A forma e o sentido da expressão \"isso é arte\"

June 7, 2017 | Autor: Celso Braida | Categoria: Aesthetics, Philosophy of Art
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2. A forma e o sentido da frase “Isso é arte” Celso R. Braida

Die Form ist flüssig, der “Sinn” ist es aber noch mehr. (Nietzsche, Zur Genealogie der Moral, II, § 12)

A questão a ser discutida aqui é sobre o sentido da palavra “arte” quando usada para indicar aquilo que é realizado e apresentado pelos artistas contemporâneos. Embora o senso comum fique alarmado com certas proposições, e em dúvida exclame “Isso é arte!”, a partir da perspectiva das histórias da arte ocidental, tanto a tese da continuidade quanto a da descontinuidade podem ser legitimadas a partir dos dados contemporâneos de arte. Em filosofia, podemos sempre, diante da estranheza, dizer que a arte se diz de múltiplos modos e, por isso, o que hoje se apresenta pode ser dito “arte” também. Alguns preferem a via negativa e implicam a indefinibilidade da expressão “arte”, embora queiram dizer que a arte é indefinível. Eu prefiro pensar a partir da suposição de que isso que é posto como “arte” não pertence em todos os casos a uma mesma categoria ontológica, pois a pressuposição ontológica da homogeneidade do artístico, pela qual todas as obras de arte pertenceriam a uma mesma categoria ontológica, tratando as obras de arte como unidades de uma única substância, que apenas “se diz” de múltiplos modos, talvez seja o que tenha de ser recusado para desassombrar o senso

comum, mas também para liberar a arte em relação às filosofias da arte. O meu objetivo principal é sugerir um deslocamento do centro da esfera semântica da palavra “arte”, aproximando-o do conceito primário de ato (ação) e afastando-o em relação ao sentir (estética) e ao dizer (significação). Com esse modo de significar, as palavras “arte” e “artístico” indicariam primariamente formas de ação e interação, tanto do ponto de vista da autoria quanto da recepção. O meu objetivo secundário é sugerir a proposição de que arte é ficção do humano, no sentido de que na arte se realizam atos que reiteram a forma das ações pelas quais o humano se reitera e se autoinstaura a partir da natureza.

2.1 Os dados do artístico Com a palavra “artístico” nós enunciamos um predicado que se aplica a uma variável variedade de gestos, eventos, objetos, formas, conteúdos, sentidos, significados. O que é denominado “arte”, porém, nem sempre é arte, e a predicação do artístico, como não poderia deixar de ser, as mais das vezes falha e erra. Isso, que é arte, apresenta-se como um efêmero semovente e descontínuo. Por definição, ou quase, ao dizermos “Arte é isso e aquilo”, já estamos sempre indicando os dados do que foi tido como “arte”, algo ultrapassado pelo fazer artístico atual, pois o artístico mostra-se sob a rubrica da novidade, da criação e da invenção. A repetição é a ausência de arte, embora o artístico tenha como característica principal a reiterabilidade. Uma obra de arte seria sempre reiterável, um dispositivo de reiteração, não de repetição. Se alguém faz uma obra idêntica a outra obra de arte, ou não se trata de arte, ou se trata de uma obra diferente. Todavia, todos os dias dizemos, com naturalidade e sem pensar: “Isso é arte, aquilo não é arte”. E, também, sem medir as consequências, afirmamos: “Arte é assim, arte não é assim”. Falamos, julgamos e afirmamos as mais diferentes predicações sobre a arte, sobre o que é e o que não é arte. Na filosofia recente isso não é feito de outro

modo. Segundo as vozes filosóficas que ainda são audíveis na praça do mercado, dizer “Isso é arte” implica dizer, por exemplo, isso “é um bloco de sensações” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 213), ou “é uma configuração de sentido” (GADAMER, 2003, p. 219, 231), ou então isso “é uma configuração de emoções” (CROCE, 2008, p. 36), ou ainda “é um bloco de signos/linguagem” (GOODMAN, 1968, p. 40, 262), ou “isso é uma sombra/imagem” (LEVINAS, 2000, p. 119, 122). Através desses filosofemas, pensou-se poder ao mesmo tempo apreender a arte e se livrar da incômoda autonomia da arte. Neles ressoa a apreensão clássica: a arte é sensibilidade ou linguagem sensível. A arte contemporânea, porém, talvez mais apropriadamente, como disseram os artistas contemporâneos, implique antes um “isso é uma proposta de ação” (CLARK, 1997; OITICICA, 1986). De fato, a arte e as obras de arte estão dadas para o filósofo, pois a arte é uma dimensão que não é posta pelo pensamento do filósofo. O âmbito e o vigorar do artístico são dados inquestionáveis e prévios para o pensar filosofante. A apreensão desse dado num conceito denomina-se filosofia da arte. Desde Platão, porém, essa apreensão tem sido realizada de modo negativo e redutivo, portanto com apreensão. Nas palavras de Arthur Danto (1986), a filosofia sempre retoma o processo de desemancipação da arte. Convém mudar esse modo de pensar. Urge um filosofar contemporâneo da arte contemporânea. Um filosofar que aceite a autonomia da arte e do artístico, e que aceite pensar com a arte, e não sobre a arte. Para isso, contudo, o filósofo tem de abandonar as duas posições soberanas autoatribuídas por Platão e por Kant: a posição do rei soberano e a posição do juiz soberano. Aceitar o estar dado e o estar sendo autônomo da arte implica, e aí está a dificuldade, abdicar da posição soberana que põe e dispõe o que é e o que deve ser e valer. Se a arte contemporânea parece exceder o limite das “belas-artes” definido pelos filósofos, essa aparência apenas indica o quão

desfocado está o espelho utilizado.

2.2 O consenso relativístico O consenso relativístico contemporâneo, segundo o qual o que é uma coisa apenas pode ser dito em relação a um sistema de referência, potencializado pelo pragmatismo convencionalista que, por sua vez, afirma que o ser de uma coisa é o resultado de seu agenciamento por um sistema de interesses, ações e dominâncias, implica que a entidade de um objeto perfaz-se nas performances na qual ele é agenciado como isto ou aquilo. A resposta à pergunta “O que é isso?”, nessa perspectiva, apenas pode ser dada por meio da conjunção de dois procedimentos: uma história do modo como isso que aí está veio a ser assim, e uma análise do seu uso ou aplicação. No nosso caso, isso significa dizer que algo pode ser e pode não ser uma obra de arte, algo pode ser arte e ser indistinguível do que não é arte (DANTO, 1986, p. IX). Essa é a forma de evitar conceder a autonomia à arte, dispondo-a no plano da relatividade ontológica e epistêmica generalizada. A consequência é clara: se alguém diz sobre algo “Arte é isso”, ou de algo “Isso é arte”, essa asserção perfaz o ser-arte desse algo. Não há outro critério. Ao dizer “Isso é arte”, isso de que se fala torna-se e passa a ser imediatamente “arte”, na medida em que esse ato performativo seja bem-sucedido. E aquela ou aquele que é bem-sucedido em executar esse ato, autodenomina-se “artista” (crítico, mercador, ou filósofo da arte) e assim é aceito no mundo da cultura. Desse modo, ficamos a depender dos “experts” e dos “artistas da hora”, que são aqueles capazes de “dar nomes às coisas”, de dar o nome “arte” a algo, como o fez Duchamp, e como fazem aquelas pessoas autorizadas pela prefeitura. Por detrás desse ato performativo que faz de algo arte ao nomeá-lo “arte” está toda uma história que

constitui esse ato como um ato autorizado. A matriz dessa situação é a definição da arte como aquilo que não tem conceito e do artístico como uma condição inexaurível pelo pensamento. Daí a conclusão de que a forma e o sentido da arte, e a objetividade e a validade da afirmação “Isso é arte” sejam dispostas como produtos de atos performativos de pessoas autorizadas para instaurar como “arte” o que quer que seja em determinado contexto. Por outra via, após a derrocada das estéticas filosóficas e a instauração do voluntarismo artístico, com as vanguardas e movimentos de ruptura, praticamente abandonou-se a ideia de abordar a obra de arte a partir das noções de ser e de verdade. A ideia de Goodman, seguindo Wittgenstein e refletindo o gesto de Duchamp, de que não se trata mais de perguntar o que é arte, mas sim de quando é arte, fixou o marco pragmatista no domínio da filosofia da arte e da estética. A partir desse ponto, torna-se visível já a tese de Ad Reinhardt (2006, p.72): “Arte-como-arte nada é além de arte. A arte não é o que não é arte”. Nessa afirmação expressa-se a autorreferência e a autodoação de sentido da arte e das obras de arte, num viés muito estreito e determinado: dizer que algo é arte, ou é uma tautologia ou uma contradição. Como tentativa de liberar a arte em relação aos conceitos clássicos (regras do gosto), essa expressão afirma a autonomia da arte. No entanto, Reinhardt mesmo não foi capaz de escrever mais do que quatro páginas sem tornar equívoca a sua palavra, pois no final de seu texto conclui, sem dar-se conta do que estava dizendo, ou esquecendo o que havia dito no começo: “O único padrão na arte é unidade e beleza, retidão e pureza, abstração e evanescência” (REINHARDT, 2006, p. 77). Joseph Kosuth (2006, p. 220), seguindo essa indicação até o fim de modo coerente termina por concluir que: “A única exigência da arte é com a arte. A arte é a definição da arte”. A sua tese profunda é que: Trabalhos de arte são proposições analíticas. Isto é, se vistos dentro de seu contexto – como arte – eles não fornecem nenhuma informação sobre algum

fato. Um trabalho de arte é uma tautologia, na medida em que é uma apresentação da intenção do artista, ou seja, ele está dizendo que um trabalho de arte em particular é arte, o que significa: é uma definição da arte. Portanto, o fato de ele ser arte é uma verdade a priori (foi isso o que Judd quis dizer quando declarou que “se alguém chama isso de arte, é arte”). (KOSUTH, 2006, p. 219-220, grifo no original).

Se aceitarmos essa injunção, claramente não faz mais sentido encetar uma investigação sobre a essência ou a ontologia das obras de arte. A única coisa que se poderia dizer é, diante de uma obra de arte – ora, isso é “arte”! Porém, as palavras nem sempre dizem o que nós queremos dizer ao usá-las. O fato é que virtualmente sempre há uma diferença muito grande entre o que alguém fala ou escreve, o que ele quer dizer e o que ele efetivamente diz. No caso de Reinhardt e Judd, certamente o que eles efetivamente dizem é que a arte não é uma tautologia ou uma redundância, mas antes que arte é uma questão de forcing, de decisionismo, seja, de liberdade de alguém, sobretudo daqueles socialmente reconhecidos como competentes para dizer e fazer arte. O real caráter a priori, escondido e não tematizado por eles, está no fato de que, socialmente, arte é o que é feito por um artista. Logo, se um artista diz que algo é uma obra de arte, isso vale como uma definição ou descrição verdadeira inquestionável. Todavia, nada há aí de analiticidade, mas apenas de pretensão e autoridade. A questão que se impõe é: quem está autorizado ou capacitado para dizer de algo “é arte” e fazer com que esse algo seja uma obra de arte? Se a afirmação “Isso é arte” é um performativo, então cabe perguntar quem pode ser bem-sucedido nesse ato. Uma vez posta essa pergunta, não é difícil encontrar a resposta dada por George Dickie, pela qual o meio artístico constitui-se como uma instituição social dinâmica, não estática, que define o que é arte. Nesse sentido, para Dickie, uma obra de arte do ponto de vista classificatório é: “(1) um artefato; (2) um conjunto de aspectos os quais conferem ao objeto a sua posição de candidato para a apreciação por alguma pessoa ou pessoas

atuando em nome de uma certa instituição social (o meio artístico)” (DICKIE, 1969, p. 254). Agora, se quisermos recusar o decisionismo voluntarista que consiste em aceitar que basta que alguém ou um grupo diga que algo é “arte” para esse algo ser uma obra de arte e, ao mesmo tempo, se quisermos recusar a metafísica romântica da inefabilidade do artístico, que, semelhante à teologia negativa, termina por aceitar a existência e a distinguibilidade das obras de arte, ao mesmo tempo que aceita apenas predicações negativas do tipo “a arte não é ...”, então, se ainda quisermos falar com sentido da arte, a alternativa é perseguir até o fim um discurso localizador e discriminatório que diga positivamente o que é uma obra de arte e o que a distingue das coisas que não são arte, sob pena de tornarmos essa palavra insignificante. Com efeitos bem visíveis nos dias atuais, essa última opção talvez seja a nossa condição, pois nos seus mais diferentes usos as palavras “arte” e “artístico” já praticamente não dizem nada, ao menos não dizem o que interessa ouvir. O problema está em que, para muitos, o preconceito positivista antimetafísico, conjugado com a reação místico-romântica contra esse mesmo positivismo, apenas permite aceitar como válida uma descrição distintiva pragmática das coisas e coloca sob suspeita toda e qualquer tentativa de conceituação que vá além do útil e do consensual. No caso da arte, isso significa aceitar que o que é tido como arte por alguém, ou é usado como arte, ou aceito como arte num determinado grupo, é arte de fato. Todavia, essa situação é superficial, pois as nossas categorizações mais primárias e urgentes permanecem inalteradas e sustentam como pilares a variegada mutabilidade dos discursos relativistas que passam por verdades relativas. As noções primitivas de verdade e existência, de vida e morte, de fato e ficção, de obra humana e natureza, de ação e de acontecimento, de coisa e palavra, de evento e de pensamento, ainda ancoram

os mais diferentes discursos e posicionamentos significantes. Quando alguém diz “Isso é arte”, embora muitas vezes esse ato tenha a pretensão performativa, as mais das vezes quer fazer uma constatação e ou uma predicação com pretensão de verdade. Todavia, ainda é possível para nós esse ato constativo ou predicativo, sem remissão autorizadora a um “Isso é arte” performativo, passado ou futuro? Não recairia esse ato novamente na pretensão normativa e essencialista?

2.3 Equivocidade da palavra e pluralidade de conceitos Efetivamente a palavra “arte” é equívoca, mas nisso ela não difere em nada de qualquer outra palavra, sendo usada para indicar diferentes conceitos em diferentes contextos e situações. Mas, esse fato, da multiplicidade de sentido e formas de uso da palavra, não implica o que as pessoas pensam poder implicar, a saber, a inexistência de conceitos determinados de arte. Nas diferentes situações de proferimento dessa palavra, em geral, ela indica um conceito bem preciso. Todavia, desse fato, que a palavra “arte” seja usada para expressar um conceito determinado e não outro, não se segue o que as pessoas pensam se seguir, a saber, que haja então apenas um conceito legítimo de arte. A palavra “arte” pode sim indicar um conceito preciso de arte e ainda assim servir para indicar diferentes conceitos de arte nos seus diferentes usos. Nesse ponto aparece a tese da indefinibilidade da arte, no sentido da tese de que não haveria um conceito capaz de apreender o artístico de uma obra, evento ou gesto. Todavia, nessa afirmação, de que a arte é indefinível, confundem-se várias opiniões e muitos mal-entendidos. De saída devemos compreender que conceito e definição, seja de um objeto, ou evento, ou ação, nunca são únicos, e mesmo que o sejam, sempre serão passíveis de alternativa. Primeiro, porque não há um único conceito de arte ou de qualquer outra coisa. Ademais, não há uma única definição do conceito arte e da palavra

“arte”. Pois, se há um conceito, há vários outros conceitos; se há uma definição, há várias outras definições possíveis. Segundo, porque não há um único conceito de conceito e de definição. Há vários tipos de conceitos e de definições. Então, quando alguém diz que não há um conceito de arte, o que deveria dizer é que não há apenas um conceito de arte. Mas dizer isso é tão trivial quanto dizer que há vários números e tipos de números. Dizer isso não implica dizer que não há número. Na verdade, o medo do essencialismo e das definições normativas e nomológicas, típicas das figuras do filósofo rei e juiz, ainda hoje leva as pessoas a esquivarem-se do conceito tornando-se presas do relativismo pragmático que admite como arte apenas aquilo que é admitido como “arte” no seu pequeno círculo de amizades e negócios. A pergunta que faço é quanto aos conceitos e esquemas básicos pelos quais nós vamos conceber a arte e pelos quais nós poderemos compreender a atividade artística e o resultado dessa atividade, as obras de arte. Normalmente tomam-se as obras de arte atuais e passadas como o ponto de partida; no entanto, isso pode ser um equívoco, pois pode ser que essas obras de arte sejam apenas os vestígios parciais, os indícios do artístico e da atividade artística, e que a inteira arte esteja mais na atividade do que nessas entidades artísticas particulares e efêmeras, sejam as obras sejam os artistas sejam os espectadores. Enfim, o que eu proponho é suspender a validade, enquanto regra, do mundo da dita “arte” oficial, pois, bem o sabemos, esse mundo é contingente e resultante de atos performáticos interessados e passíveis de falhas. A partir daí nós poderíamos fazer a pergunta filosófico-ontológica sobre a arte e o artístico – perguntar pelas categorias que permitem pensar a atividade artística enquanto um ser-acontecimento e as obras de arte como entidades, como objetidades ou instanciações e restos desse acontecimento. Digo categorias porque os conceitos filosóficos são na verdade metaconceitos que têm a função de articular a inteira região

do artístico, e não descrever as obras e gestos da arte. As abordagens filosóficas da arte em geral ou tomam as obras de arte ou os estados do fruidor como lugares da reflexão. O meu ponto de partida consiste em abandonar as categorias de coisa e de sujeito em favor de categorias dinâmicas, operatórias, dando prioridade, portanto, às artes de execução, às artes que constituem acontecimentos, e não objetos, como matriz da teorização. Sobretudo, sugiro que os predicados “arte” e “artístico” incidam primariamente sobre o agir, os atos e atividades, e apenas derivativamente ao sentir e ao dizer. Desse modo eu reconheço a condição genealógico-performativa da arte, mas justamente por categorizar as obras de arte como artefatos. Para isso ser efetivo, faz-se necessário se desligar ou abandonar o dar-se do artístico de suas formas e suportes oficiais; os ofícios e as artes reconhecidas devem ser vistos apenas como figuras contingentes pelas quais se exerce e se fixa o artístico, que resta sempre como um acontecimento maior, que não se esgota nesse modo de fazer arte e nessas obras de arte que uma determinada época, uma determinada comunidade, pode aceitar como exemplares da arte. O que eu quero dizer é que o acontecer artístico, o acontecimento da arte extrapola as formações históricas nas quais ela se apresenta e pelas quais ela é apreendida; dito de modo breve, a vigência do artístico não se confunde com o que é tido como ação ou obra válida artisticamente para uma determinada época ou local. A partir disso, eu posso dizer que a filosofia da arte não trata das obras de arte e das artes existentes; dito de outro modo, os enunciados da filosofia da arte não são sobre as obras de arte, nem sobre a arte existente num determinado momento. As palavras “arte” e “artístico” não significam uma coleção ou classe de objetos. Eis o sentido da suposta indefinibilidade da arte. A filosofia da arte não se pronuncia sobre a arte, ela não nos informa ou permite conhecer mais sobre a arte e ela também não nos informa nem nos ensina como fazer arte.

A filosofia da arte é sobre o pensamento, também, assim como toda filosofia é uma atividade do pensamento, é um pensar o pensamento. Os enunciados filosóficos dizem respeito ao pensamento, ao sentido-pensamento, isto é, àquela dimensão de sentido que se dá e somente é acessível pelo pensar. Há outras atividades humanas, mas a filosofia é isso que nós chamamos de reflexão ou de pensamento que pensa o próprio pensamento. É claro que na nossa atividade de pensar nós pensamos muitas coisas, coisas que não são pensamentos, mas a filosofia é aquela disciplina do pensar sobre o pensar. Daí que a filosofia da arte também é sobre o pensar, a filosofia da arte pensa o pensamento artístico, pensa o pensamento que se dá na forma da arte. Na filosofia da arte, o que está em questão é a arte, todavia apenas enquanto essa é uma oportunidade que provoca o pensar que repensa os próprios pensamentos. Por isso, nem a arte atual (as obras) nem a filosofia atual (as obras), e menos ainda as passadas, podem nos guiar ou prescrever o que vamos pensar, fazer ou dizer sobre o artístico. O atual e o passado têm de ser considerados apenas como pretextos para o pensar, pois são indícios de outro pensamento. Na filosofia da arte não se trata da arte, assim como na filosofia da linguagem não se trata da linguagem nem das linguagens, pois isso é justamente o que está em questão. Todavia, cabe lembrar, o dar-se do artístico, tal como o dar-se do linguístico, não depende do pensar que pensa o como do pensar que assim se perfaz. A arte e a linguagem são dimensões autônomas do humano, o que não quer dizer que sejam independentes em relação às dimensões que constituem o humano na sua inteireza. Por isso, outra maneira de dizer isso é dizer que a filosofia da arte trata de uma dimensão, a dimensão do artístico, e não tanto daqueles que exercem e exploram essa dimensão, os artistas, nem dos resultados dessa exploração – as obras e eventos de arte, e nem das sensações, impressões, estados ou significações que os fruidores desses objetos e

eventos têm ou experienciam. Cabe à filosofia da arte explicitar conceitualmente o âmbito de sentido que estrutura a dimensão do artístico. Essa dimensão de profundidade confunde-se de certo modo com a vigência do humano, pois ser humano e ser artístico dizem o mesmo ou, ao menos, são concomitantes. Pode-se, assim, compreender a inesgotabilidade da arte, no sentido de que a arte vige ali onde vige o humano e, propriamente falando, não há limites para essa vigência. Esse fato já nos aponta para a inevitável luta entre as vanguardas e os classicismos, entre a arte velha e a novidade artística, pois é o humano que tanto se faz pela reiteração da tradição quanto pela instauração do futuro; mas esses gestos de reiteração e de instauração, enquanto gestos artísticos, apenas explicitam, abrem a dimensão artística do humano. Ao dizer que esta dimensão é coextensiva ao humano, quero afirmar na verdade que no processo de autoinstauração do humano está em operação a atividade artística. A arte, portanto, vista como uma dimensão de profundidade, ou como uma atividade constituinte do humano, deve ser compreendida com categorias apropriadas a essa dimensão de sentido, a qual não se reduz à dimensão dos objetos e coisas. Essas categorias foram, em geral, condensadas nas diferentes estéticas filosóficas. Todavia, as estéticas filosóficas estavam preocupadas com a ideia de conhecer e de sentir e avaliar, com uma ideia de sensibilidade, enquanto uma forma de apreensão, e com o sentir, como a afecção propiciada pela obra de arte, de tal maneira que, entre sensibilidade e afecção, as estéticas filosóficas capturam o artístico apenas do ponto de vista da recepção-percepção-intuição. E essa recepção sempre foi pensada enquanto uma relação entre um sujeito e um objeto, sendo a estética filosófica o pensamento sobre o que se dá no sujeito que cria e que percebe uma obra de arte. Daí que as estéticas filosóficas estão presas a um modelo sujeito-objeto e não pensam propriamente a dimensão do artístico e a arte como um acontecimento inaugural e autônomo. Já na origem da visada estética

estava definida a posição relativa da arte. Agora, que categorias vamos utilizar para compreender o acontecimento arte, a dimensão artística, de modo a preservar sua autonomia? Claramente se trata de uma ação, um ato consciente, pois a arte é um agir consciente. Mesmo que haja casos limites e que sempre no ato artístico haja algo de impensado e inconsciente, o artístico está no domínio dos atos premeditados e conscientes de si. Além disso, outra categoria que tem de ser acrescentada a esta é que na arte se trata de ficção, de invenção, de inauguração de algo não dado e é nesse ponto que a arte se contrapõe à ciência e à técnica, por um lado, e também à natureza. Todavia introduzir a categoria da ficção traz problemas, mas ela não é contraditória da ideia de arte como ato consciente. O conceito de artefato pretende apanhar esse aspecto. Assim, a arte é uma ação ou uma ação criadora, portanto uma ação que perfaz uma ficção, um artifício, uma falsificação. Todavia essa explicação é insuficiente, pois é um sentimento universal o de que o efeito artístico tem a ver com a mostra da realidade, com a mostra da verdadeira realidade e a mostra do sentido dessa realidade, do sentido mais profundo da realidade. Assim, esse caráter de falso e de fictício tem de ser repensado e reconceituado. Ora a noção de fazer e ter um sentido humano não pode ser pensada ao modo de um simples ficcionar imaginário, independente da realidade. O fazer sentido de uma obra de arte, por exemplo, de uma peça de teatro, tanto aponta para seu caráter ficcional, para o seu caráter de outro em relação à realidade, quanto para o seu estar vinculado a essa realidade, pois caso estivesse completamente desvinculada ela não seria significativa, ela não teria sentido para nós. A teoria de Croce localiza o artístico na intuição, ao dizer que: A arte é visão ou intuição, o artista produz uma imagem ou fantasma, e quem aprecia a arte dirige o olhar para o ponto que o artista lhe apontou, olha pela fresta que ele lhe abriu e reproduz em si aquela imagem. Intuição, visão,

contemplação, imaginação, fantasia, figuração, representação e assim por diante, são palavras que recorrem continuamente, quase sinônimos no discorrer acerca da arte e todas elevam nossa mente ao mesmo conceito ou à mesma esfera de conceitos, indício de um consenso universal. (CROCE, 2008, p. 36).

Croce está tomando o modelo moderno clássico pelo qual a nossa relação primeira com o mundo é sensitiva, intuitiva, porquanto cognitiva, e transfere isso para a arte. Ao dizer que a arte é visão ou intuição, ele está colocando o artístico no domínio da cognição, no âmbito de uma relação de sentir e intuir um objeto. Ora, por trás disso há um sujeito, há um eu que intui, que sente, que vê o mundo. Ademais, Croce nega que a arte seja um objeto físico, que ela seja um ato utilitário, que ela seja um ato moral, e que a arte tenha algum caráter de conhecimento conceitual. Nesse ponto nós podemos ver a proximidade de Croce em relação a Kant. Um segundo ponto da teoria de Croce transparece na seguinte afirmação: “A intuição artística é, pois, sempre uma intuição lírica” (CROCE, 2008, p. 51). Explicado ainda assim: O que dá coerência e unidade à intuição é o sentimento, a intuição é verdadeiramente intuição porque representa um sentimento, e só dele e sobre ele pode surgir, não a ideia, mas o sentimento é o que confere à arte a aérea leveza do símbolo, uma aspiração fechada no círculo de uma representação, eis a arte. E nela a aspiração está somente pela representação e a representação só pela aspiração épica e lírica. Drama e lírica são divisões didáticas do indivisível. A arte é sempre lírica, ou se quisermos, épica e dramática do sentimento. O que admiramos nas autênticas obras de arte é a perfeita forma fantástica que nelas assume um estado de alma, a isso chamamos vida, unidade, coesão, plenitude da obra de arte. (CROCE, 2008, p. 50).

Ora, aqui vemos um extremo da estética filosófica que toma a arte e a obra de arte como um efeito de sentimento, um efeito de sentir, como uma afecção ou estado da

alma, localizando, portanto, o artístico na afetividade, na afetabilidade de uma consciência, de um eu, de uma alma. Permanecendo, portanto, estritamente dentro do cânone moderno que toma como único objeto para o pensamento filosófico o próprio eu, a própria consciência, e que se recusa metodologicamente a se pronunciar sobre as coisas mesmas e sobre os eventos e acontecimentos que perfazem o mundo para além da subjetividade. Eu penso que seria interessante distinguir, em relação à abordagem da arte e das obras de arte, entre os conceitos utilizados para compreender a atividade e os eventos artísticos, e os conceitos utilizados para compreender as obras, os objetos, as entidades denominadas obras de arte. Além disso, deveríamos distinguir entre a crítica da arte, que é feita de um ponto de vista externo, de um ponto de vista do avaliador das obras e dos atos artísticos, e as poéticas e manifestos, os projetos, os planos e as explicações dos próprios artistas dos seus atos e de suas obras. A crítica e a poética são como que a perspectiva externa e a perspectiva interna. Ambas estabelecem critérios, estabelecem valores, estabelecem conceitos, mas têm a ver com o fazer e com a apreciação das obras de arte. Deveríamos distinguir essas duas perspectivas de outra que é a perspectiva das falas cotidianas, das conversas, das impressões, dos discursos sobre a arte, provindas da esfera da vida cotidiana, da vida fática, da vida comunitária que fala da arte, que ensina arte, que discute arte, mas como algo espontâneo e como algo que permite que se compreenda a arte, pois a arte ou o artista, a crítica da arte, os planos e as poéticas de arte são apenas significativos no contexto da vida cotidiana, no contexto da vida fática e comunitária. É dentro dessa vida, desse mundo vivido que faz sentido ser um artista, que fazem sentido o ato artístico, a obra de arte, a crítica da arte e os manifestos artísticos. Tudo isso se dá na dimensão da vida cotidiana, urbana por assim dizer, pois a arte não é um acontecimento extramundano e muito menos estranho ao humano natural.

Além disso, devemos distinguir ainda as teorias da arte, as estéticas, por assim dizer, teorias da arte que são ciência da arte em relação à filosofia da arte, pois esta não é uma ciência. O saber artístico, uma teoria ou uma estética, por definição, é algo genérico, algo universal que pode ser ensinado e compreendido por diferentes pessoas de diferentes gerações, assim como a teoria da tabela periódica. Essas teorias da arte tomam o fenômeno artístico como um objeto-fenômeno dado e reconhecido previamente, que então é posto como algo a ser conhecido e determinado, a ser compreendido e explicado. Um ponto de vista interessante, embora ainda fique preso ao modelo da estética filosófica, foi desenvolvido por Luigi Pareyson, no livro Os problemas da estética. Nesse livro, ele diz algumas coisas que devemos levar em consideração. Primeiro, que: A reflexão filosófica é puramente especulativa e não normativa, isto é, dirige-se a definir conceitos e não a estabelecer normas. A estética portanto não pode pretender estabelecer o que deve ser arte ou belo, mas pelo contrário, tem a incumbência de dar conta do significado, da estrutura, da possibilidade e do alcance metafísico dos fenômenos que se apresentam na experiência estética. (PAREYSON, 2001, p. 17).

Note-se que ele continua ainda preso ao modelo kantiano de que o cerne da arte é uma experiência estética e, portanto, tem a ver com algo que se dá no sujeito. Ainda assim vale a pena seguir a sua linha de pensamento, ele diz:

Uma reflexão sobre a arte ou é filosófica como a estética, e então torna a entrar na filosofia, ou é trabalho de crítico, de historiador ou de teorizador da arte, e então entra na experiência estética como objeto da filosofia. A estética é filosofia justamente porque é reflexão especulativa sobre a experiência estética na qual entra toda a experiência que tem a ver com o belo e com a

arte. Na experiência da arte, do leitor, do crítico, do historiador, do técnico da arte e daquele que desfruta de qualquer beleza, entra basicamente a contemplação da beleza, quer seja artística, quer natural ou intelectual, a atividade artística, a interpretação das obras de arte, as teorizações da técnica das várias artes. (PAREYSON, 2001, p. 18).

Como se pode ver, Pareyson continua reforçando a ideia de que a estética filosófica tem a ver com a intuição ou a experiência artística. Mas ele diz algo muito sério e problemático, ele diz que não há nada entre a reflexão filosófica e a experiência estética. Ora isto só é válido no paradigma cartesiano fenomenológico pelo qual o pensar é intuitivo na sua base e a autoconsciência, ou a reflexão, é imediata, transparente a si mesma. Há toda uma tradição questionadora deste paradigma da intuição e do imediatismo da consciência para consigo mesma, que coloca um intermediário, sim, entre a reflexão filosófica e a experiência estética ou a vivência estética. Na filosofia analítica se coloca a linguagem como um intermediário que deve ser levado em consideração pela reflexão filosófica ao pensar a experiência estética e as obras de arte. Na tradição da teoria crítica e da filosofia hermenêutica há um intermediário, sim, entre a reflexão, o pensamento e a experiência estética, que é a tradição, que é a história, que são as relações sociais, que são as relações econômicas, e assim por diante. Portanto, deveríamos repensar a proposta de Pareyson de que a reflexão filosófica pode ser imediata acerca da arte. Todavia, Pareyson continua: A estética é constituída deste dúplice recâmbio ao caráter especulativo da reflexão filosófica e ao seu vital e vivificante contato com a experiência. Não é estética aquela reflexão que não é alimentada pela experiência da arte e do belo, cai na abstração estéril. (PAREYSON, 2001, p.20)

De tal modo que “a estética deve ser guiada pela dúplice consciência de que o filósofo não conseguiria dizer nada sobre a arte senão prolongando o discurso do artista ou do crítico, e que este discurso, que é pré-filosófico, vai prolongado sobre o plano

especulativo" (PAREYSON, 2001, p. 20). O que Pareyson quer dizer é que o discurso filosófico é um discurso de segundo nível, um metadiscurso sobre a arte, pois antes dele há o discurso pré-filosófico do próprio artista e do crítico, do historiador e do técnico. Ora, essa concepção de que o discurso filosófico é um metadiscurso também é questionável. E, sobretudo, a ideia de que o discurso filosófico seja dependente dos discursos primários sobre a arte. Como se os objetos, as obras de arte, ou o objeto do pensamento filosófico, a ideia de arte e de artístico, só se dessem para o filósofo através das obras ditas “de arte” e dos discursos dos artistas, dos críticos e dos historiadores. Ora, se minha hipótese está correta, de que a arte e o artístico constituem uma dimensão do humano, uma dimensão primária do humano, nós poderíamos dizer com Nietzsche e com Heidegger que os discursos sobre a arte, os discursos do crítico, do artista e do historiador e as obras “de arte” são como que impedimentos, obstruções para o pensar, pois são congelamentos, são fixações, são cristalizações e nominalizações da arte e do artístico. Daí que talvez para a filosofia o melhor seja não ver, não ouvir o que se faz e o que se diz em uma determinada época como “arte”, no sentido de não tomá-los como paradigmas e verdades da arte. Mas esta é apenas uma hipótese de trabalho ainda não de todo formulada. Nessa linha, Pareyson faz a seguinte distinção: A poética é programa de arte declarado ou no num manifesto, numa retórica ou mesmo implícito no próprio exercício da atividade artística, ela traduz em termos normativos e operativos um determinado gosto, que por sua vez é toda a espiritualidade de uma pessoa ou de uma época, projetada no campo da arte. A crítica é o espelho no qual a obra se reflete. Ela pronuncia o seu juízo enquanto reconhece o valor da obra, isto é, enquanto repete o juízo com que a obra nascendo aprovou-se a si mesma. A estética pelo contrário não tem nem caráter normativo nem valorativo. Ela não define nem normas para o artista nem critérios para o crítico. Como filosofia ela tem um caráter exclusivamente teórico, a filosofia especula, não legisla. (PAREYSON, 2001,

p. 21-22).

Aqui novamente transparece outro aspecto, não mais da filosofia moderna, mas da filosofia do século XX. Aquela filosofia que, segundo Pierce e depois Wittgenstein, diz que o filósofo deixa tudo como está, que o discurso filosófico é um discurso vazio e sem sentido. Ou, então, adota a atitude do analista-terapeuta que pretensamente apenas ouve e pontua. Para Nietzsche, essa atitude seria niilista, uma atitude escapista daquele filósofo que, por ser incapaz de dizer algo doador de sentido e orientador, se afasta da pretensão de fazer sentido, de instaurar sentido. Pareyson está correto ao dizer que uma filosofia da arte não pode ser normativa nem criteriosa, ou seja, que ela não estabelece normas nem valores para o artista; no entanto, se uma filosofia não é capaz de abrir uma dimensão, um horizonte de sentido e indicar caminhos, então ela deve se calar, ela deve se afastar e ir para as montanhas. A filosofia da arte como pensamento do próprio pensamento, como pensar o pensar, tem o único sentido de explicitar e fazer sentido, e esse sentido, essa instauração de sentido que justamente a qualifica como arte, é o que pode ser um indicador, um orientador para o próprio artista. E assim tem sido na história da filosofia e na história da cultura, em todos os tempos e lugares: o que se mostra é o fenômeno dos grandes pensadores, dos grandes filósofos como inspiradores para os artistas, como instauradores de estilos artísticos, por apontarem, por pensarem o estilo da estilização e o artístico que se perfaz nas artes. Não por serem primeiros ou estarem acima em relação aos artistas, mas justamente por explorarem a mesma dimensão de sentido constitutiva do humano. Agora, se a arte é um ato consciente, se arte é um agir, ela não se deixa resolver inteiramente numa ação técnica e predeterminada cujos resultados seriam previsíveis e causais. Um artefato sem artifício reduz-se apenas a um artefato técnico. Por isso, embora seja um ato consciente, pode-se falar de uma oposição ambígua entre uma obra de arte total e uma obra do acaso total. A arte se opõe ambiguamente ao acaso. Uma

obra de arte total, plena, difere de uma obra do acaso total, do caos, pois embora se diga que o ato artístico esteja fundado na espontaneidade, ele parece jamais ser gratuito, casual, e ao mesmo tempo não pode também ser meramente causal. Se a natureza é acaso, a natureza é o oposto da arte. Agora, como pensar essa oposição ambígua, entre Arte e Natureza, entre acaso e arte? Qual a relação da arte com a exploração das possibilidades e das necessidades? Em que um objeto ou um evento artístico se diferencia de um objeto ou evento natural, técnico ou casual? Qual a relação entre esses eventos e objetos? Os artefatos artísticos pertencem a uma categoria especial, diferente das categorias dos objetos naturais e técnicos?

2.4. Pluralismo ontológico e conceitos formais Nas considerações da filosofia da arte, opera uma pressuposição herdada dos antigos e nunca questionada, a saber, a pressuposição da homogeneidade ontológica das obras de arte. Eu sugiro que essa pressuposição seja abandonada, pois diferentes tipos de entidades podem ser obras de arte, no preciso sentido de uma indiferença ontológica do artístico em relação aos seus suportes ônticos, uma vez que entidades de diferentes categorias ontológicas podem ser obras de arte. A não definibilidade da arte agora encontra sua razão, pois as definições em geral subscrevem a sua extensão numa única categoria. Mas, disso não se segue a impossibilidade de um conceito e uma definição: segue-se que o conceito de obra de arte tem de ser formal, e não genérico: por definição, o domínio de referência do termo “arte” não é homogêneo categorial e ontologicamente, o que significa dizer que os diferentes objetos que são obras de arte não compartilham um conjunto determinado de predicados, que seria a essência da obra de arte. Por conseguinte, a expressão “Isso é arte” expressa como que uma indicabilidade pura, não determinante e não conceitualizadora do que é assim indicado.

Daí a tarefa da filosofia da arte: quando não é elaboração sobre o conteúdo ou o significado da arte e das obras de arte, portanto, quando não é sobre o quê da arte, no contexto da reflexão acerca das atividades humanas, é conceitual, no sentido da atividade de explicitar nexos de sentido e de implicatividade formais constitutivos do ser arte da obra de arte. Por isso, uma investigação filosófica da dimensão artística precisa tomar a arte e os eventos artísticos na sua inteireza e pluralidade, como compondo uma dimensão do humano. A partir dessa perspectiva as diferentes artes são como que momentos que adquirem o seu ser-arte por pertencerem a essa dimensão, e não por terem um determinado conjunto de propriedades. As artes e obras pré-clássicas e pós-modernas mostram isso com clareza, ao recusarem os locais, os suportes e os procedimentos, e as divisões e gêneros tradicionais. Apenas a arte dita “clássica” e “moderna” se autocompreendeu e foi compreendida como tendo uma natureza e uma essência própria e una. A arte contemporânea e a arte pré-clássica de modo algum pretendem se assegurar de antemão num conceito oficial e numa categoria ontológica. Por isso, para fazer uma filosofia contemporânea da arte contemporânea, precisamos inverter a visada. Ao invés de partir das obras e dos atos, partimos do humano e da dimensão denominada “arte”, pois a arte é uma possibilidade humana, um modo humano de existência. O artístico não se realiza em um conjunto de objetos: as obras de arte oficiais. O artístico se dá como parte da vida humana, sobretudo como parte da vida comunitária, pois há uma série de “instituições” que propiciam e mantém aberta para os indivíduos a dimensão em que eles podem atuar como artistas e, por sua vez, onde os objetos de arte também têm um lugar reservado entre os objetos que compõem essa ambiência humana. As atividades e obras artísticas estão entrelaçadas com os constituintes do humano, integram a nossa consistência. Pois na base instauradora da humanidade do

humano está o operar com possibilidades não dadas, com o fictício e com o não-natural. Enquanto traço semântico do sentido da expressão “arte” está o capturado pela palavra “artifício”, ou seja, o traço da invenção, da ficção e da não naturalidade, portanto, da irrealidade, o qual pode ser denominado negativamente como “ilusão” e positivamente como “criação”. Note-se que nesses traços semânticos há uma indicação de abandono do real, de afastamento em relação ao factual-causal-energético, em direção a um operar no e com o que não está dado, mas possível, na dimensão da irrealidade. Isso é o que torna a arte o oposto da ciência e da técnica. Uma maneira de dizer isso é dizer que o que faz com que uma atividade ou objeto seja considerado “arte” é a remissão a outras obras de arte, por anáfora regressiva ou projetiva, portanto, que a remissão a uma tradição seja suficiente para o ser “arte” de uma obra de arte. Desse modo, o reconhecimento pela comunidade, ou pelos artistas, ou especialistas, historiadores, críticos, de algo como “arte”, seria suficiente para torná-lo arte. A minha hipótese de trabalho é que não, pois esses são critérios conservadores, factuais e pré-dominados pela compreensão estabelecida do que seja e do que não seja “arte”. Uma sociologia ou psicologia da arte pode ser fundamentada assim. Mas, a filosofia da arte não pode fundar o seu parecer nesses critérios e práticas, por assim dizer performáticos e pragmáticos, que instauram o ser daquilo que será apreendido como arte a partir da sua nominalização. Ela deve buscar um conceito. Se não lhe satisfazem os conceitos estabelecidos, ela deve então criar um novo conceito. Agora, como disse antes, os conceitos filosóficos são formais, são como uma bússola; por eles se pode fixar uma direção e um sentido, mas eles são: sem conteúdo factual, pois não nos dão o conteúdo, por

exemplo, da expressão “arte”, mas tão somente um esquema ou

estrutura de orientação; apresentam um sentido, não um referente; apresentam uma condição de validade, não um valor ou uma verdade; estabelecem nexos de implicação

com outros conceitos que apreendem as diferentes dimensões do humano, do mundo e do pensamento, e não ligações histórico-causais. Com efeito, o que constitui o artístico que retira um gesto, um objeto ou um evento da banalidade e do ordinário e natural consiste na forma ou estrutura, ou sentido, talvez na configuração de sentido e direcionamento, talvez no sentimento ou estado de ânimo, na afecção, ou ainda, no significado ou forma significante, quem sabe ainda, na interação, atuação, atitude, indicada e estilizada, mas jamais na coisa, ou fato, ou sensação.

2.5 O dado de arte e a suspensão ontológica Porém, na busca de um conceito, insisto, a filosofia deve iniciar aceitando o dado de arte, o que se apresenta como arte no mundo fático (o que as gentes consideram “arte”), e a partir do fenômeno da arte introduzir conceitos e princípios que orientem o pensar e instaurem um pensamento e um discurso significante acerca da arte: a partir desse modo de dar sentido e de apreensão do que se dá é que podemos falar de objetos, atos e eventos artísticos. Essa apreensão conceitual tem sido realizada ao modo negativo, nos últimos tempos, exemplificadas paradigmaticamente nas teorizações de Ferreira Gullar (1985) e Vilém Flusser (2007), ao usarem as expressões “não-objeto” e “não-coisa” para indicar a categoria a que pertenceriam as obras de arte. Que essa apreensão negativa esteja presa a pré-compreensões não é de estranhar; o que espanta é a permanência impensada dessas formas prévias em autores tão sagazes. Todavia, desde Platão, é nota comum predicar a negatividade da arte e do artístico. Por isso, para enfrentar esse mau hábito, deveríamos aceitar provisoriamente a indicação de Alexius von Meinong e tomar o acontecimento-arte como um “Aussersein”, como “fora do ser”:

[...] nossa apreensão (Ergreifen) encontra nos objetos qualquer coisa de pré-dado (etwas vorgegeben), sem que se entenda como decidir a questão de seu ser ou não-ser. Nesse sentido, “há” também objetos que não são, o que eu procurei designar através da expressão – obviamente como eu temia um pouco bárbara, mas difícil de melhorar – “fora-do-ser do objeto puro”. Este termo responde ao esforço para interpretar o estranho “es gibt” (há) que não parece poder ser retirado dos objetos, mesmos os mais estranhos ao ser (seinsfremdeste Gegenstände) e, sem ter que recorrer ainda a um terceiro tipo de ser além da existência e da subsistência. Além disso, mais de uma vez eu tive o sentimento muito claro de que este esforço não poderia alcançar a positividade específica (eigentümliche Positivität) que reside, parece-me, no caráter de pré-dado (Vorgegebenheit) de todo objeto concebível e apreensível a princípio. Considerando isso, eu devo mencionar expressamente a eventualidade que ainda possa haver, fora do existir e do subsistir, um terceiro, que ninguém nomeia mais ser, e que, finalmente, deveria unicamente ser caracterizado como qualquer coisa de aparentado ao ser (etwas Seinsartiges) no sentido mais amplo do termo. O que resta ainda por decidir é precisamente a questão de saber se o Aussersein (fora-do-ser) ele mesmo é uma determinação ontológica (Seinsbestimmung) ou se ele indica simplesmente a falta de uma tal determinação.” ( MEINONG 1910, p. 79-80, tradução nossa).

Essa atitude de Meinong tem de ser retomada diante da arte, no mínimo para reconhecer sua autonomia prévia. Metodicamente é necessário colocar as obras de arte, contemporâneas ou não, na posição de fora-do-ser, evitando sua captura pelos nomes e conceitos clássicos e modernos: metafísicos, teológicos, estéticos, éticos, políticos, e hedonistas. A suspensão desses conceitos e a suspeição em relação a esses nomes libera o dado-de-arte atual para a atividade pensante e para novos nomes e conceitos. Essa é a única possibilidade de criação conceitual e de evitação do pré-domínio dos pré-conceitos. Isso, porém, significa tomar a palavra “arte” como um indicador formal, isto é, um significante que não impõe nenhuma determinação prévia ao que é assim significado. Nessa situação, borra-se a distinção entre arte oficial, arte e não-arte, abrindo-se um âmbito de ainda-não-determinação no qual se pode pensar de modo reflexivo e não determinante.

Nesse ponto, então, emerge a necessidade de se recusar a equação “Isso é arte, então, isso é estético”. A distinção entre Estética e Filosofia da Arte não é apenas uma questão de renomeação, pois no sentido forte da tese, ela implica a separação entre o estético e o artístico. A questão, então, pode ser posta em termos da possibilidade de se distinguirem as propriedades e relações estéticas de um dado (objeto, evento, ato) e suas propriedades e relações artísticas. Distanciando-se em relação a Kant, Croce e Deleuze, que subsumiram o artístico ao estético (gosto, sentimento, sensação), isso significaria tentar pensar a arte por meio de conceitos não ligados imediatamente à sensibilidade e a conceitos hedonistas, o que implica suspender a tese ontológica que afirma que “a obra de arte é um ser de sensação” que coloca o artístico no plano da “pura sensibilidade”. Agora, a introdução de um conceito não se dá no vácuo e em relação unicamente com o dado puro. Mesmo que se isole o dado de arte, a trama de esquemas e conceitos referentes aos outros dados ainda estaria atuando e o novo conceito apenas faria sentido em relação a esses outros conceitos, pois o artístico é uma diferença cuja identidade se instaura a partir da diferenciação com o que não é arte. Por isso, uma primeira tentativa consiste em deslocar, ou melhor, deslocalizar a arte no plano ontológico, e apreendê-la a partir de outros conceitos e outras correlações. A correlação entre arte e sensibilidade, ou entre arte e ilusão, pode não ser eludível, mas ela pode ser capturada por meio de um outro esquema em que o juízo “isso é arte” não indique um estado subjetivo nem um ser de sensação, e muito menos algo falso. O artístico apreendido como suprassensorial (OITICICA, 1986), como ação, como interação, como processo (ADORNO, 2000), como jogo (GADAMER, 1985, 2003), indica já a ultrapassagem da autocompreensão estética e sensorial da arte.

2.6 Como dizer o artístico da arte Faz-se necessário que o discurso filosófico, por mais próximo e por mais que retome as palavras da vida comum, instaure-se por um uso extraordinário da palavra. A recondução ao uso ordinário é tão somente o abandono da filosofia ou a sua aplicação nas controvérsias da conversa cotidiana. Que esta seja uma atitude mais saudável e mais exequível, isso é claro. Ao denominar algo, um objeto ou um ato, “artístico”, no discurso comum autoriza-se também a usar as palavras “belo”, “bonito”, “sublime”, “prazeroso”, “sensacional”, “emocionante”, “sensível”, cujo campo semântico localiza-se no plano do sentir, e do patético e afetivo. Essa ligação semântica entre o sentido das palavras usadas para dizer a arte autoriza a correlação entre “artístico” e “estético”, a ponto de induzir o pensador a ver aí o cerne do problema. Com efeito, ainda hoje estamos sob o influxo da injunção realizada por Kant (1993), ao teorizar o juízo sobre a arte como um juízo cujo sentido e condições de verdade remeteriam a um estado da faculdade de sentir, a sensação do agradável espiritual, sem conceito e sem finalidade, de tal modo que o conteúdo desse juízo seria a reação do sujeito, e não a propriedade do objeto. Esse modo de compreensão não está longe da tentativa de Malevitch, ao defender o primado da “pura sensibilidade na arte”, sob o argumento de que “as aparências exteriores da natureza não apresentam nenhum interesse: essencial é a sensibilidade em si mesma, independentemente do meio em que teve origem”, o que o leva a pensar coerentemente num mundo sem objetos. Para esse artista, “a satisfação que experimentava com a liberação do objeto levou-me cada vez mais longe no deserto, até aquele ponto onde nenhuma coisa de autêntico subsiste a não ser a sensibilidade – e é assim que a sensibilidade se torna a substância mesma da vida”. “Experiência sensorial sem imagens nem noções” (MALEVITCH apud GULLAR, 1985 p. 134-135).

Essas localizações do cerne da arte no plano do sentir não são coisa do passado moderno. Recentemente, a dupla Deleuze e Guattari, ao buscar dizer o específico da arte e do artístico, afirmou esse primado do sentir de maneira clara novamente. Para eles, o ser da obra de arte é um ser de sensação. Desse modo, a arte é localizada e encerrada no plano do sensorial, e as suas categorias são todas categorias de sensação, positivas ou negativas. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 213, 227, 247). A definição proposta por M. W. Rowe confirma a vigência desse modo de apreensão: Eu definirei, portanto, uma obra de arte como ou como um objeto físico ou como um tipo que pode, e é [feito] intencionalmente para, suportar contemplação absorvente e desinteressada por oupela visão, audição ou tato (ou alguma combinação deles) com base na sua correta apreensão. Eu acredito que isso captura as características comuns que todas as obras de arte – uma novela de Forster, uma colagem de Schwitters, uma rapsódia de Brahms – compartilham, enquanto permite-nos excluir todos os objetos e atividades proximamente relacionados. (ROWE, 1991, p. 286, tradução nossa).

Note-se o primado do sentir e, mais ainda, e de modo irrefletido, a restrição a apenas três órgãos sensoriais. A definição que Tartarkiewicz (1971, p. 150) forneceu, baseada numa definição exclusiva com três cláusulas, exclui essa restrição: Uma obra de arte =df (1) uma reprodução de coisas; ou, (2) uma construção de formas, ou, (3) uma expressão de experiências tal que ela é capaz de evocar deleite, emoção, ou choque.

Essas definições são diretamente questionadas pela definição, agora social e institucional, dada por George Dickie, pela qual o meio artístico é uma instituição social dinâmica, não estática, que define o que é arte. Nessa perspectiva, uma obra de arte, no sentido classificatório, seria (1) um artefato; (2) um conjunto de aspectos os quais

conferem ao objeto a sua posição de candidato para a apreciação por alguma pessoa ou pessoas atuando em nome de certa instituição social (o meio artístico). Dickie (1969, p. 254) ainda aplicou essa caracterização a todo o âmbito da arte: (1) um artista é uma pessoa que participa com entendimento no fazer de uma obra de arte. (2) uma obra de arte é um artefato de um tipo criado para ser apresentado ao público do meio artístico. (3) Um público é um conjunto de pessoas cujos membros estão preparados em algum grau para compreender um objeto que é apresentado para eles. (4) O meio artístico é a totalidade de todos os sistemas do mundo das artes. (5) Um sistema do mundo das artes é uma armação-instituição para a apresentação de uma obra de arte por um artista para um público do meio artístico.

Note-se que essa definição é essencialmente sociológico-pragmática, e a dimensão estética praticamente é anulada. Por fim, a ideia já citada de “autodefinição”, desenvolvida por J. Kosuth (2006, p. 220), em relação à arte conceitual: “Uma obra de arte é uma tautologia que é uma apresentação da intenção do artista, isto é, ele está dizendo que aquela particular obra de arte é arte, o que significa, que é uma definição de arte”. Com essas breves indicações sobre as tentativas de definição da arte, eu quero apenas indicar o percurso pelo qual chegamos à atual indefinição na nomeação filosófica em relação à arte e ao artístico. Essa indefinição, essa apreensão, nada mais é do que o resultado da aplicação dos pré-conceitos filosóficos, tornados senso comum, às obras e eventos de arte contemporâneas, que, enquanto acontecimentos artísticos, não se encaixam nesses nomes e conceitos prévios, seja porque eles foram modelados por obras e expressões artísticas particulares, seja porque tais nomes e conceitos implicam normas e preceitos retirados das obras do passado, mas sobretudo porque a arte atual impõe novos regimes ontológicos e extrapola os limites do que foi tido legitimamente como arte. No geral, a localização do artístico no plano da sensibilidade e do estético,

particularmente no domínio do deleite espiritual, é o que é assim deslegitimado pela vigência da arte contemporânea. Isso indica que os filósofos talvez sejam vítimas de uma generalização apressada e, depois, ao perceberem o equívoco, concluem pela impossibilidade de uma definição.

2.7 Indicações formais para o conceito de arte e artístico A minha proposta é pensar a arte e o artístico como indicadores de uma dimensão do humano, isto é, como sinalizações para o âmbito em que o humano vem a ser o que ele é. O âmbito da arte, assim, é pensado como sendo o onde e o quando do existir humano qua humano, no sentido de que os atos artísticos reiteram a forma dos atos pelos quais o animal humano se diferencia do animal e do vegetal transformando-se num ser cuja existência apenas perdura por meio de atos de iteração de si, atos esses que instauram essa existência com uma consistência própria. A atividade artística, desse modo, diferencia-se e entrelaça-se com outras atividades em que o humano é natureza (trabalho, reprodução, alimentação, ciência), em que o humano é transcendência e dependência (religião, mística), em que o humano é pessoa ou comunidade (ética, educação, política, amor). Na arte se trata de um agir cuja finalidade é possibilitar esse mesmo agir; uma ação que implica sua própria iteração como condição de sua possibilidade, uma ação que reitera uma ação. E nisso está sua primariedade para o humano, pois este apenas tem ser enquanto reitera os atos de iteração pelos quais ele se instaura. A arte, por conseguinte, é antes de mais nada expressão do humano na sua plenitude. Uma obra de arte é aquilo que dignifica aquele que a fez ou a assim compreende como humano. Nesse sentido, podemos dizer que o ato artístico constitui um traço ou marca de um si-humano, e não uma expressão do “divino”, do “ser”, da “natureza”, da “verdade”, do “transcendente”, do “nada”, da “ideia”, etc., pois esses

nomes adquirem sentido sempre no contexto de um si que se autocompreende. Nessa direção, a minha proposta consiste em retomar a ontologia da obra de arte, fazendo uma revisão da categoria da “entidade” da obra de arte. Claramente há uma insuficiência dos conceitos clássicos. As conclusões negativas sobre o ser das obras de arte decorrem naturalmente da aplicação de conceitos como objeto, propriedade, relação, estados de coisas, objeto disperso, massa; processo, evento, momento; acontecimento; ação, paixão; signo, linguagem, sentido, significado; sujeito, estado mental, intenção, representação, consciência. Também se segue a negatividade ou irrealidade

das

distinções

tipo-ocorrência,

concreto-abstrato,

singular-particular-universal, real-possível, atual-virtual; divino-natureza-existência. A proposta é ultrapassar essa pré-compreensão que leva a se falar em não-objeto, não-coisa, não-ação, não-verdade, não-ser, quando se quer falar da posição da arte. Tal pré-compreensão ontológica pressupõe a redução de tudo ao esquema concreto (“objeto-com-propriedades-e-relações-espaço-temporais”),

mental

(“percepto-afecção-sensação”) e abstrato (“objeto-forma-estrutura-tipo). Esse esquema não dá conta sequer dos significantes e dos agentes envolvidos na situação artística. Além disso, pressupõe que uma única categoria ontológica possa dar conta da arte. Mas, uma obra de arte pode ser objeto concreto, ato, evento, processo, signo, forma, etc. Se essa diversidade ontológica do dado de arte for considerada, as tentativas de estabelecer um conceito geral e uma definição de arte que seja capaz de apreender a totalidade do que se põe como arte tem de ser abandonada. Todavia, e aqui está o erro daqueles que concluem pela indefinibilidade, isso de modo algum inviabiliza um conceito formal de arte. Um conceito formal, porém, tem de fornecer um esquema de inteligibilidade capaz de orientar a apreensão dos dados, sem, contudo, estar fundado em características

ou propriedades disso que é dado. Nessa direção, uma caracterização mínima das expressões “arte” e “obra de arte” implica reconhecer que quando se diz “Isso é arte”, diz-se concomitantemente que “isso” é um artefato (feito, execução); é ficção (artifício, não natural); é significante (regra, direção, signo); é relacional (complexo, nexo); é estético (afetante-afetivo). Por conseguinte, a indicação formal para a definição de arte inclui as noções de artefato e artifício, e não de irreal ou ilusório; de ação, ato ou gesto humano; de não natural, ficional ou imaginário, mas não a de falsidade. Além disso, enquanto remete a uma dimensão humana, essa indicação implica ou exige o humano na sua plenitude, mas não um sujeito puro sem interesses. Essa expressão indica um artefato (gesto, ato, evento, objeto, sinal) que propicia ao humano reconhecer-se na sua humanidade. E por isso mesmo uma obra de arte pode ser pensada como uma apresentação de uma proposição ou sentido, enquanto ato humano, pois um lance humano apenas se define e identifica num horizonte ou plexo de sentido. Por fim, na indicação do sentido da arte está implicada a ideia de estilo, no preciso sentido de que o seu dar-se, por ele mesmo, estabelece limites, exclui e inclui (um mínimo denominador comum e um máximo denominador comum), ao fixar uma direção, um jeito, um modo, que sugerem uma regra prática e ao mesmo tempo um modelo, como se dissesse: é assim que se faz, é assim que se é humano, que se é artístico. A partir dessas indicações iniciais podemos elencar algumas características implicadas pela predicação de algo como arte e como artístico. A expressão “Isso é arte”, dita de algo, implicaria dizer que isso é e tem sentido, que afeta e direciona o corpo, o agir, os sentidos, os sentimentos, os pensamentos; que é ficção, que não é um dado natural ou casual, implicando premeditação, intenção, enfim, que é um artifício ou criação; que é ludíbrio, que é um truque, um drible e um jogo, e exige espontaneidade e liberdade, portanto, que é jogo jogável, que é gracioso, mas também perigoso e azaroso,

no preciso sentido de que produz e provoca a surpresa, que é a disposição para o inesperado. Esse aspecto indica que se trata de algo que por natureza exige a iteração, e impossibilita a simples repetição, o que significa dizer que enquanto significante, é expressão ou proposição de uma virtualidade cuja atualização se faz por diferenciação, melhor dizendo, a repetição, ou revisitação, produz novos sentidos e dados. Ao dizer de algo “Isso é arte” também dizemos concomitantemente que isso é reflexivo, que é espelhamento, amostra do humano; esse algo revela não um ente, mas um quem, que o faz, percebe, executa, compreende, como humano, como mais humano. Mas de modo algum o humano aí implicado é um genérico ou comum, pois ao dizermos “arte” dizemos, sobretudo, que tem estilo, ou seja, que fixa limites, que estabelece modos e jeitos, enfim, que diz “É assim que se faz”, “É desse modo”, e exclui, separa, seleciona, estabelecendo balizas e parâmetros. Seja o Abaporu, seja o Catatau, diante disso, ao dizermos “Isso é arte”, queremos dizer que tem sentido, que é fictício, que é um ludíbrio, que é iterável, reflexivo, e que estiliza. Em suma, isso é um modo singular de manifestação do traço que distingue o humano do inumano. Desse modo, ao dizermos “Isso é arte”, dizemos várias coisas, mas de modo algum algo indeterminado ou indefinível. A forma dessa expressão é a das frases com uma referência não determinante. Introduz-se algo no discurso cujo ser não está previamente determinado, e a predicação é que constitui aquilo de que se fala como sendo isso ou aquilo. Esse tipo de frase depende do contexto essencialmente, e o seu sentido, por sua vez, apenas se determina pela retomada de sua referência pelos interlocutores e pelo reconhecimento, ou melhor, reiteração, da predicação. Por isso, ao dizermos que algo é arte, nós solicitamos ao interlocutor a cooperação na instauração e na reiteração do artístico, tendo como exemplar aquilo que foi introduzido como “arte”. O sentido e a forma da expressão “Isso é arte”, portanto, é similar ao sentido e a forma

das expressões “Isso vale R$ 10,00” e “Isso é futebol”. Trata-se de um ato performativo que constitui um X como um Y, instaurando uma dimensão de sentido e validade que apenas vigora na medida em que outros reconheçam esse ato e o reiterem. Na base da arte está a ação, na sua realização a co-ação; essa ação, por sua vez, não exige um sujeito, mas um co-agente, um atuador interativo. No entanto, alguém poderia questionar a ausência da noção de imaginação e imagem, tão caras à tradição. O problema está em delimitar o sentido do imaginar, da imaginação, enfim, de expressões como imagem, imagético, figura, figurativo, termos esses que têm na sua matriz semântica o ver e perceber. Não penso negar que a imaginação ocorra, concorra, nas artes de execução e performativas. O que estou sugerindo é que o sentido das obras de arte não seja reduzido ao sentido que se pode expressar e apreender imageticamente e sensorialmente. Especialmente quero recusar a localização do artístico apenas na imaginação e na sensibilidade. Ao contrário, penso poder mostrar que ocorre sentido mesmo quando a imaginação e a sensibilidade estão paralisadas e, sobretudo, que o agir e o dizer são fontes doadoras de sentido independentes capazes de dirigirem a sensibilidade e a imaginação para além delas mesmas. Claro, eu estou pensando tanto em Frege, quando recusa o psicologismo para explicar o conteúdo do dizer, quanto em Peirce e Heidegger, que recusam o representar e o mental interno para explicar o pensar e o compreender. Vejo neles a possibilidade de despsicologizar a arte e de retirar as representações internas e o figurativo da base do fazer sentido da obra de arte. A arte inclui o imaginário e o sensível, mas não se reduz a eles, embora a nossa consciência seja tal que o sentir e imaginar sejam inseparáveis do agir e do dizer, ainda assim é no plano básico do agir interativo e cooperativo que o sentido se faz para nós.

2.8 A arte como ficção do humano As considerações feitas até aqui têm o objetivo de deslocar o centro da esfera semântica da expressão “arte” em direção ao agir e ao atuar interativo, ao distanciá-lo do sentir, do perceber, do fazer e do dizer, com a indicação de que no gesto artístico está em operação a reiteração da forma dos atos pelos quais o humano se constitui como humano, no preciso sentido de que na arte está em jogo o exercício da atividade pela qual nós instauramos a cultura, o humano, a partir da natureza. Dito em termos clássicos: no ato do artista reitera-se o ato que fez do humano um animal metafísico. A teoria da arte como dimensão do humano contrapõe-se à teoria da arte como pathos e aesthesis e à teoria da arte como logos e linguagem, mas também àquelas apreensões da arte como expressão do ser ou da verdade, ou como configuração de sentido, bem como à teoria da arte como forma de vida de Wolheim, embora este chegue perto da minha meta ao afirmar que na arte ocorre ‘‘a realização das profundas, de fato as mais profundas propriedades da natureza humana” (WOLLHEIM, 1980, p. 234). Todavia, embora seja assim, desse modo ainda não se diz o que é preciso dizer, a saber, que na arte ocorre a ficção do humano. Isso dito no preciso sentido de que nas atividades artísticas reitera-se a forma dos atos pelos quais o humano se instaura a partir do inumano, como um artifício inesperado frente ao natural. Por isso a equivocidade da palavra “arte” e a impossibilidade de se apreender e definir os conceitos de arte a partir de procedimentos de generalização e abstração, pois não há uma propriedade ou conjunto de propriedades que seja o cerne do humano. O humano é uma surpresa, um artifício surpreendente, em relação ao conjunto de entidades e propriedades naturais. Em termos técnicos, o humano é indedutível da natureza, e isso se mostra sobretudo na arte, que não é inferível de quaisquer conjuntos de propriedades e relações naturais ou técnicas.

A minha proposição é que o cerne constitutivo do artístico é iterabilidade, a repetibilidade não monotônica, no sentido de que a sua repetição produz novos sentidos, novos nexos, sentidos e significados imprevisíveis. Uma obra de arte é o resultado de um ato que nos solicita como agentes interativos, ato esse que exige como complemento para sua realização um outro ato. Ou melhor, a arte é essa incitação ao gesto de autoinstauração coletiva do humano, é essa ação de afecção do humano em nós. Daí que as obras paradigmáticas tenham sempre o traço do direcionamento, do sentido cogente, do agenciamento: a obra artística apela, dirige a atenção e o pensamento, afeta e incita ao ato de reiteração de si dos humanos em relação de co-atividade. Todavia, como o humano em nós não é um dado ou um dom natural, mas um ficta, uma institutio, que apenas se mantém e conserva na medida em que seja reiterado em cooperação comunitária, na arte se exercita a forma mesma de instauração do ser humano. Por isso mesmo, o sentido e o significado, o conteúdo da arte, o deleite associado ao artístico, não é um prazer estético nem metafísico, mas prático, provocado e realizado no plano da iteração interativa de agentes, não de sencientes ou cognoscentes, enquanto efetivação da liberação em relação à natureza para uma atividade que apenas se sustenta enquanto é reiterada. O cerne do artístico é a co-ação de agentes interativos, tal como se dá no dançar.

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