.p.49. Citado por SANTOS, Piedade Braga et alii. Lisboa setecentista vista por estrangeiros. Lisboa: Livros Horizonte, 1987. p.26

508

ameaçados de serem tomados pelo mato, transformavam o entorno numa ameaça vegetal que precisava ser equilibrada por uma constante busca da esterilidade do espaço público. Segundo Luís Lisanti, havia um protesto “da civilização-edificação contra o verde forte e agreste da mata vencida, mas ali por perto”.90 Entende-se, assim, o porquê da maior dificuldade e da demora com que as cidades coloniais aceitaram em suas ruas e praças qualquer manifestação da natureza, ainda que fosse de uma natureza construída ou desnaturada. A mais constante luta das câmaras coloniais, no Brasil ou na África, era conter o avanço insistente da vegetação sobre o quadro urbano. Nas correições que periodicamente faziam por suas cidades, os vereadores sempre se lembravam de mandar os moradores cortar os matos. Na primeira seção camarária de 1680, da vila paulista de Santana do Parnaíba, os oficiais que acabavam de assumir foram instados pelo procurador a mandar acabar com os matos que existiam nas ruas.91 A ação das câmaras não se limitava a combater a proliferação de uma vegetação considerada inútil ou daninha. Um caso limite foi a resolução tomada na câmara de Santo António do Príncipe em 1719.

Que mandassem botar abaixo todos os mamãos, e bananeiras, e todas aroxoadas de grão [?] que houverem nesta povoação e toda a pessoa que não o botarem abaixo pagará cinco tostões para a despesas do concelho, e assim mais todas as árvores que houverem nesta povoação.92

Quando acompanhamos a criação do Passeio Público de Vila Boa, foi possível surpreender um momento de viragem, representado pela ação sucessiva de corte e plantio de vegetação. Árvores que pouco antes foram eliminadas por serem

90

LISANTI, Luís. Negócios coloniais. Brasília: Ministério da Fazenda, 1973. v.1. p.CXVI.

91

CAMARGO, Paulo Florêncio de. História de Santana de Parnaíba. São Paulo: Secretaria da Cultura, Esporte e Turismo, 1971. p.153. 92

SANTO ANTÓNIO DO PRÍNCIPE. Atas da câmara. ACTAS DA CÂMARA DE SANTO ANTÓNIO DA ILHA DO PRINCIPE. 1672-1777. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1970. p.220.

509

encaradas como daninhas, foram replantadas numa disposição geométrica para reforçar a modernidade da capital goiana. Aquilo que pela falta de ordem era mato daninho, replantado segundo uma ordem geométrica preestabelecida, transformava-se em Passeio Público e, portanto, em algo cabível no espaço urbano. Todavia, não podemos concluir que com a criação desses Passeios o processo estivesse acabado. Isso é parcialmente verdadeiro apenas para algumas cidades de maior porte ou sedes de capitanias recentemente criadas sob certos princípios de ordem, que, talvez por esses mesmos motivos, não se sentissem tão ameaçadas. Nessas localidades maiores, a difusão da sensibilidade romântica geraria um público apreciador desses jardins, principalmente a partir da década de 1830, o que contribuiria ainda mais para a aceitação do verde. Porém, se sairmos dessas cidades específicas, vamos perceber que a criação de áreas vegetadas ou o plantio de árvores de sombra nas ruas apenas iniciam no final do período de nosso estudo. Nas localidades menores, os conflitos advindos de tentativas de arborização continuariam a se arrastar pela primeira metade do século XIX. Daniel Kidder, deixou registrado, ao passar por Fortaleza, que em certas áreas do país qualquer motivo fútil era bom quando se tratava de pôr árvores abaixo.

Quando Lord Cochrane tomou posse do Ceará, em 1824, tentou embelezar a cidade plantando fileiras de árvores em ambos os lados das ruas. Todavia o povo, movido talvez, por sua antipatia ao Almirante ou por qualquer outro motivo fútil, derrubou as árvores e arrancou-lhes as raízes, destruindo assim um melhoramento urbano que, quando inteiramente desenvolvido, teria sido de grande utilidade.93

As Câmaras das pequenas localidades desempenharam, freqüentemente, um papel conservador em tal processo. Afinal, uma das principais lutas encampadas pelos vereadores foi a de garantir o caráter urbano de suas vilas. Um comentário que aparece na Corografia Cabo-verdiana, de Chelmicki & Varnhagen, ilustra com perfeição essas complicadas disputas entre câmaras municipais e emissários do estado central, provocadas pelo plantio de árvores.

93

KIDDER. Reminiscências. p.153.

510 Para evitar o insuportável calor na vila da Praia, [o governador] mandou plantar árvores tanto na Praça, como em todas as ruas. Houve quem achasse isso muito incoerente, plantaram as árvores mas de propósito mal, para não pegarem as plantas, e assim provarem as suas asserções, e quando as árvores plantadas de estacas rebentavam *, vinham de noite destruí-las.94

A contrapartida a isso são umas poucas vilas onde as câmaras ou os próprios moradores se encarregam de criar algumas alamedas. A câmara de Paranaguá, da mesma forma que tantas outras municipalidades brasileiras, ocupava-se em manter a vegetação distante da vila. Em reunião de 19 de dezembro de 1812, foi criada uma subscrição voluntária para roçar os matos dos arredores da vila. Todavia, no ano seguinte, construiu-se, nos mesmos arredores, uma capela para a imagem de Nossa Senhora do Rosário e “em frente de seu frontispício se plantou uma fileira de formosas jerivás o que realça ao longe sua vista”.95 As duas ações mostram que já se estabelecia uma nítida distinção entre um mato genérico e certas espécies de palmeiras nativas usadas com propósitos estéticos. A devoção à santa do Rocio, fizera do santuário um centro de romarias, novenas e procissões mas, simultaneamente, a ida à capela transformara-se num passeio repleto de apelos paisagísticos. O historiador oitocentista Vieira dos Santos conta que “os jovens parnanguenses muito apreciam de ir às mesmas por terem a grande satisfação de irem a cavalo com suas senhoras de passeio por este belo caminho; de um solo areento e marginado de araçaeiros e goiabeiras e outras frutas silvestres e muitas chácaras”.96 O naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, de passagem por Paranaguá em 1820, deixou uma descrição romantizada deste passeio.

Eu não podia deixar Paranaguá sem dar um passeio pela única estrada, nas imediações da cidade (l820), que não passava por brejos e terras alagadiças. Esse caminho é composto de areia quase pura e dá acesso a uma pequena capela

94

CHELMICKI & VARNHAGEN, Corografia. v.1. p.27. * rebentavam = davam rebentos, brotavam

95

VIEIRA DOS SANTOS, Antônio. Memória histórica, cronológica, topográfica e descritiva de Paranaguá e seu município. Curitiba: Mundial, 1922. p.105 e 231. 96

VIEIRA DOS SANTOS, Memória histórica. p.75

511 denominada Capela do Rocio, onde é celebrada todos os anos uma festa que atrai uma grande multidão. Esse encantador caminho, muito freqüentado pelos habitantes de Paranaguá, lembra vários outros existentes nos arredores do Rio de Janeiro; vai serpeando, à maneira das aléias de um jardim inglês, através de uma mata exuberante e de belo verdor, que oferece sombra e frescura. De vez em quando encontram-se pequenos sítios, ao redor dos quais se vêem bananeiras, cafeeiros, abacaxizeiros e pequenas plantações de mandioca. A capela, dedicada a Nossa Senhora do Rosário, está construída num local isolado, a poucos passos do Rio Cubatão. Diante da porta há uma cruz, plantada no alto de pequenos degraus de pedra, vendo-se algumas palmeiras alinhadas assimetricamente à beira d'água. Do outro lado do rio vêem-se pequenos morros e, ao longe, a Serra de Paranaguá, cujos cimos estão quase sempre coroados de nuvens. É inacreditável como as palmeiras plantadas junto à capela ajudam a dar um maior encanto à paisagem. Não somente há nas formas da palmeira algo que se impõe por sua elegância e imponência, como também se acham associadas a essa bela árvore inúmeras recordações de fundo religioso, que fazem dela, por assim dizer, uma planta sagrada.97

Inadvertidamente, Saint-Hilaire acaba tocando numa questão essencial. Os moradores de Paranaguá não precisavam compartilhar da sensibilidade romântica do naturalista para apreciar este caminho da periferia da cidade. A conexão que se estabeleceu entre a religiosidade e a fruição da paisagem pode explicar o relativo sucesso e a espontaneidade deste ‘passeio’. Freqüentar a capela era um excelente motivo ou o pretexto para a fruição paisagística. Para as pessoas do início do século XIX isto fazia mais sentido do que freqüentar um espaço totalmente laico como os passeios públicos criados pelos altos funcionário do governo colonial português, o que contribui para explicar o insucesso dessas experiências. Paranaguá era uma cidade ilhada entre charcos e sempre fora considerada uma localidade insalubre. As diversas epidemias que grassaram nas costas brasileiras, atingiram-na duramente, inclusive a peste da bicha de 1686. De todas as epidemias que assolaram a cidade, a que deixou maiores marcas foi a de “disenterias sangüíneas amalignadas” que, em 1788, matou cerca 300 pessoas. Com ela começou o culto a Nossa Senhora do Rosário, o mesmo que levou à criação da capela do Rocio e de sua

97

SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem a Curitiba e Província de Santa Catarina. Belo Horizonte: Itatiaia, 1978. p.107.

512

alameda.98 Assim, a criação destes espaços era súplica ao divino por proteção contra as pestes, inscrevendo-se na eterna luta das cidades contra o pútrido. Aqui e ali, algumas câmaras municipais, como a de Paranaguá, começam a adotar princípios opostos à erradicação total do verde urbano. Em 1761, a câmara de Macapá editou postura obrigando o plantio de árvores frutíferas nos quintais da vila. Argumentavam os vereadores ser “muito conveniente em proveito geral dos moradores plantarem nos seus quintais [....] laranjeiras, limoeiros, ananases, goiabas, pacoveiras, coqueiros mamoeiros”.99 Assim, lentamente, as câmaras abandonam o combate sem trégua à vegetação, que se inseria na luta geral contra o pútrido. O mato é ainda o inimigo. Todavia, abandona-se o objetivo de instaurar a esterilidade no quadro urbano substituindo-o pelo da construção dos espaços de deleite, onde se associam o gosto pela paisagem e os benefícios que a vegetação domada dos jardins e alamedas trariam para a salubridade urbana. Fora-se o tempo em que a câmara de Santo Antônio do Príncipe, mandara botar abaixo todos os mamoeiros, bananeiras e “assim mais todas as árvores que houverem nesta povoação”.

98

VIEIRA DOS SANTOS, Memória histórica. p. 176. Saint-Hilaire menciona que em 1820 para tornar Paranaguá menos insalubre haviam sido cortadas as matas que a rodeavam. SAINTHILAIRE. Viagem. p.105. 99

MACAPÁ. Posturas Municipais. ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO. Pará. Caixa 21. cód.739-I.

CONCLUSÃO Acompanhando duas das agendas da cidade de origem portuguesa (a da forma e a do podre) observa-se que, em ambos os casos, houve uma trajetória comum. A agenda do mercado, ou do abastecimento urbano, também seguiu trajetória semelhante. Num primeiro momento, as práticas administrativas se expressavam na ação mediadora dos almotacés, provocada por conflitos vicinais, que, depois, foram substituídas por normas de direito positivo (as posturas municipais). Por último, estado centralizado foi-se apropriando dessas agendas urbanas. A tal apropriação das práticas administrativas urbanas corresponde a emergência das modernas ciências iluministas do saneamento, do urbanismo e da poderosíssima economia política. Veja-se que no período estudado, que se encerra no início do século XIX, essas ciências apenas estavam engatinhando. Eram, ainda, pretensões que se revelam mais como obsessões pelas coisas pútridas, pela regularidade da forma ou pelo livre mercado, do que por sua eficácia e aceitação geral. Assim, os agentes do estado central (administradores, engenheiros, naturalistas) passariam a ser cheiradores eméritos. Como já foi dito, não houve poço, cloaca, casebre que não fosse vasculhado pelos narizes atentos dos agentes do estado central e minuciosamente descritos. Da mesma forma, o construtivo foi submetido a uma mania da ordem geométrica e as relações de mercado às insistentes pregações de que a ordem econômicas era auto regulável. Na passagem entre os séculos XVIII e XIX ensaiava-se a constituição de um do estado centralizado de políticas públicas. No entanto, em seu período inicial, esse estado ainda não estava muito aparelhado para ações mais concretas e se limita mais a fazer diagnósticos. No meu entender, essas políticas do estado não se tratavam, exatamente, de invenções. Eram apenas atualizações de certos temas inerentes ao viver em cidade (as agendas do viver urbano) que, como procuramos demonstrar, estavam expressas nos antigos regimentos de almotaçaria. Chegando ao século XVIII, percebe-se que a

514 almotaçaria ainda demonstra vitalidade, tanto em Portugal como nas colônias. Mais surpreendente, durante a primeira metade do século XIX, as câmaras do Brasil imperial ou do Portugal do liberalismo valiam-se constantemente do direito de almotaçaria, nos mesmos moldes do que vinha ocorrendo há séculos. Estamos, portanto, diante de uma instituição que, pelo menos no papel, atravessou os séculos.

Almotaçaria, Polícia, Política Esta espantosa continuidade do desenho institucional da almotaçaria portuguesa, cria alguns problemas sobre sua localização no interior das teorias sobre o estado. Para a Ciência Política, no século XVIII, ocorre a superação do estado ‘tradicional’, o qual cabia garantir a harmonia dos diversos corpos sociais (ordens, corporações), pelo moderno estado administrativo. Esta nova situação é caracterizada tanto por uma mudança quantitativa, o aumento das tarefas assumidas pelo estado, quanto qualitativa, que corresponde ao trânsito de uma arte de governar para uma ciência de governo.1

A passagem da política - como arte do governo, ou seja, da pura ação política segundo os ditames da razão de Estado - à polícia - como ciência de governo, ou seja, da ação administrativa segundo as funções e os fins próprios do Estado - é, sem dúvida, de grande importância. É óbvio que a polícia não se substitui à política, antes continua sempre subordinada às suas exigências supremas e insuprimíveis. Mas o desenvolvimento destas doutrinas que se propõem determinar as formas e os métodos da atividade ordinária e normal dos governos, em correlação com os fins do Estado, é a expressão de uma nova mentalidade de tipo claramente iluminista.2

Em Portugal, não há dúvidas de que período pombalino representa esta passagem. Os insucessos de boa parte das políticas propostas pelo despotismo iluminado pombalino não eliminam o fato. Note-se que estamos falando de políticas. Até agora procurei evitar o uso da noção para não incorrer em anacronismo. Apenas no século XVIII, difunde-se entre os próprios agentes históricos envolvidos com tarefas de estado a noção de polícia (as nossas modernas políticas públicas).

1

Não pretendo enfrentar a árdua questão das políticas de estado, ou do estado de políticas. Em língua portuguesa uma boa síntese sobre a questão é HESPANHA, António Manuel. Poder e instituições na Europa do antigo regime. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. 2

HESPANHA. Poder e instituições. p.266.

515 A centralização dos poderes de estado nos coloca duas questões. A primeira, de âmbito mais geral, é indagar sobre o lugar que a antiga concepção de administrar a cidade, expressa no direito de almotaçaria, ocupou na definição das esferas e formas de atuação do estado centralizado que emergiu no século XVIII. A segunda, é saber como, ou com que intensidade, as políticas superaram a almotaçaria, no universo português. Trata-se, portanto, de investigar, em ambos os casos, a relação existente entre a polícia (as políticas públicas) e a almotaçaria

A arte da polícia Tanto o termo polícia, quanto a sistematização teórica que está por trás dele não tiveram origem em Portugal. Foram trazidos da França, cuja tradição administrativa, diferia organizacional e terminologicamente da portuguesa. Já traçamos, anteriormente, um quadro da formação da almotaçaria peninsular, no qual se inscreve a portuguesa. Na Europa além-Pirineus, não havia uma instituição semelhante que pudesse ser apropriada. Em muitas regiões, recorreu-se a uma terminologia relativa às instituições urbanas romanas, sem que isso representasse mais do que uma apropriação de vocabulário. De fato, para dar conta da cidade medieval emergente, o campo da administração urbana precisou ser (re-)inventado. Na França medieval, o responsável por muitas das atribuições do almotacé português era o preboste, do latim proepositus (preposto). Cargo criado no século XI, cujo nome já diz tratar-se de uma delegação do poder régio. Mais tarde, ele foi encampado pelo poder local. Os cidadãos de Paris apresentavam uma lista tríplice ao rei, a quem competia a escolha final.3 Á partir do século XVI, o prebostado de Paris tornou-se um cargo que podia ser comprado. O fenômeno da venalidade de cargos públicos, característica do Antigo Regime, foi muito mais difundida na França que em Portugal.4

3

Uma síntese da evolução do cargo de preboste pode ser encontrada em LE CLÈRE, Marcel. História breve da polícia. Lisboa: Editorial Verbo, 1965. p.21 e seguintes. 4

Em Portugal, era freqüente a venda das rendas da almotaçaria. O comprador antecipava as receitas em troca do poder de cobrar impostos e multas. Já a venda propriamente dita do cargo de almotacé era pouco freqüente, mas ocorria. Alegando a falta de receitas para atender suas dívidas o concelho de Coimbra solicitou em 1528, autorização régia para vender, vitaliciamente, um dos ofícios de almotacé da cidade. O pedido foi atendido pelo rei. Ver CARVALHO, José Branquinho de.(ed.) Livro 2º da correia; cartas, provisões e alvarás régios registados na câmara de Coimbra. 1273-1754. Coimbra: Biblioteca Municipal, 1958. p.83

516 Não podemos, contudo, fazer uma tradução direta de almotacé para preboste. A tradição francesa era mais centralizadora que a portuguesa e este oficial enfeixava em suas mãos uma gama mais ampla de atribuições e poderes. Talvez possamos equipará-lo ao alcaide português dos tempos da reconquista, aceitando a suposição que este centralizasse a maioria dos poderes delegados pelos reis.5 As competências dos prebostes parisienses, tomadas em relação ao caso português, incluíam as de alvazil, de almotacé (construções, higiene e abastecimento), de alcaide-mor (defesa da cidade) e de alcaide pequeno (policiamento noturno, efetuar prisões). Posteriormente, ele perderia as funções militares mas continuaria agregando as de almotacé e de alcaide pequeno. Esta junção é capital ao desenvolvimento da dupla acepção de polícia: por um lado, ação administrativa do estado e, por outro, instituição voltada a impor uma ordem pública. Na França, a segunda metade do século XVII foi um período de consolidação do estado central e do poder do rei. Em relação a Paris, a pá de cal do esvaziamento das instituições urbanas foi a criação do cargo de Liutenant général de police, por Luís XIV. Desde 1667, o controle administrativo da cidade passou a ser exercido por esses oficiais régios, que tinham estatuto de ministros de estado. Cabia ao Tenente-general de Polícia: assegurar o respeito ao público e ao privado, purgar a cidade daqueles que pudessem causar desordens, buscar a abundância do abastecimento e, como ainda estávamos no Ancien Régime, fazer viver cada um segundo sua condição e seu estado. Desde então, os prebostes ficam reduzidos a funções judiciárias e notariais. No leque de atribuições dos novos oficiais do rei constavam a regulação das atividades econômicas (circulação de mercadorias, controle das gentes de ofício), a perseguição aos mendigos e vagabundos, o aprisionamento dos criminosos e fazer respeitar as regras de higiene e a limpeza das ruas.6 Manteve-se, portanto, a junção entre as funções de almotacé e de alcaide pequeno. A denominação de polícia, dada ao novo cargo, remete ao termo grego paideia, através do latim politia. A paideia é a ordem reinante (ou desejada) na cidade e, por extensão, as instituições responsáveis por mantê-la.7

5

HERCULANO, Alexandre. História de Portugal desde o começo da monarquia até o fim do reinado de Afonso III. Lisboa: Bertrand, s.d. v.4, p.138. 6

FARGE, Arlette. Vivre dans la rue à Paris au XVIIIe siécle. Paris: Gallimard/Julliard, 1979.

p.197. 7

SCHIERA, Pierangelo. A “polícia” como síntese da ordem e de bem-estar no moderno estado centralizado. In: HESPANHA. Poder e instituições. p.313.

517 A Polícia parisiense estava dividida em diversas áreas de jurisdição, os quartiers, cada qual sob a jurisdição de dois comissários, obrigatoriamente residentes. Nicolas Delamare, um destes comissários, com jurisdição sobre a Cité, foi o principal responsável pela sistematização teórica da noção polícia. É de sua autoria o Traité de la police, cujo primeiro volume saiu do prelo em 1708.8 Esta obra apoiou-se num levantamento das posturas da cidade e, principalmente, das ordens régias que a ela diziam respeito, desde Filipe, o Belo. Paris sofreu o mesmo problema que Lisboa. Por ser a capital, a cidade nunca esteve muito livre de intervenções dos reis. Delamare não se limitou a fazer uma recompilação de posturas e ordens régias. Ele compôs um tratado, que pode ser tomado como marco cronológico da emergência das modernas políticas públicas urbanas.9 O autor reclama a existência de uma ciência da administração da cidade. No entanto, o seu propósito não era fundá-la sob o signo do novo, pois se desmancha em elogios aos antigos textos normativos e apresenta o seu trabalho como sistematização de algo que já existe.

Nesses regulamentos que tive de percorrer descobri tanta sabedoria, tão grande ordem e uma ligação tão perfeita entre todas as partes da Polícia, que acreditei poder reduzir em Arte ou em Prática o estudo dessa Ciência, remontando até seu princípio.10

A admiração do autor pela normas que pautavam a antiga tradição administrativa não era vazia. Foi ela que forneceu o recorte prévio sob o qual procurou fundar a sua ciência da polícia. Não há, portanto, um recorte autônomo, pois ele nasce historicamente delimitado pelas atribuições do preboste de Paris, das quais a polícia é herdeira. Em outra situação histórica concreta, como a portuguesa, podemos supor que a ciência da polícia teria um recorte diferente. Política pública urbana provavelmente não se confundiria com policiamento, uma vez que a almotaçaria não englobava atribuições desta ordem. Sob o moderno conceito de paideia, portanto, esconde-se a

8

DELAMARE [ou De La MARE], Nicolas. Traité de police. Paris: Le Cler du Brillet [e outros], 1708-38. 3.v. Não me foi possível consultar diretamente o tratado de Delamare. Conheço-o apenas fragmentariamente, através de alguns comentadores. 9

Há um certo consenso sobre o papel fundante da obra de Delamare. Ver ASTUTI, G. O absolutismo esclarecido em Itália e o estado de polícia. In: HESPANHA. Poder e instituições. p.265.

518 tradição administrativa parisiense, que reunia atribuições equivalentes às da almotaçaria (construtivo, sanitário e mercado) e do alcaide menor (o policiamento e efetuar prisões). Em decorrência, polícia tornou-se polícia + a polícia. A recepção deste postulado em outras tradições diferentes da francesa voltaria a introduzir a separação entre a polícia (políticas públicas) e a polícia (o policiamento, as instituições policiais). A reintrodução de tal corte também pode ser explicado por a recepção da obra de Delamare, fora da França, ter ocorrido em dois tempos. Em Portugal, num primeiro momento, o tratado de polícia foi apropriado pelo altas instâncias do estado central. A documentação pombalina recorre, com freqüência, ao termo polícia, apresentando um discurso pleno de sintomas delamarianos. Nele se manifesta uma verdadeira obsessão contra os vagabundos de Portugal e das Colônias. Em Portugal, a polícia (as políticas) já aparece incorporada como doutrina de estado nas Prelecções de Souza Sampaio, publicadas na última década do século XVIII.11

Por direito de Polícia entendemos a autoridade, que os Príncipes tem para estabelecerem e proverem os meios, e subsídios, que facilitem, e promovam a observância das suas Leis.12

Eram direito do Príncipe, fomentar a cultura das disciplinas (artes e ciências), a população, a saúde dos povos, a agricultura, as manufaturas, o comércio, a economia e, significativamente, impedir a vadiagem.

CAPÍTULO IX Dos Vadios § CXXXV. Não só é prejudicial ao bem comum, e particular, a má administração, que cada um faz do seu patrimônio; mas igualmente o grassamento dos vadios, isto é, daqueles homens ociosos, que não se ocupando em algum útil exercício, ou dissipando inutilmente os seus cabedais, se constituem inúteis, e prejudiciais aos Concidadãos, à

10

Citado de CHOAY, Françoise. A regra e o modelo. São Paulo: Perspectiva, 1985. p.29.

11

SAMPAIO, Francisco Coelho de Sousa e. Prelecções do direito pátrio, público e particular. [1793-4]. In: HESPANHA. Poder e instituições. (síntese facsimilada) 12

SAMPAIO. Prelecções. op. cit. p.422.

519 custa de cujos patrimônios vêm a ser sustentados; motivo porque os nossos Príncipes têm removido semelhantes homens do meio da sociedade.13

Toda esta questão contra os vagabundos nada mais é do que um eco da luta da polícia francesa contra as “cortes de milagres”. Desde o século XVII, o seu cartão de visita foi a destruição desses guetos de miseráveis que existiam em Paris. A própria literatura, pró ou contra a cada um dos lados, se encarregaria de dar visibilidade à luta entre policiais e miseráveis urbanos. Tirar o vagabundo da criminalidade, transformando-o em membro útil da sociedade civil, transformou-se no leitmotiv das instituições policiais, mas também das políticas públicas. Este sintoma, já indica o segundo momento da recepção do conceito de polícia. Em 1760, num visível decalque do modelo francês, foi criado o cargo de Intendente Geral da Polícia da Corte e do Reino. Nesta cópia, já se manifesta uma leitura peculiar da experiência francesa. Apesar das pretensões com que foi criada, esta nova polícia portuguesa permaneceria restrita à segurança pública. Foi antes uma modernização do instituto dos alcaides-menores e dos velhos corpos de quadrilheiros, responsáveis pela ronda das cidades, criados por D. Fernando, em 1383. Como resultado desta leitura restritiva da obra de Delamare, e de outros autores que estavam produzindo esta nova ciência da administração, polícia passaria a ser identificada apenas com a instituição policial, ou com a prevenção e repressão à vagabundagem e à criminalidade. Este não foi um fenômeno exclusivamente português, pois na maioria dos países europeus e americanos ocorreria algo semelhante. No século XIX, os manuais destinados a chefes e delegados de polícia difundem uma abordagem policialesca do Tratado. Não podemos esquecer que o próprio Delamare era um policial. Assim, prevalece definitivamente a acepção de polícia como a polícia. Ficou comprometido, assim, o emprego da palavra polícia para designar a “arte ou ciência de governar”. Nos séculos XVIII e XIX, ainda usou-se o termo polícia para definir a ação administrativa do estado. No entanto, com a perda da palavra polícia para o policialesco, buscou-se outra que não evocasse a dubiedade que estava na sua origem. Polícia (a polícia) tornara-se um depreciativo. Em português, passou-se a utilizar o termo política. No entanto, esta opção causaria um outro imbróglio terminológico, pois política foi identificado com a luta partidária pelo poder. Mais recentemente, houve uma apropriação de uma terminologia anglo-saxônica: as políticas

13

SAMPAIO. Prelecções. op. cit. p.438.

520 públicas.14 Hoje, o uso do termo política permanece, mas quando melhor especificado. Fala-se em política de saúde ou política de ensino, por exemplo. O grande contraste que se observa é que a cidade, que forneceu o modelo geral de administração ao estado central, tendeu a ser excluída das esferas de decisão do estado moderno, deixando de ser o lugar de propositura das novas políticas. Em vez de agente, ela passou a ser paciente dessas políticas. Mas, para chegar a esta situação, ela primeiro teria que deixar de ser o espaço da salvaguarda de uma organização tradicional da sociedade. Era preciso que abandonasse os seus direitos de almotaçaria, tanto no seu papel passivo de mediadora social quanto, principalmente, no papel ativo de defensora de uma economia moral. A cidade deveria romper com a função de manter a harmonia entre suas partes constituintes, sobre a qual se assentava a almotaçaria. O pobre deixara de ser o resultado da natureza hierarquicamente diferenciada das pessoas, alguém a quem se reconhecia um lugar na sociedade e com quem havia obrigações, tornando-se o miserável ou o socialmente inútil, um problema a resolver com políticas ou, mais freqüentemente, com a polícia.

As políticas e a almotaçaria O maior campo de lutas entre almotaçaria e políticas foi o do mercado de abastecimento urbano. Como era de se esperar, Lisboa foi a cidade que sofreu com mais força o impacto da centralização. Desde 1572, a cidade era governada por letrados de nomeação régia.15 No entanto, tendo por pretexto o terremoto que a atingiu, Pombal promoveria um completo esvaziamento dos poderes deste concelho já tão dependente das decisões do rei.16 Durante a reconstrução, a coroa apropria-se dos direitos que a cidade detinha sobre o processo edificatório, numa escala que ultrapassava a área destruída. Embora soubesse impossível, Manuel da Maia, o arquiteto-mor da

14

Em inglês, estabeleceu-se uma diferença entre police (a polícia), policy ou public policy (políticas ou políticas públicas) e politics (tanto a política como a politicagem). 15

OLIVEIRA, Eduardo Freire de. Elementos para a história do Município de Lisboa. Lisboa: Typographia Universal, 1887. t.1. p.7-33. 16

O obra que melhor sistematiza este esvaziamento é SOARES, Sérgio Cunha. Aspectos da política municipal pombalina; a câmara de Viseu no reinado de D. José. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1985. Separata da Revista Portuguesa de História, Tomo XXI.

521 reconstrução, sonhava com a renovação completa da cidade.17 A pretensão de criar uma nova Lisboa foi assumida pelo estado central, que se encarregou de garantir diretamente, e não através da câmara, “que as Ruas da mesma Cidade, e os edifícios, que nela se erigirem, sejam reguladas e conservadas com a polícia, que se faz tão recomendável em comum benefício”.18 No que concerne ao construtivo, a câmara de Lisboa teve o seu poder de almotaçaria completamente esvaziado. Ainda que Eugênio dos Santos, um dos arquiteto do Senado de Lisboa, recebesse a incumbência de desenhar os novos prédios padronizados, ele foi cada vez mais um arquiteto do estado central e menos do Senado. Em alguns momentos, esta exclusão do poder municipal torna-se explícita. Um alvará de Pombal proibia qualquer interferência da câmara nas obras da Alfândega e da Praça do Comércio, que estavam a cargo da Junta do Comércio.19 Em Lisboa, a instituição do estado central criada para assumir as atribuições da almotaçaria relativas ao comércio não foi a Polícia, mas esta Junta do Comércio do Reino e seus Domínios. Pelos seus estatutos, ela deveria ser responsável pela política comercial e artesanal de todo o império. Na prática, a sua atuação não foi muito além de Lisboa, onde estabeleceu uma concorrência direta com o poder de almotaçaria da câmara. Senado e Junta travaram uma batalha de décadas sobre a competência de conceder licenças para o funcionamento de oficinas e de examinar os mestres de ofício. Em relação a alguns ramos artesanais, a câmara perdeu o poder decisório e tornou-se uma instância intermediária, obrigada a referendar automaticamente as decisão tomadas pela Junta. Outro espaço de disputa foi o poder de inspeção sobre o comércio. A Junta tentaria tomar esta competência para si e isentar as lojas de Lisboa das inspeções dos almotacés.20 O terremoto, em decorrência do desabastecimento por ele provocado, foi também a justificativa para o estado central desencadear um processo de desregulamentação do mercado de víveres, subtraindo-o à almotaçaria da câmara. Um alvará de 21 de fevereiro de 1765 determinava que os vendedores “possam livremente

17

FRANÇA, José Augusto. Lisboa pombalina e o iluminismo. Lisboa: Livros Horizonte,

1965. p.86. 18

PORTUGAL. Alvará de 15 de junho de 1758. CLDA. tomo 1, s.p.

19

Ver OLIVEIRA, Elementos. t.16, p.340.

20

OLIVEIRA. Elementos. tomo.16, p.306-13. SOARES. Aspectos. p.24-6.

522 vender pelos preços que ajustarem com o comprador”.21 Apenas o pão, o azeite e a palha ficaram fora deste livre mercado. Todavia, esta última foi objeto de um extenso regulamento promulgado pela administração pombalina.22 A cidade deixou de ser a responsável pela provisão de palha para tornar-se a executora de uma política definida pelo estado central. Afinal, o novo papel do município deveria ser o de agência local de um estado cada vez mais centralizado. Mas, em que medida este quadro ideal realizouse ou ficou restrito a Lisboa? No Brasil, embora freqüentes opiniões em contrário, predomina a idéia de que, no século XVIII, o estado central português assume um domínio quase completo sobre as câmaras.23 Em Portugal, onde o tema foi estudado mais detalhadamente, variam muito as opiniões sobre a interferência do poder central. Maior ou menor, o que tem sido detectado é a perda do poder político das cidade. No entanto, este o esvaziamento político não foi, necessariamente, acompanhado da perda do poder de administrar. Muitas vezes, os mesmos autores que advogam a total dependência das câmaras em relação ao estado central, quando passam a estudar a atuação de alguma câmara específica, deparam-se com este campo quase imutável da administração local. Um dos principais advogados da tese da centralização precoce do estado português foi Alexandre de Lucena e Vale.24 Entretanto, em seus estudos sobre Viseu no século XVIII, ele nos apresenta uma câmara em pleno uso de seus poderes de almotaçaria.25 Sérgio Cunha Soares, outro autor que tomou Viseu como objeto, é categórico em afirmar que há um absoluto contraste entre Viseu e Lisboa no que diz respeito ao exercício dos poderes administrativos.26 Em seu estudo sobre a câmara de Portimão, Luís Vidigal verificou que as taxas de almotaçaria (tabelamento de preços)

21

OLIVEIRA. Elementos. tomo 17, p.24-7. SOARES. Aspectos. p.33.

22

PORTUGAL. Alvará de 1 de julho de 1752. CLDA. tomo 1, s.p.

23

ZENHA, Edmundo. O município no Brasil; 1532-1700. São Paulo: Ipê, 1948. p. 165-72. PRADO JR., Caio. Evolução política do Brasil e outros estudos. São Paulo: Brasiliense, 1953. p.41. 24

VALE, Alexandre de Lucena e. História e Municipalidade; novos conspectos. ANAIS DA ACADEMIA PORTUGUESA DE HISTÓRIA. v.16. 25

VALE, Alexandre de Lucena e. Viseu do século XVIII nos livros de actas da câmara. Viseu: Junta Distrital, 1962. 26

SOARES. Aspectos. cit. p.37 e seguintes.

523 continuaram em vigor até 183427 Um tabelamento que fora legalmente extinto na década anterior. Apenas no Porto é possível detectar uma tendência contrária. Quando das reformas urbanas pombalinas, a cidade perdeu uma parcela de sua competência sobre o construtivo. Todavia, esta é apenas mais uma exceção. Nas colônias, as principais exceções foram as sedes das capitanias, estados e vice-reinos. Os funcionários ilustrados costumavam conduzir algumas políticas gerais para a sua área de jurisdição e outras específicas para as suas capitais. De fato, a ingerência política ou administrativa nessas capitais foi grande. No entanto, em relação aos outros lugares, ela era drasticamente menor. Ao estudar a câmara de Curitiba, eu próprio pude verificar não apenas a permanência do exercício da almotaçaria mas o seu crescimento ao longo do settecento.28 Curitiba é representativa de uma grande parcela das localidades brasileiras, para as quais o século XVIII foi um período de relativo crescimento urbano. Se, nos séculos anteriores, a ênfase de muitas câmaras recaia sobre a mediação política, no XVIII ela passa a concentrar-se sobre o administrativa.29 Não podemos, no entanto, imaginar que isto as tornava lugares de uma proto-administração iluminista, pois o que ocorre é um reforço ou a retomada dos velhos princípios da almotaçaria. Essas câmaras coloniais ainda eram corpos de representação dos cidadãos, que se reuniam para conduzir discussões delimitadas pelo secular regimento dos almotacés. Idealmente, a sua ação estava pautada por uma noção de mercado moral, regulado pela idéia do justo preço, e pela defesa de uma ordem espacial, que se apoiava na tradição. É interessante perceber, que, em muitos casos, foram os próprios agentes do estado central português os responsáveis por insistir junto às câmaras que o papel delas era exatamente este. No século XIX, não ocorrem grandes alterações. Apenas muito lentamente seria permitido às câmaras organizarem-se a modo e semelhança de um estado central

27

VIDIGAL, Luís. Câmara, nobreza e povo; poder e sociedade em Vila Nova de Portimão. 1755-1834. Portimão: Câmara Municipal, 1993. p.126. 28

Sobre a permanência de valores como o de “preço justo” e de maneiras de agenciar o espaço, ver PEREIRA, Magnus R. M. Semeando iras rumo ao progresso. Curitiba: Editora da UFPR, 1996. p.28 ss. 29

O aumento destas atividades administrativas levou Janice Theodoro da Silva a concluir que, no século XVIII, aumentou a “autonomia” da câmara de São Paulo em relação ao estado central. SILVA, Janice Theodoro da. São Paulo 1554-1880; discurso ideológico e organização espacial. São Paulo: Editora Moderna, 1984. p.109.

524 em miniatura, como no caso do Brasil, e um pouco menos do que isso em Portugal e nas colônias africanas, quando estas tornaram-se independentes. Durante muito tempo, conviveram o estado central iluminista e uma organização mais tradicional. Conhecemos muito melhor este estado central do que as administrações locais, pelo simples fato de que há uma notável diferença entre as respectivas capacidades discursivas. Era da natureza da nova arte ou ciência da administração (polícia) produzir um grande número de estudos, análises, relatórios e estatísticas. Nela, os homens de letras ocuparam um papel cada vez maior. Já a antiga administração apoiava-se mais em práticas do que em produzir discursos sobre elas. As suas falas eram esparsas e fragmentárias, até porque não havia a necessidade de justificar ações que se apoiavam numa tradição antiquíssima. Esta discrepância é muito visível quando comparamos o novo sanitarismo do século XVIII, com as antigas práticas adotadas pelas câmaras. O mesmo ocorre em relação ao mercado livre. Há um discurso padrão sobre as vantagens do livre comércio que se reproduz na documentação do estado e na produção acadêmica da época. Desde Pombal, o estado português é declaradamente “anti-feudal”. Uma das instituições mais lembradas como “feudais”, pelos autores setecentistas, é justamente o direito de almotaçaria. Basta ver os muitos artigos publicados nas Memórias Econômicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, nos quais as posturas e tabelamentos de preços são acusadas de “atacar os princípios da Economia Política”.30 O longo preâmbulo do código de posturas de Angra, de 1788, foi uma das raras respostas sistematizadas aos defensores da economia política. É quase um libelo contra os ataques à ordem tradicional. Não por acaso, a elite camarária da cidade inicia explicando o seu papel, atribuindo o seu poder a uma origem quase divina.

Moisés, o mesmo Moisés, cujos sentimentos eram divinos, pela familiaridade que tinha com Deus, elegeu de entre o Povo Israelítico, varões fortes e tementes do

30

OLIVEIRA, Joaquim Pedro Gomes de. Extracto das Posturas da Villa de Azeitão. MEMORIAS ECONOMICAS DA ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS DE LISBOA. Lisboa, t.3. 1791. p.307. Ver também NOGUEIRA, António Henrique. Racional discurso sobre a agricultura, e população da Província do Alentejo. _____. t.1, 1787. PORTUGAL, Thomaz António Villa Nova. Memória sobre a preferência que entre nós merece o estabelecimento dos mercados ao uso das feiras de anno para o commercio intrínseco. _____. t.2, 1790.

525 Altíssimo, para governarem e proverem as necessidades do Povo, reservando para si as decisões mais graves, e de mais alta indagação.31

Trata-se de uma total reação escolástica aos novos discursos. A câmara de Angra contrapõe-se frontalmente à razão iluminista de mercado, propugnando a continuidade de uma ação pautada pelo conceito medieval de razoável. As leis deveriam adaptar-se aos novos tempos, mas “a ordem geral deve ter suas exceções, conforme as sociedades e segundo os lugares, onde as mesmas coisas não tem sempre um igual valor”. Depois de séculos depois, ainda ecoavam certos princípios propostos por São Tomás de Aquino e seus seguidores. Após a longa exposição tomista, entra-se, finalmente, num completo código de posturas, no qual aparece vigorosa toda a tradição da almotaçaria. O código fecha com uma tabela geral de preços da produção artesanal. Neste momento, a legislação geral do reino já impunha o livre comércio da maioria dos gêneros, mesmo assim os vereadores de Angra proíbem que couro, sumagre, tremoços e linhaça sejam “extraídos” da área de jurisdição do concelho. A postura sobre a comercialização de couros é demonstrativa daqueles entraves postos pelas câmaras à livre circulação de mercadorias, no entanto, ela também demonstra a noção de ordem moral à qual deveriam estar sujeitas as operações comerciais.

Que nenhuma pessoa compre couros para embarcar da terra para fora enquanto forem necessários para os sapateiros fornecerem suas tendas em beneficio do povo, e aos lavradores para uso e serviço de suas lavouras: com a pena de seis mil reis; e no caso de haver sobras recorrerão à Câmara para depois de ter examinado o surtimento do povo, lhe conferir as licenças para a extração com as necessárias Fianças.32

Angra não foi uma exceção. Este tipo de prática continuava generalizada por todo o Império.33 A maioria das câmaras simplesmente adotava posturas deste tipo sem se dar ao trabalho de justificá-las, outras o faziam em nome dos novos tempos. Não podemos esquecer que muitas medidas adotadas pelo estado central padeciam da mesma

31

RIBEIRO, Luís da Silva. (ed.) Posturas da Câmara Municipal de Angra em 1788. In: Obras. II - História. Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1983. p.415. 32

RIBEIRO. Posturas. p.147.

33

Oliveira Marques considera espantosamente tardia a sobrevivência dos mercados locais regulamentados e auto-suficientes em Portugal. MARQUES, A. H. de Oliveira. Introdução à história da agricultura em Portugal. Lisboa: Cosmos, 1978. p.117-21.

526 ambigüidade. O mercado regulamentado era tão generalizado que o próprio discurso iluminista se via obrigado a reconhecer.

Quase por toda parte as Posturas, que dirigem o comércio intrínseco, são outros tantos embaraços que se opõe ao seu giro. [....] Observe-se o que estas posturas impedem, além das que já se lembraram contra a livre exportação dos vinhos, proíbem outras, que se tirem para fora do termo rezes, pão, vinho, azeite, legumes, qualquer mantimento em geral, caça, galinhas, lenha, carvão, junco, palha, e cevada, e até mesmo pedras, sem que estas paguem ao concelho 60 réis por carreta. [....] A comodidade de haver abundância, e bom preço em razão destas proibições, que antigamente se supunha, e a rivalidade feudal das terras umas para as outras, é a causa destas posturas, quase gerais por todo reino,. Hoje conhecemos bem, que o consumo, e exportação é que faz a abundância, e que desta é que vem o bom preço, pois a carestia segue necessariamente a falta do gênero, que o cultivador despreza, quando não há de ter mais que o preciso para comer.34

Esta situação pode ser explicada pelo fato de a economia portuguesa ter permanecido eminentemente agrária.35 Nos advertiu o economista Karl Polanyi, que, nos países onde a economia industrial se impôs mais cedo, as elites agrárias usaram o seu poder político na defesa de uma organização mais tradicional. Desta maneira, elas deram tempo para que a sociedade se ajustasse aos novos padrões de mercado, contendo em níveis menos intoleráveis a desagregação social que estes provocavam.36 O que se verifica, tanto em Portugal, quanto nas colônias, é uma permanência dos antigos “corpos” que, embora cada vez mais relegados a uma situação periférica, continuaram a exercitar a velha ordem. A força com que isto se manifesta nas câmaras não nos deve levar a concluir que a elite agrária concelhia detinha o monopólio destes valores. Eles estavam profundamente radicados na população em geral. Quase todos os movimentos e revoltas populares, além de outros nem tão populares, se auto-definiam como conservadores ou

34

OLIVEIRA, Joaquim Pedro Gomes de. Extracto das Posturas da Villa de Azeitão. in: MEMORIAS ECONOMICAS DA ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS DE LISBOA. Lisboa, t.3. 1791. p.316-7. 35

Alguns autores consideram que, na Europa como um todo, a supremacia da economia agrária e da nobreza fundiária a ela vinculada é um fenômeno que se estende até a Primeira Grande Guerra. Em decorrência, estendem a baliza cronológica do Ancien Régime até 1914. Ver, por exemplo, MAYER, Arno J. A força da tradição; a persistência do Antigo Regime. São Paulo: Cia. das Letras, 1987. 36

POLANYI, Karl. A grande transformação; as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1980. p.169.

527 restauradores. Sua ação era pautada pelo retorno a uma ordem perdida.37 Muitas vezes, as revoltas iniciavam com clamores por pão.38 No entanto, esta alegação de fome não se referia apenas à fome real provocada por um mau ano agrícola. A fome era sintoma de um desequilíbrio moral, uma ruptura do pacto da almotaçaria. O grito contra a fome, quase sempre real, pois ela era endêmica, dava partida a lutas contra a apropriação de alimentos escassos pelos poderosos, mas, também, contra excesso de impostos, usurpação da terra, do poder local ou da própria coroa. Segundo o historiador inglês E. P. Thompson, os estudiosos que procuram criar um vínculo direto e imediato entre os motins populares do século XVIII e a fome cometem uma simplificação grosseira. Thompson soube perceber que, nesses movimentos de massa, a ação se apoiava num sentido de legitimidade, ou seja, que os envolvidos acreditavam estar defendendo direitos e costumes tradicionais.

Isto estava [....] baseado em uma idéia tradicional das normas e obrigações sociais, das funções econômicas próprias dos distintos setores da comunidade que, tomadas em conjunto, pode dizer-se que constituem ‘a economia moral dos pobres’.39

Se, no século XVIII, isto é verdadeiro para a Inglaterra e outros países que lideraram a revolução industrial, mais verdadeiro é para Portugal e colônias. O sentimento de perda de uma antiga ordem estável estava presente em diversas revoltas nas quais se envolveram as corporações dos artesãos, seja em Salvador (1710), em Angra (1757), ou no Porto (1757). As Casas dos Vinte e Quatro entraram nestas lutas visando repor uma moralidade perdida; no Porto, a do mercado do vinho, em Angra, a do trigo, e em Salvador, a do sal.40 Estas lutas, centradas numa expectativa de mercado

37

Em muitos levantamentos populares, acreditou-se estar restaurando o bom governo do rei, que era enganado por prepostos e emissários responsáveis pelo mau governo. Ver OLIVEIRA, António de. Poder e oposição política em Portugal no período filipino. (1580-1640). Lisboa: Difel, 1990. p.191-2. 38

Isto foi freqüente nas diversas revoltas antitributárias seiscentistas contra o aumento do cabeção de sisas, ou a imposição do real d’água e do papel selado. Ver MAGAHÃES, Joaquim Romero. 1637, os motins da fome. BIBLOS, Coimbra, tomo 3, 1976. OLIVEIRA, António de. Levantamentos populares no arcebispado de Braga em 1635-1637. BRACARA AUGUSTA, v.34, n.91. jan.-dez.1980. pp.419-46. 39

THOMPSON, E. P. Tradición, revuelta y consciencia de clase; estudios sobre la crisis de la sociedad preindustrial. Barcelona: Editorial Crítica, 1979. p.64-6. 40

RUY, Affonso. História da Câmara Municipal da cidade do Salvador. Salvador: Câmara Municipal, 1953. 173-87. SILVA, Francisco Ribeiro. Os motins do Porto em 1757; novas perspectivas. in

528 justo, adentraram o século XIX, veja-se o movimento dos quebra quilos, provocado pela introdução do sistema métrico no Brasil. Das três vertentes constitutivas da almotaçaria, aquela que expressava a justiça de mercado foi a que demonstrou um maior apelo popular. No entanto as regulamentações de mercado encontraram na Economia Política um inimigo de peso, que se dedicou a suprimi-las como prática e como valor. As do saneamento e do construtivo foram, por séculos, encaradas como normatividade externa. Todavia, os seu efeitos foram mais duráveis e hoje integram valores normalmente aceitos. O pútrido e a forma ainda permanecem na esfera da administrção local. Isto porque, as políticas iluministas interagiram de forma muito diferente com cada ramo da almotaçaria. As ciências específicas do salubrismo e do urbanismo retomaram o caráter normativo destas posturas e o aprofundaram. A “cidade liberal”, produzida apenas por macro políticas que concediam ao livre mercado um poder auto-regulador sobre a produção do tecido urbano, demonstrou-se rapidamente inviável.41 Assim, mesmo numa época em que os estados centrais de Portugal e do Brasil eram declaradamente livre-cambistas, continuou aberto o campo das lutas travadas em torno de instituições medievais como a almotaçaria e as posturas municipais.

La Longue Durée As posturas sobre questões sanitárias e sobre produção do espaço são apenas uma pequena parcela das normas legais que acompanham o longo processo do fazer-se citadino. São fragmentos que, ao lado de muitas centenas de outras posturas, se acumularam, ao longo dos séculos, em camadas estratigráficas nos livros de registros. Cada uma dessas posturas tem uma longa história. Passaram por diversos processos de revisão e foram confirmadas, modificadas, revogadas ou simplesmente esquecidas. São sobrevivências do direito consuetudinário medieval, refletem a produção teórica do renascimento. Nasceram de acalorados debates entre vereadores, negociadas com as POMBAL REVISITADO. Lisboa: Editorial Estampa, 1984. pp.247-83. DRUMMOND, Francisco Ferreira. Annaes da Ilha Terceira. Angra do Heroísmo: Câmara Municipal, 1856. v.2. p.269-73. 41

O conceito de cidade liberal foi proposto pelo arquiteto Leonardo Benevolo, para dar conta do ambiente urbano que se formou durante a revolução industrial na Inglaterra e outros países europeus onde a política de laissez-faire teve uma expressão urbanística. BENEVOLO, Leonardo. Diseño de la ciudad. México: Gustavo Gili, 1979. p.5-25. Nas tradições urbanas de Portugal e do Brasil, a cidade

529 corporações de ofícios, impostas pelo rei, pelo capitão, pelo corregedor ou pelo ouvidor. Quem sabe foram copiadas da cidade vizinha? Ou de outro continente?42 No entanto, ao lado de todas estas variações, encontramos, novamente, um fundo de permanências. As posturas, como já dissemos, jamais saíram do quadro proposto pelos regimentos medievais de almotaçaria. Como já vimos, esses regimentos atribuíam aos almotacés três ordens de competências. A primeira, sobre “água verter”, “azevel” e “esterco”, são características da questão sanitária. Outra, sobre portais, paredes e balcões, remete aos aspectos construtivos e formais da cidade. Por fim, a superintendência das “coisas compradas que forem para vender” coloca as relações de mercado no centro da questão urbana. Em conjunto, elas configuram as principais agendas do viver urbano. Considerando que as Ordenações Filipinas continuavam em pleno vigor, no Brasil, até o início do século XIX, temos em mãos uma instituição mais do que milenar, mesmo descontados os seus antecedentes pré-islâmicos. Apenas no reino cristão de Portugal, foram mais de 700 anos, em que se mantiveram o nome e a instituição. Ao longo desses séculos, os almotacés perdem o exclusivo dessa tríade de competência para os outros oficiais da cidade. O concelho, o município, a câmara ou a prefeitura passaram a ser depositárias do direito de almotaçaria, compartilhando-o com os crescentes poderes do estado centralizado. Paramos por aqui para não nos aproximarmos perigosamente da atualidade. Entretanto, será que alguém teria dúvidas de que os atuais códigos de posturas das grandes cidades, cheios de tecnicismos, continuam tratando de “demandas de ruas e de frestas e d’azinhagas e de pardieiros e de janelas”, “sobre monturos e as fontes limpar” ou sobre “alçar casas”? E que, ainda hoje, “todas estas cousas sobreditas fazem e pertencem à Almotaçaria”? Fenômeno estructurale? inscrito numa longue durée? Enveredando por uma especulação braudeliana, diríamos que esta reunião de funções, aparentemente desconexas, na figura do almotacé, revela um núcleo profundo e permanente daquilo que era entendido como o urbano. A almotaçaria expressa uma consciência específica de cidade (o urbano): trama onde estão inextrincavelmente reunidos o sanitário, o liberal nunca existiu oficialmente. As nossas cidades liberais reais são as favelas e bairros da lata, sempre encaradas como um mal a suprimir.

530 construtivo e as relações de mercado. Por sua vez, esta consciência desemboca nas três principais agendas do viver urbano, a do podre, a da forma e a do mercado. Versão urbanizada de uma leitura triádica dos perigos do mundo, aos quais a cidade deve dar respostas, que corresponde aproximadamente aos mais temidos flagelos medievais: a peste, a guerra e a fome.

42

Sobre a cópia de posturas, ver um depoimento do século XVIII. OLIVEIRA, Joaquim Pedro Gomes de. Extracto das Posturas da Villa de Azeitão. MEMORIAS ECONOMICAS DA ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS DE LISBOA. Lisboa, t.3. 1791. p.306-7.

531

BIBLIOGRAFIA

1.IMPÉRIO COLONIAL EM GERAL ACTAS DO CONGRESSO INTERNACIONAL BARTOLOMEU DIAS E A SUA ÉPOCA. Porto: Universidade do Porto; Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1989. v.1-5. ANAIS DO PRIMEIRO COLÓQUIO DE ESTUDOS HISTÓRICOS BRASIL PORTUGAL. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 1994. ARQUIVO DAS COLÓNIAS. Lisboa: Ministério das Colónias. v.1-5, 1917-38. ARQUIVOS DO CENTRO CULTURAL PORTUGUÊS. Lisboa; Paris: Fundação Caloute Gulbenkian. BOLETIM DA FILMOTECA ULTRAMARINA PORTUGUESA. BOXER, C. R. Relações raciais no Império Colonial Português. 1415-1825. Porto: Afrontamento, 1977. _____. O império colonial português. 1415-1825. Lisboa: Edições 70, 1981. BRITO, Bernardo Gomes de. História trágico-marítima . Lisboa: Oficina da Congregação do Oratório, 1835-6. 3.v. COLLECÇÃO DE NOTICIAS PARA A HISTÓRIA E GEOGRAFIA DAS NAÇÕES ULTRAMARINAS. Lisboa: Academia Real das Sciencias. LISANTI, Luis. Negócios coloniais. Brasília: Ministério da Fazenda, 1973. MARQUES, Alfredo Pinheiro. Guia de História dos descobrimentos e expansão portuguesa. 2.ed. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1988. MICELI, Paulo. O ponto onde estamos; viagens e viajantes na história da expansão e da conquista. São Paulo: Scritta, 1994. MOREIRA, Rafael (org.). História das fortificações portuguesas no mundo. Lisboa: Publicações Alfa, 1989. PEREIRA, Duarte Pacheco. Esmeraldo de situ orbis. 3.ed. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988. POMBAL REVISITADO. Lisboa: Editorial Estampa, 1984. 2.v. PRIMEIRAS JORNADAS DE HISTÓRIA MODERNA. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 1986. SERRÃO, Joel (dir.). Dicionário de história de Portugal. Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1971. STVDIA. Lisboa, n.1, jan.1958.

532

2. PORTUGAL, AÇORES E MADEIRA

2.1 GERAIS SOBRE O CONTINENTE ALMEIDA, João de (ed.). Reprodução anotada do livro das fortalezas se Duarte Darmas. Lisboa: Editorial Império, 1943. ALMEIDA, Pedro Vieira. A arquitectura do século XVIII em Portugal; pretexto e argumento para uma aproximação semiológica. BRACARA AUGUSTA, XXIII(2), 1973. ANDRADE, Amélia Aguiar & GOMES, Rita Costa. As cortes de 1481-82: Uma abordagem preliminar. ESTUDOS MEDIEVAIS. Porto, n.3-4, 1983-4. ARAÚJO, Ilídio de. Quintas de recreio. BRACARA AUGUSTA, v.27, n.76. 1973. p.321-31. AZEVEDO, José Lúcio de. História dos cristãos novos portugueses. 2.ed. Lisboa: Clássica, 1975. AZEVEDO, Pedro de. As cartas de criação de cidade concedidas a povoações portuguesas. Separata do BOLETIM DA ACADEMIA DE SCIÊNCIAS DE LISBOA, Segunda Classe, v.10, 1917. BEIRANTE, Maria Ângela. As mancebias nas cidades coloniais portuguesas. In: A MULHER NA SOCIEDADE PORTUGUESA. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1986. p. 221-41. CANAVIEIRA, Manuel Filipe Cruz de Morais. Os jardins do Palácio de Queluz; orientações de gosto, utência e simbólica. In: CENTENO, Yvette Kace & FREITAS, Lima de(Coords.). A simbólica do espaço; cidades, ilhas, jardins. Lisboa: I. P. L. L., 1991. p.45-57. CARVALHO, Sérgio L. Cidades medievais portuguesas; uma introdução ao seu estudo. Lisboa: Livros Horizonte, 1989. CASTRO, João Baptista de. Mappa de Portugal antigo e moderno. Lisboa: Oficina Patriarcal de Luiz Ameno, 1762-3. 3v. COELHO, Maria Helena da Cruz. Homens, espaços e poderes; séculos XI-XVI. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. 2.v. CONGRESSO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA - MISSIONAÇÃO PORTUGUESA E ENCONTRO DE CULTURAS; Actas. Braga: Universidade Católica Portuguesa; Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1983. CORTAZAR, Jose Angel Garcia de. História rural medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1983. CORTESÃO, Jaime. Os fatores democráticos na formação de Portugal. Lisboa: Portugália Editora, 1964. GONÇALVES, Iria. Imagens do mundo medieval. Lisboa: Livros Horizonte, 1988. KUBLER, George. Portuguese plain architecture; between spices and diamonds. 1521-1716. Middletown: Wesleyan University Press, 1972. _____. A arquitetura portuguesa chã.; entre as especiarias e os diamantes. 1521-1706. Lisboa: Vega, s.d. MAGAHÃES, Joaquim Romero. 1637, os motins da fome. BIBLOS, Coimbra, tomo 3, 1976. MARQUES, A. H. de Oliveira (org.). Atlas das cidades medievais portuguesas. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1990. _____. Cidades medievais portuguesas; algumas bases metodológicas gerais. REVISTA DE HISTÓRIA ECONÓMICA E SOCIAL. Lisboa, n.9, jan.jun.1982. p. 1-16. _____. A sociedade medieval portuguesa. 4.ed. Lisboa: Sá da Costa, 1981.

533 _____. Introdução à história da agricultura em Portugal. Lisboa: Cosmos, 1978. _____. Novos ensaios de história medieval portuguesa. Lisboa: Editorial Presença, 1988. _____. Portugal na crise dos séculos XIV E XV. Lisboa: Editorial Presença, 1981. MELO, Francisco Manuel de. Carta de guia de casados. Lisboa: Editorial Verbo, s.d. _____. Visita das fontes; apólogo dialogal terceiro. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1962. _____. Relógios falantes. Lisboa: Textos Literários, 1962. MENDONÇA, José L. D. de & MOREIRA, António J. História dos pincipais actos e procedimentos da Inquisição em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1980. MORENO, Humberto Baquero. Marginalidade e conflitos sociais em Portugal nos séculos XIV e XV; estudos de história. Lisboa: Presença, 1985. _____. O poder real e as autarquias locais no trânsito da idade média para a idade moderna. REVISTA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA, v.30, 1983, p.369-94. OLIVEIRA, António de. Poder e oposição política em Portugal no período filipino. (1580-1640). Lisboa: Difel, 1990. PIMENTEL, Maria do Rosário. O escravo negro na sociedade portuguesa até meados do século XVI. In: ACTAS DO CONGRESSO INTERNACIONAL BARTOLOMEU DIAS E A SUA ÉPOCA. Porto: Universidade do Porto/Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1989. v.4. p.165-77. PINA, Rui de. Crónica de D. Dinis. Porto: Livraria Civilização, 1945. PORTUGAL NO SÉCULO XVIII; de D. João V à revolução francesa. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1989. RAU, Virgínia. Estudos sobre a história do sal português. Lisboa: Editorial Presença, 1984. _____. Feiras medievais portuguesas; subsídios para o seu estudo. Lisboa: Editorial Presença, 1983. RIBEIRO, Orlando. Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico. Lisboa: Sá da Costa, 1967. ROQUE, Mário da Costa. As pestes medievais européias e o “Regimento proueitoso contra ha pestenença”. Paris: Centro Cultural Português; Fundação Caloute Gulbenkian, 1979. TAVARES, Maria José P. F. A política municipal de saúde pública; séculos XIV-XV. REVISTA DE HISTÓRIA ECONÓMICA E SOCIAL. Lisboa, n.19, jan.-abr.1987. p.17-32. _____. Los judíos en Portugal. Madrid: Editorial Mapfre, 1992.

2.2 LISBOA E ARREDORES ARAÚJO, Renata Malcher de. Lisboa; a cidade e o espetáculo na época dos descobrimentos. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. AMARAL, Ilídio. Lisboa; uma capital do renascimento. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1988. ANALÍTICOS DA REVISTA MUNICIPAL. 1939-1973. Lisboa: Câmara Municipal; Gabinete de Estudos Ulisiponenses, 1991. BETHENCOURT, Francisco. Descrições e representações de Lisboa no século XVI. In: O IMAGINÁRIO DA CIDADE. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. p.117-29. BRANDÃO [de BUARCOS], João. Grandeza e abastança de Lisboa em 1552. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. (Organização e notas de José Felicidade Alves). BRITO, Raquel Soeiro de. Lisboa; espaço geográfico. BOLETIM CULTURAL DA ASSEMBLÉIA DISTRITAL DE LISBOA, série 3, n.82, 1976.

534 CAETANO, Marcelo. A administração municipal de Lisboa durante a primeira dinastia. 1179-1383. Lisboa: Livros Horizonte. 1991. _____. A antiga organização dos mesteres da cidade de Lisboa. In: LANGHANS, Franz-Paul. As corporações dos ofícios mecânicos; subsídios para sua história. Lisboa:Imprensa Nacional, 1943. v.1, p.xi-lxxiv. _____. O concelho de Lisboa na crise de 1383-1385. In: _____. Estudos de história da administração pública portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 1994. p.267-98. CÂMARA, P. P. Descripção geral de Lisboa em 1839. Lisboa: Typografia da Academia de Belas Artes, 1839. CASTELO-BRANCO, Fernando. Lisboa seiscentista. 3.ed. rev. e aum. Lisboa: s.ed., 1969. CORREIA, Fernando da Silva (ed.). Regimento proveitoso contra a pestenença. BOLETIM CLÍNICO DOS HOSPITAIS CIVIS DE LISBOA. v.24, n.3, 1960. p.330-63. CORREIA, Virgílio (ed.). Livro dos regimetos dos officiaes mecanicos da mui nobre e s~epre leal cidade de Lixboa; 1572. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1926. (microfilme). CURTO, Diogo Ramada. Descrições e representações de Lisboa. 1600-50. In: O IMAGINÁRIO DA CIDADE. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. p.131-45. DOCUMENTOS PARA A HISTÓRIA DA ARTE EM PORTUGAL. n.2. Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Lisboa; Posturas diversas dos séculos XIV a XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1969. D´ORS, Eugênio. O barroco. Lisboa: Vega, s.d. A EVOLUÇÃO MUNICIPAL DE LISBOA; pelouros e vereações. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1996. FERNANDES, Hermenegildo. Uma cidade no imaginário medieval: Lisboa muçulmana nas descrições de Idrise e Ranulfo de Granville. ESTUDOS MEDIEVAIS. Porto, n.7, 1986. p.3-27. FRANÇA, José-Augusto. Lisboa pombalina e o iluminismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1965. _____. Lisboa: urbanismo e arquitectura. Lisboa: ICALP, 1980. _____. A reconstrução de Lisboa e a arquitectura pombalina. 2.ed. Lisboa: ICALP. 1981. _____. Nota sobre o marquês de Pombal e sua cidade. REVISTA DE HISTÓRIA DAS IDÉIAS. v.4, 1982-3. p.285-9. GANHADO, Jesuino Artur. O Passeio Público. REVISTA MUNICIPAL, Lisboa. GONÇALVES, Iria. Posturas municipais e vida urbana na baixa Idade Média: o caso de Lisboa. ESTUDOS MEDIEVAIS. Porto, n.7, 1986. p.155-72. GUSMÃO, Artur Nobre de. Da fábrica que falece à cidade de Lisboa. In: O IMAGINÁRIO DA CIDADE. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. p.147-77. HOLANDA, Francisco de. Da fábrica que falece a cidade de Lisboa. Lisboa: Livros Horizonte, 1984. (Introdução, notas e comentários de José Felicidade Alves). LIVRO DAS POSTURAS ANTIGAS. Lisboa: Câmara Municipal, 1979. LOBO, Francisco Rodrigues. Corte na aldeia. [1617] Lisboa: Presença, 1992. MACEDO, Luís Pastor. A rua e a horta da Mancebia. Lisboa; Amigos de Lisboa, 1948. MADUREIRA, Nuno Luís. Cidade, espaço e quotidiano. Lisboa: Livros Horizonte, 1992. MARQUES, Maria da Conceição Oliveira. O "extinto" Passeio do Rossio. In: Lisboa: Grêmio Literário, 1974. p.199-204. I Colóquio Estética do Romantismo em Portugal, 1970. MIRANDA, Jorge. Aspectos da situação do escravo em Oeiras. BOLETIM CULTURAL DA ASSEMBLÉIA DISTRITAL DE LISBOA, série 3, n.91, tomo 1, 1978. p.5-35.

535 OLIVEIRA, Christovam Rodrigues de. Summario, em que brevemente se contem algumas coisas, assim ecclesiasticas, como seculares, que ha na cidade de Lisboa. Lisboa: Oficcina de Miguel Rodrigues, 1755. OLIVEIRA, Eduardo Freire de. Elementos para a história do Município de Lisboa. Lisboa: Typographia Universal, 1887POSTURAS DO CONCELHO DE LISBOA, (sec. XIV). Lisboa: Sociedade de Língua Portuguesa, 1974. PRADALIÉ, Gerard. Lisboa: da reconquista ao fim do século XIII. Lisboa: Palas, 1975. RODRIGUES, Maria João Madeira. Tradição, transição, mudança; a produção do espaço urbano na Lisboa oitocentista. BOLETIM CULTURAL DA ASSEMBLÉIA DISTRITAL DE LISBOA, série 3, n.84, 1978. RODRIGUES, Maria Teresa Campos. Aspectos da administração municipal de Lisboa no século XV. REVISTA MUNICIPAL. Lisboa, diversos nums. SANTOS, Piedade Braga et alii. Lisboa setecentista vista por estrangeiros. Lisboa: Livros Horizonte, 1987. SEQUEIRA, Gustavo Matos. Rua da Mancebia. REVISTA MUNICIPAL, Câmara Municipal de Lisboa, n.32, 1º trimestre 1947. SILVA, Augusto Vieira da. Plantas topográficas de Lisboa. Lisboa: Câmara Municipal,1950. VASCONCELOS, Luís Mendes de. Do sítio de Lisboa; diálogos. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. (Introdução e notas de José Felicidade Alves)

2.3 ALENTEJO, ALGARVE E RIBATEJO ACTAS DAS VEREAÇÕES DE LOULÉ. Porto: Câmara Municipal de Loulé, 1984. ANDRADE, António Alberto Banha de. Montemor-o-novo, vila regalenga; ensaio de história da administração local. Prim. parte: O poder político dos reis e a administração do concelho durante os séculos XIII-XVI. CADERNOS DE HISTÓRIA, Montemor-o-novo, n.2, 1976. p.1-83. _____. _____. Seg. parte: Conspecto sócio-económico de uma vila alentejana da renascença. CADERNOS DE HISTÓRIA, Montemor-o-novo, n.8-9, 1979. p.161-274. BARROS, Amândio. Alterações urbanísticas em Faro e Olivença na segunda metade do século XV. In: ACTAS DAS III JORNADAS DE HISTÓRIA MEDIEVAL DO ALGARVE E ANDALUZIA, Loulé: Câmara Municipal, 1989. p.35-53. CADORNEGA, António de Oliveira. Descrição de Vila Viçosa. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1982. CÂMARA, Teresa Bettencourt da. Óbidos; arquitetura e urbanismo. Lisboa: Imprensa Nacional, 1990. CARRAPIÇO, Francisco J. et alii. As muralhas de Portimão; subsídios para o estudo da história local. Portimão: Câmara Municipal de Portimão, 1974. CARVALHO, Afonso de. As mancebias de Évora durante o Antigo Regime.In: PRIMEIRAS JORNADAS DE HISTÓRIA MODERNA. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 1986. v.2. p.695-711. CONDE, Manuel S. Tomar Medieval; o espaço e os homens. sec.XIV-XV. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1988. (Dissertação de mestrado em História Medieval defendida na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas). CORREIA, José H. Vila Real de Santo Antônio; urbanismo e poder na política pombalina. Lisboa: FCSH da UNL, 1984. 3.v. policopiado (Dissertação de doutoramento em História da Arte). _____. Vila Real de Santo António levantada em cinco meses pelo marquês de Pombal. In: POMBAL REVISITADO. Lisboa: Editorial Presença, 1984. p.81-8.

536 GONÇALVES, José Pires. Monsaraz e seu termo; ensaio monográfico. BOLETIM DA JUNTA DISTRITAL DE ÉVORA. n.2, 1961. p.1-158. GUEDES, Lívio da Costa (ed.). Aspectos do Reino do Algarve nos séculos XVI e XVII; a “Descripção” de Alexandre Massaii (1621). Lisboa: Arquivo Histórico Militar, 1988. IRIA, Alberto. Vila Real de Santo António reedificada pelo Marquês de Pombal (1773-1776); subsídios para a sua monografia e elementos para a história da administração pombalina. ETHNOS. Lisboa, v.3, 1948. p.5-76. LIVRO DO ALMOXARIFADO DE SILVES; século XV. Silves: Câmara Municipal de Silves, 1984. PEREIRA, Gabriel Vitor do Monte (ed.). Documentos históricos da cidade de Évora. Fascículo I. Foros e costumes ou direito consuetudinário municipal nos séculos XII e XIII. Évora: Typographia da Casa Pia, 1885. PIMENTEL, Alberto. Memória sobre a história e administração do Município de Setúbal. Setúbal: Câmara Municipal, 1992. (ed. facsimilar do original de .) RESENDE, André de. História da antigüidade da cidade de Évora. Évora: André de Burgos, 1553. SANTARÉM; a cidade e os homens. Santarém: Junta Distrital, 1977. SILVA, Custódio Vieira da. Setúbal. Lisboa: Editorial Presença, 1990. SILVA, Joaquim Candeias (ed.). O Livro de Posturas da Vila de Abrantes de 1515. ABRANTES; CADERNOS PARA A HISTÓRIA DO MUNICÍPIO. Abrantes. 1982. separata. VIANA, Abel (ed.). Posturas camarárias de 1738. ARQUIVO DE BEJA. Beja, v.7, 1950. _____. Vereações de 1651 (Beja). ARQUIVO DE BEJA. Beja, v.9, fasc.1-4, jan.-dez.1952. p.57-87. _____. Despachos e acórdãos da Câmara Municipal de Beja,; livro I, anos de 1604 a 1735. ARQUIVOS DE BEJA, v.XIII, 1956. p.173-87. VIDIGAL, Luís. Câmara, nobreza e povo; poder e sociedade em Vila Nova de Portimão. 1755-1834. Portimão: Câmara Municipal, 1993.

2.4 PORTO ALVES, Joaquim Jaime B. Ferreira. O Porto na época dos Almadas; arquitectura; obras públicas. Porto: Câmara Municipal, 1990. 2.v. FLL A1304/1305V. BASTOS, Artur de Magalhães Bastos. Estudos Portuenses. Porto: Biblioteca Pública Municipal, . _____. O Porto. Lisboa: Bertrand, s.d. BOLETIM CULTURAL DA CÂMARA MUNICIPAL DO PORTO. Porto, v.1-5, mar.1938-dez. 1942. COSTA, Adelaide de L. P. Millan da. “Vereação” e “vereadores”; o governo do Porto em finais do século XV. Porto: Câmara Municipal, 1993. CRUZ, António. Os mesteres do Porto; subsídios para a história das antigas corporações dos ofícios mecânicos. Porto: ., 1943. _____. Os mesteres do Porto no século XV. Porto: Maranus, 1940. DUARTE, Luis Miguel & MACHADO, João Alberto (org.). Vereações: 143.-1432. Livro 1. Porto: Arquivo Histórico, 1985. FERRÃO, Bernardo José. Projecto e transformação urbana do Porto na época dos Almadas. 1758-1813. 2.ed. Porto: Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 1989. FERREIRA, J. A. Pinto. O Porto e a residência dos fidalgos. BOLETIM CULTURAL. Porto, v.11, fas.3-4, set.-dez.1948. p.266-338. GONÇALVES, Flávio. A arte no Porto na Época do marquês de Pombal. In: POMBAL REVISITADO. Lisboa: Editorial Presença, 1984. p.101-19.

537 GONÇALVES, Iria. As festas de “Corpus Cristi” do Porto na segunda metade do século XV: a participação do concelho. ESTUDOS MEDIEVAIS. Porto, n.5-6, 1984-5. p.69-89. ICONOGRAFIA PORTUENSE. Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto. v.4, .; v.5, p.68-102, 227-69, 363-91. MADROUX-FRANÇA, M. Thérèse. Quatre phases de l´urbanisation de Porto au XVIII.e siècle. COLÓQUIO ARTES, n.8, 1972. p.35-46. MARQUES, H. et alii. Porto; percursos nos espaços e memórias.Porto: Edições Afrontamento, 1990. OLIVEIRA, J. M. Pereira. O espaço urbano do Porto; condições naturais e desenvolvimento. Coimbra: Centro de Estudos Geográficos, 1973. 2.v. PRIVILÉGIO DOS CIDADÃOS DA CIDADE DO PORTO. Porto: Empreza de Obras Clássicas e Ilustradas, 1878. SILVA, Francisco Ribeiro. O Porto e seu termo (1580-1640); os homens, as instituições e o poder. Porto: Arquivo Histórico da Câmara Municipal do Porto, 1988. 2.v. _____. Os motins do Porto em 1757; novas perspectivas. In: POMBAL REVISITADO. Lisboa: Editorial Estampa, 1984. p.247-83. VEREAÇOENS, anos 1390-1395. Porto: Câmara Municipal, 1937. VEREAÇOENS; anos 1401-1449. Porto: Câmara Municipal, 1980. VEREAÇÕENS; 1491, livro 1. Porto: Câmara Municipal, 1985. VALENTE, Vasco. O motim de 1757 segundo uma testemunha coeva. BOLETIM CULTURAL DA CÂMARA MUNICIPAL DO PORTO. v.4, fas.2-3. jun.-set.1941. p.255-8. VITORINO, Pedro. Vistas do Porto nos séculos XVII e XVIII. BOLETIM CULTURAL DA CÂMARA MUNICIPAL DO PORTO. v.1, fas.1. março 1938. p.72-89.

2.5 OUTRAS LOCALIDADES DO NORTE ALMEIDA, Carlos Alberto Ferreira de. Barcelos. Lisboa: Editorial Presença, 1990. ANDRADE, Amélia A. composição social e gestão municipal: o exemplo de Ponte de Lima na baixa Idade Média. LER HISTÓRIA. n.10, 1987. _____. Um espaço urbano medieval: Ponte de Lima. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. ARAGÃO, Maximiano de. Viseu; subsídios para sua história desde fins do século XV. Porto: Typ. Sequeira, 1928. _____. Vizeu; apontamentos históricos. Vizeu: Typ. Popular, 1894-95. ARQUIVO COIMBRÃO. Coimbra, v.1-6, 1923-42. BANDEIRA, Miguel Sopas de Melo. Metamorfose de um cenário urbano; ensaio meotológico em geografia urbana. BRACARA AUGUSTA. Braga, . p.197-222. BRACARA AUGUSTA. Braga, v.1-35, n.1-93. 1935-81. BRAGA. Atas da câmara. Acordos e vereações da Câmara de Braga no episcopado de D. Frei Bartolomeu de Mártires. 1580-1582. BRACARA AUGUSTA, v.24, n.73-4, jan.dez, 1970. p.284-470. BRAGA. Atas da câmara. Acordos e vereações da Câmara de Braga no episcopado de D. Frei Bartolomeu de Mártires. 1566-1567. BRACARA AUGUSTA, v.32, n.73-4, jan.dez, 1987, p.415-82; v.33, n.75-6, jan.dez.1979, p.483-563. BRAGA, Alberto Vieira. Administração seiscentista do Município Vimarense. Guimarães: Câmara Municipal, 1953.

538 CAPELA, José Viriato. A câmara, a nobreza e o povo do concelho de Barcelos; a administração do município nos fins do antigo regime. BARCELOS - REVISTA. Barcelos, 1.série, v.3, n.1, 1986. p.7-324. _____ & NUNES, A. João. O concelho de Barcelos do Antigo Regime à Primeira República. BARCELOS - REVISTA. Barcelos, 1.série, v.1, n.2, p.205-68. _____. Braga; um município fidalgo. CADERNOS DO NOROESTE. Braga, v.2, n.2-3, 1986. p.30140. CARVALHO, F. A. Martins de. Fontes e chafarizes de Coimbra e suas imediações. ARQUIVO COIMBRÃO. CARVALHO, José Branquinho de(ed.). Livro 2º da correia; cartas, provisões e alvarás régios registados na câmara de Coimbra. 1273-1754. Coimbra: Biblioteca Municipal, 1958. COELHO, Maria Helena da Cruz. A propósito do foral de Coimbra de 1179. In: _____. Homens, espaços e poderes. v.1, p.105-20. COELHO, Maria Virgínia Aníbal. Perfil de um poder concelhio; Santarém durante o reinado de D. José. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1993. (Tese de doutoramento em Sociologia defendida na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas). _____. Autonomia e despotismo: a câmara e a vila de Santarém no reinado de D. José. CADERNOS CULTURAIS, Câmara Municipal de Santarém, n.4, mar.1993. p.1-97. COIMBRA. Câmara de Coimbra; o mais antigo livro de vereações. 1491. ARQUIVO COIMBRÃO, v. 12, 1954. p.53-68. COIMBRA. Livro I da correia. Livro de regimentos e posturas desta mui nobre cidade de Coimbra. ARQUIVO COIMBRÃO. DIAS, Pedro. A arquitectura de Coimbra na transição do Gótico para a Renascença. Coimbra: Epatur, 1982. (Tese de doutorado em História da Arte). FERREIRA, Maria de Conceição F. Elementos para um estudo sociotopográfico na Baixa Idade Média; um espaço residencial de elite. CADERNOS DO NOROESTE. Braga, v.2, n.2-3, 1986. p.179216. _____. Uma rua de elite na Guimarães medieval. REVISTA DE GUIMARÃES. Guimarães, v.96, jan.dez.1986. p.151-80. GUIMARÃES, A. L. de. Os mesteres de Guimarães. s.l.: s.e., 1951. LOUREIRO, J. Pinto. Administração coimbrã no século XVI; elementos para a sua história. ARQUIVO COIMBRÃO, v.4, 1938-9, p.1-48; v.5, 1940, p-1-48; v.6, 1942, p-220-50. _____. Casa dos vinte e quatro de Coimbra; elementos para a sua história. ARQUIVO COIMBRÃO, v.3, 1936-7, p.129-92; v.4, 1938-9, p.49-98. _____. Trajos e insígnias dos vereadores. ARQUIVO COIMBRÃO, v.5, 1940. p.197-207. MINIA. série 2, ano 1, n.1, 1987. Braga. MARQUES, João. Actas das vereações da Câmara Municipal de Póvoa de Varzim no Ano de 1791. Póvoa de Varzim: s.ed., 1967. MARQUES, José. A administração municipal de Vila do Conde, em 1466. BRACARA AUGUSTA. Braga, V.37, n.83-4, jan.-dez.1983. p.5-116. _____. A administração municipal de Mós de Moncorvo, em 1439. BRIGANTIA, v.5, n.2-4, abr.dez, 1985. p.515-60. MOREIRA, Manuel Fernandes. O município e os forais de Viana do Castelo. Viana do Castelo: Câmara Municipal, 1980. NEVES, Francisco Ferreira. Livro dos Acordos da câmara de Aveiro de 1580; subsídio para o estudo da vida municipal e nacional portuguesa no século XVI.

539 OLIVEIRA, António de. Levantamentos populares no arcebispado de Braga em 1635-1637. BRACARA AUGUSTA, v.34, n.91. jan.-dez.1980. p.419-46. OLIVEIRA, Eduardo Pires et alii. Braga: evolução da estrutura urbana. ESTUDOS BRACARENSES, Braga, Câmara Municipal. n.3, 1982. POIARES, Frei Pedro de. Tractado panegyrico em louvor da Villa de Barcellos. Coimbra: 1672. RIBEIRO, Orlando. A rua Direita de Viseu. GEOGRAPHICA, 16, 1968. p.49-63. SOARES, Sérgio Cunha. Aspectos da política municipal pombalina; a câmara de Viseu no reinado de D. José. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1985. (Separata da REVISTA PORTUGUESA DE HISTÓRIA, Tommo XXI). _____. Os vereadores da Universidade na Câmara de Coimbra. 1640-1777. REVISTA PORTUGUESA DE HISTÓRIA. Coimbra, Tomo 26, 1991. p.45-75. TEIXEIRA, A. J. (ed.). Documentos para a história dos jesuítas. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1899. VALE, Alexandre de Lucena e. Viseu do século XVIII nos livros de actas da câmara. Viseu: Junta Distrital, 1962. _____. Livro dos acordos de 1534 da cidade de Viseu; subsídio para o estudo da vida municipal portuguesa no século XVI.

2.6 AÇORES E GERAIS DAS ILHAS OS AÇORES E O ATLÂNTICO (Séculos XIV-XVII); Actas do Colóquio Internacional realizado em Angra do Heroísmo de 8 a 13 de agosto de 1983. Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1984. ARCHIVO DOS AÇORES. Ponta Delgada, v.1-15. 1878-1959. ÁVILA, João Gabriel de. O paço municipal de Velas. BOLETIM DO INSTITUTO HISTÓRICO DA ILHA TERCEIRA. Angra do Heroísmo, v.43, t.2, 1985. p.361-418. BOTTINEAU, Yves. L’architecture aux Açores du Manuelim au Baroque. COLÓQUIO-ARTES, Lisboa, n.35, dez.1977. BRITO, R. Soeiro de. A ilha de S. Miguel; estudo geográfico. Lisboa: CEG/IAC, 1955. CARREIRO, José Carlos Barbosa. O concelho do Nordeste; apontamentos para sua história. Nordeste: Câmara Municipal, 1989. CASTELO-BRANCO, Fernando. O abastecimento de Lisboa com trigo dos Açores; repercuções neste arquipélago. In: OS AÇORES E O ATLÂNTICO (Séculos XIV-XVII); Actas do Colóquio Internacional realizado em Angra do Heroísmo de 8 a 13 de agosto de 1983. Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1984. p.613-24. DIAS, Urbano de Mendonça. Ponta Delgada; monografia histórica. Vila Franca do Campo: A Crença, 1946. _____. A Vila; publicação histórica da Vila-Franca do Campo. Ponta Delgada: Tip. Central, 1915-27. 6.v. DRUMMOND, Francisco Ferreira. Annaes da Ilha Terceira. Angra do Heroismo: Câmara Municipal, 1850. 4.v. FERNANDES, José Manuel. Angra do Heroísmo. Lisboa: Editorial Presença: 1989. FRUTUOSO, Gaspar. Livro primeiro (a sexto) das saudades da terra. Ponta Delgada: Instituto Cultural, 1963-91.

540 LEITE, José Guilherme Reis. A luta pelo governo autónomo nos Açores; uma sentença do Desembargo do Paço a favor da nobreza de Angra, no século XVII. In: OS AÇORES E O ATLÂNTICO (Séculos XIV-XVII); Actas do Colóquio Internacional realizado em Angra do Heroísmo de 8 a 13 de agosto de 1983. Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1984. p.108-42. LIMA, Manuel Coelho Baptista. Angra “universal escala do mar poente” no século XVI. In: OS AÇORES E O ATLÂNTICO (Séculos XIV-XVII); Actas do Colóquio Internacional realizado em Angra do Heroísmo de 8 a 13 de agosto de 1983. Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1984. p.859-75. LIMA, Marcelino. Anais do Município da Horta. Famalicão: Grandes Oficinas Gráficas Minerva, 194043. MAIA, Francisco de Faria. Subsídios para a história de São Miguel; capitães dos donatários. 14391766. Ponta Delgada: Diário dos Açores, 1942. _____. Subsídios para a história de São Miguel e Terceira. 1766-1831. Ponta Delgada: ., 1949. MARQUEZ, Jacome Corrêa (ed.). Posturas da Câmara de Ponta Delgada (1801-1834). ARCHIVO DOS AÇORES, v.14, 1927. p.435-94. _____. Posturas da Câmara de Ponta Delgada Ddo século XVII. ARCHIVO DOS AÇORES, v.14, 1927. p.124-45 e 164-87. MATOS, Artur Teodoro de & LOPES, Maria de Jesus dos Mártires. Subsídios para a história económica e social do concelho de Vila Franca do Campo no ano de 1566; um auto de avaliação dos bens dos seus moradores. In: OS AÇORES E O ATLÂNTICO (Séculos XIV-XVII); Actas do Colóquio Internacional realizado em Angra do Heroísmo de 8 a 13 de agosto de 1983. Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1984. p.543-54. MENESES, Avelino de Freitas. O município da Madalena (Pico): 1740-1764; subsídios para seu estudo. BOLETIM DO INSTITUTO HISTÓRICO DA ILHA TERCEIRA. Angra do Heroísmo, v.45, t.2, 1987. p.1051-1111. MORENO, Humberto Baquero. O município no espaço atlântico. séculos XV-XVI. In: ANAIS DO PRIMEIRO COLÓQUIO DE ESTUDOS HISTÓRICOS BRASIL PORTUGAL. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 1994. p.37-46. NEMÉSIO, Vitorino (org.). Memorial da mui notável vila da Praia da Vitória; no centenário da acção de 11 de agôsto de 1829. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1929. NOGUEIRA, Maria Margarida de Sá. A administração do concelho de Vila Franca do Campo nos anos de 1683-1686; subsídios para o seu estudo. In: OS AÇORES E O ATLÂNTICO (Séculos XIVXVII); Actas do Colóquio Internacional realizado em Angra do Heroísmo de 8 a 13 de agosto de 1983. Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1984. p.576-95. PEREIRA, António dos Santos. A administração municipal, na vila de Velas, na segunda metade do século XVI. In: OS AÇORES E O ATLÂNTICO (Séculos XIV-XVII); Actas do Colóquio Internacional realizado em Angra do Heroísmo de 8 a 13 de agosto de 1983. Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1984. p.702-28. _____. O concelho da Ribeira Grande (São Miguel): aspéctos económicos e sociais no século XVI. BOLETIM DO INSTITUTO HISTÓRICO DA ILHA TERCEIRA, Angra do Heroísmo, v.45, t.2, 1987. p.1113-1140. _____. A ilha de S. Jorge ( séculos XV-XVII); contribuição para o seu estudo. Ponta Delgada: Universidade dos Açores, 1987. RIBEIRO, Luís da Silva (ed.). Reforma das posturas do concelho de Angra em 1655. BOLETIM DO INSTITUTO HISTÓRICO DA ILHA TERCEIRA, v.9, 1951. _____. Posturas da Câmara Municipal de Angra em 1788. In: Obras, II - História. Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1983. RODRIGUES, José Damião. Poder Municipal e oligarquias urbanas; Ponta Delgada no século XVII. Ponta Delgada: Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1994.

541 _____. O governo municipal nos arquipélagos portugueses do Atlântico: 1495-1750; análise comparativa das oligarquias insulares. Ponta Delgada: Universidade dos Açores, 1992. RODRIGUES, Vítor Luís Gaspar. A administração do concelho de Ponta Delgada de 1639-1649. In: OS AÇORES E O ATLÂNTICO (Séculos XIV-XVII); Actas do Colóquio Internacional realizado em Angra do Heroísmo de 8 a 13 de agosto de 1983. Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1984. p.465-86. SALGADO, Anastásia M. & SALGADO, Abílio. O Hospital de Todos-os-Santos e algumas das terras descobertas até 1488. In: ACTAS DO CONGRESSO INTERNACIONAL BARTOLOMEU DIAS E A SUA ÉPOCA. Porto: Universidade do Porto/Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1989. v.4. p.437-50. SANTOS, J. Marinho dos. Ponta Delgada: nascimento e primeira infância de uma cidade. REVISTA DE HISTÓRIA ECONÓMICA E SOCIAL, n. 1, 1978. p. 33-53. _____. Açores: etapas, ritmo e formas de urbanização. In: ESTUDOS DE HISTÓRIA DE PORTUGAL; homenagem a A. H. de Oliveira Marques. Lisboa: Estampa, 1983. v.2. p.70-91. _____. Os Açores nos séculos XV e XVI. Ponta Delgada: Direção Regional de Assuntos Culturais, s.d. 2.v. _____. Praia da Vitória; a vetusta vila que se fez cidade. Praia da Vitória: 1981. _____ & VALE, Ema de Lourdes Cristóvão do. Formas e funções do imaginário na sociedade açoriana; análise do discurso mítico de Frutuoso.In: OS AÇORES E O ATLÂNTICO (Séculos XIVXVII); Actas do Colóquio Internacional realizado em Angra do Heroísmo de 8 a 13 de agosto de 1983. Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1984. p.836-41. SOUZA, Nestor de. A arquitetura religiosa de Ponta Delgada nos séculos XVI a XVIII. Ponta Delgada: Universidade dos Açores, 1986. TAVARES, João José. A vila da Lagoa e seu concelho. Ponta Delgada, 1944. VEREAÇÕES DE VELAS; S. Jorge 1559-1570-1571. Angra do Heroísmo: Secretaria Regional de Educação e Cultura, 1984. VIEIRA, Alberto. Comércio de cereais dos Açores para a Madeira no século XVII. In: OS AÇORES E O ATLÂNTICO (Séculos XIV-XVII); Actas do Colóquio Internacional realizado em Angra do Heroísmo de 8 a 13 de agosto de 1983. Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1984. p.651-77. _____. Portugal y las islas del Atlántico. Madrid: Editorial Mapfre, 1992. _____. As posturas municipais da Madeira e dos Açores nos séculos XV a XVII. In: ACTAS DO III COLÓQUIO INTERNACIONAL SOBRE OS AÇORES E O ATLÂNTICO. Angra do Heroísmo, 1989. _____. Introdução ao estudo do direito local insular; as posturas da Madeira, Açores e Canárias nos séculos XVI e XVII. s.l.: Ediciones del cabildo Insular de Gran Canaria, 1986. (Separata dos Anais do VII Colóquio de História Canario-Americana).

2.7 MADEIRA ACTAS DO COLÓQUIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA MADEIRA; 1986. Funchal: Governo Regional da Madeira, 1989. ACTAS DO III COLÓQUIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA MADEIRA. Funchal: Secretaria Regional do Turismo e Cultura; Centro de Estudos de História do Atântico, 1993. ARAGÃO, António (ed.). A madeira vista por estrangeiros. 1457-1700 Funchal: Secretaria Regional de Educação e Cultura, 1981. _____. Para a história do Funchal; pequenos passos da sua memória. Funchal: Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1979.

542 ARQUIVO HISTÓRICO DA MADEIRA; Boletim do Instituto Historico do Funchal. 1958-66. BRÁSIO, António. O padroado da Ordem de Cristo na Madeira. ARQUIVO HISTÓRICO DA MADEIRA, v.1960-1. p.191-228. CARITA, Rui. Paulo Dias de Almeida e a descrição da ilha da Madeira. Funchal: Direcção Regional dos Assuntos Culturais da Madeira, 1982. _____.A planta do Funchal de Mateus Fernandes. Coimbra: Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1983. COSTA, José Pereira da. Notas sobre o Hospital e a Misericórdia do Funchal. ARQUIVO HISTÓRICO DA MADEIRA, v.1964-66. p.94-125. _____ (ed.). Vereações da câmara Municipal do Funchal; século XV. Funchal: Região Autônoma da Madeira, 1995. FERRAZ, José de Freitas. Planta da cidade do Funchal desenhada por Agostinho José Marques Rosa. GARCIA DE ORTA, v.16, n.2. p.139-45. FERRAZ, Maria de Lourdes de Freitas. A ilha da Madeira sob domínio da casa senhorial do Infante D. Henrique e seus descendentes. Funchal: Secretaria Regional do Turismo e Cultura, 1986. _____. A cidade do Funchal na segunda metade do século XVIII. GOMES, Fátima Freire. Oficiais e oficios no Funchal; século XVIII a princípio do XIX. In: ACTAS DO II COLÓQUIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA MADEIRA. Funchal: Comissão para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1989. p.201-11. GONÇALVES, Iria. Um projecto adiado; a muralha quatrocentista do Funchal. In: ACTAS DO III COLÓQUIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA MADEIRA. Funchal: Secretaria Regional do Turismo e Cultura; Centro de Estudos de História do Atântico, 1993. p.253-60. IRIA, Alberto. O Algarve e a ilha da Madeira no século XV. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1974. PEREIRA, Fernando Jasmins (ed.). Índice dos documentos do século XV transcritos no tombo primeiro do Registro Ger al da Câmara do Funchal. In: ARQUIVO HISTÓRICO DA MADEIRA; Boletim do Instituto Historico do Funchal. 1958. p.55-138. PERES, Damião. A Madeira sob os donatários; séc. XV e XVI. Funchal: Officinas do Tempo, 1914. PINTO, Maria Luís Rocha & RODRIGUES, Teresa Maria Ferreira. Aspectos do povoamento das ilhas da Madeira e Porto Santo nos séculos XV e XVI. In: ACTAS DO III COLÓQUIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA MADEIRA. Funchal: Secretaria Regional do Turismo e Cultura; Centro de Estudos de História do Atântico, 1993. p.403-71. VIEIRA, Alberto et alii. O município do Funchal. (1550-1650). In: ACTAS DO I COLÓQUIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA MADEIRA, 1986. Funchal: Governo Regional da Madeira, 1989. v.1. p.1004-89. _____ & RODRIGUES, Victor Luís G. A administração do município do Funchal; 1470-1489. In: ACTAS DO II COLÓQUIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA MADEIRA. Funchal: Comissão para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1989. p.23-42. _____. Ponta do Sol: um século de vida municipal. 1549-1700. In: ACTAS DO III COLÓQUIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA MADEIRA. Funchal: Secretaria Regional do Turismo e Cultura; Centro de Estudos de História do Atântico, 1993. p.265-80.

543

3. ÁFRICA OCIDENTAL

3.1 NORTE DA ÁFRICA E FEITORIAS DA MINA E GUINÉ AMARAL, Augusto Ferreira. História de Mazagão. Lisboa: Publicações Alfa, 1989. BALLONG-WEN-MEWUDA, J. Bato´ora. São Jorge da Mina; la vie d´un comptoir portugais en Afrique occidentale. Lisbonne; Paris: Fundation Calouste Gulbenkian; Ecole de Hautes Etudes en Sciences Sociales; Commission Nationale Pour les Commemoratios des Decouvertes Portugaises, 1993. 2.v. CUNHA, Luis Maria do C. de A. da. Memórias para a história da praça de Mazagão. Lisboa: 1864. DECORSE, Christofer R. Culture contact, continuity, and change on the Gold Coast, AD 1400-1900. THE AFRICAN ARCHEOLOGICAL REVIEW. Cambridge: Cambridge University Press. v.10, 1992. p.163-93. FARINHA, António Dias. Plantas de Mazagão e Larache. _____. História de Mazagão durante o período filipino. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1970. _____. Portugal e Marrocos no século XV. Lisboa: Universidade de Lisboa, 1990. 2.v. (Dissertação de doutoramento apresentada à Faculdade de Letras). MONOD, Théodore. L´ile d´Arguin (Mauritanie); essai historique. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1983. MOTA, A. Teixeira da. Alguns aspectos da colonização e do comércio marítimo dos portugueses na África ocidental nos séculos XV e XVI. Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1976. RAU, Virgínia. Uma tentativa de colonização da Serra Leoa no século XVII. LAS CIENCIAS, Madrid, ano.11, n.1, s.d. p.607-31. SARAIVA, Cardeal. Memória sobre a expansão de Tanger. In: Obras completas. v.2. Lisboa: 1874. VASCONCELOS, Ernesto de. Castelos portugueses na Abissínia. BOLETIM DA SOCIEDADE DE GEOGRAFIA DE LISBOA, 45ª série, 1927. p. 257-62. ZURARA, Gomes Eanes da. Crónica da Guiné. Porto: Livraria Civilização Editora, 1973.

3.2 GUINÉ E CABO-VERDE ALMADA, André Alvares de. Tratado breve dos Rios da Guiné e Cabo Verde. Lisboa: Editorial LIAM, 1964. AMARAL, Ilídio do. Santiago de Cabo Verde. Lisboa: s.ed., 1964. CANAVARRO, Pedro. Uma “traça” jesuíta para a antiga cidade de S. Tiago de Cabo Verde. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1977. CARREIRA, António. Documentos para a história das ilhas de Cabo Verde e “Rios da Guiné”. Lisboa: Ed. do autor, 1983. _____. Conflitos sociais em Cabo Verde no século XVIII. REVISTA DE HISTÓRIA ECONÓMICA E SOCIAL. Lisboa, n.16, ju.-dez.1985. p.63-88. _____. A capitania das ilhas de Cabo Verde. REVISTA DE HISTÓRIA ECONÓMICA E SOCIAL. Lisboa, n.19, jan.-abr.1987. p.33-77.

544 CASTRO, Armando Augusto Gonçalves de Morais e. Anuário da Província da Guiné do ano de 1925. Bolama: Imp. Nacional, 1925. CHELMICKI, J. C. C. & VARNHAGEN, F. A. Corografia Cabo-verdeana. Lisboa: Typ. de L. C. da Cunha, 1841. 2.v. ESTEVES, Maria Luísa. Gonçalo de Gamboa de Aiala, Capitão-mor de Cacheu, e o comércio negreiro espanhol. Lisboa; Bissau: Instituto de Investigação Científica Tropical; Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, 1988. FERNANDES, Nelson. Cacheu e os Rios de Guiné do Cabo Verde. In: CACHEU; cidade antiga. Lisboa: Icalp, s.d. [1988]. GUERRA, Luís Bivar. A sindicância do desembargador Custódio Correia de matos às ilhas de Cabo Verde em 1753. STVDIA, n.2, jul.1958. MOTA, A. Teixeira da. Cinco séculos de cartografia das ilhas de Cabo Verde.GARGIA DE ORTA, vol. 9 (n.1), 1961, p.11-16. PEREIRA, Daniel A. As insolências do capitão Domingos Rodrigues Viegas e do seu irmão Belchior Monteiro de Queiróz contra as autoridades da ilha de Santiago. REVISTA DE HISTÓRIA ECONÓMICA E SOCIAL. Lisboa, n.16, ju.-dez.1985. p.31-62. PUSICH, António. Memória ou descrição físico-política das ilhas de Cabo-Verde.GARGIA DE ORTA, v. IV, n.4, 1956. p.605-28 RELAÇÃO DA COSTA DA GUINÉ; 1607. Lisboa: Imprensa Nacional, 1881. SANTOS, Maria Emília M. & TORRÃO, Maria Manuel. Subsídios para a História Geral de Cabo Verde. In: ACTAS DO CONGRESSO INTERNACIONAL BARTOLOMEU DIAS E A SUA ÉPOCA. Porto: Universidade do Porto/Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1989. v.1 - Economia e Comércio Marítimo p.527-51. SARAIVA, José Mendes da Cunha. A fortaleza de Bissau e a Compahia do Grão Pará e Maranhão. Lisboa: Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, 1947.

3.3 SÃO TOMÉ AMBRÓSIO, P. António. A fundação da “Poçom” (S. Tomé): uma capital em África. In: ACTAS DO CONGRESSO INTERNACIONAL BARTOLOMEU DIAS E A SUA ÉPOCA. Porto: Universidade do Porto/Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1989. v.1 - Economia e Comércio Marítimo p.417-43. ACTAS DA CÂMARA DE SANTO ANTÓNIO DA ILHA DO PRÍNCIPE. 1672-1777. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1970. ALBUQUERQUE, Luís (org.). A ilha de São Tomé nos séculos XV e XVI. Lisboa: Publicações Alfa, 1989. CORTESÃO, Armando. Descobrimento e cartografia das Ilhas de São Tomé e Príncipe. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, 1971. GORDO, J. Adolpho S. & MIRANDA, Tiago C. P. dos Reis. “Quando mandarom os mininos aos lagartos”; as crianças judias de São Tomé e sua descendência no Brasil. 1492-1624. São Paulo: s.d. HENRIQUES, Isabel Castro. Ser escravo em São Tomé no século XVI; uma outra leitura de um mesmo quotidiano. In: PRIMEIRAS JORNADAS DE HISTÓRIA MODERNA. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 1986. v.2. p.1129-42. _____. Formas de intervenção e organização dos africanos em São Tomé nos séculos XV e XVI. In: ACTAS DO II COLÓQUIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA MADEIRA. Funchal: Comissão para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1989. p.797-813.

545 MATOS, Raimundo José da Cunha. Corografia histórica das ilhas de São Tomé e Príncipe, Ano Bom e Fernando Pó. São Tomé: Imprensa Nacional, 1916. _____.Compêndio histórico das possessões de Portugal na África. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça e Negócios Interiores; Arquivo Nacional, 1963. MORENO, Humbert Baquero. Álvaro Caminha, Capitão-mor de São Tomé. In: ACTAS DO CONGRESSO INTERNACIONAL BARTOLOMEU DIAS E A SUA ÉPOCA. Porto: Universidade do Porto/Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1989. v.1 p.299-313. NEVES, Carlos Agostinho das. São Tomé e Príncipe na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Instituto de História do Além-Mar, 1989. RAMOS, Rui. Rebelião e sociedade colonial: “alvoroços” e “levantamentos” em São Tomé. 1545-1555. REVISTA INTERNACIONAL DE ESTUDOS AFRICANOS. Lisboa, n.4-5, jan.-dez.1986. p.17-74. RIBEIRO, Manuel Ferreira. A província de São Thomé e Príncipe e suas dependências. Lisboa: Imprensa Nacional, 1877. SÁ-NOGUEIRA, Isabel Bettecourt & SÁ-NOGUEIRA, Bernardo. A ilha do Príncipe no primeiro quartel do século XVI; administração e comércio. In: ACTAS DO CONGRESSO INTERNACIONAL BARTOLOMEU DIAS E A SUA ÉPOCA. Porto: Universidade do Porto/Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1989. v.3 Economia e Comércio Marítimo p.81-115.

3.4 ANGOLA AMARAL, Ilídio. Descrição da Luanda oitocentista vista através da uma planta de 1755. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1961. (Separata de Garcia de Orta, 9(3), p. 409-20). _____. Luanda; estudo de geografia urbana. Lisboa: s.ed., 1968. _____. Mbanza Kongo, cidade do Congo, ou São Salvador; contribuição para o conhecimento geográfico de uma aglomeração urbana aficana ao sul do equador, nos séculos XVI e XVII. GARCIA DE ORTA, Lisboa, 12(1-2), 1987, p. 1-40. _____. Ensaio de um estudo geográfico da rede urbana de Angola. Lisboa: Junta de Estudos do Ultramar, . _____. Luanda em meados do século XIX; revelada num texto de 1848. (Separata de Garcia de Orta, Lisboa, 9(1-2), 1984, p. 1-16). ANGOLA NO SÉCULO XVI. Lisboa: Publicações Alfa, 1989. ARAGÃO, Balthazar Rebello. Terras e minas africanas; (1593-1631). Lisboa: Imprensa Nacional, 1881. ARQUIVOS DE ANGOLA. Luanda: Conselho Superior de Estatística. Prim. Série, 1933-39, v.1-5, n.1-56. ARQUIVOS DE ANGOLA. Luanda: Museu de Angola. Seg. Série, 1943- , n.1- , BATALHA, Fernando. A urbanização de Angola. Luanda: Museu de Angola, 1950. _____. Arquitectura tradicional de Luanda. Luanda: Museu de Angola, 1950. _____. Em defesa da vila do Dondo. Luanda: Centro de Informações e Turismo de Angola, 1963. _____.Dondo. Centro de Informações e Turismo de Angola, 1962. 2.ed. 1P73 BRÁSIO, António. As misericórdias de Angola. STVDIA, n.4. jul.1959. p.106-49. _____. Monumenta missionária africana. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1952.

546 CASTELLO BRANCO, Garcia Mendes. Da Mina ao Cabo Negro; (1574-1620). Lisboa: Imprensa Nacional, 1881. CADORNEGA, António de Oliveira. História geral das guerras angolanas. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1972. 3.v. CATÁLOGO DOS GOVERNADORES DO REINO DE ANGOLA; com huma previa noticia do principio da sua conquista, e do que nella obrarão os governadores dignos de memória. Lisboa: Academia Real das Sciencias, 1826. CORREIA, Elias A. da Silva. História de Angola. Lisboa: s.ed., 1937. CURTO, José C. A colecção de manuscritos angolanos do Arquivo Ultramarino. REVISTA INTERNACIONAL DE ESTUDOS AFRICANOS. Lisboa, n.6-7, jan.-dez.1987. p.265-79. DELGADO, Ralph. História de Angola; primeiro período e parte do segundo. 1482-1607. 2.ed. Lobito: Livraria Magalhães, 1961. _____. O governo de Souza Coutinho em Angola. STVDIA, n.6, jul.1960, p.19-56; n.7, jan.1961, p.4986. DIAS, Gastão Souza (ed.). Relações de Angola; pertencentes ao cartório do Colégio dos Padres da Companhia e transcritas do códice existente na Biblioteca Nacional de Paris. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1934. FERRONHA, António Luís Alves. Angola; a revolta de Luanda de 1667 e a expulsãodo Governador Geral Tristão da Cunha. In: PRIMEIRAS JORNADAS DE HISTÓRIA MODERNA. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 1986. v.2. p.1143-57. FELNER, Alfredo de Albuquerque. Apontamentos sobre a ocupação e início do estabelecimento dos portugueses no Congo, Angola e Benguela. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1933. _____. Angola; apontamentos sobre a colonização dos planaltos e litoral do sul de Angola. Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1940. 3.v. HEINTZE, Beatrix. Fontes para a história de Angola. Stuttgart: Franz Steiner Verlag Wiesbaden, 1985. 2.v. LOBO, Manuel da Costa. Subsídios para a História de Luanda. Lisboa: Ed. do autor, 1967. LUANDA; cidade portuguesa fundada por Paulo Dias de Novais em 1575. Porto: Litografia Nacional, s.d. MENEZES, Joaquim Antônio de Carvalho e. Memória geográfica e política das possessões portuguezas n’África Occidental. Lisboa: Tipografia Carvalhense, 1834. _____. Demonstração geographica e politica do territorio portuguez na Guine Inferior,que abrange o Reino de Angola, Benguella e suas dependencias. Rio de Janeiro: Tipografia Clássica de F. A. de Almeida, 1848. NEVES, Carlos. Angola nos meados do século XVIII. Lisboa: s.ed.,1986. (datilografado). NOVAIS, Paulo Dias. [Correspondência]. ARQUIVOS DE ANGOLA, Luanda, 2.série, v.17, n.67-70, jan.-dez.1960. PANTOJA, Selma. Fontes para História de Angola e Moçambique no Rio de Janeiro; do século XVI ao XIX. REVISTA INTERNACIONAL DE ESTUDOS AFRICANOS. Lisboa, n.8-9, jan.dez.1988. p.321-37. SILVA, José Gentil da. En Afrique portugaise; l’Angola au XVIIIe siècle. ANALLES, Paris, n.3, 1959. p.571.80. THORNTON, John K. & MILLER, Joseph C. A crónica como fonte, história e hagiografia; o Catálogo dos Governadores de Angola. REVISTA INTERNACIONAL DE ESTUDOS AFRICANOS. Lisboa, n.12-13, jan.-dez.1990. p.9-55.

547 TORRES, J. C. Feo Cardozo de Castelobranco e. Memórias; contendo a biographia do Vice Almirante Luiz da Motta Feo e Torres, a história dos Governadores Geraes de Angola, desde 1575 até 1825 e a descripçãp geographica e política de Angola e de Benguella. Pariz: Fantin Livreiro, 1825. VALDES, Francisco Travassos. África Ocidental; notícias e considerações. Lisboa: 1864.

4. BRASIL

4.1 GERAL ANAIS DA BIBLIOTECA NACIONAL. Rio de Janeiro, volumes 53, 56, 57 e 63. ARAÚJO, Emanuel. O teatro dos vícios; trangressão e transigência na sociedade urbana colonial. 2.ed. Brasília: Editora UNB, 1997. AZEVEDO, Pedro de. A instituição do Governo Geral. In: HISTÓRIA DA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA DO BRASIL; Edição monumental comemorativa do primeiro centenário da independência do Brasil. Porto: Litografia Nacional, 1921-4. v.3. p.325-83. BRANDÃO, Renato Pereira. A espacialidade missioneira jesuítica no Brasil colonial. In: A FORMA E A IMAGEM; arte e arquitetura jesuítica no Rio de Janeiro colonial. Rio de Janeiro: PUC-RJ, s.d. BRITO, Francisco Tavares de. Itinerário geográfico com a verdadeira descripção dos caminhos, estrdas, rossas, citios, povoaçoens, lugares, vilas, rios, montes e serras, que ha da cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro até as Minas do Ouro. BARROCO, Belo Horizonte, n.4, 1972. (Facsimile da edição Sevilha: Officina de Antonio da Sylva, 1732). BRUNO, Ernâni Silva. História do Brasil; geral e regional. São Paulo: Cultrix, 1967. CASCUDO, L. C. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1868. 2.v. CORTESÃO, Jaime. A colonização do Brasil. Lisboa: Portugália Editora, 1969. DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. tomo 1, v.1 e 2. 2.ed. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1949. DEFFONTAINES, Pierre. Como se constituiu no Brasil a rede de cidades. BOLETIM GEOGRÁFICO DO INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Rio de Janeiro, (14)1418, (15), 1944. p. 299-308. DIAS, C. Malheiro. O regímen feudal das donatarias. In: HISTÓRIA DA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA NO BRASIL; Edição monumental comemorativa do primeiro centenário da independência do Brasil. Porto; Litografia Nacional, 1921-4. v.3. p.217-56. DIAS, Manuel Nunes. Natureza e estatuto da capitania no Brasil. Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1979. FAORO, Raymundo. Os donos do poder; formação do patronato político brasileiro. 4.ed. Porto Alegre: Editora Globo, 1977. 2 v. FERREIRA, Tito Lívio & FERREIRA, Manuel Rodrigues. História da civilização brasileira. São Paulo: Gráfica Biblos Editora, 1959. FERRONHA, António Luís & BETTENCOURT, Mariana. A via láctea da Lusofonia. In: ATLAS DA LINGUA PORTUGUESA NA HISTÓRIA E NO MUNDO. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1992.

548 FLEXOR, Maria Helena Ochi. Os oficiais mecânicos em duas regiões brasileiras: Salvador e São Paulo. UNIVERSITAS; Revista da Universidade Federal da Bahia. Salvador, n.37, jul.-set.1986. p.3352. FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 22.ed. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1987. HISTÓRIA DA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA DO BRASIL; Edição monumental comemorativa do primeiro centenário da independência do Brasil. Porto, Litografia Nacional, 1921-4. 3.v. HISTORIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL. São Paulo: Cia. das Letras. 1997. v.1. HOLANDA, Sérgio Buarque de (Dir.). História geral da civilização brasileira. T.1, V.1 A época colonial; administração, economia e sociedade. 6.ed. São Paulo: Difel, 1985. IRIA, Alberto. Inventário geral de cartografia Brasileira existente no Arquivo Histórico Ultramarino. . GANDAVO, Pero de. Tratado da terra do Brazil; no qual se contém a informação das cousas que há nestas partes. Lisboa: Academia Real de Sciencias, 1826. LEMOS, Carlos. O Brasil. In: MOREIRA, Rafael (org.). História das fortificações portuguesas no mundo. Lisboa: Publicações Alfa, 1989. p.233-54. LIMA, Oliveira. A Nova Lusitânia. In: HISTÓRIA DA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA NO BRASIL; Edição monumental comemorativa do primeiro centenário da independência do Brasil. Porto; Litografia Nacional, 1921-4. v.3. p.285-323. MENEZES, José L. M. & Rodrigues, Maria do R. R. Fortificações portuguesas no nordeste do Brasil; séculos XVI, XVII e XVIII. Recife: Pool Editorial, 1986. NORTON, Luís. A dinastia dos Sás no Brasil. Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1943. NOTÍCIA DO BRAZIL; Descripção verdadeira da costa daquelle estado que pertence á coroa do Reino de Portugal, sitio da Bahia de Todos os Santos. Lisboa: Academia Real das Sciencias, 1825. OLIVEIRA VIANA. Populações meridionais do Brasil e Instituições políticas brasileiras. Brasília: Câmara dos Deputados, 1892. PAZ, Francisco Moraes. Na poética da história; a realização da utopia nacional oitocentista. Curitiba: Editora da UFPR, 1996. PRADO JR., Caio. História econômica do Brasil. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1953. SALDANHA, António Vasconcelos de. As capitanias; o regime senhorial na expansão ultramarina portuguesa. Funchal: Secretaria Regional do Turismo; Centro de Estudos de História do Atlântico, 1992. SALLES, David. Nativismo reivindicativo em 1627; uma perquirição no discurso colonial. UNIVERSITAS; Revista da Universidade Federal da Bahia. Salvador, n.37, jul.-set.1986. p.314. SALGADO, Plínio. Como nasceram as cidades do Brasil. Lisboa: Ática, 1946. _____. ______. São Paulo: Voz do Oeste, 1978. SCATAMACCHIA, Maria Cristina Mineiro & MOSCOSO, Francisco. Análise do padrão de estabelecimentos tupi-guarani: fontes etno-históricas e arquiológicas. REVISTA DE ANTROPOLOGIA, São Paulo, V.30-2, 1987-9. p.37-53. SIMONSEN, Roberto C. História econômica do Brasil. 1500-1820. 3.ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1957. SPIX & MARTIUS. Viagem pelo Brasil. 1817-1820. Excertos e ilustrações. São Paulo: Melhoramentos, 1968. THOMAS, Gerg. Política indigenista dos portugueses no Brasil. 1500-1640. São Paulo: Ed. Loyola, 1981. VIEIRA, Pe. Antônio. Cartas. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1949. v.14.

549

4.2 ESTADO DO MARANHÃO E GRÃO-PARÁ ARAUJO, Renata Malcher de. As cidades da amazónia no século XVIII; Belém, Macapá e Mazagão. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa:, 1992. 3.v. (Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas). ADONIAS, Isa. Alguns mapas antigos e planos de fortes relativos á região amazónica, existentes em arquivos do Brasil. Lisboa: Congresso Internacional de História dos Descobrimentos, 1961. (Separata). _____. A cartografia da região amazônica: catálogo descritivo. 1500-1961. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia, 1963. 2.v. POL 526.81 A239 ALMEIDA, Cândido Mendes de. Memórias do Estado do Maranhão; cujo território comprehende hoje as províncias do Maranhão, Piauhy, Grão-Pará e Amazonas. Rio de Janeiro: ., 1884. .v. BAENA, Antonio Ladislau Monteiro. Compêndio das eras da Província do Pará. Belém: Universidade Federal do Pará, 1969. BARATA, Manoel. Formação histórica do Pará; obras reunidas. Belém: Universidade Federal do Pará., 1973. BARRETO, Paulo T. O Piauí e sua arquitetura. REVISTA DO SPHAN. n.2, 1938. BATES, Henry Walter. O naturalista no Rio Amazonas. São Paulo: Editora Nacional, 1944. DIAS, Manuel Nunes. Política pombalina na colonização da Amazônia. 1755-1788. STVDIA, Lisboa, n.23, abril, 1968. p.7-26. (Separata). _____. Estratégia pombalina de urbanização do espaço amazónico. BROTÉRIA, Lisboa, v.115, n.2-4, ago.-out.1982. FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Diário da viagem philosófica pola Capitania de São José do Rio Negro. 1758. RIHGB. FONSECA, João Abel da. D. frei Miguel de Bulhões, bispo do Pará e governador do Estado do GrãoPará e Maranhão. 1752-1756. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA, MISSIONAÇÃO PORTUGUESA E ENCONTRO DE CULTURAS; Actas. Braga: Universidade Católica Portuguesa; Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, 1983. p.491-529. FONSECA, José Gonçalves da. Navegação feita da cidade do Gram Pará até á bocca do rio Madeira. Lisboa: Academia das Sciencias, 1826. LA CONDAMINE, Charles Marie de. Viagem na América Meridional descendo o Rio Amazonas. Rio de Janeiro: Pan Americana, 1944. LEITE, Serafim. Nota sobre a fundação da Cidade de Fortaleza; capital do Ceará. BROTÉRIA. Lisboa, v.74, n.5. maio1962. LIMA, Olavo Correia. Cultura arquitetônica colonial de São Luis. São Luis: ed. do autor, 1989. LOPES, Antônio. Alcântara; subsídios para a história da cidade. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1957. MARQUES, César Augusto. Dicionário Histórico-geográfico da Província do Maranhão. São Luís: SUDEMA, 1970. MEIRA FILHO, Augusto. Evolução histórica de Belém do Grão-Pará. Belém: s. ed., 1976. 2.v. MENDONÇA, Marcos Carneiro de (ed.). A Amazônia na era pombalina. Rio de Janeiro: IHGB, 1963. MOTT, Luiz R. B. Descrição da capitania de São José do Piauí. 1772. REVISTA DE HISTÓRIA, São Paulo, v.56, n.112, ano.28, out.-dez.1977. p.543-566. _____. Conquista, aldeamento e domesticação dos índios gueguê do Piauí: 1764-1770. REVISTA DE ANTROPOLOGIA, São Paulo, v.30-2, 1987-9. p.55-78.

550 PEIXOTO, Afrânio. Martim Soares Moreno, fundador do Seará, iniciador do Maranhão. Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1940. PENTEADO, Antonio Rocha. Belém do Pará; das origens aos fins do século XVIII. REVISTA DO INSTITUTO DE ESTUDOS BRASILEIROS, São Paulo, 3, 1968. p.35-44. _____. Belém; estudo de geografia urbana. Belém: Universidade Federal do Pará, 1968. 2.v. PEREIRA, Arnaldo António. Para uma caracterização da política colonial pombalina; a administração de Francisco Xavier de Mendonça Furtado no Estado do Grão-Pará e Maranhão. 1752-1759. In: PRIMEIRAS JORNADAS DE HISTÓRIA MODERNA. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 1986. v.2. p.1075-98. REIS, Artur C. Ferreira. Guia histórico dos municípios do Pará. REVISTA DO SPHAN. Rio de Janeiro, n.11. 1947. p.233-322. _____. O Jardim Botânico de Belém. BOLETIM DO MUSEU NACIONAL (Nova Série), Rio de Janeiro, n.7, 27. set.1946. RÖHRING-ASSUNÇÃO, Mathias. Transferência de vilas no Maranhão oriental. CADERNOS DE PESQUISA, São Luís, v.5, n.2, jul.-dez.1989. p.145-59. SILVEIRA, Simão Estácio da. Relação sumária das cousas do Maranhão. Lisboa: Imprensa Nacional, 1911. (Microfilme). VIOTTI, Hélio Abranches. O pombalino Império da Amazônia na regência de Francisco Xavier de Mendonça Furtado. REVISTA DE HISTÓRIA. São Paulo, n.100, v.50, t.2. 1974.

4.3 PERNAMBUCO E RESTANTE DO NORDESTE ARQUIVOS; nova série. Recife, n4, out.1985. ALCÂNTARA, Marco Aurélio. Iconografia de Pernambuco. Recife: Pool Editora, 1982. (Material cartográfico). _____. Iconografia de Pernambuco (Material cartográfico). Recife: Pool Editora, 1982. CASCUDO, Luís da Câmara. História da cidade de Natal. Natal: Prefeitura Municipal, 1947. _____. Nomes da terra; história, geografia e toponímia do Rio Grande do Norte. Natal: Fundação José Augusto, 1968. CASTRO, Josué de. A cidade do Recife; ensaio de geografia urbana. Rio de Janeiro: Livraria Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1954. DANTAS, Beatriz Gois. Missão Indígena no Geru. Aracaju: Universidade Federal de Sergipe, s.d. DUTRA, Francis Anthony. Matias de Albuquerque: a seventeenth-century capitão-mor of Pernambuco and governor-general of Brazil. New York: New York University, 1968. ENNES, Ernesto. Os Palmares; subsídios para a sua história. Lisboa: I Congresso da História da Expansão Portuguesa no Mundo, 1937. (Separata). _____. As guerras dos Palmares; subsídios para a sua história. São Paulo: Nacional, 1938. FREYRE, Gilberto. Olinda; segundo guia prático, histórico e sentimental da cidade brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1944. ICONOGRAFIA DA PARAÍBA (MATERIAL CARTOGRÁFICO). s.l.: Pool Editora, 1983. MEDEIROS, Coriolano de. Dicionário corográfico do Estado da Paraíba. 2.ed. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1950. MENEZES, José Luiz Mota. Atlas histórico cartográfico do Recife. Recife: Editora Massangana, 1988. PINTO, Irineu Ferreira. Datas e notas para a história da Parahyba. Parahyba do Norte: Imprensa Oficial, 1908.

551 RODRIGUES, Maria João Madeira. Olinda e Recife; uma situação de bipolaridade no urbanismo colonial. Lisboa: Academia Nacional de Belas Artes, 1979. SILVA, Raimundo Nonato da. Evolução Urbanística de Mossoró. Mossoró: Fundação Guimarães Duque, 1983. TOLLENARE, Louis-François. Notas dominicais. Recife: Secretaria de Educação e Cultura de Pernambuco, 1978.

4.4 BAHIA E SERGIPE ALDENBURGK, Johann Gregor. Relação da conquista e perda da cidade do Salvador pelos holandeses em 1624-1625. São Paulo: s.ed., 1961. AZEVEDO, Thales Olympio Góes de. Povoamento da cidade de Salvador. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1955. A BAHIA DE OUTROS TEMPOS; as posturas do Senado da Câmara em 1785. REVISTA DO INSTITUTO GEOGRÁFICO E HISTÓRICO DA BAHIA, ano 4, v.4, n.11, mar.1897. p.47-72. BEYER, Gustav. Ligeiras notas de viagem do Rio de Janeiro à capitania de São Paulo. REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE SÃO PAULO, São Paulo, 1908, v.12. p.275331. CALDAS, José António. Notícia Geral de toda esta capitania da Bahia desde o seu descobrimento até o presente ano de 1759. Edição facsimilar. Bahia: Tipografia Beneditina, 1951. CALMON, Pedro. A primeira cidade: Bahia. Lourenço Marques: Universidade de Lourenço Marques, 1971. (Separata da REVISTA DE CIÊNCIAS DO HOMEM, vol. IV, série A, 1971. p 1-5). CARNEIRO, Edison. A cidade do Salvador [1594]: uma reconstituição histórica. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1954. CARTAS DO SENADO DA CÂMARA DA BAHIA; 1638.1692. Salvador: 1950-3. 3.v. [Equipe do] CENTRO DE ESTUDOS DE ARQUITETURA DA BAHIA. A cidade do Salvador em 1730. UNIVERSITAS; Revista da Universidade Federal da Bahia. Salvador, n.23, jul.-set.1978. p.5-28. COSTA, Afonso. De como nasceu, se organizou e vive minha cidade (Jacobina). RIHGB, v.9. (Volume especial, Anais do IV Congresso de História Nacional). FREIRE, Felisberto. História de Sergipe. Petrópolis: Vozes, 1977. HABSBURGO, Maximiliano de. Bahia 1860; esboço de viagem. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1982. KLÜPPEL, Griselda Pinheiro. O clima e o traçado urbano na colonização da América. RUA. Salvador, 1(1): 3-8. LAVRADIO, Marquês do. Cartas da Bahia. 1768-69. Ministério da Justiça: Arquivo Nacional, 1972. LEÃO, Joaquim de. Salvador da Bahia de Todos os Santos; Iconografia seiscentista desconhecida. A Haya: ., 1957. NOTICIA DO BRAZIL; desscripção verdadeira da costa daquelle estado que pertence á coroa do Reino de Portugal, sitio da Bahia de Todos os Santos. In: COLLECÇÃO de noticias para a história e Geografia das nações ultramarinas, que vivem nos domínios portuguezes, ou lhe são visinhas. Lisboa: Academia Real das Sciencias, 1825. Tomo III Parte I. NUNES, Maria Thetis. Sergipe colonial; II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996. OTT, Cartos. A aldeia de índios do Espirito Santo (Abrantes). UNIVERSITAS; Revista da Universidade Federal da Bahia. Salvador, n.37, jul.-set.1986. p.3-14.

552 _____. Formação e evolução étnica da cidade do Salvador; o folclore bahiano. Salvador: Tip. Manu, 1955-7. 2.v. PARAÍSO, Maria Hilda Baquero. Os índios de Olivença e a zona de veraneio dos coronéis de cacau na Bahia. REVISTA DE ANTROPOLOGIA, São Paulo, v.30-2, 1987-9. p.79-109. PLANO URBANÍSTICO DE SÃO CRISTÓVÃO. Salvador: SEPLAN, 1980. PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO INTEGRADO DA CIDADE MONUMENTO DE CACHOEIRA. Salvador: Ministério da Educação e Cultura, 1976. REVISTA DO INSTITUTO GEOGRÁFICO E HISTÓRICO DA BAHIA,. ano 1-22, v. 1-20, n. 1-41. 1894-1915. RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia. 1550-1755. Brasília: Ed. UNB, 1981. RUY, Affonso. História da Câmara Municipal da cidade do Salvador. Salvador: Câmara Municipal, 1953. SALVADOR. São Bento (mosteiro beneditino). Livro velho do tombo do mosteiro de São Bento da cidade do Salvador. Salvador: Tip. Beneditina, 1945. _____. Arquivo Municipal. Documentos Históricos. Salvador: Prefeitura Municipal, 1973. SANTOS, Mario Augusto da Silva. O tema do abastecimento na historiografia baiana: uma avaliação. UNIVERSITAS; Revista da Universidade Federal da Bahia. Salvador, n.35, jan.-mar.1986. SENA, Consuelo Pondé de. Relações interétnicas através se casamento: Inhambupe 1780-1800. UNIVERSITAS; Revista da Universidade Federal da Bahia. Salvador, n.24, jan.-mar.1979. p.71-82. SILVA, Alberto. A cidade do Salvador; aspectos seculares. Salvador: Imprensa Oficial da Bahia, 1971. SILVA, José Pinheiro da. A capitania da Bahia. REVISTA PORTUGUESA DE HISTÓRIA. Coimbra, v.8-11. SERRÃO, Joaquim V. Dois documentos para a história da Bahia; em 1634-1635. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1960. (separata de BRASILIA. Coimbra v.11, 1960). UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. Faculdade de Arquitetura. Evolução física de Salvador. Salvador: 1979. 114p. il. VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. Salvador: Editora Itapuã, 1969. _____. Recompilação de notícias soteropolitanas e brasílicas. Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1921.

4.5 MINAS GERAIS, GOIÁS E MATO GROSSO ACTAS DA CAMARA MUNICIPAL DE VILLA RICA. RIHGB, p.199-391. ALENCASTRE, José Martins Pereira. Anais da Província de Goiás (1863). Goiânia: Secretaria de Planejamento e Coordenação, 1978. ALMEIDA, Lucia Machado. Passeio a Sabará. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1956. AUTOS DA CREAÇÃO DA VILLA DE BARBACENA NA COMARCA DO RIO DAS MORTES. REVISTA DO ARCHIVO PÚBLICO MINEIRO. Ouro Preto, ano 1, fasc.1, jan.-mar.1896. p.119-127. BARREIROS, Eduardo Canabrava. As vilas del-Rei e a cidadania de Tiradentes. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1976. BITTENCOURT, Maria das Mercês Vasques. Urbanização colonial; estudo de um modelo de espaço urbano em Sabará. BARROCCO, Ouro Preto, n.12, p.234-56, 1982-3.

553 BRASIL, Americano do. Súmula de história de Goiás. 2.ed. Goiânia: Departamento Estadual de Cultura, 1961. CHAIM, Marivone Matos. Sociedade colonial; Goiás 1749-1822. 2.ed. Brasília: Secretaria de Cultura de Goiás-Ministério da Cultura, 1987. COELHO, José João Teixeira. Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais. 1780. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994. CÔRTE-REAL, João Afonso. Anal de Vila Bela desde o primeiro descobrimento dêste sertão do Mato Grosso, no ano de 1734. In: CONGRESSO DO MUNDO PORTUGUÊS. Lisboa: Comissão Executiva dos Centenários, v.10, 1940. CREAÇÃO DE VILLAS NO PERÍODO COLONIAL. REVISTA DO ARCHIVO PÚBLICO MINEIRO. Ouro Preto, ano 1, fasc.2, abr.-jun.1896, p.347-72; ano 2, fasc.1, jan.-mar.1897, p.81-107. [O] JARDIM BOTÂNICO DE OURO PRETO EM 1835. REVISTA DO ARCHIVO PÚBLICO MINEIRO. Ouro Preto, v.3, n.3, 1898. p.774-7. LÉFÈVRE, Renée & VASCONCELOS, S. C. Minas: cidades barrocas. São Paulo: Ed. Nacional, 1976. LELOUP, Yves. Les villes du Minas Gerais. Paris: Institut des Hautes Etudes de L’Amerique Latine, 1970. LIMA JÚNIOR, Augusto de. A Capitania de Minas Gerais. 3.ed. s.l.: Instituto de História, Letras e Artes, 1965. MACHADO FILHO, Aires da Mata. Arraial do Tijuco, cidade Diamantina. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. MARQUES, Reinaldo Martiniano. Poeta e espaço urbano: a representação de Vila Rica na poesia mineira setecentista. In: ANAIS DO PRIMEIRO COLÓQUIO DE ESTUDOS HISTÓRICOS BRASIL PORTUGAL. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 1994. p.131-45. MEMÓRIAS GOIANAS. I. Goiânia: Universidade Católica de Goiás, 1982. MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Rios Guaporé e Paraguai; primeiras fronteiras definitivas do Brasil. Rio de Janeiro, Xerox do Brasil, 1985. OURO PRETO; sesquicentenário da elevação de Vila Rica à categoria de Imperial Cidade de Ouro Preto. 1823-1973. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1973. (Catálogo da exposição). PAIVA, Eduardo França. Discussão sobre fontes de pesquisa histórica: os testamentos coloniais. LHP: Revista de História. Ouro Preto, n.4, 1993-4. p.92-106. PALACIN, Luiz. Goiás 1722-1822; estrutura e conjuntura numa capitania de minas. Goiânia: Departamento Estadual de Cultura, 1972. SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino. Petrópolis: Vozes, 1978. SIQUEIRA, Joaquim da Costa. Compêndio histórico cronológico das notícias de Cuiabá. Repartição de Mato Grosso, desde 1778 até 1817. REVISTA DO IHGB, 24, 171, 1863. VASCONCELLOS, Sylvio. Vila Rica. São Paulo: Perpectiva: 1977. _____. Vila Rica: formação e desenvolvimento; Residências. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1956. VASCONCELOS, Diogo Pereira Ribeiro de. Breve descrição geográfica, física e política da capitania de Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994. VASCONCELOS, Salomão de. Relíquias do passado. REVISTA DO SPHAN. n.2, 1938. p.4355.

554

4.6 RIO DE JANEIRO E ESPÍRITO SANTO ANASTÁCIO, Marta Quiroga Amoroso. Arquitetura civil no Rio de Janeiro setecentista: primeiras considerações. GÁVEA, Rio de Janeiro, PUC-Rio, n.7, dez.1989. p.64-81. ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro (Monsenhor Pizarro). Memórias históricas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945-51. 10.v. BARROW, John. A voyage to Conchinchina In:the years 1792 and 1973. London: Cadell & Davies, 1806. BERNARDES, Lysia M. C. Evolução da paisagem urbana do Rio de Janeiro até o início do século XX. In: ABREU, Maurício de A. (org.). Natureza e sociedade no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Prefeitura Municipal, 1992. p.37-53. BUNBURY, James Fox. (atribuição) Narrativa de viagem de um naturalista inglês ao Rio de Janeiro e Minas Gerais. 1833-35. ANAIS DA BIBLIOTECA NACIONAL, v.63, 1941. BURMEISTER, Hermann. Viagem ao Brasil através das províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. CAMPOS, André Luiz Vieira de. Posturas municipais na província fluminense: os casos de Campos e Niterói. REVISTA DE ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL, v.5, n.188, jul.-set.1988. p.42-55. CARVALHO, Anna Maria Monteiro de. Um programa de sombra e água fresca para o carioca; o Passeio Público e o Chafariz das Marrecas de mestre Valentim. BARROCCO, Ouro Preto, n.15, p.23-50, 1990-2. CONDURU, Roberto. A pólvora e o nanquim. GÁVEA, Rio de Janeiro, PUC-Rio, n.7, dez.1989. p.417. FERREZ, Gilberto. Aquarelas de Richard Bates: o Rio de Janeiro de 1808-1848. Rio de Janeiro: 1965. _____. O paço da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Nacional Pró-Memória, 1985. MARIANNO Filho, José. O Passeio Público do Rio de Janeiro. 1779-1783. Rio de Janeiro: Próspero, 1953. MARQUES, Maria Eduarda C. M. & SIQUEIRA, Vera B. C. O. Rio de Janeiro setecentista: a história da construção da capital. GÁVEA, Rio de Janeiro, PUC-Rio, n.7, dez.1989. p.188-199. MESQUITA, Ana Maria. Azulejaria setecentista no Rio de Janeiro. GÁVEA, Rio de Janeiro, PUC-Rio, n.7, dez.1989. p.160-73. NOVAIS, Maria Estrela de. A Vila Velha e a Vila Nova do Espirito Santo. Porto: s.ed., 1956. OLIVEIRA, José de Teixeira. História do estado do Espírito Santo. Rio de Janeiro: s.ed., 1951. PALMA, André Martins da. Representação sobre os meios de promover a povoação dos Campos de Goitacázes em 1657. Paraíba do Sul: SCP, 1967. PAOLI, Claudia M. de & SOUZA, Luiz A. L. Um olhar sobre a arquitetura religiosa do Rio no século XVIII. GÁVEA, Rio de Janeiro, PUC-Rio, n.7, dez.1989. p.146-59. PRIVILÉGIOS CONCEDIDOS AOS CIDADÕES DO RIO DE JANEIRO POR EL-REI D: JOÃO IV. Coimbra: Coimbra Editora, 1948. SANTOS, Francisco Marques dos. O ambiente artístico fluminense à chegada da missão francesa em 1816. REVISTA DO SERVIÇO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Rio de Janeiro, n.5, 1941. p.213-40. SANTOS, Luiz Gonçalves dos. (Padre Perereca). Memórias para servir à história do reino do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Editora Zélio Valverde, 1943. v.1. SILVA, Osório Peixoto. Momentos decisivos da história de Campos de goitacázes. Rio de Janeiro: Petrobrás, 1984.

555 SISSON, Rachel. Patrimônio histórico e estrutura urbana: três ensaios. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Planejamento e Coordenação Geral, 1981.

4.7 SÃO PAULO E SUL DO BRASIL ACTAS DA CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. São Paulo, Archivo Municipal. ALMEIDA, Aluísio de. Memória histórica de Sorocaba. REVISTA DE HISTÓRIA. São Paulo, XXXV, 71, 1967. p.167-178. ALMEIDA, Luís Ferrand. A colónia do Sacramento na época da sucessão de Espanha. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1973. ANTUNES, De Paranhos. Origens dos primeiros núcleos urbanos do Rio Grande do Sul. In: ANAIS DO 2º CONGRESSO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA DO RIO GRANDE DO SUL. v.2. Porto Alegre: IHGRGS, 1937. p.359-74. BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Autoridade e conflito no Brasil colonial: o governo do Morgado de Mateus em São Paulo. (1765-1775). São Paulo: Secretaria Estadual da Cultura, 1979. _____. O morgado de Mateus; governador de São Paulo. Coimbra: 1979. BRITO, José Miguel. Memória política sobre a Capitania de Santa Catarina. Lisboa: Academia Real das Sciências, 1829. BURMESTER, Ana M. de Oliveira. Disciplinarização e trabalho; Curitiba, fins do século XVIII início do XIX. HISTÓRIA: QUESTÕES & DEBATES, 8(14/15), jul.-dez. 1987. p.117-27. CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Os juízes de fora; Nossa Senhora do Desterro. ANAIS DO PRIMEIRO CONGRESSO DE HISTÓRIA CATARINENSE. v.2. Florianópolis: Imprensa Oficial, 1950. p.151. p.145-245. CAMARGO, Paulo Florêncio de. História de Santana de Parnaíba. São Paulo: Secretaria da Cultura, Esporte e Turismo, 1971. CORTESÃO, Jaime. A fundação de São Paulo; capital geográfica do Brasil. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1955. DEL PRIORI, Mary. Mulheres de trato ilícito; a prostituição em São Paulo no século XVIII. ANAIS DO MUSEU PAULISTA, n.35, 1986-7. pp.167-200. DOCUMENTOS INTERESSANTES, para a história e costumes de São Paulo. DURÃO, Paulo. Nóbrega; fundador de São Paulo. Lisboa: Brotéria, 1955. ENNES, Ernesto. Pedro Taques de Almeida e as terras do concelho ou rossio da vila de São Paulo. São Paulo: Departamento de Cultura, 1942. ERVEN, Herbert Munhoz van. Datas do Paraná. Curitiba: Gráfica Mundial, 1945. FEDERICI, Hilton. Cruzeiro, um exemplo original de urbanização do vale do Paraíba. ANAIS DO VII SIMPÓSIO NACIONAL DOS PROFESSORES DE HISTÓRIA. A cidade e a história. São Paulo: Revista da História, 1974. v.3. p.405-24. LA PASTINA FILHO, José. Aspectos da evolução urbana em Paranaguá. Paranaguá: Primeiro Encontro para Preservação de Centros Históricos Paranaenses, 1987. (Apostila policopiada). MADRE DE DEUS, Fr. Gaspar da. Memórias para a história da Capitania de São Vicente. 3.ed. São Paulo: Weisflog Irmãos,1920. _____. Memórias para a história da Capitania de São Vicente hoje chamada de São Paulo. 4.ed. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1953. MAFRA, Joaquim da Silva. História do município de Guaratuba. Sl.: s.d., 1952. MARCONDES, Moysés. Documentos para a história do Paraná. Rio de Janeiro: Typographia do Annuario do Brasil, s.d.

556 MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Século XVIII, século pombalino do Brasil. Rio de Janeiro, Xerox do Brasil, 1989. NEGRÃO, Francisco (ed.). Boletim do Archivo Municipal de Curitiba. Curitiba: Câmara Municipal, 1906-32. 62.v. PAIVA, Eduardo. Expediente urbano de Porto Alegre. Porto Alegre: Prefeitura Municipal, 1943. PELUSO JUNIOR, Victor Antônio (org.). Estudos de Geografia Urbana de Santa Catarina. Florianópolis: Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, 1991. PEREIRA, Carlos da Costa. História de São Francisco do Sul. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1984. PEREIRA, Magnus R. M. Fazendeiros, industriais e não-morigerados; ordenamento jurídico e econômico da sociedade paranaense; 1829-1889. Curitiba: Cursos de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, 1990. (Dissertação de mestrado). _____. Semeando iras rumo ao progresso. Curitiba: Editora da UFPR, 1996. _____ & SANTOS, Antonio C. de A. Câmara Municipal de Curitiba: trezentos anos. Curitiba: Câmara Municipal, 1993. PETRONE, Pasquale. Aldeamentos paulistas. São Paulo: EDUSP, 1995. QUEIROZ, Maria Luiza Bertuline. A vila do Rio Grande de São Pedro. Rio Grande: Editora da Fundação Universidade do Rio Grande, 1987. RABELO, Elizabeth D. Os ofícios mecânicos e artesanais em São Paulo na segunda metade do século XVIII. REVISTA DE HISTÓRIA, 56(112), 1977. p.575-88. ROSAS, José Pedro. A fundação da cidade de Castro: apontamentos históricos. s.l.: s. ed., s.d. SAIA, Luís. Morada paulista. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 1995. _____. Evolução Urbana de São Luís do Paraitinga. ANAIS DO VII SIMPÓSIO NACIONAL DOS PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS DE HISTÓRIA. A cidade e a história. São Paulo: Revista da História, 1974. v.1. p.425-52. SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem a Curitiba e Província de Santa Catarina. Belo Horizonte: Itatiaia, 1978. SANTOS, Francisco Martins dos. História de Santos. 1532-1936. São Paulo: ., 1937. 2.v. SERPA, Élio Cantalício. ‘Os indômitos povos de que ella a Villa de Lagens se compõe pela maior parte’. REVISTA CATARINENSE DE HISTÓRIA, Florianópolis, Ufsc, n.2, 1994. SILVA, Janice Theodoro da. São Paulo 1554-1880; discurso ideológico e organização espacial. São Paulo: Editora Moderna, 1984. SILVA, Silvestre Ferreira da. Relação de sítio, que o Governador de Buenos Aires, D. Miguel de Salcedo, poz no anno de 1735, à Praça da Nova Colonia do Sacramento, sendo Governador da mesma Praça Antonio Pedro de Vasconcellos, Brigadeiro dos Exercitos de Sua Magestade. Lisboa, 1748. SPALDING, Walter. Pequena história de Porto Alegre. Porto Alegre: Edição Sulina, 1967. TAUNAY, Affonso de E. São Paulo no século XVI; história da vila Piratininga. Tours: Arrault, 1921. ______. História da vila de São Paulo. São Paulo: Ideal, 1926-9. 4.v. ______. História da cidade de São Paulo no século XVIII. 1701-1711. ANNAIS DO MUSEU PAULISTA. tomo 5, 1931. p.1-288. ______. História da villa de São Paulo no século XVIII. 1711-1720. ANNAIS DO MUSEU PAULISTA.. tomo 5, 1931. p.289-620. _____. A reintegração de São Paulo no Império Colonial Portugues em 1641 e o episódio de Amador Bueno. In: CONGRESSO DO MUNDO PORTUGUES. 1949, v.9., p.267. _____. História da cidade de São Paulo. São Paulo: Melhoramentos, 1954.

557 TREVISAN, Amélia Franzolin. Casa Branca: a povoação dos ilhéus. São Paulo: Edições Arquivo do Estado, 1981. VIEIRA DOS SANTOS, Antônio. Memória histórica, chronológica, topográfica descriptiva da vila de Morretes e do Porto Real, vulgarmente Porto de Cima. Curitiba: Museu Paranaense, 1950. _____. Memória histórica, cronológica, topográfica e descritiva de Paranaguá e seu município. Curitiba: Mundial, 1922. VILHENA, Luís dos Santos (ed.). Recompilação de notícias da capitania de São Paulo. Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1935.

5. ÁFRICA ORIENTAL E ORIENTE

5.1 GERAIS BARBOSA, Duarte. Livro em que dá relação do que viu e ouviu no oriente Duarte Barbosa. Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1946. BOCARRO, António. O livro das plantas de todas as fortalezas, cidades e povoações do Estado da Índia Oriental. Lisboa: Imprensa Nacional, 1992. 3.v. CARNEIRO, António de Mariz. Descrição da fortaleza de Sofala e das mais da Índia. Lisboa: Fundação Oriente, 1990. CORREIA, Gaspar. Lendas da Índia. Porto: Lello & Irmão, 1975. 4.v. CORTESÃO, Armando(ed.). The Suma Oriental of Tomé Pires and the Book of Francisco Rodrigues. London: The Hakluyt Society, 1944. 2.v. [Edição bilíngue]. COUTO, Diogo do. O soldado prático portugûes. Lisboa: Sá da Costa, 1937. DIÁRIO DE VIAGEM DE VASCO DA GAMA. Porto: Livraria Civilização Editora, 1945. 2.v. LIMA, José Joaquim. Ensaio sobre a estatística das possessões portuguesas na África Ocidental e Oriental, Ásia Ocidental, na China e na Oceania. Lisboa: Imprensa Nacional, 1859. (Microfilme). LIVRO EM QUE DÁ RELAÇÃO DO QUE VIU E OUVIU NO ORIENTE DUARTE BARBOSA. Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1946. LOMBARD, Denys. Les Lusiades comparées a deux autres “visions” de la fin du XVIe. siècle. In: MATOS, Artur Teodoro de & THOMAZ, Luís Filipe F. Reis (ed.). As relações entre a Índia portuguesa, a Ásia do sueste e o extremo oriente; Actas do VI Seminário Internacional de História Indo Portuguesa. Macau: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1993. p.49-64. LOPES, Maria de Jesus dos Mártires. Mendicidade e “maus costumes” em Macau e Goa na segunda metade do século XVIII. In: MATOS, Artur Teodoro de & THOMAZ, Luís Filipe F. Reis (ed.). As relações entre a Índia portuguesa, a Ásia do sueste e o extremo oriente; Actas do VI Seminário Internacional de História Indo Portuguesa. Macau: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1993. p.65-82. LUZ, Francisco Paulo Mendes da (ed.). Livro das cidades, e fortalezas que a coroa de Portugal tem nas partes da Índia, e das capitanias, e mais cargos, que nelas há, e da importância delles. Coimbra: Biblioteca da Universidade, 1952.

558 MATOS, Artur Teodoro de & THOMAZ, Luís Filipe F. Reis (ed.). As relações entre a Índia portuguesa, a Ásia do sueste e o extremo oriente; Actas do VI Seminário Internacional de História Indo Portuguesa. Macau: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1993. MOTA, A. Teixeira da. Cartas portuguesas antigas na colecção de Groot Schuur. Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1977. RELAÇÃO DAS PLANTAS, & DEZCRIPSÕES DE TODAS AS FORTALEZAS, CIDADES, E POVOAÇÕES QUE OS PORTUGUEZES TEM NO ESTADO DA INDIA ORIENTAL; manuscrito do século XVIII. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1936. RIBEIRO, Luciano (ed.). Uma geografia quinhentista. STVDIA. n.7, jan.1961. RIVARA, J. H. da Cunha (org.). Archivo Portuguez-Oriental. New Delhi: Asian Educacional Services, 1992. 6.v. [Edição facsimilar de RIVARA. Archivo Portuguez-Oriental. Nova Goa: Imprensa Nacional, 1877. 2.ed. acrescentada com a segunda parte]. ROTEIRO DA PRIMEIRA VIAGEM DE VASCO DA GAMA. Lisboa: Publicações Europa-América, 1897. SOUSA, Francisco de. Oriente conquistado a Jesu Christo pelos padres da Companhia de Jesus da Provincia de Goa. Lisboa: Oficina de Valentim da Costa Deslandes, 1710. 2.v. SOUSA, Manuel de Faria e. Ásia portuguesa. Porto: Livraria Civilização Editora, 1945-7. 6.v. SUBRAHMANYAM, Sanjay. Through the looking glass; some comments on asian views. In: MATOS, Artur Teodoro de & THOMAZ, Luís Filipe F. Reis (ed.). As relações entre a Índia portuguesa, a Ásia do sueste e o extremo oriente; Actas do VI Seminário Internacional de História Indo Portuguesa. Macau: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1993. p.377-403. THE SUMA ORIENTAL OF TOMÉ PIRES AND THE BOOK OF FRANCISCO RODRIGUES. London: The Hakluit Society, 1944. 2.v.

5.2 MOÇAMBIQUE E ÁFRICA ORIENTAL ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e. Diário da viagem de Moçambique para os Rios de Senna. Lisboa: Imprensa Nacional, 1889. ANDRADE, António Alberto de. Relações de Moçambique setecentista. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1955. ARAÚJO, Maria Benedita. O povoamento dos rios de Sofala. CLIO; Revista do Centro de História da Universidade de Lisboa. v.5, 1984-85. p.85-8. AXELSON, Eric. Descrição da costa de Moçambique por João de Lisboa. BOLETIM DA SOCIEDADE DE ESTUDOS DA COLÔNIA DE MOÇAMBIQUE. Abr.-Set.1948. p.1-11. BOLETIM DA SOCIEDADE DE ESTUDOS DA COLONIA DE MOÇAMBIQUE. Lourenço Marques, n.1-5. dez.1931-out.1932. BOXER, C. R. & AZEVEDO, Carlos de. A fortaleza de Jesus e os portugueses em Mombaça, 15931729. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1960. DOCUMENTOS SOBRE OS PORTUGUESES EM MOÇAMBIQUE E NA ÁFRICA CENTRAL. 1497-1840. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1962. 5.v. EÇA, Felipa Gastão de Almeida. Propaganda de Moçambique no século XVIII. 1755. Lisboa: Typ. Severo Freitas, 1950. FERRAZ, Maria de Lourdes Freitas. Documentação histórica Maçambicana. Lisboa: Junta de investigação do Ultramar, 1973. GUERREIRO, Alcântara. Inquérito em Moçambique no ano de 1573. STVDIA. n.6, p.7-18.

559 HOPPE, Fritz. A África Oriental Portuguesa no tempo do marquês de Pombal, 1750-1777. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1970. ILHA DE MOÇAMBIQUE EM PERIGO DE DESAPARECIMENTO; uma perspectiva histórica, um olhar para o futuro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987. LOBATO, Alexandre. Evolução administrativa e económica de Moçambique. 1752-1763. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1957. _____. Lourenço Marques; Xilinguíne; biografia da cidade. Lisboa: Agência-Geral do Ultramar, 1970. 2.v. _____. História do presídio de Lourenço Marques. Lisboa: s.ed., 1949-60. 2.v. _____. Quatro estudos e uma evocação.para a história de Lourenço Marques.Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, 1961. _____. A ditadura do primeiro Governador Geral em 1753. BOLETIM DA SOCIEDADE DE ESTUDOS DE MOÇAMBIQUE. Lourenço Marques, ano 29, n.125, nov.-dez.1960. MOTA, A. Teixeira da. Cartografia antiga de Sofala. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, 1973. NORONHA, Eduardo de. Baltazar Pereira do Lago; o marquês de Pombal de Moçambique. CADERNOS COLONIAIS, n.23, 1939. p.1-37. REGO, António da Silva. História das missões do Padroado Português do Oriente. Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1942. RITA-FERREIRA, A. Moçambique e os naturais da Índia Portuguesa. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA INDO-PORTUGUESA; Actas. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1985. p.615-48. SÁ, Joachim Francisco de. Nova relação da vitória, que alcançaram as bandeiras portuguesas em Moçambique. Lisboa: Officina de Domingos Rodrigues, 1754. SANTOS, João dos. Etiópia Oriental. Lisboa: Publicações Alfa, 1989. 2.v. SILVA, José Rui de Oliveira Pegado e. A primeira carta orgânica de Moçambique. 1761. Lisboa: Universidade de Lisboa, 1957. (Tese de licenciatura apresentada na Faculdade de Letras – datilografada).

5.3 ÍNDIA ALBUQUERQUE, Afonso de. Cartas para el-Rei D. Manuel I. Lisboa: Sá da Costa, 1957. ABUQUERQUE, Mathias. Comentário do Grande Afonso de Albuquerque; Capitão Geral que foi das Índias Orientais em tempo do muito poderoso Rey D. Manuel o primeiro deste nome. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1922-3. 2.v. ALBUQUERQUE, Viriato A. C. de. O senado de Goa; memória histórico-arqueológica. Nova Goa: Imprensa Nacional, 1909. AZEVEDO, Carlos (ed.). Um artista italiano em Goa; o diário de Placido Francesco Ramponi. Separata de GARCIA DE ORTA, número especial, 1956. p.292-317. BOLÉO, José de Oliveira. A incorporação das “Novas Conquistas” no Estado da Índia. STVDIA, n.8, jul.1961. p.335-56. BOXER, C. R. Fidalgos portugueses e bailadeiras indianas. séc. XVII e XVIII. Separata da REVISTA DE HISTÓRIA, São Paulo, n.45, 1953. BRITO, Raquel Soeiro de. Goa e as praças do norte. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, 1966. CORREIA, Alberto C. Germano da Silva. História da colonização portuguesa na Índia. Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1948-58. CORREIA, Gaspar. Lendas da Índia. Porto: Lello & Irmão, 1975. 4.v.

560 CORREIA-AFONSO, R. A evolução do municipalismo na Índia portuguesa. In: A ÍNDIA PORTUGUESA. Nova Goa: Imprensa Nacional, 1923. 2.v. COSTA, A. Fontou. As portas da Índia em 1484. Lisboa: Ed. Culturais da Marinha, 1990. DISNEY, Anthony. The portuguese empire in India. In:CORREIA-AFONSO, John (ed.). IndoPortuguese history; sources & problems. Bombay: Oxford University Press, 1981. p.148-62. GRACIAS, J. A. Ismael. A Índia em 1623-24; excerptos das memórias do viajante italiano Pietro Della Valle. O ORIENTE PORTUGUEZ; Revista da Commissão Archeológica da Índia Portugueza. Nova-Goa: Imprensa Nacional. v.1, 1904. A ÍNDIA PORTUGUESA. Nova Goa: Imprensa Nacional, 1923. 2.v. LAVAL, Francisco Pyrard de. Viagem. Porto: Civilização, 1944. LOBATO, Alexandre. Sobre os prazos da Índia. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1985. _____. Sobre os prazos da Índia. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA INDOPORTUGUESA; Actas. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1985. p.459-66. MATHEW, K. S & AHMAD, Afzal (ed.). Emergence of Cochin in the pre-industrial era; a study of portuguese Cochim. Pondicherry: Pondicherry University, 1990. MATOS, Artur Teodoro de. O Estado da Índia nos anos de 1581-1588, estrutura administrativa e econômica, alguns elementos para o seu estudo. Ponta Delgada: Universidade dos Açores, 1982. MARTINS, J. F. Ferreira. História da Misericórdia de Goa. Nova Goa: 1910-14. 3.v. _____.Mudança da cidade de Goa para Mormugão. O Oriente Português. v.7, 1910. p.34-42, 89-100. MENDES, A. Lopes. A Índia portuguesa. Lisboa: Fundação Oriente, 1992. [Facsímile da edição de 1886]. MENEZEZ, Ruy de. O Monte Santo, na Velha Cidade. O ORIENTE PORTUGUEZ; Revista da Commissão Archeológica da Índia Portugueza. Nova-Goa: Imprensa Nacional. v.23, 1939. p.330-5. _____. & TELLES, Ricardo Michael. Relatório da visita de inspecção à Fortaleza de Rachol em 30 de Novembro de 1938. O ORIENTE PORTUGUEZ; Revista da Commissão Archeológica da Índia Portugueza. Nova-Goa: Imprensa Nacional. v.23, 1939. p.37-48. MONIZ JÚNIOR, António Francisco. Notícias e documentos para a história de Damão; antiga província do norte. Bastorá: Typ. Rangel, 1900. _____. Resumo da história de Damão. A ÍNDIA PORTUGUESA. Nova Goa: Imprensa Nacional, 1923. v.1, p.183-209. BN HG20123V. MOURA, J. Herculano de. A Misericórdia de Diu. O ORIENTE PORTUGUÊS, Revista da Commissão Archeológica da Índia Portugueza. Nova-Goa: Imprensa Nacional. v.1, 1904. p.44-57. MUNDADAN, A. M. The town of Cochin and the portuguese. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA INDO-PORTUGUESA; Actas. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1985. p.251-63. NAZARETH, Pe. Casimiro Christovão de. Impressões de antigos viajantes e escriptores sobre a cidade de Goa. O ORIENTE PORTUGUÊS, Revista da Commissão Archeológica da Índia Portugueza. Nova-Goa: Imprensa Nacional. v.8, 1911. p.14-24, 70-88. O ORIENTE PORTUGUEZ; Revista da Commissão Archeológica da Índia Portugueza. Nova-Goa: Imprensa Nacional. v.1-28, 1904-40. PARR, Charles McKew. Jan van Linschoten, the dutch Marco Polo. New York: Thomas Y. Crowell Company, 1964. PATO, R. A. de Bulhões (ed.). Cartas de Afonso de Albuquerque; seguidas de documentos que as elucidam. Lisboa: Academia Real das Sciencias, 1884-935. 7.v.

561 PEREIRA, A. B. de Bragança. As capitais da Índia Portuguêsa. Nova Goa: Imp. Gonçalves, 1932. (separata de O ORIENTE PORTUGUÊS, Revista da Commissão Archeológica da Índia Portugueza. Nova-Goa: Imprensa Nacional.) _____. Os portugueses em Baçaim. Bastorá: Tipografia Rangel, 1935. _____. História de Damão. Bastorá: Tipografia Rangel, 1939. _____. Os portugueses em Diu. Bastorá: Tipografia Rangel, s.d. _____. Templos levantados em Goa por Afonso de Albuquerque. O ORIENTE PORTUGUEZ; Revista da Commissão Archeológica da Índia Portugueza. Nova-Goa: Imprensa Nacional. v.23, 1939. p.125-35. O REGIMENTO DE 1568 DEFINIU O SISTEMA TRIBUTÁRIO DE DIU. O ORIENTE PORTUGUEZ; Revista da Commissão Archeológica da Índia Portugueza. Nova-Goa: Imprensa Nacional. v.19-21, 1938. p.93-102. RICHARDS, J. M. Goa. London: C. Hurst & Co., 1982. RIVARA, J. H. da Cunha. Inscripções de Diu. Nova Goa: Imp. Nacional, 1865. SALDANHA, António Vasconcelos de. A Índia portuguesa e a política do oriente de setecentos. Lisboa: Publicações Alfa, 1989. SALDANHA, Mariano J. Gabriel de. História de Goa: política e arqueologia. New Delhi. Asian Educational Services, 1990. [Edição facsimilar de _____._____. Nova Goa: Livraria Coelho, 1925-26. 2.ed.]. II SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA INDO-PORTUGUESA; Actas. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1985. SOUZA, Teotónio de. Goa medieval; a cidade e o interior no século XVII. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. THOMAZ, Luís Felipe Ferreira Reis. Estrutura política e administrativa do Estado da Índia no século XVI. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA INDO-PORTUGUESA; Actas. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1985. p.513-40. VIAGEM DE FRANCISCO PYRARD DE LAVAL. Porto: Civilização, 1941. WICKI, s.j., José (ed.). Duas relações sobre a Índia Portuguesa nos anos 1568 e 1569. STVDIA, n.8. jul.1961.

5.4 MACAU E OCEANIA AHMAD, Afzal. Macau: um breve estudo de desenvolvimento económico-comercial nos séculos XVIIXVIII. In: MATOS, Artur Teodoro de & THOMAZ, Luís Filipe F. Reis (ed.). As relações entre a Índia portuguesa, a Ásia do sueste e o extremo oriente; Actas do VI Seminário Internacional de História Indo Portuguesa. Macau: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1993. p.49-64. ARQUIVOS DE MACAU. Macau: Imprensa Oficial de Macau. Primeira série. v.1-3, jul.1929 jul.1931. ARQUIVOS DE MACAU. Macau: Imprensa Oficial de Macau. Terceira série. v.1-6, fev.1964 nov.1966. BARACHO, Carlos Alberto Caçorino da Palma. Um percurso ao encontro do medievalismo em Macau; urbanismo e arquitectura, persistência e coexistência de elementos medievais portugueses e tradicionais chineses na estrutura urbana e arquitetónica de Macau nos séculos XVI e XVII. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1992. (Disssertação de mestrado). BOXER, C. R. Macau na época da Restauração. Lisboa: Fundação Oriente, 1993. facsímile da edição Macau: Imprensa Nacional, 1942.

562 _____. Fidalgos no extremo oriente. Macau: Fundação Oriente, 1990. _____. O grande navio de Amacau. 4.ed. Macau: Fundação Oriente, 1989. BRAGA, Jack M. A voz do passado; redescoberta de A colecção de varios factos acontecidos nesta mui nobre cidade de Macau. Macau: Instituto Cultural de Macau, 1987. CASTRO, Affonso de. As possessões portuguesas na oceania. Lisboa: Imprensa Nacional, 1867. FERREIRA, A. Marques. Ephemerides comemorativas da história de Macau e da relação da China com os povos Christãos. Macau: José da Silva Editor, 1868. FREITAS, Jordão de. Macau; materiais para a sua história no século XVI. Macau: Instituto Cultural de Macau, 1988. GOMES, Luis G. Bibliografia macaense. Macau: Instituto Cultural de Macau, 1973. GRAÇA, Jorge. Fortificações de Macau; concepção e história. Macau: Instituto Cultural de Macau, s.d. IRIA, Alberto. As Molucas no Arquivo Histórico Ultramarino. In: A VIAGEM DE FERNÃO DE MAGALHÃES E A QUESTÃO DAS MOLUCAS; Actas do II Colóquio Luso-Espanhol de História Ultramarina. Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1975. p.689-717. JACOBS, Hubert. s.j. The portuguese town of Ambon; 1576-1605. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA INDO-PORTUGUESA; Actas. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1985. p.601-14. JANEIRA, Armando Martins. O impacto português sobre a civilização japonesa. Lisboa: D. Quixote, 1989. LE GOFF, Jacques. O apogeu da cidade medieval. São Paulo: Martins Fontes, 1992. LIMA, Viana de. Reviver Malaca. Porto: Livraria Figueirinhas, 1988. MATOS, Artur Teodoro de. Timor português, 1515-1737; Contribuição para a sua história. Lisboa: Faculdade de Letras de Lisboa, 1974. MORAIS, A. Faria de. Sólor e Timor. Lisboa: Agência Geral das Colônias, 1944. NOONAN, Lawrence A. The portuguese in Malacca. STVDIA, n.23. PEREIRA, A. Marques. Ephemerides comemorativas da história de Macau e da relação da China com os povos christãos. Macau:José da Silva Editor, 1868. RAU, Virgínia. O "Livro de Rezão" de António Coelho Guerreiro. Lisboa: Companhia de Diamantes de Angola, 1956. TCHEONG-Ü-LÂM & IAN-KUONG-IÂM. Ou-mum Kei-leok; monografia de Macau. Macau: Quinzena de Macau, 1979. TEIXEIRA, Manuel. Macau através dos séculos. Macau: Imprensa Nacional, 1977. _____. Macau no século XVI. Macau: Direcção dos Serviços de Educação e Cultura, 1981. _____. Macau no século XVII. Macau: Direcção dos Serviços de Educação e Cultura, 1982. _____. Primórdios de Macau. Macau: Instituto Cultural de Macau, 1990.

563

6. TEORIA E HISTÓRIA DA CIDADE ALARCÃO, Jorge. A cidade romana em Portugal; a formação de “lugares centrais” em Portugal, da Idade do Ferro à romanização. In: CIDADES E HISTÓRIA; ciclo de conferências promovido pelo Serviço de Belas Artes em novembro de 1987. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992. p.36-64. ALMEIDA, Carlos Alberto Ferreira de. Muralhas românicas e cercas góticas de algumas cidades do centro e do norte de Portugal; a sua lição para a dinâmica urbana de então. In: CIDADES E HISTÓRIA; ciclo de conferências promovido pelo Serviço de Belas Artes em novembro de 1987. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992. p.137-41. AMARAL, Ilídio. Cidades coloniais portuguesas; notas preliminares para uma geografia histórica. In: POVOS & CULTURA, Lisboa, Universidade Católica, número 2, 1987. p.193-214. ANAIS DO VII SIMPÓSIO NACIONAL DOS PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS DE HISTÓRIA. v.1. A cidade e a história. São Paulo, 1974. ARANOVICH, Carmen. Notas sobre urbanización colonial en la America Portuguesa. REVISTA DE INDIAS. Madrid, ano32, n.127-30, jan.-dez.1972. p.383-98. ARAÚJO, Renata Malcher. Engenharia militar e urbanismo. In: MOREIRA, Rafael (org.). História das fortificações portuguesas no mundo. Lisboa: Publicações Alfa, 1989. p.255-72. AZEVEDO, Aroldo de. Vilas e cidades no Brasil colonial; ensaios de geografia urbana retrospectiva. BOLETIM DA FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS DA USP, (208):55- , 1956. _____. Aldeias e aldeamentos de índios. BOLETIM PAULISTA DE GEOGRAFIA. n.33, out.1959. AZEVEDO, Paulo O. de. Urbanismo de trazado regular en los primeiros siglos de la colonización brasileña. In: ESTUDIOS SOBRE URBANISMO IBEROMARICANO; siglos XVI al XVIII. Junta de Andalucia; Consejeria de Cultura: Sevilha, 1988. BARRETO, Paulo Thedim. Casas de câmara e cadeia. REVISTA DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL, Rio de Janeiro, (11):9-125, 1947. BENEVOLO, Leonardo. Historia de la arquitectura del ranacimiento. Barcelona: Gustavo Gili, 1981. 2.v. _____. Diseño de la ciudad. México: Gustavo Gili, 1979. 5.v. BOLTSHAUSER, João. Noções de evolução urbana nas Américas. Belo Horizonte: Universidade de Minas Gerais; Escola de Arquitetura, 1959-61. 3.v. BRENNA, Giovanna Rosso del. Medieval ou barroco? Proposta de leitura do espaço urbano colonial. BARROCCO. Belo Horizonte, n12. 1982-3. _____. La citta coloniale portoghese; Rio de Janeiro tra il XVI e il XVIII secolo. In: ESTUDIOS SOBRE URBANISMO IBEROMARICANO; siglos XVI al XVIII. Junta de Andalucia; Consejeria de Cultura: Sevilha, 1988. BURKE, Peter. História urbana e antropologia urbana na Europa moderna. Cap. IV. In: O MUNDO COMO TEATRO; estudos de antropologia histórica. Lisboa: Difel, 1992. CANAVARRO, Pedro. O “Peregrino instruído”; abordagem urbanística. In: SANTARÉM; a cidade e os homens. Santarém: Junta Distrital, 1977. p.135-60. CASTRO, José Liberal de. Aspectos da arquitetura no nordeste do país. In: ZANINI, Walter (org.). História geral da arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther Moreira Sales, 1983. v.1, p.299319. CHOAY, Françoise. A regra e o modelo. São Paulo: Perspectiva, 1985.

564 CHICÓ, Mário T. A ‘Cidade ideal’ do renascimento e as cidades portuguesas da Índia. Separata de GARCIA DE ORTA, número especial, 1956. p.319-27. CIDADE E HISTÓRIA; ciclo de conferências promovido pelo Serviço de Belas Artes em novembro de 1987. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992. COQUERY-VIDROVICH, Catherine. As cidade pré-coloniais; tentativa de definição e periodização. REVISTA INTERNACIONAL DE ESTUDOS AFRICANOS. Lisboa, n.4-5, jan.-dez.1986. p.265-79. COSTA, Emília Viotti da. Urbanización en el Brasil del siglo XIX. REVISTA DE INDIAS. Madrid, ano32, n.127-30, jan.-dez.1972. p.399-432. COSTA, Lúcio. Arquitetura jesuítica no Brasil. REVISTA DO SPHAN, n.5, 1941 DEFFONTAINES, Pierre. Como se contituiu no Brasil a rede de cidades. BOLETIM GEOGRÁFICO, São Paulo, (14):141-8, 1944; (15):229-308, 1944. DELSON, Roberta Marx. New towns for colonial Brazil; spacial and social planning of the eighteenth century. Ann Arbor: University Microfilms International, 1979. DUBY, Georges (org.). Históire de la France urbaine. Paris: Seuil, 1981. 4.v. FARINHA, António Dias. O Imaginário da cidade muçulmana. Lisboa: ACARTE/ Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. FERNANDES, José Manuel. O lugar da cidade portuguesa. POVOS & CULTURA, Lisboa, Universidade Católica, número 2, 1987. p.79-112. _____. O Funchal e o urbanismo de raiz portuguesa no Atlântico. In: ACTAS DO I COLÓQUIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DA MADEIRA; 1986. Funchal: Governo Regional da Madeira, 1989. v.1. p.247-69. _____. A arquitectura. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1991. FLEXOR, Maria Helena Ochi. Núcleos Urbanos planejados do século XVIII e estratégia de civilização dos índios do Brasil. In: SILVA, Maria Beatriz N. da (coord.). Cultura Portuguesa na Terra de Santa Cruz. Lisboa: Editorial Estampa, 1995. p.79-88. _____. Núcleos urbanos planejados do século XVIII. RUA. Salvador, 1(1): 89-114, 1988. _____. FLEXOR, Maria Helena Ochi. Núcleos urbanos criados por Pombal no século XVIII. IV SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO. GASPAR, Jorge. A morfologia urbana de padrão geométrico na idade média. FINISTERRA. Revista Portuguesa de Geografia. vol IV-8, Lisboa 1969. p. 199-215. (separata). _____. Estudo geográfico das aglomerações urbanas em Portugal continental. FINISTERRA. Revista Portuguesa de Geografia. vol X-19, Lisboa 1975. p. 107-52. _____ & FERRÃO, João. As cidades portuguesas e a geografia urbana na Universidade de Lisboa. In: BUSTOS, Eugenio (ed.). I Coloquio Iberico de Geografia. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1981. p.189-98. GOMES, Rita Costa. A reconquista e o imaginário da cidade peninsular. In: CENTENO, Yvette Kace & FREITAS, Lima de (Coord.). A simbólica do espaço; cidades, ilhas, jardins. Lisboa: I. P. L. L., 1991. p.45-57. O IMAGINÁRIO DA CIDADE; compilação das comunicações apresentadas no colóquio sobre O Imaginário da Cidade realizado em outubro de 1985. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. HESPANHA, António Manuel. Cities and state in Portugal. In: TILLY, Charles & BLOCKMANS, Wim P. (ed.). Cities & the rise of states in Europe; a. D. 1000 to 1800. Boulder: Westwiew, 1994. p.183-95. LAMAS, José M. Ressano Garcia. Morfologia urbana e desenho da cidade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992.

565 MACHADO, Brasil Pinheiro. Problemática da cidade colonial brasileira. HISTÓRIA: Questões & Debates, 6(10), jun. 1985, p.3-23. MARTÍN LOU, Maria A. & MÚSCAR BENASAYAG, Eduardo. Proceso de urbanización en América del Sur. Madrid: Editorial Mapfre, 1992. MARX, Murilo. Cidade brasileira. São Paulo: Melhoramentos, 1980. _____. Cidade no Brasil terra de quem? São Paulo: Nobel, 1991. _____. Nosso chão: do sagrado ao profano. São Paulo: Edusp, 1989. MATTA, Roberto da. A casa e a rua; espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985. MOREIRA, Rafael. Uma utopia urbanística pombalina; o “Tratado de ruação” de José de Figueira Seixas. In: POMBAL REVISITADO. Lisboa: Editorial Estampa, 1984. p.131-57. _____. Um tratado português de arquitetura do século XVI. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1982. (Dissertação de mestrado em história da arte) MORRIS, A. E. J. Historia de la forma urbana. Barcelona: Gustavo Gili, 1984. MORSE, Richard. A evolução das cidades latino-americanas. São Paulo, CEBRAP, 1975. MOTT, Luiz. O peregrino instruído; a propósito de um formulário etnográfico de século XVIII. In: BOLETIM CULTURAL DA JUNTA DISTRITAL DE LISBOA, n.75-8, p.81-99, 1971-2. NUNES, Pedro. Tratado da sphera. Munich: Obervetter, 1915. OLIVEIRA, Ernesto Veiga & GALHANO, Fernando. Casas esguias do Porto e sobrados do Recife. TRABALHOS DE ANTROPOLOGIA E ETNOLOGIA; da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia e do Centro de Estudos de Etnologia Peninsular. Porto, V.18(1-2), 1961. p.175-227. OMEGNA, Nelson. A cidade colonial. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1961. PEREIRA, Magnus Roberto de. Rigores e métodos da cidade brasileira entre os séculos XVI e XIX. REVISTA DE CIÊNCIAS HUMANAS. Curitiba, n.2, p.191-218, 1993. _____. A gosto e capricho dos primeiros proprietários: a trajetória de uma cidade brasileira nos séculos XVIII e XIX. Jarbuch für geschichte von staat, wirtschaft und gesellschaft lateinamerikas. Köln, v.32, 1995. p.333-71. RAMA, Angel. A cidade das letras. São Paulo: Brasiliense, 1985. RAMINELLI, Ronald. Simbolismos do espaço urbano colonial. In: VAINFAS, R. (org.). América em tempo de conquista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. REIS FILHO, Nestor Goulart. Catálogo da iconografia das vilas e cidades do Brasil Colonial. São Paulo: Museu da Faculdade de Arquitetura da USP, 1964. _____. Quadro da arquitetura no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1970. _____. Contribuição ao estudo da evolução urbana do Brasil. 1500-1720. São Paulo: Pioneira; Editora da USP, 1968. _____. Notas sobre o urbanismo barroco no Brasil. CADERNOS DE PESQUISA DO LAP. n.3, nov.dez.1994. RIBEIRO, Orlando. Las ciudades ibericas tradicionales y sy expansión por el mundo. In: BUSTOS, Eugenio (ed.). I Coloquio Iberico de Geografia. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1981. p.214-7. _____. verbete “Cidade”. DICIONÁRIO DE HISTÓRIA DE PORTUGAL. Lisboa, 1963. v.1, p.57480. _____. Proémio metodológico ao estudo das pequenas cidades portuguesas. FINISTERRA. v.4, n.7, 1969. p.64-74.

566 RODRIGUES, José Damião. Frontière et villes frontière dans l’Atlantique portugais, XV-XVIII siècles. In: MENJOT, Denis (dir.). Les villes frontière; moyen âge - époque moderne. Paris: L’Harmattan, s.d. p.41-62. ROUANET, Sergio Paulo. A cidadede iluminista. REVISTA DA USP, São Paulo, n.26, jun.-ago1995, p.154-63. SANTOS, Paulo F. Formação de cidades no Brasil colonial. Coimbra: Universidade de Coimbra; V Congresso de Estudos Luso Brasileiros, 1968. _____. O barroco jesuítico na arquitetura do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Kosmos, 1951. RYBCZYNSKI, Witold. Vida nas cidades; expectativas urbanas no Novo Mundo. Rio de Janeiro: Record, 1996. SALGUEIRO, Teresa Barata. A cidade em Portugal. Porto: Afrontamento, 1992. SEGAWA, Hugo M. Os jardins públicos no período colonial e o Passeio Público do Rio de Janeiro. BARROCCO, Ouro Preto, n.12, p.147-59, 1982-3. SEGAWA, Hugo. Ao amor do público; Jardins do Brasil. 1779-1911. São Paulo: USP, 1994. (Tese apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo). SETA, Cesare de. L’illuminismo critico di Giovanni Carafa duca di Noja e l’utopia urbana de Vicenzo Ruffo. In: POMBAL REVISITADO. Lisboa: Editorial Estampa, 1984. v.2. pp.145-57. SILVEIRA, Luis. Ensaio de iconografia das cidades portuguesas do ultramar. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar, s.d. 4.v. _____. La toponymie des territoires portugais d´Outre-mer; essai de classification des noms des aglomératios urbaines. Lisboa: Agencia Geral do Ultramar, 1958. (Separata de STVDIA, n.1, jan.1958). SMITH, Robert C. Urbanismo colonial no Brasil. Arquitetura, 1967. _____. Colonial towns of spanish and portuguese America. Journal of the society of architectural historians, Philadelphia, 14(4):3-12, dez.1955. _____. Urbanismo colonial no Brasil. REVISTA BEM ESTAR, n.1, fev.-mar.1958. _____. Arquitetura civil no Brasil colonial. In: ARQUITETURA CIVIL. São Paulo: FAU-USP; MECIPHAN, 1975. TILLY, Charles & BLOCKMANS, Wim P. (ed.). Cities & the rise of states in Europe; a. D. 1000 to 1800. Boulder: Westwiew, 1994. TOLEDO, Benedito Lima de. Do século XVI ao início do XIX; maneirismo, barroco e rococó. In: ZANINI, Walter (org.). História geral da arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther Moreira Sales, 1983. v.1, p.89-296. VITERBO, Souza. Dicionário histórico e documental dos arquitectos, engenheiros e construtores portugueses. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1988. 3.v. [Edição facsimilar]. WALLIS, Helen. Cartografia Urbana do Renascimento. LER HISTÓRIA. n.10, 1987. p.127-38. ZANCHETI, Sílvio M. A cidade e o estado no Brasil colonial. ESPAÇO & DEBATES, 7(19), v.3, 1986, p.5-29. ZANINI, Walter (org.). História geral da arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walther Moreira Sales, 1983. 2.v.

567

7 HISTÓRIA ADMINISTRATIVA ALMEIDA, Fortunato. Organização político-administrativa portuguesa dos séculos XVII e XVIII. In: HESPANHA, António Manuel. Poder e instituições na Europa do antigo regime. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. p.321-94. ALVES, Odair Rodrigues. O município; dos romanos à Nova República. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1986. ARQUEOLOGIA DO ESTADO; Jornadas sobre formas de organização e exercício dos poderes na Europa do sul nos séculos XIII-XVIII. Lisboa: História & Crítica, 1988. 2.v. AVELLAR, Hélio de A. História administrativa e econômica do Brasil. Rio de Janeiro: MEC, 1970. _____. História administrativa do Brasil. 5. Administração Pombalina. Brasília: UNB;FUNCEP, 1983. BOSCHI, Caio C. Colonialismo, poder e urbanização no Brasil setecentista. In: ANAIS DO PRIMEIRO COLÓQUIO DE ESTUDOS HISTÓRICOS BRASIL PORTUGAL. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 1994. p.101-6. BOXER, C. R. Portoguese society in the tropics; the municipal councils of Goa, Macao, Bahia and Luanda, 1500-1800. Madison and Milwaukee: The University of Wisconsin Press, 1965. CAETANO, Marcelo. Estudos de história da administração pública portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 1994. _____. O Concelho Ultramarino; esboço da sua história. Rio de Janeiro: Sá Cavalcante Editôres, 1969. CASTRO, Armando de. A política económica do marquês de Pombal e a sociedade portuguesa de século XVIII. REVISTA DE HISTÓRIA DAS IDÉIAS. v.4, 1982-3. p.41-9. CHAVES, Luís. Os pelourinhos portugueses. Gaia: Edições Apolino, 1930. _____. Os Pelourinhos; elementos para o seu catálogo geral. Lisboa: Edições José Fernands Júnior, 1938. _____. Pelourinhos do ultramar português. Lisboa: Agênci Geral das Colônias, 1948. COELHO, António Borges. Comunas ou concelhos. 2.ed. Lisboa: Caminho, 1986. COELHO, Maria Helena da Cruz. Homens, espaços e poderes; séculos XI-XVI. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. 2.v. _____. Relações de domínio no Portugal concelhio de meados de quatrocentos .REVISTA PORTUGUESA DE HISTÓRIA. Coimbra, t.25, 1990. p.235-289. _____ & MAGALHÃES, Joaquim Romero. O poder concelhio; das origens às cortes constituintes. Notas de história social. Coimbra: Centro de Estudos e Formação Autárquica, 1986. _____. A dinâmica concelhia portuguesa nos séculos XIV e XVI. In: ANAIS DO PRIMEIRO COLÓQUIO DE ESTUDOS HISTÓRICOS BRASIL PORTUGAL. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 1994. p.23-35. COSTA PORTO. O sistema de sesmarias no Brasil. Brasília: Editora da UNB, s.d. DIAS, Manuel Nunes. Natureza e estatuto da capitania no Brasil. Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1979. FALCON, Francisco José Calazans. A cidade colonial; algumas questões a propósito de sua importância político-administrativa. sec. XVI-XVII. In: ANAIS DO PRIMEIRO COLÓQUIO DE ESTUDOS HISTÓRICOS BRASIL PORTUGAL. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 1994. p.89-100. FLEUISS, Max. História administrativa do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1923. GAMA BARROS, Henrique da. História da administração pública em Portugal nos séculos XII a XV. 2.ed. Lisboa: Sá da Costa, 1945-6. 3.v.

568 _____. Judeus e mouros em Portugal em tempos passados; apontamentos histórico-etnográficos. REVISTA LUSITANA. Lisboa, v.34, n.1-4, 1936. p.165-265; v.35, n.1-4, 1937. p.161-238. GARCIA, Rodolfo. Ensaio sobre a história política e administrativa do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. GONÇALVES, Luiz da Cunha. Breves considerações sobre uma nova teoria espanhola de origem dos concelhos medievais. Separata das MEMÓRIAS DA ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA. Classe Letras, tomo 5, 1948. HERCULANO, Alexandre. História de Portugal, desde o começo da monarquia até o fim do reinado de Afonso III. 8.ed. Lisboa: Bertrand, s.d. 8.v. _____. Opúsculos. Lisboa: José Bastos, s.d. HESPANHA, António M. História das instituições; épocas medieval e moderna. Coimbra: Livraria Almedina, 1982. _____ (org.). Poder e instituições na Europa do antigo regime. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. _____. Para uma teoria da história institucional do Antigo Regime. In: Poder e instituições na Europa do antigo regime. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. _____. As vésperas do Leviathan; instituições e poder político; Portugal século XVIII. Lisboa: Edição do Autor, 1986. 2.v. _____. O governo dos Áustrias e a modernização da constituição política portuguesa. PENÉLOPE, (2), fev. 1989. p.49-72. HOMEM, Armando Luís de Carvalho. Portugal nos finais da Idade Média: Estado, instituições, sociedade política. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. _____. _____; Gama Barros; historiador das instituições administrativas. Lisboa: Livros Horizonte, 1990. p.35-47. LANGHANS, Franz-Paul. As posturas. Lisboa: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1937. MAGALHÃES, Joaquim Romero. Reflexões sobre a estrutura municipal portuguesa e a sociedade colonial brasileira. . REVISTA DE HISTÓRIA ECONÓMICA E SOCIAL. Lisboa, n.16, jul.dez.1985. p.17-30. _____. Algumas notas sobre o poder municipal no império português durante o século XVI. REVISTA CRÍTICA DE CIÊNCIAS SOCIAIS. n.25-6, dez.1988. p.21-30. MARQUES, José. Os municípios portugueses: dos promórdios da nacionalidade ao fim do reinado de D. Dinis; alguns aspectos. In: ANAIS DO PRIMEIRO COLÓQUIO DE ESTUDOS HISTÓRICOS BRASIL PORTUGAL. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 1994. p.7-21. MATTOSO, José. Feudalismo e concelhos; a propósito de uma nova interpretação. ESTUDOS MEDIEVAIS. Porto, n.7, 1986. p.199-209. MEIRELLES, Hely L. Direito municipal brasileiro. São Paulo: REVISTA DOS TRIBUNAIS, 1977. MONTEIRO, Nuno Gonçlo. Revolução liberal e regime senhorial: “a questão dos forais” na conjuntura vintista. .REVISTA PORTUGUESA DE HISTÓRIA. Coimbra, t.23, 1987. p.235-289. MORENO, Humberto Baquero. Os municípios portugueses nos séculos XIII a XVI. Lisboa: Editorial Presença, 1986. OLIVEIRA, António Resende de. Poder e sociedade; a legislação pombalina e a antiga sociedade portuguesa. REVISTA DE HISTÓRIA DAS IDÉIAS. v.4, 1982-3. p.51-90. OLIVEIRA, Joaquim Pedro Gomes de. Extracto das Posturas da Villa de Azeitão. MEMORIAS ECONOMICAS DA ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS DE LISBOA. Lisboa, t.3. 1791. p.306-21. PRADO JR., Caio. Evolução política do Brasil e outros estudos. São Paulo: Brasiliense, 1953.

569 RODRIGUES, José Damião. O poder municipal do Antigo Regime ao Liberalismo; da autonomia jurisdicional às Juntas Gerais. In: ACTAS DO CONGRESSO DO I CENTENÁRIO DA AUTONOMIA DOS AÇORES. Ponta Delgada: Universidade dos Açores, s.d. p.103-26. SALDANHA, António Vasconcelos de. As capitanias; o regime senhorial na expansão ultramarina portuguesa. Funchal: Secretaria Regional do Turismo, Cultura e Emigração; Centro de Estudos de História do Atlântico, 1992. SAMPAIO, Francisco Coelho de Souza e. Preleção do direito pátrio, público e particular. [1794]. In: HESPANHA, António Manuel. Poder e instituições na Europa do antigo regime. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. SCHEIRA, Pierangelo. Sociedade “de estados”, “de ordens”, ou “corporativa”. Poder e instituições na Europa do antigo regime. In: HESPANHA, António Manuel. Poder e instituições na Europa do antigo regime. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. p.143-53. SCHWARTZ, Stuart. B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. São Paulo: Perpectiva, 1979. SERRÃO, Joaquim V. A concessão do foro de cidade em Portugal dos séculos XII a XIX. PORTUGALEAE HISTÓRICA, Lisboa, v.1, 1973. SILVA, Francisco Ribeiro da. As cortes seiscentistas e o seu significado nas relações entre os concelhos e o poder central. In: ANAIS DO PRIMEIRO COLÓQUIO DE ESTUDOS HISTÓRICOS BRASIL PORTUGAL. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 1994. p.47-62. SOARES, Torquato Brochado de Souza. Apontamentos para o estudo das origens das instituições municipais portuguesas. Lisboa: s.ed., 1931. TAPAJÓS, Vicente. História administrativa do Brasil. Rio de Janeiro: DASP, 1956. TRINDADE, Maria José Lagos. Questões da administração local nas inquirições gerais de Afonso II. CLIO; Revista do Centro de História da Universidade de Lisboa, v.1, 1979. p.69-80. VALE, Alexandre de Lucena e. História e Municipalidade; novos conspectos. ANAIS DA ACADEMIA PORTUGUESA DE HISTÓRIA. v.16, 1966. _____. Génese e evolução do município portugues. REVISTA MUNICIPAL. Câmara Municipal de Lisboa, n.136-7, 1963. WEHLING, Arno. Atividades judiciárias das câmaras municipais na colônia; nota prévia. In: ANAIS DO PRIMEIRO COLÓQUIO DE ESTUDOS HISTÓRICOS BRASIL PORTUGAL. Belo Horizonte: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, 1994. p.161-74. WOOD, A. J. R. Russel. O governo local na América Portuguesa: um estudo de divergência cultural. REVISTA DE HISTÓRIA, São Paulo, USP, n.109, jan.mar-1977. p.25-79. ZENHA, Edmundo. O município no Brasil; 1532-1700. São Paulo: Ipê, 1948.

8 LEGISLAÇÃO LEI DE ALMOTAÇARIA; 26 de dezembro de 1253. 2.ed.Lisboa: Banco Pinto & Sotto Mayor, 1984. LIÃO, Duarte Nunes do. Leis extravagantes e repertório das ordenações. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987. (Reprodução facsimilar da edição princeps de 1569). LIVRO DAS LEIS E POSTURAS. Lisboa: Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1971. ORDENAÇÕES AFONSINAS. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1984. (Ed. facsimilar). ORDENAÇÕES MANUELINAS. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985. (Ed. facsimilar)

570 ORDENAÇÕES FILIPINAS. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985. (Facsimile da edição comentada de MENDES, Cândido. Código Philipino. Rio de Janeiro: Typographia do Instituto Philomático, 1870). PORTUGAL. Collecção de Leis, Decretos e Alvarás, que comprehende o feliz reinado del Rei Fidelissimo D. José o I. Lisboa: Officina de Antonio Rodrigues Galhardo, 1797. Tomo 1 - 175060. Tomo 2 - 1761-70. Tomo 1 - 1771-74. Tomo 1 - 1775-87. REGIMENTO DOS OFICIAIS DAS CIDADES, VILAS E LUGARES DESTES REINOS. Lisboa: Fundação Casa de Bragança, 1955. (Ed. facsimilar). SILVA, António Delgado da. Collecção da legislação portuguesa. Lisboa, 1830. SILVA, José Justino de Andrade e. Collecção chronologica da legislação portugueza. Lisboa: Imprensa de J. J. A, Silva, 1854-. Volume 1 - 1603-12. Volume 2 - 1613-19.

9 CIDADES HISPANOAMERICANAS E ESPANHOLAS ASENJO GONZALES, María. Oligarquias urbanas en Castilla en la segunda mitad del siglo XV. In: ACTAS DO CONGRESSO INTERNACIONAL BARTOLOMEU DIAS E A SUA ÉPOCA. Porto: Universidade do Porto/Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1989. v.4. p.414-36. BENEVOLO, Leonardo. Las nuevas ciudades fundadas en el siglo XVI en America Latina; una experiencia decisiva de la cultura arquitetonica del ‘cinquecento’. CARACAS, Boletin del Centro de Investigaciones Historicas e Estéticas, n.9, 1969. BONET CORREA, Antonio. Concepto de Plaza Mayor en España desde el siglo XVI hasta nuestros dias. In: _____. Morfologia y ciudad. Barcelona: Gustavo Gili, 1978. CHUECA GOITIA, Fernando. Breve história do urbanismo. Lisboa: Editorial Presença, 1982. DOMINGUEZ COMPAÑY, Francisco. La vida em las pequeñas ciudades hispanoamericanas de la conquista. Madrid: Ediciones Cultura Hispanica, 1978. GUTIERREZ, Ramón. Arquitectura y urbanismo em Iberoamerica. 2.ed. Madrid: Ediciones Cátedra, 1992. _____. As missões jesuíticas dos guaranis. Rio de Janeiro: UNESCO; SPHAN, s.d. MARKMAN, Sydney D. El paisaje urbano dominicano de los pueblos de indios en el Chiapas colonial. In: HARDOY, Jorge E. & SCHAEDEL, Richard P. (org.). Las ciudades de América Latina y sus áreas de influencia a través de la historia. Buenos Aires: Ediciones SIAP, 1975. p.165-99. HINOJOSA, Eduardo. Origen del regimen municipal em Leon e Castilla. Estudios sobre la historia del derecho español. Madrid: 1903. MARROQUI, José Maria. La ciudad de México. México: Typ. y Lit. La Europea de J. Aguilar Vera, 1900. 3.v. OTS CAPDEQUI, José Maria. Apuntes para la história del município hispanoamericano del periodo colonial. ANUÁRIO DE HISTÓRIA DEL DERECHO ESPAÑHOL. Madrid, t.1, 1924. p.93157. PAVÓN, Basilio. Ciudades hispanomusulmanas. Madrid: Editorialo Mapfre, 1992. REVISTA DE LA UNIVERSIDADE COMPLUTENSE. t.28, n.115, 1979. (Número temático “Urbanismo e historia urbana en Espanã”). RUIZ ALVARES, Antonio. La descripción de las Islas Canarias em 1656 por el geografo real Sanson d`Abbeville. HOMENAGE A ELIAS SERRA RAFOLS, v.3, p.245-57.

571 ROMERO, José Luis. Latinoamérica, las cidades y las ideias. México: Siglo Veintiuno, 1976. SÁINZ GUERRA, José Luis. La génesis de la plaza em Castilla durante la edad media. Valladolid: Colégio Oficial de Arquitectos, 1990. SEVILLANO COLOM, Francisco. De la institucion del mustaçaf de Barcelona, de Majjorca y de Valencia. ANUÁRIO DE HISTÓRIA DEL DERECHO ESPAÑHOL. Madrid, t.23, 1953. p.525-38. SOLANO, Francisco de. El proceso urbano en Iberoamerica desde sus orígenes hasta los princípios del siglo XIX; estudio bibliográfico. REVISTA DE INDIAS. Madrid, ano33-4, n.131-8, jan.dez.1974. p.727-866 STANISLAWSKI, Dan. Early spanish town planning in the New World. GEOGRAPHICAL REVIEW, 1947. p.94-105. TORRES BALBÁS, Leopoldo. Ciudades hispanomusulmanas. S.l: s. d. s.d. _____. Resumem histórico del urbanismo em España. Madrid: s.ed., 1968.

10 HISTÓRIA, HISTORIOGRAFIA E TEORIA DA HISTÓRIA ANDRADE, A. A. Banha de. Exemplo da influência de Herculano na historiografia regionalista. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1970. BITTERLY, Urs. Los “selvages” y los “civilizados”; el encuentro de Europa y Ultramar. Mexico: Fondo de Cultura Economica, 1976. BOTERO, Giovanni. Delle cause della grandezza della citá. Roma : Giovanni Martinelli, 1588. BOTTMANN, Denise Guimarães. Padrões explicativos da historiografia brasileira. Campinas: UNICAMP, 1985. (Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas). BOXER, C. R. Some second thoughts on indo-portuguese historiography. In: CORREIA-AFONSO, John (ed.). Indo-Portuguese history; sources & problems. Bombay: Oxford University Press, 1981. p.132-47. BRANDÃO, M. F. & FEIJÓ, Rui G. Entre textos e contextos: os estudos de comunidade e suas fontes históricas. ANÁLISE SOCIAL. Lisboa, v.20(83), 1984. p.489-503. BRAUDEL, Fernand. Civilização material e capitalismo. Lisboa: Cosmos, 1970. BRAUN, Georg. (1541-1622) The city maps of Europe - Braun & Hogenberg´s; a selection of 16th century town plans & viws. London: Studio Editions, 1991. BRITO, Joaquim P. As monografias locais na perspectiva da antropologia (resumo). TRABALHOS DE ANTROPOLOGIA E ETNOLOGIA. Porto, v.29, fas.1-4, 1989. p.181-7. BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. _____. Veneza e Amsterdã; um estudo das elites do século XVIII. São Paulo: Brasiliense, 1991. CORBIN, Alain. Saberes e odores; o olfato e o imaginário social nos séculos dezoito e dezenove. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. _____. O território do vazio. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. CORREIA-AFONSO, John (ed.). Indo-Portuguese history; sources & problems. Bombay: Oxford University Press, 1981. DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente. 1300-1800. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.

572 DUBOIS, Claude-Gilbert. O imagináro da Renascença. Brasília: Editora UNB, 1995. ELIAS, Norberto. O processo civilizador: Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990-1993. 2.v. FARGE, Arlette. Vivre dans la rue à Paris au XVIIIe siécle. Paris: Gallimard/Julliard, 1979. FEIJÓ, Rui Graça. Os estudos de história local. ESTUDOS CONTEMPORÂNEOS, Porto, n.3, 1985. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1980. 4.ed. _____. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978. GENOVESE, Eugene. Roll, Jordan, Roll. New York: Pantheon, 1974. GEREMEK, Bronislaw. A piedade e a forca; história da miséria e da caridade na Europa. Lisboa: Terramar, s.d. GERIN, Eugenio. A la scoperta del diverso; i selvaggi americani e i saggi chinesi, in Rinascite e rivoluzioni. Bari: 1975. GIMPEL, Jean. A revolução industrial na Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. GINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem. São Paulo: Cia. das Letras, 198?. _____. Mitos, emblemas, sinais; morfologia e história. São Paulo: Cia. das Letras, 1990. GODINHO, Vitorino Magalhães. Entre o mito e a utopia; os descobrimentos, construção do espaço e invenção da humanidade nos séculos XV e XVI. REVISTA DE HISTÓRIA ECONÓMICA E SOCIAL, nº 12, 1983, p 1-44. GOMBRICH, E. H. Arte e ilusão; um estudo da psicologia da representação pictórica. São Paulo: Martins Fontes, 1986. GUENÉE, Bernard. O ocidente nos séculos XIV e XV; os estados. São Paulo: Pioneira, 1981. GUNE, V. T. Source material from the Goa archieves. In: CORREIA-AFONSO, John (ed.). IndoPortuguese history; sources & problems. Bombay: Oxford University Press, 1981. p.19-33. GUREVICH, Aron. As categorias da cultura medieval. Lisboa: Editorial Caminho, 1991. HAMMING, T. D. et alii (edit.). The secular city; studies in de enligthment. University of Exeter Press, 1994. HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Mestre Jou, 1972. 2.v. HEERS, Jacques. O ocidente nos séculos XIV e XV; aspectos econômicos e sociais. São Paulo: Pioneira, 1981. HOCKE, Gustav. R. Maneirismo: o mundo como labirinto. São Paulo: Perspectiva, 1974 LE CLÈRE, Marcel. História breve da polícia. Lisboa: Editorial Verbo, 1965. LENOBLE, Robert. História da idéia de natureza. Lisboa: Edições 70, s.d. MACEDO, Ana Maria da C. Família e sociedade; um estudo de élites em meados do século XVIII na freguesia da Cividade - Braga. In: III CONGRESSO DE LA ASOCIACIÓN DE DEMOGRAFIA HISTÓRICA. Braga: 1993. MARTINS, J. V. de Pina. A utopia de Thomas More como texto de humanismo. Lisboa, 1980. MATOSO, José. História regional e local. In: _____. A escrita da história; teoria e métodos. Lisboa: Editorial Estampa, 1988. p.169-80. MAYER, Arno J. A força da tradição; a persistência do Antigo Regime. São Paulo: Cia. das Letras, 1987. MORAES, George M. Contribution of Cunha Rivara to indian historiography. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA INDO-PORTUGUESA; Actas. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1985. p. 649-82. OLIVEIRA, António de. Prolemática da história local. Coimbra: s.ed., 1993. (policopiado).

573 PANOFSKY, Erwin. La perspectiva como forma simbolica. 3.ed. Barcelona: Tusquets Ediciones, 1980. PIRRENE, Henri. História econômica e social da Idade Média. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1963. POLANYI, Karl. A grande transformação; as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1980. RODRIGUES, José Honório. Teoria da história do Brasil; introdução metodológica. 3.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969. _____. A pesquisa histórica no Brasil. 2.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969 SAHLINS, Marshall. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. SENNET, Richard. O declínio do homem público; as tiranias da intimidade, São Paulo: Cia. das Letras, 1988. _____. Carne e pedra; o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record, 1997. SERRÃO, Joaquim V. A historiografia portuguesa. Lisboa: Editorial Verbo, 1974. 3.v. SILVA, Armando B. Malheiro da. O minho nas monografias (sécs. XIX-XX); Notas para uma revisão sistemática dos estudos locais. BRACARA AUGUSTA. Braga, v.43, n.94-5(107-8), 1991-2. p.27-97. SILVA, Victor Deodato da. A legislação econômica e social consecutiva à peste negra de 1348 e sua significação no contexto da depressão do fim da Idade Média. REVISTA DE HISTÓRIA, São Paulo, 1976. SOUZA, Teotónio de. The voiceless in goan historiography. In: CORREIA-AFONSO, John (ed.). Indo-Portuguese history; sources & problems. Bombay: Oxford University Press, 1981. p.114131. SYPHER, Wylie. Do rococó ao cubismo. São Paulo: Perspectiva, 1980. THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. THOMPSON E. P. Tradición, revuelta y consciencia de clase; estudios sobre la crisis de la sociedad preindustrial. Barcelona: Editorial Crítica, 1979. _____. Senhores e caçadores. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. TODOROV, Tzvetan. As morais da história. Lisboa: Publicações Europa-América, s.d. TORGAL, Luís Reis. História.. Que história?; algumas reflexões introdutórias à temática da história local e regional. REVISTA DE HISTÓRIA E TEORIA DAS IDÉIAS. Coimbra, v.9, 1987. p.843-867.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.