A formação de Artilheiros e de Engenheiros em Portugal e na sua Colônia Americana – Um estudo comparativo (1777-1808)

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A FORMAÇÃO DE ARTILHEIROS E DE ENGENHEIROS
EM PORTUGAL E NA SUA COLÔNIA AMERICANA –
UM ESTUDO COMPARATIVO
(1777-1808)

Ten.-Cel. Ped. Profª Drª Maria Luiza Cardoso (UNIFA[1])

Devido à morte de D. José I, em 1777, o governo do seu primeiro-
ministro, o Marquês de Pombal (marcado pelas idéias dos enciclopedistas
franceses), foi seguido por um período denominado de "viradeira", quando D.
Maria I passou a reinar em Portugal (1777-1816), sendo substituída, em
1792, por seu filho D. João, devido a problemas psiquiátricos. Tal período
exprimiu uma alteração drástica nas relações que passaram a determinar o
poder e as dinâmicas econômica e social, desencadeadas no reinado anterior.

D. Maria I extinguiu a Aula de Fortificação da Corte (ou Academia
Militar) e criou, em seu lugar, em 5 de agosto de 1779, a Academia Real de
Marinha.
A nova instituição foi criada com a finalidade de preparar oficiais
para a Marinha de guerra e mercante e, também, para o Exército.
Os indivíduos que aspiravam tornarem-se oficiais engenheiros, e não,
oficiais de Marinha, tinham agora que freqüentar o curso de matemática da
nova Academia, constituído das seguintes matérias: aritmética, geometria,
trigonometria, álgebra, e, após esse conteúdo, "statica, dynamica,
hydrostatica, hydraulica e optica; depois do que [ou seja, depois de
formados com os oficiais de Marinha], passariam a ouvir as lições de
fortificação e engenharia, e a instruir-se no desenho[2]; [...]". (Grifo
nosso, RIBEIRO, 1872, p. 29). Todavia, as disposições do decreto de 1779,
com referência às aulas de fortificação, engenharia e desenho, "nunca foram
cumpridas." (Ibidem).
A carta de lei citada anteriormente estabelecia que o curso da
Academia, que era matemático, deveria durar três anos. O seu conteúdo
ficaria a cargo de três professores, um para cada ano. (Ibid., p. 33).
Quanto aos alunos, o decreto estabelecia que para serem admitidos na
Academia deveriam ter, no mínimo, "quatorze annos completos", bem como
dominar as "quatro regras fundamentaes da arithmetica, verificado por meio
de exame pelo professor de geometria da academia". (Ibidem).
Para estimular os alunos ao estudo, foram criados 24 "partidos"[3],
"sendo 12 para os que se destinassem á marinha, e 12 para os que se
destinassem aos postos de officiaes engenheiros". (Ibid., p. 35).
Os alunos das Aulas Regimentais poderiam se apresentar na Academia
Real de Marinha, desde que portando certidões de freqüência e exame dos
seus respectivos lentes.
A partir daí, seriam "examinados pelos lentes da [Real Academia]
[...]; e, ficando approvados, [...] estariam desde logo habilitados para
entrar na escola dos engenheiros, e gosar das graças e privilegios
concedidos aos matriculados e approvados na mesma Academia de Marinha".
(Ibid., p. 36).
No que se refere aos professores, "exigia-se o curso completo de 5
anos da Universidade [de Coimbra] e o licenciamento". (SILVA, 1937, p. 19).
A lei, também, considerava os estudos efetuados na Faculdade de
Matemática da Universidade de Coimbra equivalentes ao da Academia Real de
Marinha, uma vez que "não é da minha real intenção que nas aulas de
mathematica da universidade de Coimbra haja diminuição do numero dos
estudantes, [...]". (Apud ANTUNES, 1886, p. 29).
Como podemos perceber, os estudos de navegação sofreram uma
atualização; mas, os estudos da artilharia e da engenharia ficaram
deficientes: "O exercito continuava atrazadissimo e em cada anno se ia
accentuando mais a deficiencia da sua instrucção technica, particularmente
nas armas especiaes, como mais exigentes". (SIMÕES, 1892, p. 7).
A fim de sobreviverem, as escolas regimentais (que ofereciam aulas de
artilharia e/ou de engenharia) procuraram se atualizar. Em 1786, o
Brigadeiro Christiano Frederico de Weinholtz, chefe do Regimento de
Artilharia da Corte, pediu autorização à rainha para substituir os livros
antigos, principalmente, os do curso de matemática de Belidor, adotados
desde a época do Conde Lippe, pelos de Bezout, mais modernos, que estavam
sendo ensinados na Academia Real de Marinha. (PORTUGAL, 1786).
No final do século XVIII, o corpo de oficiais de engenharia se separou
do corpo de oficiais da artilharia e da infantaria. Em 1787, foi criado o
Corpo de Engenheiros, inicialmente, composto só de oficiais. Em 1792[4],
esse Corpo passou a denominar-se Real Corpo de Engenheiros, "creando-se
tambem a classe dos subalternos, [...], sendo-lhe dado regulamento para os
seus serviços e disciplina [somente] em 12 de fevereiro de 1812". (ANTUNES,
1886, pp. 9-10).
Foi a partir da Revolução Francesa (1789-1799) que a rainha e sua
côrte principiaram a dar atenção ao exército.
D. Maria I, sabendo que os estudos de fortificação e desenho não
estavam sendo oferecidos aos oficiais engenheiros que concluíam a Academia
Real de Marinha, resolveu criar, em 2 de janeiro de 1790, na cidade de
Lisboa, a Academia Real de Fortificação e Desenho (ARFAD). (RIBEIRO, 1872,
p. 28). Essa instituição tinha a finalidade de proporcionar estudos
militares "de que necessitam os officiaes das differentes armas do
Exercito". (Ibid., pp. 27-28).
A carta de lei encarregou a "direcção e administração [do
estabelecimento] ao Engenheiro Mór e Inspector Geral, com um Corpo
cathedratico de seis Lentes e seis Substitutos". (ALMEIDA, 1856, p. 20).
Segundo Machado (1979), a Academia foi instalada, inicialmente, no
Arsenal do Exército. (p. 18).
Cordeiro (1895), também, aponta como causas da criação da Academia a
falta de unidade de ensino das aulas regimentais, o despreparo dos seus
instrutores e o atraso "em relação ao avanço que a artilheria já tinha na
Europa, [...]". (p. 266).
No que se refere à falta de unidade no ensino, podemos observar que,
a partir de meados do século XVIII, a evolução da guerra impôs a
necessidade de se promover uma formação comum a todos os futuros chefes
militares. Assim, para ascender ao oficialato, passou a ser obrigatória a
freqüência a um estabelecimento de ensino superior militar.
O curso da ARFAD foi planejado, em 1787[5], com a duração de dois
anos. Todavia, "a riqueza das matérias que deveria leccionar, tornavam os
dois anos insuficientes para o aprofundamento conveniente e preparação
adequada do aluno." (CARVALHO, 1995, p. 109). De acordo com os estatutos
aprovados em 1790, o curso passou a ter a duração de quatro anos para
aqueles que fossem seguir a carreira militar na engenharia e na artilharia,
e de três anos, para aqueles que optassem pela cavalaria e pela infantaria.
Com o tempo, o governo entendeu que "devia considerar curso para
engenheiros o de quatro annos, o de tres para a artilheria e de dois para a
infanteria e cavallaria, o que foi estabelecido pela recusa da licença para
a frequencia dos annos seguintes, e não por ordem ou legislação escripta".
(CORDEIRO, 1895, p. 267).
Segundo um mapa de 20 de março de 1790, foram matriculados na
Academia, no seu primeiro ano, 44 discípulos, sendo que 38 estavam
freqüentando o estabelecimento naquele momento. (CARVALHO, 1995, p. 109).
No tocante à grade curricular, esta era assim distribuída:

1º. Anno: fortificação regular, o ataque e defeza das
praças, e os principios fundamentaes de qualquer
fortificação.
2º. Anno: fortificação irregular; fortificação effectiva e
fortificação de campanha.
3º. Anno: theorica da artilheria, das minas e contraminas,
e sua applicação ao ataque e defeza das praças.
4º. Anno: architectura civil, o córte das pedras e
madeiras, o orçamento dos edificios, e tudo o que respeita
ao conhecimento dos materiaes que entram na sua
composição; e bem assim, explicação dos melhores methodos
de construcção de caminhos e calçadas; e, finalmente, a
hydraulica, a architectura das pontes, canaes, portos,
diques e comportas. (RIBEIRO, 1872, pp. 29-30).

Cada lente escolhia um livro, "pois as postilas (sebentas) levariam
muito tempo a escrever e trariam muitos inconvenientes". As traduções dos
livros deveriam ser realizadas como na Universidade de Coimbra. (CARVALHO,
1995, p. 110).
Também, de acordo com os estatutos, deveria existir na Academia "uma
colecção de livros sobre fortificação, ataque e defesa de praças,
artilharia e castramentaçâo, porque um compêndio é insuficiente para tratar
com profundidade as diversas matérias." (Ibidem). Dessa forma, os alunos
poderiam "analisar os diversos sistemas e compará-los". (Ibidem).
Além dos livros, os alunos deveriam ter acesso a instrumentos para
realizarem experimentações. (Ibidem). Também, deveria existir "duas
maquetas de fortificação, em escalas diferentes, para os alunos poderem
idealizar uma obra com aquelas características". (Ibidem).
Os alunos deveriam começar a estudar "às 9 horas, entre os meses de
Novembro e Fevereiro, e 1 hora mais cedo nos restantes". (Ibid., pp. 111-
112). Cada aula deveria durar uma hora e meia, e o tempo seria distribuído
da seguinte forma: "metade, de perguntas dos alunos e repetição sobre a
anterior, e a outra sobre o tema daquele dia". (Ibid., p. 112).
Infelizmente, não sabemos o horário em que terminava o período escolar. Na
Academia de Marinha, as aulas deveriam terminar às 10h 30min. (Ibidem).
Aos sábados e no final de cada mês, os alunos deveriam realizar
exercícios literários sobre os assuntos discutidos na semana. Segundo
Carvalho (1995), "Nesta prova, intervinham 9 elementos: 3 defendentes e 6
arguentes; sempre tirados à sorte." (Ibidem). Cabe ressaltar, que esses
exercícios "eram muito rigorosos e aos faltosos, era-lhes aplicado uma
penalização de falta dobrada, agravando os que tinham partido, além daquela
punição, com coima do dobro do que vencem por dia." (Ibidem).
Ao final de cada ano letivo, os alunos deveriam realizar um exame,
que tinha a duração de uma hora. A avaliação deveria ser feita por um júri
de três membros, "que avaliaria 1 das 3 matérias fixadas para o exercício e
colocadas em cofre forte com 24 horas de antecedência". (Ibidem).
Os lentes e seus substitutos eram obrigados "a sair ao campo com os
seus discipulos, quando a estação o permitisse, para os exercitarem na
pratica das disciplinas que ensinassem". (RIBEIRO, 1872, p. 30).
Interessante é que desses exercícios deveriam participar todos os lentes,
"para se coadjuvarem, uns aos outros; mas o lente de cada anno é quem devia
dirigir o exercicio que lhe respeitava". (Grifo nosso. Ibidem). Hoje,
chamamos isso de interdisciplinaridade, que é um importante objetivo
educacional.
Os exercícios práticos deveriam envolver atividades de "topographia,
fortificações e sapas, construcções de obras, castrametação, manejo das
bôcas de fogo e construcção de baterias". (SIMÕES, 1892, p. 9). Todavia,
"As praticas não tiveram nunca um grande desenvolvimento. Servia de
desculpa o facto de se haver perdido o material de campo no incendio do
arsenal do exercito em 1794, onde estava alojada a academia; e não possuir
meios para o adquirir". (Ibidem).
Quanto aos professores e substitutos, de acordo com os estatutos,
deveria haver um lente, acompanhado de um substituto para cada uma das
matérias citadas. Também, deveria "haver um lente de desenho, encarregado
de ensinar o que os alumnos fossem aprendendo nos tres primeiros annos, e
bem assim de ensinar a copiar e reduzir plantas, representar perfis,
configurar diversos terrenos, e (diziam os estatutos) a traçar com
perfeição a letra redonda". (Ibid., p. 30).
Os lentes e discípulos tinham os mesmos privilégios que os da Academia
Real de Marinha e, por extenção, que os da Universidade de Coimbra. (SILVA,
1937, p. 19).
O estatuto não estabelece as condições para a nomeação dos lentes.
Segundo Carvalho (1995), estas deveriam ser as mesmas adotadas para os
lentes da Academia Real da Marinha. Assim, o candidato deveria possuir o
"curso de Matemática da Universidade de Coimbra (5 anos), com a
licenciatura. Para a admissão, teriam de ser propostos pela Universidade de
Coimbra e pelos 3 professores da Academia Real de Lisboa". (p. 110).
No que se refere aos alunos, os que gostariam de ser engenheiros ou
artilheiros deveriam apresentar certidão de aprovação "no 1º. e 2º. anno do
curso mathematico da Academia Real de Marinha". (RIBEIRO, 1872, p. 30).
Também, deveriam possuir "uma constituição robusta; [sem qualquer] defeito
na vista, ou alguma tremura nas mãos". (Ibid., p. 31). Já aqueles que se
destinavam a oficiais de cavalaria ou infantaria, deveriam apresentar
certidão de aprovação somente "no 1º. anno da indicada academia". (Ibid.,
p. 30).
Quanto aos alunos das aulas regimentais, estes poderiam ser admitidos
na Academia de Fortificação desde que fossem examinados e aprovados pelos
lentes da Academia Real da Marinha.
Cabe ressaltar que todos os candidatos tinham que demonstrar
conhecimento suficiente da língua francesa.
Pôde-se observar que os alunos que freqüentavam a Academia possuíam as
seguintes origens: ou eram Cadetes (filhos de nobres ou de famílias
abastadas), ou eram militares que tinham começado a carreira como
Soldados[6], ou eram alunos civis. (CARVALHO, 1995, p. 114).
Para incentivar os alunos a estudar, o estatuto previa a distribuição
de seis partidos em cada uma das aulas de Fortificação, Artilharia e
Hidráulica, "para premiar os alumnos de maior merecimento". (RIBEIRO, 1872,
p. 31). Os prêmios deveriam ser dados, de preferência, aos alunos da
engenharia e da artilharia.
A Academia deveria possuir um secretário, que "ao mesmo tempo
desempenhasse as funcções de guarda livros, archivista e bibliothecario".
(Grifo nosso. Ibidem). O arquivo destinava-se a guarda "não só [dos] [...]
desenhos feitos pelos alumnos, se não tambem [de] todas as plantas, cartas
e projectos militares, de que fossem incumbidos os officiaes engenheiros".
(Ibidem). Também, "Devia haver um porteiro, e dois guardas da academia".
(Ibidem).
Mais tarde, em 1794, foi criada a função de diretor, "com o fim de
prover á regencia e aperfeiçoamento dos estudos da aula de desenho d'esta
academia, e de estabelecer na mesma academia a indispensavel escola de
gravado". (Ibid., p. 370).
Em princípio, a inspeção da Academia deveria ficar a cargo do
Engenheiro-Mór do reino. Na sua ausência, deveria ser nomeado um inspetor
que fosse engenheiro.
Os alunos que saíam da Academia como oficiais engenheiros,
primeiramente, "passavam a servir como tenentes aggregados nos regimentos
de infanteria durante dois annos, onde deviam aprender tudo que é relativo
á tactica e ao serviço de tropas". (SIMÕES, 1892, p. 9). Após esse período,
eram promovidos a primeiros tenentes e ficavam agregados dois anos na
artilharia. Só depois desses "estágios" eram designados "a servir como
ajudantes aggregados a algumas das brigadas do corpo de officiaes
engenheiros em tirocinio, no fim do qual eram confirmados officiaes
effectivos das mesmas brigadas". (Ibidem).
Quanto à América portuguesa, constatamos que, em 1776, o então
capitão de artilharia José Gonçalves Galeão foi enviado para a Bahia como
'oficial instruido', a fim de "integrar a reorganização do Regimento de
Artilharia nos moldes de Lippe e estabelecer a instrução metódica da
artilharia". (CURADO, 1997, p. 505).
No ano seguinte, o Governador encarregou-lhe de ministrar "a segunda
Aula de Matemática para haver oposição com a outra que havia, de que é
lente o sarg.-mor engº José António Caldas". (Ibidem).
Em 1778, Galeão já estava ensinando a arte da artilharia para "alguns
oficiais, oficiais inferiores e soldados que desejavam adquirir, por meio
dos estudos, as luzes indispensáveis para serem bons artilheiros, tanto na
teórica como na prática...". (Ibidem).
Com o falecimento de Caldas (1782), Galeão ficou responsável pela
instrução do regimento.
Nessa época, as obras de Belidor, mandadas adotar nas aulas dos
regimentos de artilharia pelo Conde Lippe, em 1763, já estavam
ultrapassadas, como mencionado anteriormente. Na Universidade de Coimbra e
na Academia Real de Marinha já se adotava o curso de matemática de Bezout.
Todavia, o plano de 1763 ainda não tinha sido atualizado e os regimentos do
reino e das suas colônias eram obrigados a ensinar pelos livros antigos.
Apesar dessa proibição, as obras de Bezout eram ensinadas na Aula do
Regimento de Artilharia da Bahia (!!!).
Cabe ressaltar que, na América portuguesa, o livro mais adotado do
general francês Bernard Forest de Belidor (1697-1761) foi "Geometria
Prática", que fazia parte do seu Curso de Matemática, em associação com o
livro "Aritmética" de Bézout. Segundo Valente (1997), Belidor trata, no
primeiro livro (ou capítulo) dessa sua obra, intitulado Introdução à
Geometria, "os vários temas iniciais da álgebra, da geometria e da
aritmética compondo um texto didático acessível aos alunos aos quais nada
era praticamente exigido além do conhecimento prévio das quatro operações
fundamentais da aritmética". (p. 65). Todavia, o restante do livro enfoca a
geometria, tão necessária às atividades de artilheiros e engenheiros. O
modo como escreveu o texto "liga-se estreitamente à escrita da forma como
ministrava suas aulas. O livro passa a ser uma espécie de transcrição das
aulas. Tudo muito detalhadamente explicado [até mesmo em função do baixo
nível de conhecimento matemático que os alunos possuíam]". (Idem, p. 68).
A tradução do curso matemático do professor Etienne Bezout (1730-1783)
para a língua portuguesa ocorreu quando da criação da Faculdade de
Matemática da Universidade de Coimbra, em 1772: "Na criação da Faculdade
reformam-se todos os saberes em ciências e também mudam-se os livros
utilizados até então". (Idem, p. 76).
Enquanto Belidor insere num único volume conhecimentos acerca da
geometria e da álgebra, por exemplo, Bezout elabora manuais independentes
para os diversos assuntos matemáticos. Portanto, no volume destinado à
Aritmética, "constam somente números e expressões numéricas. Assim, muitas
vezes as explicações cujo intuito é a generalização terminam sempre por
serem longas, mas assim mesmo, bastante didáticas". (Idem, p. 81).
No tempo em que, em Portugal, o curso de Bezout substituiu o de
Belidor no ensino da matemática, na América, os livros desses autores foram
adotados em conjunto. Belidor foi empregado para o ensino da geometria e
Bezout para o da aritmética.
De acordo com Valente (1997), "A adoção de Bézout e Bélidor inaugura
no Brasil a separação Aritmética e Geometria". (Idem, p. 83). Mais tarde, a
Álgebra também se tornará independente. Cabe ressaltar, que esse modo de
ensinar a matemática, no meio militar, irá influenciar o seu ensino no meio
civil, durante o século XIX. (Ibidem).
No que se refere a Pernambuco, no ano de 1788, D. Tomaz de Melo,
Governador e Capitão-General da Capitania, criou uma Academia Militar que,
infelizmente, teve curta duração. De acordo com os seus estatutos,
aprovados em 1º. de março desse ano, a instituição foi criada para ensinar
"aquelas partes mais essenciais do Curso Matematico de Belidor e Bezout,
que necessario seja para qualquer ação do real serviço; [...]". (Grifo
nosso. Estatutos transcritos por PIRASSINUNGA, 1958, pp. 80-84).
Como podemos perceber, o governador implantava um curso matemático
com a bibliografia que estava sendo estudada no curso da Academia Real de
Marinha. Seu primeiro lente foi João Rabelo de Sequeira Aragão, engenheiro
da capitania.
Quanto aos discípulos e às condições que deveriam possuir para serem
admitidos, o estatuto informa que "Os lentes da aula admitirão para seus
discipulos só aqueles sujeitos que [...] se acharem previamente exercitados
e expeditos na pratica das quatro regras fundamentais da Aritmetica, quer
sejam militares ou paisanos, [...]".(Grifo nosso. Ibidem).
Em 1795, foi criada uma Aula de Geometria, por determinação régia,
provavelmente, para substituir a Academia, e seu primeiro professor foi o
capitão de infantaria Antonio Francisco de Bastos (VITERBO, 1922, p. 249).
No Rio de Janeiro, durante o vice-reinado de D. Luiz de Castro, 2º.
Conde de Resende (1790-1801), a Aula Militar do Regimento de Artilharia
transformou-se na "Real Academia de Fortificação, Artilharia e Desenho da
Cidade do Rio de Janeiro" (RAFAD).
Em carta de 21 de dezembro de 1792, o Conde enviou ao reino os
estatutos da Academia, inaugurada no dia 17 daquele mês. (PIRASSINUNGA,
1958, p. 29).
No que se refere à sua finalidade, nada encontramos até o momento.
Sabemos que os lentes e os funcionários deveriam ficar subordinados
diretamente ao Vice-Rei, como previsto no estatuto: "[...] os Lentes se
devem reger pelas Ordens imediatas que receberem de mim a quem recorrerão
para lhes dar as providencias que julgarem necessarias".
A Academia foi instalada na Casa do Trem de Artilharia (hoje, Museu
Histórico Nacional), que foi edificada pelo General Gomes Freire de
Andrade, conhecido como Conde de Bobadela, no ano de 1762, época em que ele
era "Capitão-General do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais (1733-
63)". (BENTO, 1988). Ela foi construída para abrigar o material bélico
usado pelo exército quando da demarcação do Tratado de Madrid (1750).
Junto à Casa do Trem ficava o Regimento de Artilharia, que colaborava
para o funcionamento daquela instituição escolar.
De acordo com os estatutos, o curso da Academia duraria seis anos e
seu currículo seria baseado num curso matemático acompanhado de exercícios
práticos.
Esse curso matemático seria oferecido da seguinte forma:

Nos primeiros dois anos se ensinará o Curso de Belidor.


No terceiro ano se ensinará a teoria de Artilharia, das
Minas e Contra-minas, e a sua aplicação ao ataque e
defensa das Praças, o que se fará pela doutrina de Sam-
Remy, na conformidade do Plano dos Regimentos de
Artilharia, ou (o que é o mesmo) pela Artilharia de le
Blond.


No quarto ano se ensinará a Fortificação regular, o ataque
e defensa das Praças e os principios fundamentais de
qualquer fortificação.


No quinto ano se ensinará a Fortificação irregular, a
Fortificação efetiva e a Fortificação de Campanha, no que
se seguirá a doutrina do Curso de Antoni, cuja instrução
dos ditos cinco anos será dada pelo Lente do Regimento de
Artilharia desta cidade. (Grifo nosso. PIRASSINUNGA, 1958,
pp. 89-96).

No sexto ano, os alunos estudariam

a Arquitetura Civil, o Corte das pedras e madeiras, o
Orçamento dos Edificios, e tudo o mais que fôr relativo ao
conhecimento dos materiais que entram na sua composição,
como também explicará os melhores metodos, que hoje se
praticam nas construções dos Caminhos e Calçadas.


[e] a Hidraulica e as mais partes que lhe são analogas,
como a Arquitetura das pontes, canais, portos, diques e
comportas; [...]. (Grifo nosso. Ibidem.).

Como podemos observar, o curso destinava-se à formação de "artilheiros-
engenheiros". Todavia, aqueles que pretendessem seguir a carreira de
oficiais de Infantaria e Cavalaria, também, teriam que realizar o curso da
Academia, como acontecia na ARFAD.
Assim, de acordo com o estatuto, os futuros oficiais da Infantaria e
da Cavalaria terminavam o curso ao final do terceiro ano. Os da Artilharia,
ao final do quinto ano, e os da Engenharia fariam o curso completo.
Também, esse documento estabelecia que o lente do Regimento de
Artilharia ficaria responsável pela instrução dos alunos, nos primeiros
cinco anos. Para o sexto ano, seria nomeado outro lente.
Para auxiliar os professores, seriam designados lentes substitutos
(dois para cada titular), a fim de "suprirem os seus impedimentos, [e]
[...] para os ajudar nos exercicios praticos e ainda nas Lições
expeculativas e de desenho". (Grifo nosso. Ibidem).
Vejam que não havia um professor de Desenho, como na sua congênere
portuguesa (criada em 1790), tendo os professores titulares que lecionar,
também, esta parte do conteúdo.
Ao observarmos o que diz o estatuto da ARFAD, podemos perceber que as
aulas deveriam ser ministradas por 06 lentes, 06 substitutos e 01 professor
de Desenho, "encarregado de ensinar o que os alumnos fossem aprendendo nos
tres primeiros annos, e bem assim de ensinar a copiar e reduzir plantas,
representar perfis, configurar diversos terrenos, e (diziam os estatutos) a
traçar com perfeição a letra redonda". (Grifo nosso. RIBEIRO, 1872, p. 30).
Considerando que os lentes da RAFAD tinham, também, que lecionar o curso
matemático que, em Lisboa, era ministrado na Academia Real de Marinha,
podemos imaginar que eles ficavam sobrecarregados.
Assim como na congênere portuguesa, os lentes, também, eram obrigados
a realizar exercícios práticos com os alunos, "quando as estações o
permitires". Essa instrução, que deveria ser ministrada a partir do segundo
ano, constava das seguintes atividades:

No 2.° ano se ensinará o uso dos instrumentos pertencentes
á Geometria pratica; fará medir distancias inacessiveis,
nivelar terrenos, e tirar diversas plantas, e tudo quanto
puder praticar-se das matérias que tiver explicado.


No 3.° ano se ensinará o manejo das bocas de fogo que se
usam na Artilharia: fará construir bateria e exercitará os
discipulos em tudo que fôr suceptivel de praticar-se.


No 4º. ano se ensinará a delinear sobre o terreno qualquer
fortificação regular, e se delineará tambem sobre o mesmo
terreno as principais obras do ataque e defeza das Praças.




No 5.° ano se formará sobre o terreno alguma obra de
fortificação de Campanha, assim como ensinará a
Castrametação e tudo quanto puder praticar-se
relativamente as materias que tiver tratado.


O Lente do 6.° ano, sendo encarregado de alguma obra das
materias que tiver explicado, poderá exercitar-se na
pratica dela ou seus discipulos.

O estatuto prevê a realização de uma avaliação do ensino (exame)
somente a partir do segundo ano. Todavia, ele não informa sobre a sua
freqüência (mensal, semestral, anual). Na sua congênere portuguesa, os
exames eram anuais.
Os exames, feitos "na presença do respectivo lente e seu substituto"
deveriam ser realizados como na congênere portuguesa.
Ao final de três anos, todos os alunos deveriam prestar um exame de
Língua Francesa.
Aqueles que se destinavam à carreira militar na Infantaria e na
Cavalaria precisavam ser aprovados "até o decimo livro do Curso de Belidor,
para poderem passar ao estudo do 3º. ano".
Os alunos do curso de Engenharia que pretendessem concorrer a um
"partido" eram "obrigados a mostrar por exames que sabem a doutrina
correspondente ao primeiro ano (ao menos)". Pelo visto, somente os alunos
de engenharia podiam concorrer a essas vagas.
Para ser admitido na Academia, bastava saber "as quatro especies de
Aritmetica Ordinaria". Todavia, aqueles que pretendiam seguir a profissão
de engenheiros militares deveriam possuir "uma constituição robusta, sem
defeito algum na vista ou tremura de mãos".
Segundo Pirassinunga (1958), no seu primeiro ano, cursaram a Academia
cerca de 73 alunos, "entre oficiais, oficiais inferiores e soldados dos
Regimentos da Praça do Rio de Janeiro, partidistas do número e
particulares[7]". (p. 35). Cabe ressaltar que portugueses do reino também
estudaram nessa instituição.
Ao observarmos a "Relação dos primeiros alunos da Academia de
Fortificação, Artilharia e Desenho"[8], podemos verificar que foram
matriculados 03 Capitães, 01 Ajudante, 06 Primeiros-Tenentes, 07 Segundos-
Tenentes, 06 Alferes[9], 05 Sargentos, 10 Furriéis[10], 01 Porta-
Bandeira[11], 24 Cabos, 04 Cadetes, 04 Soldados e 02 civis. Portanto, mais
alunos do que na ARFAD, que teve 44 matriculados em 1790.
Assim, dos 73 alunos, 48 (mais da metade) eram oficiais inferiores
(sargentos, furriéis, porta-bandeiras, cabos), cadetes e soldados. Com
exceção dos cadetes, esses militares eram oriundos das classes sociais mais
baixas da sociedade.
Os alunos tinham aulas às segundas, quartas e sextas-feiras, pela
manhã, durante duas horas, "pelo que respeita as lições expeculativas".
Após essas duas horas, os lentes deveriam exercitar os alunos por "uma
hora e um quarto no desenho da doutrina correspondente áquele ano". (Grifo
nosso).
Após os seis anos de curso, os recém-formados engenheiros militares,
que recebiam a patente de Primeiro Tenente, deveriam ser encaminhados para
o Regimento de Artilharia, a fim de ali prestarem serviços, como agregados,
pelo período de um ano. Acreditamos que tal período funcionava como um
"estágio".
A Academia deveria possuir um Secretário que ficaria responsável pelas
seguintes tarefas: "fazer as matriculas e assentos e de passar as Certidões
[de aprovação nos exames] do costume, como tambem de cuidar do arranjo e
ordem da Biblioteca Militar, e na conservação das Plantas e Mapas do
Deposito". (Grifo nosso). Vejam que o secretário deveria exercer, também,
as funções de bibliotecário e arquivista.
No Arquivo (Depósito) da Academia deveria ficar um livro que continha
"circunstanciadamente o merecimento de cada um dos discipulos", bem como
"desenhos que fizerem os discipulos, mas tambem todas as Plantas, Cartas e
projetos militares que devem resultar das diligencias de que forem
incumbidos os Oficiais Engenheiros".
O primeiro secretário da Academia foi o aluno (!) Domingos Francisco
Ramos, capitão do 2º. Regimento, que ainda estava "estudando o 1º. livro do
Curso Matemático". (PIRASSINUNGA, 1958, p. 34).
Além do secretário, a Academia deveria possuir um porteiro e dois
guardas, do efetivo do Regimento de Artilharia (provavelmente, militares),
que tinham como obrigação: "cuidar do asseio das Aulas, e no Arranjo, e
limpeza dos modelos, e instrumentos que lhes serão entregues por um
inventario e servirão nos Exercicios praticos em tudo o que lhes fôr
ordenado pelos Lentes ou Secretario".
Passado algum tempo de funcionamento da Academia, foi observado que os
Infantes não se adaptaram àquele meio. Eles alegavam que estavam tirando
muito pouco proveito daquilo que estava sendo ensinado naquela instituição,
no que diz respeito à sua especialidade. Realmente, analisando o currículo
da Academia, podemos notar que ele era voltado para a formação de
artilheiros e engenheiros, como na ARFAD. Todavia, não era só isso: de
acordo com o Conde de Resende, eles não estavam conseguindo acompanhar as
lições ministradas no curso.
O Conde, então, para solucionar o problema, criou uma nova Academia,
só para os infantes: a Academia de Aritmética, Geometria Prática,
Fortificação, Desenho e Língua Francesa para Oficiais de Infantaria.
O estatuto da nova Academia foi aprovado em novembro de 1795[12], e a
instituição começou a funcionar em 1º. de dezembro desse mesmo ano. Segundo
Pirassinunga (1958), a Academia foi inaugurada "com um corpo discente de
cêrca de 16 alunos, todos matriculados na primeira quinzena dêsse mês e,
figurando entre êles os dois filhos do Conde de Resende". (p. 51).
De acordo com esse documento, a Academia deveria possuir um diretor
(ao contrário do que pudemos observar na RAFAD), e este tinha como
obrigação visitar muitas vezes a Academia.
No que se refere aos alunos, o diretor deveria "vigiar [...] sobre a
aplicação e fervor dos Discípulos". Quanto aos professores, ele deveria
acompanhar "o zêlo e cuidado dos Lentes, observando se êles se conformam
nas suas Lições ao metodo dos Autores nomeados, e se as traduções e
Extratos que devem fazer, são fieis, e ordenadas com clareza, e boa
digestão". (Grifo nosso). Como podemos perceber, o diretor possuía funções
pedagógicas.
O primeiro diretor da nova Academia foi o Tenente-Coronel Joaquim
Xavier Curado, americano de Goiás.
Segundo o estatuto, o currículo foi montado para um período de dezoito
meses, e procurou-se levar em consideração que muitos dos oficiais e
cadetes daquela Arma se achavam "sem os principios necessários para
servirem de base a lição dos Autores". Também, foi elaborado considerando
as particularidades das suas atividades militares. Portanto, as novas
matérias ficaram assim distribuídas:

se lhes ensinará nos primeiros seis meses o Tratado de
Artilharia, de Bezout.


nos seis meses seguintes aprenderão Geometria Pratica,
extraída do Curso de Belidor,


findos os quais se devem aplicar ao estudo de
fortificação, explicando-se por um metodo pratico os
Elementos de Fortificação por Le Blond.


Nesses dezoito meses ensinar-se-a juntamente o Desenho
pelo Tratado de Buchotte, e a Lingua Francesa. (Grifo
nosso).

Junto com o estatuto da Academia, o Conde de Resende enviou para
Lisboa uma relação de livros que seriam necessários aos estudos dos alunos.
Pela relação podemos verificar o que era ensinado (ou deveria ser ensinado)
na Academia. Eis a transcrição de parte do documento:

Alguns jogos do Curso de Aritmetica de Bezout;
Alguns jogos do Curso Belidor;
As obras de Le Blond;
A Fortificação de Antoni;
Ataque e defeza das Praças por Vauban;
Tratado de Desenho por Buchotte;
Engenheiro de Campanha por Clairac;
Arquitetura Militar;
Elementos de Tatica;
Ensaio de Tatica;
Arte da Guerra por Frederico 2.°;
Geografia de Busching;
Historia de Portugal por La Clede;
Historia da India por L'Affitan;
Dicionario Militar Historico;
Dicionario Francês e Português por Manoel de Souza."
(PIRASSINUNGA, 1958, pp. 48-49).

Ao compararmos esses livros com os que eram adotados na RAFAD,
pudemos verificar que os infantes, ao contrário dos artilheiros e dos
engenheiros, deveriam receber instrução sobre: Geografia, História de
Portugal, História da Índia e Tática Militar. Aliás, nem mesmo os alunos da
ARFAD, que funcionava no reino, tinham acesso a esses conhecimentos
(!!!)[13].
Somente em 21 de fevereiro de 1796, o Conde de Resende enviou uma
carta a D. Luiz Pinto de Souza, mencionando a criação da nova Academia.
Mais uma vez, chamamos a atenção para o fato de que, apesar da "falta
de luzes e de principios que tinha a maior parte dos discípulos", o Conde
matriculou dois filhos seus nessa Academia, e não, na outra, considerada
por ele como sendo mais difícil de acompanhar, devido à complexidade de
suas matérias. Seria o preconceito com relação à profissão de artilheiro e
de engenheiro?[14]
Como visto anteriormente, de acordo com a carta do Conde de Resende,
os primeiros lentes dessa Academia foram um Capitão e três Tenentes da Aula
que era ministrada no Regimento de Artilharia. Aliás, essa "aula
regimental" é muito antiga, e data de 1763, quando o Conde Lippe era
comandante do exército português. Interessante, é que mesmo com a abertura
da Academia de Fortificação, Artilharia e Desenho, no Rio de Janeiro, a sua
aula regimental continuou existindo...
Todavia, Pirassinunga (1958) afirma, mais adiante, na obra citada
anteriormente, que os seus primeiros lentes foram cinco: o Capitão José
Caetano de Araujo (para Francês), o Capitão Albino dos Santos Pereira (para
Geometria), o Tenente Francisco Antônio da Silva Bittencourt (para
Aritmética), o Tenente Antônio Lopes de Barros (para Fortificação) e o
Tenente Aureliano de Souza e Oliveira (para Desenho). (Ibid., pp. 50-51). E
para ensinar artilharia? Quem teria sido designado? Não sabemos. Também, se
compararmos com a RAFAD, poderemos observar que esta, apesar de possuir
mais disciplinas e das mesmas serem mais complexas que as da nova Academia,
só possuía 02 lentes, que contavam com 02 substitutos para o caso de não
poderem ministrar as aulas. Também, a RAFAD não possuía um professor de
desenho, matéria fundamental para artilheiros e engenheiros.
Com relação à nova Academia, os lentes deveriam ensinar suas matérias
"conformando-se a capacidade dos Discipulos". Igualmente, deveriam procurar
"omitir aquelas demonstrações que [os alunos] não puderem compreender ao
principio". O importante era fazer com que "os menos habeis saibam as
definições e construções de todas as figuras de Geometria e Fortificação".
Cabia aos lentes dar conta ao diretor "dos progressos, ou descuidos
dos seus Discipulos, assim como das faltas, que não se legalizarem, para
que o mesmo Diretor todas as semanas dê uma relação circunstanciada a esse
respeito". Com relação à RAFAD, nada encontramos sobre esse modo de
avaliação.
Cabe ressaltar que, de acordo com o estatuto, os lentes dessa nova
Academia não possuíam auxiliares (substitutos). Somente quando tinham um
impedimento, se nomeava "outra pessôa para substituir o seu logar".
Quanto às aulas práticas, os professores de Geometria e Fortificação
tinham que, anualmente, realizar exercícios "sobre o terreno aos seus
Discipulos na prática e delineação daquelas figuras e Obras que ocorrem
mais frequentemente nas ocasiões do serviço, fazendo-lhes conhecer o uso
dos Instrumentos e o modo de se servirem das estacas, piques e cordéis".
O professor de Desenho, também, tinha que ensinar "o modo de
representar as diversas configurações do terreno e de tirar as plantas
militares".
No final dos primeiros seis meses de Academia, os alunos deveriam ser
examinados "para o fim de serem excluidos do numero dos mesmos dispensados
se não derem prova do seu adiantamento, ou puderem passar ao estudo de
outra materia".
Depois desse período, deveria realizar-se uma avaliação semestral,
publicamente, "presidindo o Diretor, e sendo Examinadores os tres Lentes de
Aritmetica, Geometria e Fortificação, os quais darão o seu voto ao Diretor,
que decidirá pela pluralidade dos mesmos votos".
Assim como na RAFAD, vinte e quatro horas antes de serem perguntados,
os alunos deveriam tirar "sortes" dos vasos, a fim de se prepararem para a
avaliação dos pontos sorteados.
Quando admitidos, os alunos deveriam fazer um exame de Aritmética, a
fim de "seguirem este estudo, ou para frequentarem a Aula de Geometria".
Portanto, não era necessário saber as quatro operações da aritmética, como
acontecia na ARFAD e na RAFAD.
Os alunos tinham aulas às terças, quintas e sábados, pela manhã, das
7h às 10h, no verão, e das 8h às 11h, no inverno.
Das 7h às 8h30min., os lentes de Aritmética, Geometria e Fortificação
(cada um na sua sala, provavelmente), "tomavam" as suas lições. Após esse
período, todos os alunos deveriam se dirigir para a classe de Francês, cujo
período de instrução durava 30 minutos (!). Das 9h às 10h, todos os alunos
deveriam ter aula de Desenho.
A Academia deveria possuir um secretário e um porteiro, como na RAFAD.

Finalmente, em 1810, as duas Academias ("Real Academia de
Fortificação, Artilharia e Desenho" e "Academia de Aritmética, Geometria
Prática, Fortificação, Desenho e Língua Francesa") foram reunidas, pelo
Ministro da Guerra do Príncipe Regente D. João – Conde de Linhares, para
formar a Academia Real Militar, "precursora da actual Academia Militar das
Agulhas Negras". (VIEIRA, 1997, p. 48).

ANÁLISE DO "MAPPA DOS NOMES, IDADES E OBSERVAÇOENS DOS ALUMNOS DA NOVA
ACADEMIA MILITAR DO RIO DE JANEIRO" (1798)[15]

A seguir citamos os nomes e as idades dos alunos da nova Academia,
menores de 18 anos:

Capitão
D. Jozé Benedicto de Castro – 15 anos (filho do Vice-Rei)

Alferes
Francisco de Lima da Silva – 13 anos[16]
Francisco de Sales Gameiro – 11 anos

Cadetes
Jozé Caetano de Araujo – 11 anos
Luiz Vieira de Andrade – 12 anos
Francisco Manoel Dormundo – 14 anos

Porta-Bandeira
Luiz Manoel Feliciano Kely – 14 anos

Ao contrário do que pudemos observar na RAFAD, em que a maioria dos
alunos era de oficiais inferiores, aqui, só um aluno pertencia a esta
classe: o porta-bandeira.
Segundo o estatuto, o currículo foi montado para um período de dezoito
meses, em que os alunos freqüentariam, inicialmente, as aulas de aritmética
(de Bezout); depois de aprovados, as aulas de geometria (de Belidor); e,
após examinados, as aulas de fortificação, assistindo, paralelamente, às
aulas de desenho e de francês.
Todavia, encontramos no mapa alunos que, matriculados em 1795, ainda
estavam freqüentando as aulas de aritmética em 1798, como é o caso dos
Alferes João Nunes Cordeiro e Luiz Gomes da Cruz. Até quando eles poderiam
cursar essa matéria? Não podemos esquecer que só depois de aprovados nas
aulas de aritmética, os alunos poderiam seguir geometria.
Também, os alunos de francês e de desenho, matriculados em 1795, ainda
freqüentavam essas aulas em 1798; portanto, há três anos.
Apesar de o estatuto prever aulas de Artilharia, Geometria Prática,
Fortificação, Desenho e Língua Francesa, não vimos qualquer vestígio do
ensino da artilharia, nesses três anos, e sim, no seu lugar, era ensinada a
aritmética de Bezout.
Cabe ressaltar que nesse novo estabelecimento, também, funcionavam
"aulas de primeiras lettras", como pudemos comprovar através da análise do
mapa. Igualmente, notamos que alguns alunos que cursavam essas aulas não
assistiam às de desenho, porque "principiavam na escrita". Com relação à
RAFAD, não encontramos informações a respeito dessas aulas, a fim de
efetuarmos um estudo comparativo.
Como pudemos perceber, no ano de 1797, o número de alunos aumentou
consideravelmente, pois foram matriculados militares da Cavalaria, bem como
de outros grupamentos que não pertenciam à tropa regular[17] e foram
admitidos alunos civis.
Em 1798, a Academia recebeu um militar de outra província que não a do
Rio de Janeiro.
Nesses três anos de funcionamento, freqüentaram a Academia: 19
oficiais, 16 cadetes, 06 oficiais inferiores[18] e 07 civis. Ou seja, a
grande maioria dos alunos era constituída de oficiais e cadetes, ao
contrário da ARFAD e da RAFAD.

Considerações finais

A modernização do Estado português trouxe consigo a modernização do
exército. Este começou a se profissionalizar, não importando tanto a origem
social dos soldados, mas, a aptidão dos mesmos para a área militar. A
"nova" guerra exigia saber profissional, capacidade técnica,
especialização, qualidades que se sobrepunham ao título de nobreza.
Como a maioria dos nobres não se interessava pelos estudos da
artilharia e da engenharia, indivíduos de camadas sociais inferiores
tiveram acesso à educação (também, militar).
Acreditamos que as aulas militares citadas, criadas com a finalidade
de formar militares para exercerem atividades nas áreas da artilharia e da
engenharia militar, ofereceram uma oportunidade de estudo e de ascensão
social, principalmente, para os portugueses pobres (meninos, jovens e
adultos) que não fossem negros, que tinham nascido em Portugal ou na
América Portuguesa.


Referências

ALMEIDA, Antonio Lopes da Costa. Repertorio Remissivo da Legislação da
Marinha e do Ultramar comprehendida de 1317 até 1856. Lisboa: Imprensa
Nacional, 1856.
ANTUNES, José Ricardo da Costa Silva (Coord.). Apontamentos para a Historia
da Escola do Exercito. Lisboa: Imprensa Nacional, 1886.
BENTO, Cláudio Moreira. Escolas de Formação de Oficiais das Forças Armadas
do Brasil (1792-1987). Rio de Janeiro: Poupex, 1988. (Calendário).
CARDOSO, Maria Luiza. História da Educação de Crianças e Jovens Carentes
nas Instituições Militares: do Brasil Colônia até o Final do Segundo
Reinado. Dissertação de Mestrado, apresentada em 17 de abril de 2001, na
UERJ.
______. Educação de Crianças e Jovens nas Academias Militares do Conde de
Resende (Rio de Janeiro: 1792-1801). Tese apresentada em 03 de Julho de
2009, na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo para obtenção
do Título de Doutor em Educação.
CARVALHO, Manuel Jorge Pereira de. Objectivos na criação da Academia Real
de Fortificação, Artilharia e Desenho (1790). In: BOLETIM DO ARQUIVO
HISTÓRICO MILITAR, 61º. Vol., Lisboa, 1995.
CORDEIRO, João Manuel. Apontamentos para a história da artilheria
portugueza. Lisboa: Commando Geral da Artilheira, 1895.
CURADO, Silvino da Cruz. O ensino militar no Brasil antes da Independência.
Actas do VIII Colóquio de História Militar "Preparação e Formação Militar
em Portugal". Lisboa, Palácio da Independência, de 3 a 5 de Novembro de
1997, Comissão Portuguesa de História Militar.
MACHADO, José Timóteo Montalvão. Esboço histórico do ensino superior
militar. Lisboa: Academia Militar, 1979.
PEREGRINO, Umberto. História e projeção das instituições culturais do
exército. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1967. (Coleção
Documentos Brasileiros, 128)
PIRASSINUNGA, Adailton. O ensino militar no Brasil (Colônia). Rio de
Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1958.
PORTUGAL. Requerimento do brigadeiro C. F. de Weinholtz, chefe do Regimento
de Artilharia da Corte, para que sejam adoptados outros livros nas aulas
dos regimentos. 1786. Fonte: Arquivo Histórico Militar, 3ª Divisão, 5ª
Secção, Caixa 2, n. 24.
______. Mappa dos nomes, idades e observaçoens dos alumnos da Nova Academia
Militar do Rio de Janeiro, estabelecida pelo Ilmo. e Exmo. Snr. Conde de
Resende, Vice-Rei do Estado em 28 de novembro de 1795, em que se mostrão as
informações dos seus respectivos Lentes. Fonte: Arquivo Histórico Militar –
2ª Divisão / 1ª Secção / Caixa 1 / Nº 36.
RIBEIRO, José Silvestre. Historia dos estabelecimentos scientificos,
litterarios e artisticos de Portugal nos successivos reinados da monarchia.
Lisboa: Typographia da Academia Real das Sciencias, 1872. Tomo II.
SILVA, Nunes da. História da Escola do Exército. PROELIUM: Revista Técnica
dos Alunos da Escola Militar, Lisboa, Escola Militar, Ano IV, Nº. 21, Maio
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SIMÕES, J. M. D'Oliveira. A Escola do Exército: Breve Noticia da sua
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VIEIRA, Belchior. Contribuição dos militares portugueses para a introdução
da cultura matemática no Brasil. II Encontro Luso-Brasileiro de História da
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matemática no Brasil. Águas de São Pedro, São Paulo, 23 a 26 de março de
1997, Sérgio Nobre Editor.
VITERBO, Sousa (Coord.). Diccionario historico e documental dos
architectos, engenheiros e constructores portuguezes ou a serviço de
Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional, 1922. V. 3.
VALENTE, Wagner Rodrigues. Uma história da matemática escolar no Brasil
(1730-1930). Tese de doutorado apresentada à Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo, 1997.
-----------------------
[1] Universidade da Força Aérea Brasileira.
[2] Hoje, chamamos o Desenho de Projeto.
[3] Bolsas de estudo.
[4] Principalmente, depois da criação da ARFAD.
[5] Ano de criação do Corpo de Engenheiros.
[6] Denominados "tarimbeiros".
[7] Peregrino (1967), também, afirma que, na Academia, também, "eram
admitidos alunos civis, sob a designação de particulares, os quais foram
dois entre os 73 oficiais, cadetes, furriéis e cabos que constituíam a
primeira turma". (p. 7).
[8] Apud PIRASSINUNGA, 1958, pp. 35-37.
[9] Tenente inferior, ou Segundo-Tenente, nos dias de hoje.
[10] Hoje não existe esse posto, mas, podemos dizer que ficava abaixo de
Sargento.
[11] Também, inexistente nos nossos dias, mas, na época, era superior ao de
Cabo.
[12] Apud PIRASSINUNGA, 1958, pp. 46-48.
[13] Cabe ressaltar que nos baseamos nos documentos oficiais da época,
citados nesta pesquisa.
[14] A introdução das armas de fogo e o seu aperfeiçoamento, bem como das
novas técnicas de fortificação militar tornaram a guerra uma arte baseada
em saberes especializados: saberes matemáticos, tecnológicos, químicos, de
arquitetura e de engenharia. Todavia, nos séculos XVII e XVIII, apesar das
inovações e da importância militar que a artilharia e a engenharia
adquiriam nos exércitos, a profissão de artilheiro e de engenheiro era
desprezada pelas elites portuguesas, uma vez que eram consideradas
atividades "mecânicas" e, por isso, passaram a ser recrutados para a área
indivíduos que pertenciam às classes mais desfavorecidas da sociedade.
[15] "Mappa" datado de 31 de Dezembro de 1798, encontrado no Arquivo
Histórico Militar, quando da realização de um estágio de doutoramento
financiado pela CAPES, de agosto de 2005 até julho de 2006.
[16] De acordo com Bento (1988), esse oficial seria "O futuro Regente do
Império, Mal. Francisco de Lima e Silva, pai do Duque de Caxias".
[17] A tropa regular ou de 1ª. linha era formada por militares
profissionais pagos pela Coroa.
[18] Nenhum Sargento ou Furriel.
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