A formação da aristocracia visigoda: um estudo de caso a partir da relação com o poder central no Reino Visigodo de Toledo (séculos V-VIII)

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A formação da aristocracia visigoda: um estudo de caso a partir da relação com o poder central no Reino Visigodo de Toledo (séculos V-VIII)

Patrick Zanon Guzzo


Introdução:

Esta comunicação tem por objetivo apresentar a versão inicial de um projeto que será submetido ao Programa de Pós-Graduação em História da UFF em futuro próximo, pelo qual se pretende problematizar a formação da classe aristocrática no Reino Visigodo de Toledo, entre os séculos V e VIII. Assumimos a perspectiva fundamental de que as relações com o poder régio constituíam um mecanismo essencial da afirmação, reprodução e alargamento das bases de poder da classe aristocrática visigótica no período em questão.
Em nossos estudos, dialogamos diretamente com a tradição marxista de análise historiográfica, ao compreender que as lutas de classe são a força motriz dos processos históricos. Nesse sentido, cabe aos historiadores, entre outras coisas, evidenciá-las ao longo do tempo, bem como investigar os elementos que as identificam no bojo de tais processos. É pensando neste preceito que procuramos vislumbrar a possibilidade de traçar os elementos convergentes e divergentes que constituem tanto a classe aristocrática como um todo, bem como as frações desta no recorte histórico supracitado.
Posto isso, a presente comunicação se divide em dois tópicos: no primeiro, discorreremos brevemente sobre a contextualização do tema a ser trabalhado, considerando a evolução política da aristocracia visigoda desde sua penetração no limes romano até a derrocada do Reino Visigodo de Toledo, bem como as possibilidades de caracterização da classe aristocrática a partir das suas relações intraclassistas neste ínterim. Em seguida, apresentaremos as fontes primarias que nos parecem essenciais ao desenvolvimento da análise proposta.

Apresentação da problemática:

A organização política dos povos germânicos que se instalaram no interior das províncias ocidentais do Império Romano, de um modo geral e em função de elementos diversos, favorecera a valorização da atividade guerreira como um aspecto determinante em sua articulação, destacando-se a capacidade de lutar como um dos elementos definidores das relações de poder.
A fidelidade dos homens livres às suas lideranças passava pela questão militar de maneira tal que o ápice da hierarquia social se estabelecia com base em instituições tipicamente guerreiras. O comitatus – vínculo pessoal que unia os guerreiros a um chefe –, por exemplo, fora uma influência importante para o surgimento da nova ordem, uma vez que em torno as tais chefes iriam cristalizar-se os futuros membros da aristocracia e, inclusive, os monarcas posteriores.
Esta estreita relação entre a política e o belicismo fez com que as lideranças destes povos tivessem progressivamente ressaltada a sua função de chefes guerreiros, ficando estabelecido assim o caráter personalista das relações políticas, rearranjadas conforme a ascensão e queda destes líderes.
A original independência dos guerreiros germânicos esteve expressa no caráter "autônomo" das suas unidades produtivas no "modo de produção germânico". A respeito desta organização social característica dos povos germânicos nos primeiros séculos do seu contato com a ordem romana (em especial, a partir do século I a.C.), Perry Anderson nos informa que
um modo de produção comunal primitivo prevalecia entre eles. A propriedade privada da terra era desconhecida: a cada ano os líderes de uma tribo determinavam que parte do solo comum deveria ser cultivada e distribuíam porções dela aos clãs respectivos, que as levariam a se apropriar dos campos coletivamente: a redistribuições periódicas evitavam grandes disparidades de riquezas entre os clãs e as famílias, embora os rebanhos fossem propriedade particular, que proporcionavam as fortunas dos guerreiros líderes das tribos.

Marx salienta ainda que, neste tipo de sociedade, "cada lar, em separado [...] constitui um centro independente de produção (manufatura, simplesmente, como o trabalho doméstico, subsidiário, das mulheres etc.)" , de modo que se estabelece uma ligação flexível entre os lares (desde que os mesmos pertençam à mesma tribo), que ocasionalmente se unem "para a guerra, a religião, a solução de disputas legais etc." , ou para uso de pastos comunais, territórios de caça...
No entanto, estes princípios de estruturação, forjados ao longo de séculos de história, foram progressivamente desarticulados à medida que se aprofundavam as suas relações com o Império Romano, e pareciam já consideravelmente superados na medida em que esses povos se estabeleceram nos territórios outrora imperiais do ocidente europeu. A organização política de cunho militar alcançara êxito em tempos de guerra de conquista, constituindo até, potencialmente, um germe da estruturação que seria consecutiva às ocupações realizadas pelos germanos, ainda que, entre aquelas tribos, "nenhuma jamais conhecera um Estado territorial duradouro; todos tinham religiões pagãs ancestrais; a maioria não tinha língua escrita; poucos possuíam qualquer sistema de propriedade articulado ou estabilizado".
O novo contexto histórico – entendido aqui como o da desarticulação do Império Romano – legou aos conquistadores a fixação nas terras que constituíam as antigas províncias ocidentais do império. Esta nova conjuntura teve como resposta política a criação de reinos, uma vez que "a formação do Estado agora era inevitável e, com ela, a coercitiva autoridade central sobre a comunidade guerreira livre".
É a partir deste momento que se dá a formação do Reino Visigodo de Toledo, estabelecido na Península Ibérica desde meados do século V até o início do VIII. A respeito da sua "história política", os autores costumam configurá-la em dois grandes blocos principais, como faz García Moreno:
Neste quase meio século de história do Reino de Toledo [de meados do século VI a meados do VII] pode-se assinalar dois momentos que aparecem como claras inflexões de caráter constituinte. A primeira delas está representada pelos reinados sucessivos de Leovigildo e de seu filho Recaredo (c. 569 – 601), enquanto que a segunda está pelos de Chidasvinto e seu filho Recesvinto (642 – 672).
Tais momentos são separados por lutas entre a aristocracia e os sucessivos monarcas que tentaram impor as determinações criadas por Leovigildo,
pois o reforço do poder real, desejado por este último, tendo por base [de seu projeto político] a centralização da Monarquia de caráter justiniana haveria de se chocar com um poder nobiliárquico fortemente ancorado em tradicionais clientelas militares germânicas, nas aplicações militares nobiliárquicas dos senadores tardorromanos e nas dependências sociais e econômicas engendradas pela propriedade latifundiária em vias de senhorialização.
Nesta conjuntura, as relações entre os reis e os aristocratas estabeleceram-se como um novo aspecto definidor da classe aristocrática, o que chama a atenção no caso dos visigodos por suas especificidades históricas. Estabelecem-se, assim, novas premissas, de modo a impor às classes sociais a elaboração de uma nova autorreferenciação, derivando, destas novas condições históricas, uma aparente contradição essencial: toda tentativa de reforço do poder central orquestrada pelos reis visigodos parecia minar as bases do seu próprio poder, fortalecendo a autonomia e a progressiva afirmação social da classe aristocrática guerreira.
Aprofundando um pouco mais a questão da caracterização desta aristocracia, pautamo-nos, até aqui, pelas referências de Santiago Castellanos e Inãkin Martín Viso, bem como as de Céline Martin. Ambos os trabalhos partem da perspectiva de caracterização da elite visigoda enumerando, como elementos para a apreensão destes fatores, a relação entre o poder central e o local (tomando por base de tal discussão uma análise de âmbito regional), bem como a definição, reprodução e renovação, participação no poder institucional e ainda a autorrepresentação cultural como possibilidades de análise da identidade classista em nosso recorte temporal.
No artigo "The local articulation of central power in the north of the Iberian Peninsula (500–1000)", os autores propõem um novo quadro analítico para o estudo da configuração do poder político na zona norte da Península Ibérica que abarca toda a Alta Idade Média. Em sua proposta os autores partem da premissa de que as relações no campo da política são acima de tudo relações sociais, de modo que as bases fundamentais da estrutura política pós-romana na Península Ibérica não se alicerçavam no conflito entre os poderes locais e central, mas na constituição de várias vias de colaboração entre si. Acerca deste tema os autores nos informam a respeito da estrutura militar que vigorava neste contexto e expõe o quanto os reis deveriam se empenhar no sentido de estabelecer boas relações com os magnates locais. Derivam daí várias determinações que redimensionam as estruturas dos poderes vigentes, a fim de acomodar os pontos de convergência e tensões entre os membros da classe aristocrática.
Considerando esta nova perspectiva de abordagem do problema sobre o qual aqui nos debruçamos, abre-se um leque imenso de possibilidades de verificação dos elementos que constituem a autorreferenciação da elite visigoda, uma vez que do conjunto das interações estabelecidas entre estas emana um novo conjunto de costumes, práticas, ritos que a diferencia das demais classes.
Celine Martin, por seu turno, no artigo "L'historiographie des élites hispaniques du VIe au Xe siècle", após uma breve contextualização da produção historiográfica a respeito do tema expõe uma série de considerações a respeito das possibilidades e limites a cerca dos estudos sobre a elite visigoda.
Ao tratar do assunto a autora nos coloca a par das principais discussões a respeito do mesmo. Ao tomarmos contatos com tais debates, percebemos as possibilidades de abordagem do tema, como a questão da goticização, da distribuição geográfica das elites como elementos identitários, ou mesmo a endogamia e a educação como componentes de reprodução e renovação desses grupos, dentre outros pontos levantados.

Fontes:

As principais fontes primárias que serão utilizadas na pesquisa são as atas dos concílios eclesiásticos realizados na península durante a vigência do reino e o código legal visigodo (Forum Judicum), uma vez que nestes residem as manifestações oficiais da classe dominante. Outra fonte a ser utilizada é a Historia Wamba Regis, de Julián de Toledo, dado que nela se encontra a narrativa de um momento destacado da história dos visigodos no qual os atritos entre os nobres ganham posição de destaque.
A compilação das resoluções conciliares a serem consultadas encontra-se na obra Concílios Visigóticos e Hispano-romanos. O tomo, que abrange os concílios realizados na Península Ibérica desde o ano 300/306 (em Elvira) até 702, o XVII de Toledo, reúne todas as atas produzidas nestes encontros, sendo, pois, fonte importantíssima na realização dos fins a que este estudo se propõe, uma vez que estão registram as tensões internas que marcaram a relação entre os vários segmentos da aristocracia visigoda.
O Código Visigodo (Forum Judicum), por seu turno, é uma compilação de leis que aborda temas que vão desde assassinatos até a perseguição de hereges, delimitando as punições aos membros da sociedade que transgredissem as regras de convívio. O código reúne leis criadas e reelaboradas ao longo dos vários reinados, sendo, pois, um reflexo das transformações sociais pelo prisma dos legisladores, isto é, da classe dominante, os únicos que faziam as leis neste contexto. Sendo assim, debruçar-se sobre as leis deste período é uma iniciativa essencial para estabelecer as iniciativas do Estado relacionadas ao papel social daquela aristocracia.

Vale destacar, por exemplo, o aspecto sectário do código, que apresenta uma série de punições diferenciadas para cada classe social, sendo, deste modo, subsídio indispensável para a análise das diferenciações promovidas entre cada uma delas.
Outra fonte importante para o nosso tema é aquela relativa à traição do duque Paulo, a Historia do Rey Wamba, escrita por Julián de Toledo (Historia Wamba Regis). Neste texto observam-se as lutas no seio da sociedade nobiliárquica visigoda, num embate travado pelo Rei Wamba e o duque Paulo, acusado de traição, contando com isso assumir o reino com a ajuda de povos vizinhos. A Historia Wamba Regis ainda demonstra em suas entrelinhas a maneira pela qual a traição é encarada pelas classes dominantes, em especial pelos membros do clero.

IV. Conclusão:

Como se pretendeu demonstrar aqui a versão inicial de nosso projeto teve como objetivo delinear as possibilidades e limites de uma abordagem da aristocracia visigoda tendo como objeto de tal estudo, no quadro das articulações estabelecidas entre os poderes locais e o central, os principais elementos que revelam a distinção social da aristocracia na sociedade visigótica do período em questão.








Tal filiação teórica se dá pela própria formação e predileção do autor ante as demais correntes historiográficas. Desta forma, nos propomos a analisar o quadro social a partir de uma caracterização classista ancorada na perspectiva inaugurada por Thompson pela qual entendemos que "Classe não é, como gostariam alguns sociólogos, uma categoria estática: tais e tais pessoas situadas nesta e naquela relação com os meios de produção, mensuráveis em termos positivistas ou quantitativos. Classe, na tradição marxista, é (ou deve ser) uma categoria histórica descritiva de pessoas numa relação no decurso do tempo e das maneiras pelas quais se tornam conscientes de suas relações, como se separam, unem, entram em conflito, formam instituições e transmitem valores de modo classista. Nesse sentido, classe é uma formação tão "econômica" quanto "cultural"; é impossível favorecer um aspecto em detrimento do outro, atribuindo-se uma prioridade teórica" in THOMPSON, E. P. As Peculiaridades dos Ingleses e Outros Artigos Campinas, Editora da Unicamp, 2001 p. 260.
Leia-se os Concílios Visigóticos e Hispano-Romanos, o Forum Judicum e Historia Wamba Regis.
ANDERSON, Perry. Passagens da Antigüidade para o Feudalismo. SP, Editora Brasiliense, p.103
MARX, Karl. – Formações Econômicas Pré-Capitalistas. SP, Editora Paz e Terra S/A, p. 76.
MARX, Karl. – Idem, p. 77.
ANDERSON, Perry. – op. cit, p.109
ANDERSON, Perry. – op. cit, p. 111.
MORENO, Luiz A. Garcia. – op. cit, p. 112.
Ibidem, p. 112.
Um momento da História Visigoda que ilustra bem esta contradição é o reinado de Recaredo uma vez, segundo Garcia Moreno, "(...) com Recaredo se assiste a primeira tomada de consciência clara da profunda contradição que afligirá o Reino Visigodo ao longo de todo o século seguinte: Embora desejasse reforçar a qualquer custo o poder da Monarquia e de suas famílias, os soberanos godos se veriam obrigados, para isto, a pactuar coma nobreza laica e eclesiástica, com evidentes benefícios para esta última; o que em última análise será a origem da debilidade estrutural do poder central do Estado Toledano". MORENO, Luiz A. Garcia. – op. cit, p.132.
Castellanos S, Viso IM. 2005. The local articulation of central power in the north of the Iberian Peninsula (500–1000). Early Medieval Europe 13(1):1-42.
Martin C. 2003. L'historiographie des élites hispaniques du VIe au Xe siècle. In: Les Élites dans le haut Moyen Âge VIe-XIIe siècle. Marne-la-Vallée et Paris 1, 27 et 28 novembre. Disponível em: http://lamop.univ-paris1.fr/spip.php?article438
A respeito desta questão legal os autores nos informa que "As Leges Visigothorum, nossas principais fontes sobre este tema, sugerem que um "exército público" como tem sido representado por historiadores "fiscais" não existiu. As leis do Rei Wamba (672-80) e do Rei Ervígio 680-7) são conclusivas aqui".
Concílios Visigóticos e Hispano-Romanos. Ed. Bilíngüe (Latim-Espanhol) de José Vives. Barcelona-Madri, CSIC, 1963.
Sancti Iuliani Toletanae Sedis Episcopi Opera, CXV, Pars I, Typographi Brepols, Bélgica, MCMLXXVI. Trad. do latín por Ximena Illanes.

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