A Formação de uma Nobreza Ultramarina: Coroa e elites locais na Bahia seiscentista

July 23, 2017 | Autor: Thiago Krause | Categoria: Early Modern History, Comparative History, Brazilian History, Atlantic World, Local History, Class, Seventeenth Century, Slavery, History of Slavery, Nobility, Political Elites, History of Elites, Colonial Brazil, History of the Portuguese Empire, Courts and Elites (History), Atlantic history, Colonial Brazilian History, Comparative Historical Analysis, Historia Social, História Moderna, Colonial Latin American History, Historia, História do Brasil, XVII century, Elites and Society, Historia de América, Colonial Latin America, Colonial Atlantic History, Elites, Salvador - Bahia, História, Escravidão, Brasil Colonial, Monarquía Hispánica, Latin American Colonial History, late medieval and early modern history of European nobility and courts, História Colonial / Brasil, Historia Moderna, XVIIth century, História do Atlântico, Siglo XVII, Esclavitud, Nobleza, Bahia, Early Modern Nobility, História Do Império Português, History of Early Modern Nobility, NOBLEZA EDAD MODERNA, Early Modern Iberian Atlantic, Early Modern State-Formation, Brasil Colônia, Século XVII, História da escravidão no Brasil, América Portuguesa, História Do Brasil Colonial, Historia Colonial De América Latina, História Do Brasil Colonia, População Colonial Brasileira, Class, Seventeenth Century, Slavery, History of Slavery, Nobility, Political Elites, History of Elites, Colonial Brazil, History of the Portuguese Empire, Courts and Elites (History), Atlantic history, Colonial Brazilian History, Comparative Historical Analysis, Historia Social, História Moderna, Colonial Latin American History, Historia, História do Brasil, XVII century, Elites and Society, Historia de América, Colonial Latin America, Colonial Atlantic History, Elites, Salvador - Bahia, História, Escravidão, Brasil Colonial, Monarquía Hispánica, Latin American Colonial History, late medieval and early modern history of European nobility and courts, História Colonial / Brasil, Historia Moderna, XVIIth century, História do Atlântico, Siglo XVII, Esclavitud, Nobleza, Bahia, Early Modern Nobility, História Do Império Português, History of Early Modern Nobility, NOBLEZA EDAD MODERNA, Early Modern Iberian Atlantic, Early Modern State-Formation, Brasil Colônia, Século XVII, História da escravidão no Brasil, América Portuguesa, História Do Brasil Colonial, Historia Colonial De América Latina, História Do Brasil Colonia, População Colonial Brasileira
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Descrição do Produto

i Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de História Programa de Pós-Graduação em História Social

A Formação de uma Nobreza Ultramarina: Coroa e elites locais na Bahia seiscentista

Thiago Nascimento Krause

Orientador: João Luis Ribeiro Fragoso

Tese de doutoramento apresentada ao Curso de Doutorado do Programa de Pós-graduação em História Social do Instituto de História da UFRJ como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de doutor em História Social. Linha de pesquisa: Sociedade e Política.

Rio de Janeiro, Abril de 2015 Versão Revisada

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Ficha Catalográfica

K91f

Krause, Thiago Nascimento.

A Formação de uma Nobreza Ultramarina: Coroa e elites locais na Bahia seiscentista / Thiago Nascimento Krause; orientador João Luis Ribeiro Fragoso. – 2015. 412 f. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de História, Programa de Pós-Graduação em História Social, 2015. Bibliografia: f. 353-402. 1. Portugal – Brasil – Período colonial. 2. Império Português. 3. Câmara Municipal. 4. Bahia - História. 5. Elites. 6. Política. I. Fragoso, João Luis Ribeiro. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de História. Programa de Pós-Graduação em História Social. III. Título. CDD 981.03

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A Formação de uma Nobreza Ultramarina: Coroa e elites locais na Bahia seiscentista

Thiago Nascimento Krause

Banca Examinadora:

____________________________________________________________ Orientador: Prof. Dr. João Luís Ribeiro Fragoso (PPGHIS/UFRJ) ____________________________________________________________ Prof. Dr. Nuno Gonçalo Pimenta de Freitas Monteiro (ICS) ____________________________________________________________ Prof. Dr. Ronald José Raminelli (PPGH/UFF) ____________________________________________________________ Prof. Dr. Pedro Luís Puntoni (PPGHS/USP) ____________________________________________________________ Prof. Dr. Antônio Carlos Jucá de Sampaio (PPGHIS/UFRJ)

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A meus pais, por iluminarem o caminho.

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A Formação de uma Nobreza Ultramarina: Coroa e elites locais na Bahia seiscentista

Thiago Nascimento Krause Resumo Esta pesquisa procura investigar dois processos: a formação e consolidação de uma elite local e a relação do poder local com a monarquia e sua administração periférica, na tentativa de destacar a profunda conexão entre esses dois desenvolvimentos. A área escolhida para estudo é a Bahia no século XVII, em razão de sua crescente importância dentro do mundo português ao longo do século, mas sempre em perspectiva comparativa, colocando-a dentro de um quadro atlântico. Para isso analisou-se o desenvolvimento econômico da capitania, as especificidades de sua sociedade escravista, as características individuais e familiares dos membros da elite, suas formas de auto-identificação e sua relação com os governadores-gerais e a Coroa. As fontes utilizadas foram diversificadas, embora majoritariamente de natureza administrativa, e organizadas em diferentes bancos de dados. Procurou-se destacar o contínuo processo de “fazer-se” da elite nessas diversas dimensões, assim como a forte interdependência entre Coroa e elites.

Palavras-chave: Nobreza; Política; Monarquia; Império; Século XVII.

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The Making of an Overseas Nobility: the monarchy and local elites in seventeenth-century Bahia

Abstract This dissertation explores two processes: the formation and consolidation of a local elite and the relationship between local power, the monarchy, and its peripheral administration in order to highlight the deep connection between these two developments. The focus of this study is on seventeenth-century Bahia, which was never as important to the Portuguese Empire as at that moment. Nevertheless, comparisons were made whenever possible, putting the Bahian case within a broader Atlantic framework. The themes addressed are the economic development of the captaincy, the characteristics of this slave society and its leading members (both as individuals and as members of their families), the self-presentation of the elite, and its relationship with governors-general and the Crown. Although mostly of an administrative nature, various primary sources were used and organized in different data sets. The main goal was to emphasize the long and multidimensional making of the elite as well as the strong interdependence between the monarchy and local elites. Keywords: Nobility; Politics; Monarchy; Empire; Seventeenth-Century.

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Agradecimentos Escrever uma tese é extenuante, mas agradecer é libertador – não só pelo alívio de haver chegado ao final, mas porque finalmente podemos reconhecer as muitas dívidas que acumulamos, ainda que jamais possamos saldá-las. Um muito obrigado, então, a todos que contribuíram para essa tese. A Mariana, que esteve comigo em cada passo da jornada e me ajudou de tantas formas que listá-las tomaria outras centenas de páginas. Ela leu e ouviu muito mais sobre a Bahia seiscentista do que gostaria, transcreveu centenas de páginas de garranchos quatrocentões, sugeriu melhorias, criticou partes confusas e argumentações frágeis, me apoiou, me acalmou e, principalmente, não me deixou esquecer que há coisas muito mais importantes na vida do que um doutorado. A tese, mas principalmente eu, estaríamos muito piores sem você. A minha mãe, por sempre fazer as perguntas incômodas que me obrigam a pensar, tornando-me uma pessoa melhor. A meu pai, por todos os tipos de apoio, inclusive revisando este calhamaço. Aos dois, que, de maneiras diferentes, serviram de modelo para minha vida, e por isso dedico-lhes a tese. A Gisele, Adriana, Maristela, Liberato, Paulo César, Meyriane e demais familiares, por me ajudarem muito mais do que imaginam. Aos meus amigos, pelos momentos de descontração, e minhas desculpas pelos sumiços. Ao João, que desbravou vários dos caminhos aqui perseguidos, mas deixou-me livre para segui-los, ajudando-me muito além de suas obrigações como orientador. Ao Ronald, pela interlocução constante e pelo exemplo de erudição, estimulando-me a olhar para as outras Américas. Ao Guedes e ao Jucá, pelas críticas incisivas e cervejas divertidas – pena que não foram mais! Ao Tiago, pelas sugestões, comentários, companhia em Paris e expert ajuda cartográfica. Ao Pedro, não só pelas valiosas indicações bibliográficas, mas pelo convite de escrevermos um artigo a quatro mãos, experiência que muito me ensinou. A Nuno Monteiro, pelos generosos questionamentos e pela recepção em Lisboa. Ao Embaixador Evaldo Cabral de Mello, pelas críticas a um capítulo que influenciaram decisivamente o rumo da tese, assim como pela leitura do trabalho final, apontando rotas a serem seguidas no futuro. A Fernanda Bicalho, pelo incentivo e pela cuidadosa leitura dos quatro primeiros capítulos. A Jean-Frédéric Schaub, por me estimular a pensar melhor no que fazia dessa tese uma tese. A ele, mas também a Cláudia Damasceno e João Pedro Gomes, pela excelente acolhida em Paris. Ao Zé, pela amizade, críticas e sugestões. Ao Leo, pelos livros, artigos e partidas de xadrez.

viii A todos os demais que leram versões preliminares dos capítulos e/ou ouviram apresentações em eventos, oferecendo críticas e sugestões: Francisco, Carla, Marcello e todos do grupo de pesquisa Antigo Regime nos Trópicos; Renato Franco, Chris Ebert, George Cabral, Pablo Magalhães, Rodrigo Ricupero, Renato Silva, Jonis Freire, Roberta Stumpf, Marta Lobo de Araújo, Francisco Eduardo de Andrade, Antônio Castro Nunes, Paulo Pachá, Mário Jorge, Silvia Patuzzi, Carlos Kelmer, Carlos Gabriel, Guilherme Neves, Adriana Dantas Reis Alves, Letícia Ferreira e os pareceristas anônimos da AfroÁsia, Revista de História (USP), e, principalmente, Anais de História do Além-Mar, que aceitaram para publicação versões iniciais dos capítulos II, IV e VII, respectivamente. Aos que generosamente me forneceram fontes ou bibliografia de difícil acesso: Luciano Figueiredo, Erivaldo Fagundes Neves, Mafalda Soares da Cunha, Zeca Villardaga, Wilmar Vianna, Enrique Rodrigues-Moura, Caio Adan, Anil Mukerjee, Marcello Loureiro, Guida Marques, William Martins, Marta Lobo de Araújo, Daniela Bonfim, Fernando Dores Costa e Suzana Severs. Ao Urano, pelas inestimáveis reproduções digitais dos documentos soteropolitanos. A Rafael, Rosara, Nayara, Raquel e Jerônimo pela ajuda na transcrição de documentos e preenchimento de bases de dados. Aos meus professores: Jucá, João, Cacilda Machado e Carlos Fico no PPGHIS/UFRJ; Jean-Paul Zuñiga, Cécile Vidal e Catarina Madeira dos Santos, dentre outros, na EHESS. Aos meus alunos, pois tenho certeza que mais aprendi do que ensinei. Aos funcionários de todos os arquivos e bibliotecas nos quais pesquisei. A Marcello e Simone pelas dicas parisienses e sobre o sanduíche. Ao PPGHIS/UFRJ, representado por sua coordenadora, Mônica Grin, e pela sempre eficiente e simpática Sandra, pelo suporte institucional. Ao CNPq e à CAPES, cujo apoio financeiro possibilitou à pesquisa. Por último, aos professores Nuno Monteiro, Ronald Raminelli, Pedro Puntoni e Antônio Carlos Jucá pelas argutas e generosas arguições na defesa da tese, ainda que eu só vá dar conta de muitas das críticas e sugestões no futuro, espero que não muito distante.

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Sumário Abreviaturas .................................................................................... 1 Introdução ........................................................................................ 3 Capítulo I – Uma Cidade Atlântica ............................................... 9 A Baía e a Cidade ............................................................................................ 9 Do Recôncavo ao Açúcar... e mais além ....................................................... 14 Empório de todas as riquezas ........................................................................ 32 Metrópole do Brasil ....................................................................................... 40

Capítulo II – Compadrio e Escravidão ....................................... 47 Introdução ...................................................................................................... 47 Vislumbres de uma sociedade escravista ...................................................... 49 Parentesco espiritual e relações sociais ......................................................... 62 Conclusão? .................................................................................................... 72

Capítulo III – Homens Bons, Homens de Bens .......................... 74 Introdução ...................................................................................................... 74 A Base de Dados e Seus Limites ................................................................... 79 Abertura e Fechamento: mudanças e permanências ...................................... 85 Uma barreira porosa: a pureza de sangue ...................................................... 97 Família e Poder ............................................................................................ 103 Casando-se com Deus ................................................................................. 135 Classe e Estamento ...................................................................................... 140

Capítulo IV – De Homens da Governança à Primeira Nobreza: vocabulário social e transformações estamentais.......................... 152 Introdução .................................................................................................... 152 Antecedentes: principais e cidadãos? .......................................................... 156 Homens Bons, Homens da Governança ...................................................... 158 Os Três Estados da República ..................................................................... 160 A Ascensão da Nobreza? ............................................................................. 163 Os Privilégios da Nobreza Baiana ............................................................... 170 Nobreza e Povo ........................................................................................... 174

x Comparações ............................................................................................... 177 Conclusão .................................................................................................... 179

Capítulo V – Guerra e Poder Local: elites e governadores em defesa da Bahia (1625-1654) ........................................................ 182 Introdução .................................................................................................... 182 Antes dos Flamengos................................................................................... 183 A Idade de Ferro (1625-54): pagar a infantaria e defender o Brasil ........... 186 Conclusão .................................................................................................... 217

Capítulo VI – Pela Quietação dos Povos: elites e governadores em busca do consenso (1654-1694) .................................................... 221 Sob a Sombra da Guerra (1654-70) ............................................................. 221 Tempos de Paz (1671-94)? .......................................................................... 251 Conclusão .................................................................................................... 282

Capítulo VII – Do Coração do Estado do Brasil à Cabeça do Império: dinâmica e temas da comunicação política ................... 287 Introdução .................................................................................................... 287 Um interlocutor preferencial ....................................................................... 290 “Temos escrito muitas e repetidas vezes a Vossa Majestade” .................... 294 O Que Escrever Quer Dizer: temas da correspondência camarária ............ 302 Conclusão .................................................................................................... 340

Conclusões .................................................................................... 344 Bibliografia................................................................................... 353 Fontes Manuscritas ...................................................................................... 353 Fontes Impressas ......................................................................................... 356 Bibliografia .................................................................................................. 362

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Abreviaturas

“Liberdade e limitação” – ALBUQUERQUE, Maria Isabel de. “Liberdade e limitação dos engenhos d’açúcar”. Anais do Primeiro Congresso de História da Bahia. Salvador, 1950, vol. II, pp. 491-9. ABN – Anais da Biblioteca Nacional. AC – Documentos Históricos do Arquivo Municipal: Atas da Câmara. Salvador: Prefeitura Municipal, 6 vols. (1625-1700), 1950. AHMS – Arquivo Histórico Municipal de Salvador. AHU – Arquivo Histórico Ultramarino. ANRJ – Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. ASCMS – Arquivo da Santa Casa de Misericórdia de Salvador. AUC – Arquivo da Universidade de Coimbra. BNP – Biblioteca Nacional de Portugal. BPA – Biblioteca Pública da Ajuda. BPE – Biblioteca Pública de Évora. CCA – Coleção Conde dos Arcos. CCLP – SILVA, José Justino de Andrade e. Collecção Chronológica da Legislação Portugueza. Lisboa: Imprensa de J. J. A. Silva, 1854-9, 11 vols. CCT – SALVADO, João Paulo & MIRANDA, Susana Münch (eds.). Cartas do 1º Conde da Torre. Lisboa: CNCDP, 2001-2002, 4 vols. CG – CALMON, Pedro (ed.). Introdução e notas ao Catálogo Genealógico das Principais Famílias de Jaboatão. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia, 1985, 2 vols. COA – Chancelaria da Ordem de Avis. COC – Chancelaria da Ordem de Cristo. COS – Chancelaria da Ordem de Santiago. CP – Cadernos do Promotor. CS – Documentos Históricos do Arquivo Municipal: Cartas do Senado. Salvador: Prefeitura Municipal, 6 vols. (1638-1730), 1951-84. DH – Documentos Históricos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1928-55, 110 volumes. HAHR – The Hispanic American Historical Review.

2 HOA – Habilitação da Ordem de Avis. HOC – Habilitação da Ordem de Cristo. HOS – Habilitação da Ordem de Santiago. IAN/TT – Instituto dos Arquivos Nacionais Torre do Tombo. IL – Inquisição de Lisboa. Irmãos - ESTEVES, Neuza Rodrigues (ed.). Catálogo dos irmãos da Santa Casa de Misericórdia da Bahia: século XVII. Salvador: Santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1977. LF – Luiza da Fonseca. PG – Provisões do Governo. PGS – Provisões do Governo e Senado. PR – Provisões Reais. PS – Provisões do Senado. RGM – Registro Geral de Mercês. RIHGB – Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. TSO – Tribunal do Santo Ofício. UP – University Press.

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Introdução A cada canto um grande conselheiro, que nos quer governar cabana, e vinha, não sabem governar sua cozinha, e podem governar o mundo inteiro. Em cada porta um frequentado olheiro, que a vida do vizinho, e da vizinha pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha, para a levar à Praça, e ao Terreiro. Muitos mulatos desavergonhados, trazidos pelos pés os homens nobres, posta nas palmas toda a picardia. Estupendas usuras nos mercados, todos, os que não furtam, muito pobres, e eis aqui a cidade da Bahia. Gregório de Matos e Guerra (1636-95), À Cidade da Bahia. O século XVII, entendido como o período que vai do fim da conquista do litoral e início da resistência contra os neerlandeses até a descoberta do ouro no centro-sul, foi um período crucial na formação das elites brasílicas, como primeiro mostrou Evaldo Cabral de Mello em seu estudo sobre a constituição de uma “nobreza da terra” em Pernambuco, capaz de controlar o poder local por décadas após a restauração da capitania1. Posteriormente, os trabalhos de João Fragoso revelaram a consolidação e persistência de um grupo similar no Rio de Janeiro – o que, apesar das diferenças, sugeria a generalidade do fenômeno na América Portuguesa2. Conhecemos, porém, muito menos sobre as demais capitanias, apesar dos avanços nos últimos anos, inclusive porque o século XVII tem recebido menos atenção historiográfica do que períodos posteriores. A Bahia tornou-se a mais rica capitania do Estado do Brasil a partir de 1630, após a invasão de Pernambuco pela Companhia das Índias Ocidentais (WIC) e, na segunda metade do século, alcançaria o posto de mais importante possessão ultramarina do império lusitano. Como capital da América Portuguesa, ela nos oferece um ponto de vista

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MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana. São Paulo: Alameda, 2008 [1986], 3ª ed. rev., pp. 89-180 e id. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: 34, 2003 [1995], 2ª ed. 2 Veja-se, por todos, FRAGOSO, João. “Nobreza principal da terra nas repúblicas de Antigo Regime nos trópicos de base escravista e açucareira: Rio de Janeiro, século XVII a meados do século XVIII” in: id. & GOUVÊA, Fátima (orgs.). O Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, vol. III (1720-1821), pp. 159-240.

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privilegiado para o estudo da relação política entre a monarquia portuguesa e suas conquistas em um período turbulento, de inauguração e consolidação de uma nova dinastia e de viragem atlântica do império. Assim, essa tese abarca o período que vai de 1625, quando a invasão da WIC inaugura novos desafios que alteram a relação entre a monarquia e seus vassalos na América, até cerca de 1700, quando a descoberta do ouro no centro-sul começa a produzir transformações significativas na estrutura econômica do império lusitano e, consequentemente, em suas prioridades políticas. Sabe-se o suficiente sobre as especificidades regionais da América Portuguesa para se desconfiar de uma perspectiva generalizante a partir de uma única área. Entretanto, “os historiadores não estudam as aldeias, eles estudam em aldeias”3. Ainda que a constituição da elite baiana e sua relação com a Coroa sejam temas relevantes por si só – ao menos da perspectiva de alguém que já dedicou alguns anos a tal investigação – por suprirem uma lacuna historiográfica substancial, seu significado é ampliado se colocado em uma perspectiva mais expandida. Em primeiro lugar, em comparação com as demais capitanias do Brasil, mas também com o mundo português, como se tem percebido na historiografia sobre o período colonial dos últimos 15 anos. Em outras historiografias também se tem discutido a necessidade de romper a barreira que a categoria colonial impõe, permitindo-nos perceber as semelhanças e continuidades entre processos que se desenrolaram nas duas margens do Atlântico, por vezes de forma quase simultânea – ainda que não se deva, é claro, esquecer as diferenças4. Nesse sentido, é esclarecedor atentarmos para fenômenos similares em outras monarquias, não só no Novo mas também no Velho Mundo, pois os desafios enfrentados na afirmação da autoridade régia, fiscalidade, defesa e relação com as elites locais podiam ser surpreendentemente parecidos. Assim, esse é um estudo sobre a Bahia seiscentista do ponto de vista de sua elite local, mas inserido em um panorama mais amplo de formação das monarquias imperiais da Europa e de suas elites provinciais, sem as quais é impossível compreender o centro político, fosse este Londres, Madri ou Lisboa – ainda que em graus distintos5.

LEVI, Giovanni. “Sobre a micro-história” in: BURKE, Peter (org.). A Escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: EdUNESP, 1992 [1991], p. 138, parafraseando GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas (trad.). Rio de Janeiro: LTC, 1989 [1973], p. 16. 4 FRAGOSO, João; BICALHO, Fernanda & GOUVÊA, Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001; SCHAUB, Jean-Frédéric. “La catégorie ‘études coloniales’ est-elle indispensable?”. Annales HSS, ano 63, vol. 3, 2008, pp. 625-46 e, como boa síntese da Atlantic History anglo-saxônica, ARMITAGE, David & BRADDICK, Michael (eds.). The British Atlantic World, 1500-1800. Nova York: Palgrave Macmillan, 2002. 5 GIL PUJOL, Xavier. “Centralismo e Localismo? Sobre as Relações Políticas e Culturais entre Capital e Territórios nas Monarquias Européias dos Séculos XVI e XVII”. Penélope, n. 6, 1991, pp. 119-44; ELLIOTT, John. “A Europe of Composite Monarchies”. Past and Present, n. 137, 1992, pp. 48-71; GREENE, Jack. “Negotiated authorities: the problem of governance in the extended polities of the Early Modern Atlantic World” 3

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Essa é uma tese de história política, lidando majoritariamente com instituições: a Câmara Municipal soteropolitana, o governo-geral, o Conselho Ultramarino e a Coroa. Entretanto, a política institucionalizada estava longe de ser a única forma de exercício do poder, e ainda mais de ocorrer isoladamente de desenvolvimentos usualmente categorizados pelos historiadores em outras esferas, como economia, ideologia e, principalmente, relações sociais. Consequentemente, intentou-se realizar uma história social do poder através da análise por diversos ângulos das experiências da elite baiana, e das múltiplas relações de poder por ela estabelecidas em seu processo de consolidação como grupo dominante local. Esse estudo debruça-se, então, sobre a prática cotidiana, fazendo-se referência às concepções teóricas da época na medida em que ajudam a explicar as ações dos atores6. Os temas centrais desse trabalho são a consolidação de uma elite local e sua relação com a monarquia, dois processos inseparáveis, como se procurará demonstrar. Seu título é uma referência ao trabalho de E. P. Thompson, cujo livro seminal demonstrou o quanto o processo de formação de uma classe é resultado tanto da ação ativa e coletiva de seus membros em relação com outros grupos sociais e instituições quanto dos constrangimentos que lhe são postos, destacando também a importância das concepções dos agentes para explicar sua mobilização7. É de se notar, porém, que a coletividade aqui investigada não era exatamente uma classe, embora o conceito tenha sua relevância, como se verá adiante, e que o tema central da tese não é a relação entre classes distintas, mas sim entre a elite baiana e a Coroa. Apesar dessas importantes diferenças, a inspiração vem daí, e é preciso reconhece-la. Para além das questões historiográficas centrais brevemente expostas acima, meu interesse pelo tema é motivado por uma questão de longa duração: a percepção de que a relação entre o poder central e os poderes locais foi essencial por longos séculos para a construção da autoridade de ambos os polos, contribuindo decisivamente para a reprodução de agudas desigualdades políticas e sociais, numa dinâmica duradoura, ainda que em permanente recriação8. Não há, evidentemente, qualquer intenção em se estabelecer uma linha direta entre

in: id. Negotiated Authorities: essays in colonial political and constitutional history. Charlottesville: University of Virginia Press, 1994, pp. 1-24; BRADDICK, Michael. State Formation in Early Modern England, c. 1550-1700. Cambridge: Cambridge UP, 2000; YUN CASALILLA, Bartolomé. “Entre el imperio colonial y la monarquía compuesta. Élites y territórios en la Monarquía Hispánica (ss. XVI y XVII)” in: id. (dir.). Las Redes del Império: élites sociales en la articulación de la monarquía hispânica, 1492-1714. Madri: Marcial Pons, 2008, pp. 11-35. 6 RUIZ IBAÑEZ, José Javier. “A Constituição implícita factual: uma proposta de análise da administração no Antigo Regime” (trad.). Penélope, n. 16, 1995 [1994], pp. 125-49. 7 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa (trad.). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987 [1963], 3 vols., que serviu de inspiração para AMELANG, James. Honored Citizens of Barcelona: patrician culture and class relations, 1490-1714. Princeton: Princeton University Press, 1986. 8 Cf. DOLHNIKOFF, Miriam. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2005; GOUVÊA, Fátima. O império das províncias: Rio de Janeiro, 1822-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

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o século XVII e o presente, apenas o desejo de explicitar o quanto preocupações políticas contemporâneas influenciaram a escolha do objeto e, em alguma medida, as indagações que guiaram a pesquisa. A tese está dividida em sete capítulos de tamanhos desiguais, em grande medida em razão da irregular disponibilidade de fontes primárias apropriadas para cada tema. Devido à diversidade dos assuntos tratados, optou-se por realizar referências às distintas historiografias relevantes em cada uma das seções, para melhor esclarecer os argumentos apresentados. No primeiro capítulo, apresento um panorama do contexto econômico e institucional da Bahia, analisando suas transformações ao longo do século, com o objetivo de demonstrar a ascensão da capitania a uma posição de destaque no império português, especialmente em termos demográficos e econômicos. Nesse sentido, se procurará contrariar as tradicionais afirmativas sobre uma crise ou estagnação em finais do seiscentos a partir de um novo exame de dados aportados por pesquisas recentes mas ainda não analisados em conjunto, enfatizandose o considerável dinamismo da capitania ao longo da maior parte do período, apesar das eventuais crises. Em seguida, analisarei a sociedade escravista em consolidação na região através dos fragmentados e escassos registros paroquiais sobreviventes. O objetivo é destacar as especificidades da escravidão seiscentista, distinguindo-a das suas facetas mais conhecidas nos séculos XVIII e XIX e situando-a em um contexto atlântico mais amplo. Aspectos importantes da análise são o reduzido papel da alforria e consequente raridade dos livres de cor, ainda que estes tenham crescido ligeiramente ao longo da centúria e o papel do compadrio na relação entre livres e cativos, especialmente entre livres pobres e escravos de potentados, o que pode ter funcionado como uma forma de conectar os principais senhores à população livre mais ampla. No terceiro capítulo finalmente se discutirá mais diretamente o grupo dominante da Bahia, através de um estudo prosopográfico sobre a elite política residente, identificada a partir da ocupação dos principais cargos de poder na capitania. Cabe notar que a noção de “elite” é vaga, mesmo quando utilizada pelos cientistas sociais, tendo surgido principalmente para se

2008; MARTINS, Maria Fernanda. A Velha arte de governar: um estudo sobre política e elites a partir do Conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007, principalmente pp. 185-204; CARVALHO, José Murilo de. “Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual”. Dados, vol. 40, n. 2, 1997, pp. 229-50; CARDOSO, Adalberto. A Construção da sociedade do trabalho no Brasil: uma investigação sobre a persistência secular das desigualdades. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010, pp. 85-247; HAGOPIAN, Frances. Traditional Politics and Regime Change in Brazil. Cambridge: Cambridge UP, 1996; NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. Apesar das diferenças de enfoque, é impossível não referir também FRAGOSO, João & FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia (Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1840). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001 [1993], 4ª ed. rev.

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opor ao conceito de classe em sua acepção marxista9, de modo que será empregada aqui sem maiores compromissos teóricos para referir aqueles que ocupam o topo da hierarquia social local, a partir de critérios específicos ao caso em estudo, assim como a maioria dos historiadores que a utilizaram10. Recorrendo a um diversificado corpus documental, procurarei demonstrar a transformação do grupo ao longo do século, inicialmente marcado por uma considerável abertura a forasteiros para, posteriormente, conhecer um predomínio de algumas famílias principais – ainda que em níveis inferiores a outras municipalidades da monarquia portuguesa. Enfatizarei, assim, o contínuo processo de ascensão social que marcou a formação dessa elite, as estratégias familiares adotadas, o caráter esmagadoramente local do seu serviço à monarquia e a predominância da açucarocracia nas posições de poder, caracterizando-a como uma classe, capaz de se mobilizar em defesa de seus interesses. Seu desenvolvimento também justifica o recorte adotado na tese, pois as principais parentelas começaram se formar na transição do século XVI para o XVII, estabilizando-se na segunda metade da centúria, demonstrando posteriormente uma significativa capacidade de sobrevivência. Não era essa, porém, a principal forma de identificação da elite, que preferia se representar como uma nobreza, como veremos no quarto capítulo. Através da análise do discurso coletivo do grupo produzido por seus porta-voz institucional, a Câmara, demonstro como a açucarocracia gradualmente se construiu como uma nobreza provincial através da interação com a Coroa e sua administração periférica, afirmando-se como interlocutor principal da monarquia e garantindo privilégios que fortaleciam seu domínio político local, de maneira similar a processos que já haviam ocorrido décadas antes nas municipalidades do Reino. Assim, esses dois capítulos procuraram demonstrar como a elite baiana se construiu num modelo cada vez mais próximo das elites locais portuguesas, apesar de terem se constituído mais tardiamente e com bases econômicas radicalmente distintas. Entretanto, se esse era o ideal buscado, nunca foi plenamente alcançado, ainda que a distância tenha sido muito menor do que usualmente se supõe, tanto porque a elite baiana alcançou uma significativa consolidação na segunda metade do século quanto porque suas contrapartes europeias muitas vezes foram menos estáveis e antigas do que geralmente se supõe.

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HARTMANN, Michael. The Sociology of Elites (trad.). Londres: Routledge, 2007 [2004], pp. 1-60 e 106-7. Cf., dentre outros, CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial [1980]. Teatro das sombras: a política imperial [1988]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, 4ª ed., pp. 51-62; STONE, Lawrence & STONE, Jeanne C. Fawtier. An Open Elite? England, 1540-1880. Oxford: Oxford UP, 1986 [1984], p. 8; MARTINS, A Velha arte, p. 28; HEINZ, Flávio. “O historiador e as elites – à guisa de introdução” in: id. (org.). Por outra história das elites. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2006, pp. 8-9. 10

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A outra questão central desse trabalho é o relacionamento com o centro político e seus representantes, que será abordada de maneira mais sistemática na segunda parte da tese. No quinto e no sexto capítulo (escritos como um só, mas divididos em razão de seu inesperado crescimento) analiso o nem sempre cordial diálogo entre elite local e os governadores-gerais, atentando especialmente para os donativos administrados pela Câmara, mas instituídos em razão de iniciativas da Coroa e dos governadores. O ideal de governo baseava-se no consenso, tanto de acordo com a teoria política quanto no discurso cotidiano, mas conflitos eram inevitáveis. Entretanto, o gradual fortalecimento da elite política identificado nos capítulos anteriores estimulou a concórdia, aproximando cada vez mais os governadores da nobreza baiana, situação compreensível, em razão dos interesses comuns que os uniam. Já o último capítulo tratará das relações diretas com a Coroa através da comunicação política entre Câmara e o centro político, destacando o fortalecimento da relação após a Aclamação do Duque de Bragança, tendência consolidada a partir da década de 1660, garantindo a Salvador um papel político de destaque na monarquia portuguesa. Os donativos se mantêm como questão política central, mas em diversos temas o diálogo é intenso, evidenciando a imbricação entre os poderes local e central, profundamente interdependentes. A conclusão, por sua vez, demonstrará a conexão entre todos os temas analisados ao longo da tese, situando-os em uma perspectiva atlântica.

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Capítulo I Uma Cidade Atlântica A Bahia é a cabeça do Estado do Brasil, e se considera não ter Sua Majestade da cidade de Lisboa afora, outra praça de maior importância, assim pela quantidade de gente que tem, como pelos seus cabedais, como também pelo seu negócio. Informação do Estado do Brasil e suas necessidades, c. 1690, anônimo.

A Baía e a Cidade O traço definidor da capitania era sua baía, “cujo porto é excelentíssimo, mui limpo de baixos, e fundo, capaz de todas as embarcações”1, em uma localização geográfica favorável ao comércio com a Europa, África e, em menor escala, outros pontos da costa leste da América do Sul. Daí o nome da capitania que, se não pode ser considerado criativo, ao menos era adequado – tanto que acabou por ser amplamente adotado para se referir à cidade, “chamada, por antonomásia, Baía”2. No dizer superlativo do francês François Froger, “a Baía de Todos os Santos é, talvez, uma das maiores, mais belas e mais cômodas baías do mundo, podendo abrigar um número superior a 2 mil navios”3. A urbe desenvolveu-se ao longo do século. Se o marinheiro francês Pyrard de Laval não vai além de “a cidade é bem-construída e circundada por muralhas”, seu compatriota, o médico Charles Dellon, demonstra mais entusiasmo 75 anos depois: “a cidade toda, compreendendo as partes alta e baixa, é do tamanho de Lyon e, a meu ver, mais populosa. A cidade alta abriga belas ruas, casas excelentes, igrejas magníficas, o palácio do governador e também a sede do Parlamento [Tribunal da Relação], que é de um tamanho e de uma beleza pouco comuns”4.

MONTEIRO, Jacomé. “Relação da Província do Brasil” [1610] in: LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1945, vol. VIII, p. 404. 2 VIEIRA, Antônio. “Ânua da Província do Brasil” [1626] in: id. Cartas. Coordenação e notas João Lúcio de Azevedo. São Paulo: Globo, 2008, vol. I, p. 39. 3 “François Froger” [1699, trad.] in: FRANÇA, Jean Marcel Carvalho (ed.). A construção do Brasil na literatura de viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII: antologia de textos, 1591-1808. Rio de Janeiro/São Paulo: José Olympio/Unesp, 2012, p. 447. 4 “François Pyrard de Laval” [1619, trad.] e “Charles Dellon” [1688, trad.] in: FRANÇA (ed.), A construção do Brasil, pp. 362 e 434. 1

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Imagem 1: Retomada de São Salvador pelos espanhóis, 1625

Fonte: “Verovering van San Salvador door de Spanjaarden, 1625”, oficina de Frans Hogenberg, 1625-1627, Amsterdam, Rijsmuseum. Disponível em: https://www.rijksmuseum.nl/en/collection/RP-POB-78.785-394 (consultado em: set. 2014).

Apesar do exagero da comparação (a cidade francesa contava com quase 100.000 habitantes à época5), que tal paralelo fosse concebível nos diz algo sobre o crescimento de Salvador. De um lugarejo de 800 fogos em 1587, crescera um pouco para “mil e mais vizinhos em 1610”, indicando um total superior a 6.000 moradores6. Na transição do século XVI para o XVII, portanto, a Cidade da Bahia já ultrapassara o limiar de 4.000 habitantes que configuraria uma “cidade propriamente dita” no Portugal continental quinhentista7. Continuaria, porém, a ser muito menor que as principais cidades provinciais do Reino, como Porto, Évora, Coimbra,

FLOURY-BUCHALIN, Cécile. “Assainir et proteger le corps de la ville: l’émergence de la santé publique à Lyon au XVIIe siècle”. Chrétiens et Sociétés, n. 15, 2008, p. 30. 6 SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Org. de Fernanda Trindade Luciani. São Paulo: Hedra, 2010, p. 152; MONTEIRO, “Relação da Província do Brasil”, p. 404. Utilizei o coeficiente já tradicional na historiografia brasileira, que iguala cada “fogo” ou “vizinho” a cinco moradores (razão presente no censo eclesiástico baiano de 1706 e no fluminense de 1687), mas acrescento 25% a esse número para levar em conta as crianças menores de sete anos e os índios e negros pagãos (como na paróquia da Candelária, no Rio de Janeiro, que contava com 2.800 “pessoas de comunhão” e 3.500 almas). Arquivo da Cúria Municipal do Rio de Janeiro, Série da Visita Pastoral, VP38: “Notícias do Bispado do Rio de Janeiro no ano de 1687”. Agradeço a João Fragoso pela cessão deste interessante documento. 7 GODINHO, Vitorino Magalhães. A Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa. Lisboa: Arcádia, 1971, p. 26. 5

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que girariam entre 14.000 e 10.000 pessoas em inícios do seiscentos, e menos populosa até mesmo que algumas cidades do Algarve, como Faro, Tavira e Lagos8. A partir de meados do XVII, porém, a Câmara repetidamente destaca o crescimento demográfico da cidade, lançando mão desse argumento desde 1660 com o objetivo de ampliar o número de ofícios.9 Para pedir mais lugares no Convento do Desterro (capítulo III), o Senado afirma que a população triplicara entre 1664 e 171710. Tal cálculo é um tanto quanto exagerado, mas o aumento demográfico foi notável: em 1681 o desembargador sindicante Sebastião Cardoso de Sampaio estimava a população soteropolitana em 3.000 vizinhos11 (qualquer coisa em torno de 18.000 habitantes) e, em 1706, um levantamento eclesiástico apontou 4.296 fogos e 21.601 “almas de confissão”12, indicando uma população total em torno de 27.000, mais de quatro vezes superior à existente um século antes. Se considerarmos que a proporção entre livres e escravos não deve ter se alterado significativamente entre 1706 e 1718, para quando possuímos o primeiro levantamento populacional mais preciso, a população escrava devia representar metade do total, e certamente uma parcela crescente dos livres era composta por forros e seus descendentes (como vimos na epígrafe de Gregório de Matos)13. A título de comparação com o restante da América Portuguesa, a cidade do Rio de Janeiro não passaria de “três a quatro mil almas” em 1672, menos de um terço da população de Salvador em 1675-81, enquanto São Paulo não chegaria a 2.000 habitantes em 168714. Já Olinda e Recife contavam, respectivamente, com 860 e 2450 fogos em 170115, não alcançando, somadas, 80% da população soteropolitana de 1706. A capital do Estado da Índia, Goa, aparecia

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SOARES, Sérgio Cunha. O Município de Coimbra da Restauração ao Pombalismo. Coimbra: CHSC, 2001, vol. I: Geografia do Poder Municipal, p. 21; MAGALHÃES, Joaquim Romero. O Algarve Econômico, 1600-1773. Lisboa: Estampa, 1993 [1988], p. 110. 9 AHU, Bahia, Luiza da Fonseca, cx. 15, doc. 1777. 10 CS, vol. VI, pp. 74-5. 11 AHU, Bahia, LF, cx. 24, doc. 2972. O mesmo número foi dado poucos anos antes por FREIRE, Francisco de Brito. Nova Lusitânia: História da Guerra Brasílica. São Paulo: Beca, 2001 [1675], p. 67. Por esses anos, Juan Lopes Sierra afirmou “que esta cidade cada dia vai em grande multiplicação de gente”: SCHWARTZ, Stuart & PÉCORA, Alcir (orgs.). As excelências do governador: o panegírico fúnebre a d. Afonso Furtado, de Juan Lopes Sierra (Bahia, 1676) (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2002 [1979], p. 218. 12 ALMEIDA, Eduardo de Castro e. “Inventário dos documentos relativos ao Brasil existentes no Archivo de Marinha e Ultramar” in: ABN, vol. 32, p. 131 (doc. 2010). 13 SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835 (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1988 [1985], p. 87; ALDEN, Dauril. “Price movements in Brazil before, during, and after the gold boom, with special reference to the Salvador Market, 1670-1759” in: JOHNSON, Lyman & TANDETER, Enrique (eds.). Essays on the price history of eighteenth-century Latin America. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1990, p. 363, nota 13, afirma que os dados foram colhidos em 1718, apesar da datação de 1724 aceita por Schwartz. 14 CARRARA, Angelo. “A população do Brasil, 1570-1700: uma revisão historiográfica”. Tempo, vol. 20, 2014, p. 11 (citação) e Arquivo da Cúria Municipal do Rio de Janeiro, Série da Visita Pastoral, VP38. 15 FEITLER, Bruno. Nas malhas da consciência: Igreja e Inquisição no Brasil, Nordeste, 1640-1750. São Paulo: Alameda/Phoebus, 2007, pp. 47-8.

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como um gigante em inícios do Seiscentos, com 75.000 pessoas (em sua maioria nativos), mas em finais da centúria havia se reduzido a 20.000 em resultado da sua decadência econômica16. Como em economias pré-industriais o crescimento tende a ocorrer mais pela agregação de fatores de produção (terra e trabalhadores) do que por ganhos de produtividade e, por outro lado, o aumento populacional tem uma relação direta com a capacidade econômica de sustentar esse mercado, a demografia é um significativo sinal do avanço da Cidade da Bahia para a posição de segunda mais importante do Império português ao longo do século XVII. Embora essas estimativas certamente sejam imprecisas, elas permitem que tenhamos uma noção da ordem de grandeza. Calcular taxas de crescimento é empreendimento ainda mais temerário, mas nos auxilia a estabelecer comparações. Assim, as porcentagens apresentadas nesse capítulo devem ser lidas com uma dose saudável de ceticismo, pois não passam de indicadores muito aproximados. Tendo essas ressalvas em mente, podemos dizer que a população soteropolitana aumentou cerca de 1.6% ao ano, taxa excepcional em comparação com as existentes na Europa pré-industrial: no mesmo período, a população europeia cresceu apenas 0,14% ao ano, e, em Portugal, as maiores urbes portuguesas mantiveram-se estagnadas, dentro do contexto da crise demográfica mediterrânea seiscentista, especialmente aguda em Portugal entre 1620-6517. Se nos voltarmos para o contexto atlântico, porém, é possível encontrar regiões com desenvolvimento muito mais acelerado: o Caribe inglês cresceu de 14.000 para 128.000 entre 1640-1700 (3,8% ao ano), enquanto o Chesapeake passou de 8.000 para 98.000 no mesmo período (4,3% ao ano)18. No império inglês, porém, não havia nenhuma cidade de tamanho comparável a Salvador; já a América Espanhola contava com metrópoles muito maiores, como a Cidade do México (c. 50.000 em 1599 e 100.000 em 1692), Potosí (c. 160.000 em 1610 e 70.000 em 1700), Lima (c. 25.000 em 1614 e 37.000 em 1700) e Quito (c. 15.570 em 1650 e 40.000 em

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SOUZA, Teotónio de. Goa Medieval: a Cidade e o Interior no Século XVII. Lisboa: Estampa, 1993, p. 110. DE VRIES, Jan. A Economia da Europa numa Época de Crise (1600-1750) [trad.]. Lisboa: Dom Quixote, 1991 [1976], pp. 16-25; PARKER, Geoffrey. Global Crisis: war, climate change and catastrophe in the seventeenthcentury. New Haven: Yale UP, 2013, pp. 77-110; WRIGHTSON, Keith. Earthly Necessities: economic lives in Early Modern Britain. New Haven: Yale UP, 2000, p. 121; SERRÃO, José Vicente. “População e rede urbana nos séculos XVI-XVIII” in: OLIVEIRA, César (dir.). História dos Municípios e do Poder Local (dos finais da Idade Média à União Europeia). Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, pp. 65-6 e RODRIGUES, Teresa Ferreira. “As vicissitudes do povoamento nos séculos XVI e XVII” in: id. (coord.) História da População Portuguesa: das longas permanências à conquista da modernidade. Porto: Afrontamento, 2009, pp. 175-196. 18 GALENSON, David W. “The Settlement and Growth of the Colonies: Population, Labor and Economic Development” in: ENGERMAN, Stanley & GALLMAN, Robert (eds.). The Cambridge Economic History of the United States. Cambridge: Cambridge UP, 1996, vol. I: The Colonial Era, p. 170. 17

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1670)19. Com a exceção desta última, suas trajetórias demográficas foram bem menos brilhantes do que a baiana – o que é parcialmente explicável pelo seu enorme tamanho já em inícios do século. É bem possível também que a população de origem europeia de Salvador não fosse muito inferior a de suas contrapartes nessas cidades hispano-americanas, já que o gigantismo delas devia-se a sua imensa população indígena e mestiça: a Cidade do México, por exemplo, não teria mais que 15.000 “espanhóis” no século XVII. O crescimento demográfico das Américas Inglesa e Portuguesa devia-se ao caráter de “fronteira aberta” do continente americano (graças ao despovoamento indígena causado por doenças, guerras e catequização)20, que permitia o aumento da produção através da extensão do território cultivado, estimulando a migração de europeus e o tráfico de africanos (já que a mão de obra era o outro fator produtivo fundamental)21. Assim, no mundo português, o crescimento baiano é notável, mas, da mesma maneira que Portugal em comparação com o Norte da Europa, manteve-se significativamente atrás das possessões inglesas no Novo Mundo, e a baixa densidade da população indígena impediu que alcançasse os números das áreas centrais hispano-americanas. Os dados para a capitania como um todo são ainda mais escassos. Fernão Cardim fala em 10 ou 12.000 portugueses, 3.000 africanos e 8.000 indígenas na Bahia em 158522; o jovem licenciado peruano António de León y Pinelo menciona mais de 10 mil portugueses e, talvez, 30 mil escravos (além de “infinitos índios”), mas certamente trata-se de um exagero de alguém interessado em abrir oficialmente o comércio entre Buenos Aires e o Brasil23. A informação já conhecida de Diogo do Campos Moreno de 3.000 brancos no Recôncavo em 1612 parece mais confiável24. Considerando que a população total da Bahia devia rondar entre duas vezes e meia (proporção utilizada por Gabriel Soares de Sousa em 1587) e três vezes (encontrada no censo eclesiástico de 1718) a de Salvador, é possível estimar grosseiramente números em torno de FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. “Latin America” in: CLARK, Peter (ed.). The Oxford Handbook of Cities in World History. Oxford: Oxford UP, 2013, p. 374 e ELLIOTT, John. Empires of the Atlantic World: Britain and Spain in America, 1492-1830. New Haven: Yale UP, 2007 [2006], p. 181. 20 Para a apropriação europeia das terras americanas, cf. GREER, Allan. ”Commons and Enclosure in the Colonization of North America”. American Historical Review, vol. 117, n. 2, 2012, pp. 365-86. 21 Cf. BARICKMAN, B. J. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo, 17801860 (trad.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003 [1998], pp. 165-209. 22 CARDIM, Fernão, “Información de la província del Brasil para nuestro Padre” [1585] in: MAURO, Frédéric (ed.), Le Brésil au XVIIe siècle: documents inédits relatifs à l’atlantique portugais, Coimbra: Ed. da Universidade de Coimbra, 1961 (separata de Brasília, XI), p. 139. Para outras estimativas para esse ano, cf. CARRARA, “A população do Brasil”, p. 7. 23 Archivo General de Indias, Charcas 33 (Impresso solicitando licença para comércio por Buenos Aires, s/d, anterior a 1616) - agradeço a José Carlos Vilardaga por generosamente me ceder essas informações. 24 Biblioteca Municipal do Porto, Manuscrito 126: Livro que dá Razão ao Estado do Brasil, f. 51 – há edições modernas, mas, por comodidade, utilizei as imagens disponibilizadas no site do arquivo. Para outra estimativa coeva idêntica, ver CARRARA, “A população do Brasil”, p. 9. 19

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15.000 habitantes em 1610, 50.000 em 1681 e 80.000 em 170625 - o que, incidentalmente, significa que a capitania era bastante urbanizada para os padrões da época moderna graças ao tamanho de sua capital, numa proporção similar à Estremadura portuguesa 26. Novamente, utilizando como base a proporção encontrada pelo censo de 1718, cerca de 60% da população do Recôncavo devia ser escrava, estimativa reafirmada pela grande participação de mães escravas nos registros paroquiais sobreviventes, como veremos no capítulo II. Parece claro, portanto, apesar de dispormos de dados demográficos escassos para as duas margens do Atlântico português no século XVII, que Salvador conhece um acelerado crescimento e transforma-se em uma das maiores urbes do mundo ultramarino português, ultrapassando a segunda cidade do reino, o Porto (cuja população urbana cai de algo em torno de 20.000 em 1599 para cerca de 16.000 entre 1639 e 1688)27, e sendo superada apenas por Lisboa. Como veremos no decorrer da tese, tal desenvolvimento demográfico é parte fundamental da maturação da sociedade e elite baiana.

Do Recôncavo ao Açúcar... e mais além A cidade da Bahia não existia, porém, em um vácuo: seu desenvolvimento era indissociável, por um lado, do Recôncavo e, por outro, do Império português. Tratemos primeiro do mais próximo antes de passarmos para o mais distante. Nas palavras nem um pouco imparciais de Sebastião da Rocha Pita no início do setecentos, “o seu recôncavo é tão culto, e povoado, que se lhe descrevêramos as fábricas e lhe numerarmos os vizinhos, gastaríamos muitas páginas, e não poucos algarismos”28. Irrigado por rios e banhado pela baía, o Recôncavo baiano ligava-se profundamente à cidade, geralmente não estando a mais de um dia de viagem de distância – em grande medida graças à água, através da qual se fazia “todo o meneio destas gentes”, no dizer de Diogo de Campos Moreno. Assim, a maior parte dos senhores de engenho e lavradores viviam em suas propriedades, mas mantinham casas ou ao menos visitavam frequentemente a cidade para fazer negócios, participar da política ou atuar nas irmandades leigas mais prestigiosas.

25

Apesar de ligeiramente mais otimistas, minhas extrapolações são largamente inspiradas na excelente síntese de CARRARA, “A população do Brasil”, p. 17. A informação de que as ordenanças reuniriam 20.000 homens em 1694 sugeriria uma população ainda maior para a capitania, pois esse número não inclui mulheres, crianças ou escravos: DH, vol. 34, p. 169. 26 DE VRIES, Jan. European Urbanization, 1500-1800. Nova York: Routledge, 2007 [1984], p. 39; RODRIGUES, “As vicissitudes do povoamento”, p. 193. 27 SILVA, Francisco Ribeiro da. O Porto e o seu termo (1580-1640). Os homens, as instituições e o poder. Porto: Arquivo Histórico/Câmara Municipal, 1988, vol. I, pp. 92-103. 28 PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portugueza, desde o anno de mil e quinhentos do seu descobrimento, até o de mil e setecentos e vinte e quatro. Lisboa: Oficina de Joseph Antonio da Silva, 1730, p. 78.

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As melhores terras, situadas na orla norte, foram tomadas pela cana, mas em todas as partes do Recôncavo conviviam açúcar, tabaco e mandioca. Entretanto, a prioridade dada à produção para exportação, especialmente na capitania onde “se faz[ia] o melhor açúcar de toda a costa”, tendia a fazer com que a apropriação cartográfica do território se desse majoritariamente através dos principais engenhos, destacados em todos os mapas da região29. Tal abordagem justificava-se porque os engenhos de açúcar funcionavam não somente como unidades de produção, mas também como núcleos populacionais, devido à grande quantidade de pessoas a ele ligadas: escravos, assalariados, agregados e lavradores, muitos com suas famílias; centros políticos, devido ao poder concedido pela posse da terra em sociedades de Antigo Regime30; e até religiosos, por causa de suas capelas31. Ou, para usar as palavras de um governador reinol, “qualquer desses engenhos parece povoação de uma vila, por suas grandes máquinas, igrejas, casas nobres dos senhorios e capelães e as ordinárias dos criados e lavradores”. No mesmo sentido, a açucarocracia baiana escrevera numa petição poucos anos antes que “a experiência mostra que os engenhos são as povoações e vilas que fazem habitável esta capitania e Estado, e que aonde os não há está quase despovoada. (...) Nesta capitania se acham mais povoadores nas freguesias que tem mais engenhos; porque como constam de tantos oficiais e pessoas para sua fábrica, e concorrem com eles os lavradores de cana e lenhas, compõe cada engenho quase uma vila, e quantos mais engenhos se fizerem, tantos mais lugares haverá destes”32. Consequentemente, construir um engenho e assumir o título de senhor implicava muito mais do que um cálculo racional entre a possibilidade de lucros superiores e a certeza de maiores despesas, tendo significados potenciais no status social, na preeminência política e até nas oportunidades matrimoniais da família em questão. Vistas em sequência, as imagens 2 e 3, abaixo, separadas por 24 anos de diferença, são indicativas da continuidade desse processo de apropriação do território na primeira metade do seiscentos, percebida através do aumento do número de engenhos relevantes o suficiente para serem apontados em dois mapas, de resto, quase idênticos.

CARDIM, Fernão. “Narrativa epistolar de uma viagem e missão jesuítica...” [1ª carta, 1585] in: id. Tratados da Terra e Gente do Brasil. Lisboa: CNCDP, 1997, p. 217. Para a melhor descrição do Recôncavo, cf. SCHWARTZ, Segredos internos, pp. 77-94. 30 LEVI, Giovanni. “Economia camponesa e mercado da terra no Piemonte do Antigo Regime” [1990, trad.] in: OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de & ALMEIDA, Carla de Carvalho (eds.). Exercícios de micro-história. Rio de Janeiro: FGV, 2009, p. 88. 31 Para a melhor análise desse complexo papel exercido pelos engenhos, cf. FRAGOSO, João. À Espera das Frotas: micro-história tapuia e a nobreza principal da terra (Rio de Janeiro, c. 1600 – c. 1750). Tese de Titular. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2005, pp. 119-29. 32 FREIRE, Nova Lusitânia, p. 67 e AHU, Bahia, LF, cx. 16, doc. 1894, respectivamente. 29

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Mapa 1: A Bahia de Todos os Santos, 1616.

Fonte: Biblioteca Municipal do Porto, Manuscrito 126: Livro que dá Razão ao Estado do Brasil, f. 55.

Mapa 2: A Baýa de Todos os Santos, 1640

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Fonte: IAN/TT, Coleção Cartográfica, n. 162: ALBERNAZ, João Teixeira. “Descrição de todo o marítimo da terra de Santa Cruz chamado vulgarmente o Brasil”. Disponível em: http://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4162623 (consultado em: set. 2014).

Tais representações só apontam, porém, os engenhos mais destacados, como os das famílias Aragão (um em 1616, três em 1640) e Ulhoa (dois e três, respectivamente), parentelas que analisaremos no capítulo III. Para o total, existem diversas estimativas, apresentadas no quadro abaixo. Como já foi destacado pela historiografia, os elevados preços do açúcar no mercado internacional e o acesso à mão de obra escrava indígena barata, assim como à terra fértil e abundante, permitiram uma acelerada expansão entre 1560 e a década de 1580, um período de crescimento lento ou estagnação (o que me parece mais provável) até 1609-12, dependendo de qual estimativa nos fiemos mais, e um crescimento moderado até 1629, sustentado pela difusão da moenda de três tambores verticais e prejudicado pela ocupação neerlandesa de Salvador em 1624-5. É provável que esse lento avanço tenha continuado no início da década de 1630, favorecido pela diminuição da produção pernambucana em razão da invasão neerlandesa e, em alguma medida, pelo influxo de capital e escravos dos portugueses retirados. Uma estimativa da produção açucareira a partir dos dízimos parece indicar que a década de 1620 conheceu uma série de oscilações na produção, parcialmente pela diminuição da demanda europeia e, principalmente, pelos ataques neerlandeses – o que explica a estagnação da produção entre 1610 e 1632.

Quadro 1: engenhos na Bahia e produção de açúcar. Ano

Número Produção (toneladas)

1534-49

2

1553-7

1

1570

18

1583

36

1584

36*

1585

46

1589

50

1609

47

1610

63

1612

50

1629

80

4.410

18

1632

80

1648

61

1663

69

1675

130

c. 1693-8*** 146

4.389**

7.460

Fontes: SCHWARTZ, Segredos Internos, pp. 148-50; FRANÇA, Eduardo d’Oliveira. “Engenhos, Colonização e Cristãos-Novos na Bahia Colonial”. Anais do IV Simpósio Nacional dos Professores Universitários de História, 1969, p. 223; MORENO, Diogo de Campos. “Relação das praças fortes do Brasil (1609)”. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, vol. 57, 1984, pp. 215-6; AHU, Bahia, LF, cx. 14, doc. 1665. * Mais quatro em construção. ** Retirando a produção correspondente a quatro engenhos de Ilhéus. *** Considerando a data de redação da primeira parte de ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. Introdução e comentário crítico por Andrée Mansuy Diniz Silva. Lisboa: CNCDP, 2001 [1711], pp. 34-8.

Entre 1638 e 1648, porém, as incursões neerlandesas queimaram meia centena de engenhos e prejudicaram seriamente a navegação, trazendo grandes prejuízos para o negócio do açúcar, com 27 engenhos destruídos em 1640 e mais 22 ou 24 em 164833. É a guerra que explica a diminuição do número de engenhos, mas, depois de uma lenta recuperação na década de 1650 (crescimento de 1,5% ao ano), o início da década de 1660 conheceu um novo período de efervescência na construção de fábricas, produzindo uma disputa que dividiu a açucarocracia da capitania sobre a conveniência de se proibir a construção de novos engenhos no Recôncavo. Em 8 de setembro de 1660 o juiz do povo e os mesteres de Salvador enviaram à Coroa uma petição afirmando que a multiplicação de engenhos no Recôncavo os estava privando de cana e lenha, gerando diversas falências, prejudicando o “serviço de Vossa Majestade e às conveniências deste povo (que todo ele tem sua universal dependência dos engenhos)”, pois estes sustentavam o comércio, a Coroa (através dos dízimos e das alfândegas) e a infantaria. O papel sugere que a única solução seria a proibição da construção de engenhos perto de fábricas em funcionamento, liberando a edificação de moendas somente no interior34. A solidez da argumentação, o conhecimento da atividade açucareira e da situação de muitos senhores de engenho sugerem, porém, que o autor pertencia à açucarocracia – como depois se provou ser o caso, pois o autor do documento foi o secretário de Estado Bernardo Vieira Ravasco. O provedor-mor Lourenço de Brito Correia (senhor de engenho e desafeto do secretário – capítulos III e VI) reagiu contra o arbítrio, condenando-o, pois “quem diz Brasil diz açúcar e

33 34

CS, vol. I, pp. 12-4, AC, vol. I, p. 443; AHU, cód. 30, fls. 39v-40 e Bahia, LF, cx. 14, docs. 1660 e 1665. “Carta do juis do povo e misteres desta cidade” in: MAURO (ed.), Documénts, pp. 289-301.

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mais açúcar”. Seu sucessor (Antônio Lopes de Ulhoa, também senhor de engenho) manteve a mesma linha, reunindo assinaturas de 108 pessoas principais contrárias à proibição (capítulo III) e acusando Ravasco de ter forçado o juiz do povo analfabeto a assinar, pois seu engenho nunca consegue o quanto de canas necessita e está devendo mais de 120.000 cruzados, “pelos quais está executado no seu engenho e fazendas que tudo não valerá a metade que deve, parece inventou também este requerimento para seu remédio que todos ficassem no mesmo estado que ele está”. Seria exatamente graças à liberdade de construção de moendas que o Rio de Janeiro “se fez maior e mais opulenta que todas as deste Estado que tem hoje 150 engenhos”35. Ravasco treplicou, acusando Brito Correia de querer construir uma moenda, Ulhoa de “sujeito pobríssimo” e seus apoiadores de se oporem à medida por também desejarem levantar fábricas – o que provavelmente era verdade. Usa, então, o exemplo do Rio de Janeiro em sentido oposto ao da argumentação de seus adversários, pois teria sido a multiplicação em breves anos de 60-70 engenhos para 160-170 que ocasionara a ruína da capitania, comprovada pela diminuição à metade dos dízimos da capitania. O contrato realmente sofrera uma perda brutal de valor, pois entre 1649-58 girara entre 45.000 a 51.666 cruzados anuais, mas a partir de 165960 passara a valer somente 23.416, patamar no qual se manteve até 168736. As oscilações da economia açucareira fluminense indicam que o ritmo de aumento do número de engenhos é uma espécie de espelho invertido do desenvolvimento baiano: o período de maior crescimento no Rio de Janeiro deu-se na década de 1640, duplicando o número de moendas, justamente a época de mais grave crise para a produção baiana e pernambucana, em razão da guerra contra os neerlandeses, confirmando hipótese há tempos lançada por Evaldo Cabral de Mello. Essa expansão acelerada deve ter funcionado como um grande incentivo para a liderança fluminense na reconquista de Angola em 1648, pois tornou-se necessário obter um imenso número de cativos para os novos engenhos. Assim, será exatamente a partir da recuperação baiana na década de 1660 que diminuirá fortemente a taxa de crescimento do número de engenhos fluminenses, pois a menor qualidade do açúcar carioca impossibilitava a competição com o produto baiano, mais valorizado. Assim, apenas com outra crise na Bahia em finais da década de 1680 o Rio de Janeiro conseguirá recuperar os níveis atingidos na década de 165037. O Conselho Ultramarino tinha plena consciência dessa situação, pois escreveu ao AHU, Bahia, LF, cx. 16, docs. 1862-3, 1865 e 1894; “Liberdade e limitação”, citações às pp. 492, 493 e 494. AHU, Bahia, LF, cx. 16, doc. 1871; CARRARA, Angelo. Receitas e despesas da Real Fazenda no Brasil: século XVII. Juiz de Fora: EDUFJF, 2009, p. 126. 37 ABREU, Maurício. Geografia Histórica do Rio de Janeiro (1502-1700). Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson, 2011, vol. I, pp. 94-103; MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada: guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2007 [1975], 3ª ed. rev., pp. 331-2; FRAGOSO, À Espera das frotas, p. 38; CARRARA, Receitas e despesas, p. 117. 35 36

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monarca que “só na folga destas [capitanias] comerciou a do Rio de Janeiro, e pelo tempo da ocupação dos holandeses nas praças do norte por irem as frotas às do sul comerciar pela causa referida, sendo a viagem mais dilatada e os açucares de menos”38. Voltando ao debate sobre a proibição, os conselheiros penderam para o lado dos “proibicionistas”, sugerindo que o vice-rei Conde de Óbidos reunisse as opiniões do provedormor e da Câmara para decidir sobre o assunto. O monarca decidiu consultar o Conde, mas manter para si a decisão final. Acionada pelo vice-rei, a Câmara em 1663 apoiou a proibição, liderada pelo juiz Paulo Antunes Freire – o qual no ano anterior havia assinado a representação contrária! O secretário de Estado conseguira atrair mais adeptos para sua causa. Satisfeito, o Conselho procurou convencer o monarca a decretar uma proibição provisória de efeito imediato, mas sem sucesso. Óbidos demorou quase dois anos para responder, mas quando o fez escreveu em favor da proibição. Surpreendentemente, porém, o Conselho Ultramarino reverteu sua posição, defendendo que fosse permitido aos vassalos construir engenhos onde bem entendessem, no que talvez constituísse uma reação do injuriado tribunal contra o vice-rei, em razão dos entreveros que os opuseram exatamente nesse período (capítulo VI)39. O monarca não se manifestou, mas o tema voltou à pauta em 1669, quando Bernardo Vieira Ravasco escreveu outro papel, mas dessa vez alistou em seu apoio 19 dos principais senhores de engenho baianos, inclusive seis que haviam se oposto ao projeto de proibição sete anos antes. O que suscitara a nova representação foi o início da construção de seis novos engenhos à beira-mar, que competiriam por lenha e cana com os signatários. Os camaristas de 1665 (quatro deles senhores) encaminharam o papel ao governador, que o apoiou. O Conselho Ultramarino retornou à sua posição original, favorável à limitação da construção de novos engenhos, e Salvador Correia de Sá sugeriu que fosse estabelecida uma distância mínima de duas léguas de distância dos novos engenhos para os antigos40. D. Pedro, porém, não tomou decisão alguma, e o tema voltou a adormecer nos escaninhos do Conselho. Entretanto, em 1680 a Câmara de Salvador voltou à carga, liderada pelo juiz ordinário Rafael Soares França, senhor de engenho que havia assinado o papel de 1669 – um de seus colegas havia servido nesse ano, e outros três eram donos de moendas. O motivo do requerimento foi que, novamente, se estavam “fundando e fazendo pela terra adentro muitos engenhos de açúcares juntos uns dos outros”, de modo que era necessária uma provisão régia proibindo a construção de engenhos a menos de

38

AHU, cód. 16, fl. 171v. DH, vol. 66, pp. 218-9. AHU, Bahia, LF, cx. 17, docs. 1951, 1980; cx. 18, doc. 2077; cód. 16, fl. 71v-72v, 101v e 171v. 40 AHMS, PGS, 1660-77, fls. 164-170v; AHU, Bahia, LF, cx. 20, doc. 2366; cód. 16, doc. 393v. 39

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uma légua de outro. Ao mesmo tempo, senhores de engenho prejudicados escreviam à Coroa tentando conseguir provisões particulares nesse sentido, o que reforçava a argumentação da Câmara. Contando com o apoio do mestre de campo general Roque da Costa Barreto e do parecer positivo do procurador da Coroa, tanto o Conselho quanto o monarca se convenceram da justiça da medida, e finalmente foi passada em 3 de novembro de 1681 a carta régia pedida mais de vinte anos antes, proibindo a construção de fábricas a menos de meia légua de outras já existentes, acatando a distância sugerida por Costa Barreto. As demandas continuaram nos anos seguintes: ao menos cinco engenhos foram levantados até 1684, pois seus senhores afirmavam que sua construção havia começado antes da proibição41.

Gráfico 1: preço ajustado do açúcar na Bahia, 1607-1699 (réis por arroba) 2500

2000

1500

1000

500

0 1600

1620

1640

1660

1680

1700

1720

Fonte: SCHWARTZ, Segredos Internos, pp. 400-1.

Esse debate demonstra os efeitos do acelerado aumento do número de fábricas da capitania. O período entre 1663-75 conheceu um excepcional crescimento anual de 5,4% no número de engenhos, taxa próxima ao “tempo dourado” entre 1570-90, baseado na escravidão

41

CS, vol. II, pp. 80-1 (citação); DH, vol. 88, pp. 209-11; CCLP, vol. 9, p. 364; AHU, Bahia, LF, cx. 25, docs. 3009-10, 3012-3 e 3015; cx. 26, docs. 3138-9 e 3231. Monsenhor Pizarro afirmou que a proibição foi renovada em 6 de novembro de 1684, mas não encontrei essa carta régia: PIZARRO E ARAÚJO, José de Souza Azevedo. Memórias Históricas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Typographia de Silva Porto, 1822, vol. 7, p. 96, nota 21.

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indígena e na maior liberdade comercial42. Mesmo considerando que os novos engenhos provavelmente eram menores, impressiona o vigor da economia açucareira numa conjuntura de intensificação da fiscalidade, com a obrigação de contribuir para o donativo de Dote e Paz (capítulo VI) e da “muito notória” seca e “esterilidade” de 1665, além de um surto de varíola que teria causado a morte de mais de 5.000 cativos43. Esse desenvolvimento deve ter sido facilitado porque várias das fábricas eram reconstruções de outras destruídas ou abandonadas, mas a velocidade do crescimento é impressionante – assim como sua continuação, mesmo que muito mais lentamente (apenas 0,5%) até o final do século, a despeito de todas as reclamações da ruína da capitania emitidas pelos camaristas na década de 1680. Ao analisarmos a evolução dos preços do açúcar durante o século XVII, o crescimento do número de engenhos torna-se ainda mais surpreendente, já que entre 1610 e 1629, apesar dos preços excepcionalmente baixos, o número de engenhos continuou a crescer, e os poucos dados entre 1662-75 não indicam preços tão elevados que justifiquem a construção de um número recorde de fábricas – nem a continuidade do movimento, mesmo que mais lentamente, após a queda dos preços na transição para a queda seguinte. Não é possível, portanto, estabelecer uma correlação direta entre o nível dos preços e a construção de engenhos, devido ao “crédito que imaginavam no nome de senhor dele”, isto é, o prestígio e poder associados a essa posição44.

Gráfico 2: Preços dos escravos e do açúcar, 1620-1720.

RICUPERO, Rodrigo. “O Tempo Dourado do Brasil no final do século XVI” in: GARRIDO, Álvaro; COSTA, Leonor Freire & DUARTE, Luís Miguel (orgs.). Economia, Instituições e Império – estudos em homenagem a Joaquim Romero Magalhães. Coimbra: Almedina, 2012, pp. 337-48. 43 AHU, Bahia, LF, cx. 19, doc. 2153. Cf. também PITA, História, pp. 358-61. 44 “Carta do juis do povo”, p. 293. 42

23

Fonte: SCHWARTZ, Segredos Internos, p. 167.

Há, porém, que se considerar outros elementos. Como é possível perceber no gráfico 2, o preço dos escravos relativamente ao do açúcar estava favorável aos produtores no início da década de 1620, e ainda mais entre 1660-80, graças a uma significativa queda no preço dos cativos entre meados da década de 1650 e o final da de 167045, o que barateava o principal fator de produção: a mão de obra cativa. As incansáveis atividades militares dos governadores brasílicos em Angola em meados do seiscentos foram fundamentais, portanto, para produzir trabalhadores baratos para os campos baianos, possibilitando a expansão de sua força produtiva46. Encontra-se aqui um dos fatores fundamentais para a resiliência e expansão da escravidão na América Portuguesa seiscentista, nomeadamente na Bahia, que manteve entre 1650 e 1740 o posto de principal porto escravista das Américas. Outra razão para a dinâmica encontrada nessas conjunturas entre 1620-80 estava na quantidade de escravos. Entre 1620-40 o suprimento de cativos foi constante e numeroso (em torno de 3.000 por ano) graças às guerras na região Congo-Angola, abastecendo um Brasil cada vez mais sedento por africanos escravizados em razão da destruição demográfica indígena. A conquista neerlandesa de Luanda em 1641 diminuiu a oferta e elevou os preços a níveis recordes até 1654, mas a partir daí a situação se reverteu, atingindo-se uma média de 3.600 por ano47.

Gráfico 3: Estimativa do número de africanos escravizados desembarcados em Salvador, 1601-1700. 10000 8000 6000 4000 2000 0 1580

1600

1620

1640

1660

1680

1700

1720

MILLER, Joseph. “Slave Prices in the Portuguese Southern Atlantic, 1600-1830” in: LOVEJOY, Paul (ed.). Africans in Bondage: studies in slavery and the slave trade. Madison: University of Wisconsin Press, 1986, pp. 47-57. Para uma visão geral dos preços na Bahia, cf. ALDEN, “Price movements”. 46 Cf. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp. 247-325. 47 Cf. HEYWOOD, Linda & THORNTON, John. Central Africans, Atlantic Creoles, and the Foundation of the Americas, 1585-1660. Cambridge: Cambridge UP, 2007, pp. 109-68. 45

24

Fonte: http://slavevoyages.org/tast/assessment/estimates.faces, consultado em set. 2014. Total: c. 313.00048.

As estimativas do tráfico indicam uma queda a partir de 1678, especialmente vigorosa entre 1686-8 (apenas 6.400 cativos nesses três anos) – período em que o preço dos escravos subia enquanto o do açúcar despencava, e Salvador era assolada pelo “mal da bicha”49 e pela carestia de mandioca. Esses problemas somavam-se à seca e às epidemias de varíola entre 16814. Por isso, a década de 1680 é um período tradicionalmente considerado de crise açucareira pela historiografia, especialmente em razão da baixa dos preços, da concorrência antilhana no mercado internacional e das políticas protecionistas francesas e inglesas, que restringiam severamente o mercado para o açúcar brasileiro50. A própria Câmara de Salvador tinha consciência de sua inserção em um mercado atlântico, referindo-se à produção açucareira inglesa e d“os mais do Norte” n“as Barbadas” [Barbados] como um dos motivos da crise, de modo a justificar sua demanda de redução dos impostos sobre tabaco e açúcar, em 168751. Em importante artigo de síntese, porém, Antônio Carlos Jucá aponta as limitações dessa interpretação (especialmente a ênfase na diminuição do preço do açúcar em razão da concorrência no mercado internacional), criticando o emprego de “informações esparsas para reforçar o argumento”, a exemplo das “reclamações dos senhores de engenho como indício da crise”. Esse procedimento só seria válido caso se pudesse provar “que tais reclamações estão diretamente ligadas às conjunturas, ou seja, que elas aumentam em certos períodos e diminuem em outros. De fato, não é isso o que acontece”, pois seriam apenas manifestações de um endividamento estrutural da produção canavieira52. Apesar de reclamações sobre o endividamento e o preço do açúcar atravessarem o seiscentos, sua distribuição não é uniforme, concentrando-se em conjunturas específicas. A

As estimativas são justificadas em ELTIS, David & RICHARDSON, David. “A New Assessment of the Transatlantic Slave Trade” in: id. (eds.). Extending the Frontiers: essays on the new Transatlantic Slave Trade Database. New Haven: Yale UP, 2008, pp. 15 e 18. Gustavo Lopes sugere que talvez seja seja necessário revisálas para baixo: “Brazil’s colonial economy and the Atlantic Slave Trade: supply and demand” in: RICHARDSON, David & SILVA, Filipa Ribeiro da (eds.). Networks and Trans-Cultural Exchange: slave trading in the South Atlantic, 1590-1867. Leiden: Brill, 2014, pp. 42-7. Veja-se sua análise sobre a conjuntura econômica pernambucana na segunda metade do XVII, que serve como um interessante paralelo para a discussão aqui empreendida: “A Fênix e a conjuntura atlântica: açúcar e escravos na segunda metade do século XVII”. Portuguese Studies Review, vol. 20, 2014, pp. 1-35. 49 PITA, História, pp. 427-39. 50 Cf. SCHWARTZ, Segredos internos, pp. 144-76 e id. “Looking for a New Brazil: Crisis and Rebirth in the Atlantic World after the Fall of Pernambuco” in: GROESEN, Michael Van (ed.). The Legacy of Dutch Brazil. Cambridge: Cambridge UP, 2014, pp. 41-58. 51 CS, vol. III, pp. 49-51. A discussão sobre a competição barbadiana remonta a 1655, tendo sido enunciada primeiro pela Coroa e depois pela Câmara: DH, vol. 66, pp. 127-31 e AC, vol. III, pp. 49-51. 52 SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. “Fluxos e refluxos mercantis: centros, periferias e diversidades regionais” in: FRAGOSO & GOUVÊA (orgs.). O Brasil Colonial, vol. II, pp. 384-5. 48

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partir da série analisada no capítulo VII, percebe-se que entre 1607 e 1659 só quatro cartas da Câmara, de um total de 116 (3,4%), reclamam das más condições da produção canavieira, e três delas o fazem em 1626 e 1640, responsabilizando explicitamente os ataques dos neerlandeses dos anos anteriores53. Já entre 1660 e 1677, são oito reclamações em 147 (5,4% do total), sendo seis delas entre 1662 e 1666, quando o Donativo de Paz de Holanda e Dote da Rainha da GrãBretanha entra em vigor, ampliando significativamente a pressão fiscal sobre os baianos. Ainda mais importante foi a supracitada violenta epidemia de varíola que grassou entre 1664-6, devastando a força de trabalho54. Por último, nos 16 anos entre 1678-93, são 22 declarações da pobreza, miséria e ruína da capitania e até do Estado do Brasil, nos tons mais fortes e recorrentes de todo o século, perfazendo 13,3% do conjunto do período (165)55. Até o Padre Antônio Vieira junta-se ao coro em 1683, 1686 (“tudo não só se vai arruinando, mas está arruinado”) e, principalmente, 1689. A análise contemporânea mais incisiva dessa crise foi feita pelo negociante e senhor de engenho João Peixoto Viegas, em seu panfleto de 1687 sobre a ruína das lavouras do Brasil, destacando que os baixos preços do açúcar advinham da concorrência com o produto antilhano, e que ingleses, franceses e neerlandeses haviam sido estimulados a desenvolverem esse cultivo em razão dos excessivos impostos que gravaram o produto durante a época da Restauração portuguesa. Em 1689, a Câmara de Lisboa também se junta ao coro, repetindo os mesmos argumentos56. Nos últimos sete anos do século, após a melhora dos preços do açúcar em 1692, a resolução do debate sobre a moeda provincial em 1694 (capítulo V) e o fim dos problemas climáticos e epidemiológicos, há apenas uma reclamação do tipo, em 1699, dentre as 63 cartas do período57. As guerras na Europa entre 1689-1713 sem dúvida trouxeram algum alívio para a açucarocracia baiana, mas, considerando a trajetória altista dos dízimos cariocas entre 167789 – ou seja, no momento de baixa do preço do açúcar – parece muito provável que as principais razões da crise, assim como de sua posterior superação, devam-se antes às “vicissitudes da própria produção agrícola”, isto é, ao “movimento de colheitas boas e más”58. O preço do açúcar

53

IAN/TT, Corpo Cronológico, Mç. 15, n. 107, AHU, Bahia, LF, cx. 3, doc. 423 e Bahia, Castro Almeida, cx. 1, docs. 2-5 e CS, vol. I, pp. 6-10. 54 AHU, cód. 16, f. 87v; Bahia, LF, cx. 18, docs. 2024 e 2103, cx. 19, docs. 2146 e 2196; CS, vol. I, pp. 104-6 e 114-5. 55 CS, vol. II, pp. 44-8, 61-3, 75-7, 82-3, 99-100, 114-6 e 116-7; vol. III, pp. 5-6, 17-20, 49-51, 55-6, 62-72, 82, 89-90 e 94-6; CS, vol. III, pp. 112-7; DH, vol. 89, pp. 223-4. 56 VIEIRA, Cartas, vol. III, pp. 324, 335, 367, 398 e 400-2; VIEGAS, João Peixoto. “Parecer e tratado feito sobre os excessivos impostos que cahirão sobre as lavouras do Brasil arruinando o comércio deste” [1687] in: ABN, vol. 20, 1898, pp. 213-23; OLIVEIRA, Eduardo Freire de (ed.). Elementos para a História do Município de Lisboa. Lisboa: Typographia Universal, 1896, tomo IX, p. 131. 57 CS, vol. V, pp. 7-9. 58 CARRARA, Receitas e despesas, p. 117.

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e os impostos diminuíam o rendimento da açucarocracia, mas provavelmente não influenciavam o ritmo da produção no curto prazo, já que não havia alternativas viáveis e era preciso “permanecer produzindo para cobrir seus custos fixos”, pagar as dívidas e manter seu status, como o próprio Schwartz reconhece, apesar de sua ênfase nos preços como determinantes da conjuntura econômica açucareira59. Creio, portanto, que o preço do açúcar é uma variável muito importante, mas menos determinante do que a dinâmica interna da economia baiana, especialmente em finais do século, quando o crescimento demográfico lhe dotava de uma maior resiliência contra choques externos. Mesmo assim, a evidência anedótica da correspondência camarária confirma a ideia de que há um agravamento das tensões na economia açucareira a partir de 1678, acompanhando, de maneira geral, os preços do açúcar e o ritmo do tráfico de escravos. Essa situação, porém, só torna-se efetivamente uma crise em razão dos problemas internos da agricultura baiana a partir de 1686 – que coincidem, para desgraça dos produtores, com uma desvalorização da commodity, que atinge os menores valores em quase 60 anos. Evidencia-se o quanto os protestos de miséria e pobreza da Câmara não são apenas estruturais, mas também influenciados, potencializados e multiplicados por conjunturas específicas, destacando-se aí o final da década de 1680 como uma fase em que essa nobreza açucareira, pressionada por um amplo conjunto de fatores negativos, manifestou-se através da Câmara. O preço do açúcar e os impostos eram os alvos desse discurso porque se esperava que a Coroa pudesse fazer algo para aliviar os aflitos produtores. Quanto ao clima e à peste, bem, o rei era rei, não Deus, e ninguém esperava mais dele que comiseração pelo sofrimento de seus vassalos – preferencialmente através da redução de impostos. Se o Senado procurava recorrer ao monarca, é possível que em Salvador se lançasse a culpa sobre o poder local, como se vê em poema do Boca do Inferno: “O açúcar já se acabou? Baixou. E o dinheiro se extinguiu? Subiu. Logo já se convalesceu? Morreu. (...) A Câmara não acode? Não pode. Pois não tem todo o poder? Não quer. É que o governo a convence? Não vence. Quem haverá que tal pense, que uma Câmara tão nobre, por ver-se mísera e pobre, não pode, não quer, não vence”. Há que reconhecer, porém, que o período de crise dura apenas sete anos, entre 1686 e 1693, tendo sido, além de mais curto, menos grave do que os anos terríveis da luta contra os neerlandeses, entre 1632-48, em que o número de engenhos diminuiu em ¼, contra uma

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SCHWARTZ, Segredos Internos, p. 170. Para uma detalhada análise de como produtores escravistas e exportadores são capazes de sobreviver em meio à baixa dos preços de sua commodity, veja-se o trabalho de um orientando de Schwartz, FERRY, Robert. The Colonial Elite of Early Caracas: formation and crisis, 1567-1767. Berkeley: University of California Press, 1989, pp. 72-101.

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estabilidade (apesar das inevitáveis falências individuais) na crise do final do século. Provavelmente, as reclamações foram muito mais numerosas na década de 1680 em razão do choque sentido após 20 anos de prosperidade60, e porque o inimigo eleito era a tributação, que poderiam ser reduzidos pelo monarca, enquanto a ameaça neerlandesa era uma questão de resolução muito mais difícil, e que não poderia ser posta na conta de D. João IV. As reclamações das elites locais são, portanto, menos um indicador da gravidade da crise do que como ela é percebida pelos grupos dominantes, e do socorro que se espera receber do poder régio. A tendência secular, porém, é de alta, como se evidencia das estimativas da produção expostas no Quadro 1, assim como a que se pode obter através da tendência observada pelos dízimos (imperfeita que seja, devido à falta de confiabilidade dessa série, que só representava de forma muito aproximada a produção total). Percebe-se, assim, um crescimento significativo da produção açucareira ao longo do século, na ordem de 0,7 e 0,85% ao ano61, taxa não muito distinta do crescimento econômico médio da Inglaterra moderna (0,5%) – ainda que muito inferior ao sul escravista da América Inglesa, cuja produção chegou a crescer cerca de 5% ao ano até 172062. Entretanto, se considerarmos que o aumento da produção se deu em grande medida entre 1663 (ano em que a produção provavelmente ainda era menor do que em 1632) e 1698, teríamos uma velocidade da produção açucareira maior do que 2% nesses 35 anos, sem dúvida muito elevada para os padrões da época – e isso mesmo com a crise de 1686-93 no meio, indicando um desenvolvimento muito mais acelerado até o início da década. Se considerarmos a economia como um todo, a produção baiana provavelmente cresceu a taxas até superiores, em razão da sua crescente diversificação, como veremos abaixo. Mesmo que esses números sejam tomados com todo o cuidado que exigem, seu significado é claro: a economia baiana cresceu em velocidade considerável ao longo da maior parte do seiscentos.

O poema de Gregório de Matos pode ser interpretado nesse sentido: “Triste Bahia! Ó quão dessemelhante estás e estou do nosso antigo estado! Pobre te vejo a ti, e tu a mim empenhado, rica te vi eu já, tu a mim abundante. A ti trocou-te a máquina mercante, que em tua larga barra tem entrado (...) Deste em dartanto açúcar excelente, pelas drogas inúteis, que, abelhuda, sempre aceitas do sagaz brichote”. 61 Cf. LENK, Wolfgang. Guerra e Pacto Colonial: a Bahia contra o Brasil Holandês (1624-1654). São Paulo: Alameda, 2013, pp. 300-22, importante análise sobre a conjuntura econômica da Bahia no século XVII. Eu considerei a estimativa de Antonil como sendo de 1698 – inferência reforçada pela produção de açúcar quase idêntica encontrado por Schwartz para 1702 (Segredos internos, p. 150). 62 MENARD, Russell. “Economic and Social Development of the South” in: ENGERMAN & GALLMAN (eds.), Cambridge Economic History of the United States, vol. I, p. 256. Uma estimativa coloca o crescimento anual médio de Portugal em 0,5% em 1555-1640, 0,7% entre 1641 e 1688 e 0,6% em 1689-1759, mas esses dados me parecem exageradamente otimistas: MACEDO, Jorge Braga de; SILVA, Álvaro Ferreira da & SOUSA, Rita Martins de. “War, taxes and gold: the inheritance of the Real” in: BORDO, Michael & CORTÉS-CONDE, Roberto (eds.). Transferring wealth and power from the old to the new world: monetary and fiscal institutions in the 17th through the 19th centuries. Cambridge: Cambridge UP, 2001, p. 190. 60

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Gráfico 4: Dízimos da Bahia, 1608-1698 (cruzados) 160000 140000 120000 100000 80000 60000 40000 20000

1608 1611 1614 1617 1620 1623 1626 1629 1632 1635 1638 1641 1644 1647 1650 1653 1656 1659 1662 1665 1668 1671 1674 1677 1680 1683 1686 1689 1692 1695 1698

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Fontes: CARRARA. Receitas e despesas, pp. 125-7; MUKERJEE, Anil. Financing an Empire in the South Atlantic: The Fiscal Administration of Colonial Brazil, 1609-1704. Tese de Doutorado. Santa Bárbara: Universidade da Califórnia Santa Bárbara, 2009, pp. 587-8; SCHWARTZ & PÉCORA (orgs.). As excelências do governador, p. 183.

Mesmo se os dízimos, após o valor recorde de 115.100 cruzados em 1655 (marcando provavelmente as expectativas de início da recuperação após o fim do conflito com os neerlandeses), permanecem abaixo desse teto até 1695, eles não desmentem esse vigor econômico, já que sua estagnação se deve, ao menos parcialmente, aos 10 anos de isenção que beneficiou os mais de 60 engenhos construídos entre 1663 e 167563. No geral, o seiscentos baiano é uma história de sucesso, sendo sua economia vigorosa o suficiente para continuar a crescer, apesar de choques de preços, variações na oferta de mão de obra, prejuízos na navegação e catástrofes naturais. Em finais do século a capitania ainda era a maior produtora mundial de açúcar, mesmo que em vias de ser ultrapassada por Barbados e, depois, por Jamaica e Saint-Domingue. Na América Portuguesa, é notável que nos 12 anos da segunda metade do século para os quais temos dados para as três regiões, os dízimos da Bahia foram superiores aos de Rio de Janeiro e Pernambuco somados, e o único momento em que as outras duas capitanias chegaram perto foi em 1688, no auge da crise açucareira baiana, graças

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Se calcularmos o valor do dízimo em marcos de ouro amoedado, é certo que seu valor real conhece uma significativa queda a partir de 1639-40, em razão dos conflitos com os neerlandeses e, principalmente, das desvalorizações da moeda (capítulo VII). Entretanto, o que importava para os produtores era “a quantidade de moeda que recebiam”, pois, de modo geral, não parece ter havido uma significativa elevação dos preços, ainda que se saiba muito pouco sobre esse tema no período: CARRARA, Receitas e despesas, p. 85 (citação) e LENK, Guerra e Pacto, pp. 316-7.

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principalmente ao crescimento fluminense64. Entende-se, portanto, porque na distribuição para a contribuição do donativo de dote da rainha da Inglaterra e paz de Holanda em inícios da década de 1660 a Bahia ficou responsável por 57% do total do Estado do Brasil (capítulo VI). Proporção similar foi utilizada na distribuição do donativo para Sacramento em 169465, indicando a preeminência econômica da Bahia em toda a segunda metade do século. A produtividade, porém, diminuiu ligeiramente: se um engenho produzia em média 54 toneladas em 1632, passou para 51 em finais do século. A disputa por lenhas e lavradores cada vez mais escassos, assim como a ocupação e esgotamento das melhores terras do Recôncavo, devem ter sido responsáveis por essa mudança. Mais interessante, enquanto a população da capitania aumentou cerca de 400%, o crescimento da produção açucareira foi da ordem de 70%. A conclusão inescapável é a diversificação da economia, de modo que, apesar da prevalência da atividade açucareira na documentação, é preciso abandonar temporariamente a cana. A especialização do setor açucareiro não excluía a diversificação da economia baiana, mas a pressupunha e estimulava, pois apenas “uma economia interna pujante” seria “capaz de atender às suas necessidades básicas e, com isso, permitir-lhe a especialização”66. Ou, nas palavras mais vívidas da época, o engenho é um agregado acidental que existe sucessivamente e se compõe de uma perpétua consumição de escravos, bois, cavalos, moendas, madeiras, tabuados, caixões, barcas, telha, tijolo, formas, lenha, canas, ferro, aço, treu, cobre, enxarcia, breu, estopa, lona, fazendas de vestir e comer de todo o gênero, e finalmente de tudo o que se cultiva e cria no Brasil e se conduz de Portugal67.

Em acréscimo, o crescimento demográfico da capitania implicava o fortalecimento de seu mercado interno. Assim, regiões do Recôncavo conheceram uma crescente especialização ao longo do século na produção de mandioca, como Jaguaripe e Itaparica. Em grande medida, porém, foram as vilas de Cairu, Boipepa e Camamu que funcionaram como “os celeiros da Bahia, como o Egito o foi do Povo Romano, e Sicília de toda a Europa”, tornando-se produtoras comerciais de mantimentos, com grandes diferenciações sociais e econômicas entre seus lavradores – apesar da predominância de pequenos escravistas68. Construiu-se, assim, no governo de Diogo Luiz de Oliveira (1627-35), o “conchavo da farinha” entre suas câmaras e a de Salvador, através do qual os produtores dessas vilas eram

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CARRARA, Receitas e despesas, pp. 125-7; MUKERJEE, Financing an Empire, pp. 587-8 e LOPES, Gustavo Acioli. Negócio da Costa da Mina e Comércio Atlântico: tabaco, açúcar, ouro e comércio de escravos – Pernambuco (1654-1760). Tese de Doutorado. São Paulo: PPGHE/USP, 2008, p. 23. 65 CARRARA, Receitas e despesas, pp. 50-1 e 71. 66 SAMPAIO, “Fluxos e refluxos”, p. 390. 67 “Carta do juis do povo”, p. 290. 68 PITA, História, p. 77; ver também p. 25.

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obrigados a fornecer farinha de mandioca a preços fixos a Salvador. Seu funcionamento era policiado pelo próprio governo-geral, especialmente após as fomes de 1650-1 e 1653-4, devido à necessidade de fornecer mantimentos não só para a cidade, mas principalmente para a numerosa infantaria ali estacionada – para além da obrigação de abastecer as frotas e complementar a produção alimentícia do próprio Recôncavo, geralmente deficitária. No dizer de Pedro Puntoni, “a açucarocracia da Bahia preferia, por meio da atividade política da Câmara de Salvador e respaldada pelo governo geral, impor aos vizinhos mais pobres o ônus da produção subsidiária”69 – o que explica a resistência às tentativas de obrigar os produtores de açúcar do Recôncavo a plantarem mandioca para sua subsistência70, com a consequente recorrência de crises de abastecimento, ao que parece mais intensas na Bahia que no restante do Brasil: Francisco Carlos Teixeira identificou 17 anos de crise entre 1638-1700, 13 dos quais entre 1671-1700, indicando que o crescimento demográfico estava exercendo pressão sobre a capacidade de alimentar sua população. Em 1688, ápice da crise, um alqueire de farinha chegou a custar 1$200, quatro vezes o preço de 1682, e seis vezes o de 167971. Um concorrente da mandioca72 acabou por se tornar, em finais do século, uma das mais importantes produções baianas: o tabaco. Exigindo investimentos muito menores que o engenho e mesmo que uma fazenda de canas, e contando com um mercado em expansão na Europa (apesar da competição do Chesapeake, que produzia numa escala muito maior), o fumo conheceu um grande aumento ao longo do seiscentos, passando de um produto menor para o segundo cultivo da Bahia: em 1666 foram exportadas legalmente para Portugal cerca de 1.000 toneladas, e em 1699 quase 3.000, graças ao aumento da produção e à intensificação do controle alfandegário. É de se notar que o maior avanço ocorreu entre 1680 e 1686, quando a produção triplicou, justamente no período de crise açucareira – embora os anos difíceis de 1686-9 pareçam ter afetado também essa cultura, mesmo que não tanto quanto a Câmara quis fazer PUNTONI, Pedro. “O Conchavo da Farinha: especialização do sistema econômico e o governo-geral na Bahia do século XVII” in: id. O Estado do Brasil: poder e política na Bahia colonial, 1548-1700. São Paulo, Alameda, 2013; cf. também GOMES, João Pedro. “Conflitos Políticos em torno do pão de São Tomé: o provimento da cidade de Salvador em farinha de mandioca (1685-1713)”. Anais de História do Além-Mar, vol. 14, 2015 (no prelo). As Câmaras de Cairu, Boipeba e Camamu sintetizaram esse sentimento em carta de 1685, quando se queixaram ao monarca “da injustiça, rigor, exorbitância com que o Senado da Câmara da Cidade da Bahia, amparado dos governadores-gerais, avexa e aperta estes povos e moradores, (...) tomando-a [a farinha] a $320 o sírio, e descontando-a à infantaria a $600”: AHU, Bahia, LF, cx. 27, doc. 3309. 70 O governador-geral Matias da Cunha de 1687 menciona em 1688 que “muitos engenhos não têm terras suas em que plantem mandiocas”: DH, vol. 89, p. 90. 71 ALDEN, “Price movements”, pp. 347-52 e SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. A Morfologia da Escassez: crises de subsistência e política econômica no Brasil colônia (Salvador e Rio de Janeiro, 1690-1790). Tese de Doutorado. Niterói: PPGH/UFF, 1990. 72 O tabaco foi proibido pelo Conde da Torre em 5 de fevereiro de 1639 “por causa de se ocuparem no benefício dele, e deixarem a planta de mantimentos tão necessários para a sustentação da gente da guerra, e presídio desta cidade, e povo”: AC, vol. I, p. 390. Ineficaz, a ordem foi repetida anos depois: AHMS, PR, vol. I, fls. 297v-298v. 69

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parecer em 12 de agosto de 1688: “O Brasil, senhor, desde o seu nascimento se sustentou sempre em duas colunas: uma era a do tabaco, e a outra o açúcar: a do tabaco arruinou-se há alguns anos”73. O fumo tornou-se, assim, fonte de imensos lucros para a Coroa e uma alternativa para aqueles que desejavam adentrar na produção para exportação ou fugir dos problemas enfrentados pela economia açucareira. Esse cultivo acolheu produtores de todos os tipos, inclusive alguns membros da elite que decidiram diversificar suas atividades econômicas, mas a predominância parece ter sido dos pequenos cultivadores, dotados de poucos escravos74. A pecuária bovina também exercia um papel fundamental no mosaico agrícola baiano, servindo para tudo: fertilizar a terra, mover os engenhos, alimentar os homens... O consumo de carne bovina era largamente disseminado, a se julgar por esta passagem de Antonil: “não somente a cidade, mas a maior parte dos moradores do recôncavo mais abundantes se sustentam, nos dias não proibidos, da carne[.] (...) Comumente os negros (...) vivem de fressuras, bofes e tripas”75. O suprimento de carne tornara-se uma questão quase tão importante quanto o de mandioca, pois um alimento que em Portugal era consumido predominantemente pelas elites passara a fazer parte essencial da dieta baiana76. Para não prejudicar a agricultura, o gado foi tendencialmente deslocado para o sertão, “que contém em si a terra que corre para o Ocidente, e interior deste Estado, desde o sobredito recôncavo até confinar com a demarcação do Peru e Nova Espanha”, no relato um tanto exagerado do desembargador Sebastião Cardoso de Sampaio em 1675, que continua: “ocuparam com gados aquela terra que nela se acha com comodidade de pastos e águas para a procriação dos ditos gados”. Acelerava-se, nesse momento, a ocupação do sertão. Marcado por grandes propriedades, em razão da “notável demasia e excessiva desigualdade na repartição que se foi fazendo das terras do sertão”77, não constituíam propriamente latifúndios, por serem apenas parcialmente ocupadas – quando não totalmente inabitadas, ao menos por seus donos. Misturavam-se, assim, pequenos vaqueiros e “barões do gado” senhores de mais de 20.000

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CS, vol. III, p. 65. FLORY, Rae. Bahian society in the mid-colonial period: the sugar planters, tobacco growers, merchants, and artisans of Salvador and the Recôncavo, 1680-1725. Tese de Doutorado. Austin: Universidade do Texas, 1978, pp. 156-216; HANSON, Carl. “Monopoly and Contraband in the Portuguese Tobacco Trade, 1624-1702”. LusoBrazilian Review, vol. 19, n. 2, 1982, pp. 149-68 e NARDI, Jean-Baptiste. O fumo brasileiro no período colonial. São Paulo: Brasiliense, 1996. Para o único caso que conheço de um importante senhor de engenho (Pedro Garcia Pimentel) que também investia em tabaco, veja-se DH, vol. 33, pp. 403-4. 75 ANTONIL, Cultura e Opulência, p. 326. 76 Cf. EBERT, Christopher. “Provisioning and Consumption in Salvador da Bahia: Beef, Manioc and Cachaça”, manuscrito inédito. 77 AHU, Bahia, LF, cx. 23, doc. 2738. Cf. SILVA, Morfologia da Escassez, p. 326 e SANTOS, Márcio. Fronteiras do Sertão Baiano: 1640-1750. Tese de Doutorado. São Paulo: PPGHS/USP, 2010. No ano anterior, também a Câmara mencionara “terem hoje crescido muito as ditas fazendas [no sertão] em número de currais e gado”: AC, vol. V, pp. 150-1. 74

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cabeças, mas, como no litoral, a escravidão era elemento fundamental da estrutura social. A exemplo da ocupação inicial no século XVI, o conflito com os indígenas fez-se inevitável, exterminando-se e escravizando-se aqueles que se opuseram à expansão ou, ao menos, reunindo-os em missões que limpariam o terreno para bois e vacas78.

Empório de todas as riquezas Jucá de Sampaio demonstrou como o Rio de Janeiro se tornou, a partir de 1720, a “encruzilhada do império” português, em razão de sua preeminência no abastecimento do mercado mineiro79. No seiscentos, porém, e especialmente em sua segunda metade, o eixo que fazia girar o comércio imperial lusitano era Salvador. Como no Caribe inglês, essa posição baseava-se, em última medida, no açúcar80, mas ia muito além. Apesar de escassez de estudos sistemáticos sobre o funcionamento do comércio atlântico da Bahia, é necessário tratar brevemente desse aspecto, pois, no dizer do sempre ufanista Sebastião da Rocha Pita, o comércio, que lhe resulta dos seus preciosos gêneros, e da frequência das embarcações dos Portos do Reino, das outras Conquistas, e das mesmas Províncias do Brasil, trocando umas por outras drogas, a faz uma feira de todas as mercadorias, um empório de todas as riquezas, e o pudera ser de todas as grandezas do Mundo, se os interesses de Estado, e da Monarquia não impediram o tráfico e navegação com as Nações Estrangeiras81.

Após uma fase inicial de abertura comercial e grande participação direta de navios flamengos no comércio brasileiro, a tendência a partir da transição para o seiscentos passou a ser de maior controle e tentativa de estabelecer efetivamente o exclusivo comercial, quando menos pela guerra que opunha a Monarquia Hispânica às Províncias Unidas dos Países Baixos. Mesmo assim, o comércio de açúcar continuou a ser um negócio transnacional com elevada participação neerlandesa até pelo menos 1621, já que o mercado para o açúcar baiano estava nos Países Baixos, Inglaterra, Itália e no Sacro-Império, pois Portugal não consumia mais que uma pequena parte da produção de suas conquistas82.

SCHWARTZ, Stuart. “O Brasil Colonial, c. 1580-1750: as grandes lavouras e as periferias” in: BETHELL, Leslie. História da América Latina. São Paulo/Brasília: EDUSP/FUNDAG, 1999 [1984], vol. II, pp. 378-81; SILVA, Francisco Carlos Teixeira. “Pecuária e formação do mercado interno no Brasil-colônia”. Estudos Sociedade e Agricultura, vol. 8, 1997, pp. 119-56 e PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: HUCITEC/EDUSP, 2002. 79 SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na Encruzilhada do Império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650 – c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, pp. 148-84. 80 WILLIAMS, Eric. Capitalismo e Escravidão (trad.) Rio de Janeiro: Americana, 1975 [1944], pp. 57-93. 81 PITA, História, p. 78. 82 STOLS, Eddy. “The expansion of the sugar market in Western Europe” in: SCHWARTZ, Stuart (ed.). Tropical Babylons: sugar and the making of the Atlantic World, 1450-1680. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2004, pp. 237-88; EBERT, Christopher. Between Empires: Brazilian sugar in the early Atlantic economy, 1550-1630. Leiden: Brill, 2008; STRUM, Daniel. O comércio do açúcar: Brasil, Portugal e Países Baixos (15951630). São Paulo: Versal, 2012. 78

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O reduzido desenvolvimento manufatureiro implicava a necessidade de importar esses produtos em grandes quantidades, mesmo porque compunham um dos principais setores da pauta de exportação para o Brasil: assim, na década de 1690 dizia-se que metade das mercadorias enviadas para a América eram inglesas83. Conseguia-se, porém, excluir os estrangeiros do comércio direto legalizado com as conquistas portuguesas, apesar de sua insistência, pois, nas palavras do cônsul inglês Charles Fanshawe em 1682, o Brasil “é a menina de seus olhos, sendo a única navegação que lhes resta, a qual pensam que seria tomada plenamente pelos estrangeiros”, se estes fossem admitidos nela. Mesmo assim, a fragilidade da marinha portuguesa tornou necessário o emprego de navios ingleses na frota84. Os infortúnios da guerra contra os neerlandeses, que tomaram centenas de navios portugueses no Atlântico 50, ensejaram a adoção de uma política de frotas para o Estado do Brasil. Sua irregularidade, porém, tornou-as odiosas para os moradores da América, pois forçavam a acumulação (e consequente depreciação) do açúcar nos portos: entre 1645-1662 partiram apenas oito frotas – mais ou menos uma a cada dois anos. A partir de 1664, porém, as frotas tendem a se regularizar, apesar da difusão de licenças para navios partirem fora dos comboios haver diminuído seu tamanho. Um efeito secundário dessa política foi a concentração do comércio em Lisboa – o que, incidentalmente, reforçava os laços entre a Corte e Salvador, o principal destino das embarcações portugueses vindas para o Brasil desde 163085.

Mapa 3: Principais ligações comerciais de Salvador, 1595-1645.

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COSTA, Leonor Freire; LAINS, Pedro & MIRANDA, Susana Münch. História Econômica de Portugal, 11432010. Lisboa: Esfera dos Livros, 2011, p. 191. 84 BOXER, Charles. “English shipping in the Brazil trade, 1640-1665”. The Mariner’s Mirror, vol. 37, n. 3, 1951, pp. 197-230. 85 Cf. o confuso trabalho de FREITAS, Gustavo de. A Companhia-Geral do Comércio do Brasil (1649-1720). São Paulo: separata da Revista de História (USP), 1951.

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Fonte: Laboratório de História Social, DH/UnB, baseado em Atlas Digital da América Lusa (http://lhs.unb.br/atlas).

Como era comum na época moderna, o comércio dava-se principalmente através de relações pessoais entre correspondentes mercantis: os comerciantes da Bahia não eram subordinados a seus congêneres lisboetas (vários dos quais haviam vivido anos em Salvador), mas parceiros, mesmo que menos bem-sucedidos. As procurações estabelecidas em 1664 por um comerciante e ourives de prata, João do Vale Pontes, são um indicador da projeção baiana no Atlântico português, parcialmente representada nos mapas três e quatro: Lisboa, Porto, Viana, Ilha Terceira dos Açores, Angola, Madeira, Sergipe, Pernambuco e Rio de Janeiro. Alguns dos maiores senhores de engenho participavam diretamente dessas redes, principalmente através do envio do açúcar para seus correspondentes na Corte sem intermediação de mercadores86. Percebe-se, assim, como a relação comercial com Portugal é um elemento fundamental para a compreensão da economia baiana. Afinal, como disse o maior pregador português, “a Bahia, como as outras cidades do Brasil, só seis meses do ano estão sobre a terra, os outros seis andam em cima d’água, indo e vindo de Portugal”87. As ligações comerciais podiam, porém, ultrapassar o mundo português. Entre 15851645, a maioria dos navios que entravam no porto de Buenos Aires vinha da Bahia e trazia escravos africanos (cerca de 25.000 em todo o período), manufaturados europeus e açúcar, trocados pela prata de Potosí – mas também por farinha de trigo e carne seca88. Daí a conhecida (e exagerada) afirmação do francês Pyrard de Laval, de que nunca havia visto “um lugar onde a prata seja tão comum como no Brasil: prata vinda do rio da Prata, situado a 500 léguas desta baía”89, assim como os problemas originários da falta de moeda após a Restauração. Se vinham manufaturados e produtos alimentícios do Reino e ilhas, era da África que partia a mercadoria fundamental para a reiteração da sociedade baiana: os escravos. Afinal, como pregou o Padre Antônio Vieira no final da vida, era “o Reino de Angola, na oposta Etiópia, de cujo triste sangue, negras e felizes almas se nutre, anima e conserva o Brasil”90. Por 86

SMITH, David Grant. The Mercantile Class of Portugal and Brazil in the seventeenth-century: a socio-economic study of the merchants of Lisbon and Bahia, 1620-1690. Tese de Doutorado. Austin: University of Texas, 1975, pp. 344-51. 87 VIEIRA, Antônio. “Voz de Deus ao Mundo, a Portugal e à Bahia” [1695] in: id. Sermões e vários discursos. Lisboa: Valentim da Costa Deslandes, 1710, tomo XIV, p. 258. 88 CANABRAVA, Alice. O comércio português no Rio da Prata: 1580-1640. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1984, pp. 118-47 e MOUTOUKIAS, Zacarias. Contrabando y control colonial en el siglo XVII. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1988, pp. 62-7. 89 “François Pyrard de Laval”, p. 365. 90 VIEIRA, “Voz de Deus”, p. 253. Cf. também o belo “Sermão XXVII, com o Santíssimo Sacramento exposto” [1680?] in: id. Maria Rosa Mystica. Lisboa: Imprensa Crasbeeckiana, 1688, 2ª parte, pp. 391-429. Menos poético,

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outro lado, a própria sobrevivência da Angola portuguesa dependia da demanda brasílica por cativos, como destacaram os camaristas soteropolitanos em 1687: “porque cessando o labor dos frutos do Brasil, há de perder-se também o negócio dos escravos de Angola: isto é claro”91. Sabe-se bem menos da dinâmica seiscentista do tráfico entre a Bahia e a África do que do século subsequente, mas parece claro o gradual aumento da influência brasílica sobre Luanda no século XVII, especialmente após a restauração de Angola, em 1648. Primeiro o zimbo (conchas marinhas que funcionavam como moeda na costa centroocidental da África) de Ilhéus e, depois, a cachaça ganham importância no mercado angolano, fortalecendo a ligação entre as duas margens do Atlântico Sul. O elevado teor alcóolico, o baixo preço (produzida que era por escravos) e a maior durabilidade nas agruras da travessia marítima a favoreciam frente ao vinho lusitano, acabando por diminuir o preço relativo do africano escravizado para os produtores baianos e facilitar a reprodução do escravismo. Por isso, apesar das repetidas tentativas de proibições da produção nos alambiques americanos, principalmente para não prejudicar as vendas de vinho (pois sobre esse produto recaía o donativo para sustento da infantaria), nunca se obteve sucesso, para frustração dos governadores-gerais, como se percebe nessa carta de 1661 de Francisco Barreto: “não houve general algum deste Estado desde Antônio Teles da Silva até o presente que as não mandasse proibir”92. Entretanto, o privilégio dos senhores de engenho de poderem produzir aguardente “para gasto de suas casas e escravos”, “por se entender que este era o único remédio com que se poderiam conservar”93 e o irregular suprimento de vinho nas frotas estimulava o crescimento da produção e a consequente ascensão desse trato alcóolico. Introduzido em 1650, ganhou força a partir de 1665, contribuindo para o aumento do número de africanos escravizados enviados para Salvador. Em 1679, porém, o lobby dos mercadores reinóis consegue a proibição e diminuição da entrada de cachaça na África portuguesa – sem que, porém, o vinho voltasse a ganhar espaço. Mesmo assim, a proibição foi reafirmada em 1689. Com a atuação conjunta da Câmara de Salvador, cujo principal argumento era que “com esta droga se facilita a condução dos negros, e faltando fica cessando o trato e negócio, e perdidos o interesse que granjeiam

o Conselho da Fazenda chamou Angola de “nervo das fábricas do Brasil” em 1656: IAN/TT, Manuscritos da Livraria, Livro 1146, fl. 63. 91 CS, vol. III, p. 50. 92 Identifiquei proibições em 1627, 1635, 1636, 1639, 1646, 1648, 1649, 1651, 1652, 1655, 1659, 1663, 1664 e 1669: AHU, Bahia, LF, cx. 16, doc. 1811. Cf. também AC, vol. I, pp. 6, 70-1 e 279-85; vol. II, p. 312; DH, vol. 3, pp. 183-6 vol. 16, pp. 396-9; vol. 65, pp. 329-30 e vol. 66, pp. 25 e 232-4; AHU, CM, cód. 16, fl. 104v; cód. 275, fl. 93v; Bahia, LF, cx. 10, docs. 1240-1; cx. 15, doc. 1740; AHMS, PGS, 1642-1648, fls. 316-318; 1660-77, fls. 60-64 e 1664-72, fls. 36-36v 126 e CCLP, vol. VII, pp. 49-50. Cf. também LENK, Guerra e pacto, pp. 350-4. 93 Respectivamente, AHU, CM, cód. 14, fls. 181-181v e Bahia, LF, cx. 18, docs. 2081-2.

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esses moradores”94, da de Luanda e de D. João de Lencastre (governador de Angola em 168891 e governador-geral do Brasil em 1694-1702), assim como o crescimento da demanda brasileira por cativos, finalmente se libera o comércio em 1695. Embora não haja dados para o período anterior, 61,5% das importações angolanas de cachaça em 1699 advêm de Salvador, demonstrando sua preeminência, muito acima de Recife e Rio de Janeiro95.

Mapa 4: Principais ligações comerciais de Salvador, 1645-1700.

Fonte: Laboratório de História Social, DH/UnB, baseado em Atlas Digital da América Lusa (http://lhs.unb.br/atlas).

Por esses anos, porém, já não vinha de Angola a maior parte dos escravos chegados a Salvador, mas da Costa da Mina (principalmente da região da Baía de Benim – mapa 4), de onde se traziam escravos desde finais da década de 1670, e que em 1686 ultrapassou a África Centro-Ocidental, passando a fornecer mais da metade dos cativos chegados à Bahia. Ignoravam-se, assim, diversas leis que proibiam o comércio com portos não portugueses, como o alvará de 27 de novembro de 1684, para citar apenas o mais recente. A necessidade americana de braços faz com que, a partir de 1698, a Coroa aceite e procure regular de alguma maneira esse tráfico. O tabaco de terceira qualidade, encharcado de melaço para adocicá-lo e torná-lo mais atrativo para os consumidores africanos, transformou-se em um produto de grande demanda na Costa da Mina (só em 1699 foram enviadas 116 toneladas), onde a cachaça não fez

94

CS, vol. III, pp. 94-6. ALENCASTRO, O trato dos viventes, pp. 256-9 e 307-23 e CURTO, José. Álcool e escravos: o comércio lusobrasileiro do álcool em Mpinda, Luanda e Benguela durante o tráfico transatlântico de escravos (c. 1480-1830) e seu impacto nas sociedades da África Central Ocidental. Lisboa: Vulgata, 2002, pp. 123-49. 95

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tanto sucesso. Para ter acesso ao fumo, as feitorias africanas neerlandesas passaram a permitir, apesar das restrições da Companhia das Índias Ocidentais (que só autorizou definitivamente o comércio em 1714), que navios oriundos do Brasil comercializassem em suas possessões, cobrando uma taxa de 10% da carga – liberalidade que não se estendia às naus vindas de Portugal96. Assim como no caso da aguardente enviada para Angola, tornava-se possível obter o insumo essencial para a reprodução da sociedade baiana – africanos escravizados – através de derivados baratos da produção para exportação, fornecendo-lhe mais autonomia econômica frente às inevitáveis oscilações sofridas pelo preço do açúcar, sempre vulnerável à competição externa e às disputas políticas no Velho Mundo. Como o desenvolvimento do comércio com a Costa da Mina deu-se exatamente em um momento de crise açucareira (1686-93, como vimos acima) o tabaco provou-se especialmente relevante para garantir maior estabilidade à economia, já que provavelmente diminuiu os custos para a reiteração do escravismo baiano. As conexões da capitania estendiam-se, porém, para além do Atlântico, devido à sua posição privilegiada para funcionar como escala da Carreira da Índia – o que havia sido destacado já por Pero Vaz de Caminha e D. Manuel em 1500. O medo do contrabando, porém, fazia com que essa parada fosse proibida. Entretanto, a fragilidade da Carreira da Índia em meados do seiscentos estimulava paradas em Salvador a partir de 1645 para reparar e suprir os navios – mas também para auferir lucros no contrabando com o Brasil. A provisão de 2 de março de 1672 que autorizou o escalamento e o comércio privado dos tripulantes não fez mais, portanto, que reconhecer prática já em uso há décadas, pois desde 1645 pouco mais da metade dos navios da Carreira fazia a parada em Salvador.

Gráfico 5: Navios da Carreira da Índia que aportaram em Salvador, 1607-1700 45 40 35 30 25 20 15 10 5 0 1607-44

1645-72

1673-1700

NARDI, O fumo brasileiro, pp. 217-21; SCHWARTZ, Stuart & POSTMA, Johannes. “The Dutch Republic and Brazil as Commercial Partners on the West African Coast during the Eighteenth Century” in: POSTMA, Johannes & ENTHOVEN, Victor (eds.). Riches from Atlantic Commerce: Dutch Transatlantic Trade and Shipping, 15851817. Leiden: Brill, 2003, pp. 171-99. 96

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Fonte: LAPA, José Roberto do Amaral Lapa. A Bahia e a Carreira da Índia. São Paulo/Campinas: HUCITEC/Ed. Unicamp, 2000 [1968], 2ª ed., pp. 331-5.

Mais importante que os reparos das naus e mesmo que a construção de três galeões na segunda metade do seiscentos – embora sejam sinais da vitalidade econômica baiana, capaz de suportar essa pesada carga – foram as relações comerciais estabelecidas entre Bahia e Ásia. O tabaco de primeira qualidade tornou-se central para a manutenção do comércio português com a Ásia, sendo a mais lucrativa exportação lusitana para aquele continente em finais do XVII e disseminando-se tanto pela Índia quanto pela China, via Goa e Macau. Por outro lado, vendiamse tecidos asiáticos em Salvador – que enviava parte deles para a África, para serem trocados por escravos, acabando por ultrapassar por volta de 1670 Lisboa nesse comércio – e ocupavase a carga restante nos navios com açúcar. A Carreira da Índia era, assim, revitalizada e, através da Bahia, todo o império era articulado97. É muito difícil estimar de maneira minimamente precisa a contribuição baiana para o império, mas as análises sobre o orçamento da monarquia em 1681 permitem uma boa aproximação. Nesse ano, a receita total da administração central da Coroa (excluindo o que se arrecadava e dispendia localmente, portanto) foi de 1.595,4 contos de réis (exceto alguns recursos não-contabilizados, como o pau-brasil e o donativo de paz de Holanda e Dote da Rainha da Grã-Bretanha). 290,1 contos advinham do contrato do tabaco: como 90% das remessas de fumo vinham da Bahia, ela é responsável por cerca de 260 contos. Pedreira estima que no mínimo um terço dos 505 contos arrecadados nas alfândegas advinham do comércio com o Brasil (168,3 contos); a partir dos dízimos da Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro para o ano de 1679, percebe-se que a capitania baiana foi responsável por 57,6% do total, proporção similar à utilizada na distribuição do donativo 20 anos antes. Assim, poderíamos dizer que quase 100 contos da arrecadação das alfândegas advinham do comércio baiano – sem contar com o donativo, que valeria, teoricamente, 16 contos por ano. Assim, mesmo em um momento em que a contribuição do império para as finanças régias estaria em seu menor nível em toda a época moderna, a Bahia seria diretamente responsável por cerca de 22% da arrecadação central da

LAPA, A Bahia e a Carreira; RUSSELL-WOOD, A. J. R. “A dinâmica da presença brasileira no Índico e no Oriente. Séculos XVI-XIX”. Topoi, vol. 3, 2001, pp. 18-23; FERREIRA, Roquinaldo. “‘A arte de furtar’: redes de comércio ilegal no comércio imperial ultramarino português (c. 1690-c. 1750)” in: FRAGOSO, João & GOUVÊA, Fátima (orgs.). Na Trama das Redes: política negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, pp. 213-21; CHAUDHURI, Kirti. “O Comércio Asiático” in: id. & BETHENCOURT, Francisco (dirs.). História da Expansão Portuguesa. Lisboa: Círculo de Leitores, 1998, vol. II: do Índico ao Atlântico (1570-1697), p. 195. 97

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monarquia – e o crescimento do tabaco só faria crescer sua relevância nos anos seguintes98. Por ser impossível sequer arriscar uma quantificação grosseira, não conto aqui com sua contribuição indireta, mas cabe relembrar que Salvador recebia um terço dos cativos angolanos e que pouco mais da metade dos navios da Carreira da Índia nas últimas décadas do seiscentos paravam em seu porto, sendo fundamental para a sobrevivência desses dois outros espaços. De qualquer maneira, a Bahia sozinha contribuía muito mais para a receita portuguesa, em termos proporcionais, do que todo o Novo Mundo para a monarquia hispânica nas últimas décadas do seiscentos – ou para qualquer outra potência europeia à época, em verdade99. Assim, se desde a década de 1620 está claro para muitos que o Brasil é a “vaca de leite” da Coroa, “em razão do avultado rendimento que lhe dava”, como afirmou D. João IV ao embaixador francês em 1655100, ou, como disse menos cruamente Gaspar de Brito Freire em 1644, “a conquista mais útil a esta Coroa”101, a preponderância baiana na produção açucareira e, principalmente, a ascensão do tabaco deixam muito claro que “o Estado do Brasil inda é da praça da Bahia, e a Bahia é a cabeça do Brasil”, como disse em 1665 o senhor de engenho e feitor do pau-brasil de Ilhéus, Antônio de Couros Carneiro102. Na crueza característica do “boca do inferno”, é “que os brasileiros são bestas, e estarão a trabalhar toda a vida por manter maganos em Portugal”103.

PEDREIRA, Jorge. “Custos e Tendências Financeiras no Império Português, 1415-1822” in: BETHENCOURT, Francisco & CURTO, Diogo Ramada (dirs.). A Expansão Marítima Portuguesa, 1400-1800 (trad.). Lisboa: 70, 2009 [2007], pp. 53-91; CARRARA, Receitas e Despesas, p. 126; COSTA, LAINS & MIRANDA, História Econômica de Portugal, pp. 202-7; HESPANHA, António Manuel. “A Fazenda” in: id. (coord.) & MATTOSO, José (dir.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1998 [1993], volume 4: o Antigo Regime (1620-1807), pp. 207-10. 99 STORRS, Christopher. The Resilience of the Spanish Monarchy, 1665-1700. Oxford: Oxford UP, 2006, pp. 10650 e COSTA, Leonor Freire; PALMA, Nuno & REIS, Jaime. “The great escape? The contribution of empire to Portugal’s economic growth, 1500-1800”. European Review of Economic History, vol. 19, n. 1, 2015, pp. 16-9. 100 SANTARÉM, Visconde de. Quadro elementar das relações políticas e diplomáticas de Portugal com as diversas potências do mundo, desde o principio da Monarchia Portugueza até aos nossos dias. Paris: J. P. Aillaud, 1844, tomo IV, parte 2, p. CL. Pouco antes Francisco Cristóvão de Almeida escrevera um arbítrio ao monarca, dizendo que “o Estado do Brasil, senhor, assim é membro desta Monarquia que quem vir com os olhos a sua grandeza não poderá negar que aquela conquista é a pedra preciosa desta Coroa, e depende muito o aumento deste todo da conservação daquela parte” – BNP, mss. 218, n. 134. Pouco depois, o Conselho da Fazenda qualificou o Brasil como “substância principal dessa Coroa”: IAN/TT, Manuscritos da Livraria, Livro 1146, fl. 63. 101 AHU, Bahia, Avulsos, cx. 1, doc. 61. 102 AHU, Bahia, LF, cx. 18, doc. 2112. Imediatamente após a Restauração o Brasil foi repetidamente qualificado como a primeira entre as conquistas de Portugal, com destaque para a Bahia. Cf., por exemplo, PARADA, Antônio Carvalho. “Justificação dos Portugueses” [1643] in: CRUZ, António (org.). Papéis da Restauração. Porto: Faculdade de Letras, 1969, pp. 212-5. 103 O Sermão da Visitação de Nossa Senhora (1640) de Vieira tem passagens similares, mas o jesuíta se refere especificamente aos ministros de Sua Majestade quando pregou que “muito deu e dá hoje a Bahia, e nada se logra, porque o que se tira do Brasil tira-se do Brasil: o Brasil dá, Portugal o leva”. 98

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Metrópole do Brasil Outro elemento, porém, está presente na citação acima: a condição de capital de Salvador. Aproveitando a posição geográfica central da Bahia na América Portuguesa (mapa 6) e o falecimento do donatário Francisco Pereira Coutinho, D. João III “ordenou de a tomar à sua conta para a fazer povoar, como meio e coração de toda esta costa, e mandar edificar nela uma cidade, de onde pudesse ajudar e socorrer todas as mais capitanias e povoações dela como a membros seus”104. Como se vê no regimento de Tomé de Sousa, a construção de Salvador foi um empreendimento planejado e liderado pela Coroa em conexão com o estabelecimento do próprio governo-geral do Brasil – ligação que se manteve por mais de dois séculos105.

Mapa 6: Vilas e Cidades da América Portuguesa, 1700.

104

SOUSA, Tratado Descritivo, p. 121. Cf. PUNTONI, Pedro. “‘Como coração no meio do corpo’: Salvador, capital do Estado do Brasil” [2009] in: id. O Estado do Brasil, para uma análise da metáfora referida acima e da capitalidade soteropolitana. O melhor trabalho nesse sentido, porém, chegou a meu conhecimento muito tarde para ser incorporado na tese, mas penso que se coaduna em termos gerais com o que defendo ao longo de todo este trabalho: MARQUES, Guida. “‘Por ser cabeça do Estado do Brasil’. As representações da cidade da Bahia no século XVII” in: id; SOUZA, Evergton Sales; SILVA, Hugo Ribeiro da (orgs.). Salvador da Bahia: Retratos duma cidade atlântica (século XVII-XIX). Lisboa/Salvador: CHAM/UFBA, 2015, no prelo. 105

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Fonte: Laboratório de História Social, DH/UnB, baseado em Atlas Digital da América Lusa (http://lhs.unb.br/atlas).

Construiu-se, assim, uma administração periférica que ia além do governador-geral, tendo como elementos constituintes também o provedor-mor da fazenda, responsável pela fiscalidade, o ouvidor-geral, de atribuições judiciárias, e o aparato militar106. Para que as conquistas americanas pudessem sobreviver sem dependerem do envio contínuo de recursos do Reino, fazia-se necessário, porém, desenvolver economicamente o território e assentar uma elite residente capaz de colaborar com a Coroa. Oficiais régios e poderosos locais constituíam, na prática, um mesmo grupo no processo de montagem do Estado do Brasil – sendo, muitas vezes, o ofício um caminho privilegiado para a obtenção de latifúndios, cativos e engenhos107. Salvador não era capital somente em termos políticos e militares, mas também religiosos: bispado em 1551 e arcebispado em 1676, reunia importantes ordens regulares, cujo número cresceu ao longo do século: jesuítas, beneditinos, carmelitas e franciscanos. Se os eclesiásticos sempre possuíram considerável força política, em meados do século XVII o clero regular também havia se tornado uma potência econômica, cada vez mais integrada na sociedade local, de onde advinha parte crescente de seus membros. Apesar da importância do episcopado, a capitania em muitos momentos não contou com bispo residente (36 anos entre 1602-1700). Os prelados chegavam ao Brasil depois de um longo processo de ascensão social, dotados de experiência e usufruindo da preeminência do cargo, ainda que nem tanto do nascimento. Deparavam-se aqui com um clero secular insuficiente e tremenda escassez de meios, o que limitava suas possibilidades de intervenção efetiva na vida de seu rebanho108. Vê-se, portanto, como Salvador reunia, meras décadas após sua fundação, uma estrutura institucional enfatizada por viajantes e cronistas, de Fernão Cardim (“a Bahia é cidade d’ElRei, e a corte do Brasil: residem os Srs. Bispo, Governador, Ouvidor-Geral, com outros oficiais e justiça de Sua Majestade”)109 ao engenheiro francês François Froger, um século depois (“a

Cf. PUNTONI, Pedro. “O Governo-Geral e o Estado do Brasil: poderes intermédios e administração (15491720)” [2008] in: id. O Estado do Brasil, mas também, em perspectiva distinta, COSENTINO, Francisco. “Construindo o Estado do Brasil: instituições, poderes locais e poderes centrais” in: FRAGOSO, & GOUVÊA, O Brasil Colonial, vol. 1: 1443-1580, pp. 542-68. 107 RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial: Brasil, c. 1530 – c. 1630. São Paulo: Alameda, 2009, pp. 103-205 e FRAGOSO, João. “A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial (séculos XVI e XVII)” in: id., GOUVÊA, Fátima & BICALHO, Fernanda (orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, pp. 29-73. 108 PAIVA, José Pedro. “Os bispos do Brasil e a formação da sociedade colonial (1551-1706)”. Textos de História, vol. 14, 2006, pp. 11-34 e MAGALHÃES, Pablo. Equus Rusus: a Igreja Católica e as Guerras Neerlandesas na Bahia (1624-1654). Tese de Doutorado. Salvador: PPGH/UFBA, 2010, vol. I, pp. 349-401. 109 CARDIM, “Narrativa epistolar”, p. 217. 106

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cidade é a capital do Brasil, sede de um arcebispado e local de residência do vice-rei. Há ainda, no lugar, um Conselho Soberano [a Câmara] e uma Casa da Moeda, onde, com o propósito de facilitar o comércio, são cunhadas as moedas correntes no país”)110. Ainda que a administração periférica fosse muito inferior a sua contraparte indiana (em 1612, o governador-geral contava apenas com 14 oficiais da justiça e o mesmo número da fazenda, para além de 217 militares e 59 eclesiásticos)111, bastava para marcar a fisionomia da cidade.

Imagem 2: Urbs Salvador, 1671.

Fonte: MONTANUS, Arnaldus. De Nieuwe en Onbekende Weereld. Amsterdam: J. Meurs, 1671, entre as pp. 402-3. Disponível em: http://www.wdl.org/en/item/518/view/1/1/. Consultado em: set. 2014.

A legenda destaca os conventos do Carmo, São Bento e São Francisco, assim como o Colégio dos Jesuítas e a Sé (embora a legenda na verdade aponte para a vizinha Igreja de São Pedro dos Clérigos). Mais interessante são as letras F e G, que indicam, respectivamente, a cadeia (e, consequentemente, a Casa da Câmara, embora isso não esteja explícito na imagem) e o “Palácio do Marquês e Vice-Rei do Brasil” – indicando uma pequena desatualização de três

“François Froger” [1699] in: FRANÇA, A construção do Brasil, p. 448. PUNTONI, “O Governo-Geral”; cf. também SANTOS, Catarina Madeira. “Los virreyes del Estado de la India en la formación del imaginario imperial portugués” e CARDIM, Pedro & MIRANDA, Susana Münch. “Virreyes y gobernadores de las posesiones portuguesas en el Atlántico y en el Índico (siglos XVI-XVII)” in: CARDIM, Pedro & PALOS, Joan-Lluís (eds.). El mundo de los virreyes en las monarquías de España y Portugal. Madri: Iberoamericana, 2012, pp. 71-118 e 175-202, respectivamente. 110 111

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décadas, já que a referência só pode ser ao Marquês de Montalvão. De qualquer maneira, a gravura permite perceber que o poder, como sempre, inscrevia-se no próprio espaço112. Embora o poder local impressionasse bem menos os observadores, como única municipalidade da capitania da Bahia a Câmara de Salvador exercia jurisdição sobre toda a região e, em alguma medida, mesmo nas capitanias anexas de Porto Seguro, Ilhéus e Sergipe, onde havia apenas algumas vilas de reduzido estatuto político. Apenas no final do seiscentos foram fundadas vilas no Recôncavo: Jaguaripe (1697), Cachoeira e São Francisco da Barra do Sergipe do Conde (1698), reduzindo a jurisdição do Senado soteropolitano, mas sem ameaçar sua posição dominante na região. Desde meados do século, portanto, a Câmara de Salvador falava em nome da mais rica região açucareira da América portuguesa, e, sendo um “concelho de grande extensão territorial, possuía estrutura político-administrativa e características semelhantes aos mais importantes municípios portugueses do Antigo Regime”113. Assim sendo, eventualmente se referia a si mesma e era referida como “Câmara da Bahia”, mesmo porque Salvador também era geralmente chamada de “Cidade da Bahia” – representando, por metonímia, toda a capitania e até, em alguns momentos, o Estado do Brasil. O município soteropolitano diferenciava-se, assim, de Olinda e Rio de Janeiro, que, apesar de sua indiscutível preeminência regional, conviviam com algumas Câmaras menos importantes na mesma capitania114 – para não falar de São Vicente, que contava com 6 municípios já em 1600 e 17 em 1661, tendo São Paulo demorado séculos a assumir o posto de cabeça da capitania, em razão de complicadas disputas entre os donatários e a Coroa e da antiga preeminência de São Vicente115. Os fatores descritos até aqui se combinaram para dar à Bahia um estatuto diferenciado das capitanias restantes da América portuguesa. Capital, cabeça e coração, Salvador também foi, em diversos momentos qualificada como metrópole, como nessa passagem em carta de 1581 do almirante castelhano Diego Flores de Valdés: “esta en el médio de la gobernación del Brasil y es metropolis donde esta el gobernador y dealli se puede salir a socorrer a parahyba

112

Cf. BICALHO, Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, pp. 229-45. 113 SOUSA, Avanete Pereira de. A Bahia no Século XVIII: poder político local e atividades econômicas. São Paulo: Alameda, 2012, p. 58. 114 Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: 34, 2003 [1995], 2ª ed. rev., p. 78. 115 TORRÃO FILHO, Amílcar. “A marinha destronada: ou a famigerada São Vicente derrotada pela Rochela paulista. A afirmação de São Paulo como cabeça de capitania (1681-1766)”. História (São Paulo), vol. 30, n. 1, 2011, pp. 148-73 e BUENO, Beatriz. “Dilatação dos confins: caminhos, vilas e cidades na formação da capitania de São Paulo (1532-1822)”. Anais do Museu Paulista, vol. 17, n. 2, 2009, pp. 254-5.

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donde se dice van a poblar corsários”116. Originalmente, o termo metrópole indicava sede de bispado, como numa missiva de Fernão Cardim, que caracteriza Salvador como “cabeza y metropole; en ella reside el gobernador y obispo”117. A carta de Flores de Valdés indica, porém, que o termo assumira um significado político, indicador da capitalidade baiana – bem distinto da acepção oitocentista do vocábulo que ainda marca a historiografia brasileira. A preeminência baiana esteve ameaçada, porém, pela riqueza pernambucana, especialmente entre 1602-19, quando os governadores-gerais residiram oito desses 17 anos em Olinda118. A conquista de Salvador pelos neerlandeses, e principalmente “a recuperação de tão principal cidade por metrópole de tão grande província”119, parece ter reforçado a preeminência soteropolitana – que, não coincidentemente, passou a dispor da maior presença militar permanente do continente americano, apesar da tendência de queda após a expulsão dos neerlandeses de Pernambuco. Constituiu-se, assim, um contingente significativo, que talvez tenha chegado a representar mais de 30% da população soteropolitana em 1638-9, e girado em torno de 20-25% entre 1631-54. A partir daí, a tendência de diminuição do efetivo e crescimento populacional jogam a proporção para qualquer coisa em torno de 12% em 1660, diminuindo ainda mais nas décadas seguintes. O largo número de infantes era necessário porque, como explicou o Conselho Ultramarino em 1666, “não escusa menos gente uma praça tão principal e tão aberta, como aquela é, e que tem tantas partes a que acudir”120.

Gráfico 6: Soldados estacionados em Salvador, 1612-1660. 6000 4000 2000 0 1600

116

1610

1620

1630

1640

1650

1660

1670

Archivo General de Simancas, Guerra Antigua, Legajo 119, d. 41, fl. 2 (agradeço a José Carlos Villardaga por me ceder esse interessante documento). Sobre a expedição, cf., desse autor, São Paulo na órbita do império dos Felipes: conexões castelhanas de uma vila da América Portuguesa durante a União Ibérica (1580-1640). Tese de Doutorado. PPGHS/USP, 2010, pp. 51-81. 117 CARDIM, “Información de la província del Brasil para nuestro Padre” [1585], p. 138; cf. a carta do bispo D. Pedro da Silva de 1644 (AHU, Bahia, LF, cx. 10, doc. 1158) e uma consulta do Conselho Ultramarino, 40 anos depois: DH, vol. 89, p. 21. Após 1676, o termo também pôde ser usado para Pernambuco e Rio de Janeiro: vejase MELLO, José Antonio Gonsalves de (ed.). “Pernambuco ao tempo do governo de Câmara Coutinho (168990)”. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambuco, vol. 51, 1979, pp. 280-1. 118 DUTRA, Francis. “Centralization x Donatorial Privilege: Pernambuco, 1602-1630” in: ALDEN, Dauril (ed.). Colonial Roots of Modern Brazil. Berkeley: University of California Press, 1973, pp. 19-60. 119 MENEZES, D. Manuel de. “Recuperação da Cidade do Salvador” [1625], RIGHB, tomo 22, 1859, p. 625. No mesmo sentido, cf. NARBONA Y ZUÑIGA, Eugenio. “Historia de la Recuperación del Brasil” [1626?]. ABN, vol. 69, 1950, p. 169 e IAN/TT, Manuscritos da Livraria, L. 1116, fls. 703-4 (arbítrio sobre defesa da Bahia, 1629). 120 AHU, Bahia, LF, cx. 19, doc. 2163.

45

Fonte: LENK, Guerra e Pacto, p. 149.

Devido a seus custos, o crescimento da infantaria implicou a dissolução do Tribunal da Relação em 1626, poucos anos após sua efetivação em 1609, e a diminuição das despesas militares permitiu sua reconstituição em 1652 – embora ambos os momentos estejam intimamente ligados aos conflitos políticos locais com o governador e a Câmara, como veremos brevemente em outros capítulos da tese. Essa instituição tornou-se, a partir de então, um elemento permanente da dinâmica política e social baiana, tanto entrando em conflito com outros poderes quanto através da plena inserção de muitos de seus desembargadores na sociedade local121. O período filipino conheceu também diversas transformações no governo-geral, sendo criados três novos regimentos e constantemente pedindo-se informações sobre o território americano, cuja maior coesão pode ser vista na passagem da designação “partes do Brasil” para “Estado do Brasil”. A ampliação da importância do cargo faz com que muitos governadores repetidamente peçam o título de vice-reis, embora esse só tenha sido obtido pelo Marquês de Montalvão em 1640 – justo em um dos momentos de maior crise no domínio português em razão da ameaça neerlandesa. Daí a irônica paráfrase camoniana de Vieira: “é verdade que nunca se viu essa província tão autorizada como agora, mas podem-lhe servir os títulos de epitáfios, pois a vemos levantada a vice-reino entre mortalhas, bem se pode dizer por ela também, que depois de ser morta foi rainha”122. Como de praxe, porém, o grande jesuíta exagerava e Salvador continuava a ser a “metrópole do Estado do Brasil”, como repetiu o letrado fluminense Diogo Gomes Carneiro em uma interessante obra bragancista que destaca, de passagem, como “resistiram ao Holandês os Portugueses moradores e filhos daquela dilatada província, aonde com fineza observam há tantos anos as leis da nova guerra que ensinaram ao mundo, em que reduziram a temeridade às obrigações do valor”123. Esse estatuto recebeu a chancela real na resolução de 4 de setembro de 1653 em que D. João IV permite que “a Cidade da Bahia, metrópole do Brasil, possa mandar

121

SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: o Tribunal Superior da Bahia e seus desembargadores, 1609-1751 (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2011 [1973], 2ª ed. 122 VIEIRA, Antônio. “Sermão da Visitação de Nossa Senhora” [1640] in: CALMON, Pedro (ed.). Por Brasil e Portugal. São Paulo: Editora Nacional, 1938, p. 136. Sobre o período, cf. MARQUES, Guida. “De um governo ultramarino: a institucionalização da América Portuguesa no tempo da união das Coroas (1580-1640)” in: CARDIM, Pedro; COSTA, Leonor Freire & CUNHA, Mafalda Soares da (orgs.). Portugal na Monarquia Hispânica: dinâmicas de integração e conflito. Lisboa: CHAM, 2013, pp. 231-52 e COSENTINO, Francisco. “Mundo português e mundo ibérico” in: FRAGOSO & GOUVÊA, O Brasil Colonial, vol. II, pp. 130-46 123 CARNEIRO, Diogo Gomes. Oração Apodíxica aos cismáticos da Pátria. Lisboa: Lourenço de Anveres, 1641, fl. 8 – agradeço a Pedro Cardim a indicação dessa fonte.

46

procuradores às Cortes”124 (capítulo VII). Em finais do século, o termo é novamente utilizado pelo Secretário de Estado Bernardo Vieira Ravasco para sensibilizar seus contatos lisboetas da necessidade de proteger militarmente a capitania e dotá-la de uma moeda provincial125. É, enfim, essa metrópole, cabeça e coração que será meu tema nas próximas páginas. Indubitavelmente periférica frente às majestosas Cortes europeias, reforçou ao longo do seiscentos um papel que, creio, pode-se dizer, sem muito exagero, central no devir da monarquia portuguesa. Tal estatuto foi aproveitado e parcialmente construído pelas elites baianas que, por mais detestáveis que sejam para nossas sensibilidades contemporâneas, protagonizam essa tese. Antes, porém, de estudá-las, atentemos para aqueles que carregavam em suas costas a economia e a sociedade americanas: os escravos.

124

AHU, Bahia, LF, cx. 12, doc. 1527. Cf. BPA, cód. 51-VIII-34, fls. 31-38v (Papel sobre a moeda, 14 de Abril de 1687) e BPE, códice CV/1-17, fl. 296 (Discurso político sobre a neutralidade da Coroa de Portugal nas guerras presentes das Coroas da Europa, 18 de Julho de 1692). Seu irmão mais famoso também utiliza o termo em carta de 1692: VIEIRA, Cartas, vol. III, p. 439, assim como o juiz do povo em requerimento de 1693, também sobre a moeda: AC, vol. VI, p. 202. 125

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Capítulo II Compadrio e Escravidão Oh! se a gente preta, tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus e a sua Santíssima Mãe por este que pode parecer desterro, cativeiro e desgraça, e não é senão milagre, e grande milagre? Dizei-me: vossos pais, que nasceram nas trevas da gentilidade, e nela vivem e acabam a vida sem lume da fé nem conhecimento de Deus, aonde vão depois da morte? Todos, como credes e confessais, vão ao inferno, e lá estão ardendo e arderão por toda a eternidade. E que, perecendo todos eles, e sendo sepultados no inferno como Coré, vós, que sois seus filhos, vos salveis, e vades ao céu? Vede se é grande milagre da providência e misericórdia divina. Padre Antônio Vieira, Sermão XIV do Rosário, 1633. Sabei, pois, todos os que sois chamados Escravos, que não é escravo tudo o que sois. Todo homem é composto de corpo e alma, mas o que é e se chama escravo não é todo o homem, senão só a metade dele. Padre Antônio Vieira, Sermão XXVII do Rosário, 1680?

Introdução Nas últimas três décadas o estudo da escravidão africana no Brasil recebeu um grande impulso, e novas temáticas, fontes e abordagens se multiplicaram. Especialmente prolíficos têm sido os trabalhos que utilizam os registros paroquiais para investigar as relações sociais estabelecidas pelos cativos entre si e com forros, livres pobres e senhores. Entretanto, as pesquisas têm enfocado os séculos XVIII e XIX, englobando a época que vai da descoberta do ouro no Centro-Sul até o fim da escravidão e o imediato pós-emancipação.1 O século XVII foi negligenciado até recentemente, mesmo tendo sido o momento de consolidação da produção açucareira para exportação em grande escala, através da utilização da mão de obra africana nas áreas centrais da América Portuguesa, nomeadamente Bahia e Pernambuco. Nesse capítulo, analiso os dados que podemos extrair a partir das fontes paroquiais baianas seiscentistas, privilegiando três freguesias do Recôncavo: Santo Amaro da Purificação, no quarto de século entre 1652 e 1676; Paripe, 1672-1700 e Nossa Senhora da Ajuda de Jaguaripe, 1613-1667. Menciono eventualmente Santo Amaro do Catu, na ilha de Itaparica Cf. SCHWARTZ, Stuart. “Abrindo a roda da família: compadrio e escravidão em Curitiba e na Bahia” in: id. Escravos, roceiros e rebeldes (trad.). Bauru: EDUSC, 2001 [1992], pp. 263-92; MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na construção da hierarquia social no Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008; FRAGOSO, João. “Efigênia Angola, Francisca Muniz forra parda, seus parceiros e senhores: freguesias rurais do Rio de Janeiro, século XVIII. Uma contribuição metodológica para a história colonial” e MAIA, Moacir. “Tecer Redes, proteger relações: portugueses e africanos na vivência do compadrio (Minas Gerais, 1720-1750)”, Topoi, vol. 11, n. 20, 2010, respectivamente em pp. 1-33 e 36-54; FRAGOSO, João; FERREIRA, Roberto Guedes & SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de (orgs.). Arquivos paroquiais e História Social na América Lusa, séculos XVII e XVIII: métodos e técnicas de pesquisa na reinvenção de um corpus documental. Rio de Janeiro: Mauad X, 2014. 1

48

(1691-1700), uma pequena paróquia de pescadores e produtores de alimentos.

Mapa 1: Rede urbana e paroquial do Recôncavo Baiano, século XVIII.

Fonte: SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835 (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1988 [1985], p. 84.

A utilização dessas fontes deveu-se ao fato de serem as únicas sobreviventes, já que, diferentemente do Rio de Janeiro, a maior parte das fontes eclesiásticas do século XVII se perdeu (ou atualmente se encontra muito deteriorada, dificultando sua utilização sistemática, como no caso da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Praia, em Salvador). Em acréscimo, diferentemente da centúria seguinte, os registros cartoriais e os inventários são raros e dispersos, existindo apenas para os últimos anos do século. Meu objetivo é analisar a dinâmica demográfica e social da escravidão seiscentista, utilizando o único tipo de fonte sobrevivente que permite uma análise abrangente daquela sociedade. Demonstrarei as especificidades da escravidão baiana no século XVII, nomeadamente a reduzida quantidade de alforrias e o pequeno número de livres de cor; a raridade do casamento cativo; a importância do compadrio para o estabelecimento de relações

49

que ultrapassavam as fronteiras da senzala e a utilização do parentesco ritual dos escravos para estender as redes de relações dos grandes potentados entre os livres pobres.

Vislumbres de uma sociedade escravista Quadro 1: dados básicos das paróquias analisadas. Jaguaripe

Santo

Amaro Paripe

Santo Amaro

da Purificação 1613-1667

Período Número de Batismos

1.706 (100%)

1652-1676

de Itaparica 1672-1700

1691-1700

1.077(100%) 738(100%)

103(100%)

Inocentes Cativos Batizados

824 (48%)

545 (51%)

397 (54%)

29 (28%)

Inocentes Livres Batizados

874 (51%)

505 (47%)

312 (42%)

56 (54%)

8 (0,5%)

27 (2,5%)

29 (4%)

19 (18%)

Mães Escravas

594 (61%)

502 (68%)

283 (67%)

27 (43%)

Mães Livres

367 (38%)

230 (31%)

129 (31%)

36 (57%)

Mães Forras/de Cor

13 (1%)

11 (1%)

10 (2%)

0

Engenhos em 1718*

0

39

1

0

1.096 (45%)

4.152 (69%)

551 (64%)

407 (57%)

Adultos Batizados

População Escrava em 1718*

Fontes: Laboratório Eugênio da Veiga/Universidade Católica de Salvador, Registros de batismo das paróquias em análise (Purificação, Itaparica e Paripe digitalizados em www.familysearch.com). * SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 15501835 (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1988 [1985], pp. 86-7; ALDEN, Dauril. “Price movements in Brazil before, during, and after the gold boom, with special reference to the Salvador Market, 1670-1759” in: JOHNSON, Lyman & TANDETER, Enrique (eds.). Essays on the price history of eighteenth-century Latin America. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1990, p. 363, nota 13.

De acordo com um censo eclesiástico de 1718, Santo Amaro possuía 39 engenhos e 69% de sua população era escrava, enquanto Paripe dispunha de apenas um engenho e 64% de escravos. Mesmo que os dados não correspondam à realidade da época englobada pelo meu recorte (Paripe, por exemplo, possuía dois engenhos em 1686),2 creio que a posição relativamente a outras paróquias não deve ter se alterado. Jaguaripe, por sua vez, tinha 45% de sua população escrava e nenhum engenho, pois já havia se especializado na produção de

2

CS, vol. III, pp. 30-1.

50

alimentos. Entretanto, como havia sido um dos polos de expansão açucareira em finais do século XVI, na primeira metade do seiscentos ainda possuía no mínimo dois engenhos.3 Na freguesia de Santo Amaro da Purificação, coração do Recôncavo açucareiro, analiso um total de 1.077 batismos (outros 309 não podem ser levados em conta, em razão do péssimo estado de conservação da documentação); em Paripe são 738 registros (sendo mais 133 ilegíveis) e em Jaguaripe 1.706 (descartando 145 excessivamente deteriorados). A maioria escrava é evidente, pois 51% (545) dos batizandos inocentes em Santo Amaro eram cativos, e 54% (397) em Paripe, enquanto em Jaguaripe há praticamente uma paridade: 824 cativos e 874 livres. A taxa de natalidade dos cativos tendia a ser menor que a dos livres, em razão da elevada razão de sexo em uma população majoritariamente africana e das dificuldades cotidianas: essa diferença é especialmente visível quando comparamos o número de mães escravas e livres, numa proporção de mais de dois para um em Santo Amaro e Paripe. Mesmo considerando a imprecisão desse índice, o fato de que a população cativa masculina devia ser maior do que a feminina indica a significativa predominância demográfica dos escravos, provavelmente em níveis similares ou maiores que os do censo de 1718.

Quadro 2: distribuição da propriedade de mães por senhor (total de escravas).

1-3 4-6 7-9 10-12 13-15 16-18 19-21 Total de senhores

Jaguaripe Jaguaripe Santo Amaro Paripe (1613-40) (1641-67) (1652-76) (1674-1700) 98 (132) 132 (231) 215 (387) 127 (172) 12 (45) 18 (80) 22 (108) 10 (42) 4 (31) 6 (47) 1 (7) 5 (38) 0 0 0 1 (11) 1 (15) 1 (13) 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1 (20) 115 (223) 157 (371) 238 (502) 144 (283)

Fontes: Laboratório Eugênio da Veiga/Universidade Católica de Salvador, Registros de batismo das paróquias em análise (Santo Amaro e Paripe digitalizados em www.familysearch.com).

Infelizmente, os dados possuem diversas limitações: em Santo Amaro da Purificação, por exemplo, o cura só registrou os batismos realizados na matriz da freguesia, deixando de fora as capelas filiadas, inclusive as situadas nos engenhos, o que nos impede de analisar os grandes proprietários e seus escravos, distorcendo os dados de modo a sobrerrepresentar os moradores de pequenas posses e livres pobres. Tal situação explica a extrema desconcentração 3

SCHWARTZ, Segredos Internos, pp. 86-7, 89 e 206.

51

da propriedade escrava nessa paróquia, coração do Recôncavo açucareiro, exibida no quadro 2. O mesmo pode ter acontecido em algum grau em Jaguaripe, já que um senhor de engenho como Nicolau Soares batiza apenas cinco cativos entre 1621 e 1650; a vantagem, porém, é que essa é a única freguesia em que os pais dos filhos das escravas são registrados sistematicamente, como veremos abaixo. Em contrapartida, o pároco de Paripe registrava muito menos informações sobre seu rebanho, pois mencionou pouquíssimas vezes a cor e eventualmente não informava a condição social dos padrinhos – ou sequer registrava-os, como fez em 38% dos batizados de cativos. O cura chegou a ser admoestado em finais de 1697 pelo visitador Reverendo Cônego Gaspar Marques Vieira para que “nos assentos dos batizados p[usesse] os nomes dos padrinhos [para] que não suceda ficarem em branco como em alguns desses já feitos” – o que, como veremos abaixo, melhorou a qualidade dos registros, aumentando a proporção de padrinhos cativos. Por outro lado, apenas os dados de Jaguaripe cobrem um longo período, de mais de 50 anos. Seremos obrigados, assim, a utilizar alternada e comparativamente os dados dessas três paróquias na tentativa de responder às nossas questões. Como a transição para a mão de obra africana já havia se completado em meados do seiscentos, os indígenas eram claramente minoritários, tendo-se registrado apenas dois batizados de gentios da terra adultos em Santo Amaro e nenhum em Paripe. Em Jaguaripe, porém, a situação era marcadamente distinta: freguesia que conheceu a famosa Santidade em finais do século XVI,4 possuía uma aldeia indígena fundada pelos jesuítas, que a abandonaram em 1613.5 Seu intento de movê-los fracassou em razão de uma manifestação dos maiores proprietários da região, requerendo a manutenção da aldeia para garantir a defesa da região (inclusive contra os índios “fugidos” da Santidade), pois, em razão de sua localização geográfica no sul do Recôncavo, representava a “fronteira do sertão”, 6 o que a colocava em contato direto com os índios “bravos” ainda durante o seiscentos,7 justificando e possibilitando a escravização de indígenas,8 identificados alternadamente como escravos, “da obrigação de”

4

VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil, vol. V: da Baía ao Nordeste. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945, pp. 267-8. Exatamente nesse ano os registros se iniciam, indicando ter sido essa a provável data de instituição da freguesia. 6 SALVADO, João Paulo & MIRANDA, Susana Münch (eds.). Cartas para Álvaro de Sousa e Gaspar de Sousa (1540-1627). Lisboa: CNCDP, 2001, pp. 190-2 e id. (eds.). Livro 1º do Governo do Brasil (1607-1633). Lisboa: CNCDP, 2001, pp. 368-70. 7 Cf., AHMS, PR, vol. I, fls. 24v-26, para uma menção a um ataque em 1627; DH, vol. 3, pp. 185 e 248 e vol. 4, pp. 356-7 sobre ataques em 1652, 1654 e 1657. Para uma detalhada análise desses conflitos na década de 1650, cf. PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil, 16501720. São Paulo: EDUSP/Hucitec, 2002, pp. 89-107. 8 É de se destacar que a lei de 10 de setembro de 1611 sobre a liberdade do gentio singularizou Jaguaripe como região onde “se cativaram muitos gentios contra as formas das leis d’El Rei”. Cf. Boletim do Conselho Ultramarino: Legislação Antiga. Lisboa: Imprensa Nacional, 1867, Vol. I: 1446 a 1754, pp. 206-11. 5

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e, principalmente, “sujeitos a” um senhor nos registros paroquiais.9 Mesmo nessa paróquia fronteiriça, porém, os “negros da terra” cativos são largamente minoritários, pois encontrei apenas 22 batizados, espalhados entre 1615 e 1657: é de se reconhecer, porém, que é provável que diversos dos escravos sem identificação sejam antes indígenas que africanos, especialmente nos primeiros anos do período. Os índios livres da aldeia de Santo Antônio são mais comuns, perfazendo 56, 34 dos quais apadrinhados por brancos, indicando uma interação significativa entre os membros da aldeia e a população luso-brasílica de Jaguaripe. Essas relações talvez facilitassem o emprego do trabalho nativo, ao mesmo tempo em que protegiam os indígenas da escravização ilegal ou formas mais violentas de exploração10. Apesar da predominância da escravidão negra, a proporção de africanos variava significativamente, como é possível perceber através da naturalidade das mães. Em Santo Amaro, mais de 83% (257) das genitoras cativas de origem conhecida haviam nascido na África: como essa era a freguesia que recebia o maior influxo dos cativos desembarcados na praça baiana, tal predominância é facilmente compreensível. Já em Jaguaripe a proporção quase se inverte, pois apenas 35 mães (26% do total com origem registrada) aparecem como “do gentio da Guiné” ou “Angola”, enquanto 97 (74%) são crioulas ou mulatas – o que provavelmente significava uma menor predominância masculina entre os cativos, potencializando a formação de laços familiares estáveis, como veremos – e até uma maior natalidade, visível na média de 1.4 filhos por mulher em Jaguaripe, contra 1.1 em Santo Amaro. Falamos brevemente das mães; e os filhos? 312 inocentes cativos de Santo Amaro têm sua cor registrada, denotando um elevado índice de miscigenação, pois 56% são qualificados como mulatos (163) ou mestiços (12). Mesmo se considerarmos os outros 233 inocentes que não têm a cor registrada pelo pároco como crioulos (o que é manifestamente falso, pois ao menos três são filhos de livres sem cor declarada, isto é, “brancos”, assim como outros 146 em Jaguaripe), o nível de contato sexual interétnico era muito intenso, o que acabou por gerar um importante grupo miscigenado no cativeiro. Em Santo Amaro, Itaparica e Paripe, a paternidade dos cativos quase nunca é assumida. Da mesma maneira, dos quatro mulatos nascidos livres, apenas um teve a paternidade declarada. Se o “mulatismo” implicava a inexistência de reconhecimento formal por parte da figura 9

Para uma discussão similar sobre a administração dos índios, cf. MONTEIRO, John. Negros da Terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, pp. 147-53. 10 Um dos poucos estudos sobre compadrio na América Espanhola indica que apenas uma minoria de índios, geralmente caciques e seus parentes, estabelecia laços de parentesco ritual com a população de origem europeia, situação bem distinta da verificada na Bahia, provavelmente em razão do domínio demográfico indígena: CHARNEY, Paul. “The implications of godparental ties between Indians and Spaniards in Colonial Lima”. The Americas, vol. 47, n. 3, 1991, pp. 295-313.

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paterna, tal situação não era exclusiva: apenas 45 cativos crioulos ou sem cor (cerca de 6% do total) têm pais identificados nestas paróquias. Se olharmos para os matrimônios sacramentados na Igreja, o contraste com a população livre fica ainda mais evidente. Nenhum mulato ou pardo, escravo ou livre, foi filho de pais casados, e apenas uma pequena minoria de 30 (3,2%) escravos em Paripe e Santo Amaro nasceu numa família reconhecida pela Igreja (assim como dois casais de crioulos livres). Isso significa que cerca de 97% dos escravos eram filhos ilegítimos. É de se notar que tal índice de ilegitimidade é ainda maior que o encontrado em outras regiões, como São João Del Rey entre 1736-1850, onde a taxa variou entre 57% e 89%; Campos dos Goitacazes entre 1748-1800, onde girava em torno de 53%; e Jacarepaguá, de 48% a 62% entre 1754 e 180411. Mesmo na Bahia do final do XVIII o casamento escravo parece ter sido mais frequente que na centúria anterior, pois nas paróquias e anos analisados por Schwartz a taxa varia entre 66% e 90%12. As únicas áreas com taxas comparáveis que conheço são Angra, nos Açores, onde 93% dos inocentes cativos eram ilegítimos entre 1583-1699 (provavelmente em razão da predominância de escravarias muito reduzidas, limitando as possibilidades matrimoniais dos escravos) e a cidade do Rio de Janeiro entre 1744-60, com 97%13. Assim como em Angra, nos Açores, o diferencial em relação à população livre sem cor era muito significativo, pois 86% destas crianças em Santo Amaro eram legítimas, enquanto o percentual era de 90% em Paripe e de 93% em Jaguaripe – taxas comparáveis às de diversas paróquias portuguesas, especialmente no Minho, de onde vinha parte considerável dos imigrantes (capítulo II), imigração que contribuía para as taxas de ilegitimidade ao produzir uma razão de sexo desbalanceada, a ponto de deixar muitas mulheres solteiras. Os níveis encontrados no Recôncavo baiano também são iguais ou maiores do que muitas áreas da América Portuguesa no XVIII, embora menores do que as encontradas para São Gonçalo seiscentista, no Recôncavo da Guanabara. No reino como nas conquistas, a ilegitimidade entre os livres “sem cor” parece ter sido característica da experiência de mulheres mais pobres, em

BRÜGGER, Silvia. Minas Patriarcal: família e sociedade (São João Del Rei – séculos XVIII e XIX). São Paulo: Annablume, 2007, pp. 76-80 e 115-20; FARIA, Sheila. “Cotidiano do negro no Brasil Escravista” in: ANDRÉSGALLEGO, José (org.). Tres Grandes Cuestiones de la Historia de Iberoamerica. Madri: Fundación Mapfre Tavera, 2005, pp. 54-72 & SOARES, Márcio. “Presença africana e arranjos matrimoniais entre os escravos em Campos dos Goitacazes (1790-1831)”. História: Questões & Debates, n. 52, 2010, p. 88. 12 SCHWARTZ, Segredos Internos, p. 316-8. A exceção é a freguesia de São Francisco em 1816, onde a taxa de ilegitimidade foi de 100%. Para Paripe na transição para o Oitocentos, cf. ALVES, Adriana. As Mulheres Negras por Cima: o caso de Luzia Jejê. Escravidão, família e mobilidade social – Bahia, c. 1780 - c. 1830. Tese de Doutorado. Niterói: PPGH/UFF, 2010, pp. 98-150. 13 MESQUITA, Maria Hermínia. “Escravos em Angra no século XVII: uma abordagem a partir dos registros paroquiais”. Arquipélago: História, 2ª série, vol. IX, 2005, p. 213; SOARES, Mariza. People of Faith: Slavery and African Catholics in Eighteenth-Century Rio de Janeiro (trad.). Durham: Duke UP, 2011 [2000], pp. 71 e 95. 11

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situação instável e menos inseridas em redes sociais de apoio14. Na Bahia seiscentista, as mães solteiras não aparecem como madrinhas, e nunca conseguiam casar e gerar filhos legítimos. Voltemos aos cativos. Jaguaripe distingue-se parcialmente do cenário que traçamos até aqui, pois sua taxa de ilegitimidade entre os cativos foi de “apenas” 79%: elevada, mas menos onipresente do que em Santo Amaro e Paripe. O que é ainda mais significativo, 80% dos filhos naturais tiveram pais registrados. A atitude do pároco e seus paroquianos certamente foi um fator preponderante, fosse permitindo o casamento cativo ou, ao menos, aceitando as atribuições de paternidade feitas pelas escravas e seus padrinhos, na característica fórmula “deu-se por pai”, que continuou a ser utilizada até 1667, quando terminam os registros sobreviventes dessa freguesia. Para deixar mais clara essa oposição, cabe fazer uma rápida comparação: em Santo Amaro, nos 15 anos em que os registros são concomitantes (1652-67), apenas um francês, Miguel Buqueque, aparece como pai livre de um cativo, em oposição a 76 registrados no mesmo período em Jaguaripe. Um fator que me parece importante para a compreensão desse desenvolvimento distinto é o tráfico: como vimos acima, a presença crioula era significativamente maior na freguesia de Jaguaripe, em razão da progressiva decadência de sua economia açucareira, que certamente impossibilitava a compra de africanos na mesma escala de Santo Amaro: assim, talvez a menor incorporação de forasteiros tenha estimulado a constituição de relacionamentos estáveis (sacramentados ou não pela Igreja); por outro lado, também é possível que os próprios africanos (ou ao menos alguns deles) resistissem ao casamento monogâmico.15 O matrimônio sofria ainda de outra limitação fundamental: praticamente todos os esposos, com exceção de apenas um, em Jaguaripe, pertenciam ao mesmo senhor, como em outras regiões e épocas.16 Em verdade, tal obstáculo aparentemente está presente mesmo para os relacionamentos informais estáveis (isto é, aqueles que geraram mais de um filho), pois encontrei apenas um casal (que gerou apenas dois filhos) entre pais de senhores distintos, sendo mais comum encontrar famílias informais dentro da mesma propriedade. O maior proprietário das quatro paróquias é o desembargador Cristóvão de Burgos, com 35 inocentes batizados em Paripe, dos quais cinco (14%) legítimos; se nas grandes propriedades NEVES, António Amaro das. “Um enigma demográfico: a ilegitimidade no Minho do Antigo Regime”. Boletín de la Asociación de Demografía Histórica, vol. XVI, n. 1, 1998, pp. 151-65; SCOTT, Ana Silvia. “O pecado na margem de lá: a fecundidade ilegítima na metrópole portuguesa (séculos XVII-XIX)”. População & Família, n. , (2000, pp. 41-70; BRÜGGER, Minas Patriarcal, pp. 76-115 e FARIA, Sheila. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998, pp. 52-8. 15 Para a relação entre tráfico e família escrava, sintetizando e retomando pontos de seus trabalhos anteriores, cf. FLORENTINO, Manolo. “Tráfico atlântico, mercado colonial e famílias escravas. Rio de Janeiro, Brasil, c. 1790 – c. 1830”. História: Questões & Debates, n. 51, 2009, pp. 69-119. 16 SCHWARTZ, Segredos Internos, p. 313 e FARIA, “Cotidiano do negro”, pp. 59-60. 14

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o maior número de cativos aumentava a possibilidade de enlaces formais, ainda assim eles continuavam a ser muito raros no século XVII, mostrando-se talvez privilégio de um pequeno grupo, interessado em se conformar com as normas católicas e capaz de pressionar de alguma maneira os senhores a reconhecerem formalmente suas uniões, já que estas implicavam, ao menos juridicamente, a proibição de separação dos parceiros e seu direito vitalício à coabitação – para além de, possivelmente, representarem uma marca de status dentro da hierarquia interna do cativeiro. Certamente, porém, havia arranjos familiares internos da comunidade escrava que permanecem invisíveis para nós, refletindo a dificuldade de formalizar as uniões (especialmente as que ultrapassassem os limites da propriedade) e talvez mesmo algum desinteresse dos próprios cativos no caráter vitalício e exclusivo do matrimônio católica. Já o Padre Vieira reclamava dessa situação: “consentis que os escravos e escravas andem em pecado, e não lhes permitis que se casem, porque dizeis que casados servem menos bem”17. Seu famoso secretário, Antonil, admite tal situação, afirmando mesmo que os senhores reconheciam o concubinato “dizendo: Tu Fulano a seu tempo casará com Fulana”. 18 Outro membro da ordem, o italiano Antônio De Brandolini, encaminhou em 1708 ao Pontífice um suposto memorial de uma irmandade de escravos africanos da Bahia (provavelmente a de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de Salvador, fundada em 1685) pedindo – sem sucesso – a intervenção papal para obrigar os proprietários a aceitar o casamento de seus cativos19. É importante perceber, portanto, a possibilidade de matrimônios escravos como um diferencial entre a escravidão seiscentista e setecentista: se o casamento católico foi sempre acessível a (e/ou desejado por) apenas uma parcela restrita dos cativos, essa situação parece ter sido muito mais marcada no período de ascensão e consolidação da escravidão africana na Bahia, quando suas hierarquias costumeiras e seu modus vivendi ainda estavam em construção. Em acréscimo, é possível que a fragilidade e mesmo o descaso do aparato eclesiástico, especialmente no meio rural, tenha sido um dos fatores constituintes da extrema raridade do matrimônio católico entre os cativos, em oposição a sua ampla disseminação entre os livres,20 ainda mais se considerarmos que as primeiras diretrizes produzidas pela Igreja especificamente VIEIRA, Antônio. “Sermão XXVII, com o Santíssimo Sacramento exposto” in: id. Maria Rosa Mystica. Lisboa: Imprensa Crasbeeckiana, 1688, 2ª parte, p. 402. 18 ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil por suas drogas e minas. Lisboa: CNCDP, 2001 [1711], p. 93. 19 CASTELNAU-L’ESTOILE, Charlotte de. “O ideal de uma sociedade escravista cristã: direito canônico e matrimônio dos escravos no Brasil colônia” in FEITLER, Bruno & SOUZA, Evergton Sales (org.). A Igreja no Brasil: normas e práticas durante a vigência das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Ed. UNIFESP, 2011, pp. 355-395. 20 Cf. LIBBY, Douglas Cole. “As populações escravas das Minas Setecentistas: um balanço preliminar” in RESENDE, Maria Efigênia & VILLALTA, Luiz Carlos (orgs.). História de Minas Gerais: as Minas setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, vol. I, p. 418. 17

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nesse sentido tenham surgido apenas no início do século XVIII, com as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707). Tais Constituições reconheciam que os senhores se opunham ao casamento de seus cativos e reafirmavam as disposições favoráveis ao matrimônio escravo constantes em decreto de 1568 do arcebispo de Lisboa e nas Constituições daquele arcebispado de 1646, ambas teoricamente vigentes no Brasil seiscentista, mas de nulo efeito prático.21 A Bahia de seiscentos se contrapõe, assim, ao México e ao Peru, onde os sínodos provinciais trataram dessa questão desde meados do XVI, e os escravos frequentemente recorriam aos tribunais eclesiásticos para garantir o gozo do estado de casado.22 É claro que a grande quantidade de escravos concentrados no meio urbano e a força do aparato eclesiástico são fundamentais para explicar tal diferença, assim como a menor importância dos cativos na estrutura produtiva da Nova Espanha. De qualquer maneira, essa situação reforçava a autoridade dos senhores sobre seus escravos (como estes próprios reconheciam, a se crer na citação acima de Vieira), pois evitava restrições legais ao controle sobre seus cativos. Mesmo assim, cabe reconhecer os limites de generalização destas afirmações. Em uma das poucas pesquisas que abarca o século XVII, os dados recolhidos por Sheila de Castro Faria sobre a paróquia de São Gonçalo (1645-68), no Recôncavo da Guanabara, demonstram que 47,5% dos escravos eram legítimos,23 taxa muito superior à que encontramos para as paróquias com registros sobreviventes na Bahia, inclusive Jaguaripe. Por que as diferenças? Como os numerosos trabalhos sobre o setecentos deixam claro, variações significativas são comuns, forçando o pesquisador a reconhecer a especificidade das hierarquias costumeiras e padrões demográficos de cada paróquia no Brasil escravista. Além disso, só uma análise sistemática sobre outras freguesias do Rio de Janeiro seiscentista pode esclarecer se São Gonçalo era regra ou exceção na capitania no tocante à questão da legitimidade dos inocentes cativos. Para além de variáveis de impossível verificação, como uma predisposição do pároco a estimular o matrimônio católico entre seu rebanho negro, é provável que o fato de o Rio de Janeiro ser menos ligado ao tráfico do que Salvador nesse período, recebendo cerca de 30% menos cativos

CASTELNAU-L’ESTOILE. “O ideal de uma sociedade escravista cristã”. BENNET, Hermann. Africans in Colonial Mexico: Absolutism, Christianity and Afro-Creole Consciousness, 1570-1640. Bloomington: Indiana UP, 2003; WISNOSKI III, Alexander. “‘It is unjust for the law of marriage to be broken by the law of slavery’: married slaves and their masters in early colonial Lima”. Slavery & Abolition, vol. 35, n. 2, pp. 234-52; O mesmo ocorria em Lisboa em finais do XVII: LAHON, Didier. Esclavage et Confréries Noires au Portugal durant l’Ancien Régime (1441-1830). Tese de Doutorado. Paris: EHESS, 2001, pp. 144-50. Até nas Antilhas Francesas da década de 1680 o casamento cativo era mais disseminado que na Bahia, graças a um determinado esforço eclesiástico (embora a situação tenha se invertido nos séculos seguintes): GAUTIER, Arlette. “Les familles esclaves aux Antilles françaises, 1635-1848”. Population, ano 55, n. 6, 2000, p. 983. 23 FARIA, “O cotidiano do negro”, p. 37. A freguesia de Santo Antônio do Jacutinga apresentou índices similares na viragem do século XVII para o XVIII: DEMÉTRIO, Denise. Famílias escravas no Recôncavo da Guanabara: séculos XVII e XVIII. Dissertação de mestrado. Niterói: PPGH/UFF, 2008, pp. 116-8. 21 22

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em meados do XVII – o que fazia do africano uma mercadoria socialmente mais escassa – tenha sido um fator a estimular a formação de famílias formalmente reconhecidas, inclusive por possibilitar a reprodução de novos trabalhos. Nesse sentido, podemos perceber semelhanças entre São Gonçalo e Jaguaripe, explicando a aparente excepcionalidade dessa paróquia em comparação com suas congêneres baianas24. Todos os estudos que utilizam os registros paroquiais para analisar a escravidão mencionam taxas reduzidas de alforrias na pia batismal, como para o Recôncavo na década de 1780, 5%; São João Del Rei entre 1750-1850, entre 1 e 3%, Campos dos Goitacazes, 2% de 1753 a 1831 e Vila Rica setecentista, 5 a 6%; porém, como percebeu Donald Ramos, “embora o número destes inocentes forros não fosse expressivo em termos demográficos, obviamente as alforrias concedidas na pia batismal eram importantes em termos sociais e culturais”.25 Tais efeitos inexistiam na Bahia seiscentista, pois não encontrei uma manumissão em 1.774 batizados de inocentes cativos. Não quero dizer que a alforria fosse uma impossibilidade, pois ela existia desde o início da escravidão baiana, seguindo tradicionais precedentes ibéricos26. Entretanto, a presença discreta de livres e libertos de cor na documentação paroquial sugere fortemente que esse ainda era um grupo marginal, mesmo que com alguma capacidade de acumulação, a se julgar pela não desprezível contribuição das forras de Pernambuco para o Donativo do Dote da Rainha da Grã-Bretanha e Paz da Holanda, em 1664-6.27

Quadro 3: Forros e Livres de Cor nos Registros Batismais da Bahia Seiscentista (porcentagem do total). Mães 10 (1,5%) Jaguaripe (1613-40) 17 (1,7%) Jaguaripe (1641-67) Purificação (1652-76) 12 (1,2%) 20 (2,8%) Paripe (1672-1700) 0 Itaparica (1691-1700)

Pais Padrinhos Madrinhas Senhores 2 (0,3%) 1 (0,2%) 0 0 18 (2%) 17 (2,2%) 9 (1,3%) 3 (0,7%) 1 (0,2%) 53 (5,5%) 64 (7,9%) 5 (0,9%) 5 (1,7%) 4 (0,7%) 8 (2%) 0 0 4 (4,5%) 3 (4,4%) 0

Cf. FRAGOSO, João. “Apontamentos para uma metodologia em história social a partir de assentos paroquiais (Rio de Janeiro, séculos XVII e XVIII)” in: id., GUEDES & JUCÁ (orgs.), Arquivos Paroquiais, p. 56. 25 GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. “Purgando o pecado original: compadrio e batismo de escravos na Bahia no século XVIII” in: REIS, João José (org.). Escravidão e Invenção da Liberdade. São Paulo: Brasiliense, 1988, pp. 53; BRÜGGER, Minas Patriarcal, p. 296, nota 353; SOARES, Márcio. A Remissão do Cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravos nos Campos dos Goitacases, c. 1750 – c. 1830. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009, p. 68; RAMOS, Donald. “Teias Sagradas e Profanas: o lugar do batismo e compadrio na sociedade de Vila Rica durante o século do ouro”. Varia História, n. 31, 2004, p. 47 (citação). 26 SAUNDERS, A. C. A social history of black slaves in Portugal, 1441-1555. Cambridge: Cambridge UP, 1982, pp. 138-41 (há edição portuguesa). Também em Lisboa, porém, a manumissão parece ter se acelerado no século XVIII. Uma investigação nos índices dos registros notariais entre 1568-1662 encontrou menos de meia centena de alforrias, número reduzido para os milhares de cativos existentes na capital: LAHON, Esclavage, p. 294. 27 MELLO, José Antônio Gonsalves de (ed.). “A finta para o casamento da Rainha da Grã-Bretanha e Paz da Holanda”. Revista do Instituto Histórico, Geográfico e Arqueológico Pernambucano, vol. 54, 1981, pp. 9-62. 24

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Fontes: Laboratório Eugênio da Veiga/Universidade Católica de Salvador, Registros de batismo das paróquias em análise (Purificação, Itaparica e Paripe digitalizados em www.familysearch.com).

Há que reconhecer a limitação inerente a esses dados, oriundos que são de quatro paróquias de características socioeconômicas distintas ao longo de quase um século, e registrados por párocos que demonstraram um interesse variável na cor e, por vezes, até mesmo no estatuto jurídico de seu rebanho. Mesmo assim, é certo que a proporção de forros e livres de cor é muito menor do que no setecentos. Essa diferença é evidenciada pela comparação com Minas Gerais: entre 1712 e 1810 em Vila Rica, os filhos de mães forras representam 19% do total,28 e, em São João del Rey, 17% já em 1736-40 e, nas décadas seguintes, entre 24% e 36%.29 Até em Lisboa na segunda metade do seiscentos a população livre de cor era muito mais relevante como proporção da população negra ou mulata30. Se considerarmos a porcentagem de mães como um indício mais ou menos confiável do peso dos livres de cor na população, os dados para Paripe nas últimas décadas do século são muito similares aos encontrados nas Antilhas francesas da mesma época, que vivia uma lenta transição para a produção açucareira, mas cuja economia um tanto mais diversificada distinguia-se menos da América Portuguesa do que as Índias Ocidentais inglesas31. Entretanto, se os livres de cor eram um grupo incipiente ainda em finais do seiscentos, seu pequeno aumento nas últimas décadas indica uma tendência de lento crescimento ao longo do século. Tal desenvolvimento já é perceptível em meados do XVII em Jaguaripe, única paróquia cujos dados possibilitam uma análise de média duração. A pequena quantidade de nascimentos significa que esse grupo dependia das alforrias para aumentar seu número. Embora as manumissões registradas em cartório na Bahia só sobrevivam a partir de finais do seiscentos, e sua qualidade dificulte a quantificação até 1720, os dados apresentados por Schwartz e Ligia Bellini sugerem que os 23 anos entre 1684-1707 conheceram uma média anual de 15 alforrias, enquanto o período de 1728-41 assistiu a 70 por ano, indicando uma forte tendência de aceleração, já observada para o Rio de Janeiro32. O fator a explicar essa significativa alteração 28

A dificuldade de identificação de forros é inevitável, como reconhecem LIBBY, Douglas Cole & BOTELHO, Tarcísio. “Filhos de Deus – batismos de crianças legítimas e naturais na Paróquia de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, 1712-1810”. Varia História, n. 31, 2004, pp. 73 e 87. 29 BRÜGGER, Minas Patriarcal, p. 77. 30 LAHON, Esclavage, vol. I, pp. 78-9, 82-3, 86 e 296. 31 PRITCHARD, James. In search of empire: the French in the Americas. Cambridge: Cambridge UP, 2004, pp. 43-70 e 101-3. 32 SCHWARTZ, Stuart. “Alforria na Bahia, 1684-1745” [1974] in: id. Escravos, p. 175, nota 7; BELLINI, Ligia. “Por amor e por interesse: a relação senhor-escravo em cartas de alforria” in: REIS, João José (org.). Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988, pp. 73-86; SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. “A produção da liberdade: padrões gerais das manumissões no Rio de Janeiro colonial,

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parece ter sido a grande intensificação do tráfico negreiro a partir de 1696, num contexto de crescimento econômico e demográfico em todo o mundo atlântico, gerando a disseminação da propriedade escrava no Brasil, a facilidade de reposição de trabalhadores, e o estímulo à concessão de alforrias para um melhor controle dos cativos, outorgadas principalmente por pequenos e médios proprietários.33 Assim, na primeira metade do seiscentos, o grupo dos livres de cor, responsável por uma das principais especificidades da escravidão luso-americana, ainda era quase inexistente, só começando a se constituir como tal a partir de meados do século, como podemos ver em Jaguaripe e Santo Amaro, mas ainda de forma extremamente minoritária34. Na “leva de gente” feita pelo Conde de Óbidos em 1639, por exemplo, os pardos e mulatos forros não chegam a 1% dos 819 homens alistados35. Embora “mulato” seja um adjetivo mais disseminado e de difícil datação, é curioso que a referência mais antiga que encontrei ao termo “pardo” na Bahia seja de uma “mulher parda” presa pela Inquisição em 1612 em razão de suas proposições heréticas, filha de pardos forros, mas natural, como seus pais, de Évora, sugerindo que as origens desse termo devem ser procuradas não no Novo Mundo, mas no Velho36. Em 1649 há uma referência a uma irmandade de pardos que pediu permissão à Santa Casa da Misericórdia de Salvador para enterrar seus membros37. Trata-se de uma confraria de cativos, o que já indica a pouca importância dos livres de cor nesse momento. O próprio termo “pardo” só começa a aparecer nos registros paroquiais na década de 1650, primeiro em Santo

1650-1750” in FLORENTINO, Manolo (org.). Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, pp. 287-329. 33 MARQUESE, Rafael. “A Dinâmica da Escravidão no Brasil: resistência, tráfico negreiro e alforrias, séculos XVII a XIX”. Novos Estudos CEBRAP, n. 74, 2006, pp. 107-26 e SOARES, A Remissão do Cativeiro. 34 Processo similar ocorreu no Rio de Janeiro, ainda que com cronologia ligeiramente mais tardia, como se pode inferir dos dados apresentados em FRAGOSO, “Apontamentos para uma metodologia em história social”, p. 59 e FERREIRA, Roberto Guedes. “Livros paroquiais de batismo, escravidão e qualidades de cor (Santíssimo Sacramento da Sé, Rio de Janeiro, séculos XVII-XVIII” in: id., FRAGOSO & SAMPAIO (eds.), Arquivos paroquiais, pp. 137-44 e 174-6 (embora o autor considere a tentativa de comparação “descabida”). Um relatório de 1665 de Salvador Correia de Sá afirma que “no Estado do Brasil há muita quantidade de mulatos forros”, mencionando especificamente o Rio de Janeiro e Pernambuco (apud ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 306). Nessa última capitania há menção a um “terço” de pardos já em 1653, e é provável que sua cronologia de desenvolvimento seja muito similar à baiana: AUC, CCA, Disposições dos Governadores de Pernambuco, VI, 3a, I-1-31, 10v. 35 CCT, vol. III, pp. 142-80. 36 IAN/TT, TSO, IL, Processo 3382. 37 ASCMS, Livro 1º de Acórdãos, fls. 9-10. Veja-se também VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem. Campinas: Ed. UNICAMP, 2007, pp. 108-14. No Rio foram fundadas três irmandades de pardos entre 1654-1700: CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro Setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão francesa até a chegada da Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p. 213. No Peru, por outro lado, as irmandades de mulatos e “morenos” eram muito mais numerosas desde finais do século XVI: BOWSER, Frederick. The African Slave in Colonial Peru, 1524-1650. Stanford: Stanford UP, 1974, pp. 247-51 e GRAUBART, Karen. “‘So color de una cofradía’: Catholic confraternities and the development of Afro-Peruvian ethnicities in early colonial Peru”. Slavery & Abolition, vol. 33, n. 1, 2012, pp. 43-64.

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Amaro (1652) e depois em Jaguaripe (1658), tornando-se mais comum a partir da década seguinte. Por esses anos também surge a primeira referência a uma companhia de ordenança dos “homens pardos” na Bahia, composta por livres de cor, datada de 14 de julho de 1655, apesar de essa unidade jamais ter adquirido qualquer relevância militar, diferente do que ocorrera na Guatemala no mesmo período. De qualquer maneira, uma elite parda adquiria a possibilidade de portar armas e ostentar um posto militar, distinguindo-se dos demais livres de cor e mesmo de parte da população branca38. “Mulato” continua a ser a classificação predominante, mas, em razão de sua conotação negativa39, tende a ser utilizado para qualificar principalmente escravos, enquanto “pardo” é um termo utilizado com cada vez mais frequência para se referir a forros – como talvez já ocorresse em Portugal desde o século XVI. As referências a esse grupo se tornam mais pronunciadas nas últimas décadas do século, como uma petição “dos moços pardos da cidade da Bahia, solicitando se ordene aos religiosos da Companhia de Jesus os admitam nas suas escolas do Brasil sem embargo do seu nascimento e de sua cor”.40 Ou, ainda, no parecer contrário do governador-geral Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho à pretensão de Pedro Ferreira da Fonseca de servir como meirinho, pois “é homem pardo, e não parece razão que havendo brancos sirvam os desta casta”.41 Mesmo assim, essas referências não se comparam à explosão do setecentos, quando os livres de cor se tornaram onipresentes em todas as capitanias do Brasil.42 Assim, num contexto em que o tráfico negreiro ainda não havia alcançado o nível de importações do setecentos e de uma menor diversificação produtiva, as possibilidades de ascensão social e mesmo de reprodução física dos livres de cor eram significativamente menores que no XVIII. Por outro lado, já em meados do seiscentos é possível encontrar alguns casos em que pardos livres conseguiam se livrar do estigma da cor,43 ao que parece sem tanta dificuldade. Analisemos o exemplo de Francisco Gonçalves: nascido em 1624, filho natural de João Gonçalves (senhor de poucos cativos) e Lucrécia (muito provavelmente escrava de João), é DH, vol. 31, pp. 170-1; LOKKEN, Paul. “Useful enemies: seventeenth-century piracy and the rise of pardo militias in Spanish Central America”. Journal of Colonialism and Colonial History, vol. 5, n. 2, 2004. Uma patente de 1688 que criava uma companhia de pardos livres os define de forma complicada, indicando a complexificação do grupo em finais do século: “só se alistarão nela os mulatos, mestiços e curibocas livres, que forem nascidos de negras, índios e de brancos, excluindo todos os que forem filhos de mulatas e mamelucas, salvo forem havidos de índios, pretos e mulatos, e os que mais que voluntariamente quiserem alistar-se sem embargo de serem filhos de mamelucos e homens brancos” (AHMS, PG, 1683-9, fls. 220v-223v). 39 Cf. RAMINELLI, Ronald. Nobrezas do Novo Mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2015, pp. 207-39 e VIANA, O idioma, pp. 47-96. 40 AHU, Bahia, LF, cx. 28, docs. 3517-9. A resposta régia, favorável, pode ser vista em CCLP, vol. X, p. 189. 41 DH, vol. 34, p. 25. 42 LARA, Silvia. Fragmentos Setecentistas: escravidão, cultura e poder na América Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 43 Cf., dentre outros, FARIA, A Colônia em Movimento, pp. 135-40. 38

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classificado como pardo uma única vez, quando leva para a pia batismal Bárbara, a primeira de suas duas filhas naturais com Luzia, de Isabel de Costa, em 1659. Mesmo assim, Francisco manteve certa proximidade com o cativeiro, pois teve outra filha com uma escrava mulata e, mais importante, apadrinhou quatro inocentes cativos (duas pertencentes a seu pai). A afinidade com a escravaria não atrapalhou suas relações com o mundo dos livres, pois também apadrinhou três filhos legítimos de livres, além da progênie de um casal de índios. Uma das escravas que Francisco apadrinhou foi Helena, filha de Madalena, sendo João Vieira, pardo, apontado como pai da criança. Ao que parece, nascimentos ilegítimos eram um momento privilegiado para apontar a cor de paroquianos, pois nos outros momentos em que Vieira surge na documentação, como proprietário de quatro cativos, padrinho de outros cinco e pai de três crianças legítimas, sua cor não entra em questão. O estigma não se fazia constantemente presente, mas podia surgir em momentos em que o indivíduo se desvia da norma; por outro lado, mesmo dormente estimulava o estabelecimento de laços – ainda que hierárquicos – com a senzala. Se a concessão de alforrias tem sido longamente reconhecida como uma das diferenças fundamentais entre os sistemas escravistas ibéricos e o mundo atlântico norte-europeu,44 pesquisas recentes demonstram que até meados do seiscentos a obtenção da liberdade era uma possibilidade real em diversas possessões inglesas, geralmente ligada à conversão ao cristianismo.45 Entretanto, a segunda metade do século assistiu tanto a um crescente repúdio por parte dos senhores ao batismo quanto o desenvolvimento de fortes restrições legais à manumissão. A escravização inglesa protestante passou, portanto, a gradualmente desumanizar seus cativos, considerando-os incapazes de se tornarem verdadeiros cristãos ou livres, de modo que a religião exerceu um papel central no processo de construção de uma “raça” negra. O batismo (e ainda mais o casamento) tornaram-se, portanto, privilégio de um pequeno grupo de libertos, quase sempre mulatos, enquanto a massa da escravaria era excluída da possibilidade de criar ou reforçar laços sociais através da cerimônia do batismo e do compadrio46. Fenômeno similar ocorreu em New Netherland (o atual estado de Nova York), onde, inspirados nas práticas portuguesas, os neerlandeses formaram milícias negras (a exemplo dos

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TANNEMBAUM, Frank. Slave and Citizen: the negro in the Americas. Nova York: Vintage Books, 1946. BERLIN, Ira. Gerações de Cativeiro: uma história da escravidão nos Estados Unidos (trad.). Rio de Janeiro: Record, 2006 [2003], pp. 33-65; HEYWOOD, Linda & THORNTON, John. Central Africans, Atlantic Creoles, and the Foundation of the Americas, 1585-1660. Cambridge: Cambridge UP, 2007, pp. 294-331 e HANDLER, Jerome & POHLMANN, John. “Slave Manumissions and Freedmen in Seventeenth-Century Barbados”. The William & Mary Quarterly, vol. 41, n. 3, 1984, pp. 390-408. 46 GOETZ, Rebecca. The Baptism of Early Virginia: how Christianity created Race. Baltimore: Johns Hopkins UP, 2012, pp. 1-12 e 86-137; GERBNER, Katherine. “The Ultimate Sin: Christianizing slaves in Barbados in the seventeenth-century”. Slavery & Abolition, vol. 31, n. 1, 2010, pp. 57-73; BEASLEY, Nicholas. Christian Ritual and the Creation of British Slave Societies, 1650-1780. Athens: University of Georgia Press, 2009, pp. 54-83. 45

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Henriques contra quem combatiam no Brasil) e pensavam que a conversão podia contribuir para a lealdade dos cativos. Um autor alega que o fator decisivo para a mudança de atitude foi a expulsão da Companhia das Índias Ocidentais da América Portuguesa, que levou a uma visão religiosa mais ortodoxa e uma política mais segregacionista em relação aos escravos47. As diferenças entre os sistemas escravistas não eram inerentes, mas resultado de um processo histórico que pode ser localizado na segunda metade do século XVII. No mundo ibérico, o batismo representava inclusão (subordinada, sem dúvida) dos africanos e seus descendentes na comunidade civil através da Igreja, legitimando o cativeiro48, mas também incentivando a formalização e reforço de relações sociais não só dentro da escravaria, mas com os livres, o que representava uma significativa diferença em relação à escravidão angloamericana. Entretanto, não se deve esquecer que nos dois primeiros séculos de ocupação era provavelmente na América Espanhola, e não no Estado do Brasil, que seria possível encontrar as maiores taxas de manumissão e casamento de escravos49.

Parentesco espiritual e relações sociais Para tentar vislumbrar o funcionamento das relações de compadrio, é interessante lembrar que a grande maioria dos africanos escravizados na Bahia era oriunda da região CongoAngola: 100% até 1640 e mais de 84% entre 1640-75, proporção que diminui consideravelmente apenas no último quartel do século, para 47%, devido à ascensão do tráfico com a Costa da Mina (capítulo I)50 – visível em Paripe pela presença de 20 Minas batizados entre 1685 e 1700, enquanto nenhum adulto batizado na paróquia recebeu as denominações Congo, Angola ou Guiné. Ora, de acordo com os recentes trabalhos de John Thornton e Linda Heywood, a população Congo-Angola já tinha contato com os portugueses e o catolicismo desde o século XVI, e consequentemente muitos “crioulos atlânticos” foram transportados para a América. Assim, “um dos meios mais importantes através das quais eles exibiam sua identidade cristã era o desejo de que seus filhos fossem batizados. (...) Também usavam a prática de selecionar padrinhos (...) para testemunhar o batismo de seus filhos”51. Essa

DEWULF, Jeroen. “Emulating a Portuguese Model: the slave policy of the West India Company and the Dutch Reformed Church in Dutch Brazil (1630-1654) and New Netherland (1614-1664) in Comparative Perspective”. Journal of Early American History, n. 4, 2014, pp. 3-36. 48 Veja-se os trabalhos de Giuseppe Marcocci, principalmente A Consciência de um império: Portugal e seu mundo (sécs. XV-XVII). Coimbra: Imprensa da Universidade, 2012, pp. 405-28, assim como ALENCASTRO, O Trato dos Viventes, pp. 157-86. 49 BENNET, Africans in Colonial Mexico e BOWSER, The African Slave. 50 www.slavevoyages.org. 51 HEYWOOD & THORNTON, Central Africans, p. 272. 47

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familiaridade adiciona mais um elemento a explicar a relevância das relações do compadrio para uma população cativa majoritariamente africana que havia sido privada dos laços estabelecidos em sua terra natal. Em acréscimo, a própria concepção de poder na África CentroOcidental era baseada em laços pessoais do tipo patrão-cliente, o que pode ter estimulado os cativos a se inserirem em redes comparáveis através do compadrio52.

Gráfico 1: classificação social dos padrinhos de cativos (%). 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0

Elite Livres Forros/de Cor Indeterminado Escravos

Fontes: Laboratório Eugênio da Veiga/Universidade Católica de Salvador, Registros de batismo das paróquias em análise (Santo Amaro, Itaparica e Paripe digitalizados em www.familysearch.com).

Gráfico 2: classificação social das madrinhas de cativos (%). 100 90 80 70 60 50 40 30 20 10 0

Donas Livres Forras/de Cor Indeterminado Escravas

MILLER, Joseph. “Central Africa during the Era of the Slave Trade, c. 1490s-1850s” in: HEYWOOD, Linda (ed.). Central Africans and Cultural Transformations in the American Diaspora. Cambridge: Cambridge UP, 2001, pp. 41-2 (há edição brasileira). 52

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Fontes: Laboratório Eugênio da Veiga/Universidade Católica de Salvador, Registros de batismo das paróquias em análise (Santo Amaro, Itaparica e Paripe digitalizados em www.familysearch.com).

Através desses gráficos, é possível nos aprofundarmos na análise das relações sociais estabelecidas através do parentesco espiritual. Cabem, porém, algumas ressalvas. Os intervalos de cinco anos foram escolhidos na tentativa de apreender mudanças e transformações dentro de uma mesma paróquia. Entretanto, em busca de um mínimo de representatividade, foram excluídos do gráfico os intervalos para os quais há menos de 25 casos ou em que os indeterminados ultrapassassem 50% do total. Quem são os padrinhos e madrinhas “indeterminados”? São aqueles que, nos batismos, aparecem da seguinte maneira, para citar um exemplo: “em 3 de novembro de 1675, batizei e pus os santos óleos em Simão, filho de Antônia, escrava de Cristóvão de Burgos, e foram padrinhos Baltazar e Maria”. No caso de Jaguaripe, creio que vários deles são indígenas, frequentemente referidos somente pelo primeiro nome. Talvez alguns sejam forros, mas penso que a maioria é composta por escravos do senhor do batizando, de modo que a propriedade ficaria subentendida pelo pároco e seu rebanho e não seria preciso mencioná-la explicitamente. É de se notar que, justamente na paróquia onde os indeterminados tem uma importância apenas residual, Santo Amaro, a quantidade de forros é um pouco maior, mas o principal grupo que cresce é o de escravos, como é perceptível ao examinarmos a elevada percentagem de madrinhas escravas nessa freguesia. Por último, é preciso definir o que entendo como elite, para os efeitos dessa análise: para as mulheres, a titulação “dona”, atribuída pela comunidade através do pároco, geralmente é um indicador seguro de pertencimento ao estrato superior da localidade e ao grupo que, ao longo do seiscentos, se constituiu como uma nobreza.53 Sua raridade é perceptível quando notamos que, em Santo Amaro da Purificação, apenas 18 (4%) dos 456 apadrinhamentos por mulheres livres sem cor foram protagonizados por donas. Elite, por outro lado, é um termo de definição bem mais difícil e mais sujeito a questionamentos: utilizo essa classificação aqui para me referir aos membros da açucarocracia (senhores de engenho, lavradores ricos e seus parentes próximos), irmãos de maior condição das Misericórdias, os principais oficiais camarários e os detentores dos mais altos postos na administração periférica, na tropa paga e, principalmente, na ordenança, pois

Para uma análise do significava ser dona no Rio de Janeiro dos séculos XVII e XVIII, cf. FRAGOSO, “Efigênia”, pp. 80, 90-1, 100 e 102 (nota 19). O significado do termo conhecia variações no Império português, como no caso angolano, mas seu caráter de preeminência social parece indiscutível: cf. PANTOJA, Selma. “Laços de afeto e comércio de escravos. Angola no século XVIII”. Cadernos de Pesquisa do CHDHIS, vol. 23, n. 2, 2010, pp. 3812; VENÂNCIO, Renato; SOUSA, Maria & PEREIRA, Maria. “O Compadre Governador: redes de compadrio em Vila Rica em fins do século XVIII”. Revista Brasileira de História, vol. 26, n. 52, 2006, p. 282. 53

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seus oficiais estão entre as figuras mais presentes no cotidiano das freguesias rurais dos séculos XVII e XVIII (capítulo III)54. Nas sociedades católicas ibéricas, o compadrio deve ter atuado desde o início como uma forma de integração social, importante por ser o primeiro mecanismo a ligar cativos e livres institucionalmente antes da disseminação das irmandades em finais do XVII. Já em Jaguaripe, entre 1613 e 1627, cerca de metade dos padrinhos de escravos é livre, numa proporção que se mantém mais ou menos constante até o fim do período coberto pelos registros dessa freguesia (apesar de algumas variações, possivelmente resultado do pequeno número de registros em termos absolutos, como entre 1643 e 1647, quando 73% (41) dos padrinhos são livres). Ao observarmos o gráfico, porém, é possível perceber que em outras freguesias ocorreram maiores oscilações, que podem ser resultado de lacunas documentais, dos costumes locais ou da influência dos párocos:55 em Santo Amaro, especificamente, a porcentagem de padrinhos e madrinhas livres aumentou continuamente de 34% (33 casos) e 5% (5), respectivamente, em 1652-6 para 71% (78) e 40% (39) em 1672-6. Somando-se a estes números os forros e livres de cor, percebe-se que os escravos, antes majoritários, perdem (inclusive entre as mulheres) a posição cimeira, situação que se mantém em Paripe, até o final do século. Talvez o que estes dados estejam indicando seja uma lenta, mas contínua, intensificação das relações hierarquizantes entre livres e escravos nesse período de consolidação da escravidão africana56. Tal tendência parece ter afetado também a participação da elite baiana no apadrinhamento dos cativos. Embora alguns membros isolados da elite tenham apadrinhado escravos em Jaguaripe e em Santo Amaro, essa situação só se torna um pouco mais comum em finais do século em Paripe, alcançando 12% dos padrinhos (10 casos) e 6% das madrinhas (4), ainda que permaneça fortemente minoritária, inclusive em comparação com o apadrinhamento de livres, pois 38% dos livres batizados em Paripe tiveram “Donas” como madrinhas. Tal estratégia devia reforçar laços com alguns setores da senzala, embora seja impossível aquilatar sua importância sem mais fontes; em ao menos alguns casos, deve ter sido uma forma de estender proteção a filhos de parentes ou aliados, já que em 17 dos 20 casos em Paripe os filhos são de pai desconhecido, podendo compor uma descendência ilegítima da família do padrinho.

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Cf. KRAUSE, Thiago. Em Busca da Honra: a remuneração dos serviços da guerra holandesa e os hábitos das Ordens Militares (Bahia e Pernambuco, 1641-1683). São Paulo: Annablume, 2012, pp. 232-3. 55 Para variações similares, mas ainda mais pronunciadas, em localidades muito próximas, cf. ALFANI, Guido, Fathers and Godfathers: Spiritual Kinship in Early Modern Italy (trad.). Farnham: Ashgate, 2009. 56 Em Caracas entre 1595-1627, 36% dos índios, negros e mestiços tem padrinhos espanhóis, o que confirma o nível limitado de integração na formação de uma sociedade. Resta saber, porém, se essa porcentagem aumentou no período seguinte. BLANK, Stephanie. “Patrons, clients and kin in seventeenth-century Caracas: a methodological essay in colonial Spanish American social history”. HAHR, vol. 54, n. 2, 1974, pp. 282-3.

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Cabe notar, porém, que nenhum dos homens mais destacados dessas paróquias apadrinhou cativos, caso dos grandes potentados locais, o Desembargador Cristóvão de Burgos e o Capitão Francisco Fernandes Dosim. O termo elite, portanto, se aplica a esses padrinhos com alguma generosidade: se usássemos os critérios definidos no próximo capítulo para selecionar a elite política da capitania, apenas dois teriam batizado escravos. De qualquer maneira, apesar de estarmos comparando paróquias diferentes, não parece coincidência que seja justamente em finais do século que cresça o apadrinhamento de escravos: pode ser um indício da necessidade de estabelecer laços mais fortes com uma escravaria mais capaz de fazer reivindicações, ou ao menos dotada de relações sociais mais fortes com o mundo dos senhores. A distribuição de padrinhos em Santo Amaro reforça os padrões encontrados em estudos anteriores, de predominância de padrinhos livres e madrinhas escravas. A primeira escolha era uma forma de estabelecer ou formalizar alianças verticais, e as comadres cativas podiam cimentar laços dentro da comunidade escrava, importantes para a criação dos rebentos. O alcance das relações pessoais dos cativos é perceptível quando notamos que, para além de livres e forros, também foram estabelecidos (com destaque para Santo Amaro) laços de parentesco espiritual inter-propriedades, especialmente recorrentes quando havia relações de parentesco entre os senhores, como no caso de Bento, propriedade do Capitão Pedro Aranha, apadrinhado em 1659 por dois cativos do Capitão Francisco Fernandes Dosim, avô de Pedro. Nesse caso, é muito provável que os escravos estivessem em propriedades contíguas – ou até em uma só grande fazenda que englobava diversas posses, como o engenho do capitão Dosim. É possível que existam outros casos como este, mas não consigo identificá-los devido à escassez de fontes. Como todas as madrinhas livres “sem cor” (portanto, supostamente brancas) fazem par com livres também sem cor, o maior número de padrinhos livres em todos os recortes significa que muitos desses padrinhos livres tiveram comadres cativas ou forras, o que pode ter potencializado as possibilidades de ascensão dentro e fora do cativeiro destas mulheres, ao criar canais de comunicação com o mundo livre. Tal pareamento é especialmente evidente em Santo Amaro, onde em 122 batizados madrinhas cativas acompanharam padrinhos livres. Em 30 desses casos os padrinhos são forros ou livres de cor: destacam-se aqui os pardos (20), e depois os pretos (quatro), mulatos (três) e crioulos (três). Se ao mesmo tempo isso pode indicar a predominância dos pardos entre os livres de cor, também pode sinalizar seu prestígio no apadrinhamento dos cativos – o que, por sua vez, nos dá pistas sobre seu papel na hierarquia social costumeira da região. No caso das madrinhas, das 19 com origem identificada, 10 são africanas, cinco mulatas e quatro crioulas. Nos 92 casos restantes, 47 são de madrinhas mulatas e quatro de pardas, compondo mais

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da metade dos casos de pareamento entre livres sem cor e madrinhas cativas, numa proporção muito superior do que entre as que tiveram como companheiros na pia batismal os livres de cor – e também, certamente, que sua participação na população escrava como um todo. Em oposição, na mesma paróquia somente cinco madrinhas mulatas ou pardas foram acompanhadas por padrinhos cativos. Quatro foram classificados como mulatos ou pardos e, dentre estes, três eram cativos de figuras importantes na elite baiana: dois sargentos-mores e o então capitão Antônio Guedes de Brito, um dos homens mais ricos e poderosos da capitania. Também nesse aspecto, portanto, as cativas de origem miscigenada possuíam uma nítida vantagem, indicando mais um elemento de hierarquização dentro do cativeiro. Em três casos, é notável a popularidade de madrinhas mulatas: Joana, de Francisco de Brito de Góis, da nobreza baiana, que apadrinha cinco inocentes de senhores diferentes com padrinhos distintos; e duas Marias, de José da Silva Ribeiro e Maria da Mota, madrinhas de quatro crianças cada, nas mesmas condições de Joana. Essas três cativas foram as escravas com mais afilhados em Santo Amaro da Purificação, mas jamais tiveram como parceiro na bia batismal um cativo, dado que muito provavelmente indica uma posição social diferenciada frente ao restante da escravaria. Continuando na mesma toada, mas tratando agora dos inocentes, em Santo Amaro, os cativos classificados como “crioulos” tinham apenas 24% (31) de chance de serem apadrinhados por livres sem cor – proporção inversa aos “mulatinhos”, que tiveram padrinhos dessa condição em 79% (124) dos casos57. Mesmo quando os padrinhos eram cativos é possível notar uma diferenciação: sete dos 15 padrinhos escravos de inocentes miscigenados são mulatos, quase a metade, enquanto somente cinco de 77 cativos padrinhos dos “crioulinhos” receberam essa classificação. Em Jaguaripe, dos 118 filhos com pais livres identificados entre 1641 e 1667, somente três foram apadrinhados por cativos. Desde o início da vida a conexão dos escravos mestiços com o mundo livre era mais intensa que de seus companheiros de cativeiro negros, potencializando a capacidade de membros desse grupo de obter alforria.58 Provavelmente mais do que a cor da pele, eram as relações sociais estabelecidas com livres que distinguiam estes cativos do restante da escravaria, facultando-lhes, por exemplo, o acesso a ofícios especializados ou ao serviço doméstico. Ao que parece, em Paripe as hierarquias sociais costumeiras não favoreciam a

A proporção se manteve cem anos depois: GUDEMAN & SCHWARTZ, “Purgando o pecado”, p. 48. Para a alforria na pia batismal e mestiçagem, cf. SOARES, A Remissão do Cativeiro, p. 71; ver também FRAGOSO, “Apontamentos”. Para a vantagem dos pardos nas alforrias concedidas sob justificativa de laços afetivos na Bahia de finais do seiscentos, cf. BELLINI, “Por amor e por interesse” in: REIS (org.), Escravidão e invenção da liberdade, p. 82. Por outro lado, apenas 1% das alforrias na Bahia entre 1684-1745 foram compradas pelos padrinhos: SCHWARTZ. “Alforria na Bahia”. 57 58

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consolidação dos laços horizontais entre cativos (com exceção do período entre 1697-1700, após a repreensão do visitador), sendo a função principal do compadrio o estabelecimento de relações verticais entre os escravos, padrinhos e senhores – como no caso de Diogo Pereira, que batiza cinco cativos, dentre os quais um do Desembargador Cristóvão de Burgos, outros de Clara Pereira, João Borges de Abreu e Duarte Lobo da Gama, todos dentre os principais proprietários da freguesia. Burgos, porém, destaca-se dos demais. Seu pai era o licenciado Jerônimo de Burgos, descendente de uma família de livreiros em Évora (tendo exercido essa profissão na juventude, antes de emigrar para o Brasil). Jerônimo, ao chegar em Salvador, casou-se com a baiana Dona Maria Pacheco e tornou-se proprietário de um engenho em mau estado e juiz dos órfãos (ofício recebido em dote, exercido a partir de 1617), procurador dos feitos da Coroa Fazenda e Fisco entre 1630 e 1646, provedor da Santa Casa, e, em 1627 e 1633, vereador.59 O fundador da família Burgos na Bahia possuía um temperamento difícil, envolvendose em diversos conflitos, especialmente ao ser acusado de se locupletar da fazenda dos órfãos.60 Foi capaz, porém, de deixar seus filhos em boas condições: Gaspar Pacheco e Antônio de Burgos tornaram-se capitães, cavaleiros de ordens militares e se casaram com “donas”. 61 O destino mais ilustre, porém, estava reservado a Cristóvão, que estudou na Universidade de Coimbra e seguiu a carreira jurídica até obter a desejada nomeação para a Relação da Bahia, como desembargador e ouvidor-geral do crime. Casou-se com Dona Helena da Silva Pimentel, irmã do potentado Antônio da Silva Pimentel, alcaide-mor de Salvador, tornou-se senhor de três engenhos e diversas fazendas, utilizando seu poder e influência para, sempre que possível, se recusar a pagar o dízimo para a Fazenda Real e, principalmente, as contribuições e donativos cobrados pela Câmara – o que gerou em 1686 reclamações dos fregueses de Paripe, obrigados a pagar mais para compensar a isenção do desembargador, mas sem sucesso.62 Tal pertinácia não impediu que se tornasse provedor da Santa Casa em 1665, cavaleiro da Ordem de Cristo em 1672 e um dos governadores provisórios após a morte de D. Afonso Furtado de Mendonça, quando tinha pouco menos de sessenta anos de idade (capítulo VI).63 É nesse período de auge do poder de Burgos que o encontramos como principal

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Cf., dentre outros, CG, vol. I, pp. 243-4, 249-50, 372 e vol. II, pp. 533-4; AHU, cód. 79, fls. 16-17; cód. 80, fls. 320-320v. 60 Cf., por exemplo, AHU, Bahia, LF, cx. 10, docs. 1150-2 e cx. 16, doc. 1832. 61 CG, pp. 371-4 e 533-4; AHU, cód. 79, fls. 17v-18; cód. 82, fls. 141v-142 e 265-6; IAN/TT, HOA, Letra A, mç. 2, n. 14; COA, L. 14, fls. 664v-665 e L. 15, fls. 54-54v. 62 CS, vol. III, pp. 30-1 e AHMS, PR, vol. III, fl. 40. 63 IAN/TT, Leitura de Bacharéis, Letra C, mç. 2, n. 55; COC, L. 56, fls. 415-415v e L. 73, fls. 182-184; CG, vol. II, pp. 533-5; Schwartz, Segredos Internos, p. 227.

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proprietário em Paripe, senhor dos dois únicos engenhos da freguesia e de mais cinco fazendas, tendo batizado 35 inocentes entre 1672 e 1700, filhos de 20 mães distintas. Dez crianças não tiveram padrinhos e somente seis foram apadrinhadas por escravos, todos de propriedade do próprio desembargador. As 19 restantes tiveram homens livres como padrinhos, sendo apenas um dos parentes rituais um pardo forro, Manoel, que também tomou sob sua proteção espiritual um inocente de Manoel Teles Barreto em 10 de junho de 1691, tratando-se possivelmente de um liberto de uma das duas casas. Portanto, 18 dos 25 padrinhos são livres “sem cor”. Por que esses homens decidiram apadrinhar os cativos do Desembargador? A maioria aparece somente nesse momento nos registros paroquiais, ou ainda uma única outra vez, tratando-se talvez de agregados ou homens livres pobres vivendo à sombra do potentado. A não recorrência desses homens na série documental pode resultar, por outro lado, da mobilidade característica dos grupos subalternos livres no período colonial,64 evidenciando uma das muitas limitações do tipo de fontes utilizado. É o caso, por exemplo, de Antônio de Barros, que só surge em 10 de outubro de 1681, quando tomou sob sua proteção Ângela, filha de Francisca, junto com Serafina, parda de Burgos, assim como outros nove padrinhos e madrinhas. Talvez essas relações de compadrio acontecessem primariamente em razão da proximidade entre cativos e livres pobres, aproximados pelo cotidiano da labuta e pobreza rural. Outros casos, porém, são mais enigmáticos. O licenciado Estevão Gomes de Escobar, filho de negociante (e provavelmente também comerciante), escrivão da Misericórdia em 1675, vereador em 1678 e capitão de uma das companhias de ordenança da freguesia da Praia na mesma cidade,65 teve dois filhos em Santo Amaro apadrinhados pelo Capitão Felipe de Moura de Albuquerque (em 1666) e pelo Sargento-Mor Antônio de Brá (1675), o primeiro senhor de engenho, alcaide-mor, provedor da Santa Casa e comendador e o segundo irmão da Misericórdia e cavaleiro da Ordem de Cristo.66 Em Paripe, Escobar apadrinhara em dois de setembro de 1685 e 18 de novembro de 1686 dois filhos de Constantino Muniz Teles e Dona Teresa de Lacerda Coutinho (sobrinha de sua esposa), membros de antigas famílias da nobreza baiana. Ele e sua mulher, Ângela Paes de Azevedo (de família tradicional desde o início do seiscentos, embora não especialmente proeminente, sendo neta de um lavrador de cana),67 64

FARIA, A Colônia em Movimento, pp. 101-14. DH, vol. 11, pp. 430-2 e vol. 21, p. 422-8; FONSECA, Luiza da. “Bacharéis brasileiros: elementos biográficos” in Anais do IV Congresso de História Nacional. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1951, vol. IX, pp. 141-2; AC, vol. V, pp. 233-4; CG, vol. II, pp. 501 e 505. 66 CCT, vol. II, p. 198-9; DH, vol. 21, pp. 391-2; IAN/TT, COC, L. 18, fls. 267; CG, vol. I, pp. 61-4 e vol. II, 7335. 67 CG, vol. II, pp. 501-5. 65

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levaram seis escravos de sua propriedade para a pia batismal em Paripe entre 1686 e 1693. Tratava-se, portanto, de um casal bem situado na sociedade baiana: mesmo assim, em 21 de março de 1700, Escobar apadrinhou Guilherme, filho de Joana, cativa do Desembargador. O estabelecimento dessa relação pode ter sido iniciativa tanto do padrinho quanto do senhor, mas é improvável que tenha sido de Joana, já que não parece crível que ela compartilhasse um espaço de sociabilidade com Escobar. Fosse qual fosse o motivo, é muito provável que esse apadrinhamento significasse o reforço de uma relação entre os dois idosos nobres letrados, sem filhos recém-nascidos que pudessem ser utilizados para os transformarem em compadres. Tal relacionamento, porém, era assimétrico, estando Burgos numa posição superior, como senhor do cativo que deu origem a essa relação. A hierarquia se mostra de maneira mais evidente em outros casos, como no de João Gomes da Silva, único a apadrinhar dois cativos do Desembargador: Mariana, em 2 de abril de 1690 e Poliana, em 11 de dezembro de 1695. Diferente de Escobar, João estava habituado a ser padrinho de cativos: entre 1686 e 1689, tomou sob sua proteção espiritual quatro. Não se restringiu, porém, à senzala: apadrinhou também três crianças de livres sem classificação social. Mais interessante, porém, é que em 1689 apadrinhou José, rebento de Manoel Gomes de Escobar (filho de Estevão) e Dona Jerônima de Menezes (da nobre família dos Barbudas, entre os primeiros povoadores da Bahia, ainda que em franca decadência em finais do século); em 1691, Ana, filha de Francisco de Freitas e D. Margarida, junto de sua mulher; e em 1696, Ana, filha de Pedro de Freitas de Magalhães e D. Mariana de Vasconcelos. Entre 1691 e 1699 também batizou seis filhos, obtendo a patronagem de figuras importantes: o vigário da paróquia, Antônio Gomes da Silva, provavelmente seu parente, apadrinhou quatro dos seis filhos de João; a esposa de Estevão Gomes de Escobar, Ângela Paes de Azevedo, amadrinhou duas crianças, o coronel de ordenanças Francisco Pereira Botelho outra e D. Helena da Silva Pimentel (em 1694), Jerônimo de Burgos Pacheco (sobrinho de Cristóvão) e sua esposa D. Helena de Oliveira Melo (em 1699) mais duas. Ainda entre 1695 e 1699, entrou no clube dos escravagistas, pois duas cativas suas deram a luz a cinco crianças – todas batizadas por livres, exceto uma, que teve como madrinha uma escrava de Clara Pereira (ela mesma senhora de oito inocentes). Ou seja, em 1689 João Gomes da Silva praticamente deixa de apadrinhar escravos e livres sem classificação para se imiscuir no mundo da nobreza baiana, estabelecendo uma ampla rede de relações. Pela cronologia, parece-me muito provável que essa virada esteja intimamente relacionada à sua inserção subalterna na rede de Burgos: se era impossível tornar-se compadre dele diretamente, faz-se o melhor possível, apadrinhando seus cativos, o que serviu como um ponto de partida para aí sim tornar-se compadre da esposa do potentado e de seu sobrinho.

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Caso similar é o de Miguel de Gouveia, que aparece pela primeira vez em Jaguaripe em 26 de julho de 1647, tendo seu filho João batizado pelo Capitão Gaspar Borges da Vide e por Dona Catarina de Sande, filha do Capitão Francisco Fernandes Dosim, “o mais rico homem do Brasil”, grande negociante, senhor de engenho, cavaleiro de Santiago e Provedor da Misericórdia por cinco anos;68 menos de um mês depois, apadrinha um filho de Petronilha, cativa do mesmo Capitão Francisco Fernandes. Insere-se, assim, de forma subalterna na rede do principal potentado da freguesia, tornando-se, posteriormente, senhor de dois cativos levados à pia batismal e padrinho de quatro crianças livres legítimas. Evidencia-se, portanto, o caráter múltiplo do compadrio entre livres e escravos: esse tanto podia ser utilizado para reforçar laços entre livres pobres e cativos, marcados mais pela proximidade que pela hierarquia, quanto como um mecanismo para que membros da elite (e aspirantes a ela) estabelecessem relações indiretas. A própria dispersão de padrinhos e madrinhas, comum tanto a Burgos quanto a Dosim, podia ser uma estratégia para estabelecer uma ampla rede com pessoas a quem não consideravam necessário ou conveniente agraciar com um apadrinhamento: todos os oito afilhados de Burgos em Paripe eram filhos de “donas”, denotando o caráter socialmente seletivo dessa relação. Essas ligações realizadas a partir dos escravos “não compunham um grupo muito impressionante, mas sua importância é cumulativa, não individual”69, possibilitando que os potentados conseguissem se relacionar com os variados segmentos livres da sociedade – porque, ao que parece, não consideravam outros escravos dignos de apadrinhar ou serem apadrinhados por seus cativos, pois apenas dois escravos de cada um dos potentados aparecem como padrinhos ou madrinhas de cativos de outros senhores, e somente um escravo de Dosim é apadrinhado por um cativo de outro senhor. O raciocínio que guiava esse mecanismo provavelmente se baseava no reduzido benefício que tanto os escravos quanto os senhores poderiam derivar dessas ligações com outros cativos. Talvez os grandes proprietários também temessem que a ampliações das redes de sociabilidades de seus cativos os tornassem menos obedientes ou mais propensos a fugir70. Assim, é possível perceber como as crianças escravizadas constituíam-se em um recurso político tanto para sua mãe quanto, e talvez

68

SMITH, David Grant. The mercantile class of Portugal and Brazil in the Seventeenth-century: a socio-economic study of the merchants of Lisbon and Bahia, 1620-1690. Tese de Doutorado. Austin: Universidade do Texas, 1975, pp. 314-25. 69 BLANK, Stephanie. “Patrons, brokers and clients in the families of the elite in Colonial Caracas, 1595-1627”. The Americas, vol. 36, n. 1, 1979, p. 102. 70 É o que se depreende da proibição de que cativos apadrinhassem ou fossem apadrinhados por pessoas de fora da propriedade, posta em prática em 1699 no engenho jesuítico de Sergipe do Conde: GUDEMAN & SCHWARTZ, “Purgando o pecado”, p. 49.

72

principalmente, para seus proprietários.

Conclusão? Embora os cativos fossem capazes de resistir de uma miríade de formas, que iam de feitiçaria e envenenamentos à formação de mocambos71, parece-me provável que a dificuldade de acesso à alforria e ao casamento indiquem um controle mais forte dos senhores sobre seus escravos do que no século seguinte, quando a crescente complexidade da sociedade americana lhes oferecerá mais oportunidades – inclusive, talvez, de se rebelar, pois se conhecem mais mocambos em 1705-45 do que em todo o século precedente. Por outro lado, é certo que esse controle só se fazia possível através de alianças com setores da escravaria. É impossível explicar de outra maneira casos como dos escravos do senhor de engenho Antônio de Aragão Pereira, cujos cativos Antônio Barroso, mulato (e dotado de um sobrenome, denotando sua excepcionalidade), e Cabinda (cuja ausência de prenome cristão pode indicar que sequer houvesse sido batizado) lideraram um ataque de “toda a gente do engenho, mulatos [e] negros, todos com armas e paus” contra o juiz e o escrivão da freguesia que vinham cumprir um mandato passado por um desembargador, dizendo que “naquela fazenda não entrava justiça”, ameaçando-os de morte. Para além de defenderem a inviolabilidade da propriedade de seu senhor, as armas dos líderes indicam a confiança que gozavam: o mulato Antônio Barroso sacou “armas de fogo” e o africano Cabinda entrou em cena “com uma espada na mão”72. Infelizmente, não foi possível elucidar através dos registros paroquiais sobreviventes como se teciam tais redes: eu não consegui identificar uma “elite da senzala” e nem encontrar uma significativa participação da nobreza da terra no apadrinhamento de cativos, ainda que a maior proporção encontrada em Paripe possa significar que esse processo começou nas últimas décadas do século73. Seria necessário, porém, estender futuramente os limites da pesquisa para o século XVIII, quando os registros paroquiais se tornam ligeiramente mais abundantes, para verificar a validade dessa hipótese.

71

AHU, Bahia, LF, cx. 25, doc. 3018; CS, vol. I, pp. 102-3; SWEET, James H. Recreating Africa: Culture, Kinship, and Religion in the African-Portuguese World, 1441-1770. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2003, pp. 119-88; SCHWARTZ, Stuart. “Repensando Palmares: resistência escrava na colônia” [1987] in: id. Escravos, roceiros e rebeldes, pp. 219-35; GOMES, Flávio. “Um Recôncavo, dois sertões e vários mocambos: quilombos na capitania da Bahia (1575-1808)”. História Social, n. 2, 1995, pp. 27-41. 72 AHU, Bahia, LF, cx. 23, doc. 2808. 73 A referência aqui é aos inovadores trabalhos de João Fragoso, principalmente “Elite das senzalas e nobreza da terra numa sociedade rural do Antigo Regime nos trópicos: Campo Grande (Rio de Janeiro), 1704-1741” in: id. & GOUVÊA, Fátima (orgs.). O Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, vol. III (c. 1720 – c. 1821), pp. 241-305.

73

Parece-me, porém, que num contexto com menos alforrias e tráfico do que no século seguinte, as alianças com segmentos da escravaria pautavam-se por outros mecanismos outros que o compadrio, pois ainda não havia uma “elite parda” nem um número significativo de forros ligados à casa senhorial que pudessem mediar essa relação. A manumissão também pode não ter exercido um papel significativo de controle social, em razão de sua raridade 74. Quais mecanismos tornavam possível, portanto, que um mulato e um africano pagão recebessem armas e as utilizassem para defender a casa do senhor em vez de assassiná-lo é algo que provavelmente nunca saberei, mas que se ponha a questão para as áreas dotadas de mais fontes no século XVII (nomeadamente, o Rio de Janeiro): como se davam as alianças entre senhores e cativos antes da disseminação da alforria e do crescimento dos livres de cor? Ao fim e ao cabo, é forçoso reconhecer os limites desse estudo. Torna-se difícil até mesmo integrá-lo ao restante da tese, pois muitas das questões que se gostaria de responder não podem sequer ser feitas, sob risco de nos perdermos em especulações infundadas. Mesmo assim, creio ser essencial encarar o problema da escravidão com as fontes sobreviventes, sejam quais forem, já que é impossível compreendermos os senhores sem seus cativos. A diferença no número de páginas dedicado a cada um dos polos dessa relação não deve ser vista como desinteresse, mas sim como resultado das desigualdades políticas que afetavam a própria produção documental, problema enfrentado por todos os historiadores75. Dito isto, partamos para o estudo das elites baianas, que nos legaram uma documentação muito mais extensa.

É de se notar, porém, que já em 1623 um padre jesuíta reporta que “os mulatos e crioulos (...) ficaram mui voluntários e todos com pretensão de alforria, e perdoe os quem lhes levantou o pensamento, mas já graças a Deus os tenho em bom foro” (apud SCHWARTZ, Segredos Internos, p. 141), interessante citação que denota tanto a raridade da alforria nesse período formativo quanto, mesmo assim, seu possível papel como incentivo para a segunda geração de cativos – embora eu creia que tal tipo de pensamento possa ter sido menos comum entre os cativos de senhores leigos coevos. 75 Veja-se o excepcional livro de TROUILLOT, Michael-Ralph. Silencing the Past: Power and the Production of History. Boston: Beacon Press, 1995. 74

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Capítulo III Homens Bons, Homens de Bens Sai um pobrete de Cristo

que o seu dinheiro despendem

de Portugal, ou do Algarve

para haver de sustentar-se.

cheio de drogas alheias

Casa-se o meu matachim,

para daí tirar gages:

põe duas Negras, e um Pajem,

O tal foi sota-tendeiro

uma rede com dous Minas,

de um cristão-novo em tal parte,

chapéu-de-sol, casas-grandes.

que por aqueles serviços

Entra logo nos pilouros,

o despachou a embarcar-se.

e sai do primeiro lance

Fez-lhe uma carregação

Vereador da Bahia,

entre amigos, e compadres:

que é notável dignidade.

e ei-lo comissário feito

Já temos o Canastreiro,

de linhas, lonas, beirames. (...)

que inda fede a seus beirames,

Salta em terra, toma casas,

metamorfoses da terra

arma a botica dos trastes,

transformado em homem grande:

em casa come Baleia,

e eis aqui a personagem.

na rua entoja manjares.

Vem outro do mesmo lote

Vendendo gato por lebre,

tão pobre, e tão miserável

antes que quatro anos passem,

vende os retalhos, e tira

já tem tantos mil cruzados,

comissão com couro, e carne.

segundo afirmam Pasguates.

Co principal se levanta,

Começam a olhar para ele

e tudo emprega no Iguape,

os Pais, que já querem dar-lhe

que um engenho, e três fazendas

Filha, e dote, porque querem

o têm feito homem grande;

homem, que coma, e não gaste.

e eis aqui a personagem.

Que esse mal há nos mazombos,

Gregório de Matos (1636-95),

têm tão pouca habilidade,

Senhora Dona Bahia.

Introdução Desde o arranque da economia açucareira tem sido repetidamente dito que os cargos da República na Bahia – isto é, o poder político local – eram ocupados por membros destacados do setor açucareiro. Um requerimento dos homens de negócio lisboetas enfatiza, já por volta de 1614, o óbvio interesse de classe da ação da Câmara em defesa dos produtores de açúcar,

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pedindo – e obtendo – a proibição de execução de suas dívidas em seus escravos e fazendas: “os oficiais da Câmara da Bahia que pediram esta provisão em nome do povo são pessoas interessadas neste negócio, porque são os mesmos senhores de engenho e lavradores”1. Desde o início da ocupação, poder econômico e político estiveram profundamente interligados: ser um homem bom implicava ser um homem de bens, embora não só2. Consequentemente, os historiadores baianos escolheram a açucarocracia como protagonista de suas histórias, desde Frei Vicente do Salvador até Wanderley Pinho, passando pelo senhor de engenho, vereador, fidalgo, coronel de ordenanças e cavaleiro da Ordem de Cristo Sebastião da Rocha Pita. O consenso generalizado foi sintetizado por Boxer naquele que continua a ser o melhor estudo sobre a Câmara de Salvador no século XVII: “os oficiais da Câmara pertenciam majoritariamente ao grupo dos produtores de açúcar do Recôncavo, incluindo também os mais ricos homens da cidade, unidos aos primeiros através de casamentos”3. Por correta que seja, essa caracterização é insuficiente. A primeira análise do grupo foi empreendida por Eduardo d’Oliveira França, focando-se no período entre 1584-1618 através das diversas fontes publicadas, principalmente inquisitoriais. Destaca que praticamente todos os senhores de engenho em 1584-92 eram, ainda, imigrantes, mas muitos casavam-se na terra, tendendo a nela permanecer. Aqui conseguiam ocupar posições de relevo e construíam uma significativa autoridade, mesmo quando tinham enriquecido através do comércio – ocupação que geralmente continuavam a exercer. Desde o início do desenvolvimento açucareiro, portanto, havia um relevante grupo de mercadores senhores de engenho, muitos dos quais cristãos-novos, que não raro casavam-se com cristãos-velhos4. A partir daí, as contribuições foram majoritariamente realizadas por brasilianistas. Em suas teses de doutorado, Rae Flory e David Grant Smith nos ofereceram uma nítida imagem da sociedade baiana entre 1620-1725. Opondo-se a Russell-Wood, que vira nos mercadores um grupo apartado da açucarocracia, cuja ascensão seria uma novidade setecentista, os autores demonstraram a relevância econômica, social e política dos homens de negócio desde inícios do século XVII. Quase todos imigrantes, em sua maioria vindos do Norte de Portugal e de

1

AHU, Bahia, LF, cx. 1, doc. 52. O mesmo ponto foi repetido após três décadas por Antônio Teles da Silva: cx. 10, doc. 1138, e uma dúzia de anos depois por Bernardo Vieira Ravasco: cx. 14, doc. 1702. 2 O trocadilho é mais explícito em francês (gens de biens, em oposição aos gens de néant): COLLINS, James B. Classes, estates, and order in early modern Brittany. Cambridge: Cambridge UP, 1994, pp. 16-20. O mesmo se aplica aos uomini da bene italianos. 3 PINHO, Wanderley. História de um engenho no Recôncavo: Matoim – Novo Caboto – Freguesia. 1552-1944. São Paulo: Editora Nacional, 1982 [1946], 2ª ed. rev.; BOXER, Charles. Portuguese Society in the Tropics, 15101800. Madison: University of Wisconsin Press, 1965, p. 73 (citação). 4 FRANÇA, Eduardo d’Oliveira. “Engenhos, Colonização e Cristãos-Novos na Bahia colonial”. Anais do IV Simpósio Nacional dos Professores Universitários de História, 1969, pp. 181-241.

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Lisboa, esses homens enriqueceram na Bahia – como se depreende da ressentida crítica de Gregório de Matos que nos serve de epígrafe, ele mesmo neto de um pedreiro minhoto que se tornou empreiteiro, pecuarista e arrendatário de um grande engenho 5. Os mais bem-sucedidos casavam-se com filhas da açucarocracia, adquiriam engenhos, serviam na Câmara e entravam nos clubes da elite baiana – as irmandades religiosas. Na mais importante delas, a Misericórdia, ao menos 16% dos irmãos de maior condição admitidos eram mercadores nas últimas décadas do século – o que provavelmente significa que todos os homens de negócio importantes que não fossem publicamente infamados de cristãos-novos tornaram-se membros da Santa Casa, e cinco deles foram provedores na segunda metade do seiscentos (embora essa prestigiosa posição continuasse a ser dominada pela açucarocracia). Para os cristãos-novos, a discriminação dificultava a ascensão, mas não a impedia, tornando-a mais lenta, de modo que muitas vezes só se completava na geração seguinte. Em finais do século, os negociantes também conseguiram acesso aos postos de capitão e sargento-mor dos terços de ordenança de Salvador. Em resumo, os mais ricos mercadores adentraram em todas as instituições do poder local, misturando-se com a açucarocracia. A sociedade baiana ainda era muito recente, assim como sua elite, e tanto a relativa disponibilidade de terras ainda não cultivadas (especialmente no sertão) quanto a necessidade de capital para investir na produção facilitavam a entrada de negociantes bem-sucedidos na açucarocracia – e, a partir daí, na elite política local. A Bahia era palco, portanto, de uma mobilidade social acelerada, em que os maiores homens de negócio ascendiam ao topo, mesmo que não abandonassem suas lucrativas atividades mercantis6. Essa ascensão, porém, não desalojava os senhores de engenho e lavradores de cana, dominantes desde finais do quinhentos, por mais que isso indignasse o “Boca do Inferno”. A tese de Rae Flory oferece o mais detalhado panorama desse grupo, empregando a mesma metodologia prosopográfica baseada em registros notariais de seu orientador, James Lockhart7. Para além da contínua entrada de mercadores no setor açucareiro, a autora foi pioneira em enfatizar que as vicissitudes da produção agrícola implicavam uma significativa rotatividade no grupo, apesar de um núcleo central da açucarocracia permanecer relativamente estável. Em sua

5

PERES, Fernando da Rocha. Gregório de Mattos: o poeta devorador. Rio de Janeiro: Manati, 2004, pp. 30-1. RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e Filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755 (trad.). Brasília: Ed. UnB, 1981 [1968], pp. 89-110; SMITH, David Grant. The mercantile class of Portugal and Brazil in the Seventeenth-century: a socio-economic study of the merchants of Lisbon and Bahia, 1620-1690. Austin: Tese de doutorado em História, Universidade do Texas, 1975, pp. 252-405 e id. & FLORY, Rae. “Bahian Merchants and Planters in the Seventeenth and Early Eighteenth Centuries”. HAHR, vol. 58, n. 4, 1978, pp. 571-94. 7 LOCKHART, James. Spanish Peru, 1532-1560: a colonial society. Madison: University of Wisconsin Press, 1968; cf. também sua bela síntese “Social organization and social change in colonial Spanish America” in: BETHELL, Leslie (ed.). Cambridge History of Latin America. Cambridge: Cambridge UP, 1984, vol. II (Colonial Latin America), pp. 265-319, criminosamente cortada da tradução brasileira. 6

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amostra de 80 senhores de engenho dos primeiros anos do século XVII, 42,5% eram filhos de baianos, 27,5% de imigrantes (9 dos quais mercadores), que geralmente haviam casado com filhas de importantes famílias locais, e 30% forasteiros eles próprios (a maioria homens de negócio), muitas vezes também unidos pelo matrimônio a linhagens tradicionais. Ou seja, menos da metade estava na Bahia há ao menos duas gerações. Essa abertura, porém, permitia que o poder local continuasse em suas mãos, já que os desafiantes em potencial eram absorvidos e não rejeitados. Outro aspecto da relativa fluidez dessa estrutura é o fato de lavradores e senhores de engenho serem frequentemente aparentados, não sendo raro encontrar irmãos dos dois lados da fronteira – para não falar de primos, genros e cunhados. Entre esses parentes estavam muitos dos mais respeitados, ricos e tradicionais lavradores, que serviam como um núcleo duro do grupo, aproximando-o dos senhores de engenho – mesmo porque em toda geração alguns conseguiam ascender para o patamar superior, compondo, com os mercadores, a quase totalidade dos novos senhores de engenho. Através de sua análise sobre o crédito, a autora destacou que a busca por posições de prestígio e as ligações pessoais com outros membros da elite não eram relevantes apenas em termos sociais e políticos, revelando-se também instrumentais na obtenção de crédito, essencial para a sobrevivência de todos que dependiam dos ritmos sazonais da agricultura e da navegação atlântica. Só a Misericórdia emprestou mais de ¼ da quantia registrada em cartório entre 16981715, mais do que todos os mercadores somados. Compreende-se, assim, a importância de participar dessa instituição, já que ela favorecia seus membros ao conceder crédito. É graças a Flory que temos a mais detalhada análise da composição social da Câmara. Através desses dados, podemos perceber tanto a contínua predominância do setor açucareiro/latifundiário, que, somadas as três primeiras categorias, representava 80% do total, apesar do crescimento dos mercadores na última década em análise pela autora. As mudanças no século XVIII se deviam parcialmente à mudança no sistema eleitoral, que em 1696 passou do sistema de pelouros (em que homens da governança escolhiam os futuros camaristas) para a constituição de listas de elegíveis pelo Tribunal da Relação da Bahia, dentre os quais o governador-geral escolheria os próximos ocupantes do Senado. Como os membros da açucarocracia continuaram a ser escolhidos, provavelmente foi mais importante a opção que muitos deles fizeram, de servir nas recém-criadas Câmaras do Recôncavo, mais próximas de suas propriedades – e nas quais, talvez, seu poder fosse mais hegemônico. De qualquer maneira, a açucarocracia continuava a dominar o oficialato das ordenanças, reforçando assim sua

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autoridade e prestígio – apesar do avanço dos homens de negócio nos postos de Salvador 8. Se não é possível reproduzir a metodologia para as décadas anteriores em razão da inexistência de registros cartoriais, os dados nos oferecem um interessante ponto de partida.

Gráfico 1: Composição social da Câmara de Salvador, 1680-1729 (%) 70 60 50 40 30 20 10 0

1680-9

1690-9

1700-9

1710-9

1720-9

Fonte: FLORY, Rae. Bahian society in the mid-colonial period: the sugar planters, tobacco growers, merchants, and artisans of Salvador and the Recôncavo, 1680-1725. Tese de doutorado. Austin: University of Texas, 1978, pp. 140-1.

O panorama mais abrangente sobre a sociedade baiana, e especialmente sobre a açucarocracia, nos é oferecido por outro brasilianista, Stuart Schwartz. Ao enfatizar que a hierarquia americana combinava elementos europeus e originais, derivados da prevalência da escravidão como força de trabalho e, principalmente, como relação social fundamental, o autor notou uma multiplicidade de hierarquias, baseadas na classe, status, cor e religião, que tendiam, porém, a convergir. Se Flory já havia notado a mobilidade social como elemento característico da Bahia, Schwartz vai além ao destacar que é a escravidão que permite a ascensão, acelerandoa numa escala impensável no Reino – como os próprios contemporâneos implicitamente reconheciam. Constituiu-se assim um grupo de grandes proprietários escravistas que, apesar de receber regularmente novos membros, mantinha um núcleo capaz de se manter até o século 8

FLORY, Bahian society, pp. 19-157.

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XIX. Estes homens, porém, não se contentavam com a riqueza, desejando inserir-se nos padrões nobiliárquicos vigentes. Se as fidalguias, hábitos das ordens militares e morgados seriam raros, “a generosidade para com seus iguais e dependentes, a autoridade sobre sua família e servidores, a hospitalidade e o senso de honra pessoal e familiar permitiam aos senhores de engenho agirem como nobres e, portanto, sê-lo”9. Pioneiro em sua análise dos lavradores de cana, o autor destacou como os mais importantes membros do grupo se aproximavam dos senhores de engenho, apesar do caráter marginal da maioria. Eles eram essenciais para o funcionamento da economia açucareira na América Portuguesa, dando-lhe um caráter peculiar e distinto do Caribe, onde a produção concentrava-se em imensos engenhos com centenas de escravos, tendência iniciada no século XVIII e concretizada na centúria seguinte10. Eles são, portanto, parte fundamental da elite que será analisada abaixo.

A Base de Dados e Seus Limites Os trabalhos acima nos oferecem uma sólida base para compreendermos a sociedade baiana. Para avançar significativamente nesse campo, porém, seria preciso uma imensa pesquisa documental, de modo que não faremos uma análise sistemático de grupos sociais. Entretanto, a política é realizada por indivíduos específicos, geralmente atuando em defesa de seus interesses familiares11. Como, então, descobrir quem eram esses homens? Note-se aqui que, quase sem querer, já temos um primeiro dado: a ausência das mulheres entre os atores políticos na Bahia seiscentista. Se elas não estavam impossibilitadas de agir, como indica o fascinante caso de “Catarina Fogaça e Leonor Pereira [Marinho], chamadas vulgarmente as Senhoras da Torre”, que atuaram decisivamente para defender e ampliar o patrimônio e o poder familiar após a morte do coronel Francisco Dias de Ávila (1648-94)12, na

9

SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835 (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1988 [1985], pp. 209-46, citação à p. 230. Em perspectiva comparada, cf. id. “The Landed Elite” in: HOBERMAN, Louise & SOCOLOW, Susan (eds.). The Countryside in Colonial Latin América. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1997, pp. 97-121. 10 SCHWARTZ, Segredos Internos, pp. 247-60 e id. “Free Labor in a Slave economy: the Lavradores de Cana of Colonial Bahia” in: ALDEN, Dauril (ed.). Colonial Roots of Modern Brazil. Berkeley: University of California Press, 1973, pp. 147-97. Em seus passos seguiu FERLINI, Vera. Terra, Trabalho e Poder: o mundo dos engenhos no Nordeste colonial. Bauru: EDUSC, 2003 [1986], 2ª ed., pp. 287-344. 11 Cf., por todos, LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. (trad.) Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000 [1985], principalmente pp. 87-130. 12 Cf. os documentos publicados por DIAS, Eduardo. “Para a História dos Ávilas da Bahia”. Anais do Primeiro Congresso de História da Bahia. Salvador: Tipografia Beneditina, 1950, vol. II, pp. 361-80 (citação às pp. 366-7, em carta de 18 de junho de 1696 do jesuíta Alexandre de Gusmão) e a narrativa de BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O feudo. A Casa da Torre de Garcia d’Ávila: da conquista dos sertões à independência do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007 [2000], 2ª ed. rev., pp. 235-48.

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maioria dos casos sua agência é imperceptível para nós, já que eram barradas das instituições em que se produzia a política baiana – ou ao menos aquela que podemos traçar hoje em dia. O que faço é também, portanto, uma história de gênero, mas do gênero masculino. Devido à escassez de fontes que permitam uma análise serial e sistemática da sociedade baiana ao longo da maior parte do século, já que os registros notariais só sobreviveram para 15 anos do final do seiscentos, as fontes paroquiais são muito fragmentadas e incompletas e as fiscais praticamente inexistentes, foi preciso – como sempre em uma pesquisa – fazer escolhas. Apesar da riqueza das fontes cartoriais, seu volume tornou impraticável retraçar o trabalho de Rae Flory – ou ao menos fazê-lo e ainda tentar dar conta dos outros objetivos da tese – e ainda não resolveria o problema que eu me havia posto, já que continuaríamos sem saber quem eram os principais atores políticos na maior parte do século XVII baiano. Preferi, portanto, trabalhar não com grupos sociais, mas com a elite política baiana. Como, porém, defini-la? Através do caminho mais simples, mas nem por isso menos eficaz: o pertencimento a instituições e postos que permitiam a seus ocupantes exercerem poder e demonstrarem sua inserção no escalão superior da sociedade local – pois o mando deveria, em princípio, ser exercido sempre por aqueles dotados de maior qualidade, dentro da lógica característica de sociedades do Antigo Regime. Comecemos com a Câmara, especialmente representativa por serem seus representantes escolhidos até 1696 pela própria elite local, através do já citado sistema de pelouros. Incluí na base de dados todos os homens eleitos (mesmo que não tenham servido, pois a escolha em si já é um indicador de seu prestígio) como juízes ordinários, vereadores e procuradores13, entre os anos de 1624 e 1700 – os dados para o período anterior são muito incompletos, em razão da tomada de Salvador pelos neerlandeses em 1624. Entram na lista também os escrivães proprietários, devido à sua importância no controle da memória administrativa14. Os procuradores do Senado em Lisboa, mas que sabemos ter residido em Salvador, também foram incluídos, a exemplo do já citado Gregório de Matos e de Sebastião de Brito de Castro15.

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Cada ano eram eleitos dois juízes ordinários (até a criação do ofício de juiz de fora, em 1696, quando esse cargo foi extinto), três vereadores e um procurador. Todos votavam e participavam das deliberações da Câmara, mas os juízes ordinários eram o cargo mais reputado, pois atuavam como juízes de primeira instância e o juiz mais velho tendia a liderar seus colegas. O procurador era um ofício menos reputado, pois a ele competia zelar belos bens municipais e atuar como tesoureiro; assim, ao lidar diretamente com dinheiro, era contaminado de alguma forma pelo preconceito contra os ofícios mecânicos. 14 Sobre sua importância como elemento de continuidade, por controlarem a memória administrativa da instituição, cf. SILVA, Francisco Ribeiro da. O Porto e o seu termo (1580-1640): os homens, as instituições e o poder. Porto: Arquivo Histórico/Câmara Municipal, 1988, vol. I, pp. 483-502. 15 Lavrador de cana, fidalgo, cavaleiro da Ordem de Cristo, familiar do Santo Ofício e capitão de infantaria, casado com a filha do fidalgo madeirense Diogo de Aragão Pereira, analisado abaixo. Cf. AHU, cód. 85, fls. 76 e 78; CS,

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Chegamos, assim, a 329 homens – deixando de fora, porém, aqueles que se identificavam como cidadãos, pertencendo, portanto, à governança, mas que jamais serviram no Senado, como Aleixo Pais, lavrador rico e sogro de três camaristas, ou Belchior de Sousa Dormondo, sogro de outros três. Da mesma maneira, não incluímos aqueles que serviram apenas como almotacéis, para manter a “população primária” em limites minimamente manejáveis – mesmo porque seria difícil encontrar informações relevantes para muitos destes homens. Representava a Câmara, porém, a única via para o poder político para as elites da Bahia? Certamente que não, apesar de ser a mais fácil de traçar, devido à documentação relativamente abundante. Optei, portanto, por adicionar todos os coronéis da ordenança, secretários de Estado, alcaides-mores, provedores da alfândega e juízes dos órfãos, posições monopolizadas pelos moradores da capitania, assim como os provedores da misericórdia, mestres de campo da infantaria paga e provedores-mores da fazenda residentes em Salvador, cargos que, em proporção decrescente, também foram controlados durante anos por membros da elite local. Deixei de fora os desembargadores da Relação, já que não haveria muito que acrescentar ao clássico estudo de Stuart Schwartz e nem todos se integraram à sociedade local. A exceção são os baianos e provedores da Misericórdia Cristóvão de Burgos e João de Góis de Araújo, devido à sua intensa atuação política (capítulos VI e VII)16. Chegamos, assim, ao total de 350 – um acréscimo pequeno, porque a maioria dos coronéis e provedores da misericórdia serviu na Câmara. É essa lista completa? Certamente não, já que houve homens que, ao atuar por vias não institucionais, influenciavam a política de outras maneiras. Um excluído é, por exemplo, o rico negociante, senhor de engenho e cristãonovo Mateus Lopes Franco, que por diversas vezes participou proeminentemente das deliberações camarárias como representante dos homens de negócio. Ser notoriamente infamado de judaizante, porém, impediu que se integrasse à elite política baiana – embora sua filha tenha se casado com o poderoso potentado Antônio Guedes de Brito17. Outro que não alcançou a nota de corte foi o capitão Garcia D’Ávila, o segundo desse nome, proprietário de uma imensa extensão de terras no sertão, talvez por estar mais interessado em expandi-las do que em passar anos em Salvador influindo na política local18. Esses casos são, porém, exceções, e praticamente todos os indivíduos que participaram ativamente dos jogos de poder na Bahia vol. II, pp. 17-8; AC, vol. V, p. 143; IAN/TT, COC, L. 53, fls. 80-80v; TSO, Conselho Geral, Habilitações, Sebastião, Maço 4, n. 97; DH, vol. 22, p. 258; vol. 26, pp. 445-7, vol. 68, pp. 132-3; CG, vol. I, pp. 463-6. 16 SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: o Tribunal Superior da Bahia e seus desembargadores, 1609-1751 (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2011 [1973], 2ª ed.; sobre estes dois letrados, cf. pp. 215, 223-4, 246-7, 250, 257-8, 268 e 284-5. 17 SMITH, The mercantile class, pp. 327-36. 18 BANDEIRA, O Feudo, pp. 185-205.

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(capítulos V-VII) em algum momento ocuparam cargos que justificam sua inclusão na elite política. Mesmo que tenham exercido seu poder de outras formas, geralmente também o fizeram por via institucional, de modo que esse grupo representa fielmente os poderosos locais. Assim, penso que esse elenco de personagens chegou suficientemente perto disso para podermos tratá-lo não como uma amostra, como fez Flory em seu estudo, mas como a totalidade da elite política baiana do século XVII. Esse grupo estava, porém, longe de ser homogêneo 19, como já veremos. Não havia, afinal, tanto em comum entre o negociante de Ponte de Lima e capitão Bento Pereira Ferraz, que só serviu como procurador em 1695, e seu colega nesse ano, o coronel Gonçalo Ravasco Cavalcante de Albuquerque, uma vez juiz ordinário e quatro vereador, secretário de Estado, senhor de engenho, fidalgo, comendador da Ordem de Cristo e, no final da vida, duas vezes provedor da Misericórdia20. Há que explicar, porém, como foi possível construir a base de dados aqui utilizada, doravante denominada “Base Elites Baianas Seiscentistas”. Procurei responder às seguintes perguntas básicas: quais cargos foram ocupados por esses indivíduos nas instituições acima mencionadas, quando e quantas vezes? Quais eram suas atividades econômicas? Quais títulos ostentavam? Onde e quando nasceram e morreram? Quem eram seus parentes mais próximos: pais, avós, esposas e sogros? No total, são 52 campos para cada um dos 350 homens prosopografados, num total de 18.200 campos, ainda que muitos, infelizmente, tenham permanecido vazios, devido às lacunas documentais. Apesar da complexidade de suas vidas, certamente irredutível a uma tabela, essas informações nos permitem ter uma noção básica da totalidade. Através dessa metodologia é possível analisar a estrutura sociopolítica e os mecanismos de mobilidade dentro dela. Também pode-se tentar vislumbrar, ainda que com consideráveis dificuldades, a rede de interesses que dá coesão aos agrupamentos políticos, pois tende-se a ver principalmente as relações parentais, que estão longe de serem a única forma de estabelecimento de alianças. Para isso construí grupos familiares e averiguei a inserção dos agentes nessas redes ao longo de várias gerações, cobrindo, quando possível, todo o período entre 1550-1700 (cinco ou seis gerações). Como muitos dos biografados não se inseriam em parentelas conhecidas, optei por manter o indivíduo como unidade básica de análise, a partir da convicção de que uma análise predominantemente familiar tenderia a ignorar os “sem família 19

Como notou RODRIGUES, José Damião. Poder municipal e oligarquias urbanas: Ponta Delgada no século XVII. Ponta Delgada: Instituto Cultural, 1994, p. 86. 20 IAN/TT, TSO, Conselho Geral, Habilitações, Bento, mç. 3, doc. 57; HOC, Letra G, mç. 6, doc. 159; Irmãos, p. 13; CG, vol. I, pp. 438-43; DUTRA, Francis. “The Vieira Family and the Order of Christ”. Luso-Brazilian Review, vol. 40, n. 1, 2003, pp. 26-8. Amigo de Gregório de Matos, recebeu dele elogios, sendo tratado como “o juiz mais nobre de quantos no Brasil cobre o manto real das estrelas” e, em outro momento: “Bem mostra que de Bernardo tem herdado o natural, além de ser principal o seu ânimo galhardo”.

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identificada” e a minimizar as diferenças entre os membros do grupo parental. Em acréscimo, muitas famílias ainda estavam em constituição do período, e partir delas poderia dar a entender, equivocadamente, uma permanência que não era um fato dado, mas uma árdua construção. Não havia, porém, um série documental rica e uniforme que nos fornecesse respostas para todas as perguntas. Foi preciso, portanto, recorrer a um diversificado corpus, o que inevitavelmente gerou uma grande desigualdade de informações, especialmente em relação aos membros menos ilustres do grupo. Assim, é necessário manter em mente as lacunas da pesquisa, as informações que não foram possíveis obter, as quais exigem do historiador cuidado na hora de concluir a partir dos números – inevitavelmente parciais – obtidos através do método. É para isso que serve, porém, o caráter comparativo da prosopografia: os indivíduos são examinados em busca de semelhanças e diferenças, descobertas a partir da comparação. É tal procedimento que permite ao historiador trabalhar com uma “relativa escassez de dados, algo que não é viável para o trabalho biográfico no seu sentido tradicional”. O indivíduo, portanto, é sempre considerado em relação ao conjunto21. Mesmo assim, optou-se sempre que possível por aprofundar casos específicos, pois os dados agregados muitas vezes não favorecem uma apreensão adequada das estratégias e especificidades individuais e familiares. A primeira fonte utilizada foram as atas da Câmara, já que elas registram todos os homens que serviram na municipalidade, inclusive as substituições por morte ou recusa do cargo. Em acréscimo, em algumas petições ou reuniões abertas é possível obter informações adicionais, principalmente sobre a atividade econômica dos agentes. Em seguida, como a grande maioria das fontes paroquiais está desaparecida, foi preciso recorrer à clássica genealogia setecentista do Frei Jaboatão, copiosamente anotada por Pedro Calmon: apesar dos eventuais erros e omissões, é um guia inestimável para o pesquisador. Já a coleção dos Documentos Históricos da Biblioteca Nacional forneceu informações úteis e variadas, espalhadas em dezenas de volumes, a exemplo dos serviços daqueles que serviram na tropa paga e, eventualmente, na ordenança. Alguns códices da primeira metade do século foram úteis, especialmente pelos testemunhos preservados em que diversos de nossos personagens se

STONE, Lawrence. “Prosopography” [1971] in: id. Past & Present Revisited. Londres: Taylor & Francis, 1987 [1981], 2a ed. ampliada, pp. 45-73 e BULST, Neithard. “Sobre o objeto e o método da prosopografia” [1986 – trad.]. Politéia: História e Sociedade, vol. 5, n. 1, 2005, p. 56 (citação). Dois estudos clássicos são STONE, Lawrence. The Crisis of Aristocracy: England, 1558-1641. Oxford: Oxford UP, 1967 [1965], edição abreviada; id. & STONE, Jeanne Fawtier. An open elite? England, 1540-1880. Oxford: Oxford UP, 1986 [1984], edição abreviada. Mais recentemente, temos PONCE LEIVA, Pilar. Certezas ante la Incertitumbre: Élite y Cabildo de Quito en el siglo XVII. Quito: Abya-Yala, 1998, 191-421; ARANDA PÉREZ, Francisco. Poder y Poderes en la Ciudad de Toledo: gobierno, sociedade y oligarquias urbanas en la Edad Moderna. Cuenca: Ediciones de la Universidade de Castilla-La Mancha, 1999, pp. 139-332 e BURNARD, Trevor. Creole Gentlemen: the Maryland elite, 1691-1776. Nova York: Routledge, 2002, dentre muitos outros. 21

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identificam, eventualmente descrevendo sua ocupação, cargos, títulos e idades22. A documentação da Misericórdia foi de grande valia, desde o livro de entrada de irmãos a listas de devedores em 1694 e 1725, passando pelos livros do tombo23. Para além da informação sobre a atuação nessa irmandade, em si relevante, foi possível recolher indícios sobre a atividade econômica e informações genealógicas. Por outro lado, a documentação inquisitorial nos oferece uma imensa riqueza de dados, não só acusações mais ou menos prováveis de cristã-novice (e outros, como sodomia), mas também sobre a atividade econômica, naturalidade, idade e até relações de sociabilidade de muitos denunciados e denunciantes24. Ainda há o que ser explorado aqui (especialmente através de uma investigação sistemática dos Cadernos do Promotor), mas creio que é possível termos uma boa ideia de sua potencialidade a partir das fontes consultadas. Petições e manifestações de homens de negócio e, principalmente, do setor açucareiro são muito úteis para identificar a ocupação de muitos de nossos personagens, assim como um importante indício de sua identidade e mobilização em defesa de seus interesses econômicos25. Apesar de não haver listas de senhores tão completas como para Pernambuco, onde os neerlandeses produziram uma documentação riquíssima, podemos contar com alguns documentos do mesmo período, como os livros de contas do Engenho de Sergipe do Conde 26. Por último, a documentação relativa a mercês e habilitações, majoritariamente levantada em minha pesquisa de mestrado, foi essencial ao oferecer informações relativamente detalhadas

22

AC, CG e DH; CCT; SALVADO, João Paulo & MIRANDA, Susana Münch (eds.). Livro 1º do Governo do Brasil (1607-1633). Lisboa: CNCDP, 2001, principalmente pp. 439-89. 23 Irmãos; LIMA, Américo Pires de. A Situação da Misericórdia da Baía no fim do século XVII. Coimbra: Coimbra Editora, 1950 e id. Atribulações da Misericórdia da Baía no século XVIII. Coimbra: Coimbra Editora, 1950 (ambas separatas de Brasília, vol. V); OTT, Carlos. A Santa Casa de Misericórdia da Cidade do Salvador. Rio de Janeiro: Publicações do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1960, pp. 113-226; ASCMB, Livros 13 (Livro 1º de Acórdãos da Mesa, 1645-75), 41 (Livro 2º do Tombo, 1652-85), 42. (Livro 3º, 1686-1829) e 195 (Livro de Segredos, 1630-1689); AHU, cód. 1265 (Relação das Instituições que deixaram os testadores, patrimônios que estabeleceram, e encargos que com eles aceitou a casa da Santa Misericórdia da Bahia até o ano de 1744). 24 VAINFAS, Ronaldo (org.). Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997; “Livro das Denunciações que se fizerão na Visitação do Santo Offício à Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos do Estado do Brasil, no anno de 1618”. ABN, vol. 49, 1936, pp. 75-198; SIQUEIRA, Sônia (org.). Confissões da Bahia (1618-1620). João Pessoa: Ideia, 2011, 2ª ed.; NOVINSKY, Anita (ed.). Inquisição: prisioneiros do Brasil, séculos XVI-XIX. São Paulo: Perspectiva, 2009, 2ª ed.; id. (ed.). Gabinete de Investigação: uma “caça aos judeus” sem precedentes. São Paulo: Humanitas, 2007; id. Cristãos Novos na Bahia: a Inquisição no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1992 [1970], 2ª ed., pp. 165-86; IAN/TT, TSO, IL, Processos 6360 (Antônio de Castanheira, 1592-3) e 8664 (Simão Preto, 1686-8); CP, Livros 15, 29, 32 e 33. 25 AHMS, PR, vol. I, fls. 123-139v; Le Brésil, pp. 279-307; Liberdade e Limitação; AHU, Bahia, LF, cx. 20, doc. 2366; assim como diversas referências espalhadas nas AC. 26 Documentos para a História do Açúcar. Rio de Janeiro: Serviço Especial de Documentação Histórica, 1956, vol. II: Engenho Sergipe do Conde, Livro de Contas; CCT, vol. II, pp. 198-200 e vol. III, pp. 132-185.

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sobre parcela considerável de meus personagens27. É, de fato, das discussões e da base documental estabelecida nesse trabalho anterior que parti, expandindo seu escopo28. Dessa maneira, apresentarei ao longo do capítulo uma elite que incorporou continuamente novos integrantes, mesmo porque muitos dos primeiros povoadores desapareceram com o tempo. A formação da elite baiana foi, portanto, um processo de contínua ascensão social – inclusive de cristãos-novos, embora os mais notórios entre eles enfrentassem maiores dificuldades de adentrar o poder local e o mercado matrimonial. Entretanto, ao longo do século as principais famílias da capitania se consolidaram, em um movimento nunca completado de oligarquização do poder que, se sempre permitiu a entrada de forasteiros (inclusive negociantes), tanto através do casamento quanto da eleição para os principais postos, tendeu a reservar uma parcela cada vez maior do poder para as parentelas dominantes. As famílias mais duradouras e de maior prestígio tenderam a adotar uma estratégia dispersiva, com vários filhos dividindo a herança (ainda que não necessariamente de forma igualitária) e o poder político, mas aquelas que optaram por concentrar seus recursos em um único indivíduo produziram os maiores potentados da capitania – arriscando, porém, a extinção pela falta de descendentes. Tais famílias serviram ao monarca e obtiveram honrarias, mas o fizeram principalmente em sua terra, pois seus horizontes pouco ultrapassavam a Bahia. Por último, caracterizo a açucarocracia como uma classe capaz de se mobilizar em defesa de seus interesses e controlar o poder político local, embora eles preferissem e procurassem se identificar a partir de sua posição estamental, como veremos no capítulo IV.

Abertura e Fechamento: mudanças e permanências A imagem tradicional das elites políticas locais do litoral açucareiro no século XVII é de um grupo de senhores de engenho estabelecidos há gerações na terra e fortemente unido por laços de parentesco. Construída pelos próprios agentes, consagrada no século XVIII por obras como a História da América Portugueza de Sebastião da Rocha Pitta (exatamente um dos que se enquadravam – ou queriam se enquadrar – nesse modelo) e reafirmadas pela historiografia até a década de 1960, essa pintura só começou a sofrer abalos na década de 1970, como vimos

27

AHU, códs. 79-87; Inventário dos Livros das Portarias do Reino (1639-1664). Lisboa: Imprensa Nacional, 2 vols., 1909-1912; AMARAL, Luís (ed.). Livros de Matrículas dos Moradores da Casa Real: foros e ofícios, 16411744. Lisboa: Guarda-Mor, 2009, 2 vols.; IAN/TT, HOC, HOA, HOS; COC, COA, COS; TSO, Conselho Geral, Habilitações e Habilitandos Recusados, Livro 36; Desembargo do Paço, Leitura de Bacharéis; FONSECA, Luiza da. “Bacharéis Brasileiros: elementos biográficos (1635-1830)” in: Anais do IV Congresso de História Nacional. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, vol. XI, 1951, pp. 141-80. 28 KRAUSE, Thiago. Em Busca da Honra: a remuneração dos serviços da guerra holandesa e os hábitos das ordens militares (Bahia e Pernambuco, 1641-1683). São Paulo: Annablume, 2012, pp. 169-246.

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acima. Como vários mitos políticos, há bastante de verdade nessa idealização, mas, como também geralmente ocorre, a realidade é mais complexa.

Gráfico 2: Naturalidade da Elite Política

96 136

118

Naturais

Forasteiros

Desconhecidos

Fonte: Base Elites Baianas Seiscentistas.

É preciso examinar a naturalidade desses homens, especialmente se lembrarmos que o alvará de 12 de novembro de 1611 determinava que os ofícios camarários recaíssem nas “pessoas mais nobres e da governança da terra, ou em que houvessem sido seus pais e avós” – havia previsão de eleição de não naturais, mas isso era claramente percebido como uma exceção29. Conhecemos o local de nascimento de 255. 138 são naturais da Bahia (39,4% do total); por outro lado, sete são de Pernambuco, um da Paraíba, um de Sergipe, 107 de Portugal e Ilhas e um de Angola (33,4% são forasteiros, portanto). Os 95 restantes (27,4%) certamente eram, em sua maioria, forasteiros, já que muitos não aparecem nos documentos consultados durante a pesquisa e quase todos foram deixados de lado no extenso Catálogo Genealógico (1768) de Jaboatão, indicando que não pertenciam aos troncos ilustres imortalizados na obra, não se casaram com os rebentos dessas famílias e nem deixaram descendentes reputados entre as principais famílias da terra em meados do setecentos. Vários podem ter sido mercadores, e talvez sequer tenham se assentado definitivamente na terra, de modo que nada sabemos deles, como é o caso de mais de duas dúzias de procuradores do Senado ao longo do século. Mesmo se tirarmos aqueles que foram apenas procuradores, pois representavam o nível mais baixo da elite política local (como veremos abaixo), ficamos com os seguintes números: 135 (46,1%)

29

CCLP, vol. 1, pp. 314-6.

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baianos, 100 (34,1%) forasteiros e 58 (19,8%) desconhecidos. A importância dos naturais aumenta, mas ainda é ultrapassada por forasteiros e desconhecidos somados. Assim, se nunca saberemos os números exatos, é certo que uma parcela considerável da elite política baiana era composta não por conquistadores quinhentistas encastelados em posições de poder, mas sim por adventícios, em níveis um pouco mais altos do que, por exemplo, os encontrados para a Câmara recifense no setecentos, a urbe mascatal por excelência30, assim como para os cabildos de Buenos Aires (especialmente após 1640), Quito e da cidade do México no século XVII31. O único paralelo seiscentista que encontrei em que os forasteiros são mais numerosos foi a House of Burgesses (assembleia representativa) de Virgínia, em que 52,3% dos eleitos entre 1660 e 1706 eram imigrantes – mas é bem provável que esse dado simplesmente reflita a invejável capacidade do autor de identificar a origem de quase todos os seus biografados, relegando os desconhecidos à irrelevância estatística32.

Gráfico 3: naturalidade da elite política, por década de entrada no grupo 30

26

25

21

20

19

20

17 15 13

15 10

11

11

12

12

12 10

9

12 9

8

7

6

5

2

10 8 6 1

0 1614-30

1631-40

1641-50 Naturais

1651-60 Forasteiros

1661-70

1671-80

1681-90 1691-1700

Desconhecidos

Fonte: Base Elites Baianas Seiscentistas.

30

Embora no período entre 1710-59 a vila tenha conhecido um predomínio reinol muito maior: SOUZA, George Cabral de. “A gente da governança do Recife colonial: perfil de uma elite local na América Portuguesa (17101822)” in: FRAGOSO, João & SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de (orgs.). Monarquia pluricontinental e a governança da terra no ultramar atlântico luso: séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012, pp. 54-7. 31 TRUJILLO, Oscar. Elite y poder político en los confines de la Monarquía Hispánica: Buenos Aires, 1640-1680. Tese de Diploma de Estudos Avançados. Sevilla: Universidad Pablo de Olavide, 2005, pp. 60-70; PONCE LEIVA, Certezas ante la incertitumbre, pp. 218-9 e PAZOS, Maria. El Ayuntamiento de la Ciudad de México en el siglo XVIII: continuidad institucional y cambio social. Sevilla: Diputación, 1999, p. 314. 32 QUITT, Martin. “Immigrant Origins of the Virginia Gentry: a study of cultural transmission and innovation”. The William & Mary Quarterly, vol. 45, n. 4, 1988, p. 629.

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A análise cronológica da entrada desses indivíduos na elite política (contada a partir da primeira vez que ocuparam os cargos de vereador, juiz ordinário ou provedor da Misericórdia, de modo a nos restringirmos ao nível superior do grupo) indica que, apesar das variações, os forasteiros (especialmente se somados aos desconhecidos) predominaram até a década de 1650, e só na década de 1660 os naturais tornaram-se claramente majoritários. Após um século de ocupação, finalmente ocorria uma sedimentação do grupo governante – sem, porém, que os forasteiros deixassem de se incorporar. A predominância dos naturais não é resultado de uma política consciente de exclusão de forasteiros (mesmo porque estes continuaram a entrar no grupo em números significativos), mas sim da consolidação progressiva das principais famílias locais (como veremos abaixo), há mais de meio século estabelecidas na Bahia, com um número cada vez maior de filhos capazes de ocupar os postos mais importantes da República. Com muito mais força, como veremos abaixo, tendência similar se fazia sentir no Rio de Janeiro33. Mantendo o padrão há muito apontado pela historiografia34, 65 homens vieram do EntreDouro e Minho, no Norte de Portugal, região densamente povoada, que tendia a expulsar seus filhos para o Brasil e limitar o número de filhas que casavam, de modo a impedir a fragmentação da propriedade. Mais interessante é perceber a concentração em algumas vilas específicas: a pequena Ponte de Lima, que não devia passar de 2000 e tantos moradores ao longo do seiscentos, contribuiu sozinha mais que qualquer outra região do império, com 17 imigrantes membros da elite baiana. Conhecendo um crescimento demográfico significativo, muitos dos seus moradores migraram para o Brasil, onde se depararam com a onipresença da escravidão – existente em sua vilazinha, mas em pequena escala, majoritariamente sob controle da nobreza local35. O primeiro dos limianos em minha base de dados foi também o mais destacado, mesmo que não o mais conhecido: o coronel Belchior Brandão Coelho (1574-1666), senhor de engenho, provedor da Misericórdia, uma vez vereador e em quatro ocasiões juiz ordinário.

FRAGOSO, João. “Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750)” in: id., ALMEIDA, Carla & SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de (orgs.). Conquistadores e Negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, pp. 54-68. Esso desenvolvimento não é, porém, inevitável. Em Quito, a porcentagem de cabildantes criollos diminui entre 1661-1701, talvez devido a um aumento da imigração: PONCE LEIVA, Certezas ante la incertitumbre, pp. 218-9. 34 Cf. QUIRINO, Tarcizio. Os habitantes do Brasil no fim do século XVI. Recife: Imprensa Universitária, 1966, 20-9 e o excepcional estudo de SOUZA, George Cabral de. Elite y ejercicio de poder en el Brasil colonial: la Cámara municipal de Recife (1710-1822). Tese de Doutorado. Salamanca: Universidade de Salamanca, 2007, pp. 300-5, que apresenta um padrão similar; como quadro geral, veja-se CUNHA, Mafalda Soares da. “A Europa que atravessa o Atlântico (1500-1625)” in: FRAGOSO, João & GOUVÊA, Fátima (orgs.). O Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, vol. I (1443-1580), pp. 271-314. 35 ARAÚJO, Maria Marta Lobo de. Dar aos pobres e emprestar a Deus: as Misericórdias de Vila Viçosa e Ponte de Lima (séculos XVI-XVIII). Barcelos: Ed. do Minho, 2000, pp. 349-63. 33

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As vilas vizinhas de Arcos de Valdevez, Caminha, Coura, Monção, Valença do Minho e Viana são o local de nascimento de outros 19 homens, de modo que 30% dos forasteiros vêm de uma pequena área do noroeste de Portugal, num raio de não mais de 30 quilômetros. Todo esse processo foi possibilitado pela participação de negociantes vianenses no comércio de açúcar, estabelecendo laços intensos entre as duas regiões, que sobreviveram mesmo após a decadência desse trato, continuando a estimular a migração36. Não só despossuídos cruzavam o Atlântico, embora esses fossem maioria: também nobres buscavam fortuna na América, como lamentou a Misericórdia de Viana em carta à Coroa de 1638. Esse talvez seja o caso do limiano e senhor de engenho Paulo de Barros, cujas habilitações tiradas para entrada na Ordem de Cristo não encontraram defeito mecânico ou de sangue37. Alguns minhotos chegaram a deixar legados para a Santa Casa de sua terra natal, como o rico homem de negócio Antônio Maciel Teixeira, cavaleiro da ordem de Cristo, Provedor da Misericórdia baiana em 1695 e vereador em 1700, e o já citado Bento Pereira Ferraz, que deixou 400$ à Misericórdia de Ponte de Lima para a cura de doentes38. Se podemos ter certeza que nenhum dos outros 16 limianos fez o mesmo39, é bem provável que outros reinóis tenham deixado heranças em suas vilas natais (como João de Matos de Aguiar, que legou uma pequena parcela de sua imensa riqueza para alguns parentes)40. De qualquer maneira, é interessante notar que tanto Maciel Teixeira quanto Pereira Ferraz não parecem ter se integrado fortemente à elite baiana: ambos só serviram na Câmara uma vez e, embora tenham sido ativos na Misericórdia (o primeiro foi provedor em 1695 e o segundo tesoureiro em seu ano de ingresso, 1683, e escrivão em 1691), não casaram entre a elite baiana. Talvez por isso tenham mantido com maior intensidade a ligação com a terra natal.

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MOREIRA, Manuel Fernandes. Os vianenses na construção do novo mundo (séc. XVI-XVII). Viana do Castelo: Câmara Municipal, 2008, pp. 92-174. 37 AHU, cód. 80, f. 224; IAN/TT, HOC, Letra P, mç. 11, n. 17; COC, L. 35, fls. 116-116v e 218v-219v. 38 MAGALHÃES, António. “Vianenses no Brasil, brasileiros em Viana. Do sucesso económico ao reconhecimento local através da Santa Casa de Misericórdia (séculos XVII-XVIII)” in: ARAÚJO, Maria Marta Lobo de; ESTEVES, Alexandre; COELHO, José Abílio & FRANCO, Renato (coords.). Os brasileiros enquanto agentes de mudança: poder e assistência. Braga: Universidade do Minho, pp. 17-34 e ARAÚJO, Dar aos pobres, p. 639. Cf. também SÁ, Isabel Guimarães. “Misericórdias, portugueses no Brasil e ‘brasileiros’” in: FIGUEIREDO, Cláudia & AMARAL, Maria da Conceição (eds.). Os brasileiros de torna-viagem no Noroeste de Portugal. Lisboa: CNCDP, 2000, pp. 117-33 e ARAÚJO, Maria Marta Lobo de. “Balanços de vidas, medo da morte e esperança na salvação: os testamentos dos emigrantes portugueses para o Brasil (séculos XVII e XVIII)”. Cadernos de História. Vol. 8, n. 9, 2006, pp. 29-48. 39 Informação da professora Maria Marta Lobo de Araújo (correio eletrônico, 12 de novembro de 2014). 40 Cf. o testamento do pedreiro analfabeto e prestamista enriquecido Gaspar Fernandes Barreiros, que deixou uma pequena fortuna para a Misericórdia de Ponte de Lima – e era solteiro, como seu testamenteiro João de Matos de Aguiar: MARQUES, Maria Gracinda. “O testamento de Gaspar Fernandes Barreiros: um exemplo de instituição de dotes de capela a partir do Brasil”. Cadernos do Noroeste, vol. 11, n. 2, 1998, pp. 169-95.

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É difícil descobrir os laços entre esses agentes devido à escassez documental, mas, considerando a pequena dimensão dessas vilas, é fácil imaginar que se conhecessem entre si e tivessem histórias como a de João de Matos de Aguiar (c. 1632-1700), limiano chamado à Bahia ainda novo por seu tio João de Matos, “o velho”, lavrador de cana e irmão da Misericórdia. O sobrinho tornou-se o “Leviatã financeiro” de Salvador, provedor (1684) e grande benfeitor da Santa Casa – além de Cavaleiro de Santiago (1666), Cristo (1673) e, por último, familiar do Santo Ofício (1682). O acesso a tais posições seria impossível em sua terra natal, já que o pai de João de Matos de Aguiar era um simples pedreiro e seus avós lavradores de terras alheias 41 - caso provavelmente de muitos outros, para os quais infelizmente não podemos contar com habilitações para as Ordens Militares e o Santo Ofício. Jorge Pedreira já destacou em belo artigo o caráter estrutural da relação tio-sobrinho na formação dos negociantes lusitanos42, mas exemplos como o de Antônio de Castanheira, lavrador de cana na freguesia de Passé, vereador em 1610 e juiz ordinário em 1619 e 1628, indicam a amplitude ainda maior desse movimento. Natural de Coja (vilazinha do bispado de Coimbra), contava em Passé com dois tios, Manuel Ferreira (pai do juiz ordinário em 1625, Miguel Ferreira Feio) e Manuel Fernandes Casado, respectivamente donos de uma fazenda (de canas?) e de um engenho, com os quais mantinha contatos frequentes43. Até conexões muito tênues podem ter sido relevantes: o pai do supracitado Belchior Brandão Coelho era, segundo seu filho, “primo terceiro” do avô de Francisco de Araújo de Azevedo, senhor de engenho limiano eleito três vezes para o Senado, e esse pode ter sido um dos contatos que incentivaram a migração de Francisco44. Assim, talvez um caminho inexplorado para aprofundar os conhecimentos sobre as elites americanas seja atentar para suas comunidades de origem, de onde traziam concepções, repertórios e relações que moldariam suas ações no Novo Mundo45. A presença de imigrantes também é sentida entre os pais de nossos biografados: dos 138 baianos, 59 (42,7%) são filhos de forasteiros que lá se estabeleceram, 49 de naturais da capitania e 30, para meu imenso pesar, têm pais de naturalidade desconhecida – vários dos quais, insisto,

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Sobre eles, cf., dentre outros, RUSSELL-WOOD, Fidalgos e filantropos, pp. 49-50; ASCMB, L. 41, fls. 239v244; IAN/TT, TSO, Conselho Geral, Habilitações, João, maço 17, n. 444; AHU, cód. 84, fls. 153v-154; HOC, Letra J, mç. 91, n. 49; COS, L. 17, fls. 333-335; COC, L. 63, fls. 331-332. 42 PEDREIRA, Jorge M. “Brasil, fronteira de Portugal: negócio, imigração e mobilidade social (séculos XVII e XVIII)” in: CUNHA, Mafalda Soares de (coord.). Do Brasil à Metrópole: efeitos sociais (séculos XVII-XVIII). Évora: Universidade de Évora, 2001, pp. 47-72. 43 IAN/TT, Inquisição de Lisboa, Processo 6360. Antônio foi denunciado, processado, repreendido e admoestado na Visitação de 1591-3 por brincar com um amigo castelhano ao dizer que era melhor ser “um cristão filho de mouros que um castelhano” e “antes mouro que castelhano”. 44 AC, vol. IV, pp. 354-5. 45 Nesse sentido, cf. ALTMAN, Ida. Transatlantic Ties in the Spanish Empire: Brihuega, Spain & Puebla, Mexico, 1560-1620. Stanford: Stanford UP, 2000.

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certamente forasteiros46. Chega-se à conclusão que, de 225 membros da elite política baiana cuja naturalidade é conhecida, assim como a de seus pais, apenas 49 (21,7%) eram, digamos, “baianos da gema” – quase todos homens que alcançaram o poder político na segunda metade do século, período de consolidação das linhagens locais. Mesmo assim, quando recuamos um pouco, é notável que somente seis tenham avôs paternos baianos – e nenhum desses pode dizer o mesmo dos seus avôs maternos. Conclusão: não descobri sequer um membro da elite política baiana entre 1624-1700 que tenha todos seus ascendentes nas duas gerações anteriores naturais da capitania – enquanto em Pernambuco esse foi o caso de vários membros proeminentes das famílias Barbalho Bezerra, Albuquerque e Rego Barros já em meados do século47. Assim, não só as elites mineiras setecentistas se caracterizaram pela significativa entrada de imigrantes e consequente instabilidade do grupo48, pois suas contrapartes do Nordeste açucareiro também apresentaram características similares em seu primeiro século de existência. Um bom indicador desse processo de substituição acelerada de membros da elite na Bahia pode ser encontrado no fato de que somente 12 dos 62 proprietários do Recôncavo (e apenas seis dos 36 senhores de engenho) nomeados por Soares de Sousa em 1587 aparecem como membros da elite ou seus ascendentes em minha base de dados sobre o século XVII, dos quais apenas um (Gárcia D’Ávila) conseguiu fundar uma grande dinastia49. Essa ruptura ocorreu majoritariamente na transição para o seiscentos, como se percebe da comparação da listagem de Soares de Sousa com a de 1609 realizada por Diogo Campos Moreno, pois em pouco mais de duas décadas quase todo o grupo foi substituído50. A continuidade é significativamente maior, mas mesmo assim apenas um terço dos senhores de engenho nessa participa (diretamente ou através de parentes) na elite política seiscentista que estudo, indicando que o processo de renovação da açucarocracia continuou a ocorrer no início do século XVII. É certo que se nos guiarmos pela via feminina a continuidade é mais evidente: 12 têm avós paternas naturais da Bahia, 38 avós maternas e 14 ambas. Entretanto, provavelmente menos de 20% dos membros da elite política seiscentista podiam traçar suas origens aos povoadores que chegaram entre 1550-70, ou mesmo depois, e mesmo assim a família 46

Proporção até maior do que a encontrada no Recife: SOUZA, Elite y ejercicio del poder, pp. 327, ainda que isso provavelmente se deva ao grande número de pais de origem desconhecida 47 A partir dos dados recolhidos em KRAUSE, Em Busca da Honra. 48 SOUZA, Laura de Mello e. O Sol e a Sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 148-81. 49 SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Org. de Fernanda Trindade Luciani. São Paulo: Hedra, 2010, pp. 135-56 e a cuidadosa sistematização realizada por RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial: Brasil, c. 1530 – c. 1630. São Paulo: Alameda, 2009, pp. 248-66. 50 MORENO, Diogo de Campos. “Relação das praças fortes do Brasil (1609)”. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, vol. 57, 1984, pp. 215-6. Agradeço ao embaixador Evaldo Cabral de Mello pela indicação dessa fonte.

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geralmente toma o nome de seu fundador reinol. É interessante perceber que, diferentemente de sua contraparte, o “Adão pernambucano” Jerônimo de Albuquerque, os sobrenomes de Diogo Álvares Correia (o Caramuru, náufrago português que se estabelecera entre os índios no início do século XVI), desaparecem logo após a sua morte. Mesmo assim, a se acreditar nas sátiras de Gregório de Matos, descender do Caramuru continuava a ser um ponto de orgulho entre a nobreza baiana em fins do seiscentos51. Esse era o caso da maioria das famílias mais influentes, como veremos abaixo. Processo similar ocorreu em Pernambuco, pois a primeira geração chegada entre 153060 quase desapareceu, sendo a maioria dos principais troncos da capitania chegados a partir do arranque da economia açucareira, na década de 1570. Mesmo assim, menos da metade das 60 famílias senhoriais de 1594 manteve a posse dos engenhos em 1623, mesmo em um contexto em que o número de engenhos quase dobrou, indicando um nível de renovação muito relevante, mesmo que menor do que o encontrado para a Bahia – lá, porém, o trauma do Brasil holandês fez com que as identidades dos proprietários sofressem ainda mais transformações. Tal renovação também era comum no Rio de Janeiro, ainda que em menor escala, e aparentemente as famílias conquistadoras conseguiram manter-se por muito mais tempo no poder52. Considerando a cronologia, é provável que essa transformação se ligue à transição para a escravidão negra que se desenrola exatamente nessa passagem entre os séculos XVI e XVII, apesar de que provavelmente jamais saberemos os ritmos exatos da mudança em razão da limitação das fontes. É possível que os primeiros proprietários não possuíssem ligações comerciais que favorecessem a compra de africanos escravizados, cujos elevados preços exigiam crédito na praça, e que tenham tido dificuldades para abandonar um modelo de captura de cativos indígenas a custos muito mais baixos, ainda que sua mortalidade e baixa produtividade tenham tornado o trabalho aborígene cada vez menos compensador. Se foi o caso, é plausível que muitos desses homens que fundaram famílias entre 1590-1620 tivessem fortes ligações com o comércio, mais do que seus descendentes, ainda que esse tema exija mais pesquisas. A transição posterior no Rio de Janeiro talvez explique a maior resiliência dos

“Não sei onde acabou, ou em que guerra: só sei que deste Adão de massapé procedem os fidalgos desta terra. Há coisa como ver um Paiaiá mui prezado de ser Caramuru, descendente de sangue de tatu, cujo torpe idioma é Cabepá!”. 52 MELLO, Evaldo Cabral de. O bagaço da cana: os engenhos de açúcar do Brasil Holandês. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012 e FRAGOSO, João. “Nobreza principal da terra nas repúblicas de Antigo Regime nos trópicos de base escravista e açucareira: Rio de Janeiro, século XVII a meados do século XVIII” in: id. & GOUVÊA (eds.), O Brasil Colonial, vol. III (1720-1821), p. 193. 51

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conquistadores, pois eles teriam tido mais tempo para se adaptar a uma mudança mais lenta, consolidada uma geração depois do que na Bahia e Pernambuco53. Processo quase idêntico de substituição dos primeiros povoadores e entrada de novos membros entre os maiores proprietários ocorreu em outra região açucareira com uma cronologia quase igual à da Bahia: Lambayeque, no Peru, onde “pouquíssimas famílias da elite podiam traçar sua condição de hacendados, não já até os encomenderos da região, senão sequer aos primeiros colonos”, situação também relacionada às transformações na força de trabalho54. Já em regiões de economia mais diversificadas, como Quito, as elites locais demonstraram uma maior resiliência, indicando que a concentração da atividade econômica em uma atividade de exportação compunha-se em uma das principais causas de rotatividade na elite política55. Tal fenômeno era reconhecido na época, sendo referido em uma petição da açucarocracia de 1662 como “a pouca duração que tem os bens da terra” e pelo pároco Antônio Marques Parada como a “geral inconstância de bens” característica do Estado do Brasil56 - que poderia provavelmente ser estendida para todo o Novo Mundo. Uma análise mais ampla teria que ser realizada antes que se possa afirmar peremptoriamente o desaparecimento da maior parte da descendência dos quinhentistas por migração, falência, quebra demográfica ou absorção por novas famílias, mas essa me parece ser a explicação mais provável para a renovação relativamente acelerada da elite política baiana, que, como vimos acima, só consegue se tornar predominantemente autóctone na segunda metade do século XVII. Entretanto, infelizmente não construí minha base de dados de forma a dar conta desses casos de fracasso, pois isso implicaria uma significava ampliação da pesquisa, para além da dificuldade de lidar com a escassez documental, já que quase sempre são os casos de sucesso que tendem a deixar mais vestígios nos arquivos. Fica a ressalva, porém, de que o fracasso é tão importante quanto o sucesso para a compreensão dos processos de mobilidade social, especialmente se considerarmos o caráter relativamente reduzido das elites locais na época moderna57. SCHWARTZ, Segredos Internos, pp. 68-73 e, em perspectiva comparada, id. & MENARD, Russell. “Why African Slavery? Labor force transitions in Brazil, Mexico, and the Carolina Lowcountry” in: BINDER, Wolfgang (ed.). Slavery in the Americas. Wurzburg: Königshausen & Neumann, 1993, pp. 89-114 (há uma versão resumida em português). Os trabalhos de John Coombs oferecem um interessante paralelo por denotar a liderança das principais famílias e a importância da política nessa transição: “Beyond the ‘Origins Debate’: rethinking the rise of Virginia slavery” in: id. & BRADBURN, Douglas (ed.). Early Modern Virginia: reconsidering the Old Dominion. Charlottesville: University of Virginia Press, 2011, pp. 239-78. 54 RAMÍREZ, Susan. Patriarcas Provinciales: la tenencia de la tierra y la economía del poder en el Perú colonial (trad.). Madri: Alianza, 1991 [1986], p. 152. 55 PONCE LEIVA, Certezas, p. 278-85. Mesmo lá continuamente entraram linhagens novas no cabildo. 56 AHU, cód. 16, fl. 71v-72v; BNL, cód. 300, fl. 27, respectivamente. 57 Sobre essa temática, cf. o inovador trabalho de LEVI, Giovanni. “Un Cavaliere, Un Oste e Un Mercante: Terra e rapporti sociali in una comunità piemontese del Settecento” in: Id. Centro e periferia di uno stato assoluto. Turim: Rosenberg & Sellier, 1985, pp. 151-226. 53

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Os imigrantes também traziam em sua bagagem seus antecedentes sociais. Não é possível fazer qualquer espécie de quantificação devido à escassez de fontes, mas casos de acelerada ascensão social abundam. O minhoto Domingos Pires de Carvalho, filho e neto de oleiros e lavradores, chegou a Salvador como cirurgião, enriqueceu como negociante e tornouse “capitão de ordenança, e um dos mais ricos e abastados homens que tem a Bahia”, no dizer do Frei carmelita Domingos de Chagas, em 1687. Foi tesoureiro da Misericórdia, procurador da Câmara (embora tenha tentado se escusar da obrigação, dizendo ser “homem nobre por seus pais e avós), ascendeu a coronel de ordenanças no início do século seguinte e fundou um morgado (com bens imóveis urbanos no valor de quase 110 mil cruzados), dando origem assim a uma das mais importantes famílias baianas do XVIII58. O eborense Jerônimo de Burgos, licenciado, havia sido livreiro como seus pais e avós, mas ao casar na Bahia com D. Maria Pacheco, filha do fidalgo vianês e juiz dos órfãos Gaspar Fernandes da Fonseca (o qual havia recebido o ofício de seu sogro, da governança de Salvador), herdou o cargo e um engenho, habilitando-se para servir três vezes como vereador e tornar-se provedor da Misericórdia59. O mesmo pode-se dizer dos pais e avós de muitos destacados membros da elite: o coronel, fidalgo e cavaleiro da Ordem de Cristo Sebastião da Rocha Pita, porta-voz da consciência histórica de seu grupo, era filho de um grande comerciante limiano, e seu avô não passava de um sapateiro60. Mesmo imigrantes de origem nobre podiam ser protagonistas de histórias similares: o lavrador de cana Francisco de Araújo de Brito, vereador em 1638 e juiz ordinário em 1647, 1658, 1666 e 1671, tornou-se uma figura quase mítica em sua freguesia natal (Santiago de Puares, termo de Barcelos). Mais de 70 anos depois de deixar a vila, ainda lá dizia-se que ele “fugira para o Brasil”, tendo vindo pobre para a Bahia (apesar de seus pais serem “nobres e ainda fidalgos” – tratava-se certamente de um filho segundo) e aqui ficara “muito rico, com grandes cabedais”, mandando sempre caixas de açúcar para sua mãe e irmã. Francisco seguia, assim, os caminhos do sogro, o rico lavrador de cana portuense Francisco de Paiva, vereador em 1634, apesar de haver sido infamado de cristão-novo alguns anos antes61. Desejo destacar aqui, portanto, a abertura da elite política baiana62. A notável prosperidade vivida na maior parte do século e os contínuos laços com Portugal, através do

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IAN/TT, HOC, Letra D, mç. 13, n. 84; TSO, Conselho Geral, Habilitações, José, mç. 6, doc. 116 (primeira citação); AC, vol. VI, p. 74 (segunda); AHU, Bahia, LF, cx. 32, docs. 4107-4110; CG, vol. I, pp. 125-34. 59 IAN/TT, Desembargo do Paço, Leitura de Bacharéis, Letra C, mç. 2, n. 55; COC, Livro 56, fls. 415-415v; CG, vol. II, pp. 533-6. 60 IAN/TT, Letra S, mç. 6, n. 52; AC, vol. III, p. 397 e IV, p. 132; CG, vol. I, pp. 108-12; Irmãos. 61 IAN/TT, HOC, Letra V, m. 5, n. 12 (habilitação de seu filho, Vasco de Brito de Sousa); “Liberdade e Limitação”, p. 497; CCT, vol. II, pp. 198-200. 62 Reforçando ideia adiantada em KRAUSE, Em Busca da Honra, pp. 182-3.

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comércio atlântico, tanto estimulavam a vinda de imigrantes quanto possibilitavam seu enriquecimento – que, como destacaram Flory e Smith, era condição indispensável para sua entrada na elite governante da capitania. Salvador distinguia-se, assim, de Olinda, Rio de Janeiro e São Paulo, regiões menos dinâmicas economicamente e onde os descendentes das primeiras famílias parecem ter sido mais capazes de monopolizar o poder, especialmente na segunda metade do seiscentos. Nesse sentido, a situação vivida nessas capitanias na primeira metade do XVIII, em uma economia dinamizada pelo ouro, já havia conhecido antecedentes claros em Salvador – o que explica a menor conflitualidade experimentada pela Bahia quanto à incorporação de forasteiros em suas fileiras, já que esse foi, como já indicaram Smith e Flory, um processo contínuo, ainda que de velocidade desigual63. A Bahia não constituía, porém, uma excepcionalidade no contexto americano: ainda que mais alto, seu grande número de forasteiros não se distingue significativamente de Quito, nem está tão abaixo da Virgínia. Essas urbes não são mais que exemplos do fenômeno de ascensão social generalizada buscada pelos europeus na América que, para os bem-sucedidos, dava origem a um processo de self-empowerment (“empoderamento pessoal”) numa escala impossível no Velho Mundo64. Tal processo de ascensão social foi percebido pelos próprios contemporâneos, como se depreende das sempre precisas palavras de Brandônio: Esses povoadores, que primeiramente vieram a povoar o Brasil, a poucos lanços, pela largueza da terra, deram em ser ricos, e com a riqueza foram logo largando de si a ruim natureza, de que as necessidades e pobrezas que padeciam no Reino os fazia usar. E os filhos dos tais, já entronizados com a mesma riqueza e governo da terra, despiram a pele velha, como cobra, usando em tudo de honradíssimos termos, com se ajuntar a isto o haverem vindo depois a este Estado muitos homens nobilíssimos e fidalgos, os quais casaram nele e se liaram em parentesco com os da terra, em forma que se há feito entre todos uma mistura de sangue assaz nobre65.

Se, como dissemos, o vigor econômico, o tamanho da migração e, certamente, as estratégias das elites explicam as diferenças, o processo é um só. Essa é uma diferença significativa em relação às elites municipais portuguesas, mais sedimentadas e estáveis no

Cf. FRAGOSO, “Fidalgos e parentes de pretos”, pp. 54-68; MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana. São Paulo: Alameda, 2008 [1986], 3ª ed. rev., 2008, pp. 151-4 e BLAJ, Ilana. “Agricultores e comerciantes em São Paulo nos inícios do século XVIII: o processo de sedimentação da elite paulistana”. Revista Brasileira de História, vol. 18, n. 36, 1998, pp. 281-96. Para uma reflexão geral, veja-se SCHWARTZ, Stuart. “The formation of a colonial identity in Brazil” in: CANNY, Nicholas & PAGDEN, Anthony (eds.). Colonial identity in the Atlantic World, 1500-1800. Princeton: Princeton UP, 1985, p. 32. 64 STERN, Steve. “Paradigmas da Conquista. História, historiografia e política” in: BONILLA, Heraclio (org.). Os Conquistados: 1492 e a população indígena das Américas (trad.). São Paulo: Hucitec, 2006 [2003], pp. 35-6 e GREENE, Jack. “Tradições de governança consensual na construção da jurisdição do Estado nos impérios europeus da Época Moderna na América” (trad.) in: FRAGOSO, João & GOUVÊA, Fátima (orgs.). Na Trama das Redes: política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, pp. 99-100. 65 BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das Grandezas do Brasil. Org. de José Antônio Gonsalves de Mello. Recife: FUNDAJ/Massangana, 1997 [1618], 3ª ed., p. 107. 63

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século XVII, quando a ascensão social e o estabelecimento na região eram mais antigos, remontando a já um, dois ou até três séculos (como em Évora, onde todas as famílias fidalgas que dominavam a Câmara lá estavam desde o século XIV). Seria impossível aplicar para a Bahia, portanto, as conclusões de Romero Magalhães para o Algarve, generalizáveis para todo o Reino: “muito pouca gente penetrou no círculo da gente nobre”66. Mesmo assim, a distinção, se é grande, não deixa de ser de grau, pois também em Portugal a ascensão à “nobreza da terra” era possível, ainda que muito mais lenta e penosa, assim como a incorporação de forasteiros (geralmente de áreas próximas, é verdade) entre a elite política67. Da mesma maneira, como a citação acima sugere, tais homens não buscavam um sucesso apenas individual, mas sim familiar: muitos, como veremos abaixo casaram-se em famílias já estabelecidas, e os que não o fizeram procuraram fundar suas próprias parentelas – embora nem todos tenham tido sucesso. O “empoderamento” das elites locais, embora conseguido aqui através da extração do sobretrabalho indígena e africano, não passou de uma expansão atlântica das possibilidades de ascensão encontradas já na Europa, especialmente no próspero século XVI, quando a partir de fortunas obtidas no comércio (inclusive por cristãos-novos) se consolidaram muitas famílias de elite – as quais, depois, fizeram questão de esquecer essas manchas, investindo em propriedades rurais, morgadios e honrarias. Assim como no Velho Mundo, o enriquecimento de poucos na América foi possível através da exploração de muitos – mas numa escala ainda maior, em razão da presença da escravidão, como já havia notado Delumeau: “tanto os antigos senhores como os novos-ricos foram ferozes para com os humildes. Essa dureza é, evidentemente, especialmente visível nas fronteiras da civilização ocidental: além-Elba ou na América”. Entretanto, se as elites europeias tendem a cerrar as portas a partir do final dos quinhentos, época de múltiplas crises68, tal estratégia é mais difícil em sociedades novas, como as que estavam a se formar na América. 66

MAGALHÃES, Joaquim Romero. O Algarve Económico, 1600-1773. Lisboa: Estampa, 1993 [1988], p. 329. SILVA, O Porto, vol. I, pp. 428-30; FARRICA, Fátima. Poder sobre as periferias: a Casa de Bragança e o governo das terras no Alentejo (1640-1668). Lisboa: Colibri, 2011, pp. 87-8; PARDAL, Rute. As elites de Évora ao tempo da dominação filipina: estratégias de controlo do poder local (1580-1640). Lisboa: Colibri, 2007, pp. 111-24 e, principalmente, o detalhado estudo de SOARES, Sérgio Cunha. O Município de Coimbra da Restauração ao Pombalismo. Poder e poderosos na Idade Moderna. Coimbra: Centro de História da Sociedade e da Cultura, 2002, pp. 5-136. Para o período posterior, cf. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Elites locais e mobilidade social em Portugal nos finais do Antigo Regime” [1998] in: id. Elites e Poder: Entre o Antigo Regime e o Liberalismo. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2003, pp. 70-1. É possível que em outras monarquias a mobilidade fosse maior, mas penso ser mais provável que os estudos portugueses ainda não tenham atentado o suficiente para este ponto. Uma síntese classificou as elites municipais francesas (para citar apenas um exemplo) como “uma classe política aberta em recomposição regular, onde os novos ricos substituíam as famílias antigas”: SAUPIN, Guy. Les villes en France à l’époque moderne (XVIe-XVIIIe siècles). Paris: Belin, 2002, p. 236. 68 DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento (trad.). Lisboa: Estampa, 1994 [1964], p. 284. Para uma síntese mais recente, cf. KAMEN, Henry. Early Modern European Society. Londres: Routledge, 2000, pp. 97-119. Para um caso específico em Portugal, no qual uma oligarquia mercantil se aristocratizou e fechou fileiras ao longo 67

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Uma barreira porosa: a pureza de sangue Essa abertura, porém, possuía limites. Cristãos-novos notórios, ainda que estabelecidos na Bahia há décadas, encontravam uma porta cerrada na entrada da Câmara – mesmo que pudessem intervir na política por outras vias, como o grande negociante e senhor de três engenhos lisboeta Diogo Lopes de Ulhoa (c. 1584-1688), que primeiro se destacou como secretário informal do governador Diogo Luiz de Oliveira. Seu poder era tal que o Vigário Manuel Temudo Barata, em rancorosa denúncia de 1632, chega a dizer que era “o mimoso do governador, seu secretário, seu conselheiro e que lhe assiste a todo seu governo”, e por isso “lhe chamam o Conde Duque [referência a Olivares, então valido de Felipe IV], e é público e notório que ele lhe vê as cartas del Rei, e tudo, e que o dito Diogo Lopes lhe faz as respostas”69. Depois, sua influência só fez crescer e se expandir, recebendo promessa de amplas mercês do Conde da Torre e aparecendo frequentemente nas discussões na Câmara como representante dos negociantes e um dos homens de maior destaque na cidade. Em 1655, quando estava de novo na Europa, chegou a ser considerado pelo Conselho de Estado para ajudar o Mestre de Campo General Francisco Barreto a reorganizar o governo de Pernambuco após a restauração, mas acabou por prestar grandes serviços diplomáticos na obtenção da paz com as Províncias Unidas. Foi agraciado com a posição de “informador-geral do Brasil”, uma espécie de consultor ad hoc, mas não parece ter exercido este posto por muito tempo. Obteve ainda o ofício de provedormor da fazenda (o segundo mais importante do Estado do Brasil, atrás somente do governadorgeral, segundo o Conselho Ultramarino) para si e depois para seu filho Antônio, assim como o foro de fidalgo e o hábito de cavaleiro da Ordem de Cristo (que pôde ostentar graças à dispensa papal de sua impureza). Mesmo largamente denunciado por judaizar e dizer “mal do procedimento do Santo Ofício”, jamais foi processado – feito que vários de seus parentes, moradores na Corte, não conseguiram emular. Entretanto, nem Diogo nem seu filho Antônio conseguiram penetrar nas tradicionais famílias baianas – se é que tentaram. O máximo que conseguiram foram breves (e equivocadas) menções no Catálogo Genealógico, escrito já muito perto do fim da distinção entre cristãos-novos e velhos70.

do século XVI, cf. BRITO, Pedro de. “The stillbirth of a Portuguese Bourgeoisie: leading families of Porto (15001580)”. Mediterranean Studies, vol. 5, 1995, pp. 7-29 e BARROS, Amândio. “Oligarquia política e elite económica no Porto dos séculos XV e XVI” in: Estudos em homenagem ao Professor Doutor José Amadeu Coelho Dias. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006, pp. 47-69. Processo similar, ainda que em menor escala, parece ter ocorrido em Viana, com a ampliação da navegação marítima em seu porto: MOREIRA, Manuel Fernandes. O município e os forais de Viana do Castelo. Viana: Câmara Municipal, 1986, p. 27. 69 IAN/TT, Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor, Livro 15, fls. 45 e 50v-51. 70 IAN/TT, HOC, Letra D, mç. 11, n. 4; L. 18, f. 44v-45; CG, vol. I, pp. 292-3 e 303-4 e vol. II, p. 405; NOVINSKY, Cristãos-novos, pp. 76, 80-1 e id., Gabinete de Investigação, p. 32; AC, vol. I, pp. 406-8; vol. II, pp. 73, 136, 183 e 192-3; RAU, Virgínia & SILVA, Maria Fernanda Gomes da. Os manuscritos do arquivo da Casa de

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A resiliência contra as denúncias inquisitoriais não era uma especificidade dessa família: ao longo de todo o século nenhum membro da elite política baiana foi processado pela inquisição, apesar de as denúncias terem atingido alguns deles, e de outros serem descendentes de processados na visitação de 1591-3. O supracitado Antônio de Castanheira foi uma exceção, mas mesmo este foi capturado nas malhas do Santo Ofício quase duas décadas antes de exercer um cargo na Câmara, tendo chegado havia pouco tempo do Reino – e, de qualquer maneira, livrou-se apenas com uma repreensão. Nem parentes dos pró-homens baianos foram incomodados pela Inquisição no século XVII, e mesmo no XVIII71. A outra exceção confirma a regra, em razão de sua excepcionalidade: Agostinho Caldeira Pimentel, cônego prebendado da Sé de Évora, filho do poderoso senhor de engenho Antônio da Silva Pimentel, fidalgo, alcaide-mor, juiz ordinário em 1635 e Provedor da Misericórdia em 1653. Seus dois irmãos mantiveram a preeminência da família, sendo vereadores, juízes ordinários e provedores da Misericórdia (e ao menos um deles cavaleiro da Ordem de Cristo, apesar da dúvida sobre a naturalidade de seu avô paterno, Pedro Garcia, do qual já falaremos)72. Agostinho fora para Coimbra mas, como confessa ao inquisidor, “não se aplicou ao estudo” e largou o curso inconcluso. De lá, encaminhou-se a Roma numa nau inglesa, trazendo uma italiana (D. Catarina Matthei) com a qual se amancebou e teve filhos, e um dos rebentos foi Antônio da Silva Caldeira Pimentel, que partiu para a Índia em 1700, foi governador de São Paulo (1727-32), conselheiro do rei e “muito curioso do estudo genealógico, em que trabalha há muitos anos”73. Em Évora, onde Agostinho se estabeleceu definitivamente no início da década de 1670, provou-se “de larga consciência e fala com soltura nas matérias tocantes à nossa sagrada religião, que é de ruins costumes, e inclinado ao mal, em tanto que muitas pessoas pelo não ouvirem fogem da sua conversação, e outros pelo seu modo de vida lhe chamam Martinho Lutero”. Foi denunciado por dizer que “os ofícios que fazem pelos defuntos fora invenção dos clérigos e frades para ganharem dinheiro”, chamar sua mula “meu anjo” e, principalmente, afirmar que “o governo político de meu amigo Martinho Lutero é em algumas coisas muito bom, provera a Cristo que ele se guardasse hoje”. Agostinho não percebera que estava na sede de um tribunal inquisitorial e não podia falar com a liberdade que gozava na Bahia. Mesmo Cadaval respeitantes ao Brasil. Coimbra: Universidade, 1955, vol. I, pp. 157-9 e 235; CCT, vol. I, pp. 250-4, vol. II, p. 198 e vol. III, p. 375; AHU, Bahia, LF, cx. 14, doc. 1699 e cx. 22, doc. 2518. 71 SMITH, The mercantile class, p. 255; SEVERS, Suzana. Além da Exclusão: convivência entre cristãos-novos e cristãos-velhos na Bahia setecentista. Tese de Doutorado: São Paulo, PPGHS/USP, 2002. 72 IAN/TT, HOC, Letra P, mç. 11, n. 118; CG, vol. I, p. 206. 73 SOUSA, D. António Caetano de. História Genealógica da Casa Real Portugueza. Lisboa: Régia Officina Sylviana, 1741, tomo VIII, “Advertencias e addicções”, p. 25 e IAN/TT, RGM, D. João V, Livro 18, f. 158.

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assim, o fato de ser cristão-velho e de as testemunhas considerarem que sempre falava jocosamente o salvou de punições mais duras, escapando – como Castanheira – apenas com uma admoestação74. Esse processo é um indício do que podia ser discutido na alta sociedade baiana, mas passava ao largo da vigilância inquisitorial (e, portanto, de nossos olhos) – assim como sinal de uma certa prepotência açucarocrática, confiante em sua virtual invulnerabilidade. Mal sabiam os inquisidores eborenses, porém, que o avô materno de nosso blasfemador era o riquíssimo comerciante Pedro Garcia, natural de São Miguel e proprietário de quatro engenhos, repetidamente denunciado na Visitação de 1618 por atos de sodomia com seus escravos mulatos. Mais importante, o pai de Garcia era um cristão-novo, o que reforça a ideia de que na maioria dos casos bastava uma geração para apagar a mancha da cristã-novice75. Quase metade dos cristãos-novos estava casada com cristãos-velhos quando chegou o visitador em 1591, continuando um processo que também fora intenso no Reino, especialmente até a década de 1560, antes da adoção dos estatutos de pureza de sangue76. Assim, a integração entre “puros” e “impuros” no meio século de ocupação inicial impossibilitava a exclusão total dos cristãos-novos da elite governante local, já que muitos de seus membros ilustres contavam com ascendentes marranos (ou infamados como tal): ao menos 27 membros (8%) do nosso grupo estavam nessa situação, algo que seus pares geralmente não desconheciam. É provável que os cristãos-novos estivessem mais inseridos no poder local do que no Reino, mas a falta de dados impede uma comparação adequada. Assim, quando se “abriu o judaísmo” e a Inquisição entrou no Brasil77, não era mais possível reverter os efeitos de quarenta anos de convivência. Mesmo depois, a impureza continuava a se alastrar, porque até os cristãos-novos mais notórios, amplamente conhecidos como judaizantes, podiam se inserir através de seus filhos. O 74

IAN/TT, TSO, Inquisição de Évora, processo 5040, ênfases minhas. Sobre proposições heréticas no Brasil seiscentista, cf. SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico (trad.). Bauru/São Paulo: EDUSC/Companhia das Letras, 2009 [2008], pp. 269-312. 75 “Livro das Denunciações”, pp. 111-4. Cf. também AHU, Bahia, LF, cx. 2, doc. 246; SMITH, The mercantile class, p. 336. 76 MAIA, Ângela Vieira. À Sombra do Medo: cristãos-velhos e cristãos-novos nas capitanias do açúcar. Rio de Janeiro: Oficina Cadernos de Poesia, 1995, pp. 111-20 e p. 244; OLIVAL, Fernanda. “Juristas e mercadores à conquista das honras: quatro processos de habilitação quinhentistas”. Revista de História Económica e Social, n. 4, 2ª série, 2002, pp. 7-53; id. “A investigação sobre a mobilidade social dos cristãos-novos no Portugal Moderno: notas de balanço” in: BARROS, Maria Filomena & HINOJOSA MONTALVO, José (eds.). Minorias étnicoreligiosas na Península Ibérica: período medieval e moderno. Lisboa: Colibri, 2008, pp. 397-409; MARCOCCI, Giuseppe & PAIVA, José Pedro. História da Inquisição Portuguesa (1536-1821). Lisboa: Esfera dos Livros, 2013, pp. 49-76 77 O paralelo aqui é com o clássico estudo de MAGALHÃES, O Algarve, pp. 363-73. Ver, de qualquer maneira, RODRIGUES, Poder municipal, pp. 84-5 e 141-6, que os apresenta tentativamente como sendo não muito numerosos e restritos basicamente a uma família, descendente de um mercador cristão-novo. Eles parecem ter sido muito mais presentes nas maiores cidades castelhanas, como Toledo: ARANDA PÉREZ, Poder y poderes, p. 258 e SORIA MESA, Enrique. “Los estatutos municipales de limpeza de sangre en la Castilla Moderna. Una revisión crítica”. Mediterranea, ano X, n. 27, 2013, pp. 9-36. É possível que a diferença ocorra em razão da ação muito mais decisiva da Inquisição lusitana contra os cristãos-novos.

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exemplo maior é D. Guiomar Ximenes, filha do supracitado Mateus Lopes Franco, cujo dote foi fundamental para catapultar seu marido Antônio Guedes de Brito à absoluta preeminência local. Em teoria, esse casamento deveria ter causado a exclusão de Guedes de Brito da Misericórdia, mas mesmo assim ele foi eleito provedor três vezes. Sua riqueza e poder lhe permitiram passar incólume, mas outros, menos poderosos, não tiveram a mesma sorte: o senhor de engenho baiano, capitão de infantaria, cavaleiro da Ordem de Santiago e procurador da Câmara em 1683 Antônio de Brito de Sousa foi expulso da Misericórdia exatamente por ter se casado com uma cristã-nova – para o que não deve ser irrelevante o fato do avô de Brito de Sousa ter sido carpinteiro da Ribeira das Naus da Bahia, transformando-o num dos raros arrivistas cujo percurso ascensional em três gerações fez-se integralmente no Brasil78. Rejeição similar pode ter ocorrido com os filhos do hidalgo mexicano Pedro Árias de Aguirre que, indo parar em Salvador no início da Monarquia Dual, casou-se com uma cristã-nova denunciada à Inquisição, cuja mãe havia sido processada na visitação de 1591-3. Se ele ainda foi vereador em 1630, seus filhos (mesmo que tentassem posar de cristãos-velhos) jamais exerceram posições de muito destaque, e um dele chegou a ser reprovado nas inquirições para se tornar cavaleiro de Santiago em razão da impureza materna79. Vários procuraram apagar suas manchas através da obtenção de honrarias régias. O tio de Agostinho Caldeira Pimentel, Francisco Gil de Araújo, “dos moradores mais ricos e afazendados dessa capitania” em 1675, foi um desses. Primeiro cavaleiro de Avis, depois donatário da Capitania do Espírito Santo (comprada pela elevada quantia de 40 mil cruzados), fidalgo da casa real e, por último, comendador da Ordem de Cristo, passou ileso por duas habilitações ao esconder a naturalidade do avô paterno, cristão-novo80. Outros não tinham o que temer, como João Peixoto Viegas e Rui Carvalho Pinheiro, denunciados como judaizantes na “Grande Inquirição” de 1646 (uma longa lista de denúncias à Inquisição) mas que logo depois se tornaram, respectivamente, familiar do Santo Ofício e cavaleiro da Ordem de Cristo81.

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SMITH, p. 334; IAN/TT, HOS, Letra A, mç. 6, n. 30; COS, L. 18, fls. 528-528v; CG, vol. II, pp. 661-2; DH, vol. 86, p. 236; Patriarcado, p. 409; Irmãos. 79 KRAUSE, Em Busca da Honra, pp. 117-9; IAN/TT, TSO, IL, processos 1273 e 1273-1. Seus primos do Sul (descendentes do irmão de Pedro) tiveram mais sucesso no Rio e São Paulo até o setecentos, onde pertenceram às principais famílias: FRAGOSO, João. À Espera das Frotas: micro-história tapuia e a nobreza principal da terra (Rio de Janeiro, c. 1600 – c. 1750). Tese de Titular. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2005, pp. 34, 47, 158, 182, 186, 188, 193, 198, 205, 221, 240, 249 e 252. 80 AHU, Bahia, LF, cx. 23, doc. 2740 (citação); IAN/TT, HOA, Letra F, mç. 1, n. 10; HOC, Letra F, mç. 34, n. 165; COA, L. 14, fls. 325-326v; CG, vol. I, pp. 172, 194-5 e 198; KRAUSE, Em busca da honra, pp. 209-10. Gregório de Matos o cita em curiosa passagem satírica: “Quem cá se quer meter a ser sisudo, um Gil nunca lhe falta que o persiga; e é mais aperreado que um cornudo”. 81 NOVINSKY, Cristãos novos na Bahia, pp. 129-40 e 181-2; IAN/TT, HOC, Letra R, mç. 1, n. 86; COC, Livro 41, fls. 155-156; SMITH, The mercantile class, pp. 297-314; TORRES, José Veiga. Limpeza de Geração: para o

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O mais interessante, porém, é o caso daqueles que, mesmo claramente identificados como cristãos-novos (mas não judaizantes) continuaram a fazer parte da elite, e inclusive de instituições vedadas a eles – o que inclusive ocasionou uma denúncia ao Santo Ofício em 1648, na qual Frei Gabriel do Espírito Santo afirma que cristãos-novos notórios eram admitidos na Misericórdia e nas Ordens Terceiras de São Francisco e do Carmo, fingindo “serem cristãosvelhos, negando para isso seus pais, (...) do que resulta fama que eles não tratam daquelas irmandades mais que para se juntarem e com esse pretexto fazerem suas sinagogas”82. O mestre de campo e senhor de engenho Nicolau Aranha Pacheco (c. 1612-70), natural de Arcos de Valdevez e membro de uma família de notáveis locais, destacou-se na luta contra os neerlandeses e recebeu o hábito de Cristo em 1639, tornando-se mestre de campo em 1648, com apenas 36 anos de idade. Aproveitando o poder e prestígio dessa posição, casou-se com a filha do riquíssimo Francisco Fernandes Dosim, que lhe trouxe um imenso dote de 30 mil cruzados e mais 20 mil cruzados adiantados da sua herança, utilizados para comprar um engenho83. Entre 1643 e 1660 Pacheco lutou sem sucesso para concretizar a mercê, mas esbarrou no fato de que “toda a gente que há nesta vila [de Arcos de Valdevez] sabe e é público nela que o pai do justificante e seu avô paterno tiveram fama de terem mistura de nação hebreia”84. Sendo o caso, é impossível que seus diversos conterrâneos moradores em Salvador não soubessem dessa nódoa. Mesmo assim, foi eleito para a Mesa Diretora da Santa Casa em 1667 e prior da Ordem 3ª de São Francisco em 1652 e 1669. Já seu filho Pedro Fernandes Aranha – o qual, através de manobras contábeis (pois aparece no inventário como credor de quase 15 contos da mãe) herdou o grosso do amplo patrimônio familiar – foi, por duas vezes, vereador e provedor da Misericórdia, completando a ascensão iniciada pelo pai85. Outro interessante exemplo é do poeta, fidalgo, senhor de engenho e prestamista eventual Manuel Botelho de Oliveira (1636-1711), reprovado em sua tentativa de se tornar familiar do Santo Ofício em 1701 por ser cristão-novo por parte de sua mãe (também natural de Arcos de Valdevez), assim como por ter se casado duas vezes com mulheres notoriamente cristã-novas. Mesmo assim, o poeta não desistiu de provar sua limpeza, persistindo na tentativa estudo da burguesia vianense no Antigo Regime (séculos XVII e XVIII) através das inquirições do Santo Ofício. Viana do Castelo: Câmara Municipal, 2008, pp. 164-6. 82 IAN/TT, Cadernos do Promotor, 32, fls. 236-239. Sobre esse personagem e suas acusações, cf. MAGALHÃES, Pablo. Equus Rusus: a Igreja Católica e as Guerras Neerlandesas na Bahia (1624-1654). Tese de Doutorado. Salvador: PPGH/UFBA, 2010, vol. I, pp. 395-7. 83 ASCMS, Livro 41, fl. 205v. 84 IAN/TT, HOC, Letra N, mç. 1, n. 16. 85 KRAUSE, Em Busca da Honra, pp. 202-9; veja-se o inventário D. Francisca de Sande, que faleceu rica, com patrimônio de quase 50 contos de réis (e cerca de 20 contos em dívidas, sem contar as devidas aos filhos), como se vê no inventário de 1702 publicado em MATTOS, Waldemar. D. Francisca de Sande: a primeira enfermeira do Brasil. Salvador: Imprensa Oficial, 1949, pp. 30-51.

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de receber o hábito de Cristo que havia pedido em 1696. Foi, porém, reprovado novamente e, embora não possuamos as inquirições, o recurso que impetrou menciona a“opinião que algumas pessoas fizeram na Bahia contra o suplicante”, indicando ser sua infâmia conhecida em Salvador – o que acontecia desde a adolescência, porque em 1651 seu irmão foi referido como “meio cristão-novo por parte de sua mãe” pelo doutor Francisco Vaz Cabral. Seus filhos, porém, além de herdarem seu foro conseguiram, alguns anos depois, tornar-se cavaleiros. Mais interessante, porém, é o fato de que a mancha em seu sangue não o impediu de servir como vereador em 1684 e, mesmo depois de diversas inquirições desastrosas, novamente em 171086. Já o sargento-mor de ordenança Marcos de Bitencourt, senhor de engenho e eleito como vereador e juiz ordinário em 1669, 1673 e 1684, chegou a ser denunciado como judaizante após seu falecimento, em 1711, por um homem de negócio de negócios português que havia passado um breve período na Bahia, Miguel Teles da Costa. Seu avô materno, Francisco Lopes Girão, foi denunciado em 1618, mas não creio que Teles da Costa soubesse disso87. É possível, portanto, que Marcos e seus familiares denunciados realmente fossem judaizantes (embora nenhum deles tenha sido processado), e até, talvez, que isso fosse um segredo de Polichinelo. Se nem ele nem nenhum de seus parentes conseguiram servir na Misericórdia, tendo um de seus genros (Luiz de Melo de Vasconcelos, quatro vezes vereador e juiz ordinário entre 1670 e 1707) inclusive sido expulso por haver se casado com a filha do sargento-mor, tanto Marcos quanto seu tio, o capitão Manuel Girão, serviram na Câmara, e casaram com famílias de destaque: Marcos com uma filha do senhor de engenho Mateus Pereira de Menezes (tornando-se tio do futuro alcaide-mor, Francisco Teles de Menezes, também infamado de cristão-novo), e Manuel com uma filha de Duarte Muniz Barreto, também alcaide-mor88. Como em Pernambuco (onde quase dois terços dos cristãos-novos estava casada com cristãos-velhos em 1593)89, a elite baiana incorporava um número significativo de descendentes de cristãos-novos, mas também excluía outros. É muito difícil estimar sua participação na população branca, mas considero provável que os infamados não estivessem significativamente sub ou sobrerrepresentados entre a elite política. Ao mesmo tempo, não constituíam uma comunidade fechada, e de modo geral continuaram a unir-se aos cristãos-velhos, como faziam 86

IAN/TT, RGM, D. Pedro II, Liv. 3, fl. 339 e TSO, Conselho Geral, Habilitandos Recusados, Livro 36, fl. 156v (agradeço a Daniela Pereira Bonfim por esse documento); AHU, Cód. 86, fls. 250-251; RODRIGUES-MOURA, Enrique. “El abogado y poeta Manoel Botelho de Oliveira (1636-1711): ‘infamado de cristão-novo’”. Hispania Judaica Bulletin, vol. 6, 2008, pp. 105-29, primeira citação à p. 128, anexo documental; IAN/TT, Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor 33, fls. 445v (segunda citação) e 449. 87 NOVINSKY (ed.), Gabinete, p. 199 e “Livro das Denunciações”, p. 182. 88 CG, vol. I, pp. 216 e 230, vol. II, pp. 498-500; Irmãos, p. 269. 89 MAIA, À Sombra, p. 244 e MELLO, Evaldo Cabral de. O Nome e o Sangue: uma parábola familiar no Pernambuco colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 [1989], 3ª ed. rev., edição de bolso.

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desde o século XVI. A riqueza era um fator fundamental para possibilitar essa integração, mas, como vimos no caso de Mateus Lopes Franco, insuficiente. Mesmo o poder político era importante, mas incapaz de ultrapassar todos os obstáculos, como indicam os Lopes Ulhoa, que dependeram das mercês régias e da relação com os governadores-gerais para se destacarem localmente. Elemento fundamental para adentrar nas principais famílias era escapar da atenção direta do Santo Ofício, pois “ter passado pela Inquisição representava algo mais (...) para a sociedade da época. Geralmente transformava um indivíduo com sangue cristão-novo num cripto-judaizante”90. Assim, o que diferenciava os cristãos-novos de prol que conseguiram entrar no grupo dos que não o fizeram era não ter sido manchado pelas perseguições do tribunal da fé, nem em si nem em seus parentes próximos. Esse apagar silencioso das origens impuras de parte da elite deve ter sido ainda mais fácil em áreas menos afetadas pela ação do Santo Ofício, como o Rio de Janeiro, que praticamente intocado pela Inquisição até o início do setecentos. Nesse período, cerca de 20% dos engenhos fluminenses estava sob controle de cristãos-novos, e em meados do XVII os conversos destacavam-se entre os principais comerciantes da cidade. Assim como em São Paulo, tem-se notícia de vários que ocuparam cargos na Câmara, apesar das restrições legais (inclusive um alvará régio especificamente voltado para a urbe carioca em 1643, provavelmente em razão de disputas e reclamações locais), mas é impossível estabelecer comparações precisas sem análises mais sistemáticas. Os marranos fluminenses, porém, parecem ter tido uma maior tendência à endogamia (talvez por se crerem mais protegidos da ação do Santo Ofício), o que provavelmente dificultou sua integração na elite na mesma escala das capitanias do Norte91.

Família e Poder A abertura da elite não significava, porém, que os forasteiros substituíssem a elite preexistente, e muito menos que houvesse uma oposição entre naturais da Bahia e do Reino. Para além dos laços familiares que atraíam os imigrantes para o Novo Mundo, estabeleciam-se múltiplas relações com grupos aqui residentes. Uma das mais importantes era o casamento,

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OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno: Honra, Mercê e Venalidade em Portugal (16411789). Lisboa: Estar, 2001, p. 292. 91 SILVA, Lina Gorenstein. Heréticos e Impuros: a Inquisição e os cristãos-novos no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1995; id. A Inquisição contra as mulheres: Rio de Janeiro, séculos XVII e XVIII. São Paulo: Humanitas, 2005, pp. 58-109 e SALVADOR, José Gonçalves. Os cristãosnovos: povoamento e conquista do solo brasileiro (1530-1680). São Paulo: Pioneira/EDUSP, 1976, pp. 19-67 e 124-209 (o qual, apesar do amplo aporte documental, deve ser lido com muito cuidado, pois o autor classifica as pessoas como cristãos-novos com ainda mais facilidade que os inquisidores e murmuradores da época moderna). Mais equilibrada é a síntese de ABREU, Maurício de Almeida. Geografia Histórica do Rio de Janeiro (15021700). Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson, 2011, vol. I, pp. 396-419.

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como já havia percebido Gregório de Matos em nossa epígrafe, e nos é sugerido por diversos casos acima. Geralmente ascendia-se tarde às posições de comando da República, indicando que esses cargos não eram somente atribuídos em razão da linhagem, mas resultado do reconhecimento público de méritos individuais: em 97 casos em que se conhece o ano de nascimento, a idade mediana de ocupação do primeiro cargo eletivo na República é de 47 anos92. Assim, muitos de nossos biografados já estavam casados quando ocuparam esses postos. Entretanto, aqui cabe uma ressalva: uma parcela razoável pode ter permanecido solteira, já que não possuímos informações sobre os casamentos de 114 dos nossos 350 homens. Se é certo que alguns realmente eram celibatários, como Miguel Gomes, filho do rico mestre de campo Pedro Gomes, que “faleceu solteiro”93 (talvez por morrido relativamente novo, com apenas 40 anos), é provável que a maior parte deles tenha casado, mas com mulheres que não eram ilustres o suficiente para permanecer na memória da posteridade – já que nossa principal fonte, ainda que não única, é o Catálogo Genealógico de Jaboatão, escrito muito depois desses enlaces. Ao menos 120 forasteiros e homens de naturalidade desconhecida casaram na Bahia e sabemos o local de nascimento de 116 esposas – 112 baianas, duas pernambucanas (casadas com homens que lá haviam vivido antes de se estabelecerem na Bahia), uma lisboeta e uma vianesa. Mesmo lembrando que esses dados são sempre incompletos, a porcentagem de 96,5% das esposas naturais da Bahia é perfeitamente crível, considerando que seus maridos vieram novos para o Brasil e aqui viveram, com raras exceções, até o fim de seus dias. Entretanto, só podemos entender o significado desses casamentos após conhecermos as famílias da capitania. O procedimento que escolhi baseia-se em dividir os membros da elite em grandes famílias e examinar a incorporação de forasteiros em suas redes familiares, principalmente através dos casamentos, que, em princípio, deveriam atar os genros à família de suas esposas. É de se notar que no último quartel do século essa divisão da nobreza baiana em famílias já fazia parte do discurso político, como quando os governadores provisórios mencionam em 1676 os “vários requerimentos que a família dos Aragões, e Garcias, e a dos Brandões, e Rebelos, têm feito a Vossa Alteza acerca das demarcações das suas terras” 94. No mundo ibérico, o estatuto social era transmitido tanto pela via paterna quanto pela materna, de modo que seria possível defender concepções de parentesco bilaterais. Entretanto, os sobrenomes predominantes na linhagem quase sempre eram do homem, mesmo quando este

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Próxima às médias encontradas para o Porto e Évora em SILVA, O Porto, pp. 437-8 e 479-80. CG, vol. II, p. 570. 94 AUC, CCA, Livro Governo da Baía, 1648-1701, VI-III-1-1-6, fls. 27-28; para carta da Câmara no mesmo sentido, veja-se fls. 28-29. A resposta régia reproduz esses termos: fls. 25v-26. 93

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era um forasteiro que casara na terra. Mais ainda, é difícil enxergar qualquer tipo de ligação significativa entre parentelas que não compartilhavam mais do um distante parentesco pela via feminina – caso de todos aqueles que descendiam do supracitado “Adão de Massapê”, Caramuru. Assim, embora as estruturas de parentesco da elite baiana perfaçam um tema de importância fundamental a merecer uma investigação mais detalhada, penso que as famílias da elite baiana seiscentista podem ser caracterizadas como majoritariamente patrilineares e unidas pelos sobrenomes, como se verá dos estudos de caso que se seguem. Contei os mandatos de juiz ordinário, vereador e procurador da Câmara, assim como os de Provedor da Misericórdia, exercidos pelos membros de cada família95. Deve ser salientado, porém, os limites dessa abordagem: ela exigiu a construção de muitos troncos parentais (25, para ser mais preciso96) devido à fragmentação da elite política e deixou grande parcela de nossos homens na amorfa categoria de “família não-identificada” – isto é, sem relações de parentesco com as famílias mais destacadas da Bahia do período. Essa situação ocorre exatamente devido à abertura da elite baiana destacada acima. Avançando para o século XVIII, percebe-se que praticamente nenhuma das principais famílias nobres que dominaram a Câmara nessa centúria remonta à época de conquista. O principal grupo familiar identificado por Avanete Pereira Sousa97, os Rocha Pita, com 21 mandatos no setecentos, têm seu primeiro representante, o caminhense Sebastião da Rocha Pita (avô do historiador homônimo) em 1651, e só se consolida como força na política municipal com seu neto (eleito pela primeira vez em 1687) e a chegada de Antônio (vereador em 1689 e 1705, juiz ordinário em 1696) e Cristóvão (vereador em 1690), minhotos de Coura que, até onde consegui ir, não são parentes próximos dos dois Sebastiões. Já os Carvalho e Albuquerque (17 mandatos) tem sua origem no já mencionado cirurgião transformado em homem de negócio Domingos Pires de Carvalho, casado na Bahia com a filha de um alfaiate. Os Argolo Vargas Cirne de Menezes (com 14 mandatos, todos na segunda metade do século) ostentam um nome quinhentista, mas de uma família que não chegou sequer uma vez a posições de poder no seiscentos, e cujo maior feito no período foi oferecer noivas a cinco membros da elite, enquanto o Vargas Cirne foi trazido por um capitão de infantaria vianense transmutado em lavrador de

Inspirado em FRAGOSO, “Fidalgos e parentes de pretos”, pp. 54-68 e SOUSA, Avanete Pereira. A Bahia no Século XVIII: poder político local e atividades econômicas. São Paulo: Alameda, 2012, pp. 92-105 (embora a autora aparentemente tenha realizado essa divisão utilizando apenas os sobrenomes, o que não é confiável, pois tende a ignorar tanto membros da família com nomes distintos – algo usual no século XVII – quanto aqueles que se ligam a esses grupos através do casamento). 96 Consideravelmente mais que as 15 e 8 famílias fidalgas que dominavam, respectivamente, o Porto e Évora entre 1580 e 1640: SILVA, O Porto, p. 432 e PARDAL, As elites de Évora, p. 111. 97 SOUSA, A Bahia no século XVIII, p. 103. 95

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canas que se tornou vereador em 1669 e juiz ordinário em 1689. A família de origens mais antigas seria a quarta mais importante identificada pela autora, os D’Ávila e Aragão, cujo famoso primeiro sobrenome remonta à fundação de Salvador, enquanto o outro foi trazido da Madeira no final do quinhentos pelo capitão-mor e senhor de engenho Baltazar de Aragão de Sousa – parentelas que serão analisadas em maior detalhe abaixo. Poderíamos continuar, mas creio que essas quatro famílias, que juntas respondem por 39% dos cargos camarários no período, já são um bom indicador do caráter relativamente recente dessa elite.

Gráficos IV e V: Famílias na Câmara e na Misericórdia (% das eleições)

1614-60 16

21

51 12

Família não-identificada

Top 3

Top 4-11

Top 12-25

1661-1700 18 39 21

22

Família não-identificada

Top 3

Top 4-11

Top 12-25

Fonte: Base Elites Baianas Seiscentistas.

Voltemos, porém, ao século XVII. Os gráficos acima dividem em quatro grupos os homens eleitos na Câmara para exercerem os cargos de juiz ordinário, vereador e procurador, assim como os escolhidos como provedores da Misericórdia. Optei pelas eleições, e não pelos

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mandatos exercidos, pois dessa forma é possível captar com mais precisão o prestígio de cada linhagem. Os números representam o peso percentual de cada uma das categorias. Os quatro grupos utilizados foram os seguintes: as três famílias mais influentes nessas duas instituições (Muniz, Aragão e Araújo), que exerceram de 26 a 39 mandatos (top 3); as oito seguintes, com 13 a 19 mandatos (top 4-11); e as últimas 14, com até 12 mandatos (top 12-25). Há que reconhecer que essa divisão em três patamares é um tanto arbitrária, mas penso que é útil por denotar as diferenças entre as parentelas, em razão da clara preeminência de algumas. Por último, a categoria “família não-identificada”, cuja dominância reforça a impressão de abertura da elite baiana. Entretanto, sua diminuição é um indicador claro de uma consolidação familiar, pois a causa principal dessa mudança é o significativo avanço do supracitado trio de ferro das grandes famílias seiscentistas, que quase dobram sua participação relativa, passando de 12 para 22% do total de eleitos. Ora, essa proporção é notavelmente inferior à encontrada por João Fragoso para o Rio de Janeiro entre 1651-1700, onde só quatro famílias controlaram 53,7% dos cargos da Câmara98. Em 1661-1700, seria preciso reunir as nove principais famílias (as únicas eleitas nove ou mais vezes no período) para chegar a 44,1% dos cargos camarários, indicando também uma maior fragmentação da elite política baiana, muito menos capaz de monopolizar o poder municipal do que sua contraparte carioca. Na comparação, porém, com uma das Câmaras mais oligárquicas do Reino, Évora, Salvador não se sai tão mal: se na primeira oito famílias fidalgas estabelecidas na cidade até finais do século XIV representam 54,3% dos vereadores eleitos entre 1580-164099, as nove principais famílias baianas representam 38,1% dos vereadores e juízes ordinários em 1614-60 e 59,3% entre 1661-1700 – aproximando-se, portanto, do padrão eborense durante a Monarquia Dual. Os dados dos quais dispomos nem sempre são comparáveis, mas é possível que a Câmara do Rio de Janeiro tenha se tornado excepcionalmente oligarquizada ao longo do século XVII, especialmente em sua segunda metade, mais até do que cidades importantes no Reino. Apesar da inacreditável ausência de estudos detalhados sobre a atuação política da elite paulista, que persiste a despeito da abundância de fontes e historiadores dedicados à região, é quase certo que o poder local fosse ainda mais concentrado na vila de São Paulo, a se julgar pela famosa divisão da Câmara municipal entre Pires e Camargos (os quais ainda dominavam a Misericórdia)100.

FRAGOSO, “Fidalgos e parentes de pretos”, p. 59. PARDAL, As elites de Évora, p. 60. 100 Cf. MONTEIRO, John. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, pp. 200-2. 98 99

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Com apenas uma exceção (o homem de negócio madeirense e, depois, senhor de engenho Domingos Martins Pereira, que serviu como procurador em 1681, após ter se casado em 2 de outubro de 1677 com D. Ana Cavalcante de Albuquerque, mas recusou-se a ocupar o mesmo cargo em 1684101), nenhum dos procuradores eleitos pertencia às 25 principais famílias baianas102. Para esse cargo, portanto, como destacou o governador-geral Marquês das Minas em parecer de 4 de junho de 1685, “nunca nas eleições da Câmara daquela cidade se nomearam para procuradores dela pessoas de igual qualidade às dos outros oficiais, senão das de inferior esfera, e este estilo praticado desde seu princípio fizera estranhar a introdução de Cavaleiros do Hábito naquele lugar para que bastavam homens ordinários”103. Se homens como o senhor de engenho, cavaleiro de Cristo e capitão de ordenança Antônio Fernandes de Simas104, procurador em 1694 (mas também vereador em 1695), certamente objetariam a essa qualificação de “homens ordinários”, eram exceções. Só 12 (18%) dos 67 homens eleitos como procuradores no período conseguiram ascender a vereadores, de modo que o cargo parece ter sido antes uma forma de incorporar indivíduos fora do círculo das principais famílias locais ao corpo político sem, porém, aceitá-los plenamente, do que a principal via de entrada ao grupo d“as pessoas da primeira nobreza, que servem de juízes e vereadores” na Bahia, como D. Pedro II qualificou o topo da elite governante baiana em 1686, seguindo o parecer do Marquês das Minas105. Quando acontecia, a passagem podia demorar um bom tempo, e o sucesso econômico era fundamental, ainda que não suficiente: um exemplo era o militar minhoto Pedro Borges Pacheco, que após longos anos de serviço estabeleceu-se em Salvador, recusou uma fortaleza em Angola e conseguiu tornar-se procurador da Câmara em 1652. Depois, adquiriu três fazendas de cana, obteve grandes sesmarias no sertão, foi por duas vezes tesoureiro da Santa Casa de Misericórdia e uma vez ministro da Ordem 3ª de São Francisco e ocupou o cargo de tesoureiro-geral do Estado do Brasil (para além de ser nomeado sargento-mor de infantaria). Só depois dessa longa trajetória é que Pacheco foi eleito vereador em 1673, quando já era qualificado pelo desembargador sindicante como “homem de cabedal, fazenda e fábrica para poder povoar algumas léguas de terra que se lhe podem dar”106. A maioria dos procuradores

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CG, vol. I, p. 123; KRAUSE, Em busca da honra, pp. 243-4. Situação similar pode ser encontrada em PARDAL, As elites de Évora, p. 63. 103 DH, vol. 89, p. 51 (ênfase minha). 104 AHU, cód. 85, fls. 193v-194; IAN/TT, COC, L. 69, fls. 469-469v. 105 DH, vol. 68, pp. 79-80 e AHMS, PR, vol. III, fls. 36v e 63-64. Para uma análise mais detalhada, cf. KRAUSE, Em Busca da Honra, pp. 245-6, mas também o próximo capítulo dessa tese. 106 AHU, Bahia, LF, cx. 23, doc. 2740 (citação); cód. 80, fls. 377-378, cód. 81, fls. 103v-104; DH, vol. 24, pp. 115-9; “Liberdade e limitação”, p. 498; Irmãos, pp. 275-6; JABOATÃO, Frei Antônio de Santa Maria. Novo Orbe Seráfico Brasílico, ou Chronica dos frades menores da Província do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Brasiliense de Maximiano Gomes Ribeiro, 1859 [1761], vol. I, p. 311. 102

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que conseguiu subir o degrau para vereadores, porém, era composta por negociantes bemsucedidos, como Domingos Escórcio, João de Matos Aranha e Manuel de Oliveira Porto. Assim, se a clivagem entre os procuradores e os demais camaristas é usual no Reino, somente em algumas municipalidades, como o Porto e Ponta Delgada, é possível identificar a passagem de procuradores para o primeiro estrato da governança local 107 – resultado talvez de um maior dinamismo econômico, graças à importância de seu comércio marítimo108. Em certas vilas portuguesas, o enquistamento oligárquico chega ao ponto de o vereador mais novo passar a ocupar o cargo de procurador no ano seguinte, obstaculizando ainda mais a entrada de novos membros na elite política109. Embora por volta de 1620 a Câmara soteropolitana tenha requerido – sem sucesso – este privilégio, em finais do século pede exatamente o oposto, isto é, que os procuradores sirvam subsequentemente como vereadores, justamente no único ano em que um adventício ligado pelo casamento a uma das principais famílias locais, o supracitado Domingos Martins Pereira, ocupa o cargo110. O objetivo deve ter sido o de aumentar a atratividade do cargo de procurador, de modo a aliciar pessoas de maior qualidade, homogeneizando a participação na Câmara sem, porém, excluir-se os forasteiros. Como o Rei não concedeu o pedido, manteve-se a diferença social que separava os procuradores dos vereadores e juiz ordinários. Algo similar ocorreria, ainda que mais tardiamente, em Pernambuco, onde a partir de finais de seiscentos os mascates ocupavam o cargo de procurador e, mais raramente, de vereador mais novo. Em razão da oposição entre “loja” e “engenho”, porém, jamais alcançaram os postos mais importantes de juiz ordinário e vereador mais velho111. Em Salvador, em grande medida a posição de procurador foi monopolizada pelos forasteiros, porque só 4 dos 72 eleitos como procuradores haviam nascido na Bahia – e nenhum, repito, entre as principais famílias da capitania.

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SILVA, O Porto, p. 436; RODRIGUES, Poder Municipal, p. 76; PARDAL, As elites de Évora, p. 110; SOARES, O Município de Coimbra, vol. II, p. 113 e MONTEIRO, “Elites locais”, p. 71. 108 BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo (trad.). São Paulo: Martins Fontes, 1996 [1978], vol. II: Os jogos de trocas, p. 421, citando Hermann Kellebenz. 109 MAGALHÃES, O Algarve, p. 327 e CCLP, vol. 9, pp. 315 e vol. 10, pp. 47 e 236. 110 IAN/TT, Desembargo do Paço, Repartição da Justiça e Despacho da Mesa, Livro 7, fls. 126-126v; CS, vol. II, pp. 98-9 e AHMS, Provisões Reais, vol. III, 21v. 111 MELLO, A Fronda, pp. 189-90. Para um estudo de caso, veja-se SOUZA, George Cabral de. Tratos e Mofatras: o grupo mercantil do Recife colonial (c. 1654 – c. 1759). Recife: EDUFPE, 2012, pp. 269-73.

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Gráficos VI e VII: Famílias na Câmara (sem contar os procuradores) e na Misericórdia (% das eleições)

1614-60 - sem Procuradores

23

30

31

Família não-identificada

17

Top 3

Top 4-11

Top 12-25

1661-1700 - sem Procuradores

18

24

30 28

Família não-identificada

Top 3

Top 4-11

Top 12-25

Fonte: Base Elites Baianas Seiscentistas.

Já no primeiro período os “família não-identificada” perdem seu posto de maior grupo, sendo ligeiramente ultrapassados pelo segundo patamar das famílias baianas. Mais do que isso, as 21 principais estirpes (pois quatro ainda não existiam entre 1614-60) representam 70% dos eleitos, demonstrando que, se há uma notável abertura, o controle dos cargos mais importantes está desde o início do século nas mãos dessas famílias de elite, mesmo que elas ainda estivessem em constituição – tratava-se da primeira ou, no máximo, a segunda geração a alcançar o poder local, e seus grupos parentais eram muito menos extensos do que viriam a ser no final do século. O maior fortalecimento dessas famílias, e especialmente das mais importantes, é novamente visível no gráfico VI, no qual as três mais importantes estirpes passam da última posição para

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a primeira, passando a responder por 30% dos eleitos, fechando-se em si, mesmo em um momento de significativo crescimento demográfico em Salvador112. A posição do grupo “família não-identificada” continua a ser, como vimos acima, inversamente proporcional, de modo que esse grupo passa a ser o menos importante dentre os quatro selecionados no gráfico. Assim, se em algum momento é possível dizer que o “fazer-se” da elite política baiana está terminado (o que não estou bem certo, já que depende de uma investigação mais sistemática sobre o século seguinte), isso ocorreria apenas nas últimas quatro décadas do seiscentos, mais de um século após a fundação de Salvador – exatamente no período em que se consolida o discurso que representa o grupo como uma “nobreza” local, como veremos no próximo capítulo. Se jamais se chegará perto a uma cristalização oligárquica similar à que está a ocorrer no Reino por esses anos, o fenômeno não deixa de ser o mesmo, oferecendo dos dois lados do Atlântico interlocutores em menor número para a Coroa portuguesa, facilitando a negociação e colaboração que caracterizaram essa relação (capítulos V-VII)113. Assim, se o primeiro século de existência da Bahia caracterizou-se por uma grande fragilidade das linhagens dominantes, a consolidação das principais famílias e os dados aportados por Avanete Pereira de Sousa sugerem uma maior estabilidade da nobreza baiana a partir de meados do século XVII, mantendo uma significativa capacidade de reprodução social até o século XIX, ainda que esse tema precise ser investigado mais profundamente no futuro114. Um sintoma da consolidação é a eleição de oficiais muito mais novos do que a média nas últimas décadas do século: Antônio Teles de Menezes tinha apenas 28 anos quando se tornou vereador em 1668, Sebastião da Rocha Pita 25 quando eleito em 1687, enquanto Francisco Muniz de Sousa foi empossado em 1690, com 28 anos. A família fornecia as credenciais necessárias para a ocupação desses postos, que passaram a ser, ao menos nesses casos, mais atribuídos do que conquistados – como parece ter ocorrido em muito maior escala com as capitanias de ordenança. Veja-se, como um caso extremo, a patente de capitão de Francisco Dias de Ávila, concedida quando este tinha apenas 24 anos, em razão dos “serviços que seu pai e avô fizeram a Sua Alteza, e ser o mesmo Distrito da Torre seu”115.

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Para uma comparação, veja-se PONCE LEIVA, Certezas, pp. 268-73, que demonstra que Quito oligarquizouse mais cedo, já em finais do XVI, mas que viu a entrada de mais homens novos não aparentados subir na segunda metade do XVII, em sentido oposto ao que ocorre em Salvador. 113 MAGALHÃES, O Algarve, p. 328. 114 SOUSA, A Bahia no século XVIII, pp. 92-105; veja-se também KENNEDY, John Norman. “Bahian Elites, 1750-1822”. HAHR, vol. 53, n. 3, 1973, pp. 415-39. Penso, assim, ser necessário matizar, assim, a percepção de uma instabilidade generalizada das elites americanas, defendida em RAMINELLI, Ronald. Nobrezas do Novo Mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2015, p. 59. 115 DH, vol. 12, pp. 240-1. Para um paralelo, cf. KULIKOFF, Allan. Tobacco and Slaves: the Development of the Southern Cultures in the Chesapeake, 1680-1800. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1986, p. 275.

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Também na década de 1660, o posto de coronel de ordenanças passou a ser concedido com maior frequência (capítulo VI). Se no início militares foram nomeados, como Ascenso da Silva e Baltazar dos Reis Barrenho, ambos já haviam sido vereadores, indicando sua inserção no grupo dominante. Outros dois coronéis desse ano, porém, pertenciam ao núcleo duro da elite: Lourenço Barbosa da França e Francisco Gil de Araújo. Essa é a tendência seguida ao longo de todo o século116. Praticamente todos os coronéis são senhores de engenho, inserindo-se nas principais famílias da capitania: Aragão (5 coronéis), Albuquerque (4), Muniz (3), Barbosa (2), Pimentel (2) e Araújo (1). No contexto de “militarização geral da sociedade”, identificado por Romero Magalhães, reforça-se o poder das elites locais, que podem através das ordenanças exercê-lo cotidianamente de forma mais permanente e mais próxima da população do que a Câmara, “escoltando a colheita até o porto, prendendo criminosos, recrutando soldados para a tropa paga na cidade, coletando impostos especiais, e patrulhando as rotas comerciais no interior”117. Afinal, se é camarista por alguns anos, mas oficial de ordenança por décadas: Sebastião da Rocha Pita foi vereador cinco vezes, mas coronel por 44 anos. O mesmo é válido para muitos outros membros das famílias tradicionais, especialmente nesse momento de consolidação que é a segunda metade do seiscentos. Desse modo, “os vereadores-capitães passam a ser as peças-mestras do edifício social, bem mais sentidos pelos povos do que qualquer outro poder ou senhorio”, no Algarve como na Bahia, sendo o controle desses postos um dos elementos constituintes das elites locais, como bem tem destacado João Fragoso118. A elevada porcentagem da categoria “família não-identificada” indica que o casamento não era uma via necessária para a entrada na elite política. Dos 151 homens de origem desconhecida e forasteiros eleitos como vereadores, juiz ordinários e provedores da Misericórdia, só 48 estavam indiscutivelmente ligados por laços de parentesco a grupos familiares de elite na Bahia. Outros 21 casaram-se com filhas de senhores de engenho, ricos negociantes ou oficiais régios, o que certamente deve ter contribuído para seu sucesso. Sobre os sogros de 27, porém, não termos informações, e dos últimos 55 sequer sabemos se casaram. É certo, porém, que aqueles reconhecidamente ligados à elite foram, em média, eleitos mais vezes: 1,92, em oposição a 1,46 daqueles com sogros desconhecidos ou que não eram socialmente destacados. Mesmo que seja difícil nos aprofundarmos na análise em razão das lacunas na base de dados, duas conclusões simples podem ser adiantadas: era possível adentrar

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Ver, dentre outros, DH, vol. 9, pp. 10-1 e vol. 31, pp. 400-5 e 414-6. FLORY, Bahian Society, pp. 134-5. 118 MAGALHÃES, O Algarve, pp. 338-9 (citação); FRAGOSO. “Nobreza principal”, p. 172. Esse é, porém, um tema que precisa ser explorado de forma mais sistemática no futuro, ao menos no tocante à Bahia. 117

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no grupo mesmo sem estabelecer laços parentais com as famílias estabelecidas, e até fazê-lo, por raro que fosse, nos níveis mais altos. João de Matos de Aguiar, Antônio Maciel Teixeira e Domingos Afonso Sertão foram todos provedores da Misericórdia, por exemplo, para o que não deve ter sido indiferente sua imensa riqueza e até, talvez, sua intensa atividade creditícia, que pode ter contribuído para que os membros da elite mantivessem boas relações com esses homens. Mesmo assim, o casamento provavelmente encurtava o caminho até o topo e facilitava que a presença no poder fosse mais que um evento único, transformando-se numa constante. É certo, porém, que mesmo os homens sem ligações de parentesco com as principais famílias estabeleceram outros laços com elas. O compadrio deve ter tido um papel relevante: no capítulo anterior mencionamos o caso de Estevão Gomes de Escobar, filho de um mercador de loja e casado com uma mulher que não pertencia a uma parentela de destaque. Entretanto, seu primeiro filho foi batizado em 1666 pelo senhor de engenho, fidalgo, comendador e capitão Felipe de Moura de Albuquerque, que havia sido eleito juiz ordinário em 1653119: é provável que tais laços tenham contribuído para a eleição de Escobar como vereador em 1676. Certamente seria possível encontrar outros casos semelhantes se a maioria dos registros paroquiais não houvesse se perdido. Mais importante ainda deve ter sido a sociabilidade com os membros da elite: ao menos 34 adentraram a Misericórdia antes de serem eleitos para o Senado, e o número certamente seria ainda maior se tivéssemos dados para as outras duas grandes irmandades da capitania. O que esses homens fizeram para obter a entrada nesses clubes exclusivos é, claro, outra questão, muito mais difícil de responder, mas o número de homens respeitáveis em Salvador não era dos mais elevados: certamente todos faziam negócios entre si ou se esbarravam em igrejas, tavernas ou na praça da cidade, estabelecendo assim os primeiros laços sociais que permitiram a gradual entrada dos forasteiros na elite120. Voltemos, porém, às famílias dominantes, e analisemos algumas trajetórias para tentar compreender suas estratégias121. Comecemos pelos Muniz Barreto, não só a família com mais eleitos para a Câmara (17 entre 1614-60 e 22 entre 1661-1700), mas também uma das poucas que conseguia remontar suas origens à fundação de Salvador, tendo vindo junto com o primeiro governador-geral Tomé de Sousa o fidalgo Diogo Muniz Barreto, natural de Machico (Madeira), tornando-se o primeiro alcaide-mor de Salvador e provedor da Misericórdia. O patriarca da família, porém, foi seu irmão, Egas Muniz Barreto, que pouco após chegar recebeu 119

Laboratório Eugênio da Veiga/Universidade Católica de Salvador, Santo Amaro da Purificação, Batismos, 1652-76, fl. 60v. 120 SMITH, The mercantile class, pp. 330-2; RUSSELL-WOOD, A. J. R. “Prestige, power, and piety in colonial Brazil: the Third Orders of Salvador”. HAHR, vol. 69, n. 1, 1989, pp. 61-89. 121 Para uma análise exemplar nesse sentido, cf. RODRIGUES, São Miguel, pp. 599-650.

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uma sesmaria, dando origem às propriedades familiares na Bahia. A se acreditar em Jaboatão, seriam de família muito ilustre (Calmon os faz remontar aos visigodos!)122: se provavelmente não é para tanto, não há como negar que se destacavam por sua qualidade em terra onde, em 1550, o ouvidor-geral Pero Borges reclamava que “não há aqui homens para serem juízes ordinários nem vereadores, e nestes ofícios metem os governadores degredados por culpa de muita infâmia e até desorelhados, e fazem coisas de fora de vossos serviços e razão”123. A família manteve a alcaidaria-mor por mais de 100 anos, até a morte de Francisco Muniz Barreto (1602-69), mas foi na Câmara que sua influência se fez sentir com mais força, pois diversos de seus membros lá estiveram, repetidamente. O senhor de engenho e fidalgo escudeiro Diogo Muniz Teles, por exemplo, neto de Egas (e filho da cristã-nova Leonor Antunes), foi cinco vezes vereador e juiz ordinário entre 1617 e 1641124. Apesar de seu pedigree, a família não se furtou a fazer alianças das mais diversificadas: Diogo casou-se com a filha do lavrador rico e cristão-novo Manuel Gomes Vitória, enquanto Luiz de Melo de Vasconcelos (1585-1668), juiz ordinário em 1633, 1638 e 1648, casou-se com a filha do homem de negócio de Lamego, Gregório Varela. Outro ramo da família favoreceu alianças com membros da elite local: o fidalgo escudeiro e senhor de engenho Francisco Barreto de Menezes (1602-74), vereador em 1646, casou-se com a filha do senhor de engenho Belchior de Aragão de Sousa, vereador em 1635, dos Aragão, enquanto seu filho Egas Muniz Barreto (1646-1720), que portava os mesmos qualificativos que o pai, desposou a filha de Antônio Ferreira de Sousa, senhor de engenho, vereador em 1649, eleito juiz ordinário em 1661, da família dos Ferreiras. A família não se furtou a incorporar forasteiros, como João Mendes de Vasconcelos, cavaleiro de Santiago e capitão de infantaria, dos “homens nobres dos principais da vila de Machico” (a mesma de onde haviam partido, quase um século antes, os primeiros Muniz), que casou-se com a filha de Diogo (batizando seu primogênito com o mesmo nome e sobrenomes do avô) e conseguiu ser vereador em 1659 e juiz ordinário em 1661 e 1662125. Por outro lado, um cunhado de Diogo foi Antônio Coelho Pinheiro, qualificado por Jaboatão como “homem nobre, familiar do Santo Ofício”, mas que ao fazer uma denúncia à Inquisição apareceria como “mercador”126. Provavelmente não era, portanto, nem nobre nem familiar, mas mesmo assim foi eleito vereador em 1638 e juiz ordinário em 1644, 1646, 1648 e 1653. 122

CG, vol. I, pp. 269-71; DH, vol. 13, pp. 262-8, vol. 35, pp. 353-4 e vol. 38, p. 36. DIAS, Carlos Malheiro (dir.). História da Colonização Portuguesa no Brasil. Porto: Litografia Nacional, 1924, vol. III, pp. 267-9. 124 CG, vol. I, pp. 278 e 286; AHU, cód. 81, fl. 68; CCT, vol. II, p. 198. 125 AHU, cód. 80, fls. 45v-48; IAN/TT, HOC, Letra D, mç. 11 (citação); CG, vol. I, pp. 279 e 287-8. 126 CG, vol. I, p. 281; NOVINSKY, Cristãos-novos na Bahia, p. 177. Entretanto, ao examinar o códice citado pela autora, esse personagem é qualificado apenas como cidadão e da governança da Bahia: IAN/TT, TSO, IL, CP, 123

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Assim, essa família, que contava ao menos sete senhores de engenho entre seus 18 representantes na elite política, além de três lavradores de cana, teceu um leque diversificado, mas assistemático, de alianças. É provável que as alianças fossem decididas pelos diversos ramos do grupo, não havendo uma estratégia unificada. É exatamente isso, porém, somado à fecundidade da família (em 1659 dizia-se que do “primeiro Muniz que veio a esta terra são nascidas 700 pessoas, não faltando os que se não lograram e morreram”127), que explica sua constante presença na elite política baiana seiscentista. Os Muniz, porém, não tiveram sequer um provedor da Misericórdia, perdendo em muito nesse importante quesito para seus competidores mais recentes, os Aragão. A família foi fundada pelo madeirense Baltazar de Aragão de Souza (1564-1613), “por alcunha o Bângala, que lhe puseram os negros”, ou “o Manga na Bota”, ainda famoso muitos anos depois sua morte, pois João Peixoto Viegas testemunhou em 1686 que “soube que o dito Baltazar de Aragão foi capitão-mor nas conquistas de Angola, e casando-se nesta cidade casou rico e abastado, vivendo de suas fazendas de canas e engenhos, que ainda existem em seus descendentes, e a causa desta notícia é por ser pública e notória”128. Segundo Jaboatão, a primeira alcunha lhe teria sido dada em Angola, “onde por ser demasiadamente cruel para com os escravos, que os castigava com grande rigor, lhe chamaram o Bângala, que no seu idioma quer dizer Pau duro”. Casou-se na Bahia com D. Maria de Araújo, filha do limiano Francisco de Araújo (senhor de engenho, talvez mercador, e instituidor de um morgado) e de Maria Dias, neta de Caramuru e Catarina Álvares. O prestígio do Bângala era tal que foi escolhido como um dos três governadores provisórios da capitania após a partida de D. Diogo de Menezes, sendo nomeado como capitão-mor para substituir o governador-geral Gaspar de Sousa quando este estava em Pernambuco. Morreu, porém, tragicamente, ao enfrentar uma nau francesa em 24 de fevereiro de 1613129. Seus descendentes, porém, fizeram-se presentes por um longo tempo na política baiana. Seu filho, o capitão e senhor de engenho Baltazar de Aragão de Araújo, foi eleito vereador e juiz ordinário três vezes entre 1647 e 1662, e provedor em 1651. Casou-se com a sobrinha, filha do já mencionado Paulo de Barros (vereador em 1634 e ministro da Ordem 3ª de São Francisco em 1648), também limiano, cavaleiro da Ordem de Cristo (1647), e de sua irmã D. Francisca de Aragão130. Nas inquirições de Paulo não foram descobertos defeitos de sangue ou mecânico, Livro 29, fls. 3v-4, denúncia de 14 de abril de 1646, contra a preta forra Apolônia, pelo envenenamento de seu neto. Como, porém, a “Grande Inquirição” ocupa mais de 200 fólios, é possível que em outro momento ele apareça como mercador. 127 BPA, 54-VIII-37, n. 168. 128 IAN/TT, TSO, Conselho Geral, Habilitações, Sebastião, mç. 4, n. 97 (Sebastião de Brito de Castro). 129 CG, vol. I, pp. 171-2 e 179-82, citação à p. 182. 130 Novo Orbe, vol. I, p. 310; CG, vol. I, pp. 156, 163, 172 e 182.

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e o mesmo pode ser dito de seu concunhado mais famoso, Diogo de Aragão Pereira. Madeirense como o sogro, provavelmente eram parentes, embora não irmãos, como chega a aventar uma testemunha na inquirição realizada em 1686, pois os pais de Diogo casaram-se em 1588, quando Baltazar era já um homem adulto131. Na mesma habilitação, outro depoente afirma que Diogo “se ausentara [da Madeira] haverá 70 anos por um crime grande de homicídio que nesta cidade cometeu por desafrontar seu pai de uma injúria que se lhe fez”132. Assassino ou não, poucos anos após chegar Diogo tornou-se juiz ordinário (1627 e 1633), provedor da Misericórdia (1637), moço fidalgo (1641) e Ministro da Ordem 3ª de São Francisco (1645, 1648 e 1653). Não esteve mais vezes na Câmara por opção, pois em 23 de agosto de 1640 conseguiu alvará para não ser obrigado a servir no Senado, em razão de seus “achaques” e ter “fazenda fora da dita cidade que pede sua assistência”133. Curiosamente, se em 1627 há referência a seu engenho, em 1638 aparece como lavrador rico: teria ele tido sua moenda destruída pelos neerlandeses? De qualquer modo, Diogo ultrapassou as dificuldades do período para, em 1662, orgulhar-se de possuir dois engenhos134. Foi, segundo Jaboatão, “muito estimado de todos os governadores do seu tempo”135 e, mesmo depois de ter optado por não mais servir como juiz ordinário, continuou a atuar nas discussões políticas mais relevantes da municipalidade, atuando, por exemplo, como membro da junta que administraria o donativo de 60.000 cruzados pedido pelo Conde da Torre em 1639 (capítulo V) e representante dos senhores de engenho numa finta cobrada para o sustento da infantaria, em 1657136. Nem sempre, porém, os Aragão foram tão seletivos: outro a casar com uma das filhas de Baltazar e D. Maria foi Domingos Garcia de Melo, lavrador rico e depois senhor de engenho, mas que era filho de Pedro Fernandes de Melo, natural de São Miguel e provavelmente cristãonovo e mercador. É possível que Domingos fosse aparentado com o rico mercador cristão-novo citado acima, Pedro Garcia, por via de sua mãe, Isabel Garcia, o que certamente teria facilitado o enlace, já que após a morte de Baltazar, sua viúva casou-se com o dito Pedro Garcia137. Na geração seguinte, porém, a família adotou uma estratégia predominantemente endogâmica138: os dois filhos mais velhos de Diogo casaram-se com primas, e o mesmo pode 131

Índice dos Registros Paroquiais. Funchal: Arquivo Histórico da Madeira, 2002, vol. IX (Casamentos do Conselho do Funchal, 1539-1911), Livro 52, fl. 47. 132 IAN/TT, TSO, Conselho Geral, Habilitações, Sebastião, mç. 4, n. 97 (Sebastião de Brito de Castro). 133 AMARAL (ed.), Livros de Matrículas, vol. II, p. 689; Nove Orbe, vol. I, p. 310; IAN/TT, Chancelaria de D. João IV, Livro 16, fls. 244-244v; AHMS, PR, vol. I, fls. 296-297v. 134 AC, vol. I, p. 83; CCT, vol. II, p. 200; “Liberdade e Limitação”, p. 496. 135 CG, vol. I, p. 177 (citação) e 188. 136 AC, vol. III, pp. 353-5. 137 CG, vol. I, pp. 172, 192 e 196; SALVADOR, Os Cristãos-novos, p. 168 e GORENSTEIN, A Inquisição, pp. 72 e 100. 138 Sobre esse ponto, cf. RODRIGUES, São Miguel, p. 610.

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ser dito dos descendentes de Domingos, enquanto as mulheres da família contraíram matrimônio com membros não tão destacados da elite baiana, efetivamente trazendo-os para sua parentela, em vez de passarem para a família do marido, como foi o caso dos senhores de engenho Sebastião Pais Machado e Antônio Guedes de Paiva, cavaleiro de Avis e coronel139. Diferentemente dos Muniz, portanto, os Aragão parecem ter desenvolvido uma estratégia mais unificada, por um lado reforçando a coesão do grupo e por outro estabelecendo alianças com famílias secundárias. Também diminuíram significativamente a incorporação de forasteiros na segunda metade do seiscentos, sendo que jamais haviam aceitado comerciantes como genros, e sua relação com cristãos-novos era puramente episódica. Talvez as diferenças com os Muniz se devam à chegada mais tardia em Salvador, já que Baltazar de Aragão de Sousa estabeleceu-se na Bahia mais de 40 anos após Diogo Muniz Barreto, já depois do arranque inicial da economia açucareira e no contexto do início da perseguição inquisitorial. Formou-se, assim, uma família espetacularmente açucarocrática: dos seus 17 membros na elite política, 15 foram senhores de engenho, 1 lavrador de cana e o último possuía uma fazenda em Cachoeira (provavelmente outro engenho)140. Olhando especificamente o caso do primogênito de Diogo, o senhor de engenho e coronel Pedro Camelo Pereira de Aragão, sabese que dos seus onze filhos dez tornaram-se lavradores de cana ou senhores de engenho – ou, no caso das mulheres, casaram-se com homens da mesma classe. Além disso, três das fazendas de cana ligadas ao seu engenho da Ponta pertenciam à família, e outras cinco fazendas próximas pertencentes a parentes certamente também moíam cana no engenho141. Assim, nas últimas quatro décadas do século ultrapassaram largamente os Muniz, sendo eleitos 29 vezes para os cargos principais da Câmara e da Misericórdia, e é principalmente nesta, onde foram escolhidos nove vezes como provedores, que se revela um prestígio inigualável na capitania. Fechando o pódio, temos os Araújo de Góis, 26 vezes escolhidos para os mais importantes cargos da República. O fundador da família foi o limiano Gaspar de Araújo, que teria chegado em Ilhéus em meados da década de 1560 e passado à Bahia 30 anos depois. Seus filhos, Simão e Jorge, casaram com duas irmãs de Ilhéus, mas serviram como vereadores na Câmara na década de 1630, para o que devem ter contribuído seus foros de cavaleiros fidalgos (ainda que Jorge atuasse como mercador de lojas em Salvador)142. Foram seus netos, porém,

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CG, vol. I, p. 215 e 229-30; AHU, cód. 84, fls. 451v-452. Jerônimo Sodré Pereira, moço fidalgo: cf. IAN/TT, COC, Livro 31, fl. 16v, Livro 40, fl. 354v, Livro 54, fls. 465v-466 e Livro 61, fls. 30v-31v; CG, vol. II, p. 555-6; AHU, Bahia, LF, cx. 30, doc. 3764-6. 141 FLORY, Bahian Society, pp. 43-4; LOSE, Alice Duhá et al. Dietário (1582-1815) do Mosteiro de São Bento da Bahia. Salvador: EDUFBA, 2009, pp. 272-3. 142 BPA, 54-VIII-38, n. 316. 140

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que colocaram sua família no mapa: Gaspar de Góis de Araújo foi vereador (1650), juiz ordinário (1657) e provedor (1682) e seu irmão Pedro de Araújo de Góis foi vereador em 1663. Ambos eram filhos de Simão, mas foram os rebentos de Jorge, o irmão mais novo, que mais se destacaram: João de Góis de Araújo, bacharel, foi síndico da Câmara e seu procurador em Lisboa, onde conseguiu ser nomeado Desembargador da Relação e cavaleiro da milícia tomarense, chegando a provedor em 1675 (o primeiro da família). Já seu irmão José (também formado em Coimbra) foi escolhido para servir na municipalidade quatro vezes. Todos os quatro eram senhores de engenho, indicando a consolidação da família na açucarocracia143. É interessante destacar que essa foi a única parentela da açucarocracia baiana a investir pesadamente na educação de seus filhos: se a capitania respondeu sozinha por mais da metade dos estudantes americanos em Coimbra no século XVII144, quase nenhum deles era filho das mais destacadas famílias locais. Além de João e José Góis de Araújo, e do blasfemador Agostinho Caldeira Pimentel, só rebentos de imigrantes incorporados na elite foram para Coimbra, como Pedro Garcia de Melo (cujo pai era o supracitado Domingos Garcia de Melo), Cristóvão de Burgos, Manuel Botelho de Oliveira e os filhos de João Peixoto Viegas e João de Aguiar Vilasboas. Passando os olhos pela lista de estudantes, percebe-se que foram principalmente comerciantes e letrados a enviar seus filhos para a Universidade145, talvez porque para eles cruzar o Atlântico fosse algo menos assustador que para os baianos (o que, por sinal, nos ajuda a entender a insistência da Câmara em pedir uma universidade na Bahia, como veremos no capítulo VII), mas, principalmente, por ser uma via de ascensão social aberta a todos aqueles suficientemente ricos para bancar as consideráveis despesas envolvidas146. Os enlaces matrimoniais dos Araújo deram-se, de modo geral, com membros não muito destacados da açucarocracia baiana, tendo estabelecido ligações mais fortes com os Muniz – para além dos íntimos laços entre João de Góis de Araújo e seu sogro Rui de Carvalho Pinheiro (capítulo VI). O mesmo pode ser dito das mulheres da família: se não tiveram enlaces esplendorosos, atraíram alguns genros que puderam fortalecer a família, como Francisco da Fonseca e, através da filha deste, o senhor de engenho João de Aguiar Vilasboas, uma vez vereador, três juiz ordinário e provedor em 1674. Um de seus filhos, o senhor de engenho

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CG, vol. II, pp. 712-30; AHU, cód. 84, fls. 144-144v e 217; IAN/TT, HOC, Letra J, Mç. 76, n. 11; Desembargo do Paço, Leitura dos Bacharéis, Letra J, Mç. 16, doc. 44; COC, L. 56, fls.43v-44. 144 187 de 364: dados calculados a partir das informações disponíveis em FONSECA, Fernando Taveira da. “Scientiae thesaurus mirabilis: estudantes de origem brasileira na Universidade de Coimbra (1601-1850)”. Revista Portuguesa de História, tomo 33, 1999, pp. 527-59. 145 MORAIS, Francisco. “Estudantes da Universidade de Coimbra nascidos no Brasil”. Brasília, 1949, vol. IV, suplemento. 146 Algo similar parece ter ocorrido no Recife: SOUZA, Elite y ejercicio, p. 326.

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Francisco da Fonseca Vilasboas (vereador em 1689), reforçaria os laços dentro do clã – já que seu ramo estava a distanciar-se – ao casar com a filha do supracitado Pedro de Araújo de Góis. A partir dessas três famílias é possível perceber algumas causas comuns do sucesso desses grupos parentes na política baiana. Em primeiro lugar, as três tiveram seus patriarcas chegando na Bahia no século XVI, de modo que conseguem estar presentes com mais de um membro da família desde o início do período. Com exceção dos Muniz, porém, essas famílias estabeleceram-se uma ou duas décadas mais tarde na capitania do que suas contrapartes pernambucanas147, o que seria ainda mais válido se incluíssemos outras famílias de destaque, como os Soeiro (estabelecidos em fins do Quinhentos), Brandão e Ferreira (que aqui chegaram no início do XVII). Mantiveram também alguma abertura nos enlaces matrimoniais, notavelmente na primeira metade do século. A consolidação da elite política baiana parece ter diminuído essa abertura a partir de meados do seiscentos, mas ela jamais se fechou: era quase impossível, porém, um homem de negócio casar-se com uma Muniz, Aragão ou Araújo, e mesmo suas filhas não parecem ter sido consideradas apropriadas para os homens dessas famílias. Muitas vezes, quando se casavam fora da família, preferiam-se genros ou sogros já membros da açucarocracia e naturais da Bahia – especialmente, repita-se, no final do período estudado. A coesão familiar contribuía para o prestígio do grupo, a julgar pelos Aragão: essa coesão, porém, não é um dado, e parece ter sido mais fraca nos Muniz, exatamente por não contarem com um ou no máximo dois patriarcas que pudessem influenciar o rumo da família. A união pode ter contribuído (e/ou sido facilitada) pela riqueza, pois os Aragão foram também a família que controlaram mais engenhos durante todo o século. Por último e mais importante, sua fecundidade garantiu que possuíssem vários filhos, homens e mulheres, capazes de assumir o poder ou capturar para o grupo homens que pudessem fazê-lo. Tal abundância de rebentos de prol só se tornou possível porque nenhuma das três famílias optou por concentrar suas energias em uma linhagem específica, ou em seus primogênitos. Por um lado, é possível que considerassem o morgado “essencialmente incompatível com a estrutura da lavoura de açúcar baiana: isto é, o senhor de engenho simplesmente não conseguia suportar os custos de equipar e administrar todo o complexo açucareiro”. Por outro, os privilégios dos senhores contra a execução de suas propriedades por dívidas (capítulo VII) “funcionavam na prática como um vínculo, protegendo a unidade da propriedade fundiária” e tornando o morgadio menos atrativo148. Ao mesmo tempo, retirava-se uma fonte de conflitos entre um irmão privilegiado e os outros despossuídos. Essa estratégia 147 148

MELLO, Rubro Veio, p. 140. FLORY, Bahian Society, p. 85 (primeira citação) e SCHWARTZ, Segredos Internos, p. 244 (segunda).

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também possibilitava, e aqui é o ponto principal para a nossa discussão, que numa elite política relativamente numerosa (muito maior do que as elites locais do Reino) houvesse fartura de membros da família a serem escolhidos para exercer o poder na Câmara. Assim, nos 11 anos entre 1680 e 1690, só em dois um Aragão não foi eleito para a Câmara, e o mesmo pode ser dito para os Muniz e os nove anos entre 1689-97. O morgadio se disseminou amplamente entre as elites no Reino a partir do século XVI, primeiro entre a nobreza de Corte e depois entre as elites provinciais, trazendo junto consigo estratégias familiares necessariamente rígidas, privilegiando a “casa” antes do indivíduo149. Entretanto, também marcaram presença no Atlântico: em São Miguel, passados escassos 50 ou 60 anos após o início da ocupação, inicia-se um movimento significativo de vinculação das terras, que acaba por abranger a maior parte da ilha. Este movimento mostra-se um dos elementos centrais da longa sobrevivência de sua elite. Se, no início, o processo foi lento, em razão de ainda haver terras disponíveis, o processo se acelera na segunda metade do quinhentos, passando de 43 vínculos criados até 1550 para 179 entre 1551-1600, e conhece seu auge no XVII, com mais 249 na primeira metade do século e 307 na segunda. Cronologia similar pode ser encontrada para a Madeira, embora para lá saiba-se bem menos sobre esse movimento. De qualquer maneira, é notável que Funchal e Ponta Delgada tornem-se as áreas da monarquia “com maior densidade de morgadios”150. Mesmo em Cabo Verde, vários de seus primeiros moradores reinóis vão instituir vínculos a partir da década de 1530 (também passado pouco mais de meia centúria após a ocupação lusa da ilha), que acabam passando para as mãos de seus descendentes mestiços e ilegítimos que, identificados como os “brancos da terra”, já no século XVII controlam o poder local e têm na propriedade fundiária vinculada uma das bases de seu poder, em razão da decadência do papel de entreposto da ilha no comércio de escravos151. Pela cronologia vivida nessas ilhas, era de se esperar que em finais do quinhentos começasse a ocorrer um movimento similar na Bahia. Nada do gênero, porém, se deu. A causa é exatamente a disponibilidade de terras: enquanto em Portugal e nas ilhas atlânticas todas as terras já estavam apropriadas, a “fronteira aberta” americana permitia uma expansão fundiária

Cf. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Morgadio” in: MADUREIRA, Nuno (org.). História do Trabalho e das Ocupações. Oeiras: Celta, 2002, vol. III: MARTINS, Conceição Andrade & MONTEIRO, Nuno Gonçalo (orgs.). A Agricultura, pp. 76-80 e id. “O ethos da aristocracia portuguesa sob a dinastia de Bragança. Algumas notas sobre casa e serviço ao rei” [1998] in: id. Elites e Poder, pp. 89-92, que sintetizam as ideias do autor. 150 RODRIGUES, Ponta Delgada, pp. 650-69; RODRIGUES, Miguel Jasmins. “A economia: a agricultura e o comércio. A propriedade. O regime fiscal e as finanças” in: SERRÃO, Joel & MARQUES, A. H. de Oliveira (dirs.). Nova História da Expansão Atlântica. Lisboa: Estampa, 2005, vol. III, tomo I: MATOS, Artur Teodoro de (coord.). A Colonização Atlântica, p. 124 (citação). 151 CABRAL, Iva. A primeira elite colonial atlântica: dos “homens honrados brancos” à “nobreza da terra” (finais do séc. XV – início do séc. XVII). Tese de Doutorado. Praia: Universidade de Cabo Verde, 2013, pp. 190-234. 149

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que, se não era constante, certamente lhes parecia potencialmente interminável. Mais do que isso, no contexto de expansão quase constante da economia açucareira ao longo do século (capítulo I), havia expectativas razoáveis de colocação dos irmãos mais novos, genros e parentes próximos no mínimo como lavradores de cana e, em alguns casos, até como senhores Assim, algumas condições fundamentais para o desenvolvimento da primogenitura não se faziam presentes, a exemplo da estabilidade da principal fonte de riqueza e a irrelevância das aptidões individuais para sua manutenção (já que provavelmente a administração das propriedades era mais complexa do que no Velho Mundo)152. Ainda que as áreas mais valorizadas do Recôncavo tenham sido rapidamente concedidas, havia um imenso sertão a ser conquistado. Sesmarias imensas continuaram a ser dadas até praticamente o final do século XVII, “de sorte que houve pessoa que pediu e impetrou sesmaria que compreende mais terra que uma província inteira de Portugal”153 sempre beneficiando os homens da elite política e seus parentes mais próximos, de modo a facilitar-lhes tanto a acumulação de riqueza quanto de prestígio. Mesmo que o perfil de distribuição de sesmarias fosse extremamente concentrador – mais na Bahia do que no Rio de Janeiro154 – não eram os membros da elite governante os excluídos, de modo que provavelmente não faltaria terra para seus descendentes, fornecendolhes não só uma base econômica, mas social e política, já que a propriedade fundiária era a base do poder nas sociedades agrárias da época moderna, como já se disse no primeiro capítulo. Entretanto, o número de mandatos não é o único indício de poder, nem a estratégia de diversificação a única possível – mesmo porque dependia da fecundidade da família e da sobrevivência das crianças, fatores que em larga medida escapam do controle dos agentes. Assim, algumas linhagens que concentraram todos seus recursos em poucos indivíduos foram capazes de exercer uma influência desproporcional a seu número na política baiana seiscentista. O exemplo mais famoso é, claro, dos Ávila. Seu patriarca, Garcia d’Ávila (1528-1609), chegou à Bahia com o primeiro governador-geral Tomé de Sousa, e em menos de duas décadas tornou-se o maior latifundiário da capitania e um dos seus mais ricos moradores. Exerceu cargos na Câmara, mas seu casamento com uma cristã-nova não foi fértil. Só uma filha natural mestiça

BOONE III, James L. “Parental investment and elite family structure in preindustrial States: a case study of Late Medieval-Early Modern Portuguese Genealogies”. American Anthropologist, vol. 88, n. 4, 1986, p. 868. Se várias das principais famílias mexicanas possuíam grandes propriedades vinculadas, a prática nunca chegou a ser majoritária na Nova Espanha e era, ao que parece, pouco relevante em outras regiões da América Espanhola: MÖRNER, Magnus. “Economic factors and stratification in Colonial Spanish America with special regard to elites”. HAHR. Vol. 63, n. 2, 1983, p. 348 e PAZOS, El Ayuntamiento, pp. 352-6. 153 AHU, Bahia, LF, cx. 23, doc. 2737 (relatório do Desembargador Sebastião Cardoso de Sampaio, 1678). 154 SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. A Morfologia da Escassez: crises de subsistência e política econômica no Brasil colônia (Salvador e Rio de Janeiro, 1690-1790). Tese de Doutorado. Niterói: PPGH/UFF, 1990, pp. 31845. 152

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teve descendência, após casar-se com um neto do Caramuru (por via materna), Diogo Dias, lavrador de cana. Assim, toda a riqueza acumulada passou para Francisco Dias de Ávila (c. 1580-1640), o “senhor da Torre de Tatuapara”, o qual casou-se com a filha do amigo e procurador de seu pai, Manuel Pereira Gago. Seu único herdeiro, Garcia d’Ávila, contraiu matrimônio com uma tia, reforçando os laços familiares. De seus três rebentos, um herdou a riqueza familiar, Francisco Dias de Ávila II (c. 1648-94), enquanto o outro, Bernardo Pereira Gago, morreu sem sucessão, provavelmente por opção familiar – note-se que até o sobrenome ilustre lhe havia sido negado. Já a irmã deles casou-se com Vasco Marinho Falcão, vereador em 1665 e membro da família Brandão (a sexta com mais eleitos ao longo do século: 17). Francisco Dias de Ávila é o único da família a figurar em minha base, pois, diferente de seu pai e avô, foi vereador em 1682, coronel em 1686, juiz ordinário em 1688 e provedor da Misericórdia neste ano e no seguinte. Um missionário o qualificou como “o homem mais rico do Brasil e o melhor aparentado”155 – se talvez estivesse certo quanto à primeira afirmativa, quanto à segunda não podia estar mais equivocado: ao casar-se com a sobrinha D. Leonor Pereira Marinho (após a outra sobrinha ter fugido para casar contra a vontade da mãe com “um homem muito pobre, filho de pais pobres e pouco conhecidos que para se sustentar e sua família comprava reses que mandava matar e vender em sua casa”156, levando 2000 cruzados em joias e roupas), Francisco Dias de Ávila reforçou ainda mais a coesão de sua linhagem e manteve-se distante do restante da elite. Ao mesmo tempo, continuou ampliando suas posses no sertão. Resistamos a uma psicanálise de botequim que explicaria sua obsessão pela expansão de suas propriedades como compensação por sua baixa estatura157, em um complexo de Napoleão sertanejo, pois tratava-se apenas da continuidade de uma secular estratégia familiar. Para evitar definitivamente a fragmentação do patrimônio familiar, a fugitiva foi deserdada para todo o sempre e a irmã e a sobrinha/esposa de Francisco Dias de Ávila instituíram todos seus bens em um morgado em favor de Francisco, consolidando a estratégia familiar de concentração das propriedades em um único indivíduo por geração. Se isso certamente lhes privou de contar com muitos parentes e aliados, por outro lado lhes possibilitou acumular poder e propriedade em níveis inimagináveis para qualquer indivíduo das três famílias que analisamos acima – embora não, possivelmente, que todo o grupo parental em conjunto158. 155

NANTES, Martinho de. Relação de uma missão no Rio de São Francisco. São Paulo: Nacional, 1979 [1707], pp. 61. 156 AHU, Bahia, LF, cx. 26, doc. 3199. 157 NANTES, Relação, p. 60: “era realmente muito pequeno”. 158 BANDEIRA, O Feudo, pp. 121-235. Cf. também, dentre outros, AHU, Bahia, LF, cx. 24, doc. 2924; cx. 25, docs. 2992-3; cx. 29, doc. 3604; cód. 85, fls. 37v-348; IAN/TT, HOC, mç. 34, n. 126; CG, vol. I, pp. 157-170; Irmãos, pp. 24 e 277; Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Ms. 706, 146v.

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Se os Ávila constituíam um caso extremo, não foram a única linhagem que adotou uma estratégia concentradora. Outra família quinhentista, os Brito Correia, adotou estratégia similar. A família teve início com o casamento da terceira filha de Caramuru e Paraguaçu, Apolônia Álvares, com João de Figueiredo Mascarenhas, supostamente um fidalgo algarvio que teria passado “ao Brasil no princípio, em que se fundava à Bahia”, acompanhando seu pai, fugido de sua terra “por haver morto um cônego seu parente”. Ainda segundo Jaboatão, “ambos fizeram a Deus e a el-rei grandes serviços na conquista desta capitania, pela qual razão el-rei D. João III lhe escrevia e o estimava muito”159. Calmon, porém, o identifica como o bombardeiro João de Figueiredo, que teria vindo com Tomé de Sousa, e afirma que foi armado cavaleiro pelo governador-geral, graça que seria confirmada pela Coroa em 1564160. É provável, portanto, que não fosse fidalgo nem dileto de D. João III como o genealogista quis fazer parecer. De qualquer maneira, a terceira filha do casal casou-se com Sebastião de Brito Correia, reinol e capitão do forte de Santo Antônio em 1598, lavrador de canas que requereu sesmaria para construir um engenho161. O filho mais velho foi Lourenço de Brito Correia (1590-1672), “chamado o Formoso”, e uma das figuras mais importantes da política baiana entre as décadas de 1620 e 1660. Senhor de engenho, Lourenço serviu como capitão de aventureiros (tropas irregulares) na resistência contra os neerlandeses em 1624-5 e pouco depois atravessou o Atlântico para pedir remuneração por seus serviços. Recebeu o foro de fidalgo em 1628 e, satisfeito, voltou para a América: lutou novamente contra os neerlandeses, mas agora na Paraíba, recebendo o hábito de Cristo em 1636. Continuou a servir, destacando-se quando Nassau sitiou Salvador em 1638 – assim como seu cunhado, o sargento-mor elvense João Álvares da Fonseca, lavrador rico, vereador mais velho em 1638, procurador da Câmara na Corte de Madri (onde conseguiu o hábito da Ordem de Cristo e o posto de mestre de campo da ordenança da Bahia, com um elevado soldo) e provedor da Misericórdia em 1642 e 1646, posição que Lourenço também ocupará duas vezes, em 1655 e 1664. Os novos serviços (inclusive pecuniários, como o empréstimo de 20 mil cruzados) possibilitaram a Lourenço a obtenção do hábito de Cristo para seu jovem filho natural. A posição de Lourenço era tão destacada que ele foi o único baiano nomeado pelo rei como um dos governadores do triunvirato que substituiu o Marquês de Montalvão em 1641, governando por pouco mais de um ano (capítulo V). Seu orgulho por essa realização era tanto que a incorporou em seus títulos até o

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CG, vol. I, p. 214. CG, vol. I, p. 229, nota 23 e DH, vol. 14, pp. 103, 123 e 266. 161 DH, vol. 62, pp. 281 e 291; FRANCO, Emmanuel. A colonização da capitania de Sergipe D’El-Rei. Aracaju: J. Andrade, 1999, pp. 66 e 76-7. 160

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fim dos seus dias. Nem os cinco anos que passou na cadeia do Limoeiro por suspeita de embolsar recursos da Câmara que deveriam ter ido para o sustento da infantaria diminuíram seu prestígio (embora, segundo ele, tenham acabado com sua riqueza, pois “todos os seus escravos” foram leiloados para pagar a suposta dívida, da qual acabou inocentado). Assim que foi solto, em 1647, recebeu a promessa do governo da Paraíba, e dez anos depois foi provido no governo do Rio de Janeiro, contando com o apoio tanto do mestre de campo general do Estado do Brasil, Francisco Barreto, quanto do Conselho Ultramarino. Como não ocupou nenhum dos dois postos, foi nomeado provedor-mor do Estado do Brasil entre 1659-62, cargo exercido posteriormente também por seu filho, Lourenço de Brito de Figueiredo162. Lourenço de Brito Correia é também o único caso que conheço no século XVII de reivindicação da antiguidade na capitania como um mérito: quando pede sesmaria em 1663, afirma, para além de seus serviços, qualidade e riqueza, ser “morador na Bahia, povoador, filho, neto e bisneto dos primeiros descobridores e povoadores daquela capitania”163. Não satisfeito em ser um dos maiores proprietários de terras da capitania, pediu ainda para poder fundar uma vila no Recôncavo, “para que possa gozar o senhorio dela, com a jurisdição do cível, e crime, na forma que tem os mais donatários”. Lourenço, como outros nas duas décadas seguintes, procurava obter dessa forma uma honraria dentre as mais apetecidas da monarquia portuguesa seiscentista164. Embora nunca tenha casado, Lourenço fundou um morgado para seu filho, com a cláusula “que nenhum possuidor o possa lograr tendo raça de infecta nação”. Apesar disso, sua descendência desapareceu da Bahia, já que a bisneta de Lourenço casou com um desembargador e mudou-se com ele para o Reino, quando o marido foi promovido à Casa de Suplicação, e lá nasceram e moraram os Brito e Figueiredo do século XVIII165. Um sobrinho-neto de Lourenço, porém, tornou-se ainda mais famoso: Antônio Guedes de Brito (1627-1697). A irmã mais velha Lourenço, Felipa de Brito, casara pela primeira vez com o tabelião tarouquense Antônio Guedes, que receberia diversas sesmarias no sertão. A filha

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AHU, Bahia, LF, cx. 7 docs. 799-800; cx. 11, doc. 1355 (citação); cód. 83, fls. 106-107 e 275-275v, cód. 84, fls. 4-4v; IAN/TT, HOC, Letra L, mç. 17, n. 36; COC, L. 23, fls. 127-128, L. 31, fl. 421v, L. 35, fls. 19-20 e 9797v, L. 47, fls. 187-187v e L. 51, fls. 399-400; Chancelaria de D. João IV, L. 20, fl. 28; Chancelaria de D. Afonso VI, L. 27, fl. 156; CCT, vol. I, p. 539; AC, vol. I, p. 375; DH, vol. 33, p. 275. Cf. também MUKERJEE, Anil. The Provedor-Mor da Fazenda in Colonial Brazil: Lourenço de Brito Correia (1659-1662). Dissertação de Mestrado. Santa Bárbara: University of California, 2002 e SANTANA, Ricardo. Lourenço de Brito Correia: o sujeito mais perverso e escandaloso. Conflitos e suspeitas de motim no segundo vice-reinado do Conde de Óbidos (Bahia, 1663-1667). Dissertação de Mestrado. Feira de Santana, PPGH/UEFS, 2012, pp. 16-61. Sobre João Álvares da Fonseca, cf. COUTINHO, António Xavier. A iniciativa dos Portugueses na defesa da Baía, em 1638: esboço de nótula histórica baseada em documentos inéditos. Porto: Typografia Diário do Porto, 1937; AHU, cód. 275, fls. 14v e 89v; Bahia, LF, cx. 9, docs. 1109-1110; AHMS, Provisões Reais, vol. II, fls. 12-14v e 24-24v. 163 DH, vol. 66, p. 282. 164 OLIVAL, As Ordens Militares, pp. 139-40. 165 CG, vol. I, p. 237.

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destes, D. Maria Guedes, casara-se com Antônio de Brito Correia (provavelmente um primo, por via de sua mãe Isabel de Brito), que serviu junto com Lourenço na luta contra os neerlandeses e herdou o ofício de tabelião do sogro. Ambos instituíram um morgado para “seu filho único, por nome o capitão Antônio Guedes de Brito” com todos os seus bens após o pagamento dos legados carregados em suas terças, “com condição que seja obrigado assim ele como os possuidores que depois dele sucederem no dito morgado a vincular a ele a metade da terça que por sua morte lhe ficar”, assim como deveria continuar a utilizar “por sobrenome Britos e Guedes”, preservando a memória dos instituidores. O curioso, porém, é que o testamento determinava que os bens no Brasil deveriam ser vendidos e com o dinheiro arrecado compradas as propriedades que seriam vinculadas em Portugal 166. O casal desejava, portanto, que seu filho se fosse para o Reino, talvez em imitação da avó, Felipa de Brito, que partira já com setenta anos para Lisboa, onde tinha uma filha e duas netas casadas, apesar da resistência de parentes (provavelmente os próprios Antônio de Brito Correia e D. Maria Guedes), que não queriam que ela vendesse suas propriedades para que pudessem herdá-las167. Guedes de Brito, porém, parece ter estado mais preocupado em ampliar seus domínios no sertão do que em passar para o Reino. Conseguiu mudar as disposições de seus pais e instituir em morgado as terras que herdara. Em 1662, no prazo limite dado por seu pai para que fosse finalizada a transferência da sua riqueza para o Reino (cinco anos após sua morte), Guedes de Brito tornou-se o mais novo provedor da Misericórdia no século, com apenas 35 anos (enquanto a mediana da idade dos 22 provedores com data de nascimento conhecida é 52), posição para a qual ainda seria eleito mais duas vezes – apesar de sua esposa cristã-nova.

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Arquivo do Cartório da Casa da Ponte, SG.88-06-0: instituição do morgado, anterior a 1657. Agradeço calorosamente ao Professor Erivaldo Fagundes Neves pela cessão dessa fonte. Esse documento, ainda que não as verbas testamentárias dos outros herdeiros, foi publicada em NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio (um estudo de história regional e local). Salvador/Feira de Santana: EDUFBA/EDUEFS, 2009 [1998], 2ª ed. rev. e ampliada, pp. 82-3. 167 AHU, Bahia, LF, cx. 12, doc. 1513.

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Mapa I: Localização aproximada das terras recebidas em sesmaria, herdadas, compradas e conquistadas de indígenas por Antônio Guedes de Brito.

Fonte: NEVES, Erivaldo Fagundes. Estrutura fundiária e dinâmica mercantil: Alto Sertão da Bahia, séculos XVIII-XIX. Salvador: EDUFBA, 2005, p. 119.

Combinando sua herança familiar com o rico dote que recebeu de seu sogro, e somando a isso uma busca implacável por mais terras no sertão, Guedes de Brito tornou-se um dos maiores proprietários do Brasil, numa escala comparável somente à Casa da Torre, como é possível perceber pela imagem acima. Diferente dos Ávila, porém, sua opção por residir em Salvador transformou-o na mais poderosa figura da política baiana na década de 1670, quando foi nomeado mestre de campo de um terço da infantaria paga por Alexandre de Sousa Freire, título que envergou até o fim de sua vida. Foi, porém, o exercício do ofício de juiz ordinário mais velho em 1675 (na quinta vez em que era eleito para o Senado, a quarta como juiz ordinário) que lhe permitiu alcançar, como seu tio avô, o triunvirato que governou a capitania entre 26 de novembro de 1675 e 5 de março de 1678 – permanecendo, assim, mais tempo no

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poder que Lourenço, para além de não ter sido preso após a chegada do sucessor nomeado pela Coroa, Roque da Costa Barreto (capítulo VI). Ainda no final da década de 1670, Guedes de Brito tornou-se cavaleiro da Ordem de Cristo e fidalgo-cavaleiro, em razão de seus serviços à Coroa, realizados não só com sua pessoa mas, principalmente, com sua fazenda168. Como no caso dos Ávila e de seu tio-avô, o mestre de campo Antônio Guedes de Brito não estabeleceu alianças com outras famílias de destaque, primeiro por ter optado em seu matrimônio pelo dinheiro, e não pelo prestígio, e depois por não ter filhos ou irmãos através dos quais pudesse estabelecer essas ligações. Assim, somente através do casamento de sua filha bastarda (e herdeira) D. Isabel Maria Guedes de Brito é que se estabeleceu uma aliança nesses moldes, com a família Pimentel. O afortunado noivo era o fidalgo e coronel Antônio da Silva Pimentel (irmão de Agostinho Caldeira Pimentel, de quem tratamos acima), duas vezes eleito para a Câmara e outras duas para a provedoria da Misericórdia – a primeira inclusive no lugar do sogro recém-falecido, em 1697. Entretanto, a auspiciosa união não teve mais que uma filha, D. Joana da Silva Caldeira Pimentel Guedes de Brito. Como herdeira do morgado, porém, sua riqueza era tamanha que foi disputada por vários fidalgos, acabando por se casar com dois aristocratas que vieram morar na Bahia para administrar as propriedades do morgado: o primeiro, D. João Mascarenhas, filho do Conde de Cuculim, que, segundo um relato da época, teria espalhado que “a dita herdeira era judia” para afastar os demais pretendentes (possivelmente sem saber que o bisavô de sua pretendida era realmente um cristão-novo, o supracitado comerciante Pedro Garcia), e entregou a medalha e venera [de familiar] ao Santo Ofício. Casou, e querendo-a reaver, escreveu à mãe. Foi a Condessa ao Cardeal da Cunha expor-lhe a rapazia e a dependência. O Cardeal não assistiu [assentiu]; e, vendo-se apertado, disse que o Santo Ofício não era guardanapo de limpar nódoas. Respondeu a [Condessa de] Coculim: “É rodilha de limpar bacios!” Valente desatino!169

Em petição de 1721 que resume suas querelas com figuras de prol na Bahia, D. João Mascarenhas diz ter trazido consigo mais de 35.000 cruzados, aumentando “tanto as fazendas da sua casa como se fora meter sangue vivo e quente em um corpo, cadáver morto e frio”. A isso se somava o sacrifício de vir “para este clima tão desigual a sua natureza e costume tão habitual que ela estava, e ainda malcontentes se queixam e falam do suplicante ou por

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Cf., dentre outras, AHU, cód. 82, fls. 138v-139 e 342v; cód. 85, fls. 31-32; IAN/TT, COS, L. 19, fls. 82-84; COC, L. 54, fls. 15-16; AMARAL (ed.), Livros de Matrículas, vol. II, p. 529; DH, vol. 8, pp. 393-4, vol. 24, pp. 99-103; CG, vol. I, pp. 207-9. 169 CASTELO-BRANCO, Camillo (ed.). Memórias de Fr. João de S. Joseph Queiroz. Porto: Livraria Nacional, 1868, pp. 154-5. O afrontado “Cardeal da Cunha” é D. Nuno da Cunha e Ataíde, importante figura na Corte portuguesa na primeira metade do século XVIII: MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Identificação da política setecentista. Notas sobre Portugal no início do período joanino”. Análise Social, vol. 25, n. 157, 2001, pp. 981-5.

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desafeição ou por inveja, ou por qualidade maligna do país”. Brigou ainda com a sogra e os beneditinos, a tal ponto que D. João recomendou em 1725 que o vice-rei o fizesse voltar para Portugal170. Antes, porém, morreu, abrindo caminho para o casamento em 1734 da já quarentona D. Joana com D. Manuel de Saldanha da Gama, de apenas 19 anos, filho do ViceRei da Índia (1725-32) João Saldanha da Gama. Como era de se esperar, não tiveram filhos, e o golpe do baú do aristocrático mancebo português foi bem-sucedido – ainda que o tenha obrigado a viver por mais de 30 anos em Salvador, de onde só saiu em 1766, após a morte da esposa septuagenária. Assim, a intenção de Antônio de Brito Correia e sua mulher de que seus herdeiros se fossem para Portugal só vai ser parcialmente cumprida mais de um século mais tarde: se os seus sobrenomes foram preservados no Reino até o início do século XIX (seguindo a instituição do morgado) pela Casa dos Condes da Ponte (cujo 5º conde era filho do segundo matrimônio de Saldanha da Gama), sua descendência não o foi, extinguindo-se com D. Joana171. Outros exemplos poderiam ser dados, mas, para alívio dos leitores, paremos por aqui. Apesar da necessidade de aprofundar a pesquisa através de uma análise sistemática de todos os filhos das principais famílias, percebe-se a existência de duas estratégias familiares distintas: uma dispersiva, que se baseia na ampliação de laços e relações, possibilitando a presença constante em órgãos de poder e as alianças com genros forasteiros ou outras famílias poderosas da terra. Em termos políticos, essa dispersão pode ser percebida pelo fato de 27 pais terem dois ou três filhos exercendo os cargos cimeiros na República, todos membros de tradicionais famílias açucarocráticas: em 20 dessas 27 famílias ao menos um dos irmãos possuía um engenho e, entre as 20, em 16 dois irmãos podiam-se orgulhar-se de ser donos de sua própria moenda (quase todos chegados à maturidade nos anos de expansão entre 1660-80), enquanto aos outros restavam os partidos de cana. Essa estratégia parece ter sido a mais adequada para a sobrevivência da família por séculos, pois preservava a casa contra a impiedosa mortalidade característica das sociedades pré-industriais172. O mesmo ocorria com os genros: 27 homens tiveram dois ou mais na elite política, chegando um, o senhor de engenho Francisco de Araújo de Aragão, a quatro (todos também proprietários de moendas: um primo, um Albuquerque e dois membros de linhagens locais sem muito destaque). Em alguns casos, combinavam-se as duas vias: Antônio da Silva Pimentel teve dois filhos na elite política e três genros, todos, como ele, senhores de engenho, eleitos para a Câmara e, exceto um, provedores da Misericórdia. Em

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DH, vol. 69, pp. 173-83 (citações à p. 182); CG, vol. I, p. 209. Para a melhor narrativa sobre os Guedes de Brito e seu morgado, cf. NEVES, Uma Comunidade, pp. 65-81 e id., Estrutura Fundiária, pp. 117-53. 172 Essa opção parece ter predominado no Rio de Janeiro: FRAGOSO, À Espera das Frotas, pp. 130-1. 171

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alguma medida, a fronteira aberta e o contexto de expansão açucareira permitiam a adoção de um modelo similar ao que vigorara na Península Ibérica medieval, em que filhos mais novos eram instalados em áreas recentemente conquistadas – manifestação de uma “diáspora aristocrática” característica da expansão europeia dos séculos XI a XIII173. Entretanto, a inevitável dispersão patrimonial certamente era mitigada pelo favorecimento de alguns herdeiros, como no caso supracitado de Pedro Fernandes Aranha174, e possuía limites: três filhos na elite política foi o máximo possível, e nenhum pai conseguiu que mais de dois de seus rebentos fossem donos de moendas. Os filhos restantes provavelmente tornavam-se lavradores de cana, cujas vidas giravam em torno dos parentes mais afortunados e que, em muitos casos, permaneciam solteiros, embora seja muito difícil seguir suas trajetórias em razão da ausência de registros. Em acréscimo, nenhum grande potentado surgiu nessas famílias: por mais que pertencessem à minúscula elite proprietária de terras, engenhos, partidos de cana e, geralmente, algumas dezenas de escravos não parecem ter conseguido reunir as maiores fortunas da época. Em consequência, os nomes individualmente mais destacados da política baiana seiscentista tenderam a pertencer a parentelas que adotaram a estratégia oposta, fosse por opção ou, simplesmente, por infertilidade, apostando tudo num filho só. A enorme acumulação de riquezas e terras, somada ao prestígio tradicional dessas famílias, que figuravam entre as mais antigas da capitania (ainda que, repita-se, por linha materna), lhes alçavam a uma posição de poder que, individualmente, nenhum membro dos Aragão, Muniz ou Araújo podia superar. Ao mesmo tempo, a inexistência de múltiplos herdeiros possivelmente tornava mais atrativa a recorrente opção pelo morgadio, já que não havia filhos mais novos a serem marginalizados. Nos poucos casos de pais com vários descendentes a instituírem morgados, esses em geral parecem ser relativamente pouco importantes, como o que o licenciado Jerônimo de Burgos criou, a ser composto por casas que possuía em Salvador, e o instituído por Diogo de Aragão Pereira para seus filhos, funcionando na prática como capelas para garantir a realização de missas em favor da alma de seus instituidores175.

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CASEY, James. Family and Community in Early Modern Spain: the citizens of Granada, 1570-1739. Cambridge: Cambridge UP, 2007, pp. 80-1 e, principalmente, BARTLETT, Robert. The Making of Europe: conquest, colonization and cultural change, 950-1350. Londres: Penguin Books, 1994 [1993], pp. 24-59. 174 Ver, para outras regiões, SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do Império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c. 1650 – c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, pp. 2957 e FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, pp. 256-65. 175 ASCMS, Livro 41, fls. 214v-215 e verbas do testamento de Diogo de Aragão Pereira publicadas em CALDEIRA, João. O Morgadio e a Expansão do Brasil. Lisboa: Tribuna da História, 2007, pp. 189-192. Para outros exemplos, cf. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser Nobre da Colônia. São Paulo: EDUNESP, 2005, pp. 128-9 e o testamento de Domingos Afonso Sertão (1711), publicado em D’ALENCASTRE, José Martins Pereira. “Memoria chronologica, histórica e corographica da província do Piauhy”. RIHGB, tomo 20, 1857, pp. 145-6.

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Tal situação pode ser percebida por duas listagens dos maiores proprietários de terra. A primeira, em carta régia de 3 de junho de 1665, cita nossos conhecidos Guedes de Brito e Dias de Ávila, o secretário de Estado Bernardo Vieira Ravasco (que também concentrava em si os recursos da família), Nicolau Aranha Pacheco (em grande medida ajudado pela herança de seu sogro, Francisco Fernandes do Sim) e o homem de negócios e senhor de engenho vianês João Peixoto Viegas. O levantamento bem mais detalhado do Desembargador sindicante Sebastião Cardoso de Sampaio, realizado dez anos depois, repete a maioria desses nomes (retirando apenas Bernardo e Nicolau), e acrescentando outros que já mencionamos, como o coronel Francisco Gil de Araújo e Lourenço de Brito de Figueiredo. Nenhum membro das seis principais famílias aparece na lista, indicando que o interesse pela acumulação de grandes propriedades no sertão (onde ainda era possível obter e controlar imensas extensões de terra) estava dividido entre essas famílias, as quais adotavam uma estratégia concentradora (mesmo o coronel Francisco Gil de Araújo é um exemplo intermediário nesse sentido, já que seu irmão não casou e instituiu morgado para o sobrinho) e forasteiros, como Viegas, o mestre de campo Pedro Gomes e o capitão Francisco Barbosa Leal176. Para terminarmos essa seção, há que refletir sobre a difícil questão da identidade dessas famílias. A própria noção de casa, tão importante entre a aristocracia portuguesa, raramente é articulada. A primeira referência que encontrei é também a mais interessante, indicando que o serviço à monarquia se constituía em um dos elementos constituintes do ethos familiar: Francisco Dias de Ávila, o senhor da Torre, escreveu ao Conde da Torre em 1639 contando haver comprado uma vaca para dar a um capitão de infantaria, “pesando-me as não ter mais vacas para lhe dar porque já é foro desta casa sempre estar prestes para o serviço de Sua Majestade”177. Não parece coincidência que essa consciência tenha se desenvolvido justamente na família que demonstrou maior coesão e disciplina familiar em todo o período, sendo também das mais antigas, uma vez que a sua formação se confunde com a história baiana. A maioria das referências, porém, é posterior a 1650. Num dos poucos testamentos sobreviventes, o capitão Francisco Fernandes Dosim justifica uma dotação a José Mendes de Barros afirmando ser este “pessoa da sua casa”178. Na investigação inquisitorial contra o senhor de engenho Juan Paez Florián, da família dos Pimentéis (e aliado dos Ravasco), o senhor de engenho e cinco vezes juiz ordinário André Cavalo de Carvalho diz que o denunciado tinha 176

AHMS, PR, vol. II, fls. 129v-130v; AHU, Bahia, LF, cx. 23, doc. 2740. CCT, vol. II, p. 340. Quase quatro décadas depois, o triunvirato composto por Antônio Guedes de Brito, Álvaro de Azevedo e Agostinho de Azevedo Monteiro, nomeou o filho homônimo desse Francisco Dias de Ávila coronel em razão dos serviços que “vossa mercê e sua casa” haviam prestado ao monarca: DH, vol. 8, p. 430 (capítulo VI). 178 ASCMS, Livro 41, fl. 208v. 177

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“seu engenho e casa” em Matoim, e o padre da paróquia de Salvador onde Paez Florián tinha sua residência urbana afirma “por me dizerem pessoas de sua casa (...) que estava (...) em sua fazenda”179. O fidalgo Bernardo Vieira Ravasco, em um apelo ao monarca contra o Conde de Óbidos, escreve que o vice-rei queria que fosse “universal a ruína de minha pessoa, casa e família”, impedindo-o de “tirar do meu engenho uma arroba de açúcar para o meu sustento e de minha casa”180. Anos depois, seu irmão, o Padre Antônio Vieira, pede a um correspondente que intervenha em favor dos Brito de Castro (capítulo VI), “pela antiga amizade e boa correspondência que sempre a nossa casa teve com as destes fidalgos, que por fim recomendo a vossas mercês como se a causa de ambos fora de meu irmão e sobrinho”181. O fidalgo Antônio de Brito de Castro, por quem o venerando pregador procurava interceder, apresentou suas credenciais em um arbítrio ao monarca de 1692 como “natural da cidade da Bahia, a sua casa entre todas dela a mais conhecida por principal e estimada e rica, tratada com autoridade e respeito de todos, nele concorrem as circunstâncias de ser bem procedido, amado da nobreza e povo, com parentes e amigos poderosos abundantes”182. Em 1681, o desembargador (e grande senhor de escravos, como vimos no capítulo II) Cristóvão de Burgos denuncia que, por causa dos negros feiticeiros, “estão muitas casas destruídas e perdidas, porque em havendo um na família [este] não descansou até não matar a todos seus parceiros pouco a pouco, sem se sentir, se não tarde, quando já não pode ter remédio e deixar a seus senhores ao presente destruídos”183. Nos registros paroquiais a expressão “da casa de” para indicar a propriedade de escravos começa a aparecer na década de 1650 nas três paróquias analisadas no capítulo II, e talvez tenha se tornado mais comum em finais do século (nove casos, quatro deles a partir de 1680). É certo, portanto, que noção de casa, entendida como unidade familiar sobre controle de um pater famílias, idealmente nobre, rica, aparentada e prestigiada, havia se tornado razoavelmente comum na Bahia na segunda metade do século, incluindo debaixo do mesmo telhado parentes, agregados e escravos. A dúvida, porém, é quanto essa noção de casa implicaria em termos de disciplina familiar, considerando a estratégia dispersiva adotada pela maioria das famílias de elite. Esse, porém, é tema para estudos futuros, preferencialmente em comparação com outras elites provinciais portuguesas.

179

IAN/TT, TSO, IL, CP, 33, fls. 440 e 454v. AHU, Bahia, LF, cx. 19, doc. 2210. Em requerimento no fim da vida, pede que lhe seja concedido alvará para que seu filho o suceda imediatamente no cargo de Secretário de Estado do Brasil, caso contrário ficaria “a sua casa e família em um notável desamparo e sem ter com que pagar a seus credores”: AHU, Bahia, LF, cx. 31, doc. 3931. 181 VIEIRA, Antônio. Cartas. Coord. e notas de João Lúcio de Azevedo. São Paulo: Globo, 2008, vol. III, p. 368. 182 BPA, 50-V-37, fls. 463-465v. 183 AHU, Bahia, LF, cx. 25, doc. 3018. 180

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Em alguns casos, a preocupação de preservar a linhagem e seu nome é facilmente percebida, como nos morgados instituído pelos Guedes de Brito e pelos Britos de Figueiredo. Intenção similar deve ter guiado os poucos que vincularam a maior parte de suas propriedades em favor de um herdeiro específico. Até aqueles que não o fizeram preocupavam-se em impedir a divisão da propriedade, como Diogo de Aragão Pereira, que escreveu em seu testamento: encomendo e peço muito ao senhor juiz dos órfãos ou a quem ficar [de] fazer estas partilhas para conservação do engenho como das fazendas de canas que fiquem obrigadas as fazendas ao engenho [de Cima], e a este respeito se pode abater o valor das ditas fazendas e avançar o engenho o preço para que assim se conserve e perpetue o sobredito engenho, e peço mais se avalie o engenho com todas as fábricas de escravos que nele o mais de Gentio de Guiné, mulatos, oficiais de serviços dele, não os trocando de um para o outro; e o mesmo encomendo e peço se faça no meu engenho da Ponta e nas mais fazendas, em ordem a sua conservação e melhor meneio184.

Havia, porém, outra maneira mais comum de reiterar no tempo a relação com os ancestrais: a repetição de nomes próprios. Através da nomeação dos filhos, estabelecia-se uma ligação com os ascendentes: Diogo de Aragão Pereira, por exemplo, batizou seu primogênito de Pedro Camelo, como seu pai. Muitas vezes é possível perceber essa ligação em todos os membros da família: o fidalgo Antônio de Brito de Castro teve um filho homônimo, outro Sebastião (em homenagem ao avô materno, Sebastião Parvi de Brito), outro André (nome do tio materno) e outro, ainda, Francisco de Brito Sampaio, homônimo exato do avô paterno. Mesmo a exasperante prática de irmãos adotarem sobrenomes completamente distintos (que parece ter sido menos comum em Salvador do que entre a aristocracia portuguesa ou a elite paulista)185, como Antônio de Sá Dória e Diogo Mendes da Costa, inseria-se dentro dessa prática: os sobrenomes do primeiro vinham da mãe (Francisca de Sá Dória), enquanto o segundo era homônimo do avô paterno. Ainda estamos longe, porém, da multiplicação de sobrenomes característica de alguns membros da elite baiana na segunda metade do setecentos e no Brasil imperial. Não consegui discernir nenhum padrão pré-determinado, como já se identificou para a França moderna, mas é muito provável que o prenome realmente funcionasse como “um elo simbólico de ligação entre a criança e determinados membros de sua parentela”186. Mesmo assim, certamente a fraca disseminação do morgadio produziu não só uma identidade e disciplina familiares menos poderosas e restritivas do que no Reino. Por outro

184

CALDEIRA, O Morgadio, pp. 190-1. Cf. MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Os nomes de família em Portugal: uma breve perspectiva histórica”. Etnográfica, vol. 12, n. 1, 2008, pp. 51-52. 186 ROWLAND, Robert. “Práticas de nomeação em Portugal durante a Época Moderna: ensaio de aproximação”. Etnográfica, vol. 12, n. 1, 2008, p. 34. 185

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lado, essa maior flexibilidade provava-se positiva, já que foram, repita-se, as famílias que adotaram uma estratégia de diversificação as mais capazes de se manter no topo por gerações. Por último, cabe destacar que a reprodução dessa elite se dava no espaço local: essas famílias não procuravam, com raríssimas exceções, expandir sua área de influência para outras capitanias, muito menos – exceto os poucos casos mencionados acima – transferir-se para o Reino, e mesmo visitas à Corte parecem ter sido raras, a se julgar pela documentação produzida em seus pedidos de mercês. A elite baiana estava plenamente estabelecida na América, e provavelmente sabia que seria impossível obter níveis similares de status e riqueza na Europa: assim, como a grande maioria das elites provinciais, tanto no Velho quanto no Novo Mundo, seu horizonte era local. Aproximavam-se, assim, muito mais da gentry da Virgínia, por exemplo, do que dos proprietários absenteístas do Caribe setecentista187. Mesmo dentro do império não tinham pretensão de expandir seus horizontes: enquanto em Pernambuco 30 membros da elite pediram como mercê entre 1641-83 o governo de praças ultramarinas, em nossa capitania o número não passou de sete – e nenhum deles obteve sucesso. Em acréscimo, só três eram naturais da Bahia (Gaspar Pacheco de Contreiras, Lourenço de Brito Correia e seu filho), pois os outros quatro eram militares com larga folha de serviços, o que inevitavelmente fazia com que tivessem horizontes mais amplos do que a elite baiana. É possível que um ou outro, como o rico lavrador vianês Manuel Maciel Aranha, tenha tentado participar das concorrências no Conselho Ultramarino para escolha dos governadores, mas, se foi o caso, nenhum deles foi bem-sucedido. Enquanto em Pernambuco a experiência de exílio durante o domínio neerlandês havia retirado parte de sua elite de seu berço esplêndido, e depois a consciência do excepcional serviço que haviam prestado ao expulsarem os neerlandeses e a necessidade de obter novos ingressos devido às dificuldades econômicas pós-restauração tenham conspirado para uma tentativa de ampliar seu raio de ação para todo o Atlântico Sul, a situação menos traumática na Bahia não produzira em sua elite tal necessidade ou ambição188. Se relevarmos o caso excepcional da família Sá, em razão de sua posição única como potentado americano e aristocrata da Corte, penso que o Rio de Janeiro devia se assemelhar ao caso baiano, assim como a maioria das elites locais portuguesas, que de modo geral evitaram participar da guerra contra Castela189. Os paulistas, por seu turno, saíram em massa da sua Cf. meu artigo “A formação de uma classe dominante: a gentry escravista na América Inglesa Continental (Chesapeake & Lowcountry, c. 1640 – c. 1750)”. História (Unisinos), vol. 17, n. 1, 2013, pp. 12-23, comparandoo com PARKER, Matthew. The Sugar Barons: Family, Corruption, Empire and War in the West Indies. Londres: Hutchinson, 2011, pp. 296-310. 188 KRAUSE, Em Busca da Honra, pp. 121-4; AHU, cód. 13, fls. 293-296v. Agradeço a Mafalda Soares da Cunha pela cessão desse documento. 189 COSTA, Fernando Dores. A Guerra da Restauração, 1641-1668. Lisboa: Horizonte, 2004, p. 113. 187

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capitania para combater indígenas e quilombolas no Norte da América Portuguesa; o fizeram, porém, menos por um ardente desejo de servir ao monarca do que em busca de terras, cativos e, para os líderes, mercês, inseridos que estavam em uma estrutura social que naturalizava esses grandes deslocamentos e embates como elemento constituinte da reprodução da força de trabalho e, consequentemente, das elites190. Um indicador desse horizonte local pode ser obtido a partir dos serviços alegados na obtenção de mercês: apenas cinco membros de famílias importantes da Bahia serviram no Reino, quatro dos quais por um breve período. O fato de três desses cinco serem irmãos (Lourenço, Afonso e Miguel Barbosa de França) só reforça quão rara era essa prática191. Assim, o único filho da Bahia a se destacar na Guerra da Restauração – sem dúvida o melhor teatro para se servir à monarquia em todo o século – foi o referido Miguel, que subiu a mestre de campo e permaneceu em Portugal192. Até a opção de não enviar os filhos à Coimbra revela algo sobre os limites da concepção de serviço à monarquia do grupo, pois os ofícios régios eram a ocupação mais prestigiosa disponível a um bacharel. Ao não produzir letrados, a elite baiana efetivamente fechava uma porta para a obtenção de honrarias. Não que esses homens não servissem à monarquia: fizeram-no, mas a seu modo, e em sua terra, principalmente como oficiais militares, caso de dúzias de membros da elite baiana ao longo do século – além de muitos outros forasteiros que nela se integraram193. Dominaram importantes ofícios, como o de provedor da alfândega (transmitido hereditariamente desde 1549 e controlado na maior parte do século pela família Brito), dotado de significativo poder de intervenção no comércio atlântico, principalmente através da determinação dos fretes cobrados para transporte dos produtos baianos e, principalmente, a secretaria de Estado do Brasil,

190

MONTEIRO, John. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, pp. 57-98; ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp. 238-46; PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: EDUSP/Hucitec, 2002; ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas: ideias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008, pp. 225-49. 191 KRAUSE, Em Busca da Honra, pp. 109-11. Nessa temática Pernambuco não parece ter sido muito diferente. 192 Cf. IAN/TT, COC, Livro 36, fls. 72-73; HOC, Letra M, mç. 48, n. 34; CG, vol. I, p. 248; PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portugueza, desde o anno de mil e quinhentos do seu descobrimento, até o de mil e setecentos e vinte e quatro. Lisboa: Oficina de Joseph Antonio da Silva, 1730, p. 661; Archivo Nacional Torre do Tombo. Inventário dos Livros das Portarias do Reino. Lisboa: Imprensa Nacional, 1912, vol. II (1653-64), p. 68; MENEZES, D. Luís de (Conde de Ericeira). História de Portugal Restaurado. Lisboa: Miguel Deslandes, 1698, tomo II, pp. 551, 562 e 567 (onde se diz que, junto com outro mestre de campo, procedeu “com tanto valor que por entre nuvens de balas desalojaram os castelhanos” da posição em que estavam fortificados). A julgar pela listagem de filhos notáveis do Brasil produzida por Rocha Pita, a participação americana deve ter sido irrelevante na Guerra de Sucessão Espanhola. 193 Em minha base de dados, 20 membros da elite política naturais da Bahia serviram na tropa paga ao longo de todo o século, além de 35 forasteiros. Muitos parentes desses homens, porém, também o fizeram, ainda que não estejam incluídos na base.

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efetivamente controlando a memória administrativa do governo-geral. Também ocuparam, por provimento do governador ou, em alguns casos, pela propriedade de alguns ofícios menores, como de escrivães da fazenda e ouvidoria-geral, assim como meirinho da Relação. Mesmo a importante posição de provedor-mor da fazenda foi controlada por membros da elite baiana nas décadas de 1660-70 (capítulo VI), e vários forasteiros que se integraram no grupo ocuparam os importantes postos de contador-geral e tesoureiro-geral. Como os postos na administração fiscal não exigiam qualificações formais – diferentemente dos ofícios de justiça – seu acesso era mais fácil, e seu poder significativo o suficiente para fortalecer as famílias que os controlavam. Ao mesmo tempo, essa significativa participação na administração periférica evidencia a “necessidade que a monarquia tinha de se apoiar nas elites locais”194, numa relação de mão dupla em que ambos os lados se beneficiavam – como veremos nos próximos capítulos.

Casando-se com Deus Para além do matrimônio, outro destino muito comum das filhas das elites em todo o mundo católico eram os conventos. Tal instituição agregava prestígio à localidade e a seu grupo dominante, enobrecendo tanta a cidade quanto seus pró-homens – e, consequentemente, legitimando e reforçando sua autoridade195. Talvez mais importante, porém, como disseram os camaristas em seu primeiro requerimento, escrito por volta de 1600, era a abundância de “mulheres donzelas, assim fidalgas como nobres, as quais por serem tantas não é possível casálas seus pais”. Pediam, portanto, licença para fundarem um mosteiro de freiras, e obtiveram o apoio do bispo D. Antônio Barreiros, que destacou o fato de Salvador ser a “Cabeça do Estado do Brasil”, posição prestigiosa que mereceria ser coroada com um convento. Conseguiram convencer a Mesa de Consciência e Ordens, mas não o monarca, pois a carta régia de 2 de setembro de 1603 negou a licença, com o argumento de que “sendo tão estendidas [aquelas partes do Brasil] que, para se povoarem é necessária muito mais gente, do que nelas há”196. A precocidade do pedido pode ser medida pelo fato de que aquele que viria a ser o primeiro convento feminino do ultramar português, o de Santa Mônica, em Goa, ainda estava em processo de fundação, só concluída em 1606. Por outro lado, as ilhas atlânticas já possuíam conventos desde finais do século XV, que se multiplicaram nas centúrias seguintes. Na América Cf. RODRIGUES, José Damião. “O provimento de ofícios da fazenda real nas ilhas atlânticas: o caso dos Açores” in: STUMPF, Roberta & CHATURVEDULA, Nandini (orgs.). Cargos e ofícios nas monarquias ibéricas: provimento, controlo e venalidade (séculos XVII e XVIII). Lisboa: CHAM, 2012, pp. 101-21, citação à p. 119, ainda que o controle das elites micaelenses sobre a administração financeira tenha sido mais forte do que na Bahia. 195 ATIENZA, Ángela. Tiempos de Conventos: una historia social de las fundaciones en la España Moderna. Madri: Marcial Pons, 2008, pp. 387-93. 196 IAN/TT, Livro 17, fls. 158-159 (primeira citação); CCLP, vol. 1, p. 22 (segunda). 194

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Espanhola, em todas as áreas centrais instituíram-se mosteiros de freiras poucas décadas após a fundação das cidades. A Cidade do México teve seu primeiro em 1540, e no final do seiscentos a Nova Espanha possuía 38. Até áreas periféricas, como Santiago do Chile, tiveram seus conventos bem antes de Salvador197. Se não sabemos quase nada sobre a dotação das filhas na Bahia, o exemplo supracitado dos 30 mil cruzados concedidos pelo rico Francisco Fernandes Dosim indica que esses podiam chegar a valores elevadíssimos, e a comparação com o restante do mundo ibérico no mesmo período nos garante que essa prática não podia deixar de ser importante também entre a elite baiana, provavelmente fornecendo, como no Rio de Janeiro e na Nova Espanha, “ao novo casal, uma espécie de ‘capital inicial’, a ser utilizado pelo genro na montagem dos negócios da nova unidade familiar”198. Assim, a impossibilidade de casar todas as filhas, quando estas eram numerosas, certamente incomodou algumas famílias nas gerações seguintes. Entretanto, a Coroa novamente negou a licença para a fundação de um convento em 1646, apesar dos pedidos do “Bispo, Governador e Câmara”199, provavelmente pelo mesmo motivo alegado mais de 40 anos antes: o possível prejuízo ao crescimento demográfico na América. Em 1663, a Câmara volta à carga, afirmando que “como no Brasil não há morgados e se repartem neles muitos filhos, ficam as filhas faltas dos dotes para seu estado conjugal e havendo mosteiro será menor a despesa e mais nobre o Estado”200. Ou seja, a estratégia familiar dispersiva tornaria ainda mais necessário um convento, já que a vinculação de bens não era utilizada para impedir a fragmentação da propriedade. Foi, porém, a longa representação do licenciado João de Góis de Araújo que finalmente convenceu D. Afonso VI. O Procurador do Senado em Lisboa destacou que havia “muitas donzelas pessoas de qualidade que estão com fervorosos desejos de servir a Deus”, mas o custo e, principalmente, as dificuldades impediam que elas fossem enviadas para conventos em “partes tão remotas” quanto o Reino (invertendo-se, aqui, a noção usual do Brasil como distante do Reino). Essa situação agravava-se por ser o Brasil “muito fecundo de partos femininos”, não havendo nem fazenda para dotar a todas as filhas, nem “sujeitos capazes” para casarem com

VIEIRA, Alberto. “A Igreja e a cultura” e LEITE, José Guilherme dos Reis. “A Igreja e a Cultura” in: MATOS, A Colonização Atlântica, pp. 180 e 509; SOCOLOW, Susan Migden. The Women of Colonial Latin America. Cambridge: Cambridge UP, 2000, pp. 91-3. 198 SAMPAIO, Na encruzilhada do Império, p. 291 (citação), 298 e LAVRIN, Asunción & COUTURIER, Edith. “Dowries and wills: a view of women’s socioeconomic role in colonial Guadalajara and Puebla, 1640-1790”. HAHR, vol. 59, n. 2, 1979, pp. 280-304. Cf. também NAZZARI, Muriel. O Desaparecimento do dote: mulheres, famílias e mudança social em São Paulo, Brasil, 1600-1900 (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2001 [1991], pp. 27-82. 199 AHU, cód. 13, fl. 329v, CCLP, vol. 6, p. 320 e AHMS, PR, vol. II, fls. 24v-25. 200 AHU, Bahia, LF, cx. 17, doc. 1950 (ênfase minha) 197

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todas. Contrariamente ao que se dizia, o convento não prejudicaria o crescimento demográfico, antes o impulsionaria, “porque por aquele meio se perpetuaram os moradores nele sem tratarem de mudanças de casas e famílias como até agora fizeram muitos com ocasião de virem a este reino fazer suas filhas religiosas viverem nela com elas e outros a quem o amor paternal das que já tinham religiosas obrigou a mudança”. Por último, a guerra contra os neerlandeses havia empobrecido os vassalos, que mesmo assim contribuíam no limite de suas possibilidades para o donativo de paz de Holanda e dote da Rainha da Grã-Bretanha e o sustento da infantaria, de modo que mereceriam essa mercê (capítulos VI e VII). Com o apoio tanto do ex-governador Francisco Barreto quanto do Vice-rei Conde de Óbidos, assim como do Conselho Ultramarino e da Mesa de Consciência e Ordens (que contrasta a inexistência de ordens regulares femininas em Salvador com sua abundância nos Açores), o rei finalmente concedeu a licença para fundação do mosteiro de freiras, mais de 60 anos depois do primeiro pedido201. A íntima relação entre o Senado e o Convento do Desterro pode ser vista pelas cartas nos anos seguintes, nas quais os camaristas fazem o possível para colocá-lo em funcionamento o quanto antes – o que, porém, só ocorre em 1677, após alguns conflitos e considerável dispêndio de recursos pela municipalidade202. Em teoria, a elite procurava afirmar sua posição privilegiada através de mais um elemento: a garantia de que suas filhas teriam preferência para professarem como freiras, evitando a dispendiosa viagem para Portugal (provavelmente muito mais falada do que realmente realizada)203. Esse privilégio seria justo, “em remuneração do trabalho contínuo que temos de servir neste Senado sem salário algum e ser o dito convento

201

AHU, cód. 16, fls. 83v-85. Cf. também Bahia, LF, cx. 17, docs. 1993 e 1999; BPA, 47-VIII-10, fl. 218-41 e 47-VIII-15, fls. 602 e segintes; CCLP, vol. 7, p. 98 e vol. 9, p. 273 e PITA, História, p. 400. Susan Soeiro tenta explicar a fundação de conventos “como uma resposta às transformações econômicas e demográficas que afetavam a região baiana”, mas não consegue estabelecer uma ligação efetiva a percebida crise açucareira e a fundação do mosteiro. Entretanto, como vimos, as décadas de 1660-70 foram de acelerada expansão econômica: “The feminine orders in colonial Bahia, Brazil: economic, social, and demographic implications, 1677-1800” in: LAVRIN, Asunción (ed.). Latin American Women: historical perspectives. Westport: Greenwood Press, 1978, pp. 173-97 (citação à p. 182). Cf. também id. A Baroque Nunnery: the economic and social role of a colonial convent. Santa Clara do Desterro, Salvador, Bahia, 1677-1800. Tese de Doutorado. Nova York: New York University, 1974, pp. 15-23 e NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Patriarcado e religião: as enclausuradas clarissas do Convento do Desterro da Bahia, 1677-1890. Salvador: Conselho Estadual de Cultura, 1994, pp. 50-70. 202 SOEIRO, A Baroque Nunnery, pp. 24-32 e NASCIMENTO, Patriarcado e Religião, pp. 71-81. 203 Veja-se DH, vol. 88, pp. 255-61. Conheço poucos casos em que isso realmente ocorreu: duas irmãs, filhas de Lourenço Cavalcante de Albuquerque, e amantes de Bernardo Vieira Ravasco e D. Francisco Manuel de Melo (CG, vol. I, pp. 117-8; DH, vol. 66, pp. 198-9), assim como as duas filhas do capitão minhoto Teotônio Soares de Brito, que em 1673 disse “ter vendido suas fazendas afim de passar para o Reino, na primeira ocasião de frota se pudesse, com sua loja e família, para efeito de dar estado religiosas a muitas filhas que tinha” (AC, vol. V, p. 90). Seu filho casou-se em Braga, mesma cidade onde suas filhas foram se recolher em 1677, justamente quando o convento de Santa Clara finalmente era fundado em Salvador: cf. ARAÚJO, Maria Marta Lobo de. “Dotes de freiras no mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Braga (século XVII)”. Noroeste, vol. 1, 2005, p. 125; CG, vol. I, p. 98; IAN/TT, COC, L. 56, fls. 124-124v.

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criado pelos oficiais da Câmara”204. Como quase metade das freiras professas até 1700 eram filhas de camaristas (e muitas das restantes eram parentes de membros da elite), evidencia-se como os serviços da Bahia, repetidamente enunciados pela municipalidade, alcançaram da Coroa mais um mecanismo para garantir a reprodução social do grupo dominante na capitania, cada vez mais consolidado, como vimos acima, e no momento em que esse passava a, cada vez mais, se representar como um estamento nobiliárquico (capítulo IV). Entretanto, como no caso da diferença entre as estratégias dispersiva e concentradora destacada acima, a popularidade do convento não era uniforme entre todas as famílias baianas, mas sim uma escolha de certas parentelas. De 22 famílias baianas catalogadas por Jaboatão que tiveram ao menos uma filha no convento entre 1677-1700, apenas 11 filhas casaram, enquanto 44 professaram no Desterro205. Os 600$ de dote para as filhas freiras eram uma soma bem menor do que se gastaria em um matrimônio, tornando a escolha economicamente vantajosa para impedir a divisão do patrimônio familiar. O melhor exemplo dessa estratégia é o supracitado homem de negócio Domingos Pires de Carvalho que, para vincular o máximo de bens para seu único filho homem, colocou as quatro filhas no convento do Desterro – feito conseguido através de sua intensa atuação em favor do mosteiro, inclusive supervisionando pessoalmente as obras, emprestando mais de 50.000 cruzados para cobrir os atrasos da Câmara, além de dotar suas quatro filhas com outros 18.000. Por outro lado, certamente a presença de parentas servia de incentivo para as mulheres lá adentrarem (como as duas filhas mais novas de Pires de Carvalho, que “se davam por contentes com os dotes para serem religiosas professas no dito convento, onde tinham já duas irmãs”)206, ao mesmo tempo em que freiras podiam exercer pressão dentro da instituição para receber suas irmãs, primas e sobrinhas. Como no exemplo acima, uma análise detalhada das 81 primeiras freiras que professaram entre 1678 e 1714207 demonstra que foram principalmente homens novos que colocaram sua filha no Desterro. Nenhum Muniz ou Aragão o fez, apesar de seu destaque na Câmara nas últimas décadas do século; os Araújo colocaram quatro filhas, mas duas eram do forasteiro João de Aguiar Vilasboas, que casou dentro da família; da mesma maneira, nenhuma mulher dos Soeiro, Ferreira, Brandão ou Pimentel tornou-se freira. Os Albuquerque tiveram duas, os Brito de Castro seis (todas filhas de Francisco de Brito de Sampaio – talvez a fama de

204

CS, vol. III, p. 9. Cf. também AHU, Bahia, LF, cx. 23, doc. 2689; CS, vol. II, pp. 32-4, 51-2, 125-6; vol. III, pp. 8, 15-6, 26 e 57-8; vol. IV, pp. 53-5. 205 SOEIRO, Susan. “The social and economic role of the convent: women and nuns in colonial Bahia, 16771800”. HAHR, vol. 54, n. 2, 1974, pp. 215-6. 206 NASCIMENTO, Patriarcado e Religião, pp. 76-8; AHU, Bahia, LF, cx. 32, docs. 4107-4110 (citação) 207 A partir da lista publicada em NASCIMENTO, Patriarcado e religião, pp. 409-59.

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cristão-novo do avô materno, o mestre de campo Nicolau Aranha Pacheco, estivesse gerando dificuldades no mercado matrimonial) e os Burgos uma (filha natural, também infamada de cristã-nova). Assim, mesmo que diversos membros da elite, como Antônio da Silva Pimentel, Antônio Guedes de Brito, Diogo de Aragão Pereira, Francisco Gil de Araújo e Francisco Dias de Ávila, tenham contribuído com grandes quantias para a edificação do convento, nenhum desses optou por colocar suas filhas ou irmãs no Desterro. Foram os militares reinóis, como Luís Gomes de Bulhões (uma filha e três netas) e Pedro Gomes (duas filhas, doando 20.000 cruzados para o término da edificação), e principalmente os homens de negócio, como Manuel de Oliveira Porto (cinco, com uma dotação de 29.000 cruzados 208), Henrique de Guisenrode (duas), Lourenço da Rocha Moutinho (duas) e Manuel de Almeida Mar (duas) que estiveram melhor representados entre os pais das religiosas. Assim, só 19 das primeiras freiras pertenciam às famílias tradicionais baianas, concentradas em algumas linhagens específicas; 14 provinham de famílias residentes, mas que permaneciam nas franjas do poder político, embora seus pais fossem senhores de engenho, lavradores e militares; 23 tinham como pais forasteiros inseridos na elite política (mas não casados nas famílias tradicionais) e 21 forasteiros que não pertenciam à elite, em sua maioria negociantes (as últimas quatro são desconhecidas ou naturais de outras capitanias). Não é possível pensar, porém, que as famílias tradicionais que por essas décadas dominavam largamente a Câmara e a Misericórdia, como vimos acima, estivessem sendo excluídas contra sua vontade do convento fundado graças a sua agência política junto à Coroa. Logo, conclui-se que elas simplesmente optaram por não ocupar as vagas disponíveis, abrindo espaço para moças de menor qualidade, que não se fizeram de rogadas. Provavelmente as famílias tradicionais optaram por manter os padrões a que se acostumaram no século precedente, casando suas filhas com quem lhes parecesse mais apropriado. Não deviam faltar pretendentes, e talvez nem dinheiro para dotar as filhas – exceto quando eram em número exagerado, como as seis de Francisco de Brito Sampaio. Assim, a elite baiana (e ainda em maior grau as suas contrapartes nas outras conquistas atlânticas lusas) diferenciava-se dos grupos dominantes em todo o mundo católico, de São Miguel à Cuzco, onde conventos foram fundados na primeira geração a ocupar o território209. O convento, portanto, acabava por ser mais interessante para as principais famílias pelo prestígio que agregava a Salvador e,

208

SOEIRO, A Baroque Nunnery, p. 33-5; NASCIMENTO, Patriarcado e Religião, pp. 60, 75 e 109. Cf. RODRIGUES, Poder Local, pp. 162-74 e o magistral trabalho de BURNS, Kathryn. Colonial habits: convents and the spiritual economy of Cuzco, Peru. Durham: Duke UP, 1999, pp. 101-54. 209

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consequentemente, à sua elite governante, que propriamente como um recurso essencial para suas estratégias – já que, no final das contas, tinham sobrevivido por um longo tempo sem ele. Assim, os setores que mais se interessariam pelo convento eram aqueles em processo de afirmação social (classificação que poderia incluir até filhos mais novos das famílias tradicionais). Entende-se, portanto, o interesse dos forasteiros, pois no final do século provavelmente seria difícil casar sua prole com membros das grandes famílias, e o matrimônio com outros forasteiros pouco acrescentaria em prestígio210. Valia mais, portanto, fazer como Pires de Carvalho e colocar as filhas no convento, ou ao menos algumas delas, dotando com maior largueza as remanescentes e/ou concentrando seus recursos nos filhos homens. O mestre de campo Pedro Gomes combinou os dois procedimentos, pois duas filhas foram freiras, uma casou-se com um membro da dinastia fluminense dos Sá, enquanto seu único filho homem sobrevivente, Antônio Gomes, beneficiou-se com a instituição de um morgado211. Mesmo contra as normas legais, porém, ao menos algumas das freiras herdaram de seus pais212. Seria necessário, porém, estender a análise temporalmente e incluir no grupo estudado todos as filhas da elite baiana, de modo a possibilitar uma análise conclusiva sobre essas diferentes estratégias reprodutivas de estabelecidos e forasteiros. É interessante notar, porém, que parece ocorrer um desenvolvimento inverso ao percebido em Portugal entre 1380-1580, em que quanto mais alto o status, maior a tendência de colocar as filhas em conventos. Assim, enquanto as famílias tradicionais baianas aproximam-se das estratégias reprodutivas da baixa nobreza do século XVI (momento em que os fundadores transferiram-se para o Brasil), quando o ideal vincular ainda não era tão dominante, muitos alpinistas sociais chegados posteriormente tentaram aproximar-se do modelo aristocrático ideal já mais amplamente difundido em Portugal e Ilhas, ao menos no que se refere à reclusão de sua descendência feminina e, em alguns casos, como nos Pires de Carvalho e Gomes, quanto à vinculação de suas propriedades213.

Classe e Estamento Não podemos deixar de examinar a base socioeconômica da elite governante da Bahia. Ao longo do século, foram escolhidos 503 vezes juízes ordinários, vereadores e provedores da Misericórdia entre 1614 e 1700, e em 417 casos (83% do total) foi possível determinar a

210

Os homens de negócio conseguiam casar com filhas de senhores de engenho, mas uma análise mais detalhada é necessária para determinar as ligações familiares desses homens, já que a posse de uma moenda não significava o pertencimento às principais famílias, como veremos abaixo: FLORY, Bahian Society, pp. 230-4. 211 CG, vol. II, pp. 570-2. 212 NASCIMENTO, Patriarcado e Religião, pp. 309-10. 213 BOONE III, “Parental investment”, p. 867.

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ocupação do eleito. Como, porém, as fontes não são uniformes, reiterativas ou completas, mas sim muito fragmentadas, é preciso primeiro enumerar os problemas dos resultados obtidos. Em primeiro lugar, diversas pessoas mudaram de ocupação ao longo do tempo: o supracitado Diogo de Aragão Pereira era senhor de engenho em finais da década de 1620, lavrador rico em 1638, e duas décadas depois já havia se tornado proprietário de duas moendas. Nesses casos, como é quase impossível determinar qual era a posição no ano específico de exercício dos cargos, geralmente optei pela posição mais elevada (senhor de engenho em vez de lavrador, mercador terratenente em vez de mercador), a não ser quando a identificação fosse muito próxima ao ano em que o personagem ocupava o posto. Há também aqueles que se identificam como parte do setor açucareiro em petições, mas não explicitam se são senhores de engenho ou lavradores de cana: contei-os como se fossem o segundo caso. Em 36 casos, a eleição recaiu em filhos ou irmãos de membros da açucarocracia e, embora esses homens quase certamente fossem senhores de engenho ou, mais provavelmente, lavradores, foram classificados como desconhecidos. Por último, alguns dos eleitos de ocupação ignorada provavelmente eram mercadores, assim como outros identificados como senhores de engenho ou lavradores, pois a categoria dos homens de negócio aparece mais raramente nas fontes utilizadas, e o grupo produz muito menos petições coletivas do que a açucarocracia.

Gráfico VIII: Ocupação dos eleitos como juízes ordinários, vereadores e provedores (%) 70 60 50 40 30 20 10 0

60

21 7

3

4

3

1

1

Fonte: Base elites baianas seiscentistas.

Salta aos olhos a importância dos senhores de engenho, mesmo que estejam longe de dominar completamente o poder local. Mais do que isso, como se percebe a partir dos casos analisados ao longo desse capítulo, quase todos os homens mais destacados da elite baiana

142

envergavam essa qualificação. Olhando-se para o caso específico da prestigiosa provedoria da Misericórdia, dentre as 57 eleições entre 1628-1700 (excluindo as que recaíram em governadores e oficiais régios), 47 (81%) das escolhas incidiram em senhores de engenho (incluindo aí o mercador Francisco Fernandes Dosim, cinco vezes provedor – há de se notar que esse homem levantou seu engenho em 1655214, apenas um ano antes de ser eleito para o posto mais prestigioso da capitania, nos permitindo suspeitar de uma relação direta de causa e efeito), quatro em lavradores (qualificados como “ricos”, como João Álvares da Fonseca215), três em mercadores terratenentes que não eram donos de moendas e três em proprietários de terras, mas ignoro se possuíam engenhos. Confirma-se, assim, a ênfase dada no poder dos senhores de engenho, destacada por diversos contemporâneos. Um exemplo menos conhecido do que a clássica formulação de Antonil pode ser encontrado na denúncia de 1632 do eclesiástico Manuel Temudo Barata, o qual, ao retornar a Lisboa após nove anos na Bahia, afirmou que “ser lá uma pessoa senhor de engenho é como em Portugal ser senhor de vilas”216. Não se deve considerar irrelevantes, porém, os 10% alcançados pelos homens de negócio, pois no Reino eles estavam praticamente ausentes dos cargos da República, e mesmo no Brasil ainda eram pouco numerosos, a se julgar pelo que se sabe dos casos do Rio de Janeiro, Pernambuco e São Paulo. Uma das únicas áreas para as quais temos um número mais preciso é São Miguel, que contou com apenas 3,4% de negociantes entre seus vereadores e procuradores seiscentistas217. É possível, portanto, que Salvador fosse a municipalidade do império português seiscentista (com exceção de Macau) em que os mercadores tivessem maiores possibilidades de aceitação na elite política, prenunciando um desenvolvimento que, em diferentes graus, se dará em todo a América Portuguesa no século seguinte. Nesse sentido, Salvador aproximavase mais da Cidade do México do que suas congêneres no império português218. 214

DH, vol. 19, pp. 22-3. CCT, vol. II, pp. 198-200. 216 IAN/TT, TSO, IL, CP, Livro 15, fl. 50 (citação); ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. Editado por Andrée Mansuy Diniz Silva. Lisboa: CNCDP, 2001 [1711], pp. 70-1. 217 RODRIGUES, Poder Municipal, pp. 81-2. Note-se que o autor inclui os procuradores, opção que, caso tivesse sido seguida aqui, ampliaria significativamente a participação dos negociantes. Os mercadores tiveram uma presença um pouco mais significativa no Porto da primeira metade do setecentos, alcançando pelo menos 5% do total: NUNES, Ana. História Social da administração do Porto (1706-1750). Porto: Ed. da Universidade Portucalense, 1999, pp. 123, 168-172 e 192-4. 218 PENALVA, Elsa. “Merchant Elites of Macao in 1642”. Bulletin of Portuguese-Japanese Studies, n. 17, 2008, pp. 167-195; PAZOS, El ayuntamiento, pp. 347-52; HOBERMAN, Louise Schell. Mexico’s Merchant Elite, 15901660: Silver, State, and Society. Durham: Duke UP, 1991, pp. 156-8. Em Quito a importância dos comerciantes era ainda maior, dentro de uma elite quitenha cujas atividades econômicas eram diversificadas: PONCE LEÍVA, Certezas, pp. 335-421. A Guatemala conheceu uma predominância de negociantes, comprovando que a venalidade facilitou a entrada de imigrantes enriquecidos no poder local: WEBRE, Stephen. “El cabildo de Guatemala en el siglo XVII: ¿Una oligarquía criolla cerrada y hereditária?”. Mesoamérica, ano 2, caderno 2, 1981, pp. 1-19. Vejase o caso excepcional do Recife, em que a desproporção entre os senhores de engenho e comerciantes vigente na Bahia seiscentista apresenta-se, mas em sentido oposto: SOUZA, Elite y ejercicio de poder, pp. 402-3. 215

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A riqueza, o prestígio e o poder inerentes ao controle da terra, da mão de obra e da moenda davam aos senhores de engenho um papel de destaque quase inevitável na política baiana. Se, porém, quase todos os homens mais destacados eram senhores (especialmente nas últimas décadas do século, com a multiplicação de moendas), isso está longe de significar que todos os senhores de engenho pertenciam à elite política. Para além de Antônio de Brito de Sousa e Antônio Fernandes de Simas, já mencionados acima e que serviram no cargo inferior de procurador da Câmara, e de alguns cristãos-novos notórios, como os supracitados Lopes Ulhoa e Lopes Franco, não é impossível encontrar outros senhores de engenho com pouca ou nenhuma participação na vida política local. Em 1638, dos 33 senhores convocados a fornecerem lanchas para a armada do Conde da Torre, sete não ocuparam cargos nem estabeleceram relações familiares com membros da elite política219. Em 1669, Bento Pestana foi o único desses outsiders a assinar uma petição de 20 senhores de engenho baianos: Pestana foi um comerciante que serviu como fiador de viagens para a Costa da Mina a partir de Salvador, mantendo relações com o capitão, negociante e, depois, senhor de engenho Domingos Martins Pereira, de quem tratamos algumas páginas atrás. Talvez essa falta de integração se deva ao fato de que pouco depois o homem de negócios retornaria a Lisboa, onde se envolveria no contrato do tabaco220. Já numa relação de devedores à Santa Casa em 1694, surgem 23 senhores de engenho, dos quais quatro não faziam parte da elite221. Entretanto, sem uma listagem completa dos senhores de engenho é impossível estimar quantos de seus membros estavam excluídos da elite política. Em geral, porém, parece correto seguir os passos da historiografia e reconhecer a predominância dessa categoria222. Até os senhores de engenho sem pedigree provavelmente conseguiam adentrar na elite local, se insistissem por tempo suficiente. Um exemplo de um processo de ascensão social secular é o senhor de engenho Domingos da Silva Morro, filho de um “mestre de fazer açúcar” chegado ao Brasil em 1618, que ascendeu a lavrador, casou com a filha de um almotacel, comprou terras e obteve uma sesmaria. Apesar da origem humilde, Domingos chegou a capitão de ordenança em 1689, irmão de maior condição da Misericórdia em 1692 e, finalmente, sargento-mor em 1695. Sua ascensão foi consagrada no início do século XVIII com a obtenção do hábito de Cristo para um filho e o casamento de uma filha com o coronel Francisco de Araújo de Aragão, filho do

219

CCT, vol. II, pp. 198-9. AHU, Bahia, LF, cx. 20, doc. 2366; LOPES, Gustavo Acioli. Negócio da Costa da Mina e Comércio Atlântico: tabaco, açúcar, ouro e comércio de escravos – Pernambuco (1654-1760). Tese de Doutorado. São Paulo: PPGHE/USP, 2008, pp. 42 e 214. 221 LIMA, A Situação da Misericórdia. 222 FLORY, Bahian Society, pp. 128-47. 220

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coronel Pedro Camelo de Aragão223. Como disse Cabral de Mello, “no final das contas, a família nobre e a propriedade açucareira tornaram-se praticamente coextensivas”224. Entretanto, não se deve exagerar a preeminência dos senhores de engenho. Em quase todos os requerimentos do setor açucareiro, senhores assinam juntos com os principais lavradores de cana, e laços de parentesco muitas vezes os uniam225. Como o percurso familiar de Domingos demonstra, a ascensão de lavrador a senhor não era rara, especialmente em momentos de expansão da economia açucareira, como na recuperação após a guerra contra os neerlandeses: ao menos 6 membros da elite política baiana traçaram esse caminho, e outros 11 senhores de engenho dentro do grupo eram filhos de lavradores. Daí a pertinência do termo açucarocracia, recorrentemente utilizado ao longo dessa tese: como disseram os camaristas de 1667 (dentre os quais o supracitado Antônio Guedes de Brito), “nesta capitania, (...) a maior esfera é ser senhor de engenhos ou lavrador de canas”226. Nossos protagonistas tinham plena consciência de que a classe social a que pertenciam incluía não somente os donos de moendas, mas também os lavradores prósperos, que comandavam, como os senhores, algumas dezenas de escravos e produziam quarenta ou cinquenta tarefas de cana, tendo uma propriedade que valeria em média algo em torno de 10.000 cruzados, soma considerável227. Mas será correto chamar a açucarocracia de classe? Não se está fazendo mais que seguir Stuart Schwartz, que demonstrou o quanto esse grupo era capaz de “agir de modo coeso como uma classe com interesses e objetivos próprios, assumindo papéis políticos e procurando influenciar a política régia e municipal”, peticionando como um grupo mobilizado228. Em 1632, uma longa petição dos “senhores de engenho e lavradores” da capitania para o governador e a Coroa pode ser lida como uma lista parcial dos homens da governança, como o fidalgo Diogo de Aragão Pereira, e André Cavalo de Carvalho, Domingos Barbosa de Araújo, Belchior Brandão, Eusébio Ferreira, Felipe de Moura, Luiz de Melo de Vasconcelos – todos juízes ordinários e vereadores da Câmara – juntamente com outros que não faziam parte do grupo, mas com os quais tinham em comum a participação na produção açucareira, como o rico cristãonovo e senhor de engenho Diogo Lopes de Ulhoa229. Em 1664, o procurador da Câmara em Lisboa, o licenciado João de Góis de Araújo, ajuntou uma cópia dessa petição com outra de 1656, em que “os oficiais da câmara desta cidade em nome dos moradores que nela são senhores 223

IAN/TT, HOC, Letra R, mç. 1, n. 74; DH, vol. 24, pp. 112-4; AC, vol. I, p. 134; CG, vol. I, pp. 177 e 190. MELLO, Rubro Veio, p. 173. 225 SCHWARTZ, Segredos Internos, pp. 253-4. 226 AHMS, PGS, 1660-77, fl. 115 (ênfase minha). 227 FLORY, Bahian Society, p. 65. 228 SCHWARTZ, Segredos Internos, p. 176. 229 AHMS, PR, vol. I, fls. 123-139v. 224

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de engenhos e lavradores de canas” pediam que as execuções dos bens dos produtores pelos seus credores fossem suspensas até a vinda da frota, devido ao baixíssimo preço do açúcar nesse período230. Já em 1662, a discussão sobre a proibição ou não da construção de engenhos à beiramar levou a uma grande mobilização, com mais de uma centena de indivíduos subscrevendo uma petição refutando a proibição231. A mesma temática gerou uma nova petição em 1669, a primeira que encontrei somente dos senhores de engenho, encaminhada pela Câmara ao governador, o qual transmitiu seu conteúdo (agora favorável à proibição) à Coroa232 (capítulo I). Em 1687, novamente temos outra petição assinada unicamente por senhores de engenho, contra uma provisão régia sobre as marcas que deveriam ser colocadas nas caixas de açúcar233. Ao inchar o grupo dos senhores de engenho, é possível que a multiplicação de moendas a partir da década de 1660 tenha tornado menos necessária a aliança com os lavradores 234, mas confirmar essa ideia exigiria não só mais dados mas, principalmente, estender a pesquisa no tempo. De qualquer maneira, é sugestivo que, se entre 1637 e 1646 lavradores foram eleitos como provedores por três vezes, somente um conseguiu esse feito no restante do século: o fidalgo bracarense Antônio de Brito de Castro, em 1670. Em todas essas petições os signatários identificam-se claramente a partir de sua relação com os meios de produção, fosse como senhores (ou donos, em alguns poucos casos) de engenho ou como lavradores de cana. Possuíam, assim, consciência não só de sua situação particular, mas também coletiva – incluindo mesmo homens com os quais jamais casariam suas filhas, como o cristão-novo Diogo Lopes de Ulhoa. Se as cinco petições citadas acima podem parecer pouco representativas, deve-se lembrar que a instituição preferencial de defesa dos interesses da classe açucareira era a Câmara, como notaram os comerciantes de Lisboa em 1612 e o governador-geral Antônio Teles da Silva em 1644, em documentos citados no início desse capítulo. O Senado foi responsável, portanto, por enviar à Coroa ao longo do século 51 cartas em defesa da produção açucareira, para além de 85 sobre crédito, moeda e comércio atlântico – temas fundamentais para a saúde da economia da capitania (capítulo VII). Numa litania que seria cansativo repetir aqui, a municipalidade reclama dos altos impostos, dos baixos preços do açúcar, das dificuldades de comércio e do endividamento dos senhores, pois sua preocupação era sempre com a ruína de “todos os senhores de engenho e lavradores de açúcar”235 – ou seja,

230

AHU, Bahia, LF, cx. 18, doc. 2024. “Liberdade e limitação”, pp. 493-9. 232 AHMS, PGS, 1660-77, fls. 164-170v e AHU, Bahia, LF, cx. 20, doc. 2366. 233 AC, vol. VI, pp. 91-2. 234 Sua situação também parece ter se degradado em Pernambuco nesse período: MELLO, Rubro Veio, p. 143. 235 Cf., por exemplo, CS, vol. II, p. 119. 231

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com os efeitos das conjunturas econômicas no grupo dominante da capitania. Vê-se, assim, como o poder local agia constantemente em defesa dos interesses açucarocráticos, atuando como seu porta-voz, “aquele que, ao falar de um grupo, ao falar em lugar de um grupo, põe, sub-repticiamente, a existência do grupo em questão, institui este grupo”236. Assim, podemos identificar a açucarocracia como classe “porque, repetidamente, as pessoas se comportaram de modo classista”237. Entendendo classe como uma situação de mercado e classificando indivíduos e grupos a partir de sua relação com os meios de produção, atividade econômica e nível de riqueza, penso ser seu uso justificado na época moderna e, mais do que isso, fundamental para não minimizarmos os elementos econômicos constituintes da elite. Como escreveu um dos principais historiadores revisionistas da Revolução Francesa ao criticar a ênfase exagerada no modelo de Roland Mousnier de uma sociedade de ordens, “nenhuma hierarquia pode existir sem fazer referência a diferenciais de poder, e diferenciais de poder sem relação alguma com a riqueza são praticamente inconcebíveis”238. A definição aqui utilizada não exige o funcionamento de um fictício “mercado autorregulado” nem exclui a intervenção política na economia. Pelo contrário, o melhor testemunho do poder de uma classe é exatamente a capacidade de intervir no mercado em seu próprio benefício – como a obtenção de privilégios que proibiam a fragmentação da propriedade açucareira para pagamento dos credores (capítulo IV), a manipulação da moeda para evitar a fuga de numerário (capítulo VII), o recebimento de sesmarias e a utilização de uma instituição por eles controlada (a Misericórdia) para lhes garantir acesso preferencial a crédito barato. Como enfatizou João Fragoso, os ofícios na administração periférica da Coroa e no poder local funcionavam como importantes ferramentas de acumulação para as elites políticas locais, de modo que a política era uma arena central para constituição da açurocracia239. Paralelos podem

BOURDIEU, Pierre. “Espaço social e gênese de classes” [1984] in: id. O poder simbólico (trad.). Rio de Janeiro: Bertrand, 2005 [1989], 8ª ed., p. 159, em artigo como um todo muito relevante para essa seção. 237 THOMPSON, E. P. “Algumas observações sobre classe e ‘falsa consciência’” [1977, trad.] in: id. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Organizado por Antônio Luigi Negro e Sergio Silva. Campinas: EDUNICAMP, 2001, p. 270. 238 DOYLE, William. “Myths of order and ordering myths” in: BUSH, Michael (ed.). Social orders and social classes in Europe since 1500: studies in social stratification. Nova York: Routledge, 1992, p. 221. Para uma elegante reflexão sobre o conceito e sua aplicabilidade no Atlântico inglês, cf. os trabalhos de Keith Wrightson, principalmente “Class” in: ARMITAGE, David & BRADDICK, Michael (eds.). The British Atlantic World, 15001800. Nova York: Palgrave Macmillan, 2002, pp. 133-53. Cabe notar que nenhum dos dois autores é marxista. 239 FRAGOSO, João. “A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial (séculos XVI e XVII)” in: id., GOUVÊA, Fátima & BICALHO, Fernanda (orgs.). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, pp. 44-50. Cf. também SAMPAIO, Na encruzilhada do Império, pp. 273-313 e RICUPERO, A formação da elite, pp. 151-266. 236

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ser facilmente encontrados na formação da planter class das regiões escravistas da América inglesa, estando longe de ser, portanto, uma especificidade ibérica240. Como fez Evaldo Cabral de Mello, só é possível utilizar o conceito de classe sem violentar a visão de mundo coeva quando se recorre a seu irmão xifópago, o estamento, que identifica outra forma de hierarquização baseada na honra, no estilo de vida e em distinções que estabelecem diferenças juridicamente relevantes através da atribuição de privilégios 241. Esse será o tema do próximo capítulo, mas cabe lembrar que Evaldo Cabral de Mello enxergou um processo de “metamorfose da açucarocracia em ‘nobreza da terra’”242, afirmando que, apesar dos elementos classistas presentes na elite açucareira, ela se pensava e era vista como estamento243. Voltando a Max Weber, referência inescapável, somos lembrados de que “as distinções de classe estão ligadas, das formas mais variadas, com as distinções de estamento”244. F. L. Carsten demonstrou que a aristocracia prussiana era, ao mesmo tempo, estamento e classe, enquanto James Collins defendeu a existência de dois modelos hierárquicos entrelaçados na França Moderna, cujo topo controlava o poder político245. Já Trevor Burnard apresentou uma formulação para a elite setecentista de Maryland que cai como uma luva para nosso caso: riqueza era uma condição necessária, mas não suficiente para que alguém se tornasse um líder político. Um longo tempo de residência, conexões com membros de gerações anteriores que ocuparam cargos públicos e a inserção no grupo dos grandes proprietários da província facilitavam o caminho para os cargos ou convenciam os cavalheiros ricos que eles precisavam, como dever aos seus compatriotas, se oferecer para ocupar estes cargos. Mas se estas duas elites não eram idênticas, também dificilmente poderiam ser caracterizadas como funcionalmente distintas. As características que distinguiam a elite econômica eram aquelas que marcavam a

Cf. SCHWARTZ, Stuart. “Brazilian Sugar Planters as Aristocratic Managers, 1550-1825” in: JANSSENS, Paul & YUN, Bartolomé (eds.). European Aristocracies and Colonial Elites. Patrimonial Management Strategies and Economic Development, 15th-18th centuries. Aldershot: Ashgtate, 2005, pp. 233-46; HEWITT, Gary. "The State in the Planter's Service: Politics and the emergence of a Plantation society" in: GREENE, Jack; BRANA-SHUTE, Rosemary & SPARKS, Randy (eds.). Money, Trade and War: the evolution of colonial South Carolina's Plantation Society. University of South Carolina Press, 2000, pp. 49-73 (o “Estado” do título refere-se à assembleia local); PARENT Jr., Anthony. Foul Means: the formation of a slave society in Virginia, 1660-1740. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2003, pp. 25-54 e 105-34. 241 Para uma análise a partir desses múltiplos princípios de hierarquização, cf. WRIGHTSON, Keith. English Society, 1580-1680. Londres: Routledge, 1982, pp. 2-20. Bernd Schröter e Christian Büschges também afirmam a validade da utilização simultânea dos ambos os conceitos: “Las capas altas urbanas en la América hispânica Colonial” In: id. (eds.). Benméritos, aristócratas y empresários: identidades y estructuras sociales de las capas altas urbanas en América hispânica. Madri/Frankfurt: Iberoamericana/Vervuert, 1999, p. 299. 242 MELLO, Rubro Veio, p. 157. 243 MELLO, A Fronda dos Mazombos, p. 18. O mesmo ocorreu em outras regiões açucareiras: já em 1650, pouco mais de duas décadas após o início de colonização de Barbados, durante a chamada “Revolução do Açúcar”, a elite barbadiana se autodefinia como gentry, como é possível ver em documento citado por PESTANA, Carla Gardina. The English Atlantic in the Age of Revolution, 1640-1661. Cambridge: Harvard UP, 2004, p. 95. 244 WEBER, Max. “Classe, Estamento, Partido” [1925] in: id. Ensaios de Sociologia (trad.). Rio de Janeiro: LTC, 1982 [1946], 5ª ed., p. 220. 245 CARSTEN, F. L. “A nobreza de Brandeburgo e da Prússia dos séculos XVI a XVIII: ordem, casta ou classe social” in: MOUSNIER, Roland (org.). Problemas de Estratificação Social (trad.). Lisboa: Cosmos, 1988 [1968], pp. 199-220 e COLLINS, Classes, estates, and order. 240

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elite política, principalmente uma riqueza considerável, um compromisso de longo prazo com a província e uma devoção compartilhada ao ideal da nobreza como principal valor social246.

Retornando mais uma vez à discussão sobre a proibição ou não da construção de mais engenhos no litoral na década de 1660, podemos obter mais alguns subsídios para essa questão. Primeiro, o provedor-mor Lourenço de Brito Correia, cuja trajetória foi narrada acima, escreveu que consultou os principais e estes produziram uma carta anexa, “o qual papel contém 108 pessoas principais, fidalgos, comendadores e cavaleiros do hábito e mais nobreza, e mestres de campo e oficiais de guerra, lavradores de cana, senhores de engenho, juízes ordinários e vereadores que servem”. Vejamos então como os próprios principais se identificaram: Nós, os abaixo assinados fidalgos da casa de Vossa Majestade e cavaleiros das três ordens militares, e homens nobres e da governança desta Cidade do Salvador, Bahia de Todos os Santos, e sua capitania e nela povoadores e moradores e provedores-mores da fazenda real e provedores da Fazenda e Juízes da Alfândega dela, e mais donos de engenhos de açúcar e lavradores de canas, e oficiais maiores do exército e presídio desta dita cidade, mestres de campo, tenentes de mestre de campo general, ajudantes de tenentes generais, e capitães de infantaria e sargentos-mores247.

No ano seguinte, em 1663, o sucessor de Correia, o cristão-novo, cavaleiro de Santiago e senhor de engenho Antônio Lopes Ulhoa (filho de Diogo) escreveu “que em cumprimento da carta referida, relatou aos oficiais da Câmara a ordem de Vossa Majestade e consultou aos principais homens da nobreza e governo daquela cidade, fidalgos, cidadãos, cavaleiros, senhores de engenho, lavradores de cana e mercadores”248. Tais enumerações são interessantes porque aparecem primeiro divisões de ordem e depois de classe, justamente num momento de consolidação da elite baiana como nobreza, como veremos no próximo capítulo. Ambas as formas de classificação são constituintes das identidades individuais, como se vê, por exemplo, nas assinaturas de “Belchior Barreto, cidadão desta cidade, lavrador”, “Capitão Francisco de Araújo de Brito, cavaleiro da ordem de Cristo, cidadão desta cidade, lavrador de canas”, “Francisco de Negreiros Soeiro, cavaleiro do hábito de Avis, juiz ordinário que fui nesta cidade e vereador muitas vezes, lavrador de cana há mais de 45 anos” e “Diogo de Aragão, senhor de dois engenhos e fidalgo da casa de Vossa Majestade”249, dentre outros. Quando podiam, esses homens utilizavam as honrarias concedidas pela monarquia para se identificarem. A partir da ampliação de pesquisa realizada anteriormente, foi possível identificar entre os membros da elite política baiana ao longo de todo século 102 indivíduos (29% do total) que gozaram de honrarias conferidas pela monarquia, eleitos 192 vezes (38% do

246

BURNARD, Creole Gentlemen, p. 181. “Liberdade e limitação”, pp. 493-4. 248 DH, vol. 66, pp. 218-9 e 263-4. Cf. também AHU, cód. 16, fl. 71v. 249 “Liberdade e limitação”, pp. 497-8. 247

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total) para os principais cargos da República: 61 cavaleiros das ordens militares, 59 fidalgos (número provavelmente mais elevado, pois há alguns filhos de fidalgos para os quais não encontrei documentos em que eles se identificassem como tais ou a concessão pela monarquia, de modo que não os levei em conta) e até 10 comendadores (ainda que a maioria deles tenha sido obrigado a se contentar com a promessa dessa mercê, sem receber efetivamente seus rendimentos, foi o suficiente para que pudessem ostentar essa honraria). A luta contra os neerlandeses foi fundamental para a obtenção de tais mercês, pois poucos puderam conseguilas apenas através de seu pedigree, e quase todos os mais destacados membros da elite baiana beneficiaram-se dessa oportunidade250. Se seu status social não era o mesmo das mais fidalgas Câmaras do Reino, como Porto, Coimbra e Évora (ou, olhando para o outro lado do globo, Goa), ao menos as elites baianas e pernambucanas se comparavam favoravelmente ao grupo dominante de muitas outras áreas do Reino, como no Algarve251. A governança de Ponta Delgada, por exemplo, contou em todo o século XVII com apenas 10 cavaleiros e 6 fidalgos (6% do total de camaristas), provavelmente porque sua região não viu nenhuma ação militar de monta que justificasse a concessão de mercês pela Coroa252. Se não simultaneamente, os mesmos indivíduos podiam aparecer num momento como parte da governança ou nobreza, e em outros como senhores de engenho ou mesmo homens de negócio. Diogo de Aragão Pereira aparece, por exemplo, como senhor de engenho e homem da governança, assim como seu filho Pedro, alternadamente senhor de engenho e membro da nobreza253. Tal dualidade não estava restrita, em verdade, aos senhores de engenho, aparecendo mesmo no caso dos homens de negócio, como Pedro Marinho Soutomaior, que serviu como vereador em 1656, apareceu como representante dos negociantes no ano seguinte, e foi novamente vereador em 1661 e 1666, além de uma referência como cidadão em 1663254. A Câmara podia usar as duas definições ao mesmo tempo, mesmo porque era a situação econômica a relevante para os propósitos de cobrança de donativos, por exemplo – e por isso a Câmara lutava contra a existência de privilegiados isentos255. Como exemplo, assentou-se na Câmara em 28 de junho de 1641 a necessidade de enviar um procurador para Lisboa para entrar

250

KRAUSE, Em Busca da Honra, pp. 171-239, complementada pela base de dados Elites Baianas Seiscentistas. SILVA, O Porto, vol. I, pp. 281-309; SOARES, O Município, vol. II, pp. 57-105; PARDAL, As Elites de Évora, pp. 110-1; MAGALHÃES, pp. 323-62; BOXER, Portuguese Society, pp. 15-6. 252 RODRIGUES, Poder Municipal, p. 80. 253 AC, vol. II, pp. 72-4 e 167-8; vol. III, pp. 353-5; vol. V, pp. 204-7 e 290. 254 AC, vol. III, pp. 353-5 e vol. IV, pp. 163-6. 255 Cf. meu artigo “Ordens Militares e Poder Local: elites coloniais, câmaras municipais e fiscalidade no Brasil seiscentista” in: FRAGOSO, João & SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de (orgs.), Monarquia Pluricontinental e a governança da terra no ultramar atlântico luso: séculos XVI – XVIII. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012, pp. 87111. 251

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em contato com o novo monarca, e para isso seria preciso dinheiro. Determinaram, assim, “que o menos que havia de juntar entre os nobres desta cidade eram 2.000 cruzados; para este efeito, se determinou se escrevessem cartas a todos os que eram e aos senhores de engenho e lavradores ricos para ajudarem cada um com o que lhes parecesse”256. É notável aqui como “nobres” funciona praticamente como um sinônimo de senhores de engenho e lavradores ricos. Os próprios camaristas podiam trazer à tona sua posição de classe, como, quando do debate sobre a proibição dos engenhos à beira-mar, afirmam ter sido “Providência Divina não ser nenhum dos que nele estamos senhor de engenho e sermos quase todos lavradores de canas”257. A combinação de referenciais distintos é possível e mesmo necessária porque, em última instância, o objetivo da atividade econômica não era simplesmente a obtenção de lucros, mas sim a manutenção e melhora do status social familiar e a constituição de laços para fortalecer uma comunidade, mesmo porque são essas relações que possibilitam a ação coletiva258. É nesse sentido que deve ser compreendida a afirmação do papel das 108 “pessoas principais” em 1662, que “o açúcar é a cabeça deste corpo místico que é o Brasil”259 – porque é o “ouro branco” que sustenta a estrutura concentradora de riqueza, prestígio e poder que permite à açucarocracia dominar aquela sociedade e a transforma em uma parceira fundamental da Coroa portuguesa. Classe e estamento são, em conjunto, dois conceitos fundamentais para a análise da sociedade baiana seiscentista, pois esta era, e creio que ainda mais do que a Europa, “uma sociedade estamental tendencialmente classista, um mundo ordenado teoricamente pelo sangue e nascimento; distribuído em grupos em realidade graças ao dinheiro e às relações pessoais e familiares. Neste sentido, a nobreza é antes de tudo um ideal, um modo de vida, uma aspiração”260. A sátira do Boca do Inferno de partida para Angola em 1695 vai ainda mais longe: No Brasil a fidalguia no bom sangue nunca está, nem no bom procedimento, pois logo em que pode estar? Consiste em muito dinheiro, e consiste em o guardar, cada um o guarde bem, para 256

AC, vol. II, pp. 28-30; cf. também pp. 72-4, 183-5, 266-7 e 349; vol. III, pp. 266-7, 311-4 e 353-5. AHU, Bahia, Luiza da Fonseca, cx. 17, doc. 1951. 258 VAN YOUNG, Eric. “Social Networks: A Final Comment” in: BÖTTCHER, Nikolaus; HAUSBERGER, Bernd & IBARRA, Antonio (coords.). Redes y negocios globales en el mundo ibérico, siglos XVI-XVIII. Madri/Frankfurt: Iberoamericana/Vervuert, 2011, pp. 300-5. 259 “Liberdade e limitação”, p. 494. 260 SORIA MESA, Enrique. La nobleza en la España moderna: cambio y continuidad. Madri: Marcial Pons, 2007, p. 319; cf. também pp. 38-9 e 213-5. É certo que a venalidade representava uma distinção fundamental em relação ao mundo português, mas a caracterização não deixa de ser válida. A maior diferença dava-se no nível da aristocracia, em Portugal fortemente fechada a arrivistas a partir de 1670, e até o início do século XIX inalcançável aos plebeus, independentemente de sua riqueza. Veja-se MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O crepúsculo dos grandes: a casa e o património da aristocracia em Portugal (1750-1834). Lisboa: Casa da Moeda, 1998. Como a elite baiana situava-se, porém, muito longe desse nível social, sem qualquer perspectiva de atingi-lo, tal restrição possuía pouco significado para eles. Veja-se também a excelente síntese de RAMINELLI, Nobrezas do Novo Mundo, pp. 21-59 e 103-32, que demonstra a imensa importância da venalidade (e seu papel crucial na concessão de títulos na América Espanhola). O autor enfatiza a importância da riqueza na ascensão social principalmente no século XVIII, mas reconhece a íntima relação entre fortuna e nobreza durante toda a época moderna. 257

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ter que gastar mal. Consiste em dar a maganos que o saibam lisonjear, dizendo que é descendente da casa de Vila Real. Se guardar o seu dinheiro, onde quiser, casará: os sogros não querem homens, querem caixas de guardar.

Enquanto as classificações econômicas se mantiveram estáveis ao longo do século, as categorias de honra e prestígio sofreram uma metamorfose decisiva – mesmo porque, numa sociedade gerada a partir da matriz do Antigo Regime Ibérico, era a linguagem de ordens a mais importante, ao menos no campo simbólico. Não seria por possuir fábricas que a elite política se arrogava a posição cimeira na capitania, mas sim por pertencerem aos “homens da governança” e, depois, à nobreza. Como afirmou João Fragoso, “aquele grupo definia-se por relações de mando (com a monarquia, a república e a escravaria), e não a partir da propriedade de engenhos de açúcar”261 que, eram como dissemos, um meio – fundamental e estruturante, mas ainda assim um meio – para atingir um fim: a dominação local. É para esse tema que vamos nos voltar no próximo capítulo: a transformação no vocabulário social que é concomitante à consolidação do poder das famílias tradicionais, construindo uma nobreza local.

261

FRAGOSO, “Nobreza Principal”, p. 213.

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Capítulo IV De homens da governança à primeira nobreza: vocabulário social e transformações estamentais Haverá duzentos anos (nem tantos podem contar-se) que éreis uma aldeia pobre, e hoje sois rica cidade. Então vos pisavam índios, e vos habitavam cafres, hoje chispais fidalguias, arrojando personagens. A essas personagens vamos, sobre elas será o debate, e queira Deus, que o vencer-vos para envergonhar-vos baste. Gregório de Matos e Guerra (1636-95), Senhora Dona Bahia.

Introdução Em 1986, Evaldo Cabral de Mello iniciou um debate que haveria de ter grande influência, ainda que com algum atraso. Através de um cuidadoso estudo das crônicas do período holandês e do conflito entre a elite açucareira e os homens de negócio recifenses, o historiador pernambucano examinou as transformações na estratificação social em Pernambuco de meados do século XVII até o início do XVIII. Demonstrou, assim, como na “conflitiva segunda metade de Seiscentos, a açucarocracia pernambucana passa a autodesignar-se pela mesma expressão consagrada no Reino para denominar as oligarquias municipais”: nobreza da terra. Esse grupo compunha-se basicamente das mais ricas famílias canavieiras que lutaram contra os flamengos ou exerceram os ofícios camarários, e se consolidou primeiro a partir da experiência de dominação neerlandesa e da mobilização para sua expulsão, e, posteriormente, durante o conflito com os mascates1.

1

MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: o imaginário da Restauração Pernambucana. São Paulo: Alameda, 2008 [1986], 3ª ed. rev., pp. 155-80, citação à p. 155.

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Em obra posterior, o autor explicita as bases sociológicas de sua reflexão, de matriz weberiana, afirmando que “a utilização simultânea dos conceitos de ordem e de classe permite compreender melhor, por exemplo, a metamorfose da açucarocracia (situação de mercado) em nobreza da terra (situação de statu)”. Assim, a elite pernambucana possuía características constituintes de uma classe, “inclusive o seu lugar específico no processo de produção”, mas sua identidade, e a imagem que dela tinham os outros estratos sociais, baseava-se numa construção estamental: “a nobreza da terra, cuja mentalidade, transplante metropolitano adaptado à sua experiência local, é tão indispensável conhecer, a fim de compreendê-la na sua atuação histórica, como sua condição de classe”2. O pioneirismo do historiador pernambucano esteve, dentre outros aspectos, em sua preocupação de recuperar os conceitos da época e seus efeitos na sociedade e política lusobrasileira, assim como o diálogo com a historiografia portuguesa. Posteriormente, tais características se disseminaram entre os historiadores brasileiros, especialmente a partir dos trabalhos do grupo Antigo Regime nos Trópicos3. João Fragoso estudou a formação socioeconômica e as práticas políticas da “nobreza principal da terra” do Rio de Janeiro, classificação retirada de um emblemático documento de 1732. Por não ser sua “intenção fazer uma arqueologia de tal expressão”, o historiador carioca utilizou o termo indistintamente para se referir à elite agrária fluminense entre finais do século XVI e meados do XVIII, construída a partir da conquista da terra contra indígenas e franceses e da ocupação dos cargos no poder local. Pouco influenciado por Cabral de Mello (a quem cita principalmente para demonstrar a existência de uma elite equivalente em Pernambuco), João Fragoso não inclui o vocabulário da estratificação social entre os objetos de seu amplo estudo. Mesmo assim, o autor demonstrou que expressões como “mulher nobre das principais da terra” (1621), “das pessoas mais nobres da dita cidade e governança dela” (1628), “os homens bons e pessoas nobres do governo da República” (1646) eram utilizadas desde a primeira metade do século XVII4. Já Fernanda Bicalho mantém um diálogo muito mais intenso com a obra do historiador pernambucano, estendendo suas conclusões para o restante da América Portuguesa e utilizandoo principalmente para enfatizar a negociação entre centro e periferia, demonstrando a grande capacidade de comunicação entre os polos através das Câmaras. A autora defende, assim, a

2

Id. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: Editora 34, 2003 [1995], 2ª ed. rev., p. 18. 3 FRAGOSO, João; BICALHO, Fernanda & GOUVÊA, Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 4 FRAGOSO, João. À Espera das Frotas: micro-história tapuia e a nobreza principal da terra (Rio de Janeiro, c. 1600 – c. 1750). Tese de Titular. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2005, pp. 30 e 32.

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existência de um pacto político entre a nobreza da terra (apesar de também não estar preocupada com o vocabulário social) e a Coroa, condição necessária para a manutenção do Império, fundado na ideia de conquista e reafirmado através do mecanismo de prestação de serviços5. Entretanto, a utilização do conceito tem sofrido críticas, sendo a mais influente a de Laura de Mello e Souza, que enfatizou o caráter distintivo da escravidão para afirmar que o fato de membros das elites coloniais se autodenominarem ‘nobreza da terra’ não autoriza, creio, os historiadores a tomarem o que é construção ideológica por conceito sociológico. Da mesma forma, o fato de existirem aristocracias regionais – a menos equívoca, sendo, por certo, a da velha região açucareira do Nordeste, nomeadamente em Pernambuco – não permite extrapolar para a constatação de que a sociedade luso-americana dos séculos XVI, XVII e XVIII conheceu, na nobreza da terra, uma formação social análoga à do Ancien Régime europeu6.

O debate levou João Fragoso e Fátima Gouvêa a afirmar que a “problemática da existência de nobrezas da terra nesse novo universo ultramarino se destaca como uma das questões mais candentes” nos atuais debates sobre o Brasil lusitano7. A Bahia, porém, tem permanecido de fora desse debate8, apesar de sua importância econômica e política (capítulo I). Meu objetivo é, portanto, contribuir para o debate através da análise do vocabulário da estratificação social na Bahia do século XVII, pois esse discurso “possuía uma peculiar eficácia estruturante, na medida em que lhe correspondiam privilégios”9. O seiscentos presta-se especialmente à análise, pois, como vimos nos autores acima, foi período decisivo na formação das nobrezas locais americanas, embora menos estudado do que a centúria seguinte. Esta tarefa não pode, porém, ser empreendida através de extensas narrativas produzidas por atores locais, porque tais obras são raras e muito espaçadas temporalmente. O que a Bahia tem, porém, são as Atas da Câmara completas para o período posterior à expulsão dos neerlandeses, iniciando-se em agosto de 1625. Para o Senado soteropolitano, também foi possível identificar o maior corpus epistolar dentre

5

BICALHO, Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, pp. 301-95; id. “Conquista, Mercês e Poder Local: a nobreza da terra na América portuguesa e a cultura política do Antigo Regime”. Almanack Braziliense, n. 2, Novembro 2005, pp. 21-34. 6 SOUZA, Laura de Mello e. O Sol e a Sombra: política e administração na América portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 179-80, nota 56; ver também pp. 41-77. No mesmo sentido, cf. VAINFAS, Ronaldo. “Prefácio” in: RAMINELLI, Ronald. Nobrezas do Novo Mundo. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2015, pp. 11-2. 7 FRAGOSO, João & GOUVÊA, Fátima. “Introdução: desenhando perspectivas e ampliando abordagens” in: id. (orgs.). Na Trama das Redes: política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 15. 8 Veja-se breves menções, enfocando o século XVIII, em SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Bahia, a corte da América. São Paulo: Editora Nacional, 2010, pp. 254-9 e SCHWARTZ, Stuart. “Sexteto pernambucano: Evaldo Cabral e a formação da consciência colonial e regional no Nordeste” in: SCHWARCZ, Lilia Moritiz (org.). Leituras críticas sobre Evaldo Cabral de Mello. Belo Horizonte/São Paulo: EDUFMG & Fundação Perseu Abramo, 2008, p. 25. 9 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Poder Senhorial, Estatuto Nobiliárquico e Aristocracia” in: MATTOSO, José (dir.) & HESPANHA, António (ed.). História de Portugal, vol. IV: O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Estampa, 1998 [1993], p. 297.

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todas as municipalidades do Brasil seiscentista, somando as registradas nos livros do Senado àquelas depositadas nos arquivos portugueses, num total de mais de 500 missivas. Através de uma análise sistemática do vocabulário social nessa documentação, investigarei a “construção ideológica” de uma nobreza brasílica e sua “identidade social”, capaz de influenciar seu comportamento político e econômico10. Meu estudo parte de dois princípios: em primeiro lugar, que a ideologia é melhor compreendida como o vocabulário descritivo da existência cotidiana, através da qual as pessoas compreendem a realidade em que vivem e que criam no dia a dia. É a linguagem da consciência que se adequa à maneira particular como as pessoas lidam com seus semelhantes. É uma interpretação mental das relações sociais através das quais eles constantemente criam e recriam sua coletividade, em todas as variadas formas que essa coletividade pode assumir: família, clã, tribo, nação, classe, partido, empresa, igreja, exército, clube e etc. Como tal, ideologias não são ilusões, mas realidade, tão reais quanto as relações sociais que representam11.

Mais do que representar relações, a ideologia é parte constituinte delas e se transforma ao longo do tempo, pois, como escreveu Marc Bloch, “afinal, uma hierarquia social é algum dia outra coisa que um sistema de representações coletivas, móveis por sua própria natureza?”12. Em segundo lugar, acredito que “a elaboração de uma nova terminologia, ou de um novo uso da linguagem, não é algo casual ou carente de significado. A linguagem aporta significado; um novo uso linguístico assinala um novo significado ou lhe confere um novo sentido”. No Antigo Regime, o vocabulário social implicava também efeitos facilmente discerníveis nas relações sociais, nomeadamente na seara dos privilégios estamentais juridicamente definidos, fosse pela Coroa ou pelos costumes locais. Dessa maneira, esses também precisam ser investigados, já que se constituem em uma das definições mais clássicas da nobreza. Essa abordagem oferece, porém, obstáculos metodológicos, exigindo “a análise textual de uma documentação homogênea de larga duração, contínua (...) e relevante; quer dizer, que fosse a expressão corrente de um discurso político ordinário”. As opções não são muitas, mas, dentre as poucas fontes apontadas por Irving Thompson aparecem justamente as atas das municipalidades, os mais relevantes depósitos da memória administrativa local e das discussões políticas cotidianas13. BÜSCHGES, Christian & SCHRÖTER, Bernd. “Las capas altas urbanas en la América hispânica colonial” in: id. (eds.). Benméritos, Aristócratas y empresários: identidades y estructuras sociales de las capas altas urbanas en América hispânica. Madri/Frankfurt: Iberoamericana/Vervuert, 1999, p. 308-14, que notam como, “na maioria das maiores, mais importantes e antigas cidades [da América Espanhola], o estrato social mais elevado adquiriu no decurso do tempo uma identidade nobiliárquica” (p. 312). 11 FIELDS, Barbara Jeanne. “Slavery, Race and Ideology in the United States of America”. New Left Review, n. 181, 1990, p. 110. 12 BLOCH, Marc. Les caractères originaux de l’Histoire rural française. Paris: Armand Collin, 1968 [1931], vol. I, p. 89. 13 THOMPSON, Irving. “La Monarquía de España: La Invención de um Concepto” In: ÁLVAREZ, F. J. Guillamón; RODRÍGUEZ, J. D. Muñoz; ARCE, D. Centenero (eds.). Entre Clío y Cassandra: Poder y Sociedad en la Monarquía Hispánica durante la Edad Moderna. Murcia: Universidade de Murcia, 2005, citações às pp. 33 e 35; id. “Castilla, España y la Monarquía: La Comunidad Política, de la Patria Natural a la Patria Nacional” In: 10

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Assim, procurarei demonstrar o gradual desenvolvimento de uma identidade nobiliárquica coletiva pela elite baiana através da interação com a administração periférica e a Coroa. Esse processo ganha fôlego no contexto dos esforços para sustentar a infantaria durante a luta contra os neerlandeses, consolidando-se a partir da década de 1660, paralelamente ao aumento de importância das principais famílias no governo da República examinado no capítulo anterior. O grupo dominante local procurava assim ampliar sua autoridade e prestígio, afirmando-se como o interlocutor fundamental da monarquia. Esse discurso implicava a obtenção de privilégios, que por sua vez o reforçavam, coroando com sucesso a tentativa de ampliar o prestígio dos homens que controlavam o poder local – mesmo frente ao “povo”, essa categoria amorfa frequentemente enunciada na documentação camarária. Por último, pretendo demonstrar que fenômenos similares estavam se desenvolvendo no resto da América Portuguesa (e, provavelmente, do império, mesmo porque esse é um fenômeno atlântico mais que lusitano), constituindo-se na reprodução de um processo de formação de nobrezas concelhias ocorridas décadas antes no Reino.

Antecedentes: principais e cidadãos? O vocabulário da estratificação não surgiu ex nihilo em 1625, tendo sido resultado de mutações no século que lhe precedeu. A limitação das fontes impede, porém, uma análise mais sistemática, de modo que serei obrigado a realizar apenas alguns apontamentos a partir de dados esparsos. Ao se referir aos moradores mais destacados da Bahia em finais de quinhentos, Gabriel Soares de Sousa utiliza o vocábulo “principal”, como “homem principal” ou “principais e mais ricos moradores”. Entretanto, que este termo não tinha um significado unívoco pode ser percebido pelo fato de ele ser utilizado inclusive para nomear as lideranças indígenas14. Não há nenhuma tentativa de caracterizar a elite em formação como nobreza, diferentemente de Pero de Magalhães Gandavo, que em 1576 afirmou que “a principal [povoação] onde residem os do governo da terra e mais da gente nobre, é a Cidade de Salvador”, relegando o termo principal apenas para os indígenas15. É de se notar, porém, que Gandavo, embora possivelmente tenha

KAGAN, Richard L. & PARKER, Geoffrey. España, Europa y El Mundo Atlántico: Homenaje a John H. Elliott (trad.) Madri: Marcial Pons, 2001 [1995], pp. 177-216. Para a importância do diálogo entre história social e história dos conceitos, já que conceitos e ações interagem e são melhor compreendidos em conjunto, KOSELLECK, Reinhardt. “História dos conceitos e história social” [1972] in: id. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. (trad.) Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC-Rio, 2006 [1979], pp. 97-118 e id. “Social History and Conceptual History” [1989] in: id. The practice of conceptual history: timing history, spacing concepts. (trad.) Stanford: Stanford UP, 2002, pp. 20-37. 14 SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Organização de Fernanda Trindade Luciani. São Paulo: Hedra, 2010, pp. 63, 65, 137 e 139; MELLO, Rubro Veio, p. 159. 15 GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil & História da Província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil, 1576. Organização de Leonardo Dantas Silva. Recife: Massangana, 1995, p. 60.

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passado alguns anos na Bahia, não havia feito nela sua vida como Soares de Sousa, e certamente estava mais distante do discurso e da experiência da elite local em formação. Considerando o caráter recente da fundação de Salvador (1549), pode-se duvidar se já em 1576 a expressão “gente nobre” fosse utilizada de forma corrente. Ao registrar a fala dos depoentes, a documentação da primeira visitação do Santo Ofício permite uma aproximação um pouco mais precisa do vocabulário social na última década do século XVI. Em 22 de agosto de 1591, João Serrão confessou ser cristão-novo, apesar de em público afirmar sua limpeza de sangue, “por ele estar casado nesta cidade com uma mulher cristã velha de gente nobre, limpa e abastada, e ele ser tido de todos por cristão velho e ser cidadão que já foi almotacé desta cidade, havido em boa conta e de honrado”. Assim, já em finais do século XVI falava-se em “gente nobre”, ainda que a expressão não pareça ser muito usual, já que aparece apenas nesse depoimento. A categoria “cidadão”, também está presente, surgindo em mais dois momentos para qualificar membros da elite local16. Em 1600, uma junta beneditina resolve sobre a situação dos novos mosteiros no Estado do Brasil que “não se tome e recebam para religiosos pessoa que tenha raça de mestiça e nem outros que não forem de gente nobre”17, novamente indicando a relevância desse termo nas sociedades americanas em formação. Pouco depois, em 1608, na carta ânua jesuítica da Província do Brasil, o padre Fernão Cardim menciona “dois nobres cidadãos” e “um cidadão principal”18. Por último, já no início de nosso recorte cronológico, Frei Vicente do Salvador em sua História do Brazil refere-se a membros da elite baiana desde as primeiras décadas como “cidadãos”, raramente qualificando alguém como nobre – embora o tenha feito com Gabriel Soares de Sousa. O termo “cidadão”, significando aquele que participa da política municipal, parece ter nesse momento um caráter individual, não representando ainda uma coletividade. Mesmo a “gente nobre” que por vezes surge tem ainda um significado vago, referindo antes alguns indivíduos seletos que uma coletividade minimamente definida. Uma postura da Câmara sem data, mas produzida entre 1604-7, fala em “pessoas da governança”19 enquanto carta ao governador-geral Gaspar de Sousa em 1614 utiliza o termo ambíguo “principais da terra”, mas refere-se também à “gente tão nobre” de Salvador e aos “mais nobres e honrados mancebos

16

VAINFAS, Ronaldo (org.). Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, confissão n. 20; cf. também as confissões 32 e 44. 17 SOUZA, Jorge Victor de Araújo. Para Além do Claustro: uma história social da inserção beneditina na América Portuguesa, c. 1580 – c. 1690. Tese de Doutorado. Niterói: PPGH/UFF, 2011, p. 142. 18 MAGALHÃES, Pablo Antônio Iglesias & PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. “Cartas do Padre Fernão Cardim (1608-1618)”. Clio, n. 27-2, 2009, p. 232. 19 AC, Vol. I, p. 101.

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desta terra”20. A julgar pelas Denunciações e Confissões do Santo Ofício de 1618, os membros da elite identificavam-se e eram identificados como senhores de engenho, quando muito como juízes ordinários e vereadores – e, em alguns raros casos, fidalgos da Casa Real21. Mesmo assim, os dados são fragmentários demais para possibilitar afirmações peremptórias sobre a identidade da elite luso-americana, e é apenas a partir de 1625 que é possível arriscar interpretações baseadas em uma documentação mais consistente. Entretanto, o caminho a ser seguido pode ser apontado por outras regiões do Atlântico português, ocupadas há mais tempo: nos Açores, por exemplo, a partir da relação com o donatário e, depois, com a Coroa, consolidou-se na transição do século XV para o XVI uma nobre elite terratenente e endogâmica, se reproduzindo então, a partir de finais do XVI, um discurso nobiliárquico a legitimar a posição desse grupo, seguindo basicamente a mesma cronologia das câmaras reinóis, afetadas por processos similares de oligarquização22.

Homens Bons, Homens da Governança Já em 3 de agosto de 1625, na primeira reunião da Câmara após a expulsão dos neerlandeses, os camaristas convocaram “os homens bons que andam na governança” para eleger um juiz ordinário, em razão do falecimento do anterior23. Esta era, porém, apenas uma das muitas formas utilizadas: “pessoas da governança”, “homens da governança”, “que podem andar na governança”, “que saem e andam na governança”, “que costumam andar na governança” e outras variações aparecem 33 vezes entre 1625 e 164024. Já em 1626, porém, há referências aos “homens nobres, e da governança da cidade”, reaparecendo em 1631 como os “homens nobres que costumam andar na governança da terra”, “pessoas nobres, e da governança” ou, ainda, somente “homens nobres”; por vezes, a expressão utilizada é “pessoas da governança, nobres e do povo” (povo este que, como veremos, aparece com bastante frequência a acompanhar a elite). São nove referências do tipo nesses 15 anos25, muito similares

20

AHU, Bahia, Luiza da Fonseca, cx. 1, doc. 58. “Livro das Denunciações que se fizerão na Visitação do Santo Offício á Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos do Estado do Brasil, no anno de 1618. Inquiridor e Visitador o Licenciado Marcos Teixeira”. ABN, vol. 49, pp. 75-198 e SIQUEIRA, Sônia (ed.). Confissões da Bahia (1618-1620). João Pessoa: Ideia, 2011, 2ª ed. 22 Veja-se os trabalhos de José Damião Rodrigues citados no capítulo anterior, além de “Sociedade e Administração nos Açores (Séculos XV-XVIII): O caso de Santa Maria”. Arquipélago-História, 2ª Série, vol. I, nº 2: Estudos Insulares, 1995, pp. 33-63. 23 AC, vol. I, p. 3. 24 AC, vol. I, pp. 31-2, 76-7, 83, 179-80, 182, 187-8, 211, 236-7, 267-8, 279-80, 281-3, 299, 306, 312, 332, 341, 346-7, 353-4, 358-9, 369-75, 401-2, 405-6 e 414-8. Cf. também uma carta e uma postura de 1626: AHU, Bahia, Luiza da Fonseca, cx. 3, docs. 423-4. 25 AC, vol. I, pp. 37-8, 146-7, 188-90, 202-4, 219-20, 240-1 e 253-4. 21

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à expressão consagrada para se referir às oligarquias municipais reinóis: “gente nobre da governança”26. Em acréscimo, há ainda quatro referências aos “cidadãos” como coletividade27.

Gráfico I: Classificações coletivas da elite baiana, 1625-40 4 9

Homens da Governança Homens nobres Cidadãos 33

Fontes: AC, vol. I; AHU, Bahia, LF, cx. 3, docs. 423-4.

Como é improvável que cada uma dessas variações representasse um grupo distinto, e quase todas aparecem quando os camaristas decidem abrir o espaço decisório para outros que não estavam ocupando cargos no Senado no momento (embora muitas vezes o tenham feito antes ou depois), nesses 46 casos a referência é sempre ao mesmo grupo: a elite política, social e econômica da capitania. A terminologia que o caracterizava era, porém, extremamente variável, mas de modo geral o que predomina é a referência à atuação política na “governança” municipal, presente em 44 das 46 referências. Ser nobre ainda é uma característica vacilante do grupo, que raramente lhe é atribuída. Não há ainda uma fórmula estabelecida para denominar o grupo, e o mesmo escrivão, e até os mesmos camaristas podiam referir-se a ele de forma distinta em um curto intervalo de tempo, como em fevereiro de 1631, quando, em duas circunstâncias rigorosamente iguais (a eleição de um novo oficial, em razão de o anterior haver se escusado de servir), primeiro são convocados os “homens nobres que costumam andar na governança da terra” e, duas semanas depois, “os homens bons que saem e andam na governança”28.

Cf. MAGALHÃES, Joaquim Romero. “Os nobres da governança das terras” in: MONTEIRO, Nuno; CARDIM, Pedro & CUNHA, Mafalda Soares da (coords.). Optima Pars: elites ibero-americanas do Antigo Regime. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005, pp. 65-71. 27 AC, vol. I, pp. 341-5, 436-7, 462-5 e 477-9. 28 AC, vol. I, pp. 136-7 e 179-80. 26

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Os Três Estados da República Com a chegada do Marquês de Montalvão, porém, surge um novo e interessante modelo classificatório. Em portaria de 12 de setembro de 1640, o vice-rei ordena que “se ajuntem e chamem as pessoas que lhes parecer de maior zelo, de mais experiência e de melhor juízo, assim religiosos como de todos os estados”, para decidir sobre os meios para sustentar a infantaria, sendo prontamente obedecido pela Câmara29. Apesar de Montalvão não explicitar quais estados seriam estes, a referência aos religiosos deixa claro que a inspiração aqui é a divisão tripartida medieval entre clero, nobreza e povo, de acordo com o modelo das Cortes portuguesas. Embora nelas as cidades representassem “o povo”, assim como nas Cortes de Castela, seus procuradores eram membros das oligarquias locais e eleitos por elas. A existência dessas reuniões tripartidas no âmbito municipal era bem conhecida no Reino, a julgar pelo exemplo de uma reunião no Porto em 1623 para deliberar sobre os meios de financiar um galeão da Índia, assim como no império, tendo ocorrido diversas vezes em Goa – sendo o primeiro caso nesse mesmo ano, na aclamação de D. Felipe III (Felipe IV de Castela)30. Em todo o império, o principal motivo para essas reuniões foram as demandas fiscais do centro político e seus representantes. Mesmo assim, é de se perceber que a divisão tripartida ainda estava muito menos consolidada em Salvador que no Reino, pois D. João IV é aclamado em Salvador pelo “clero, povo e mais gente” em 15 de fevereiro de 1641 31 - diferenciando-se, portanto, de Goa. É possível que a soma da iniciativa de Montalvão de chamar os estados da República e da Aclamação de D. João IV (na qual a elite baiana exerceu um papel fundamental, inclusive na deposição do Marquês – capítulo V) tenha estimulado a definição da elite baiana de acordo com os modelos reinóis, pois já em meados de 1641 os camaristas se referem aos “nobres da cidade” e, logo depois, à “nobreza da cidade” – coincidentemente, a mesma expressão será usada nesse ano para se referir aos fidalgos que conspiraram para elevar o Duque de Bragança ao trono32. Tal termo é importante pois representa a primeira utilização de um substantivo coletivo que explicita o quanto esse status não é individual, mas resultado de uma “situação estamental” coletiva. Só assim podem começar a ser uma ordem, entendida como o conjunto de pessoas que gozam, pela condição comum em que se encontram, da mesma posição em relação aos direitos e deveres políticos. Pelo fato de usufruírem conjuntamente desta 29

AC, vol. I, pp. 451-6. SILVA, Francisco Ribeiro da. O Porto e o seu termo (1580-1640): os homens, as instituições e o poder. Porto: Arquivo Histórico/Câmara Municipal, 1988, vol. I, p. 234; PISSURLENCAR, Panduronga (ed.). Assentos do Conselho de Estado. Bastorá/Goa: Tipografia Rangel, 1953, vol. I (1618-1633), pp. 152-7; cf. também 1955, vol. III (1644-1658), pp. 434-47 e 455-61 e 1956, vol. IV (1659-1695), pp. 126, 194 e 351. 31 AC, vol. II, pp. 9-10. 32 AC, vol. II, pp. 28-30 e 35-9; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Idade Moderna (séculos XV-XVIII)” in: RAMOS, Rui (coord.). História de Portugal. Lisboa: Esfera dos Livros, 2010 [2009], 4ª ed., p. 295. 30

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posição, elaboram e praticam formas de gestão que se configuram, justamente, como comunitárias ou, ao menos, como representativas33.

Gráfico II: Classificações coletivas da elite baiana, 1641-61

14 Homens da Governança Nobres/Nobreza 32

Fontes: AC, vols. II e III (pp. 27-186).

Entretanto, a flexibilidade e indeterminação nominativa continuaram. Entre 1641 e 1651, por exemplo, de 46 casos, 32 fazem referência aos “homens da governança” e suas variações ou aos cidadãos, em oposição a 14 casos em que se mencionam nobres ou nobreza34, um aumento de mais de 50% em relação ao período anterior. Embora, como vimos, as expressões designem o mesmo grupo, há uma especificidade: “nobres” e “nobreza” são termos que aparecem quase exclusivamente em assuntos de maior importância, como o sustento da infantaria e a necessidade de uma moeda provincial, sempre em diálogo com o GovernadorGeral (capítulo V). As outras designações, por sua vez, predominam em assuntos rotineiros, como eleições e regulação cotidiana do mercado35. Tal divisão não é, porém, absoluta, podendo ser apontadas exceções, especialmente na convocação de “homens da governança” para assuntos de monta. A “nobreza”, porém, raramente aparece em temáticas de menor relevância. A indeterminação conceitual não deve, portanto, ser resultado apenas dos caprichos individuais dos camaristas. Antes, por ser nobreza um termo de maior significado simbólico

SCHIERA, Pierangelo. “Sociedade por categorias” in: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola & PASQUINO, Gianfranco (eds.). Dicionário de Política (trad.). Brasília: Ed. UnB, 1998 [1983], p. 1214 (também traduzido como “Sociedade de ‘estados’, de ‘ordens’ ou ‘corporativa’” em HESPANHA, António (org.). Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984). 34 AC, vol. II, pp. 10-16, 23-6, 28-30, 35-9, 45-6, 55-7, 70-4, 91-4, 101-2, 104-5, 112-4, 124-7, 162-3, 167-8, 1758, 183-5, 187-8, 214-5, 230-1, 237-8, 265-6, 281, 295-6, 298-9, 303, 315-6, 321-6, 338-40 e 349; vol. III, pp. 2730, 35-7, 61-3, 88-95, 98-100, 102-3, 127-8, 131-4, 140-3 e 150-4. 35 Cf., por exemplo, AC, vol. I, pp. 211, 236-7, 281-3 e 341; vol. II, pp. 214-5, 295-6, 298-9 e 310-1; vol. III, pp. 127-8, 131-4, 296-7, 306-7 e 311-4. 33

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que “homens de governança”, ele era acionado nas questões políticas mais importantes para a elite baiana. O quão consciente era esse procedimento é de difícil determinação, considerando que os camaristas eram renovados anualmente. Mesmo no cargo de escrivão, posto que representava a estabilidade nos procedimentos e memória administrativa do Senado, houve algumas variações no período, pois nem sempre o proprietário do ofício (Rui de Carvalho Pinheiro) estava presente para exercê-lo. Entretanto, dada a importância das atas na memória administrativa camarária, é provável que a reunião da “nobreza” ou dos “nobres” com os camaristas emprestasse maior legitimidade às decisões tomadas pela municipalidade. Em finais de 1651 surge a mais clara enunciação até então de um modelo tripartido aplicado à política baiana: o “Assento que se tomou em Câmara com os estados Clero, Nobreza e Povo sobre as patacas correrem ou não haverem de correr”, quando se reuniram com os camaristas “os três estados desta República, Clero, Nobreza e Povo”, em reação a uma carta régia sobre a proibição das patacas do Peru e os problemas gerados pela falta de moeda. Pedese, assim, a anulação da provisão para o Governador-Geral, que concorda com os camaristas (capítulo VII)36. O assento foi considerado relevante a ponto de merecer o envio de uma cópia para o Conselho Ultramarino, de modo a abalizar a decisão da Coroa – procedimento excepcional, poucas vezes repetido no século XVII37. Sem a presença do clero, mas com a participação da “nobreza e povo”, é assinado o acordo pela qual a Câmara institucionalizou em 14 de julho de 1652 a situação vigente há mais de 20 anos, isto é, sua responsabilidade pelo sustento da infantaria38 (capítulo V). Tal ocasião se provou de uma importância notável, pois passou a ser inevitavelmente citada nas dezenas de cartas da municipalidade sobre as obrigações fiscais da Câmara ao longo de todo o restante do século, de modo que praticamente de forma anual os camaristas se referiam a um documento legitimado exatamente pela presença e participação da nobreza local (capítulo VII). É de se notar que, nessa época, o estatuto de nobreza já era reconhecido pelo Governador-Geral, como no caso de uma portaria do Conde de Castelo Melhor considerada relevante o suficiente para ser registrada nas Atas logo antes do documento acima, no qual o alter-ego do monarca na América afirma esperar “que a nobreza e povo desta cidade tenha entendido” a importância do cuidado e correção nos dispêndios para sustento da infantaria39. Entretanto, mesmo após estes documentos emblemáticos, a nobreza não passou a ser a denominação preferida da elite baiana.

36

AC, vol. III, pp. 181-6, 24 e 25 de novembro de 1651. AHU, LF, cx. 12, docs. 1464-5. 38 AC, vol. III, pp. 212-20. 39 AC, vol. III, pp. 210-1. 37

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Entre 1652 e 1661, de doze casos, em apenas dois há referência à nobreza – e em ambos os momentos tratava-se de questões fiscais40.

A Ascensão da Nobreza? Entre 1662 e 1700 de 121 referências ao grupo dominante constituído em torno do Senado soteropolitano, “nobres” e, principalmente, “nobreza”, predominam, com 87 casos, contra 34 variações de “homens da governança” e “cidadãos” – estes aparecendo principalmente nos momentos de eleições, já que estas, por definição, são responsabilidade daqueles ligados ao poder municipal e não exatamente de um grupo social, apesar da relativa indistinção entre as duas categorias. Em menor escala, o termo cidadão também é onipresente nas referências aos privilégios de cidadão da Cidade do Porto, já que estes foram concedidos aos “cidadãos” de Salvador.

Gráfico III: Classificações coletivas da elite baiana, 1662-1700 34 Homens da Governança Nobreza 87

Fontes: AC, vols. IV-VI; CS, vols. I-IV; AHU, Bahia, LF, cx. 17, doc. 1950; cx. 19, doc. 2147; cx. 20, doc. 2238; cx. 23, doc. 2709.

Na maioria das vezes, pontos de corte muito definidos são enganosos, já que escondem continuidades e processos anteriores. Mesmo em 1697 ainda é possível encontrar documentos como uma ata sobre o abastecimento de farinha da cidade, na qual são convocados “os homens bons, populares, juiz do povo e mesteres” para decidir sobre o aumento do preço da farinha, e a resolução é tomada pelos camaristas “com a nobreza e povo”41. Aqui, portanto, homens bons

40

AC, vol. III, pp. 223-6, 266-7, 271-3, 280-1, 296-7, 306-7, 320-2, 353-5, 397-400, 412-3 e vol. IV, pp. 91-3; CS, vol. I, pp. 55-6. 41 AC, vol. VI, pp. 352-4.

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e nobreza têm o mesmo valor semântico, sendo intercambiáveis – mesmo que o segundo termo já tivesse se tornado há décadas o mais comum nos registros da municipalidade. Vê-se que “uma classificação não é necessariamente uma clarificação”, pois esse processo de autoidentificação constituía-se através de disputas políticas, sendo sensível, portanto, aos conflitos cotidianos, produzindo sempre alguma dose de imprecisão conceitual, inerente às construções práticas de noções que, exatamente por serem claras para os homens da época, não precisavam de explicações, por vezes tornando-se obscuras para nós42. A diferença, porém, entre os períodos de 1625-1661 e 1662-1700 parece clara, mesmo que represente antes a consolidação e intensificação de um processo de longo prazo, como vimos acima, e não uma brusca ruptura. Considerando que o termo “nobreza” aparece com mais frequência quando se tratava da fiscalidade e de pedidos do Governador-Geral, o ponto a marcar o início desta segunda fase foi a cobrança do elevado donativo para dote da Rainha da GrãBretanha e Paz de Holanda. Para resolver a distribuição dos valores da contribuição, o “Senhor Francisco Barreto do seu Conselho de Guerra, Governador e Capitão Geral do Estado do Brasil ordenou se achassem o Senado da Câmara e nobreza e povo dela em minha presença”, em 24 de fevereiro de 1662 (capítulos VI e VII)43. Assim, ao longo do século XVII, “nobreza” passou de um termo raramente utilizado para conceito predominante na autorrepresentação da elite baiana, que chega a produzir um longo “Protesto da Nobreza da Cidade da Bahia ao Senado da Câmara para a fazer presente a sua Majestade”, demandando a implantação da moeda provincial, com apoio do clero e povo44. A partir de 1663 (e a coincidência de datas não deve ser fortuita), a “nobreza e povo” passaram mesmo a ter sua presença registrada nas cerimônias de pleito e homenagem prestadas aos governadores que tomavam posse45. Os fatores que parecem ter contribuído para esse fenômeno são múltiplos. A consolidação da posição soteropolitana como “cabeça do Estado do Brasil” (capítulo I) e como uma importante metrópole, em termos comerciais mas, principalmente, políticos, pode ter sido um elemento essencial: afinal, era na “cidade da Bahia” que a elite era capaz de agir

ZUBER-KLAPISCH, Christiane. “La construction de l’identité sociale: les magnats dans la Florence de la fin du Moyen Âge” in: LEPETIT, Bernard (ed.). Les formes de l’expérience: une autre histoire sociale. Paris: Albin Michel, 2013 [1995], p. 207. Veja-se também BURKE, Peter. “The language of orders in early modern Europe” in: BUSH, Michael L. (ed.). Social Orders & Social Classes in Europe since 1500: Studies in social stratification. Harlow: Longman, 1992, pp. 1-12 e THOMPSON, Irving. “Hidalgo and pechero: the language of ‘estates’ and ‘classes’ in early-modern Castille” in: CORFIELD, Penelope (ed.). Language, History and Class. Oxford: Basil Blackwell, 1991, pp. 53-78. 43 AC, vol. IV, pp. 136-40. Cf. também DH, vol. 4, pp. 97-100 e vol. 5, pp. 344-8. 44 CS, vol. IV, pp. 3-10; cf. também pp. 10-12 e 14, assim como vol. III, pp. 114-7. 45 DH, vol. 21, p. 112; vol. 23, p. 9 e vol. 24, p. 157. 42

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coletivamente como nobreza, através do exercício efetivo do poder político e da expressão simbólica e ritual de sua preeminência social através das festas e procissões – que constituíram uma importante temática em sua correspondência com a Coroa (capítulo VII). Por outro lado, a consolidação da açucarocracia da capitania – ainda que a elite continuasse a absorver forasteiros – certamente contribuiu para o resultado, com o surgimento de importantes famílias capazes de controlar em medida cada vez maior os cargos da República, situação especialmente marcada exatamente a partir da década de 1660 (capítulo III). O tempo tem uma importância fundamental nesse processo, como já intuíra Gregório de Matos na epígrafe deste capítulo, pois, como bem disse José Damião Rodrigues, “a nobreza alimentava-se de sua própria duração”46. No entanto, no âmbito do discurso e da prática política, os aspectos determinantes no processo foram, em primeiro lugar, a pressão fiscal da Coroa, e, em seguida, o relacionamento com os governadores-gerais e o monarca. A necessidade de deliberar sobre temas de grande importância para a capitania, como uma carga tributária que girava em torno de 100.000 cruzados anuais em contribuições administradas pelo Senado – somando-se o donativo com o sustento da infantaria (capítulos V-VII) – exigia que a Câmara consultasse os membros da elite para obter legitimidade para suas ações, e o grupo, ao representar-se como uma nobreza, presumivelmente ganhava força política, pois essa identidade representava “um elemento e instrumento com o qual os estratos sociais superiores buscavam defender sua distinção e exclusividade social”47. Da mesma maneira, a adoção dos modelos institucionais calcados na experiência portuguesa na negociação com a Coroa e, principalmente, com seus representantes na América reforçava a posição da elite baiana como um agente político de grande relevância. Por mais que a escravidão tenha transformado decisivamente os aspectos sociais e econômicos da constituição das elites ultramarinas – senhoras, afinal, de muitos cativos, o que implicava problemas e possibilidades inexistentes em Portugal, assim como dependentes do mercado externo para sua própria reprodução social – o seu modelo político-ideológico era ibérico, e é de acordo com essa visão de mundo que as elites brasílicas vão procurar se apresentar. Assim, a identidade nobiliárquica local deriva da consolidação familiar dos homens bons da capitania, mas também, e principalmente, das relações por eles estabelecidas com o poder monárquico e sua administração periférica. A monarquia portuguesa precisava legitimar e mesmo reforçar o poder das elites locais para exercer seu próprio domínio, enquanto estas

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RODRIGUES, José Damião. São Miguel no Século XVIII: Casa, Elites e Poder. Ponta Delgada: Instituto Cultural, 2003, vol. II, p. 604. 47 BÜSCHGES, Christian. “Introducción” in: id. & SCHRÖTER, Bernd. (eds.), Beneméritos, p. 13.

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desenvolvem estratégias para manter e ampliar sua autoridade. Nesse sentido, já se escreveu recentemente sobre a nobreza francesa, a mais codificada da Europa Ocidental, que “nobreza não era nada senão uma negociação eterna, uma luta pelo pertencimento político ao invés de um grupo social pré-definido e intangível. (...) [Assim,] ela se torna um instrumento, uma prática política e social mais do que uma essência imemorial”. Desse modo, “nobre e nobreza se provam como conceitos relacionais e situacionais, definidos por mecanismos de aceitação tanto pelos pares quanto pelo meio social e político mais amplo”48. Luciano Figueiredo viu no contexto de aumento da pressão fiscal após 1640 a adoção do discurso político da Restauração no ultramar e o aumento da capacidade de intervenção política dos colonos nas decisões imperiais graças a rebeliões e negociações. Surgiria, assim, uma identidade colonial como resultado da exploração metropolitana49. Como Stuart Schwartz apontou, porém, a elite que liderou a maior parte dessas revoltas era profundamente ligada a Portugal50, mesmo que houvesse uma consciência da alteridade americana e se começasse, mesmo que lentamente, a falar em “filhos do Brasil” nas últimas décadas do século (capítulo VII). Creio, assim, que se a “conjuntura crítica” do pós-Restauração reforçou uma identidade, foi principalmente uma identidade estamental das elites brasílicas como nobreza local, de acordo com o modelo reinol. É provável que a aceitação dos governadores dessas pretensões reforçasse essa identidade, como nos casos supracitados de Castelo Melhor e Francisco Barreto, assim como, posteriormente, de Alexandre de Sousa Freire. É de se notar que essas três portarias dos governadores foram registradas nas Atas, o que configura um procedimento extraordinário. Talvez esta tenha sido uma tentativa de preservar na memória administrativa um reconhecimento do alter-ego do monarca da América como forma de legitimação do estatuto

MARRAUD, Mathieu. “Nobility as social and political dialogue: the Parisian example, 1650-1750” in: ROMANIELLO, Matthew & LIPP, Charles (eds.). Contested spaces of nobility in early modern Europe. Farnham: Ashgate, 2011, p. 213-4 (primeira citação); LEONHARD, Jörn & WIELAND, Christian. “Noble Identities from the Sixteenth to the Twentieth Century” In: id. (eds.). What Makes the Nobility Noble? Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2011, pp. 25-6 (segunda). Cf. também DESCIMON, Robert. “Chercher de nouvelles voies pour interpréter les phénomènes nobiliaires dans la France moderne: la noblesse ‘essence’ ou rapport social?”. Revue de histoire moderne et contemporaine, vol. 46, 1999, pp. 5-21. 49 FIGUEIREDO, Luciano. “Além de súditos: notas sobre revoltas e identidade colonial na América Portuguesa”. Tempo, n. 10, 2000, pp. 81-95 e id. “O império em apuros: notas para o estudo das alterações ultramarinas e das práticas políticas no império colonial português, séculos XVII e XVIII” in: FURTADO, Júnia Ferreira (org.). Diálogos Oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império Ultramarino Português. Belo Horizonte: UFMG, 2001, pp. 197-232. 50 SCHWARTZ, Stuart. “‘Gente da terra braziliense da nasção’: Pensando o Brasil. A construção de um povo” in: MOTA, Carlos Guilherme (org.). Viagem Incompleta: a experiência brasileira (1500-2000). Vol. I: Formação – Histórias. São Paulo: SENAC, 2000, pp. 103-25. 48

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nobiliárquico local. Referências do tipo não estão presentes apenas na correspondência para a Câmara, mas também para o monarca, como em missiva do citado Castelo Melhor51. Até um letrado castelhano residente na Bahia menciona três vezes em sua obra a “nobreza” da Bahia como um corpo coeso52. Poucos anos depois, outro letrado, este baiano e bem mais conhecido, menciona diversas vezes a nobreza – e certamente estava familiarizado com o discurso camarário, pois serviu como procurador da municipalidade soteropolitana em Lisboa entre 1672 e 1674: o poeta Gregório de Matos53. O “Boca do Inferno” lamenta a morte do coronel Afonso Barbosa de França (falecido em inícios de 1679), “mancebo generoso, da principal nobreza da Bahia” e, noutro poema, menciona que, junto com o governador-geral e os padres, “toda a nobreza” assistiu festas de cavalo “em louvor das onze mil virgens”. Da mesma maneira, Sebastião da Rocha Pitta, ao narrar as manifestações em Salvador após o falecimento de D. Pedro II, menciona o “numeroso concurso da Nobreza e Povo”. Já na licença do livro o famoso conselheiro ultramarino Antônio Rodrigues da Costa enfatiza a participação da “Nobreza da Cidade da Bahia” nas exéquias do monarca54. Publicava-se, assim, uma prática longamente estabelecida, pois o registro da Câmara da cerimônia de quebra dos escudos após as mortes de D. João IV e D. Afonso VI já enfatizava a participação coletiva da nobreza na procissão funerária saída do Senado, assim como na aclamação de D. Pedro II, que ocorreu “em presença de toda a nobreza”, tomando esta parte ativa no ritual, juntamente com os oficiais da Câmara55. Na obra mais conhecida de Rocha Pitta, a História da América Portuguesa, o termo é onipresente, aparecendo dezenas de vezes. Há inclusive um esforço explícito de defender a existência de nobrezas ultramarinas, originárias de “muitos sujeitos oriundos de nobilíssimas casas de Portugal, e sendo ramos de generosos troncos transplantados a este clima, produziram

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DH, vol. 86, p. 162; registrado nas AC, vol. IV, pp. 383-4. Cf. também DH, vol. 3, p. 55 e vol. 4, pp. 304-5; AHU, cód. 14, fl. 244v. 52 SCHWARTZ, Stuart & PÉCORA, Alcir (org.). As Excelências do Governador: o panegírico fúnebre a d. Afonso Furtado, de Juan Lopes Sierra (Bahia, 1676). São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 200, 229 e 255. Há que se notar que o próprio Afonso Furtado da Mendonça incluíra membros da “nobreza” na junta que reuniu para decidir sobre sua sucessão: DH, vol. 88, pp. 85 e 103 (capítulo VI). 53 Cf. AC, vol. V, pp. 70, 108 e 143; cf. também CS, vol. II, p. 17 e PERES, Fernando da Rocha. Gregório de Mattos: o poeta devorador. Rio de Janeiro: Manati, 2004, p. 74. Seu irmão Pedro de Matos de Vasconcelos foi eleito vereador pouco depois, 1676. 54 PITA, Sebastião da Rocha. Breve Compêndio e Narração do Fúnebre Espetáculo que na insigne Cidade da Bahia, cabeça da América Portuguesa, se viu na morte de El-Rey D. Pedro II, de gloriosa memória, Senhor Nosso. Lisboa: Officina de Valentim da Costa Deslandes, 1709, licença e p. 15. O tio deste autor, o Desembargador João da Rocha Pita, utiliza diversas vezes o coletivo “nobreza” ao explicar as tensões políticas em torno do assassinato do alcaide-mor Francisco Teles de Meneses em 1683 (capítulo VI), falando inclusive, caso único em toda documentação consultada, em “nobreza da terra”: DH, vol. 88, p. 264-7. 55 AHMS, PR, vol. II, fls. 44-45v e vol. III, fls. 24-25 e 25v-26 (citação).

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frutos de continuada descendência, que não degeneram das suas origens, antes as acreditam”56. Exatamente em razão dessa vaga ficção genealógica lhe foi possível conceber tal nobreza como eterna, não dotada de um início, estando já plenamente constituída quando da morte do governador-geral Lourenço da Veiga, em 1581, e aparecendo em vários momentos de grande significação política da história baiana: a aclamação de D. João IV, a divisão do donativo de dote e paz, a fundação do convento das clarissas e a sucessão dos governadores-gerais Afonso Furtado de Mendonça e Matias da Cunha. Também alguns dos principais mecanismos de legitimação do status das elites portuguesas chegaram a afirmar a existência de uma nobreza baiana, mesmo que tentativamente: as inquirições das Ordens Militares e do Santo Ofício. Na habilitação para a Ordem de Cristo de João Soares Brandão, por exemplo, a Mesa de Consciência e Ordens afirma que o postulante “é da melhor nobreza que há na Bahia de Todos os Santos”57. Se esse é um caso em que há referência a uma coletividade, todas as habilitações da elite baiana contêm em si elementos de um discurso genealógico a enfatizar a nobreza individual e familiar, pois era este o interesse dos inquiridores. Na própria Bahia de meados do século, os cargos no governo na República eram referidos em meados do século como “ofícios nobres” e os irmãos de maior condição da Misericórdia como “do número dos nobres”, como se vê no testemunho do velho fidalgo Diogo de Aragão Pereira (capítulo III) na leitura de bacharel de Gregório de Matos, repetida por todas as outras testemunhas58. Um curioso documento talvez evidencie a disseminação dessa forma de classificação no discurso corrente: em denúncia à Inquisição de 23 de dezembro de 1667, o chantre da Sé da Bahia, Domingos Vieira de Lima (que havia se destacado como vigário-geral na “Guerra da Liberdade Divina”, em Pernambuco) acusou o licenciado José Pinto de Freitas, tesoureiro-mor da Sé, de cometer o pecado nefando, “do qual há fama pública e constante entre a plebe, clérigos, religiosos e nobreza”, tanto que, dentre as testemunhas que aponta, como o exgovernador-geral Francisco Barreto, arrola, genericamente, “toda a nobreza”59.

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PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portugueza, desde o anno de mil e quinhentos do seu descobrimento, até o de mil e setecentos e vinte e quatro. Lisboa: Oficina de Joseph Antônio da Silva, 1730, pp. 132-3. 57 IAN/TT, HOC, Letra J, maço 93, n. 62. Cf. também Desembargo do Paço, Leitura de Bacharéis, Letra C, Maço 2, n. 55 (Cristóvão de Burgos) e TSO, Conselho Geral, Habilitações, Sebastião, Maço 4, n. 97 (Sebastião de Brito de Castro). 58 FONSECA, Luiza da. “Bacharéis brasileiros: elementos biográficos” in: Anais do IV Congresso de História Nacional. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1951, vol. IX, pp. 143-63. 59 IAN/TT, TSO, IL, Cadernos do Nefando, n. 12, fls. 107-107v. Anos antes, em 1652, o capitão Bernardo de Aguirre denunciou que o assassinato de seu filho havia permanecido impune, “com notável escândalo da nobreza daquela cidade, e seu povo”: AHU, Bahia, LF, cx. 12, doc. 1458.

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A própria Coroa reconhecia a existência de uma nobreza baiana, ao permitir, por exemplo, a fundação de um convento de freiras em Salvador a pedido dos “oficiais da Câmara, Nobreza e Povo”, numa provisão de 7 de fevereiro de 166560. Em primeiro de julho do ano seguinte, em resposta a uma representação do Procurador da Bahia em Lisboa, o monarca decide que “a eleição dos ministros da junta [para decidir a cobrança do donativo] se faça cada três anos pela nobreza, povo e eclesiástico”61 (capítulo VI). Emblemática nesse sentido é uma resolução de D. Pedro II sobre a tentativa de dois homens de negócio se isentarem de servir como procuradores da Câmara, utilizando como justificativa o fato de serem cavaleiros da Ordem de Cristo. Em 23 de março de 1686, o monarca decidiu que “na Bahia não se faça eleição de nenhum dos cavaleiros das três Ordens para ofício de procurador, visto que para estes cargos se não costuma eleger as pessoas da primeira nobreza, que servem de juízes e vereadores, se não outras de diferente qualidade”62. Ao utilizar uma expressão até então inédita no vocabulário da estratificação social, “primeira nobreza”, ausente tanto da petição da Câmara quanto dos pareceres do Conselho Ultramarino, dos letrados e do governador-geral sobre o caso, a Coroa não só reconhece explicitamente a existência de uma nobreza baiana como distingue um escalão superior nela, uma “primeira nobreza”, termo que passara a ser cada vez mais utilizado em Portugal para se referir à aristocracia titulada e residente na Corte lisboeta justamente sob D. Pedro. O rei transmitira, então, para o ultramar um vocabulário pensado para fortalecer a clivagem entre seus mais nobres aliados e as elites provinciais63, honrando seus vassalos baianos pelos muitos serviços prestados e alargando o fosso que os separava dos outros grupos sociais da capitania. Por caminhos muito diferentes, a nobreza baiana e a aristocracia brigantina consolidaram-se mais ou menos ao mesmo tempo, muito influenciadas pelas guerras contra adversários europeus (respectivamente, neerlandeses e castelhanos), nas quais sua contribuição foi decisiva. A partir da segunda metade do século XVIII a expressão chegou a ser mais comumente utilizada para referir o grupo mais proeminente dentre as elites locais no império luso64, mas

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AHMS, PR, vol. 2, 98-102. AHU, cód. 16, fl. 201v. Cf. também AHMS, PR, vol. II, fls. 90v-93. 62 Carta para o governador em DH, vol. 68, p. 49-52 e, para a Câmara, em AHMS, PR, vol. III, fl. 36v. Para os desdobramentos posteriores, cf. AHMS, PR, vol. III, fls. 63-64. Para uma análise um pouco mais detalhada deste conflito, cf. KRAUSE, Thiago. Em Busca da Honra: a remuneração dos serviços da guerra holandesa e os hábitos das ordens militares (Bahia e Pernambuco, 1641-1683). São Paulo: Annablume, 2012, pp. 243-6. 63 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O Crepúsculo dos Grandes: Casa e Patrimônio da Aristocracia em Portugal (17501834). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998. 64 COUTO, Domingos Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco (1757) in: Anais da Biblioteca Nacional, 1904, vols. 24 (p. 265) e 25 (p. 24); RODRIGUES, José Damião. “As elites locais nos Açores em finais do Antigo Regime”. Arquipélago: História, 2ª série, IX, 2005, p. 367. “Principal nobreza” pode ter sido um termo 61

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cabe notar a precocidade de seu emprego para definir a nobreza soteropolitana. É certo que o estatuto da elite baiana era muito inferior aos Grandes lusitanos, aquele pequeno grupo dominante de fundamental papel político e social em Portugal; mesmo assim, o paralelismo implícito na existência de uma “primeira nobreza” na capital do Estado do Brasil não deve ter passado despercebido, e o Senado soteropolitano se apropriará dele nos anos seguintes 65. Tal nobreza estava ligada ao poder municipal na mente de todos, localidade e centro político, como pode ser inferido de uma carta régia em que a Coroa responde a uma carta do “mui nobre Senado desta cidade do Salvador, Bahia de Todos os Santos” sobre a adoção de São Francisco Xavier como padroeiro66. Assim, em finais do século XVII, ninguém colocava em dúvida a existência de um grupo superior estamentalmente constituído na Bahia.

Os Privilégios da Nobreza Baiana Esse reconhecimento gerava efeitos práticos. De acordo com H. M. Scott e C. Storrs, “nos séculos XVII e XVIII a ‘nobreza’ era um grupo específico dentro da sociedade distinguido primariamente pelos privilégios sociais e legais que gozava e por sua posição como terratenentes importantes e frequentemente dominantes”67. Já estabelecemos no capítulo anterior a íntima ligação entre propriedade açucareira e domínio local. Uma análise sobre seus privilégios, porém, é fundamental para entender o que significa a constituição de uma nobreza na cabeça da América Portuguesa. Ainda segundo Scott e Storrs, “os privilégios nobiliárquicos eram muitos e variados. Uma categoria importante garantia à nobreza o direito de participar em e, na prática, dominar a vida política”68. Como se evidencia das páginas acima, a constituição estamental da elite baiana passa diretamente pelo exercício do poder através da Câmara. Torna-se possível, assim, para este grupo governar a República e atuar como interlocutor único dos representantes da administração periférica e do próprio monarca. Assim, o crescente controle dos cargos políticos locais que havia possibilitado a constituição da nobreza é reforçado pelo avanço do discurso estamental, num círculo vicioso em que a consolidação familiar fortalece a concepção da elite

mais comum na segunda metade do século XVII, pois o Padre Antônio Vieira o usa para se referir às elites de Vila Viçosa e Elvas numa longa notícia sobre os procedimentos da Inquisição, por volta de 1674. 65 CS, vol. IV, pp. 32-3: carta para Sua Majestade de 30 de julho de 1694. 66 AHMS, PR, vol. III, fls. 49v-50. 67 SCOTT, H. M. & STORRS, Christopher. “The Consolidation of Noble Power in Europe, c. 1600-1800” in: SCOTT, H. M. (ed.). The European Nobilities in the Seventeenth and Eighteenth-Centuries. Vol. 1: Western and Southwestern Europe. Nova York: Palgrave Macmillan, 2007 [1995], 2ª ed. rev. e amp., p. 9. Cf. também DEWALD, Jonathan. The European Nobility, 1400-1800. Cambridge: Cambridge UP, 1996, pp. 28-33 e BUSH, Michael. The European Nobility: vol. 1 – Noble Privilege. Manchester: Manchester UP, 1983. 68 SCOTT & STORRS, “The Consolidation”, p. 9; cf. também BUSH, Noble Privilege, pp. 79-120.

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como uma nobreza, e essa imagem reforça o status, poder e coesão do grupo dominante. Em acréscimo, tal domínio estendia-se para todos os postos de poder e prestígio em Salvador, como os principais cargos da Misericórdia, de oficialato na ordenança e nas Ordens Terceiras do Carmo e São Francisco, especialmente na segunda metade do século – ainda que possibilidades de inclusão de forasteiros tenham sempre existido (capítulo III). O comando político da localidade não era, porém, o único privilégio gozado coletivamente pela nobreza. Já em 1630 a elite baiana demandou, ainda que sem sucesso, os privilégios dos infanções medievais como remuneração por seus serviços no sustento da infantaria (capítulo V)69. Após a Restauração Portuguesa, porém, os camaristas voltaram à carga em 1643 e pediram os privilégios de cidadãos da cidade do Porto, enfatizando ser Salvador “a cabeça de todo o Estado do Brasil” e merecedora de honras pelos muitos serviços prestados – maiores, certamente, do que a Câmara de São Luís, que acabara de receber esta mercê logo após a vitória contra os holandeses70. Receberam o enfático apoio do recém-fundado Conselho Ultramarino em razão das “muitas vexações e moléstias que de anos a esta parte tem padecido” e das “outras muitas contribuições que tem feito e fazem em todo o tempo que tem ido e vão armadas de Vossa Majestade, além de contribuições, donativos e imposições voluntárias para sustento e paga do presídio que Vossa Majestade tem naquela cidade”. O Procurador da Coroa reforçou esse parecer, sugerindo ainda que a Bahia recebesse o direito de representação nas Cortes, aproveitando o ensejo do pedido goês neste sentido, em que ambas as cidades fossem situadas no primeiro banco das municipalidades mais prestigiosas do Reino71. Assim, em 22 de março de 1646, são concedidos os privilégios da cidade do Porto aos cidadãos de Salvador72, que poucos anos depois recebem ainda outra mercê: a possibilidade de enviarem um procurador às Cortes portuguesas (capítulo VII). Salvador incluía-se, assim, definitivamente entre as cidades e vilas notáveis do mundo português nesse momento de legitimação da nova dinastia e defesa do Reino e Império, e continuou a enfatizar nas cartas ao centro político seus serviços à Coroa, como o pagamento de donativos e o sustento da infantaria, pelo menos até o final do século. O monarca, por sua vez, reconhecia em diversas missivas – ainda que talvez de

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CCLP, vol. 4, p. 249. Sobre o convoluto processo de concessão, recepção e defesa desses privilégios nessa municipalidade, veja-se CORRÊA, Helidacy. “Para aumento da conquista e bom governo dos moradores”: o papel da Câmara de São Luís na conquista, defesa e organização do território do Maranhão (1615-1668). Tese de Doutorado. Niterói: PPGH/UFF, 2011, pp. 246-56. 71 AHU, Bahia, LF, cx. 10, docs. 1176-1177. 72 “Traslado dos privilégios que Sua Majestade concedeu aos cidadãos da Bahia de Todos os Santos” in: RIHGB, tomo 8, 1867, 2ª ed., pp. 512-26. 70

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maneira um tanto quanto padronizada – que os baianos agiriam sempre corretamente, “como espero de tão bons e leais vassalos”73 (capítulo VII). Mais importante, o avanço desses privilégios de representação acompanhava o avanço da própria estruturação da elite: afinal, uma cidade notável não poderia ter como grupo dominante senão uma nobreza, pois, dentro da visão de mundo hierarquizante do Antigo Regime, um título – como era o de “cidade”, gozado por poucas municipalidades no mundo lusitano – exigia a nobreza de seu grupo dominante, enquanto a nobilitação de sua elite justificava e mesmo demandava a concessão de privilégios à sua urbe74, especialmente se outras menos importantes já os haviam obtido – daí a referência da municipalidade baiana ao caso de São Luís. Assim, se a Restauração serviu como um momento fundacional da aristocracia portuguesa por mais de um século, processo similar ocorre em Pernambuco, como demonstrou Cabral de Mello, e na Bahia, como se percebe não só na obtenção dos privilégios, mas também na gradual consolidação do discurso nobiliárquico traçado nas páginas anteriores. Estes privilégios incluíam elementos característicos da condição nobiliárquica, como proteção judicial na maioria das circunstâncias contra prisão, tortura ou punições infamantes, além da possibilidade de portar armas. “Em suma, gozariam de todas as liberdades que distinguiam os membros da nobreza em relação ao povo miúdo”75. Estas prerrogativas foram ardorosamente defendidas pela Câmara em 1651, 1656, 1672 e 1697, que frequentemente pedia respeito a seus privilégios, contra dúvidas dos desembargadores da Relação, do governadorgeral e do próprio monarca, tendo sido geralmente bem-sucedida nestes esforços76. Provavelmente tal se dava menos por sua eficácia prática do que pela importância que recebiam na estruturação da nobreza local, já que os privilégios do Porto representavam um reconhecimento régio dos serviços baianos e o único documento que os enobrecia como coletividade77 – apesar de que, como vimos no capítulo anterior, considerável parcela da elite da capitania também conseguira obter honrarias régias, principalmente graças a sua participação na guerra contra os neerlandeses.

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Cf., para citar apenas um exemplo, AHMS, PR, vol. III, fl. 84v. Para o século seguinte, veja-se a bela análise de FONSECA, Cláudia Damasceno. Arraiais e vilas d’el rei: espaço e poder nas Minas setecentistas (trad.). Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011 [2003], pp. 334-72. 75 BICALHO, Fernanda. “O que significava ser cidadão nos tempos coloniais” in: ABREU, Martha & SOIHET, Rachel (orgs.). Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 145. Cf. também BUSH, Noble Privilege, pp. 66-71. 76 AHMS, PR, vol. II, fls. 31v-32; CS, vol. I, pp. 55-6; “Traslado”, p. 524; AHU, cód. 17, fls. 68v-69 e CS, vol. IV, pp. 76-7. 77 Para uma interessante análise que destaca a relevância política e social dos privilégios do Porto para a nobreza fluminense, cf. RAMINELLI, Nobrezas do Novo Mundo, pp. 96-102. 74

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Outro elemento característico dos estamentos superiores era o direito de ostentar sua posição em cerimônias públicas, como festas e procissões – privilégio também defendido diversas vezes pelo Senado. Considerando a importância da representação visual na afirmação das hierarquias sociais na época moderna, não é um grande passo inferir que essas cerimônias ajudavam a consolidar a nobreza baiana como grupo, já que através delas a elite podia se apresentar e ser publicamente reconhecida como tal78. Individuais ou coletivos, tais privilégios eram muito inferiores aos gozados pelas aristocracias europeias. Entretanto, as nobrezas provinciais reinóis gozavam tão somente das mesmas prerrogativas, inclusive no Porto, a segunda Cidade mais importante de Portugal79. Assim, como já notou Fernanda Bicalho, “a concessão de honras e privilégios às Câmaras Municipais, fosse no Reino, fosse especificamente no ultramar, correspondeu a um processo de nobilitação de seus componentes”80, aliado à realização de serviços: é de se notar que a década de 1640 também viu vários pedidos pelos privilégios do Porto entre as Câmaras portuguesas81. Nesse ponto é difícil traçar distinções precisas entre as nobrezas provinciais portuguesas na Europa e na América, especialmente a partir do momento em que estas começaram a se consolidar nas principais regiões do Novo Mundo na segunda metade do seiscentos. Aqui como lá “reservava-se o exercício de poderes que interessavam ao rei a camadas sociais assinaláveis, dotadas de sentido de honra e vivendo à lei da nobreza, que se satisfazia com a aproximação a privilégios dos estratos superiores da aristocracia – nomeadamente penais”82. Talvez os vassalos das conquistas pudessem mesmo contar com algumas vantagens frente às elites locais portuguesas, já que desde o início do século a açucarocracia obteve o privilégio de que seus engenhos seriam executados pelos credores apenas em seus rendimentos, mercê renovada na década de 1630 e tornada quase permanente a partir de 1663. Efetivamente, um dos benefícios da propriedade vinculada (a proteção contra os credores) era estendida a todos os senhores de moendas durante suas vidas, ainda que quase nenhum deles tivesse instituído morgados (capítulos III e VII).

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CS, vol. I, pp. 18-21; AHU, Bahia, LF, cx. 17, doc. 1945; AHMS, PR, vol. 2, fls. 118v-120. Cf. também SCHWARTZ, Stuart. “The King’s Processions: Municipal and Royal Authority and the Hierarchies of Power in Colonial Salvador” in: ROCKEY, Liam Matthew (org.). Portuguese Colonial Cities in the Early Modern World. Aldershot: Ashgate, 2008, pp. 177-204 e MENDES, Ediana. Festas e procissões reais na Bahia colonial: séculos XVII e XVIII. Dissertação de mestrado. Salvador: PPGH/UFBA, 2011. 79 Cf. SILVA, O Porto, vol. I, pp. 286-306. 80 BICALHO, A Cidade e o Império, p. 324. 81 CARDIM, Pedro. Cortes e Cultura Política no Portugal do Antigo Regime. Lisboa: Cosmos, 1998, pp. 147-8. 82 MAGALHÃES, “Os nobres”, p. 69.

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Nobreza e Povo Se, como vimos, a nobreza baiana construiu-se de forma relacional, essa relação não se deu apenas com a Coroa e sua administração periférica. Deu-se também, sem dúvida, com a população mais ampla. Por mais que o poder político fosse dominado por um grupo pequeno, ele era exercido em nome de um “povo” abstrato que se fazia presente em muitas reuniões da municipalidade. Por vezes, especialmente nas primeiras décadas abarcadas por este estudo, “povo” significa a sociedade política como um todo, incluindo tanto a elite quanto alguns grupos subalternos considerados merecedores de participação, mesmo que minoritária, no governo da República83. Na maioria dos momentos, porém, “povo” representa apenas esses setores abaixo da elite, geralmente associados aos ofícios mecânicos, mas não identificados explicitamente, num amálgama amorfo e instável84. Variação análoga pode ser encontrada nas cartas dos governadores-gerais, predominando, porém, o sentido socialmente mais inclusivo, com raras exceções, nas quais o povo é um grupo claramente diferenciado dos senhores de engenho, homens de negócio e da nobreza, mas amorfo85. Uma definição mais precisa seria de grande valia, mas é dificultada pelas limitações documentais, inclusive devido à fragilidade das corporações de artesãos em Salvador, que, diferentemente da Europa, quase não nos legaram fontes86 – além da quase invisibilidade do “juiz do povo” nos documentos produzidos pela Câmara soteropolitana seiscentista. Em certa medida, é a própria indeterminação do conceito que lhe dava força retórica, pois permitia àqueles que falavam em nome do “povo” assumir a autoridade de porta-vozes de toda a sociedade87 – papel que cabia é claro, à elite, que reforçava assim sua própria legitimidade. Um dos únicos momentos em que os camaristas definem quem seria o povo, mesmo que de forma pejorativa, é uma carta enviada em 28 de janeiro de 1668, criticando as despesas injustificadas dos vereadores do ano anterior, legitimadas através do recurso ao “povo”:

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O mesmo se dava no Rio de Janeiro e em Pernambuco: cf. ABREU, Maurício. Geografia Histórica do Rio de Janeiro (1502-1700). Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson, 2011, vol. I, p. 388 e MELLO, Rubro Veio, p. 160. 84 Para a polissemia, cf. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez & Latino, vol. 6. Lisboa: Officina de Pascoal da Silva, Impressor de Sua Majestade, vol. 6, 1720, p. 661, e um breve panorama em WEHLING, Arno. “O conceito jurídico de povo no antigo regime. O caso luso-brasileiro”. RIHGB, ano 164, n. 421, 2003, pp. 39-50. Sobre sua imprecisão, cf. CORTEGUERA, Luis. “Gent Ordinària: una categoria útil d’analisi?”. Pedralbes, n. 23, 2003, pp. 165-72 e AMELANG, James S. “Social hierarchies: the lower classes” in: RUGGIERO, Guido (ed.). A Companion to the Worlds of the Renaissance. Malden: Blackwell, 2007, pp. 243-58. 85 Cf. os volumes referentes ao século XVII dos DH; para as poucas exceções, cf., por exemplo, DH, vol. 3, pp. 320-1 e 355-6; vol. 4, pp. 97-100. 86 Para um estudo da atuação política do “povo” (significando, no caso, os artesãos), cf. CORTEGUERA, Luis. For the Common Good: popular politics in Barcelona, 1580-1640. Ithaca: Cornell UP, 2002. 87 Como notou CHAMBOULEYRON, Rafael. “‘Duplicados clamores’: queixas e rebeliões na Amazônia colonial (século XVII). Projeto História, n. 33, 2006, pp. 172-3.

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chamaram alguma gente de pouca condição deste povo, criados dos moradores e oficiais mecânicos, e para fazerem numero de 20 pessoas que nele assinaram fizeram também assinar pelos serventes desta câmara e havendo muita nobreza nesta cidade, muitos que foram juízes e vereadores nela não se acha nele assinado mais que Antônio de Souza de Andrade88.

Como afirmou Stuart Schwartz, “a vasta maioria da população era considerada por essa elite e pelo regime colonial como desmerecedora do seu status enquanto povo”89. Consequentemente, as fontes produzidas pelas elites luso-americanas pouco, ou nada, se preocupavam com a identidade do “povo”. É certo, porém, que escravos, criados, mulheres e crianças, como subordinados aos patres familias, não tinham lugar no corpo político. Tanto os juízes do povo quanto os mesteres e o escrivão eram artesãos brancos e relativamente bemsucedidos, e era esse grupo que eles representavam90. Eram donos de propriedades e escravos, casados e com filhos – “pequenos patriarcas”, em resumo91. Como afirmou causticamente Christopher Hill, em artigo que deixa claro quão grandes precisavam ser as transformações políticas para forçar uma discussão sobre o que era o povo no século XVII, “aparentemente, pobre não é povo porque não tem propriedades”92. Assim, é de se supor que o apoio do “povo” fosse importante para a legitimação da açucarocracia como “nobreza” responsável pelo governo político da República. Em verdade, esses artesãos ricos ou remediados compartilhavam mesmo um importante espaço de sociabilidade com a elite: a Santa Casa de Misericórdia, cuja Mesa Diretora era composta por seis membros de “menor condição” (artesãos e mercadores de loja) e seis nobres, liderados por um provedor (sempre, como vimos, um dos homens mais destacados da capitania). Embora o controle da irmandade pertencesse claramente aos homens bons, é provável que o contato pessoal com esses elementos “populares” estimulasse a nobreza a procurar legitimar-se frente

88

AHU, Bahia, LF, cx. 20, doc. 2238. SCHWARTZ, “‘Gente da terra braziliense de nasção’”, p. 116. 90 SCHWARTZ, Stuart. “De la Plébe au ‘Peuple’ dans le Brésil du XVIIIe siècle”. Caravelle, n. 84, 2005, pp. 1324; FLORY, Rae. Bahian Society in the Mid-Colonial Period: the sugar planters, tobacco growers, merchants, and artisans of Salvador and the Recôncavo, 1680-1725. Tese de Doutorado. Austin: Departamento de História da Universidade do Texas, 1978, pp. 281-343; FLEXOR, Maria Helena Ochi. “Ofícios, manufaturas e comércio” in: SXMRECSÁNYI, Tamás (org.). História Econômica do Período Colonial. São Paulo: Hucitec/EDUSP/Imprensa Oficial, 2002 [1996], 2ª ed., pp. 173-94. O mesmo pode ser dito para o Porto: SILVA, O Porto, vol. I, pp. 234 e 309-15, e provavelmente para as principais cidades portuguesas. Entretanto, o limitado número de artesãos, a fragilidade da organização corporativa e a onipresença da escravidão provavelmente prejudicaram a capacidade de intervenção política dos artesãos na Bahia – e ainda mais em outras regiões, como o Rio de Janeiro: ABREU, Geografia Histórica, vol. I, pp. 389-94. 91 Expressão cunhada por Carlos Lima e bem utilizada por Cacilda Machado em A trama das vontades: negros, pardos e brancos na produção da hierarquia social do Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008, p. 70. 92 HILL, Christopher. “Os pobres e o Povo na Inglaterra do século XVII” in: KRANTZ, Frederick (org.). A Outra História: ideologia e protesto popular nos séculos XVII a XIX (trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990 [1985], p. 36. 89

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ao “povo”, reforçando sua autoridade93. É possível até que relações de compadrio unissem os dois polos, pois nas paróquias do Recôncavo diversos membros da elite apadrinhavam crianças de condição social inferior, ampliando sua influência e legitimidade social – ainda que esta questão exija pesquisas mais amplas (ainda que em outras regiões, devido à escassez de fontes na Bahia seiscentista), cruzando os registros paroquiais com a documentação notarial para averiguar a condição social de todos os componentes da relação e, preferencialmente, a reiteração (ou não) desses laços ao longo da vida dos agentes94. De qualquer maneira, desde os primeiros registros é possível encontrar referências a decisões tomadas conjuntamente pelos “homens da governança e povo”95. Como dá a entender uma ata da eleição de um procurador em 1644 da qual participam “a nobreza do povo e mais misteres dele” e de um juiz e um vereador em 1666, para a qual foi chamada “a nobreza deste povo”, ou ainda o debate sobre a necessidade de se enviar procurador a Lisboa, quando novamente se convocou “a nobreza deste povo”, a elite se define a partir de sua posição superior dentro do povo96. Como a nobreza baiana fazia, na prática, parte de um estrato superior do Terceiro Estado (assim como todas as elites locais portuguesas)97, apesar da divisão tripartida dos três Estados da República que se repetiu algumas vezes ao longo do século XVII, tal situação fazia sentido, pois a construção dessa nobreza era profundamente local e costumeira, mesmo que seja muito difícil enxergar os mecanismos de criação da legitimidade frente ao “povo”, isto é, este grupo, relativamente pequeno, de artesãos urbanos. No mínimo, a anuência do “povo” era essencial para assegurar algum grau de cumprimento das posturas camarárias e para coletar efetivamente as contribuições excepcionais diretas frequentemente lançadas pela Câmara. Daí a recorrência da expressão “nobreza e povo”, que aparece 56 vezes na documentação da Câmara entre 1642 e 1700, geralmente na discussão de temas politicamente relevantes, como a fiscalidade98. Os artesãos de Salvador são, portanto, o terceiro – e mais obscuro – polo relacional na formação da nobreza baiana.

93

O significado político das misericórdias é tema que merece ser melhor estudado, seguindo-se o modelo de CAVALLO, Sandra. Charity and Power in Early Modern Italy: Cambridge: Cambridge UP, 1995, pp. 98-151. Veja-se, de qualquer maneira, RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1550-1755 (trad.). Brasília: Ed. UnB, 1981 [1968], pp. 96-100 e 118-9 para alguns dados sobre a participação de artesãos. 94 Apesar de ainda não haver nenhum estudo nesse sentido, vale cf. BRÜGGER, Silvia. Minas patriarcal: família e sociedade (São João del Rei – séculos XVIII e XIX). São Paulo: Annablume, 2007, pp. 315-26. 95 AC, vol. I, pp. 76-7. 96 AC, vol. II, pp. 237-8 e vol. IV, p. 246 e 407-9; para passagens similares, cf. vol. I, pp. 187-8; vol. II, 265-6 e 321-6; vol. III, 88-95, 98-100 e 127-8; vol. IV, pp. 352-3, 356 e 402-3; e AHU, Bahia, Luiza da Fonseca, cx. 3, doc. 423. 97 MAGALHÃES, Joaquim Romero. O Algarve Econômico, 1600-1773. Lisboa: Estampa, 1993 [1988], p. 348. 98 Tal expressão, assim omo outras análogas, aparece com frequência em Pernambuco no contexto do conflito entre mazombos e mascates: MELLO, Rubro Veio, p. 163.

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Comparações A escassez de estudos sobre a autorrepresentação das elites locais no mundo lusitano seiscentista – não só no Brasil, como no Reino e no restante do ultramar – dificulta a análise, pois apenas através da comparação entre os discursos políticos locais é possível perceber os diferentes ritmos de formação e as particularidades de cada região – que podem ser indicativas do caráter das nobrezas locais. Já certos aspectos que poderiam ser compreendidos como especificidades, a exemplo da relação entre “nobreza e povo” ou a inconsistência terminológica, são, em verdade, características presentes em todo o império português. Como João Fragoso e Evaldo Cabral de Mello demonstraram, expressões como “pessoas nobres” estão presentes no Rio de Janeiro e em Pernambuco desde o segundo quartel do seiscentos, ainda que seja difícil estimar sua importância relativa dentro do discurso político das elites da América Portuguesa, devido à ausência de registros completos das Câmaras locais. Em São Paulo, por outro lado, tal estudo seria possível. Infelizmente, desconheço pesquisas nesse sentido. Mesmo assim, já em 1660 há uma carta a Salvador Correia de Sá da Câmara de São Paulo na qual seus oficiais, junto “com a nobreza dos moradores dela”, apoiam o governador no contexto da rebelião que então ocorria no Rio de Janeiro. Nesta capitania, em representação no mesmo ano, os camaristas procuravam legitimar sua autoridade ao afirmarem que eram “eleitos e feitos pela nobreza, procuradores e feitores por este povo”99. Da mesma maneira, Agostinho Barbalho Bezerra justifica sua posição como governador provisório em 1660 por ter sido eleito pela “nobreza e povo”100. Em geral, a tensão política no período fez com que o termo fosse repetidamente empregado nos embates políticos da capitania, provavelmente ajudando a normatizá-lo nos anos seguintes e indicando seu caráter relacional, surgindo sempre em momentos e questões de grande apelo político101. Provavelmente a consolidação das principais famílias no controle do poder local demonstrada por Fragoso possibilitou o desenvolvimento desse discurso, emprestando-lhe verossimilhança. Até na pequena Taubaté “os homens da nobreza e povo” assinaram uma escritura em 1674, se comprometendo a contribuir para a construção de um convento102. Continuando em

99

CAETANO, Antônio Filipe Pereira. Entre Drogas e Cachaça: a política colonial e as tensões na América Portuguesa (Capitania do Rio de Janeiro e o Estado do Maranhão e Grão Pará, 1640-1710). Tese de Doutorado. Recife: PPGH/UFPE, 2008, pp. 168 e 203; cf. também p. 301, no mesmo sentido. 100 DH, vol. 5, p. 120. 101 Veja-se os documentos citados em FIGUEIREDO, Luciano. Revoltas, Fiscalidade e Identidade Colonial na América Portuguesa: Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais, 1640-1761. Tese de Doutorado. São Paulo: PPGHS/USP, 1996, pp. 47, 59, 76 e 474, dentre outros. 102 MENDONÇA, Regina Kátia Santos de. Escravidão Indígena no Vale do Paraíba: exploração e conquista dos sertões da capitania de Nossa Senhora da Conceição de Itanhaém, século XVII. Dissertação de Mestrado. São Paulo: PPGHE/USP, 2009, p. 70.

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São Paulo, Ilana Blaj analisa a formação de uma “nobreza colonial” em finais do século, sendo até mesmo reconhecida como tal pelos representantes régios, a exemplo do vice-rei Marquês de Angeja, que em 1713 escreveu à Câmara paulistana esperar “que Vossas Mercês e a mais nobreza e povos dessas capitanias continuem com o mesmo zelo e atividade em fazer novos descobrimentos não só de ouro”, ou o governador D. Brás Baltazar da Silveira, que em 1717 elogia os “grandes serviços que a nobreza de São Paulo tem feito a Sua Majestade”103. Atravessando a América Portuguesa e chegando a seu extremo norte, no Maranhão, em 1675 as atas da Câmara de São Luís referem “os homens bons da nobreza que costumam andar na governança da República desta cidade”. O conceito de nobreza teria uma importância especialmente significativa na Revolta de Beckman, quando foi instituída uma junta dos Três Estados: clero, nobreza e povo104. Mesmo o governador Francisco de Sá Menezes não deixou de caracterizar dessa maneira a elite local: “para esses excessos do contrato e dos padres concorreu uniformemente toda a nobreza (tal ou qual) e todo o povo”105. Devido ao caráter mais recente e incipiente da ocupação do território, provavelmente sua aparição foi mais tardia, mas novamente assume importância em um momento de conflito intenso. Os governadores-gerais também não tiveram dificuldades em reconhecer a existência de nobrezas locais, especialmente ao discutir o donativo. Tal substantivo havia se tornado corrente, passando a aparecer nas patentes emitidas para capitães-mores106. Mais relevante, porém, talvez sejam duas manifestações régias. Na primeira, D. Afonso VI (ou seu valido Castelo Melhor, escrivão da puridade) decide em 1º de julho de 1665, sobre a forma de recolhimento do donativo em resposta a missivas da Câmara da Bahia e dos governadores do Rio de Janeiro e Pernambuco: “para a cobrança se faça em cada capitania digo se convoque o eclesiástico, nobreza e povo e assentem a forma que se executará por junta de dois homens de cada Estado”107. O monarca ordena, assim, a adoção de um modelo similar às Cortes

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BLAJ, Ilana. A trama das tensões: o processo de mercantilização de São Paulo colonial (1681-1721). São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP/FAPESP, 2002, pp. 315 e 303. 104 SANTOS, Arlindyane Anjos. “Gente Nobre da Governança”: (re)invenção da nobreza no Maranhão Seiscentista (1675-1695). Monografia de Graduação. São Luís: Departamento de História, UEMA, 2009, p. 55; também p. 79, citando ata de 1691; CHAMBOULEYRON, “‘Duplicados clamores’”, p. 165. 105 CAETANO, Entre Drogas e Cachaça, p. 276; cf. também p. 208, no mesmo sentido. 106 Espírito Santo em 1655, 1656, 1661, 1668, 1671, 1679, 1687, 1688 e 1699; Rio de São Francisco em 1658; Rio de Janeiro e São Vicente em 1662; Paraíba em 1664, 1668 e 1673; Porto Seguro e Alagoas em 1670; Sergipe em 1671 e 1678; Ilhéus em 1672, 1677 e 1678; Itamaracá em 1678 e 1686; Rio Grande em 1679 e 1681; Pernambuco em 1685 e Santos em 1699. Respectivamente DH, vol. 6, p. 83, vol. 11, pp. 78-81, vol. 18, p. 444, vol. 19, p. 98, vol. 24, p. 257, vol. 29, pp. 151 e 326, vol. 33, p. 297 e vol. 58, p. 326; vol. 19, p. 429; vol. 5, p. 149-154 e 406; vol. 9, pp. 208-9 e 297 e vol. 12, pp. 278-80; vol. 12, pp. 98, 114 e 142; vol. 24, p. 232 e vol. 26, p. 463; vol. 12, p. 222, vol. 13, p. 22 e 26 e vol. 26, p. 361; vol. 26, p. 433 e vol. 28, p. 453; vol. 27, pp. 97 e 446; vol. 10, pp. 2134; vol. 58, p. 365. 107 AHU, cód. 16, f. 147. Cf. também DH, vol. 4, pp. 146-8 e vol. 5, pp. 429-33 e 447-9.

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portuguesas, seguindo a sugestão do procurador-geral da Bahia na Corte, João de Góis de Araújo (capítulo VI). Quase 30 anos depois dessa resolução, D. Pedro II, irmão e sucessor de D. Afonso, decide criar a Casa da Moeda no Brasil, em razão das representações do “Governador do Estado do Brasil, e os mais das capitanias, as Câmaras, os Cabidos e a Nobreza de suas cidades, o grande dano que padeciam com a falta de moeda” 108 (capítulo VII). Assim, dois monarcas reconheciam a existência de nobrezas na América Portuguesa, e o próprio D. Pedro II demandará que o Convento do Desterro em Salvador aceite as “filhas da nobreza do Rio de Janeiro, Pernambuco e Angolas”109. Entretanto, os caminhos para chegar no mesmo destino foram muito distintos. Em Pernambuco, os elementos centrais parecem ter sido a experiência da dominação neerlandesa e o protagonismo da elite local em sua expulsão, seguida pelo conflito contra os mascates recifenceses – para além das tensões dentro da açucarocracia em razão das disputas sobre a posse dos engenhos abandonados em razão da conquista do território pela Companhia das Índias Ocidentais. A relação com a Coroa e sua administração periférica influenciou nesse processo110, mas provavelmente menos do que na Bahia. Em ambas, porém, havia sido necessário certo grau de consolidação familiar das principais parentelas, capaz de transmitir ao grupo o ar de antiguidade essencial para qualquer nobreza que se preze. A elite fluminense aparentemente conhecera uma estabilidade familiar maior, de acordo com os dados de João Fragoso citados no capítulo precedente, o que pode ter impulsionado a transição para uma autoidentificação como nobreza, mas o principal fator para essa transformação pode ter sido o intermitente conflito com a família Sá, ao mesmo tempo potentados locais e representantes da monarquia. O principal elemento em comum parece sido a consolidação das principais famílias de cada capitania, mas as motivações políticas que incentivaram a adoção de um discurso nobiliárquico variaram grandemente de região para região – afirmativa ainda mais válida se incluirmos na análise Maranhão, Angola e São Paulo, sobre os quais pouco se sabe.

Conclusão No Brasil, como em Portugal, “as fronteiras locais da nobreza camarária dependiam, assim, das tradições de cada terra e das relações de força no terreno, de arranjos locais, em

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CCLP, vol. 10, pp. 345-6. CS, vol. IV, 53-5, carta de 16 de setembro de 1695. 110 MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda Restaurada: guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. Rio de Janeiro: 34, 2007 [1975], 3ª ed. rev., pp. 317-73 e Rubro Veio, pp. 89-124 e 155-80. 109

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suma, e não do estatuto geral delimitado pela legislação”111. Os grupos dominantes da América Portuguesa seguiram trajetória quase idêntica a das elites locais portuguesas na viragem do XVI para o XVII, as quais produziram discursos em que “nobre, adjectivo, vai-se tornando um substantivo”, efetivamente identificando-se como uma nobreza local durante seu processo de oligarquização112 – a qual, repita-se, nunca foi completa, e ainda menos na Bahia do que em outras regiões. O meio século de atraso explica-se pelo caráter recentíssimo das sociedades do Novo Mundo, mas os serviços, a riqueza e a importância política dessas novas elites mais do que compensaram seus defeitos, permitindo a construção acelerada de um estamento nobiliárquico menos de dois séculos após o início da ocupação do território. É certo que o favorecimento à expansão da baixa nobreza pela monarquia contribuiu para esse processo, pois facilitava tanto a concessão de honrarias nobilitantes quanto a legitimidade de ultrapassar o limiar nobiliárquico através de um estilo de vida nobre, com escravos, criados, armas, cavalos e grandes casas113, vivenciado por praticamente toda a açucarocracia, apesar de suas muitas dívidas. Entretanto, a monarquia, “longe de ser a demiurga das hierarquias sociais coloniais, (...) é sobretudo a via fundamental de confirmação delas”114: ao conceder os privilégios do Porto aos cidadãos baianos ou repetidamente chamá-los de nobreza, a Coroa não estava fazendo mais que legitimar um desenvolvimento social protagonizado pelas elites locais. A assimilação ao modelo das nobrezas provinciais portuguesas era inevitável, pois era esse o horizonte perseguido pelas baianas e aceito pela coroa, que só podia incorporar as elites brasílicas dentro dos modelos tradicionais vigentes no Reino. Reforçava-se, assim, a própria coesão da monarquia, com elites teoricamente análogas em todo o império – por mais que suas bases socioeconômicas e antiguidade fossem distintas. A existência de nobrezas em boa parte da América Portuguesa na segunda metade do século XVII parece-me, portanto, indiscutível. Mesmo que fossem resultado de um esforço de “autopromoção” das elites locais115, seu discurso nobiliárquico não só justificou seu domínio e ampliou seu peso na relação com outros poderes como também possibilitou que fossem

MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Os Concelhos e as Comunidades” in: MATTOSO, José (dir.) & HESPANHA, António Manuel (org.). História de Portugal, vol. IV: O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Estampa, 1998 [1993], p. 291. 112 COELHO, Maria Helena da Cruz & MAGALHÃES, Joaquim Romero. O poder concelhio das origens às cortes constituintes. Coimbra: CEFA, 2008 [1986], 2ª ed. rev., p. 57. 113 MONTEIRO, “Poder senhorial”, p. 298. 114 SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. “Os homens de negócio e a coroa na construção das hierarquias sociais: o Rio de Janeiro na primeira metade do século XVIII” in: FRAGOSO & GOUVÊA (orgs.). Na trama das redes, p. 462. 115 RAMINELLI, Nobrezas do Novo Mundo, pp. 85 e 119-20; PÉREZ LEON, Jorge. Hidalgos Indianos ante la Real Chancillería de Valladolid. El caso peruano en época de los Borbones. Tese de Doutorado. Valladolid: Universidade de Valladolid, 2012, pp. 118-25. 111

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reconhecidas como nobrezas pela sociedade e Coroa. A própria nobreza, como ordem social, é uma construção ideológica, já que está baseada na honra e no prestígio, atributos que estão no olho do observador. Era o reconhecimento público da condição de nobre que permitia a um indivíduo – ou grupo – fazer jus aos privilégios definidos pelo direito e pelo costume. O caráter ideológico da formação da nobreza não implica, assim, sua irrelevância, pois gerava efeitos reais de grande significado, especialmente o controle político da localidade por parte de uma reduzida elite socialmente distinta que, através dessa estratégia discursiva, reforçava seu poder, autoridade e legitimidade. Ao mesmo tempo, a própria coesão do grupo era reafirmada, pois “nobreza” servia como uma identidade coletiva capaz de mascarar tanto as constantes mudanças internas no grupo – em razão do afluxo de imigrantes – quanto o passado vil de muitos de seus membros. A nobreza baiana só pôde surgir como coletividade, porém, quando suas principais famílias já haviam se consolidado, pois a linhagem perfazia um elemento central de qualquer sistema nobiliárquico116. Assim, o fortalecimento das mais importantes parentelas açucarocráticas baianas em meados do século XVII (capítulo III) ofereceu a base material sobre o qual se erigiu a construção ideológica da elite baiana como uma nobreza. Processos paralelos se desenvolveram em outros impérios, e o inglês foi notavelmente similar, devido ao caráter menos formalizado e codificado da gentry em comparação à noblesse francesa e aos esforços das elites locais de se afirmarem como nobrezas provinciais117. Essas recriações nobiliárquicas no Novo Mundo são facilmente compreensíveis, pois todas as monarquias necessitavam de elites locais como suas aliadas e, principalmente, não concebiam uma sociedade que não fosse liderada por uma nobreza – mesmo que recente. Cabe enfatizar, porém, os perigos de se utilizar o termo “nobreza da terra” como um belo sinônimo para as elites brasílicas. Sem dúvida, houve nobres em todas as regiões da América Portuguesa, algo natural quando consideramos a porosidade da nobreza lusitana. Creio, porém, que a utilização do termo “nobreza” deve ser precedida de uma série de cuidados, pois seu emprego como substantivo coletivo pressupõe aspectos de coesão e unidade que não devem ser tomados como pressupostos, mas como processos que resultam de uma evolução histórica a ser traçada em cada região, atentando especialmente para os aspectos sociais e políticos que moldaram a evolução do vocabulário social. Fazer o contrário é ignorar as percepções coevas fundamentais para a construção das hierarquias sociais no mundo moderno.

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SORIA MESA, Enrique. La nobleza en la España moderna: cambio y continuidad. Madri: Marcial Pons, 2007, pp. 115-212. 117 RUGGIU, François-Joseph. “Extraction, wealth and industry: the ideas of noblesse and of gentility in the English and French Atlantics (17th-18th centuries)”. History of European Ideas, vol. 34, 2008, pp. 444-55.

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Capítulo V Guerra e Poder Local: elites e governadores em defesa da Bahia (1625-1654) O governador-geral do dito Estado [do Brasil] Diogo Botelho por espaço de seis anos pouco mais ou menos o governou com muita quietação, favorecendo muito e honrando os moradores dele vassalos de Vossa Majestade e mostrando-se sempre mui zeloso da justiça, procurando por todas as vias possíveis que os ministros a fizessem. Oficiais da Câmara de Salvador, 20 de dezembro de 16071.

Introdução Como já se disse, “a disciplina histórica é, acima de tudo, a disciplina do contexto: só é possível atribuir significado a cada fato através do conjunto de outros significados”. Ao mesmo tempo, porém, esse contexto deve ser móvel – ou seja, 1625 não pode ser igual a 1700, como espero ter demonstrado nos capítulos precedentes – e, mais do que isso, integrado às temáticas em análise, não servindo apenas como um panorama sem uma função específica na estrutura argumentativa2. Nos quatro capítulos anteriores procurou-se construir os diversos contextos em que se desenrolava a experiência das elites baianas, em análises antes temáticas que cronológicas, embora sempre se tenha procurado enfatizar as transformações ocorridas ao longo do século. Entretanto, é muito difícil apreender o funcionamento da política sem uma análise minimamente detalhada de suas idas e vindas cotidianas. Na América Portuguesa, o varejo do jogo político dava-se na interação entre governadores e câmaras – mesmo que suas posições relativas certamente tenham se alterado entre os séculos XVI e XVIII. É a partir dessa perspectiva, portanto, que os dois próximos capítulos buscarão expor os elementos constitutivos dessa relação, através da narrativa da interação entre a elite baiana e o governador-geral, da invasão neerlandesa na capitania à descoberta do ouro no centro-sul. Se isso é essencial para compreender a experiência política dos homens bons, o mesmo pode ser dito para o entendimento da administração periférica da Coroa, porque é a relação com a Câmara o elemento central que permite aos governadores-gerais exercer sua principal função: a defesa da América Portuguesa. Um importante elemento da atividade camarária, portanto, será ignorado nessa tese: a regulação econômica cotidiana. A opção se dá por falta de fontes que permitam o tratamento adequado e pela existência de estudos que já analisaram 1

BPA, 51-V-48, fls. 50-53. THOMPSON, E. P. “Anthropology and the discipline of the historical context”. Midland History, vol. I, n. 3, 1972, p. 45 (citação); MARQUESE, Rafael. “As desventuras de um conceito: capitalismo histórico e a historiografia sobre a escravidão brasileira”. Revista de História (USP), n. 169, 2013, pp. 232 e 237. 2

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seu funcionamento, no qual a administração periférica da Coroa pouco intervinha3. Cabe notar, porém, que, como se mencionou no capítulo I, até aqui a relação com os governadores-gerais era essencial, pois uma questão absolutamente central para a sobrevivência da cidade e seu Recôncavo – o fornecimento de farinha de mandioca, o principal alimento da população – fazia-se sob os auspícios dos governadores, pois entrava na jurisdição das Câmaras menores de Ilhéus4. Assim, nesse capítulo procurarei demonstrar que o ideal de governo se baseava no consenso, pressupondo relações amistosas entre governador e elites. Entretanto, a necessidade de financiar a defesa da capitania gerou tensões, pois essa carga teve de ser suportada pelos vassalos, em razão da penúria da Fazenda Real. De modo geral, as inovações tributárias responderam a demandas dos governadores-gerais, mas como se tratava de um serviço prestado ao monarca de forma teoricamente voluntária, o controle da arrecadação ficou na mão da Câmara. Em consequência, estabeleceu-se um intenso relacionamento entre os representantes do Rei e da República, por vezes conflituoso, até violento, graças ao poder potencialmente exercido através do controle da infantaria pelos governadores-gerais. Em geral, porém, a evolução foi no sentido do diálogo, pois este produzia melhores resultados, garantindo tanto a defesa da comunidade quanto o fortalecimento social e político da elite baiana. Tais desenvolvimentos são melhor apreciados ao considerarmos a segunda metade do século, tema do capítulo VI, no qual a consolidação da elite baiana como uma nobreza liderada por algumas famílias de prol abriu oportunidades e gerou problemas para os governadores, provavelmente conseguindo condicionar mais sua ação do que no momento de implantação e consolidação da força militar na capitania.

Antes dos Flamengos As fontes que tratam da relação entre as elites locais e o governador-geral são escassas para o período anterior à invasão neerlandesa de 1624, pois foi destruída quase toda a documentação guardada em Salvador. Como era de se esperar, porém, conflitos surgiram desde os primeiros anos5. Mais interessante, porém, é destacar alguns elementos que ajudam a compreender o desenvolvimento posterior da história política da capitania. Já na época da crise dinástica a Câmara possuía suficiente estatura política para participar de uma junta governativa provisória junto com o bispo e o ouvidor-geral, após a morte do

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SOUSA, Avanete Pereira. A Bahia no século XVIII: poder político local e atividades econômicas. São Paulo: Alameda, 2013, pp. 130-271. 4 PUNTONI, Pedro. “O Conchavo da Farinha: especialização do sistema econômico e o governo-geral na Bahia do século XVII” in: id. O Estado do Brasil: poder e política na Bahia colonial, 1548-1700. São Paulo: Alameda, 2013. 5 Cf., por exemplo, a carta de dois vereadores e oficiais da fazenda em 1562: ABN, vol. 27, pp. 239-41.

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governador Lourenço da Veiga em 1580. Apesar de um período de indecisão, a chegada das cartas régias em Salvador finalmente fez com que, em 1582, a Câmara de Salvador prestasse juramento ao novo monarca – destacando-se aqui seu importante papel de legitimação da soberania régia, pois representava o reconhecimento local da autoridade do novo monarca. Entretanto, a nomeação provisória do ouvidor-geral Cosme Rangel de Macedo como governador opôs o mandatário temporário a seus antigos companheiros, provavelmente insatisfeitos com a perda de influência. Em represália, Macedo interveio na eleição da Câmara para eleger oficiais entre seus aliados, o que ampliou a intensidade dos conflitos, só acalmados com a chegada do governador-geral Manuel Teles Barreto6. Prenuncia-se, assim, a conflitualidade inerente aos momentos de vacância do poder, num paralelismo (ainda que mais curto e menos destrutivo) com os períodos de regência na Europa, assim como com as disputas sobre a eleição de camaristas. Em outro momento crítico de vacância, após a invasão neerlandesa e prisão de Diogo de Mendonça Furtado, os camaristas optaram por eleger o bispo D. Marcos Teixeira como governador, provavelmente por ele já contar com suporte suficiente para coordenar a resistência – denotando a relevância política dos prelados, que viria a se fazer presente em diversos outros momentos do século7. Outro elemento estrutural da política baiana, cuja importância pode ser vislumbrada já na primeira década do século XVII, é a contribuição financeira da municipalidade para sua defesa, através da imposição de um donativo (sobre os vinhos, que se perpetuou por todo o século) para a fortificação de Salvador, cujo rendimento deveria ser supervisionado pelo governador-geral. O financiamento local fazia-se necessário pela falta de recursos régios – temática exaustivamente repetida ao longo da centúria. Assim, os vassalos baianos assumiam sobre si uma responsabilidade régia, pois cabia ao rei defender seus vassalos, realizando um importante serviço, teoricamente voluntário – concepção que teria consequências nas disputas sobre o controle da administração dos recursos e na estatura política da Câmara em sua relação com os representantes da Coroa8. Apesar da dificuldade de aceder diretamente à relação entre o governador e a elite local, uma certidão dos camaristas soteropolitanos em finais de 1607 pode nos indicar a conduta ideal de um governador. “Primeiramente que o governador-geral do dito Estado Diogo Botelho (...)

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As Gavetas da Torre do Tombo. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1963, vol. III, pp. 56-7; RUY, Affonso. História da Câmara Municipal da Cidade do Salvador. Salvador: Câmara Municipal, 1996 [1953], 2ª ed., p. 90. 7 MAGALHÃES, Pablo. Equus Rusus: a Igreja Católica e as Guerras Neerlandesas na Bahia (1624-1654). Tese de Doutorado. Salvador: PPGH/UFBA, 2010, vol. I, pp. 43-5. 8 BPA, 51-VIII-7, fls. 99v e 227v-229; 51-VIII, 18, fls. 23v, 166v-7 e 212; IAN/TT, Desembargo do Paço, Repartição da Justiça e Despacho da Mesa, Livro 8, fl. 149; “Correspondência de Diogo Botelho” RIHGB, Tomo 73, parte I, 1919, pp. 10-2. Cf. também MARQUES, Guida. L'Invention du Brésil Entre Deux Monarchies: gouvernement et pratiques politiques de l’Amérique portugaise dans l’union ibérique (1580-1640). Tese de Doutorado. Paris: EHESS, 2009, pp. 242-4.

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governou com muita quietação, favorecendo muito e honrando os moradores dele vassalos de Vossa Majestade e mostrando-se sempre mui zeloso da justiça”. Também protegeu as ordens religiosas e a Igreja em geral. “Teve sempre a porta aberta assim de dia como de noite sem porteiro para a qualquer hora ouvir as partes, retirando-se de todos os impedimentos, porquanto nunca jogava nem ia comer fora, (...) conservando em tudo a autoridade de seu cargo”. Fez a paz com os índios, lutou contra neerlandeses, fortificou Salvador e protegeu os engenhos. “Finalmente, em tudo procedeu como muito leal vassalo de Sua Majestade e mui zeloso do bem comum, e como mui animoso e valoroso capitão e governador”9. Diogo Botelho não era o santo que a Câmara quis pintar10, mas o documento nos diz o que se esperava do principal representante do rei em terras americanas: ouvir os membros das elites locais, evitar conflitos, aplicar a justiça, respeitar a Igreja, defender a população e proteger a economia açucareira. Especialmente interessante, porém, é a referência à manutenção d“a autoridade de seu cargo”, conseguida ao não jogar nem “comer fora”: o governador ideal, portanto, não deveria se misturar com os vassalos, pois daí inevitavelmente surgiriam preferências e favoritismos que fortaleceriam algumas facções em detrimento de outras, perturbando a “quietação”. Se isso era impossível para a maioria dos desembargadores11, provavelmente também o seria para os governadores, que buscariam distrações e companheiros para tornar sua estadia no Novo Mundo mais agradável – os quais poderiam lhes servir de guias da política local. O ideal expresso no documento era o “bem comum” da República12, que pode ser entendido aqui como um governo consensual que unisse elites e a administração periférica da Coroa em prol da justiça e prosperidade local. A busca por objetivo era essencial não só por questões práticas que limitavam o poder coercitivo da monarquia sobre seus vassalos13, mas também porque “entre escritores ibéricos, o consensus populi se tornou uma condição fundamental para qualquer governo legítimo”14. Pensava-se que as relações humanas deviam ser fundadas no amor, numa concepção profundamente moralizada da política, dentro da qual os vínculos afetivos assumiam importância

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BPA, 51-V-48, fls. 50-53. Para denúncias de suas falcatruas em Pernambuco, cf. RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial: Brasil, c. 1530 – c. 1630. São Paulo: Alameda, 2009, pp. 202-4. 11 SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: o Tribunal Superior da Bahia e seus desembargadores, 1609-1751 (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2011 [1973], 2ª ed., pp. 253-86. 12 Para uma apresentação (ainda que um tanto idealizada) desses conceitos em outro contexto americano, veja-se LEMPÉRIÈRE, Annick. Entre Dios y el rey: la república. La ciudad de México de los siglos XVI al XIX (trad.). México: Fondo de Cultura Económica, 2013 [2004], pp. 25-114. 13 Cf. o importante ensaio de LYNCH, John. “The institutional framework of colonial Spanish America”. Journal of Latin American Studies, vol. 24, 1992, pp. 70-4. 14 GIL PUJOL, Xavier. “Spain and Portugal” in: LLOYD, Howell; BURGESS, Glenn & HODSON, Simon (eds.). European Political Thought, 1450-1700: religion, law and philosophy. New Haven: Yale UP, 2007, p. 427. 10

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central no exercício do poder15. Tudo isso estava inserido em uma cultura política corporativa, em que o respeito às jurisdições dos diversos corpos era constituinte para o próprio funcionamento da estrutura político-administrativa, pois os diversos membros de um corpo precisavam desempenhar suas diferentes funções, sem intervir nas demais – o que, no nosso caso, interessa principalmente através da constante e relativamente bem-sucedida defesa das prerrogativas camarárias. É certo também que tal concepção legitimava as desigualdades sociais e políticas ao naturalizá-las, considerando-as mesmo necessárias para o próprio funcionamento de uma sociedade16. Se a prática muitas vezes distanciava-se da teoria, essas concepções informavam o discurso político, moldando-o, pois era preciso inserir-se nele para garantir a legitimidade do poder. Mesmo os mais rústicos membros da açucarocracia tinham contato com essas ideias, não só porque elas habitavam o mundo real e conformavam a visão de mundo daquela sociedade, mas também porque deviam ser, de alguma maneira, ensinadas no colégio jesuítico onde muitos membros da elite baiana devem ter estudado. Está dado, portanto, o objetivo central da parte final da tese: compreender o contínuo processo de construção do consenso no dia a dia da política, primeiro com a linha de frente da administração régia – os governadores-gerais17 – e, depois, com a Coroa. Aqui, procuraremos demonstrar como a Câmara de Salvador tornou-se a parceira fundamental dos governadores-gerais na defesa da Bahia e como essa situação ampliou o poder da elite local, estabelecendo-se assim uma relação que influenciou decisivamente a própria autorrepresentação do grupo.

A Idade de Ferro (1625-54): pagar a infantaria e defender o Brasil18 Se já em 1610 a intervenção do governador na cobrança dos donativos e o sustento dos 60 a 70 soldados da sua guarda e dos fortes gerava tensões19, tais conflitos alcançaram um nível

Veja-se os trabalhos de Pedro Cardim, principalmente “Amor e amizade na cultura política dos séculos XVI e XVII”. Lusitania Sacra, 2ª série, n. 11, 1999, pp. 21-57 e “‘Governo’ e ‘Política’ no Portugal de Seiscentos: o olhar do jesuíta Antônio Vieira”. Penélope, n. 28, 2003, pp. 59-82. 16 A referência é, claro, aos trabalhos seminais de António Hespanha, que delinearam com precisão o quadro doutrinal e estrutural do exercício do poder régio. Embora não possam servir como guias para a compreensão da política cotidiana, muito menos para a situação ultramarina – mesmo porque nem era essa a intenção do autor – veja-se As Vésperas do Leviathan: instituições e poder político. Portugal – séc. XVII. Coimbra: Almedina, 1994 [1989], pp. 259-307, 352-79 e 471-528 e “Por que é que foi ‘portuguesa’ a expansão portuguesa? Ou o revisionismo nos trópicos” in: SOUZA, Laura de Mello e; FURTADO, Júnia & BICALHO, Fernanda (orgs.). O governo dos povos. São Paulo: Alameda, 2009, pp. 46-55. 17 Os trabalhos de Francisco Cosentino contribuíram para a compreensão do estatuto social e dos regimentos dos governadores-gerais: Cf. Governadores-gerais do Estado do Brasil (séculos XVI-XVII): ofício, regimento, governação e trajetórias. São Paulo: Annablume, 2009. 18 LENK, Wolfgang. Guerra e Pacto Colonial: a Bahia contra o Brasil Holandês (1624-1654). São Paulo: Alameda, 2013 é um valioso guia para as questões tratadas nesse capítulo. Entretanto, Lenk enxerga o processo através da ótica do Antigo Sistema Colonial, enquanto eu o examino a partir da experiência da elite baiana. 19 IAN/TT, Corpo Cronológico, mç. 115, docs. 104 e 107. Por outro lado, o governador da época, Diogo de Menezes, defendeu vigorosamente os interesses da açucarocracia na disputa sobre a mão de obra indígena: MARQUES, L’Invention du Brésil, p. 274 e RICUPERO, A formação da elite, pp. 234-6. 15

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incomparavelmente mais alto após a retomada de Salvador dos neerlandeses em 1625, que exigiu o reforço do aparato militar da cidade, em razão da demonstrada fragilidade defensiva. No dizer do jovem Antônio Vieira, “ficou por isso esta Bahia oprimida com mil soldados de presídio e, para os sustentar, com tributo lançado sobre os moradores”20. Inaugurava-se, assim, uma nova fase na relação entre as elites locais e os governadores. Já em inícios de 1626 a Câmara peticionou ao capitão-mor D. Francisco de Moura Rolim21 “como protetores do oprimido e molestado povo com os novos tributos (...) que Vossa Senhoria informe a Sua Majestade da impossibilidade desta terra”, e ameaça não consentir com a prorrogação das imposições, “e quando o dito Senhor seja servido que o presídio assista lhes mande dar provimento a custa de sua fazenda”. Impotente, Moura afirmou que nada poderia fazer além de avisar ao monarca “como já o tinha feito, e faria de novo”22. O que o capitão-mor (que também servia como provedor da Misericórdia) pôde fazer foi concordar com a iniciativa da Câmara de fixar o preço do açúcar, de modo a favorecer os produtores e acalmar as tensões. Apesar dos pedidos da Câmara, porém, tal iniciativa poucas vezes foi repetida ao longo do século, no que parece representar uma significa diferença frente ao Rio de Janeiro23. A Câmara, assim, foi obrigada a tomar a iniciativa do sustento da infantaria “até a vinda do governador-geral ou ordem de Sua Majestade”, instaurando uma “finta geral a ser cobrada por toda esta capitania”, no valor de 600$24. A insatisfação com a medida, porém, se generalizou, e ante a decisão dos camaristas de continuar com a cobrança, o “povo, que presente estava se ergueram todos a grandes vozes, dizendo que não consentiam em tal declaração, nem que o tributo se cobrasse mais de hoje em diante”. A longa lista de assinaturas é testemunha da heterogeneidade do “povo” (como discutimos no capítulo anterior), ao incluir diversos membros da elite que já apareceram na tese, como Paulo de Barros, cristãos-novos, como Diogo de Leão, e desconhecidos, como Antônio Raimundo25. A confusão, porém, é o que mais nos interessa, pois é um indício da importância que

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VIEIRA, Antônio. Cartas. Organização e notas de João Lúcio de Azevedo. Rio de Janeiro: Globo, 2008, vol. I, p. 64. Cf. também as reclamações no mesmo sentido em AHU, Bahia, Castro Almeida, docs. 2-5 e AHU, Bahia, LF, cx. 3, docs. 423-4. 21 O governador-geral Matias de Albuquerque estava mais preocupado com a capitania de sua família. Sobre seu governo, veja-se DUTRA, Francis. Matias de Albuquerque (trad.). Separata de Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, vol. 48, 1976, pp. 65-79. 22 AC, vol. I, pp. 25-6. Os camaristas do ano anterior e o provedor-mor (ele mesmo um dos homens da governança) já haviam convencido Francisco de Moura Rolim a tomar o dinheiro dos direitos de escravos de Angola para o sustento da infantaria: DH, vol. 15, pp. 3-5. 23 AC, vol. I, pp. 31-2; AHU, Bahia, LF, cx. 3, docs. 423-4. FRAGOSO, João. “A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da terra do Rio de Janeiro, século XVII. Notas de pesquisa”. Tempo, n. 15, 2003, pp. 11-35. A partir de 1700 senhores de engenho e homens de negócio se reuniam anualmente para estabelecer os preços do açúcar, mas isso é tema para outro estudo. 24 AC, vol. I, pp. 48-9. 25 AC, vol. I, pp. 57-60 e, dois anos depois, pp. 137-8.

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assumiria o governador-geral nas negociações fiscais das décadas seguintes, já que sua ausência e a reduzida autoridade do capitão-mor tornavam difícil a conciliação dos interesses necessária para a cobrança dos grandes recursos que o sustento da infantaria exigia. A vítima imediata das necessidades fiscais foi o Tribunal da Relação, dissolvido em 1626 – o que, ao menos na visão do anônimo autor das “Razões que deram os moradores da Bahia para se não extinguir a relação”, teria uma consequência nefasta: “sendo o dito Estado governado por um governador e um ouvidor-geral, eles são os reis, e não somente eles mas os bispos, donatários e poderosos, procedendo em tudo com poder absoluto e Sua Majestade fica só rei no nome”26. Considerando-se como se desenrolou o longo governo de Diogo Luiz de Oliveira, é possível que o denunciante tivesse alguma razão. O mais interessante, porém, é que o alvará de extinção do Tribunal não faz qualquer menção à Câmara, pressupondo que seria o tesouro real o responsável pelo sustento da infantaria27 – ledo engano, como veremos. Pouco depois de chegar e reformar a tropa, diminuindo o número de oficiais – sempre muito mais numerosos do que o necessário28 – para baixar as despesas de financiamento do exército, o novo governador-geral consegue, através da “grande instância” que faz aos camaristas, convencêlos a financiar a construção de um quartel, assumindo mais um encargo29. Além disso, também nomeou o tesoureiro da imposição dos vinhos, embora esse tributo devesse ser controlado pela Câmara – contra o que a municipalidade recorreu à Casa de Suplicação, saindo vitoriosa30. Em 3 de novembro de 1628, Diogo Luiz de Oliveira chamou o juiz Antônio Castanheira e o procurador Domingos da Fonseca Pinto à sua casa, exigindo que se impedisse a venda de vinho na cidade, para que tivesse saída um vinho da Madeira, cujo procedido seria usado para pagar o soldo atrasado dos soldados31 – dois homens que posteriormente receberiam benesses do governador. Castanheira pertencia à família Feio, era lavrador de canas e foi vereador em 1610 e juiz ordinário em 1619 e 1628. Logo após seu último mandato foi provido pelo governador em importantes cargos fazendários: provedor-mor da fazenda em 20 de janeiro de 1629 e contador-geral em 29 de maio de 1629. Já Fonseca Pinto era um forasteiro em acelerado processo de ascensão política, provavelmente graças à influência do governador: após servir em 1628 como procurador, conseguiu passar a vereador já no ano seguinte. Em 1633 foi provido

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SCHWARTZ, Burocracia e Sociedade, pp. 379-84 (citação à p. 380); cf. também pp. 181-94. DH, vol. 15, pp. 66-7. 28 LENK, Guerra e pacto, pp. 176-8. 29 AC, vol. I, pp. 76-7 e 79-80; DH, vol. 15, pp. 207-14. 30 AC, vol. I, p. 103. 31 AC, vol. I, pp. 111-2. 27

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como escrivão dos contos, em 1634 novamente serviu como vereador e logo no início de seu mandato foi agraciado com uma sesmaria32. Ao prover serventias em homens da governança, o governador-geral lhes cedia poder, prestígio e possibilidades de ganho financeiro, esperando receber em troca apoio político dentro do Senado – no que provavelmente foi bem sucedido, como se depreende de atas como essa: “do Senhor governador foi dada uma portaria em que lhes ordena que façam as portas da cidade, por cumprir assim ao serviço de Sua Majestade, e ao bem desta cidade, e logo pelos ditos oficiais da Câmara, em virtude da dita portaria, mandaram chamar ao povo”, decidindo financiar imediatamente a obra através da venda de licenças para a comercialização de cachaça (ignorandose as tentativas anteriores de proibição)33. No mesmo sentido, em finais de 1630 o governador emitiu uma portaria “em que lhes mandava dar alojamento aos soldados da companhia do capitão Francisco de Alemão, e com a brevidade nela declarada, e que por serviço de Sua Majestade e obedecerem ao governador e seu mandado” os camaristas se apressaram a fazê-lo34. Diogo Luiz de Oliveira também não se furtava a reunir “pessoas de letras e experiência” para, teoricamente, lhe aconselharem, como quando juntou os eclesiásticos e a Câmara e pediu dinheiro à municipalidade para que fosse reprimido o gentio bárbaro que atacara os moradores em Paraguaçu. Seu tom é claramente impositivo, e a própria reunião provavelmente se devia mais à intenção de respeitar as leis indigenistas que exigiam a declaração por múltiplas autoridades de uma guerra justa do que verdadeiramente produzir o consenso35. Assim, o governador-geral novamente ordena que a Câmara reúna a quantia necessária para consertar os portões da cidade quando chega a notícia de que Pernambuco havia sido invadido pelos neerlandeses36. As necessidades financeiras se intensificaram em 1631, com a chegada do novo terço e a subida do efetivo na cidade para 1800 homens37. Em consequência, o governador-geral escreveu para a Câmara em 15 de maio, listando os rendimentos régios e declarando-os insuficientes. 32

DH, vol. 15, 244-6 e 286-9 e vol. 16, pp. 121-3 e 163-6. Outros casos relevantes são: o jovem Antônio Ferreira de Souza (filho do fundador da família Ferreira, Eusébio – senhor de engenho e vereador em 1626 e juiz ordinário em 1635 – nomeado escrivão da receita e despesa do tesoureiro-geral, seis de fevereiro de 1627, e no ano seguinte meirinho do mar); Lourenço Cavalcante de Albuquerque (senhor de engenho e juiz ordinário em 1626, mantido como alcaide-mor em quatro de agosto de 1627); Sebastião Parvi de Brito (letrado casado com a família quinhentista Argolo, nomeado provedor-mor dos defuntos em 1º de agosto de 1628, depois ouvidor-geral); Brás da Silva Menezes (família Costa Dória, vereador em 1614, 1619, 1628 e 1631, nomeado capitão de infantaria em 1º de abril de 1634) e Domingos Barbosa de Araújo (segunda geração da família Barbosa, senhor de engenho, vereador em 1626, juiz ordinário em 1625, 1631, 1638 e 1647, nomeado capitão-mor do Espírito Santo em 17 de fevereiro de 1635). Respectivamente, DH, vol. 15, pp. 102-4; 151-2 (repetindo provisão de D. Francisco de Moura – AHMS, PR, vol. I, fls. 6v-7); 220-4 e 241-4; DH, vol. 16, pp. 181-3 e 216-9. 33 AC, vol. I, pp. 153-5. 34 AC, vol. I, p. 172. 35 AHMS, vol. I, fls. 77-79. 36 AHMS, vol. I, fls. 79-82v e DH, vol. 15, pp. 383-6. 37 LENK, Guerra e Pacto, p. 149.

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Claramente descontente com a resistência dos camaristas e as dificuldades que encontrara “nesta idade de ferro em que” achara o Estado do Brasil, afirma que tudo o que fazia era para a “segurança de sua terra”, e que agia de modo a “nunca se poder dizer que esta terra recebeu opressão por causa tocante a minha pessoa, ou por utilidade ou paixão minha, e se os moradores a recebem é só com os encargos do serviço real”. Além dessa descompostura, Diogo Luiz de Oliveira ainda ameaça a cidade case falte o pagamento da tropa, em passagem que merece ser citada, apesar de sua extensão: como a necessidade não é sujeita à lei, e os soldados gente por natureza livre, serão certas as insolências e os efeitos delas, a que não poderei dar remédio, nem castigo, porque o foro na disciplina militar não me dá faculdade para isso quando não sustentar a gente, antes é causa comumente sabida que nos casos de grande aperto em que faltam as pagas, os generais não só permitem, mas dão licença que os soldados façam algumas saídas, e se eles se excedem nelas, não se procede castigo. (...) Poderão vossas mercês também dizer-lhes [aos senhores de mais qualidade desta República] que se por meios ordinários e sua vez não vierem fazer o que se entender que devem, os obrigarei a fazê-lo pelos meios que parecer, porque estando Sua Majestade em necessidade tão extrema, e sendo causa tão justa, fica com grande faculdade para usar de suas pessoas e fazendas, e eu entenderei que assim o devo executar, porque mandando-me Sua Majestade defender esta praça, me fica mandando todos os meios que são necessários para este fim38.

Em resposta, “homens nobres e mais povo” protestaram que “era bem notória a pontualidade, liberalidade e prontidão” com que atendiam às necessidades do serviço real, para “socorrer uma coisa tão importante, de que dependia a defesa de sua própria terra, pessoas e fazendas, e ainda a total conservação de todo esse Estado, de que esta cidade era cabeça”, apesar da miséria e perdas vividas por todos na capitania. Aceitaram, assim, impor uma nova imposição sobre os vinhos, mas apenas por seis meses – que acabou, porém, sendo repetidamente renovada39. Diogo Luiz de Oliveira usou as serventias para recompensar os bons serviços prestados na Câmara, mas essa estratégia não foi suficiente, talvez por ser impossível contentar a todos. Suas ameaças tinham, portanto, um papel complementar, garantindo-lhe a obediência que a graça não conseguira obter. Além disso, alguns ofícios são concedidos anos depois esses homens servirem na Câmara, o que sugere que as alianças podem ter se desenvolvido posteriormente. Do contrário, como explicar o fato de o Senado de 1631, no qual serviram dois homens que depois seriam agraciados com postos (Brás da Silva Menezes e Domingos Barbosa de Araújo), ter sido o mais intimidado por Oliveira nos seus oito anos no Brasil? A Coroa poderia conceder mercês mais importantes ao Senado, mas não considerou necessário honrar seus vassalos baianos, negando-lhes os privilégios de infanções em 1632,

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AC, vol. I, pp. 190-3. A ameaça é repetida para obter a renovação da imposição (pp. 204-5). A analogia de Charles Tilly entre o poder “estatal” e o crime organizado é particularmente apropriada aqui. “Os governantes se assemelhavam a vendedores de proteção: em troca de um valor, ofereciam proteção contra os danos que eles próprios de outro modo infligiriam, ou pelo menos permitiriam que fossem infligidos” Coerção, capital e Estados europeus, 990-1992 (trad.). São Paulo: EDUSP, 1996 [1993], p. 133. 39 AC, vol. I, pp. 187-90. Cf. pp. 202-4, 219-21, 240-1, 267-8 e LENK, Guerra e Pacto, pp. 347 e 402.

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embora os houvesse concedido pouco antes a Cochim (uma das mais importantes do Estado da Índia, mas não sua capital). O único privilégio que receberam no período foi de que os escravos do eito de senhor de engenho e lavradores de cana não pudessem ser tomados pelos credores, ressuscitando medida tomada vinte anos antes40. É nesse contexto que Lourenço de Brito Correia, um dos mais destacados membros da elite baiana (capítulo III), enviou ao monarca a mais feroz crítica a um governador-geral em todo o século. Nela, o fidalgo acusava Oliveira de “violentar” as eleições da Câmara, “com ameaças que de seu gosto se não afastassem um ponto”, e mesmo assim tratava os camaristas “com muitas descortesias e palavras descompostas”. Intervinha no pequeno comércio para extrair lucros, desrespeitava os ministros da justiça e fazenda, forçava “com violência aos homens a irem jogar a sua casa, desonrando-os quando não vão e mandando-os chamar por sargentos e ministros de guerra (...) com que este povo está oprimido e tiranizado, e muitos homens ricos perdidos e alcançados não sendo este ato de jogar livre”; provinha “os ofícios da República a seus criados contra uma provisão de Sua Majestade a qual se apresentou à Câmara dela, e o que lá levou tratou injuriosamente”; vendia outros ofícios; forçava os mestres dos navios a carregarem suas mercadorias sem nada pagar; embolsava as fintas cobradas pela Câmara; recebia caixas de açúcar para escusar os moradores de lhe darem escravos para os trabalhos de fortificação, “o que é um poço de ouro”; gastou recursos em “casas de prazer” em vez de fortes, os quais construía em madeira, dizendo que “durarão elas enquanto eu aqui estiver que será um ano, pois assim basta, e quem vier faça outro tanto” (sinal do imediatismo que podia guiar as ações dos governadores, que esperavam nunca mais voltar ao Brasil). Pior de tudo, “agrava, prende e avexa” aos “homens de bem, fidalgos, capitães e homens nobres da terra”, e “tiranicamente governa dizendo de público com os de quem não gosta que os há de ter e tratar como inimigos” e “que ele é Rei e Deus do Brasil, [e] como tal [ia] se fazer respeitar e venerar”41. Se algumas acusações são absolutamente inverossímeis (como ter organizado banquetes para comemorar a queda de Pernambuco frente aos invasores do Norte), a truculência de Diogo Luiz de Oliveira é atestada por seus entreveros com os provedores da fazenda (quando não conseguia substituí-los por suas criaturas)42. Como se percebe no trecho em que é acusado de utilizar “sargentos e ministros de guerra” para fazer cumprir suas ordens, era o controle da tropa

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IAN/TT, Desembargo do Paço, Repartição da Justiça e Despacho da Mesa, Livro 12, fl. 243 e Livro 14, fl. 262. BPA, 49-X-10, fls. 320-2; cf. também 51-X-1, fl. 29v e 51-X-2, fls. 60v e 212v-213. 42 LENK, Guerra e Pacto, pp. 378-82 e MUKERJEE, Anil. Financing an Empire in the South Atlantic: The Fiscal Administration of Colonial Brazil, 1609-1704. Tese de Doutorado. Santa Bárbara: University of Califórnia, 2009, pp. 150-87. Cf. também as reclamações do bispo em AHU, Bahia, LF, cx. 5, doc. 554 e MARQUES, L’Invention du Brésil, pp. 250 e 254. 41

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paga que permitia que “o governador agisse com tão poucas restrições”, algo facilitado pela aliança com o citado D. Vasco Mascarenhas (o futuro Conde de Óbidos), jovem fidalgo nomeado como mestre de campo a partir de uma solicitação do próprio Diogo Luiz de Oliveira, meses antes de arribar em Salvador43. O caráter recente da presença da infantaria limitava sua integração na sociedade envolvente44, facilitando seu uso pelo governador para instaurar um governo “tirânico” – ao menos na visão dos homens bons que não se beneficiavam do favor de Oliveira. Vejamos mais um exemplo: os oficiais da Câmara cumpram o despacho que tenho dado nesta petição atrás, e não me façam tantas réplicas escusadas, que o que eu tenho ordenado uma vez não é necessário que me cansem com tantos despachos e busquem que lhe declare o que tenho dado neste particular, e executemno logo como tenho ordenado45.

A humilde resposta foi: “os oficiais da Câmara do ano passado tomaram essas casas [para alojar o alferes de D. Vasco Mascarenhas], e nós não devemos intrometer nem inovar no que eles fizeram. Vossa Senhoria mandará neste particular o que lhe parecer”46. A imposição era tão clara que em uma das periódicas renovações da imposição sobre o vinho o governador repreende os camaristas por haverem chamado a contribuição de “tributo, a que vossas mercês põem este nome, sendo subsídio que o povo voluntariamente oferece, e parece que antes de vossas mercês o levantarem, mo deviam fazer saber”47. Ante essa repreensão, a imposição foi renovada no mesmo dia (sem, porém, ser nomeada de subsídio, para que os camaristas não dessem o braço a torcer)48. No momento crítico de instituição de uma força militar em Salvador, necessária para a defesa da capital da América Portuguesa – cuja queda implicaria uma extensão significativa do domínio neerlandês – o governador-geral dependia das contribuições locais para o sustento da infantaria. Entretanto, Diogo Luiz de Oliveira foi capaz de impô-las através de um misto de cooptação e ameaça, lançando mão tanto dos ofícios à sua disposição quanto de seu amplo contingente de soldados recém-chegados comandados por um aliado, D. Vasco Mascarenhas. Oliveira deve ter sido escolhido exatamente por esse perfil mais autoritário, assim como o Marquês de Gelves, poucos anos antes, na Nova Espanha. Diferentemente de seu homólogo mexicano, porém, o governador-geral não foi derrubado, e a comparação nos permite ver que o fim da Relação

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LENK, Guerra e Pacto, p. 380 e SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Do Brasil filipino ao Brasil de 1640. São Paulo: Nacional, 1968, p. 203. D. Vasco Mascarenhas esteve mesmo presente na cerimônia de “pleito e homenagem” de Diogo Luiz de Oliveira, em Madri: DH, vol. 15, p. 82. 44 Veja-se LENK, Guerra e Pacto, pp. 206-8. 45 AC, vol. I, p. 223. Para outra portaria, um pouco menos brusca, veja-se AHMS, PR, vol. I, fls. 153v-4. 46 AC, vol. I, p. 224. 47 AC, vol. I, p. 255. 48 AC, vol. I, pp. 253-4.

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talvez tenha contribuído para a estabilidade de seu governo, já que Oliveira não precisou lidar com a oposição dos letrados, como ocorrera com o vice-rei novohispano49. O fato de as principais famílias baianas ainda estarem se consolidando deve ter dificultado a oposição às medidas do governador: afinal, praticamente nenhum dos camaristas possuía grandes parentelas para lhes dar suporte político, visível no fato de que apenas três dos 16 juízes ordinários (para mencionar apenas a posição mais importante do Senado) entre 1627-35 serem naturais da capitania (todos filhos de imigrantes), e mesmo os membros mais destacados estavam ainda lançando as bases do poder de suas linhagens, como o madeirense Diogo de Aragão Pereira. Não é à toa que o mais vociferante dos oponentes do governador era justamente Lourenço de Brito Correia, um dos mais poderosos homens da capitania, que podia remontar sua linhagem ao Caramuru, pois provavelmente sentia-se mais protegido contra represálias (capítulo III). Mesmo assim, para que a contribuição fosse legítima, precisava-se produzir algum grau de consenso, o que tinha o importante efeito prático de deixar a administração desses efeitos sobre controle das elites locais (ainda que o governador interviesse de variadas formas, por exemplo através da nomeação de um tesoureiro). O governador não tinha poderes para ampliar a tributação régia, e provavelmente as elites locais teriam resistido fortemente a uma tentativa da Coroa nesse sentido, de modo que o controle local da arrecadação era a solução mais factível nesse contexto, estabelecendo um precedente que teve uma longa vida na política baiana. Além disso, ao escolherem taxar o vinho, produto de consumo amplo, garantia-se a distribuição do encargo entre toda a população livre – e, como todo imposto sobre o consumo, a carga tendia a cair desproporcionalmente sobre os setores intermediários e pobres da população, poupando a açucarocracia50. Por último, como se registrou numa resolução régia de 1632 e a elite local bem sabia, “o de que se trata é sustentar aquele Estado e conservar e defender suas fazendas”: a infantaria tinha a função fundamental de defender as propriedades e, em última medida, e o poder e estatuto dos homens da governança, o que deve tê-los incentivado a contribuir51. O próximo governador, Pedro da Silva (1635-9), manteve relações mais amistosas com a Câmara, agindo de maneira menos autoritária que seu antecessor, recebendo então a alcunha d“o

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Cf. ISRAEL, Jonathan. Razas, clases sociales y vida política en el México colonial, 1610-1670 (trad.). Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1981 [1975], pp. 139-63, assim como as pertinentes críticas a suas conclusões em CAÑEQUE, Alejandro. The King’s living image: the culture and politics of viceregal power in Colonial Mexico. Nova York: Routledge, 2004, pp. 46-7, 56-8, 70, 84-5. 50 Também em Portugal as “oligarquias urbanas” preferiam a taxação indireta por seu caráter regressivo e, quando fintas eram cobradas, tendiam a eximir-se ao fisco: HESPANHA, António. “Revoltas e revoluções: a resistência das elites provinciais”. Análise Social, vol. 28, n. 120, 1993, p. 90. 51 BPA, 51-X-2, fls. 24-24v. No mesmo sentido um ano antes, 51-X-1, fls. 95v-96.

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mole”52. Como o aparato militar lhe antecedia e seus comandantes não eram necessariamente aliados, todos os governadores posteriores exerceram menos controle sobre os soldados do que Diogo Luiz de Oliveira. Tal desvantagem, porém, podia ser ao menos parcialmente compensada pelo estabelecimento de outros laços: Silva, por exemplo, ajudou a fundar a Ordem Terceira do Carmo em 1636, servindo como seu primeiro prior, movimento que certamente contribuiu para suas boas relações com os muitos membros da elite baiana que vieram a fazer parte dessa irmandade53. Já ao chegar, na mesma temática que havia ocasionado a dura resolução de Oliveira (o alojamento de um oficial), Silva escreveu: “parecendo-lhes que há inconvenientes em o alojamento ser sempre um lho poderão permutar pelo tempo que lhes parecer de um ano ou dois, com a menor opressão que se puder dar aos moradores”54. Também não fazia ameaças para convencer os camaristas a renovar o subsídio, enfatizando seu caráter voluntário e sua importância para a monarquia. Em verdade, a renovação havia se tornado uma formalidade, como pode-se perceber pelo fato de que as portarias do governador se repetiam palavra por palavra a cada semestre55. Mesmo quando se pediam recursos excepcionais, o tom era muito menos agressivo, e o governador apoiava a maioria das iniciativas da municipalidade56. Para o bom funcionamento da relação não deve ter atrapalhado a ordem do governador para “se não fazerem penhoras nas fazendas por dívidas pequenas”, protegendo os senhores de engenho “por serem os dízimos do açúcar dos ditos engenhos o maior nervo da guerra e da fazenda” do Estado do Brasil – espécie de renovação da mercê concedida poucos anos antes pela Coroa57 (capítulo VII). Foi possível, assim, passar sem grandes conflitos entre a elite local e o governador mesmo em um momento de crise, como o cerco imposto pelo Conde de Nassau a Salvador por 40 dias em 1638, em que a municipalidade animou aos soldados com uma paga geral dos atrasados de 16 mil cruzados aos homens do conde de Bagnuolo. Mesmo assim, a elite local não foi incluída nos conselhos convocados pelo governador, que se resumiam aos oficiais régios de guerra e fazenda, e sua participação na defesa foi importante principalmente para pressionar os generais a defender a cidade, em um momento em que cerca de 3.400 soldados estavam estacionados nos arredores de Salvador. O mais ativo foi o ubíquo Lourenço de Brito Correia, que participava dos conselhos do

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CALADO, Manuel. O valeroso Lucideno. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1987 [1648], p. 88. Pedro da Silva também manteve boas relações com o provedor-mor da fazenda Pedro Cadena (MUKERJEE, Financing na Empire, pp. 196-222), mas seu cognome provavelmente lhe foi atribuído por sua subserviência ao Conde de Bagnuolo (LENK, Guerra e pacto, p. 180). 53 RUSSELL-WOOD, A. J. R. “Prestige, power, and piety in colonial Brazil: the Third Orders of Salvador”. HAHR, vol. 69, n. 1, 1989, p. 64. 54 AC, vol. I, p. 298. 55 AC, vol. I, pp.306-7, 332-3, 342-5 e 369-70. 56 AC, vol. I, pp. 370-2 e DH, vol. 17, p. 101. 57 DH, vol. 16, pp. 388-91.

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governador, mesmo sem exercer cargo algum, e contribuiu com significativas quantias para a defesa da cidade – assim como seu cunhado, João Álvares da Fonseca, vereador mais velho nesse ano. Ensaiou-se, porém, um conflito entre a municipalidade e o provedor da fazenda Pedro Cadena, pois este procurava arrendar a imposição dos vinhos, diminuindo o controle dos camaristas sobre ela para, em suas palavras, evitar a “má administração” e os “caminhos por onde eles tiravam seus aproveitamentos”58. Acusações similares seriam ventiladas eventualmente nas décadas seguintes, e sugerem um motivo menos nobre do que o serviço ao rei e a Deus para que os camaristas aceitassem suportar o pesado fardo do sustento da infantaria: o enriquecimento pessoal, possível através do manejo dos milhares de cruzados das imposições. Apropriando-se de uma parte de tributo sobre o consumo, portanto inerentemente regressivo e que pesava mais sobre os pobres do que sobre os ricos, os homens da governança recompensavam-se parcialmente por seus sacrifícios na defesa de sua terra sem deixar de exercer seu dever de servir ao monarca59. A chegada do novo governador-geral Conde da Torre com sua armada em fevereiro de 1639 implicou um aumento ainda maior da necessidade de recursos, em razão da grande armada que trouxe consigo, com o objetivo – fracassado – de restaurar Pernambuco. Em razão da fragilidade da Fazenda Real e de não contar com firmes aliados entre seus próprios subordinados, reforçava-se a necessidade de diálogo com os vassalos baianos. Consequentemente, o Conde atuou intensamente junto ao Senado, chegando a ir repetidas vezes às “Casas da Câmara”, algo que seus antecessores e sucessores evitavam, preferindo chamar os camaristas para sua presença. O Conde da Torre

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AHU, Bahia, LF, cx. 7, doc. 805. Veja-se também a ampla documentação publicada em VILHASANTI, Pedro Cadena de. Relação diária do cerco da Baía de 1638. Notas de Manuel Múrias. Lisboa: Ática, 1941, especialmente pp. 20-4, 145-6 e 207, e a excelente discussão e importantes narrativas coevas publicadas por Pablo Magalhães em “Parte II” in: GALINDO, Marcos (org.). Episódios Baianos: documentos para a história do período holandês na Bahia. Recife: Néctar, 2010, pp. 229-91 e “O ataque de Nassau ao Recôncavo Baiano em 1638: três documentos conservados na Biblioteca Municipal de Évora”. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, vol. 66, 2014, pp. 207-29. 59 A “manipulação em seu favor” da arrecadação municipal era, claro, prática recorrente na Europa: cf., por exemplo, CHARTIER, Roger. “Conflits et tensions” in: LADURIE, Emmanuel Le Roy (dir.). La ville dans les temps modernes: de la Renaissance aux Révolutions (tome 3 da Histoire de la France Urbaine). Paris: Seuil, 1998 [1980], p. 158 (citação) e GANTELET, Martial. L’absolutisme au miroir de la guerre: le roi et Metz (1552-1661). Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2012, pp. 232-47. VALLADARES, Rafael. A Independência de Portugal: Guerra e Restauração, 1640-1680 (trad.). Lisboa: Esfera dos Livros, 2006 [1998], p. 298 nota que “era de conhecimento geral que as oligarquias urbanas administravam de forma fraudulenta os impostos votados pelas cortes”. Bartolomé Yun enfatiza o carácter mutualmente benéfico da tributação urbana para oligarquias e coroa, assim como os altos níveis de fraude: “Mal avenidos, pero juntos. Corona y oligarquias urbanas en Castilla en el siglo XVI” in: BENASSAR, Bartolomé et al. Vivir el siglo de oro: poder, cultura e historia en la época moderna. Salamanca: Ed. Universidad de Salamanca, 2003, p. 74. Tais fenômenos eram, em verdade, uma tendência geral na Europa, como se vê em coletânea que enfatiza a importância da taxação municipal controlada pelas elites locais para as monarquias e Repúblicas da época moderna: ANDRÉS UCENDO, José Ignacio & LIMBERGER, Michael (eds.). Taxation and debt in the Early Modern city. Londres: Pickering & Chatto, 2012 (o artigo de BOGNETTI, Giuseppe & DE LUCCA, Giuseppe. “From taxation to indebtedness: the urban fiscal system of Milan during the Austrias domination (1535-1706)”, pp. 29-48, é especialmente interessante).

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interferiu inclusive em temáticas cotidianas, como a produção de alimentos, essencial para garantir o sustento dos 4408 soldados temporariamente assentados nos arredores de Salvador60. Da mesma maneira, a fim de obter um excepcional donativo de 60.000 cruzados para o conserto da armada e pagamento dos soldados, o Conde da Torre comunicou a importância dessa contribuição para “o bem da segurança dessa capitania, de que depende muito o Estado” e a impossibilidade de a Fazenda Real suportar esse encargo. A longa e eloquente “proposta” do Conde da Torre procurava sensibilizar os vassalos baianos, lembrando que de sua contribuição dependia a preservação de suas vidas, bens (dedicando um parágrafo aos efeitos deletérios da guerra na lavoura açucareira) e fé, em razão da proximidade da ameaça neerlandesa. Veja-se a diferença em relação às exigências e ameaças de Diogo Luiz de Oliveira: “conheço que não hão mister rogados, que têm dado a Sua Majestade com grande liberalidade sua fazenda. Não falo com vossas mercês como superior, não meço suas forças, aconselho como amigo”. O Conde da Torre conclui acenando com recompensas: “eu saberei representar a Sua Majestade para que lhes faça as honras e mercês que de sua grandeza se espera”. Os camaristas, “pessoas que costumam andar na governança’ e o “povo” aceitaram, mas impuseram uma série de condições – principalmente, como sempre, que a contribuição estaria sob controle da elite local: Diogo de Aragão Pereira, Antônio da Silva Pimentel, Francisco Fernandes Dosim, Diogo Lopes de Ulhoa e Mateus Lopes Franco61 (capítulo III). Em carta ao Doutor Francisco Vaz de Gouveia, o Conde da Torre dá conta deste sucesso e explica sua estratégia: “eu procuro merecer-lho com o bom tratamento e com a liberdade em que os deixo sem os carregar nem molestar em coisa que me toque e nas que são do serviço real havendo-me com toda a suavidade”, enquanto em missiva de próprio punho para o Conde Duque de Olivares, valido de Felipe IV, menciona a ajuda de Diogo Lopes de Ulhoa para obter o donativo62. No momento de se embarcar para Pernambuco, o Conde instituiu como seus procuradores os responsáveis pelo donativo (com exceção do cristão-novo Mateus Lopes Franco) e pediu à Câmara que penhorasse alguns objetos de prata, ouro e estanho de seu serviço para levantar 2.000 cruzados e poder pagar os soldos de um terço63, outros sinais do rápido estabelecimento de uma boa relação com a elite baiana. Diogo Lopes de Ulhoa serviu mesmo como secretário do governador (por já haver exercido a função com Diogo Luiz de Oliveira), e por isso

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AC, vol. I, pp. 390 e 399-401; CCT, vol. II, pp. 171, 235-6, 239-40, vol. III, p. 25 e vol. IV, p. 377; LENK, Guerra e Pacto, p. 149. 61 CCT, vol. II, pp. 296- 309; AC, vol. I, pp. 405-18, 434-5 e 517; MARQUES, L’Invention du Brésil, pp. 441-2. 62 CCT, vol. I, p. 383. Cf. também a carta a seu tio, Duque de Villahermosa, presidente do Conselho de Portugal: “alcancei do povo 60.000 cruzados todos os anos para as querenas, e isto sem no constranger senão de sua livre vontade, e para esta empresa me deu três barcaças e me fretou mais oito ou dez embarcações para botar gente em terra, o que tudo lhe custou de sete para dez mil cruzados” (p. 426). 63 BPA, 51-X-7, fls. 83 e 279.

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lhe foram prometidas amplas mercês, indicando sua importância como ponte entre os governadores e as elites locais, mesmo que jamais tenha sido aceito entre as principais famílias da Bahia64. Apesar da política de boa vizinhança seguida pelo Conde, a elite local foi quase completamente excluída das muitas juntas convocadas por ele, pois essas foram compostas apenas pelos principais oficiais militares, a quem se somava o bispo do Brasil e, eventualmente, o provedormor da fazenda Sebastião Parvi de Brito. Esse letrado eborense casou em Salvador e fundou uma família de razoável importância, de modo que sua nomeação pelo Conde da Torre pode ter sido parte da estratégia de aproximação com as elites locais65. Mesmo o onipresente Lourenço de Brito Correia aparece apenas a partir de finais de dezembro de 1639 “por pessoa prática e experimentada”, quando a armada já estava a caminho de Pernambuco66 – o que talvez explique sua raivosa denúncia da incompetência do inexperiente Conde (enviada antes da sua entrada no círculo de conselheiros do governador), chamando-o em carta ao monarca de “fatal e infausto Herodes do Brasil e deste Reino e Monarquia”67. Talvez por isso o Conde da Torre tenha desabafado a seu tio e confidente que “a terra é de ruim gente” e, em termos ainda mais fortes, a Olivares: “os filhos do Brasil e os que neste clima se criaram, posto que vieram de outras partes, pode mais a criação com eles que o natural, e assim uns e outros são gente má e perversa”68. Como D. Fernando Mascarenhas vituperava a todos em suas cartas, porém, tal declaração pode ser lida menos como preconceito do que como um descontentamento generalizado em sua breve estadia americana. Com a partida da armada, o antigo aliado de Diogo Luiz de Oliveira, D. Vasco Mascarenhas, então já Conde de Óbidos, ficou responsável pelo governo da Bahia por um breve tempo, mesmo tendo sido criticado pelo Conde da Torre por “não se ocupa[r] mais que com seus perfumes e águas cheirosas”69. Nada sabemos de seu breve governo (exceto que teria voltado ao Reino escondido em razão de dívidas por açúcares não pagos e dinheiro tomado do cofre dos órfãos70), mas é interessante registrar que a Câmara lhe deu posse e o Conde da Torre achou necessário registrar nos livros do Senado a carta régia que nomeava seu substituto e as instruções que lhe deixava, garantindo a legitimidade mas tentando, possivelmente, limitar o

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CCT, vol. I, pp. 250-4. O Conde da Torre mantinha relações amistosas com Diogo Luiz de Oliveira (pp. 508-9). CCT, vol. I, pp. 236-350; DH, vol. 17, p. 249; KRAUSE, Thiago. Em Busca da Honra: a remuneração dos serviços da guerra holandesa e os hábitos das ordens militares (Bahia e Pernambuco, 1641-1683). São Paulo: Annablume, 2012, pp. 155-6, 217 e 238 e LENK, Guerra e pacto, pp. 387-8. 66 CCT, vol. I, pp. 321-2, 338, 345, 347 e 565-6. 67 AHU, cód. 30, fls. 39v-40. 68 CCT, vol. I, pp. 451 e 459; cf. também p. 471, em que atribui suas desgraças aos “pecados do Brasil”. 69 CCT, vol. I, p. 429; cf. também pp. 427 e 450-1. Para a melhor análise da atuação do Conde da Torre na América, cf. MARQUES, L’Invention du Brésil, pp. 411-64. 70 LENK, Guerra e pacto, p. 196. 65

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raio de ação de seu desafeto ao ordenar, por exemplo, que se respeitasse estritamente os termos do acordo com a Câmara sobre o donativo para conserto dos navios71. Chegamos a junho de 1640, quando chega a Salvador o Marquês de Montalvão, o primeiro vice-rei do Estado do Brasil, ostentando um título almejado pelos governadores-gerais há décadas. Se os sermões de Vieira são representativos das esperanças locais, há tanto insatisfação com a situação vivida quanto esperança que o Marquês a remediasse, restaurando o “enfermo Brasil”. O mesmo sentimento é expresso pelo provedor-mor Sebastião Parvi de Brito, indicando sua possível generalização depois de uma década de conflitos, com consequências cada vez mais graves para a economia açucareira, como vimos no capítulo I72. Já em sua “entrada” no poder, Montalvão chamou o Senado, inaugurando sua relação com o poder local. Em seguida, procurou renovar o acordo com o Conde da Torre enviando à municipalidade propostas “em que pedia à Câmara” que se efetuasse urgentemente a cobrança do donativo acordado, para que se pudesse defender Salvador73. Alguns meses depois o tom muda ligeiramente quando Montalvão ordena à municipalidade que repare as fortificações da cidade, mas ao mesmo tempo eleva o estatuto do Senado ao justificar essa obrigação pela comparação com Lisboa: “que a sua imitação se faça o mesmo nesta cidade”74. O vice-rei identificava em Salvador um desenvolvimento similar, ainda que em menor escala (devido a uma disponibilidade financeira muito menor), ao que vinha ocorrendo na municipalidade lisboeta desde a década de 1620, cada vez mais obrigada a utilizar seus recursos para arcar com obrigações da Coroa. Assim, é válida não só para Goa mas também para Salvador a afirmação de que “é a própria crise do Império Português, como parte do império dos Habsburgos, que desencadeia a necessidade dar à Câmara de Lisboa e ao poder local que ela representa um novo estatuto”75. Foram os últimos quinze anos da monarquia dual que lançaram as bases para uma grande ampliação do peso político das três “cabeças” do Império, uma oportunidade abraçada pela elite baiana para ampliar sua autoridade institucional e o prestígio dos homens bons – em vias de transformação em nobreza, como vimos no capítulo anterior. A

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AC, vol. I, pp. 427-8 e AHMS, PR, vol. I, fls. 226v-231v. MARQUES, L’Invention du Brésil, p. 193 (citação) e 230; BPA, 51-VI-21, fl. 295. 73 AC, vol. I, pp. 442-4 e 448-9. 74 AC, vol. I, pp. 436-7, 445-7 e 449. 75 SANTOS, Catarina Madeira. “Os refluxos do império, numa época de crise. A Câmara de Lisboa, as Armadas da Índia e as Armadas do Brasil: quatro tempos e uma interrogação (c. 1600-1640)”. Anais de História de AlémMar, vol. VII, 2006, p. 95. Em Goa a atuação do vice-rei foi decisiva, mas a Coroa participou de maneira mais ativa: MIRANDA, Susana Münch. “Guerra e Pressão Fiscal no Estado da Índia: limites constitucionais e negociação política no início do século XVII” in COSTA, João Paulo Oliveira e & RODRIGUES, Vítor Luís Gaspar (eds.), O Estado da Índia e os Desafios Europeus: Actas do XII Seminário Internacional de História IndoPortuguesa. Lisboa: Centro de História de Além-Mar e Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, 2010, pp. 215-233. 72

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excepcionalidade baiana, porém, é que esse aumento do peso político se deu não em relação com a Coroa (ainda muito esporádica, como veremos no capítulo VII) mas, principalmente, através do diálogo com os governadores-gerais para o financiamento da defesa da capitania. Há que se reconhecer, porém, que a Coroa ainda mobilizava imensos recursos (inclusive com o auxílio da Câmara de Lisboa) para enviar ao Brasil, sendo as armadas de Antônio de Oquendo em 1631 e do Conde da Torre em 1639 os melhores exemplos desse grande esforço para uma monarquia envolvida em múltiplas frentes de combate. Mesmo que fosse “o açúcar que fechava as contas da guerra do Brasil na Europa”, Felipe IV via-se obrigado a desviar imensas parcelas da arrecadação no Reino para sustentar os esforços militares na América, na tentativa de preservar a mais importante possessão ultramarina portuguesa76. Montalvão ordenou que o donativo da imposição dos vinhos fosse arrendado, para evitar os “grandes descaminhos” que até então haviam se verificado, “porque a forma da cobrança não muda a natureza do donativo” – argumento que conseguiu convencer os camaristas, embora estes logo tenham voltado atrás em razão da resistência do “povo” (significando, provavelmente, alguns dos mais poderosos homens da capitania, como Antônio da Silva Pimentel, Diogo de Aragão Pereira, Francisco Fernandes Dosim e Diogo Lopes de Ulhoa, signatários dessa ata)77. Quando precisou pedir mais recursos, porém, Montalvão foi mais diplomático, aproximando-se da estratégia do Conde da Torre. Após destacar a ameaça neerlandesa, a importância de Salvador, a falta de recursos da Fazenda Real e a triste sina dos pernambucanos conquistados, o primeiro vice-rei do Brasil afirma à elite local: “vossas mercês seguramente podem ter de mim que como companheiro trato todo o seu remédio”. Em seguida, reconhece o papel da elite “desta República de que são cabeças”, elogiando seu “ânimo” no serviço do rei, “na defesa de suas casas e em conservarem os filhos na fé católica, e não acabarem miseravelmente ainda nas mãos de seus inimigos”, destacando o quanto a proteção da Bahia unia os interesses dos vassalos e da Coroa. Pede, então, que decidam, em uma reunião com os “religiosos como de todos os estados” (capítulo IV), como financiar a defesa de Salvador. Os camaristas aceitam colocar uma nova imposição no sal, mas impõem uma série de condições, todas aceitas: o compromisso régio de enviar pipas de vinho suficientes para abastecer a capitania; a desobrigação em contribuir com os 60.000 cruzados acordados com o Conde da Torre “que tanto molestam o povo” (mais sentidas por serem cobrados diretamente, através de fintas); e, por último, “que Sua Majestade seja servido de dar sua fé e palavra real que em se acabando a guerra de Pernambuco e seja Restaurado tornarão as

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LENK, Guerra e Pacto, pp. 209-60 (citação à p. 260) e MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada: guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. São Paulo: 34, 2007 [1975], 3ª ed. rev., pp. 149-58. 77 AC, vol. I, pp. 450-1, 461-5 e 471-2.

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coisas como de presente estão, ficando as imposições que hoje já nos vinhos e tirando-se a das crenas”. Os meses finais de 1640 viram, portanto, uma intensa interlocução entre a municipalidade (ainda mais autorizada a negociar pela ampla participação de membros da elite nas reuniões) e o vice-rei, na tentativa de resolver a questão central do período: o financiamento da defesa78. O trabalho era tanto que o escrivão repetidamente registrou nas atas que os camaristas estavam “assistindo sempre neste Senado todos os dias sem poder acabar com negócios da República”79. Tudo mudaria, porém, em 1641. A notícia da rebelião portuguesa de 1º de dezembro de 1640 chegaria a Salvador “por uma pequena embarcação de Lisboa”, que comunicou em segredo ao vice-rei a boa nova. É de se notar, porém, a demora no envio da notícia: só em 4 de janeiro o rei resolve numa consulta do Conselho da Fazenda que se devia notificar o Brasil, semanas após terem se lembrado de enviar mensagens para a África e Ásia80. Segundo a listagem de méritos apresentada posteriormente pelo rico lavrador de cana vianês Manuel Maciel Aranha, que então servia de vereador mais velho, ele foi o primeiro comunicado pelo Marquês “pela confiança que dele tinha”. Em seguida, o vice-rei convocou o bispo, o cabido, os prelados das ordens religiosas, os camaristas e os maiores oficiais militares dos terços portugueses para aclamar o rei, o que se fez imediatamente, com grande alegria e unanimemente, a se julgar pelos relatos da época. O dito Maciel Aranha então tomou a bandeira e bradou “Real, Real, Real, por El-Rei D. João IV, Rei de Portugal”, sendo seguido por “todo o povo, clero e mais gente em muito número aclamou por três vezes: viva, viva, El-Rei D. João IV de Portugal, com geral contentamento”81. Entretanto, o clima de incerteza na recém-reconstituída Corte lisboeta não favorecia que se apostassem todas as fichas na lealdade de D. Jorge Mascarenhas, um fidalgo que, apesar de descender de uma antiga linhagem de servidores da Coroa portuguesa, devia sua recente ascensão à aristocracia portuguesa (primeiro como Conde em 1628 e, depois, Marquês, em 1639) a Felipe IV – a quem se supunha que poderia pagar com sua lealdade. Mais grave, porém, 78

AC, vol. I, pp. 451-65 e 471-2. AC, vol. I, pp. 457, 462, 467 e 469 (citação). 80 PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portugueza, desde o anno de mil e quinhentos do seu descobrimento, até o de mil e setecentos e vinte e quatro. Lisboa: Officina de Joseph Antonio da Silva, 1730, p. 288 (citação); IAN/TT, Ministério do Reino, Conselho da Fazenda, L. 161, fl. 5. Em outros lugares soube-se ainda depois: Ponta Delgada só recebeu a notícia em abril, apesar de sua proximidade ao Reino – indicador por si só da maior importância de Salvador: RODRIGUES, José Damião. Poder municipal e oligarquias urbanas: Ponta Delgada no século XVII. Ponta Delgada: Instituto Cultural, 1994, p. 112. Essas primeiras semanas após a Aclamação devem ter conhecido muitas discussões sobre como garantir a posse das conquistas, como se depreende de arbítrio anônimo em RAU, Virginia & SILVA, Maria Fernanda Gomes da (eds.). Os manuscritos do arquivo da Casa de Cadaval respeitantes ao Brasil. Coimbra: Universidade, 1955, vol. I, pp. 338-9. 81 AHU, cód. 13, fls. 293-296v (primeira citação) – agradeço a Mafalda Soares da Cunha a cessão desse documento; AC, vol. II, pp. 9-10 (segunda). O mesmo cerimonial, usual na aclamação de um novo rei, foi adotado em São Paulo, embora a adesão tenha sido menos entusiástica: VILARDAGA, José Carlos. São Paulo na Órbita do Império dos Felipes: conexões castelhanas de uma vila da América portuguesa durante a União Ibérica (15801640). Tese de Doutorado. São Paulo: PPGHS/USP, 2010, pp. 349-50 (recentemente publicada em livro). 79

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foi a fuga de dois filhos (inclusive seu herdeiro) e um sobrinho para Castela, juntando-se a outro filho que havia permanecido com os Habsburgo. Sua esposa, reconhecidamente pró-castelhana, foi aprisionada e viveu o resto de seus dias em um convento. A fuga de sua família “implicava uma estratégia definida que visava entravar o processo de autonomização de Portugal, através da apropriação das suas fontes de receita ultramarina, onde o Brasil pontuava”82. Assim, D. João IV achou por bem escrever em 4 de março de 1641 (antes, portanto, de receber a notícia de sua aclamação no Novo Mundo) cartas patentes nomeando o Bispo D. Pedro da Silva, o mestre de campo Luiz Barbalho Bezerra e o “fidalgo de minha casa” Lourenço de Brito Correia para “dar nova forma de governo ao Estado do Brasil pela muita confiança que faço” nomeando-os como governadores provisórios. Em carta do mesmo dia, D. João escreveu à Câmara “e posto que creio que a nova [da Aclamação] seria recebida com as demonstrações devidas e que estarei aclamado e obedecido por rei”, o novo monarca comunicou os vassalos baianos da nomeação dos governadores provisórios em substituição a Montalvão. As escolhas do Bispo e do mestre de campo são facilmente compreensíveis: o primeiro era a maior autoridade religiosa do Estado do Brasil, ativamente envolvido na política e na resistência contra os neerlandeses desde a chegada em sua diocese, em 163483; já o segundo era o comandante português mais respeitado na guerra contra os neerlandeses. Quais eram as credenciais de Brito Correia? Mais do que sua fidalguia, atributo longe de ser único, foi seu ativo envolvimento no serviço régio nas duas décadas pregressas, assim como sua iniciativa em escrever com alguma frequência ao centro, que lhe tornaram conhecidos em Lisboa. Assim, D. João e seus conselheiros provavelmente calcularam que Lourenço de Brito Correia seria capaz de influenciar a elite baiana a aceitar sem reservas o novo monarca, caso isso ainda não houvesse ocorrido: recorria-se, portanto, ao poder individual do mais destacado membro dos homens bons baianos (capítulo III) para garantir a lealdade de seu grupo. Apesar de a historiografia comumente apresentar a deposição do Marquês como resultado de uma conspiração entre o jesuíta que trouxe as cartas régias e os nomeados sedentos de poder, o próprio Montalvão, em memorial escrito por volta de 1650, atribui sua derrubada apenas a D. João IV84. Note-se que nem nas cartas patentes nem na missiva à Câmara há WHITE, Lorraine. “Dom Jorge Mascarenhas, Marquês de Montalvão (1579?-1652) and changing traditions of service in Portugal, and the Portuguese Empire”. Portuguese Studies Review, vol. 12, n. 2, 2005, pp. 63-83; COSTA, Leonor Freire & CUNHA, Mafalda Soares da. D. João IV. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006, p. 113 (citação). 83 AHMS, PR, vol. I, fls. 265-271 (citação); carta quase idêntica foi escrita ao escrivão da fazenda Gonçalo de Pinto de Freitas: DH, vol. 22, pp. 334-5 e possivelmente ao ouvidor-geral (já que está registrada no Livro Dourado da Relação: ANRJ, cód. 537, doc. G. 10), fazendo supor que tenha sido enviada a todas as autoridades da capitania. Veja-se também MAGALHÃES, Equus Rusus, vol. I, pp. 176-202. 84 RAU & SILVA. Os manuscritos do arquivo da Casa de Cadaval, vol. I, pp. 381-3. 82

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qualquer menção às supostas condições que determinariam que a mudança só deveria ser efetuada em caso de suspeita de traição por parte do vice-rei. Essa versão provavelmente corria à boca pequena já nos anos seguintes, sendo impressa pelo Frei Manuel Calado em seu Valeroso Lucideno e ganhando fama nos séculos seguintes85, certamente auxiliada pelas prisões de Barbalho Bezerra e Brito Correia após a chegada do novo governador, Antônio Teles da Silva, em 1642. Entretanto, como demonstrou Pablo Magalhães, a prisão se devia ao fato de que eles haviam embolsado uma imensa quantia a título de salário, devolvida apenas pelo bispo86. Mas não nos adiantemos. Em 16 de abril, “na capela mor da Santa Sé” de Salvador (provavelmente escolhida por ser o recinto capaz de abrigar mais pessoas na cidade), o Marquês de Montalvão transmitiu o cargo ao bispo D. Pedro da Silva e ao mestre de campo Luiz Barbalho Bezerra, na presença do provedor-mor da fazenda, do ouvidor-geral, do cabido, do mestre de campo Joane Mendes de Vasconcelos “e outros muitos ministros e capitães de guerra, e muitos homens da governança deste povo, e muita gente dele”. Lourenço de Brito Correia estava fora da cidade (o que possivelmente indica quão inesperada era a notícia), tendo tomado posse só no dia seguinte, “nos paços de Sua Majestade”, numa cerimônia bem menos pública87. Os novos governadores mantiveram contatos constantes com o Senado desde o dia de sua posse. A primeira questão foi, claro, o sustento da infantaria, pois D. João IV havia magnanimamente levantado todos os tributos impostos nos últimos anos. Não se chegou a uma conclusão imediata, talvez porque a municipalidade estivesse testando os governadores, mas o bispo “veio a esta Câmara estando todos presentes e quietos lhe fez uma prática de pastor, lembrando-lhes a dita necessidade e amor com que Sua Majestade nos tratava (...) e quanto importava não nos desamparar a infantaria”. O bispo/governador pedia a suas ovelhas “que apontassem o meio mais pronto e suave que se lhes oferecesse para acudir a este aperto”, e o consenso a que se chegou apontou para o retorno da imposição dos vinhos88. Uma breve passagem da ata seguinte indica o impacto da deposição de Montalvão: “em particular se tratou de muitas coisas com o governo na mudança do vice-rei D. Jorge e dos três governadores”89. Com pouco mais de um mês no poder, os três governadores também autorizaram que Salvador possuísse mesteres “como era costume nas cidades e vilas notáveis de Portugal”, enobrecendo, portanto, o Senado – e, por tabela, aqueles que ocupavam seus cargos90. Também 85

Veja-se, por exemplo, PITA, História, pp. 289-90. MAGALHÃES, Equus Rusus, vol. I, pp. 204-8 é a melhor narrativa da aclamação em Salvador. 87 AHMS, PR, vol. I, fls. 265-71. 88 AC, vol. II, pp. 10-2. 89 AC, vol. II, p. 12. 90 AC, vol. II, pp. 14-7, 23-6 e AHMS, PR, vol. I, fls. 276-277. Antônio Teles da Silva repetiu a autorização: AHMS, PGS, 1642-8, fls. 6v-9 e 168-175v. 86

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apoiaram a decisão camarária de que as posturas da municipalidade deviam ser respeitadas por todos que atuassem no pequeno no comércio, inclusive os militares91. No geral, parecem ter atuado de forma similar a seus antecessores, mas a Câmara resistiu um pouco mais a contribuir, tendo sempre que ser convencida pelo Bispo D. Pedro da Silva, o mais influente dos três governadores em razão de sua autoridade eclesiástica92. Mesmo geralmente apelando ao “zelo, amor e fidelidade que devemos ter a El-Rei Nosso Senhor D. João IV, e que tenha que lhes agradecer nesta empresa de tanta importância em defesa da mesma pátria”, os governadores não se furtavam a ordenar aos camaristas que cuidassem das fortificações93, fornecessem gado94, ou até, contra a obstinada resistência do Senado, a obrigar a municipalidade a arrendar a venda da proibida cachaça. Nesse caso, após longas discussões, “parecendo grande a violência e nesta ocasião haver alvoroços dos soldados que puseram em cuidado esta cidade”, a Câmara concordou “para escusar maiores diferenças”95. Em compensação, os governadores concordaram em permitir que a Câmara interferisse no preço do açúcar, repetindo o que havia sido feito em 1626 – novamente uma concessão de um governo provisório, compensando assim sua menor autoridade com maiores benesses96. Tal tática era necessária porque, quando a necessidade apertava, a solução sempre era recorrer à municipalidade. Assim, em 21 de junho de 1642 a Câmara foi convocada para se reunir no palácio com os governadores, os prelados das ordens religiosas, “pessoas de maior autoridade do povo e governança com homens de negócio, mesteres da cidade e povo”. O Bispo expôs mais uma vez a situação miserável da Fazenda Real e pediu à junta que se descobrissem os “meios que mais convenientes fossem à República e menos moléstia fizesse assim ao povo como ao trato e negociação, de que dependia a conservação de tudo”. A Câmara tomou a decisão de monopolizar a venda do vinho, aumentando os preços e tentando garantir sua saída através da proibição da aguardente (conseguindo reverter, assim, a liberação que lhes havia sido imposta no ano anterior), para o que lhes foi concedido “todo o poder necessário” pelos três governadores97. Mesmo assim, as necessidades continuaram, e os camaristas foram “chamados por vezes dos senhores governadores obrigando-nos a que inteiramente” dessem o suficiente para o sustento da infantaria, o que exigiu o lançamento de uma finta98.

91

AHMS, PR, vol. I, fls. 277-277v. AC, vol. II, pp. 35-41 e 55-7. 93 AHMS, PR, vol. I, fls. 287v-288. Ver também AC, vol. I, p. 58 e 64-5. 94 AHMS, PR, vol. I, fls. 294v-296. 95 AC, vol. II, pp. 47-9. Ver também 50-1. 96 AC, vol. II, pp. 69-74. 97 AC, vol. II, pp. 90-94 e 103-5. 98 AC, vol. II, pp. 112-4. 92

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O imperativo máximo do período, a defesa de Salvador e, consequentemente, de todo o Estado do Brasil, parece ter impedido a adoção de uma política especialmente favorável às elites locais, mesmo em um momento em que um dos três governadores era ao mesmo tempo um membro emérito dos homens bons da capitania. Entretanto, como sua contribuição era essencial para a própria continuidade da dominação português na área que já começava, então, a ser caracterizada como a mais rica do império, a necessidade de negociar e convencer os vassalos a continuar suportando um fardo que devia parecer cada vez mais pesado tornava-se central nas atribuições dos governadores, em um momento de grave crise econômica em razão das destruições na navegação e no sistema produtivo causadas pela guerra contra os neerlandeses (capítulo I). Nesse sentido, foi acertada a opção por D. Pedro da Silva como um dos governadores interinos, pois seu poder de convencimento mostrou-se significativo99. É notável, porém, que numa conjuntura crítica como a mudança dinástica o Estado do Brasil possa ter sido governado por mais de um ano de forma provisória, o que poderia reforçar a ácida crítica da Marquesa de Montalvão, cuja carta comprometedora enviada ao marido afirma: “este rei que temos não sabe que coisa é o Brasil”100. Isso, porém, seria uma injustiça, pois em fevereiro de 1641, antes mesmo do envio das missivas que determinaram a deposição de Montalvão, Diogo de Mendonça Furtado (o mesmo que havia perdido a Bahia para os neerlandeses) havia sido escolhido para o cargo, o que reforça a tese de que a decisão da deposição do 1º vice-rei do Estado do Brasil havia sido tomada no Reino101. Não se sabe porque Mendonça Furtado não atravessou o Atlântico para assumir o posto, mas é provável que a necessidade de escolher um novo governador tenha sido o principal fator a explicar a demora na chegada de Antônio Teles da Silva, que só toma posse em meados de 1642. Filho mais novo de uma casa fidalga com larga tradição de serviço à Coroa, Teles da Silva servira na restauração de Salvador em 1625 e na Índia. Por si só, porém, essas credenciais não justificam a escolha de uma figura relativamente desimportante, que sequer sucederia em uma casa que, na prática, constituía-se em ramo secundário de uma família sem tanto destaque na aristocracia lusa. As razões da nomeação dessa figura quando certamente haveria outras, Sobre a importância política dos bispos da Nova Espanha, cf. CAÑEQUE, The King’s living image, pp. 70-93 e ISRAEL, Razas, clases sociales y vida política, pp. 193-249, especialmente pp. 212-6, onde se relata a deposição do vice-rei Duque de Escalona pelo bispo Juan de Palafox, em razão do temor de que o Duque apoiasse a rebelião portuguesa por ser primo de D. João IV. O paralelo é impressionante com o ocorrido em Salvador (em ambos os casos o vice-rei era o mais graduado aristocrata a ser nomeado para esse governo até então), mas no México a elite local não participou ativamente da derrubada do governante, mesmo que estivesse insatisfeita com seu governo: PAZOS, Maria. El Ayuntamiento de la Ciudad de México en el siglo XVII: continuidad institucional y cambio social. Sevilla: Diputación, 1999, p. 238. 100 LENK, Guerra e Pacto, p. 276. 101 IAN/TT, Ministério do Reino, Conselho da Fazenda, L. 161, 193-193v. Para uma breve biografia, cf. COSENTINO, Governadores Gerais, pp. 180-9 e 322-7. 99

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mais gabaritadas e prestigiadas, devia-se ao fato de que a preferência entre os maiores fidalgos estava em servir nas fronteiras do Reino, mas também, e principalmente, à participação destacada de Antônio Teles da Silva (juntamente com seu irmão, Fernão Teles de Menezes) no momento inicial de Aclamação de D. João IV, assim como sua ligação com o camareiro-mor Conde de Penaguião, um dos líderes da “cabala de cortesãos ligados a D. João IV desde seus tempos de Duque de Bragança” que viam a recuperação por força das armas de Pernambuco como um ingrediente fundamental para o fortalecimento da nova dinastia102. É provável que a intensa atividade comercial e o empenho no serviço régio derivassem, ao menos parcialmente, do ressentimento de haver sido excluído da herança pelo primogênito João Gomes da Silva (que juntou ao morgado a herança da mãe), aparentemente deixando os filhos mais novos com pouco de seu. Solteiro, o beneficiário de seus esforços foi o irmão Fernão, que herdou as mercês e riquezas acumuladas por António e acabou por ultrapassar a casa de origem103. A escolha provou-se acertada para os objetivos da Coroa – embora essa avaliação certamente não tenha sido compartilhada por boa parte da elite baiana. A relação começou sem grandes atritos, inclusive com Teles da Silva ouvindo reclamações contra seus antecessores por terem embolsado como ordenado parte do dinheiro arrecado pela municipalidade para sustentar a infantaria104, e caiu no padrão já familiar da demanda por recursos: “me parece advertir nessa Câmara (...) consultem entre si os meios mais suaves para que se ajustem os efeitos a despesa e fiquem vossas mercês e suas fazendas seguras e Sua Majestade melhor servido”105. Após enviar para a Câmara uma detalhada listagem da receita e despesa da Fazenda Real, demonstrando a necessidade de uma maior contribuição do Senado, Antônio Teles da Silva convocou várias juntas com os camaristas, o bispo, o agora provedor-mor Sebastião Parvi de Brito, o provincial da Companhia de Jesus e o ouvidor-geral para se deliberar sobre o melhor meio. Foi instituída, assim, a vintena (5% da produção agrária) “pelo estilo e modo que se pagam as décimas em Portugal (...) não excetuando pessoa de nenhuma qualidade e condição”, a ser cobrada somente até que a Fazenda Real obtivesse mais recursos – e, como sempre, sob controle exclusivo do Senado: “ficará em depósito no cofre da mesma Câmara, de modo que nunca virá a ser Fazenda Real nem se poderá impetrar provisão para isso, e alcançando-se pelo COSTA & CUNHA, D. João IV, pp. 283-4; MELLO, Evaldo Cabral de. “O sinal verde d’El Rei” [2002] in: id. Um imenso Portugal: história e historiografia. São Paulo: 34, 2003, p. 224 (citação) e id. Olinda Restaurada, pp. 336-41. 103 RAU, Virginia. “Fortunas ultramarinas e a nobreza portuguesa no século XVII” [1959] in: id. Estudos sobre história económica e social do Antigo Regime. Lisboa: Presença, 1984, pp. 29-46 e SUMMAVIELLE, Isabel Cluny. O Conde de Tarouca e a diplomacia na época moderna. Lisboa: Horizonte, 2006, pp. 23-8. 104 AHU, Bahia, LF, cx. 8, docs. 970, 991 e 999; cx. 9, docs. 1020-1022. Para uma reclamação de um frei franciscano contra os governadores provisórios, especialmente Lourenço de Brito Correia, cf. cx. 8, doc. doc. 949. 105 AC, vol. II, pp. 120-1. 102

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mesmo efeito ficará levantada de todo”106. Como “os efeitos com que acode a Câmara” giravam em torno de 50.000 ou 60.000 cruzados anuais (mais ou menos o mesmo valor dos dízimos administrados pela Fazenda Real por esses anos)107, a Bahia contribuía numa escala não muito distinta do que as mais importantes localidades do Reino através da décima: a comarca do Porto, por exemplo, ficou responsável em 1645 por cerca de 67.000 cruzados108. Como o que era efetivamente arrecadado pela décima sempre situava-se abaixo das expectativas (em média, 70%), a população dessa região ainda devia ser mais numerosa do que a baiana, os eclesiásticos também contribuíam e não havia uma imensa população escrava, a taxação per capita (considerando-se somente a população livre) no Reino certamente era consideravelmente mais leve do que na Bahia, mesmo se lembrarmos do tributo do real d’água – o que não deixa de ser um sinal da imensa capacidade de produção de riqueza de uma sociedade escravista. Além de ordenar à Câmara que providenciasse gado para abastecer a cidade, o governador nomeou o escrivão da vintena (que seria acompanhado pelo braço direito de Diogo Luiz de Oliveira e do Conde da Torre, Diogo Lopes de Ulhoa, que provavelmente também estabeleceu uma relação próxima com Teles da Silva), proibiu que Gregório de Matos (o pai do poeta) servisse como tesoureiro dessa contribuição, produziu um regimento para determinar como devia ser feita sua cobrança e com o que sobrasse após o pagamento da infantaria, intervindo na mecânica de arrecadação numa escala bem maior que seus predecessores109.

106

AC, vol. II, pp. 122-7. AHU, Bahia, LF, cx. 8, docs. 976-7 (citação) e cx. 9, docs. 1026-8. 108 MAGALHÃES, Joaquim Romero. “Dinheiro para a guerra: as décimas da Restauração”. Hispania, vol. 64/1, n. 216, 2004, p. 166. 109 AC, vol. II, pp. 133-7, 141 e 143-4; AHMS, PGS, 1642-8, fls. 13-15v, 47-52v, 140-144, 159-168 e 235-239v. 107

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Imagem 1: Organograma simplificado da arrecadação dos donativos (c. 1645)

Câmara Municipal

GovernadorGeral

Nomeado pelo governador.

Escrivão do Donativo Capitães de ordenança

Capitães de ordenança

Capitães de ordenança

Em geral, Teles da Silva ordenava e esperava ser obedecido, não aceitando desculpas, como quando se registra em ata que “não foi possível persuadir ao dito Senhor Governador que as rendas que esta Câmara hoje tinha não era mais que a renda do verde e que dessa levava Sua Majestade a terça parte, e que o mais era muito pouco”110. Teles da Silva não se furtava, porém, a reconhecer a importância da contribuição da Câmara em suas cartas à Coroa, e nem a atender algumas de suas reivindicações da elite local, como a necessidade de levantar a moeda, mesmo porque esse estratagema produziria recursos para o pagamento da infantaria (capítulo VII). Também ouviu as opiniões da municipalidade em outros temas, como a introdução do cultivo de gengibre e anil. Da mesma maneira, juntou-se à Câmara e ao bispo para pedir um convento para Salvador (capítulo III) e concordou com a resistência da municipalidade à instituição do cargo de juiz do peso, pelo encargo que representaria para os produtores de açúcar111. Desde o início, porém, Teles da Silva antagonizou importantes facções da elite: além de enviar preso ao Reino o ex-governador Lourenço de Brito Correia, destituiu o cunhado deste, João Álvares da Fonseca, do posto de mestre de campo pago da ordenança, e defendeu o provedor-mor da fazenda Sebastião Parvi de Brito das acusações de Lourenço por eles serem inimigos “por inimizades antigas” – aproximando-se de Montalvão, que também elogiava Parvi

110

Veja-se, por exemplo, AC, vol. II, pp. 139-40, 146-7, 160-2 (citação). AHU, Bahia, LF, cx. 8, docs. 976-7, 979-80, 994; cx. 9, docs. 1026 e 1029; cx. 10, doc. 1138; cód. 13, fl. 329v; AC, vol. II, pp. 176-80 e 244-5; AHMS, PR, vol. II, fls. 24v-25. 111

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de Brito112. Apesar de ser difícil traçar as fraturas da elite, é de se notar que os camaristas de 1645 endossaram as críticas a João Álvares da Fonseca, indicando uma provável predominância na municipalidade de adversários do ex-governador Lourenço de Brito Correia113. Já em janeiro de 1643 o governador deixava entrever certa insatisfação, afirmando que “nem ainda a vintena, que os moradores ofereceram, rende o que prometia, porque os pagamentos que se fazem são em açúcares, e esses os somenos e dados com muita repugnância”114. A prática de dar os piores açúcares para os donativos se perpetuará ao longo do século e demonstra uma das principais estratégias locais para diminuir o impacto crescente da fiscalidade em razão da necessidade de sustentar a infantaria e, depois, pagar o donativo de paz de Holanda e dote da Rainha da Grã-Bretanha (capítulos VI e VII). Da mesma maneira, a “muita repugnância” em contribuir demonstra os limites do discurso da Câmara que enfatiza o amor e a lealdade nas contribuições da capitania às necessidades da monarquia. A tensão se eleva, porém, a partir de maio de 1643, quando o governador ordena que o juiz ordinário Francisco Barbosa de Brito, o vereador Fernão Pereira do Lago e o Procurador Paulo do Rego Borges prosseguissem com o expediente da municipalidade mesmo sem o quórum necessário, pois os juízes Gaspar Pacheco de Castro e Diogo Mendes de Barradas tinham ido a Boipeba garantir o suprimento de farinhas. Antônio Teles da Silva esqueceu-se de mencionar, porém, o último dos três vereadores desse ano: o lavrador Francisco Gomes Aranha, o qual “estava preso”, como a Câmara lembrou em sua resposta. Os camaristas restantes consultaram o síndico, o qual afirmou ser necessário “declarar-se na dita portaria estar preso o dito vereador, para com isso eles oficiais na falta deles poderem tomar conhecimento das coisas da dita Câmara”. Sebastião da Rocha Pita, o retirado de Pernambuco que ocupava a serventia do ofício de escrivão da Câmara (e avô do historiador homônimo), foi dar conta dessa exigência ao governador, o qual “respondeu que a portaria estava boa o bastante para o que nela ordenava e que as razões que contra isso houvesse lhas fosse dar pessoalmente o juiz ordinário Francisco Barbosa de Brito como pessoa mais inteligente nestes negócios”. Não há como saber se isso foi feito, mas não creio: as sessões da Câmara ocorreram sem excepcionalidades nos meses seguintes, e só em 12 de junho o vereador Francisco Gomes aparece novamente entre os signatários115. Não encontrei nenhum documento que esclarecesse o motivo da prisão, mas é difícil crer que não se tratasse de uma tentativa de intimidação dos camaristas. Não deve ser

112

AHU, Bahia, LF, cx. 8, docs. 978 (citação) e cx. 9, docs. 1109-10; Avulsos, cx. 1, docs. 53 e 67. AHMS, PR, vol. II, fls. 12v-14. 114 AHU, Bahia, LF, cx. 9, doc. 1003. 115 AC, vol. II, pp. 169-72. 113

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alheio à prisão o fato de que quando os camaristas alteraram a forma de cobrança da vintena, o fizeram “debaixo da aprovação e confirmação do Senhor Governador e Capitão-Geral deste Estado Antônio Teles da Silva, o qual com os oficiais desta Câmara elegeria os meios mais acertados e eficazes (...) sem jamais poder perder a natureza do donativo dela”116. A subserviência fica mais clara, porém, quando o governador “ordeno[u] que de novo chamem o povo e retifiquem com ele este donativo, prorrogando-o por mais tempo (...) no que farão de novo no serviço a Sua Majestade e bem a esta cidade, pois é em ordem a sua conservação”117. O mesmo tom aparece nas ordens para a Câmara terminar as fortificações (o que os camaristas se apressam a fazer “a satisfação do Senhor Governador-geral Antônio Teles da Silva”) ou recolher o gado para sustento dos soldados118. Da mesma maneira, quando da renovação da vintena, o governador-geral convocou os camaristas e informou que “os não chamava para tomar seus pareceres, se não para lhes dizer pusessem logo em efeito de pôr em pregão a dita vintena”119. Ainda que a defesa beneficiasse a comunidade, a contribuição da municipalidade era, como a Câmara recorrentemente enfatiza, um donativo, portanto teoricamente voluntário. Na prática, porém, o caráter desigual da negociação sobre fiscalidade é evidente, e sua obrigatoriedade não escapava a ninguém120, especialmente quando o governador-geral buscava antes obrigar que persuadir, como fez Antônio Teles da Silva nos primeiros anos de seu governo, seguindo os passos de Diogo Luiz de Oliveira. Em 1644 o governador-geral não alterou seu procedimento, já que estava tendo sucesso, pois “1643 foi provavelmente o ano em que Fazenda Real e a Câmara de Salvador levantaram mais recursos na Bahia, em todo o conflito”121. Teles da Silva brigou, porém, com o ouvidorgeral, dentre outros motivos porque desejava confiscar a vasta herança da falecida esposa do senhor de engenho Felipe de Moura de Albuquerque, que teria assassinado sua própria mulher. Fidalgo e provedor da Misericórdia nesse ano, o prestígio de Felipe era considerável, e o recémchegado Manuel Pereira Franco não atendeu às ordens do governador, acabando preso. A arbitrariedade foi a gota d’água para dois vereadores e um juiz ordinário, que escreveram a D. João IV queixando-se de Teles da Silva, que “nos ameaça e quem lhe parece e atemoriza com prisão e castigos (...) e sem tratar das ordens e provisões de Vossa Majestade com que o ouvidor

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AC, vol. II, pp. 183-5. AC, vol. II, pp. 187-9. 118 AC, vol. II, pp. 190-9 (citação à p.191). 119 AC, vol. II, pp. 201-3. 120 Cf. FORTEA PÉREZ, José Ignacio. “Los donativos en la política fiscal de los Áustrias (1625-1637): ¿Servicio o Beneficio?” in RIBOT GARCÍA, Luis A. & ROSA, Luigi de (dir.). Pensamiento e política económica en la época moderna. Madri: Actas, 2000, pp. 39-46. 121 LENK, Guerra e pacto, p. 406. Veja-se AC, vol. II, pp. 230-2, 234-5, 240-2 e 249-52. 117

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viu daonde se vê claramente o que poderão fazer uns pobres oficiais da câmara mais que chorar o sê-lo neste tempo?”122. Os mesmos camaristas saíram em defesa do Bispo D. Pedro da Silva (com quem o Senado havia entrado em conflito no ano anterior por questões de precedência), cujo ordenado foi tomado pelo governador, com o objetivo de “matar o bispo de moléstias”, como vingança pela deposição de Montalvão e por defender o ouvidor123. Antônio Teles da Silva negou as acusações, mas suas ações as confirmaram, pois admitiu ter prendido dois dos três signatários da missiva “por escreverem a Vossa Majestade queixas suas, que diz (...) que são falsas”: os lavradores ricos Luiz Pereira de Aguiar e Francisco Rodrigues de Araújo. O Conselho Ultramarino criticou por diversas vezes a atitude do governador e, depois de meses e várias reclamações do Conselho, o rei enviou uma carta régia ordenando a soltura dos presos. A ousadia de Teles da Silva possivelmente se devia a seu papel na organização da rebelião que se procurava fomentar em Pernambuco, contando, por isso, com uma larga liberdade de ação sem contestação do ainda inseguro D. João IV124. É interessante notar, porém, quais camaristas não foram encarcerados: em 1643, o governador poupou Fernão Pereira do Lago, de família recentemente estabelecida na capitania, mas já relativamente influente, e o senhor de engenho Francisco Barbosa de Brito (cujo sogro havia sido provedor da Misericórdia em 1615), enquanto em 1644 o único dos três a escrever contra o governador que escapou da prisão foi o senhor de engenho Gregório Rodrigues Varela. Ao aprisionar três lavradores sem laços com as principais famílias da capitania, o governadorgeral provavelmente procurava evitar se incompatibilizar ainda mais com os mais influentes membros da elite local, ao mesmo tempo em que deixava claro para eles onde poderiam parar caso se opusessem aos ditames de Teles da Silva – e se lembrarmos que a cadeia ficava logo abaixo da casa da Câmara, o cárcere deveria parecer ainda mais degradante para esses orgulhosos homens. A estratégia pode ter sido bem-sucedida, pois o juiz ordinário Francisco de Barbuda, de uma família tradicional (seu pai havia sido juiz ordinário quatro vezes), não assinou nenhuma das duas cartas contra o governador em 1644. A nomeação do poderoso alcaide-mor, senhor de engenho e fidalgo Antônio da Silva Pimentel como ouvidor provisório em 1642

122

AHU, Bahia, LF, cx. 9, docs. 1079, 1093, 1094 (citação) e 1095; cx. 10, doc. 1112 e 1126-7; cód. 13, fl. 141v. Cf. também ARAÚJO, Érica Lôpo de. De golpe a golpe: política e administração nas relações entre Bahia e Portugal (1641-1667). Dissertação de mestrado. Niterói: PPGH/UFF, 2011, pp. 74-82. 123 AHU, Bahia, LF, cx. 10, docs. 1156; cf. também 1155 e 1557-8, CS, vol. I, pp. 18-21, MAGALHÃES, Equus Rusus, pp. 208-13 e AMARAL, Camila. “As duas espadas do poder”: as relações de tensão e conflito entre o poder secular e o poder eclesiástico na Bahia (1640-1750). Dissertação de mestrado. Salvador: PPGH/UFBA, 2012, pp. 76-89. 124 AHU, Bahia, LF, cx. 10, docs. 1128-9 (citação); LENK, Guerra e pacto, p. 407-8.

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certamente objetivava cooptar uma das mais importantes famílias locais, já que a única qualificação pregressa de Pimentel para o cargo era ter servido como juiz ordinário em 1635125. Como foi possível que Antônio Teles da Silva adotasse uma atitude tão agressiva nos primeiros anos de seu governo? A resposta pode estar uma carta de 4 de junho de 1644 em que o governador-geral dá conta do motim contra Luiz Barbalho Bezerra no Rio de Janeiro em 1643, que teria acontecido porque “a infantaria é pouca, e a mais dela gente casada na mesma terra, [o que] deu ânimo aos do povo insistirem de maneira a que constrangeram o governador”126. Infere-se, portanto, que Teles da Silva considerava o grande número de soldados na Bahia (2500 em 1643 e 2342 em 1644)127 como uma das bases de seu poder, impedindo que ocorressem revoltas semelhantes – assim como o fato de que boa parte dos postos de comando era ocupada por homens cujos laços com as elites locais ainda não se mostravam tão fortes como viriam a ser nas décadas seguintes. Como escreveria pouco depois um dos principais políticos do Portugal restaurado, o bispo Sebastião César de Menezes, “o estado bem fundado na disciplina militar resiste facilmente às próprias rebeliões”128. A atitude de Barbalho Bezerra em seu curto governo fluminense foi muito mais conciliadora do que as demandas do triunvirato de que fez parte em Salvador, antes pedindo do que exigindo recursos para sustentar a infantaria, consciente da diferença que havia entre a Bahia, “a quem como cabeça deste Estado devem as mais capitanias seguir”, e o Rio de Janeiro129. Entretanto, apesar da ampliação do efetivo, nos últimos anos de seu governo Teles da Silva não entrou em conflitos abertos com os outros poderes de Salvador e, ao menos em relação com a Câmara, parece ter alcançado uma coexistência pacífica que, por um lado, implicava menos autoritarismo de sua parte e, de outro, a desistência da municipalidade de fazer oposição aberta a seus ditames, assim como a continuidade do seu papel central no financiamento da defesa militar da capitania130. Curiosamente, o governador-geral parece ter se guiado pelo que

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AHMS, PGS, 1642-1648, fls. 94-97v. VILHASANTI, Relação Diária, p. 168. 127 LENK, Guerra e Pacto, p. 149. Depois da rebelião que depôs Gelves em 1624 também se considerou importante a criação de uma infantaria permanente na Cidade do México, ainda que seu número fosse reduzido (apenas 300, mesmo número que no Rio de Janeiro, uma cidade que não tinha 5% do tamanho da capital da Nova Espanha): ISRAEL, Razas, clases sociales y vida política, p. 174. 128 MENEZES, Sebastião César de. Summa Política offerecida ao Príncipe D. Theodósio de Portugal. Amsterdam: Tipographia de Simão Dias Soeiro Lusitano, 1650 [1649], p. 107. Em 1710, um “espelho de governador” pernambucano enfatizava que “a não se conservarem estes presídios nas conquistas, a representação real na pessoa dos seus governadores se veria a cada passo escarnecida e ultrajada”: MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: 34, 2003 [1995], 2ª ed., p. 224. 129 AHU, cód. 1279, fls. 13-13v. Veja-se também FIGUEIREDO, Luciano. Revoltas, Fiscalidade e Identidade Colonial na América Portuguesa: Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais, 1640-1761. Tese de Doutorado. São Paulo: PPGHS/USP, 1996, pp. 28-31. 130 Veja-se, por exemplo, AC, vol. II, pp. 298-9, 305, 326-9, 335-6, 338-41 e 344. 126

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disse seu adversário Salvador Correia de Sá no Conselho Ultramarino em 15 de dezembro de 1644: “não se necessita hoje no Estado do Brasil senão de pessoa afável para o governo”131. Assim, quando se discutiu (por iniciativa da Câmara) a proibição da cachaça, o governador formou uma junta que incluiu os prelados das religiões, o provedor-mor da fazenda, letrados como Sebastião Parvi de Brito (há muito integrado localmente, como vimos), o capitão Paulo de Barros, membro da elite nomeado pelo governador como ouvidor-geral provisório132 e outros homens de destaque, como Diogo de Aragão Pereira (representando os senhores de engenho) e Francisco Fernandes Dosim (como negociante), e concordou com o parecer geral pela proibição do aguardente133. Graças a essa melhora nas relações (e as mercês concedidas pela Coroa, como os privilégios do Porto em 1646), foi possível acordar com os moradores a oferta de exorbitantes 200.000 cruzados “para armar uma esquadra capaz de defender a Bahia” em 21 de março 1647, no contexto da ocupação neerlandesa da Ilha de Itaparica134. Assim, quando o governador foi-se embora para o Reino em 1650, os camaristas não se furtaram a qualificá-lo em uma carta a D. João IV como “tão benemérito desta República que faltaríamos a nossa obrigação se deixássemos de representar a Vossa Majestade o amor, prudência e inteireza com que nos governou”135. Depois de três anos de conflito, Antônio Teles da Silva obteve maiores sucessos quando foi capaz de construir o consenso – ainda que a possibilidade do uso da força continuasse no horizonte, efetivamente estimulando a cooperação. Como já havia se tornado usual, uma das primeiras ações do novo governador, Antônio Teles de Menezes, um dos aclamadores de 1640 e recém-nomeado Conde de Vila Pouca de Aguiar, foi acordar com a Câmara a cobrança de uma nova imposição sobre o açúcar. Os camaristas iniciaram a resposta protestando sua obediência, pois a ordem de Sua Majestade resolutamente determina e manda, e não pede informação nem sobre a conveniência do intento nem sobre a possibilidade do encargo. (...) Assim só ficava que tratar do efeito, porque a obediência da ordem real nem se podia pôr em consulta nem a esta havia mais que responder que obedecê-la.

Procuraram, porém, convencer o governador de que mais uma cobrança seria uma carga demasiadamente pesada para os já sobrecarregados moradores. Pediram algumas condições

131

AHU, Bahia, LF, cx. 16, doc. 1814 (anexo). AHMS, PGS, 1642-1648, fls. 253v-256v. 133 AC, vol. II, pp. 312-3, 315-6 e 321-6; AHU, Bahia, LF, cx. 10, docs. 1240-1; cód. 14, fls. 12v-13; 181-181v e 188-188v; AHMS, PGS, fls. 277-281v. 134 AHMS, PGS, 1642-1648, fls. 296v-298v. Veja-se MAGALHÃES, Equus Rusus, pp. 343-4 (citação), a quem agradeço por chamar a atenção para esse interessante documento. Cf. também AC, vol. II, pp. 356-8. 135 CS, vol. I, p. 27. Para uma narrativa do governo de Antônio Teles da Silva que enfatiza inadvertidamente a relação com a Câmara ao utilizar o acervo do AHMS, veja-se VIANNA JÚNIOR, Wilmar. Modos de governar, modos de governo: o governo-geral do Estado do Brasil entre a conservação da conquista e a manutenção do negócio (1642-82). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: PPGH/UERJ, 2011, pp. 117-46. 132

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para que o novo tributo entrasse em vigor: que se extinguisse um imposto para financiamento da armada (a avaria) que começara a ser cobrado quatro anos antes; que o recebedor do novo tributo fosse eleito pela Câmara; que só as mercadorias enviadas em navios que chegassem são e salvos no Reino pagassem; que a contribuição fosse automaticamente extinta com o fim do conflito contra os neerlandeses; que as demais capitanias também contribuíssem; e que o frete fosse determinado por uma comissão entre mestres de navios e homens de negócio. A resposta do governador foi notavelmente cortês, elogiando os vassalos por seu “zelo [e] afeto com que obedecem, e aceitam esta nova ocasião de continuar as demonstrações com que esta cidade costumou sempre adiantar-se nos empenhos de seu amor e lealdade” e prometendo intervir junto ao monarca para que “as honras e mercês que merecem” lhes fossem concedidas. Concorda, assim, com a maioria das exigências, exceto a estipulação de que a cobrança cessasse com o fim da guerra, pois só o rei poderia conceder tal graça136. No geral, excetuando-se a prisão do capitão senhor de engenho Manuel de Moura Rolim, pernambucano estabelecido na Bahia há quase duas décadas (e genro do poderoso Antônio da Silva Pimentel) por querer largar seu posto para ir servir em sua pátria137, o Conde manteve-se em bons termos com a elite local, sempre escrevendo respeitosa e elogiosamente à Câmara, pois “pedir aos vassalos com vexação encontra muito ao meu natural”, como confessou em carta à municipalidade de 7 de agosto de 1649. Solicitou repetidamente, portanto, que o Senado procurasse os “meios mais cômodos, mais possíveis e mais suaves” para atender às necessidades do serviço real. Para além dessa boa correspondência, a Câmara era frequentemente chamada para as juntas convocadas pelo governador, de modo a participar ativamente do governo da capitania138. O Conde de Vila Pouca de Aguiar governou a Bahia no início de uma recuperação, após duas décadas e meia de conflito: em 1648 restavam apenas 61 engenhos na capitania, 19 a menos do que 20 anos antes, o tráfico de escravos e os dízimos apenas começavam a elevar-se (capítulo I) e mantinha-se uma grande pressão fiscal, especialmente em razão da cobrança dos 50.000 cruzados anuais acordados com Teles da Silva. Mais do que nunca a colaboração do poder local se fazia necessária, e é possível que tanto Teles da Silva quanto Teles de Menezes tenham percebido que, caso apertassem demais, os vassalos poderiam se rebelar, pois o exemplo do Rio de Janeiro em 1643 não devia passar despercebido. Esse contexto deve ter estimulado os governadores a adotar estratégias mais conciliadoras.

136

AC, vol. II, pp. 362-9. AHU, cód. 14, fl. 116v; DH, vol. 65, pp. 341 e 346-7. Veja-se também LENK, Guerra e pacto, p. 206. 138 Veja-se AC, vol. II, pp. 372-5 e vol. III, pp. 7-9, 22-23, 25-6 (citações), 27-8, 31-6 e 40-52. 137

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O novo governador-geral, João Rodrigues de Vasconcelos e Sousa, 2º Conde de Castelo Melhor, manteve a prática, já que estava dando bons resultados. Como, porém, a necessidade de recursos era sempre premente, em 12 de março de 1650, apenas dois dias após ser empossado, Castelo Melhor enviou uma proposta à Câmara, pedindo que se instituísse uma imposição sobre o vinho importado pela Companhia Geral de Comércio (sobre as queixas da Câmara contra essa instituição, veja-se o capítulo VII). Os camaristas concordaram, e o diálogo entre ambas as partes se tornou tão produtivo que discutiram até o preço do azeite e do bacalhau trazidos pela Companhia. Aqui, como em diversos outros momentos, o governador era consultado e referendava as decisões da Câmara sobre o comércio local, não só para garantir o abastecimento da praça, mas também para emprestar sua autoridade às decisões do Senado139. Vasconcelos e Sousa estava impressionado, como se vê em carta escrita um mês e meio após sua chegada, na qual se sentiu obrigado a “representar a Vossa Majestade o grande zelo dos vassalos daquele país e que não pode haver no mundo quem os iguale no ânimo” porque, apesar de tão oprimidos, “ach[a]m toda uma vontade e disposição” para servir a seu monarca. Pede, então, a D. João IV que tivesse o “cuidado de lhes fazer a mercê e honra que haver lugar por que desta sorte lhe não faltará aquele animo que tanto importa que não percam” 140 – reforçando a percepção do quão essencial era a contribuição dos vassalos para sustentação do domínio bragantino sobre a Bahia e o Brasil. Fazendo jus ao conselho que dera ao rei, o governador-geral logo depois concedeu aos camaristas um privilégio há muito demandado: o pagamento de propinas em sete procissões anuais aos oficiais do Senado. Também uniu sua pena à reivindicação da municipalidade de recriação do Tribunal da Relação141. A lua de mel vivida nos primeiros meses do governo culminou na eleição do Conde de Castelo Melhor como provedor da Santa Casa de Misericórdia, onde serviu ativamente e entrou em contato com homens como os antigos provedores Sebastião Parvi de Brito, Jerônimo de Burgos e Diogo de Aragão Pereira; os escrivães passados André Cavalo de Carvalho e Jorge de Araújo de Góis e tendo como companheiro na Mesa da irmandade Paulo Antunes Freire. Quatro desses homens eram senhores de engenho, e juntos serviram 15 vezes como vereadores e juízes ordinários, inclusive durante o governo do próprio Conde: André e Jorge foram juízes em 1651 e Paulo vereador três anos depois. Como provedor, o governador autorizou empréstimos a vários cidadãos ilustres, como ao escrivão da Câmara Rui de Carvalho Pinheiro (600$), ao secretário de Estado Bernardo Vieira Ravasco (400$) e ao senhor de engenho Cosme de Sá

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AC, vol. III, pp. 61-3, 68-70 e 198-201; DH, vol. 3, p. 164. AHU, cód. 14, fl. 244v. 141 AC, vol. III, pp. 76-7; AHU, Bahia, LF, cx. 11, docs. 1390-1. 140

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Peixoto (400$), todos da mesma facção, como adiante se verá142. Se tudo isso não é garantia de boas relações com a elite local (tanto o jovem D. Vasco Mascarenhas quanto Diogo Luiz de Oliveira serviram como provedores, em 1629 e 1632-3, respectivamente), o contato constante com os mais prestigiosos homens da localidade na irmandade pode ter ajudado a sedimentar laços pessoais que contribuiriam para o bom relacionamento institucional. A Câmara aproveitou-se da boa disposição do governador para pedir em agosto de 1650 que a vintena fosse revogada, pois gravava desproporcionalmente os produtores, enquanto aliviava os homens de negócio – note-se que dos seis camaristas, quatro eram senhores e um lavrador. Desejava-se, assim, colocar todo o peso na imposição sobre o vinho, imposto indireto que, como dissemos, distribuía a carga entre toda a população, aliviando consideravelmente a açucarocracia. A importância da questão é visível no excepcional número de signatários da ata: 65, reunindo boa parte da elite baiana. Castelo Melhor convocou uma junta com os prelados das ordens religiosas, os provedores da fazenda e alfândega, a Câmara, os administradores da Companhia e mais interessados, mas seu intento estava claro desde o início: “aliviar em tudo a este povo que por tantas razões de sua liberalidade e zelo era tão digno de grandes favores”143. Os administradores da Companhia no Reino não concordaram com a mudança, e representaram sua insatisfação ao monarca, que procurou remediá-la, desautorizando o Senado e o governador-geral ao ordenar o retorno da vintena. O interessante é que quem reclamou mais veementemente foi Castelo Melhor, que chegou a dizer “se os administradores [da Companhia] hão de tirar à Câmara sua jurisdição, e autoridade, e à Fazenda Real os feitos, lhe parecia conveniente que se escusasse naquela cidade o exercício dos oficiais da Câmara e dos ministros da fazenda, e que (...) mandasse Vossa Majestade largar as rendas e imposições daquela praça aos administradores”. O poderoso apoio do governador permitiu aos camaristas manter o subsídio dos vinhos, mesmo que depois tenha sido necessário lançar uma finta para reunir 20.000 cruzados em falta para o sustento da infantaria144. Aqui, como na questão da cunhagem das moedas no final do mesmo ano de 1651 (capítulo VII), a aliança com o representante do monarca permitia à Câmara protestar sua obediência ao rei ao mesmo tempo em que adaptava as ordens do centro aos interesses locais. Castelo Melhor também não teve problemas em convencer os camaristas, “de cujo zelo confi[ava] todo o bom fim nesta matéria” a taxarem o azeite de baleia para a construção de

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ASCMS, Livro 1º de Acórdãos, fls. 12v-14 e 15v-18v. AC, vol. III, pp. 88-100 (citação à p. 96). 144 AHU, cód. 14, fls. 293v e 354-355 (citação); DH, vol. 65, p. 365; AC, vol. III, pp. 150-4, 156-66, 176-8 e 2667. 143

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quartéis (projeto frequentemente mencionado nos vinte anos anteriores, mas nunca realizado). O Senado decidiu que a cobrança seria de 80 réis em vez dos 160 sugeridos pelo governador, mas este não se incomodou: “me conformo com o parecer de vossas mercês e o povo, cujo bem e conservação é o meu principal fim nesse intento”145. Até quando havia discordâncias, como quando o governador exigiu que a Câmara usasse o último quartel dos 200.000 cruzados acordados com Antônio Teles da Silva para o sustento da infantaria e não para pagar os testamenteiros do bispo D. Pedro da Silva (cuja herança havia sido utilizada no governo anterior, obrigando-se a Câmara a restituir o montante devido por pressão do ex-governador Antônio Teles de Menezes), Castelo Melhor procurava chegar a um acordo, afirmando que a Fazenda Real assumiria a responsabilidade pela dívida146. O ápice do harmonioso relacionamento entre as elites locais e o representante do monarca foi atingido em julho de 1652, quando o Conde de Castelo Melhor, após reformar a infantaria para diminuir o número de oficiais e minimizar a carga que representava sobre os moradores, pede que a Câmara finalmente tome sobre si toda “a receita e despesa da ração ordinária da infantaria”, recebendo em troca pleno controle sobre a arrecadação e manuseio das avultadas somas anualmente despendidas para esse fim. Não seriam, portanto, mais obrigados a aceitarem dispêndios extraordinários ordenados pelo governador; o contingente de soldados não poderia aumentar, sendo congelado em torno das duas mil praças então existentes; o governador-geral ordenaria que os militares “nos tenham muito respeito” e castigaria a todos que ofendessem os camaristas; não haveria privilegiados isentos. A resposta do Conde de Castelo Melhor foi entusiástica: “acho-me tão obrigado ao ânimo com que vossas mercês se dispõem a fazer esse serviço a Sua Majestade” que afirmou amar “este povo”147. Alguns conflitos apareceram, mas eram menores148. O que o governo do Conde de Castelo Melhor demonstra é, em geral, o caráter benéfico da colaboração tanto para governadores quanto para camaristas: se o primeiro foi capaz de institucionalizar uma obrigação que a Câmara na prática já carregava, diminuindo as possibilidades de conflito, chantagem e discussão nas décadas seguintes, o poder local beneficiou-se do reconhecimento obtido junto ao representante da Coroa, que reconheceu a ela o direito de se intitular como “nobreza”, ajudando a legitimar seu estatuto social (capítulo IV), ao mesmo tempo em que concedia

145

AC, vol. III, pp. 101-7 (citações às pp. 102 e 106); DH, vol. 3, p. 174. AC, vol. III, pp. 114-5, 118-20, 125-7 e 134-6. 147 AC, vol. III, pp. 207-26 (citações às pp. 211, 218 e 220) e DH, vol. 3, pp. 173-80. 148 DH, vol. 3, pp. 184-7, 196-7 e, principalmente, 202-3. Veja-se também o entrevero com Bernardo Vieira Ravasco, que sentia-se desprestigiado pelo governador: DH, vol. 66, pp. 33-4, 40-1, 51-2 e 110; AHU, Bahia, LF, cx. 13, docs. 1546-8 e cód. 15, fl. 1; BPA, 50-V-36, fl. 299. 146

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irrestritamente à Câmara o controle sobre dezenas de milhares de cruzados. Ainda que o destino final desses recursos já estivesse determinado, o seu manejo deve ter trazido benefícios para os membros da elite local, como insinuam acusações anteriores e posteriores.

Conclusão As décadas analisadas demonstram o papel crucial dos governadores na negociação das contribuições dos vassalos americanos, muito mais importante nesse contexto do que a comunicação direta com o distante monarca. Tal fenômeno se deu em todo o ultramar ibérico, não só na tentativa de cumprir as demandas da monarquia, mas também para adaptá-las aos interesses das elites locais, obtendo o consentimento sem o qual nada se podia fazer149. Em certo sentido, porém, o debate era limitado na Bahia, pois nem a Câmara ousava pedir grandes mercês e nem o governador-geral possuía autoridade para concedê-las, distinguindo-se, portanto, da relação entre o cabildo da Cidade do México e o vice-rei da Nova Espanha, que assistiu a convolutas negociações entre 1620-50, pois os Habsburgo, como bem se sabe, estavam desesperadamente necessitados de recursos para defesa de seu império. A capital novohispana, exigiu, porém, concessões muito maiores do que poderiam ser imaginadas na América Portuguesa. No final das contas, pode-se dizer que Salvador saiu em vantagem, pois sua contraparte mexicana teve a maioria de seus pedidos negada pelo rei e ainda foi obrigada a renunciar em 1643 à administração direta do imenso donativo para criação de uma armada, em razão da falência municipal150, enquanto Salvador reforçou seu controle sobre os recursos arrecadados em 1652, com o acordo realizado com o Conde de Castelo Melhor. A relação entre representantes do rei e da República dependia em considerável grau do temperamento do governador, mas também das circunstâncias: os dois mais autoritários foram enviados para a América em conjunturas críticas – a restauração de Salvador e a mudança dinástica – momentos em que se fazia necessário organizar a defesa da capitania e, consequentemente, do Estado do Brasil. Ao mesmo tempo, algumas de suas atitudes só foram possíveis pelo controle de uma grande guarnição permanente, uma excepcionalidade no Novo Mundo e mesmo no Velho. Nesse sentido, a experiência política das principais municipalidades ultramarinas divergia consideravelmente de suas contrapartes europeias, devido a um contato muito mais intenso com a administração periférica da Coroa151. AMADORI, Arrigo. “No es menos servicio diferir que el ejecutar. El programa fiscal de Felipe IV para el Perú y la gestión del virrey Chinchón (1629-41)”. História, vol. 46, n. 1, 2013, pp. 7-37. 150 CAÑEQUE, The King’s living image, pp. 59-64 e PAZOS, El Ayuntamiento, pp. 231-7. 151 Mesmo no Porto, que possuía um Governador da Relação, a relação entre ele e a municipalidade era episódica: SILVA, Francisco Ribeiro da. O Porto e o seu termo (1580-1640): os homens, as instituições e o poder. Porto: 149

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Entretanto, se a infantaria reforçava a posição do governador, não permitia de maneira nenhuma que o representante real prescindisse do apoio local. No máximo, o protegia em algum grau das consequências do descontentamento local e o ajudava a impor sua vontade em momentos específicos152. Como já se escreveu a respeito de São Miguel, “o poder central necessita desses grupos dirigentes para alcançar os seus fins: são eles quem controlam a vida das populações e quem organiza, ao nível das comunidades, a arrecadação. Quem controla a avaliação dos bens dos moradores e as estruturas de cobrança, senão eles?”153. Entretanto, não devemos nos surpreender com o fato da Câmara ter contribuído com quase tudo que os governadores-gerais exigiram. O que já se escreveu sobre as Cortes de Castela na primeira metade do seiscentos bem se aplica às elites baianas: se elas eventualmente concederam ao rei a maior parte do que ele desejava, não foi mais do que o Parlamento deu a James I e Charles I. Significa apenas que elas não viam como sua função primordial negar dinheiro ao rei; que, considerando a situação militar da monarquia, não havia outra alternativa; que elas eram bem pagas por isso, e que foram capazes de bloquear propostas que consideravam prejudiciais aos [seus] melhores interesses154.

Os últimos anos do período demonstram que a colaboração tornava-se cada vez mais importante do que as ameaças a partir de meados da década de 1640 – desenvolvimento provavelmente ligado ao lento fortalecimento da elite local como um todo, mesmo na crise vivida entre 1638-48 (capítulos I, III e IV) e, em alguma medida, aos limites do poder dos próprios governadores, que não podiam por motivos práticos (inclusive a limitada disciplina de seus soldados) e ideológicos (pois o ideal a ser perseguido era um governo consensual) utilizar constantemente a infantaria para fazer valer suas decisões. Esta acabava por funcionar como um instrumento de dissuasão em última instância, cuja utilização devia ser limitada. Ao fim e

Arquivo Histórico/Câmara Municipal, 1988, vol. II, pp. 974-9. É possível que os governadores militares na Restauração exercessem papel análogo, mas sua atuação era mais circunscrita às questões militares, mesmo que interferissem na jurisdição municipal: HESPANHA, As Vésperas, p. 294; CARDIM, Pedro. “La Corona y las autoridades urbanas en el Portugal del Antiguo Regímen. Entre los Habsburgo y los Braganza” in: BRAVO LOZANO, J. (ed.). Espacios de poder. Cortes, Ciudades y villas. Madri: Limencop, 2002, p. 44; FONSECA, Teresa. “The Municipal Administration in Elvas During the Portuguese Restoration War (1640-1668)”. e-Journal of Portuguese History, vol. 6, n. 2, 2008, pp. 8-11 e COSTA, Fernando Dores. “Governadores de armas, mestres de campo e capitães-mores no Alentejo durante a Guerra de Restauração: inovações na administração e centros periféricos de poder” in: VILAS, Hermínia; CUNHA, Mafalda Soares da & FARRICA, Fátima (coords.). Centros periféricos de poder na Europa do Sul (séculos XIII-XVIII). Lisboa: Colibri, 2013, pp. 200, 207 e 215-6. 152 Sobre a relação entre violência e negociação, veja-se VALLADARES, Rafael. A conquista de Lisboa: violência militar e comunidade política em Portugal, 1578-1583 (trad.). Lisboa: Texto, 2010 [2008] e RUIZ IBAÑEZ, José Javier & SABATINI, Gaetano. “Monarchy as conquest: violence, social opportunity, and political stability in the establishment of the Hispanic Monarchy” (trad.). The Journal of Modern History, vol. 81, n. 3, 2009, pp. 501-36. 153 RODRIGUES, Poder municipal, p. 120, após analisar uma dinâmica bastante similar à baiana, em razão da presença de um governador em São Miguel. 154 THOMPSON, Irving. “Castille” in: MILLER, John (ed.). Absolutism in seventeenth-century Europe. Londres: Macmillan, 1990, pp. 81-2.

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ao cabo, “na concepção holística da monarquia, qualquer divisão enfraquece o todo; somente a concórdia e a união entre todos os corpos do reino sustentavam sua estabilidade”155. O aspecto decisivo para o aumento da importância política da Câmara foi o fato de que o grosso do esforço fiscal passou a ser suportado pelos moradores: se alguns reclamavam do descaso filipino frente às conquistas portuguesas, foi a dinastia bragantina que largou sobre os vassalos a obrigação de financiar sua própria defesa, pois a prioridade central passava a ser a guerra na Europa contra o inimigo castelhano. A “suavidade”, recomendação recorrente na ordenação fiscal desde inícios do século, torna-se ainda mais importante nesse contexto156. Entretanto, como o objetivo no Brasil, diferentemente da monarquia hispânica, não era o envio de recursos para a Europa (já que a Coroa se beneficiava da riqueza americana principalmente através da tributação do açúcar nas alfândegas), mas sim sua utilização na própria localidade, o aumento da carga fiscal pôde basear-se na ampliação do poder municipal e, consequentemente, do grupo que a dominava, pois somente esses possuíam autoridade e legitimidade suficientes para arrecadar os recursos. Na América como na Europa, “a teia de relações interpessoais condicionava os resultados das diligências administrativas”, e por isso a responsabilidade pela apuração e arrecadação devia caber aos poderes locais157. Se em ambos os lados do Atlântico “os impostos e as forças militares foram os temas que motivaram um contato mais intenso entre o poder central e o poder local”, o Brasil distinguiu-se de Portugal, onde a inovação fiscal das décimas ficou sob responsabilidade da Coroa após o acordo com o Reino nas Cortes (ainda que os municípios e suas elites fossem os principais executores). O aumento na tributação na Bahia se deu de forma caótica, variando de ano a ano através dos acordos com os governadores para uma busca em cada conjuntura por meios que fossem menos prejudiciais à elite baiana, que manteve o controle sobre as novas formas de arrecadação. A guerra sempre gerava transformações, mas essas se deram quase inteiramente a nível local na América, embora também aqui essas inovações tenham estabelecido precedentes fundamentais que resistiram até a centúria seguinte158.

GANTELET, L’absolutisme au miroir de la guerre, p. 74. Apesar do maior peso do exército e da administração periférica da Coroa em Metz, a figura do governador (instituído quase simultaneamente ao governador-geral na América) e sua relação com o poder local oferece muitos paralelos com o caso baiano, inclusive o papel fundamental do poder local no financiamento da defesa entre 1630-60, com a consequente ampliação de sua autoridade e possibilidade de ganhos financeiros (pp. 201-32). 156 LENK, Guerra e pacto, pp. 275-98 e 405-10; MELLO, Olinda restaurada, pp. 159-69. 157 CUNHA, Mafalda Soares da & MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Velhas formas: a casa e a comunidade na mobilização política” in: MONTEIRO, Nuno (coord.) & MATTOSO, José (dir.). História da Vida Privada em Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2011, vol. II: A Idade Moderna, p. 406. 158 CARDIM, “La Corona y las autoridades urbanas”, p. 29 (citação); MAGALHÃES, “Dinheiro para a guerra”, pp. 157-82; COSTA, Leonor Freire. “Fiscal innovations in Early Modern States: which war did really matter in the Portuguese case?” Lisboa: GHES, 2009, documento de trabalho n. 40. 155

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Assim, ao aceitarem uma carga fiscal consideravelmente mais elevada da que haviam conhecido antes de 1625, os homens da governança baianos assumiram um papel cada vez mais central no império (visível pela permissão de enviar procurador para as Cortes, em 1653). Seu processo de transformação em nobreza justificava e potencializava esses desenvolvimentos, pois, quanto mais respeitado o Senado, mais prestigioso se tornava o grupo composto por aqueles que exerciam o mando nessa República (capítulo IV). A nobreza em formação reforçava sua posição cimeira na capitania através do prestígio obtido junto à Coroa graças a um peso, na prática, compartilhado pela população da capitania. “Assim, o ‘povo’ custeou os privilégios de cidadania da nobreza”159. Dentro de uma ideologia em que a elite representava a “cabeça da República” e a desigualdade era naturalizada, a distribuição díspar de fardos e benesses fazia-se plenamente justificada – ao menos aos olhos da elite, cuja concepção de bem comum incluía acima de tudo seu próprio grupo. Assim, a participação da elite americana na defesa ampliou seu poder principalmente em termos coletivos e institucionais, e não só individualmente, como ocorrera nos vice-reinados hispano-americanos, onde mecanismos como a venda de ofícios e a prorrogação da posse de encomiendas “lhes permitiram acrescentar sua participação no exercício do poder e acentuar a necessidade de a Coroa contar com sua colaboração para obter recursos, remessas elevadas [para a Europa] e governar o vice-reinado”160. Dessa maneira, a Câmara alcançara um maior poder de barganha, tornando-se a aliada fundamental do governador na tarefa de garantir o domínio português sobre o Estado do Brasil. O poder local não estava limitando a atuação da Fazenda Real ou privando-a de recursos161, mas ampliando seu alcance, pois somente através dos “donativos”, em razão de seu caráter teoricamente voluntário, era possível reunir uma parte significativa do excedente social e direcioná-la para a defesa da capitania. A direção dos governadores provou-se central, especialmente nas décadas entre 1625-45, mas o acordo com o Conde de Castelo Melhor em 1652 representou o reconhecimento final de que a nobreza baiana podia administrar elevadas quantias, mesmo que estas fossem, em princípio, pertencentes à Fazenda Real. Formalizava-se, assim, o papel crucial das elites baianas na defesa do Estado do Brasil, com a consequentemente elevação dos homens da governança a uma nobreza crescentemente coesa e influente.

FRAGOSO, João. “Fidalgos da terra e o Atlântico sul. Rio de Janeiro na primeira metade do século 17” in: SCHWARTZ, Stuart & MYRUP, Erik (orgs.). O Brasil no império marítimo português (trad.). Bauru: EDUSC, 2009, p. 101; veja-se também pp. 96 e 105. 160 AMADORI, Arrigo. Política americana y dinâmicas de poder durante el valimento de Olivares (1621-1643). Tese de Doutorado. Madrid: Universidade Complutense, 2011, pp. 325-443, citação à p. 437. Na América Espanhola, os comerciantes também exerceram um papel muito mais importante no financiamento da defesa, em razão do maior desenvolvimento desse grupo e da liquidez gerada pela mineração. 161 FIGUEIREDO, Revoltas, fiscalidade e identidade colonial, pp. 479-83. 159

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Capítulo VI Pela Quietação dos Povos: elites e governadores em busca do consenso (1654-94) Estando ele dito Conde Vice-Rei governando este estado com a moderação e justiça que convinha ao serviço de Vossa Majestade e bem de seus vassalos, evitando por todas as vias com seu procedimento as queixas que do contrário costumam resultar, procurando com todo o desvelo manter em paz e quietação aos moradores que é o fim de um acertado governo. D. Vasco Mascarenhas, 1º Conde de Óbidos e 2º Vice-Rei do Brasil, 16651.

Este é o estado em que se vive, cada três anos com novo senhor, e a maior fortuna dos que lhe procuram ganhar a vontade é conservar-se nela até o fim, o que sucede a poucos. E, contudo, me diz vossa mercê que fiz muito bem em me vir para o Brasil. Padre Antônio Vieira, Carta a Diogo Marchão Temudo, 1º de julho de 1687.

Sob a Sombra da Guerra (1654-70) Os conflitos podiam ter acabado na América, mas ainda era necessário sustentar os 2.000 soldados que permaneciam em Salvador – número que baixaria para cerca de 1.500 no final da década de 16502, ficando em torno de mil nos decênios seguintes. Em razão do perene temor de invasões, potencializado pela continuidade da difícil negociação de paz com os neerlandeses (só finalizada em 1669), Salvador continuaria a manter a maior guarnição permanente da América. Em acréscimo, a continuidade do enfrentamento com Castela – o qual, em 1657, adentraria em sua fase mais crítica –condicionava as ações da monarquia portuguesa. Assim, em junho de 1654, enquanto esperava a chegada de mais vinhos que pagariam a imposição, a Câmara decidiu lançar um “empréstimo” sobre a população para obter os 6.000 cruzados que faltavam para completar os 40.000 comumente arrecadados pela extinta vintena. A desigualdade na distribuição era evidente: 20$000 para os senhores de engenho “de maior rendimento” e 10$000 “os de menos (...) e a esse respeito os lavradores e moradores”, mais uma vez poupando os proprietários de moendas de contribuir proporcionalmente a sua capacidade3. O mais interessante, porém, é que não havia mais necessidade de interagir com o 1

AHU, Bahia, cx. 19, doc. 2144. LENK, Wolfgang. Guerra e Pacto Colonial: a Bahia contra o Brasil Holandês (1624-1654). São Paulo: Alameda, 2013, p. 149. 3 AC, vol. III, pp. 266-7. 2

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governador na resolução desta temática, porque o acordo de 1652 com o Conde de Castelo Melhor permitia à Câmara grande autonomia, desde que garantisse o sustento da infantaria. O representante do rei na América, porém, continuava a ser o principal interlocutor das elites baianas. Assim, pouco após à chegada do Conde de Atouguia (outro dos aclamadores de 1640) em Salvador, os camaristas escreveram ao monarca em 14 de fevereiro de 1654, agradecendo-lhe por lhes “mandar governador tão autorizado, cristão e zeloso do serviço de Vossa Majestade e do bem e aumento deste Estado. Asseguramo-nos de que em seu tempo teremos grandíssimas felicidades porque assim o mostram seus princípios”4. Procuravam, assim, manter as boas relações estabelecidas nos anos anteriores – com sucesso, como veremos. Com a expulsão dos neerlandeses, intensificam-se os conflitos com o gentio e a ocupação do sertão. Combater “bárbaros”, porém, também custava dinheiro, ainda que menos do que guerrear contra hereges. Assim, é novamente a municipalidade a financiar o esforço bélico, em resposta a uma petição dos moradores de duas freguesias frequentemente atacadas pelos indígenas, Jaguaripe (capítulo II) e Peroaçu. O governador-geral exerce um papel central na coordenação da expedição, mas “se conform[a] com tudo o que” o Senado resolveu quanto aos meios de financiá-la5. Em novembro de 1654 também foi necessário obter autorização do Conde de Atouguia para autorizar por um ano a venda de cachaça e taxá-la, de modo a suprir o dinheiro que faltava para o sustento da infantaria, pelos poucos vinhos que haviam chegado na capitania 6. Aqui, como em outras questões em que se julgava recomendável recorrer à autoridade do governadorgeral “para que este assento tenha força e vigor e fique valendo como lei inviolável”, as elites locais e o representante do monarca estavam em acordo7. No mesmo sentido, tanto em março de 1655 quanto em maio de 1656 a Câmara e o governador-geral colaboraram para aprestar uma pequena armada guarda-costas para defender o porto de Salvador contra corsários neerlandeses, protegendo o comércio e a produção açucareira. O Conde também permitiu, contra as ordens régias, que os moradores pudessem carregar alguns navios pequenos para mandar açúcares ao Reino, após uma longa petição do Senado8.

4

CS, vol. I, p. 47. Veja-se também AHU, cód. 15, fl. 98. DH, vol. 3, pp. 223-4, 229-30 (citação), 247-8 e 254-5; AC, vol. III, pp. 271-4. Veja-se também o excelente artigo de MARQUES, Guida. “Do índio gentio ao gentio bárbaro: usos e deslizes da guerra justa na Bahia seiscentista”. Revista de História (USP), vol. 171, 2014, pp. 15-48, mais preocupado com as motivações políticas da elite do que o detalhado trabalho de PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: HUCITEC/EDUSP, 2002. 6 AC, vol. III, pp. 275-8. Veja-se também pp. 286-8 e 325-7, assim como DH, vol. 3, pp. 344-5. 7 Veja-se AC, vol. III, pp. 301-4 (citação à p. 303) e 310-9, dentre outros. 8 AC, vol. III, pp. 288-90 e 320-2 (veja-se também 328-30); AHU, Bahia, Avulsos, cx. 1, doc. 102. 5

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Atouguia, por sua vez, acostumou-se a consultar a Câmara sobre diversas questões, desde um pedido de patente sobre um invento que possibilitava aos engenhos moerem com menos lenha ao pagamento do soldo dos sargentos-mores Ascenso da Silva e Antônio Pereira, “porque o socorro da infantaria corre por conta de vossas mercês, me pareceu não lhes deferir sem vossas mercês me darem seu parecer sobre esta matéria”9. Em questões mais importantes, como uma tentativa de abertura do comércio com o Rio da Prata, não só a Câmara (que deveria “ouvir também o voto da nobreza, homens de negócios e povo desta cidade”) mas também a Relação, os oficiais da fazenda, os prelados das ordens religiosas e o cabido eram consultados10. Há facetas da relação entre os governadores e as elites baianas, porém, que não podem ser capturadas através da troca de correspondências. Os laços pessoais certamente exerciam um papel determinante, mas são de difícil percepção, já que raramente aparecem explícitos na documentação. Momentos de conflito, por mais breves que sejam, nos oferecem importantes relances sobre essas relações, geralmente submersas no protocolar epistolário oficial. Atentemos, então, para um papel anônimo de 10 de janeiro de 1651, que pôde tratar do que geralmente se calava. O libelo afirma que “este miserável e afligido povo está aflito pelo mau governo que estamos sustentando a infantaria com fintas e mais fintas, e porque os governadores se aproveitem do que lhe hão de mandar e do que nos tiram tiranicamente”. Sua redação confusa sugere que tenha sido produzido por alguém não muito familiarizado com as convenções da escrita oficial seiscentista, dando certa credibilidade à defesa dos “mais pobres” que perpassa o texto. Aponta-se como “cabeça” dos assaltantes do bem comum “Rui de Carvalho Pinheiro, escrivão da Câmara que vai pelas pisadas de seu pai, ladrões da imposição grande” dos vinhos. Abra-se um parêntese: o sargento-mor Rui de Carvalho Pinheiro herdou o cargo alcançado em 1587 pelo seu avô, como recompensa por sua participação na malfadada expedição marroquina de D. Sebastião, de modo que a memória administrativa do Senado se manteve por quase 100 anos na mesma família, até a morte sem descendentes de Rui em 1673. Juntamente com seus cunhados, Bernardo Vieira Ravasco (irmão do Padre Vieira e secretário do Estado do Brasil) e Simão Álvares de la Penha (letrado pernambucano que à época da denúncia ocupava o posto de provedor-mor da fazenda), prendiam adversários, soltavam aliados, assentavam praça de soldados a desafetos, fraudavam o contrato dos dízimos e das baleias e não pagavam o que deviam à Fazenda Real. Outro cunhado de Rui de Carvalho

9

DH, vol. 3, pp. 320-1. AC, vol. III, pp. 330-2 e DH, vol. 3, pp. 354-6 (citação).

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Pinheiro era o letrado João de Góis de Araújo (capítulo III), que passou a servir como síndico (isto é, advogado) da municipalidade desde 1653, fortalecendo o poder dessa camarilha11. As denúncias foram corroboradas por Antônio da Fonseca (possivelmente o próprio autor delas), que se apresentou em Lisboa em 1652 como “procurador do povo” de Salvador após ter servido como juiz do povo no ano anterior. Em resposta, a Coroa incumbiu em finais do mesmo ano o desembargador da recém-reconstituída Relação, Luiz Salema de Carvalho, de investigar as contas do Senado, e ainda proibiu que se pagasse qualquer remuneração aos responsáveis pela arrecadação dos donativos12. No Reino, pelo menos desde 1649, já se buscava examinar os livros de contas das Câmaras referentes às décimas, e em 1651 se desejava que letrados supervisionassem a arrecadação, de modo que essa resolução não parece excepcional13. A averiguação só começou em 1654, já sob o governo de Atouguia. O sindicante encontrou diversas dificuldades, mas percebeu imediatamente que os recursos eram frequentemente alocados em destinos distintos do que havia sido planejado originalmente: a imposição sobre o azeite de baleia para construção dos quartéis, por exemplo, serviu tanto para pagar os soldos atrasados dos soldados quanto para obras de fortificação. Os desvios eram mais graves na cobrança sobre as vintenas: “os pobres se queixam, vendo que os ricos, uns pagam pouco, e outros nada, com que se acomodaram alguns dos poderosos a também não darem, enriquecendo muitos dos que entraram nas vintenas, a título de ajudas de custo e ordenados”, que chegaram a representar em um ano 1.315$772 (mais de 5.000 cruzados, 13% da arrecadação estimada desse donativo). Os “cobradores das freguesias (que são os poderosos)” – geralmente os capitães de ordenança de cada freguesia – exigiam dos contribuintes mais do que o devido, embolsando a diferença. Assim, mesmo quando a tributação era direta e distribuída de forma teoricamente mais equitativa, a desigualdade era reforçada pelos diferenciais de poder, e parte considerável da arrecadação era distribuída para as elites locais, efetivamente comprando sua aquiescência. Assim, não só o “amor e a lealdade” ao monarca, ou ainda o objetivo compartilhado de defender sua terra, estimulavam a elite baiana a aceitar as demandas dos governadores por mais e mais recursos, mas também as inconfessáveis perspectivas de ganho monetário imediato – além do poder de forçar seus inimigos a pagarem 11

. AHU, Bahia, LF, cx. 13, doc. 1610 e cx. 16, doc. 1874. Sobre Rui de Carvalho Pinheiro, cf. IAN/TT, Chancelaria de Felipe I, Livro 12, fl. 306v, L. 23, fls. 282v-283 e L. 28, fls. 40-40v; Chancelaria de Felipe II, L. 35, fls. 135-136; Chancelaria de D. João IV, L. 13, fl. 377, L. 15, fl. 275 e L. 20, fls. 271-271v; IAN/TT, HOC, L. R, mç. 1, n. 86 e COC, L. 41, fls. 155-156; sobre João de Góis de Araújo como síndico, AC, vol. III, p. 233. 12 Para a presença de Antônio da Fonseca nas vereações, veja-se AC, vol. III, pp. 121, 134, 143, 151, 153, 174, 176 e 178; suas representações na Corte em IAN/TT, Manuscritos da Livraria, Assumptos do Brasil, L. 1116, 1758. A carta régia está em AHMS, PR, vol. II, fls. 33-33v. 13 MAGALHÃES, Joaquim Romero. “Dinheiro para a guerra: as décimas da Restauração”. Hispania, vol. 64/1, n. 216, 2004, pp. 170 e 180.

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mais do que lhes era devido ou permitir que os aliados se safassem por menos. O desaparecimento da documentação fiscal produzida pela municipalidade torna difícil observar o funcionamento dessa dinâmica, mas nem o denunciante anônimo nem o desembargador pareciam ter dúvidas quanto à profunda desigualdade inerente à tributação camarária. Os poderosos também se distinguiam entre si, e “entre todos se avantajou muito o escrivão da Câmara Rui de Carvalho Pinheiro (...) que a governa, e faz nela o que quer, o qual como sente muito as ditas contas pelo que se entende deve nelas, faz fazer todas as diligências porque se não concluam nem averiguem os descaminhos”. O desembargador reafirma, portanto, as acusações contidas no papel anônimo que deu origem à investigação, inclusive no tocante à participação dos cunhados de Carvalho Pinheiro e o conluio nos dízimos, o “que mais e melhor constaria e se descobriria se Vossa Majestade se servira de mandar sair daquela cidade aos sobreditos e a seu cunhado Bernardo Vieira Ravasco para distância apartada, pelo muito que naquele povo são temidos, por seu poder e riquezas, causa porque se cala muito do que convém se descubra, e pelas vinganças que continuamente executam”14. A prudência de Atouguia se contrapôs à sanha persecutória do desembargador, como se vê em carta ao monarca de 2 de julho de 1655: “não foram seus erros fundados em malícia ou ambição (...) resolve[ndo] que por ser esta culpa tão geral, se não apertasse por hora com vassalos que com tanto zelo e lealdade haviam servido a Vossa Majestade em todas as ocasiões”. O Conde defendia, portanto, que não se devia fazer caso dos eventuais desvios, pois os serviços passados e presentes mais do que os compensavam. Procurava, assim, evitar um conflito que pudesse perturbar o consenso estabelecido. O Conselho Ultramarino, porém, deu razão ao desembargador e pediu a continuidade da investigação, parecer com o qual rei concordou, exarando carta régia nesse sentido15. A insistência de Salema de Carvalho incomodou o governador, que respondeu ao sindicante, segundo conta este em carta de 9 de setembro de 1656, “que por nenhum caso que fosse os [aos investigados] havia de deitar da terra”, isto é, exilá-los de Salvador. Mesmo assim, o desembargador conseguiu testemunhas que comprovariam que Rui de Carvalho Pinheiro usaria seu cargo de escrivão para adulterar os livros da Câmara e esconder seus malfeitos, contando para isso com o auxílio de seu primo Manuel Ribeiro de Carvalho e do senhor de engenho e juiz ordinário Cosme de Sá Peixoto, que pressionaram um livreiro preso por dívidas, Gaspar Carvalho, a falsificar os livros de contas dos donativos.

14 15

AHU, Bahia, LF, cx. 13, doc. 1610. AUC, CCA, Livro Governo da Baía, 1654-93, VI-III-1-1-7, fls. 4v-5 (citação); DH, vol. 66, pp. 92-4.

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Mais interessante ainda é o laço que Salema de Carvalho aponta entre o governador e essa facção: Frei Diogo “primo de Rui de Carvalho Pinheiro é confessor do governador e com ele veio do Reino, e todos são os validos e usam eles muitos o poder grande por sua parte o que Vossa Majestade foi servido de dar” a Atouguia. Segundo esse relato, o Conde ajudava os acusados a intimidar as testemunhas e o próprio sindicante foi repreendido pelo governador, durante uma missa, por estar sentado enquanto Atouguia ouvia a pregação de joelhos. Salema de Carvalho, afrontado, respondeu ser velho, doente e cavaleiro da Ordem de Cristo, mas mesmo assim “me foi forçado vir-me para casa por não me expor” à humilhação16. A boa opinião de Atouguia sobre um dos membros da facção, Bernardo Vieira Ravasco, pode ser atestada por uma certidão apresentada anos depois pelo secretário – a qual se somava a testemunhos favoráveis de Teles da Silva e do Conde de Vila Pouca de Aguiar, demonstrando o quanto os governadores se apoiavam em seu secretário pelas “grandes notícias das coisas que tocavam ao governo e conhecimento dos homens que vivem por estas capitanias, o que é grande efeito para o governo dele”, como destacou Vila Pouca17. A memória administrativa e o conhecimento sobre os poderosos locais com os quais um governador teria de lidar tornavam o conselho de Vieira Ravasco indispensável para os representantes do monarca recém-chegados. Esse caso é especialmente interessante por demonstrar tanto o poder de uma facção capaz não só de interferir na cobrança dos donativos, o que implicava influência e lucros, graças às grandes somas envolvidas, mas também de cooptar o recém-chegado governador, o que oferecia considerável proteção ao bando. Entende-se melhor, assim, o entusiástico elogio dos camaristas ao governador e o pedido para que o Conde de Atouguia permanecesse por mais três anos na capitania: “foi seu governo o mais feliz que este Estado gozou porque sua limpeza foi singular e disposição grande, a cortesia e amor com que nos tratou de pai” 18. Desde a extensa certidão concedida a Diogo Botelho cinquenta anos antes, este foi o maior elogio que se fez a um governador-geral – provavelmente porque esse soubera se aliar a uma poderosa facção na capitania, que incluía o seu secretário de Estado, o escrivão da Câmara que subscreveu essa carta, e o mais poderoso juiz ordinário nesse ano, o supracitado Cosme de Sá Peixoto. Ravasco e Pinheiro, porém, enfrentariam dissabores nos anos seguintes, não só com a continuidade das investigações de Salema de Carvalho, mas também com outras denúncias. O 16

AHU, Bahia, LF, cx. 14, doc. 1651. AHU, Bahia, LF, cx. 14, doc. 1702. 18 AHU, Bahia, LF, cx. 14, doc. 1687. Veja-se também cód. 15, fl. 249. Sete décadas depois, Sebastião da Rocha Pita apresentava uma visão muito positiva desse governador em sua História, p. 343. No mesmo sentido, mas sem atentar pelos laços pessoais estabelecidos por Atouguia com as elites locais, veja-se VIANNA JÚNIOR, Wilmar. Modos de governar, modos de governo: o governo-geral do Estado do Brasil entre a conservação da conquista e a manutenção do negócio (1642-82). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: PPGH/UERJ, 2011, pp. 150-93. 17

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provedor-mor da fazenda Mateus Ferreira Vilasboas, por exemplo, aponta como um dos motivos para a incapacidade da Câmara em cumprir suas funções os muitos ofícios que tinha Carvalho Pinheiro, do que “há queixa grande no povo”, mas não se podia contestá-lo por suas ligações com o secretário de Estado. Mais interessante, Vilasboas nota que “como a Câmara por suas imposições sustenta a infantaria que presidia esta praça, e monta 90 mil cruzados cada ano, vai todo esse dinheiro a seu poder”, sendo administrado sem organização pelo tesoureiro nomeado pelo governador, o que abria um largo espaço para o desvio de recursos – para além dos problemas na distribuição das fintas, feita pelos capitães de ordenança “como lhes dita sua paixão e afeição, e assim é grande a desigualdade e contínuos clamores dos pobres e de muitos ricos”19. Esse tipo de denúncia se repetiria ao longo do século, sempre com a acusação de que o objetivo era beneficiar os ricos (ou, ao menos, alguns deles), sendo essa a razão de se haver abandonado a vintena, “pela igualdade com que por este caminho pagam todos”20. A influência do clã Ravasco, porém, manteve-se mesmo após a partida de Atouguia. Salema de Carvalho pediu ao novo governador, Francisco Barreto, que exilasse os acusados para poder continuar a investigação sem empecilhos. Barreto, porém, conhecia bem a dinâmica política do Brasil em razão de seu longo período como comandante da fase final da guerra contra os neerlandeses e, depois, governador de Pernambuco. Apesar de alguns entreveros com os mestres de campo João Fernandes Vieira, André Vidal de Negreiros, Henrique Dias e D. Diogo Pinheiro Camarão em 1649-50, o mestre de campo general do Estado do Brasil parece ter estabelecido relações amistosas com a elite local, depois de um início tumultuado. Além disso, como Antônio Teles da Silva, Francisco Barreto acumulou considerável fortuna através do comércio de açúcar e pau-brasil durante seus anos na América: chegando pobre, voltou para o Reino com cerca de 78 contos, e não devia querer que um desembargador intrometido gerasse ressentimentos que poderiam atrapalhar seus lucrativos negócios21. Assim, talvez até mais que seus antecessores, Barreto manteve relações amistosas com seu secretário. Pouco após chegar a Salvador escreveu uma carta ao capitão-mor do Espírito Santo sobre um barco de Ravasco; enviou uma carta ao Conselho Ultramarino em favor da pretensão do secretário do Estado do Brasil de ser isento das fintas e contribuições lançadas pela Câmara, pelas perdas que tinha por não poder assistir em seu engenho e, nos anos seguintes,

19

AHU, Bahia, LF, cx. 14, doc. 1699. Papel do engenheiro João Coutinho sobre a fortificação da Bahia, 30 de março de 1685, publicado em FONSECA, Luiza da. “Subsídios para a História da Cidade da Bahia” in: Anais do Primeiro Congresso de História da Bahia. Salvador: Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, 1955, vol. II, p. 420. 21 Cf. MELLO, José Antônio Gonsalves de (eds.) Testamento do General Francisco Barreto de Menezes. Recife: IPHAN/MEC, 1976, ainda a melhor introdução ao personagem. 20

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o defendeu de acusações, “porque Bernardo Vieira tem muito de obediente, e nada de poderoso como os credores dizem”22. Certamente esse apoio deve ter ajudado a contrabalançar as acusações de nosso já conhecido Lourenço de Brito Correia (capítulo III), agora servindo de provedor-mor. O sexagenário fidalgo uniu-se a Salema de Carvalho para acusar Ravasco de realizar gastos exagerados na secretaria (a ampliação tinha sido permitida pelo Conde de Castelo Melhor, que autorizara um aumento de mais de 300%) e receber emolumentos exagerados por registrar patentes militares (mais de 3 contos de réis entre 1642-58) e pela entrada de navios. Todo esse descalabro era possível por ser Vieira Ravasco “tão favorecido dos governadores” – exceto da junta provisória da qual Lourenço de Brito Correia havia feito parte em 1641-2, pois os três haviam retirado o então jovem Bernardo Vieira Ravasco da posição de secretário, que começara a ocupar informalmente sob o vice-rei Marquês de Montalvão23. Provavelmente aí estava a origem da inimizade entre Ravasco e Brito Correia. Mesmo com o acolhimento das denúncias, logo em seguida o irmão do padre Vieira recebeu a mercê de que pudesse ocupar o cargo de secretário de Estado vitaliciamente, além de um hábito de Cristo e da alcaidaria-mor do Cabo Frio. Na prática, “se entregava por prazo indeterminado o arquivo (memória) do Estado do Brasil e os processos do despacho nas mãos de um único indivíduo, nascido e enraizado na nobreza da terra, dificultando que os poderes superiores, que eram, claro, sempre transitórios, pudessem ali interferir. E essa era a alma do negócio”24. Assim, Barreto, se anuiu ao pedido de Salema de Carvalho para exilar os investigados, o fez “para partes pouco distantes e por pouco tempo”, de modo que logo o clã Ravasco conseguiu embargar a sindicância na Relação, pois o tribunal superior sempre julgava em favor da Câmara, segundo o sindicante. O governador também tomou o partido do Senado contra Salema de Carvalho25. Assim, após anos de esforço o desembargador só teve sucesso em prender (e apenas em casa) um membro secundário da camarilha Ravasco/Pinheiro, o castelhano Juan Paez Florián, hidalgo que chegou em Salvador como capitão na Jornada dos Vassalos e em menos de três

22

AHU, Bahia, LF, cx. 14, doc. 1702; DH, vol. 3, pp. 391-2 e vol. 4, pp. 379-80 (citação à p. 380). Para um detalhado exame dessa relação, veja-se MENDES, Caroline Garcia. A circulação e a escrita de cartas do governador-geral do Estado do Brasil Francisco Barreto (1657-1663). Dissertação de Mestrado. Campinas: PPGH/UNICAMP, 2013, pp. 89-119. 23 AHU, Bahia, LF, cx. 16, docs. 1808 e 1846. 24 PUNTONI, Pedro. “Bernardo Vieira Ravasco: poder e elites na Bahia do século XVII” [2004] in: id. O Estado do Brasil: poder e política na Bahia colonial (1548-1700). São Paulo: Alameda, 2013. Como notou o autor, o mesmo ano de 1663, porém, trouxe uma carta régia em que se procurava limitar os ganhos de Ravasco, a partir da denúncia de Brito Correia: DH, vol. 66, pp. 269-70. 25 AHU, Bahia, LF, cx. 15, docs. 1760, 1775 (citação) e 1787; DH, vol. 4, pp. 390-6. Salema de Carvalho havia criticado a refundação do tribunal superior, afirmando que “equivalia a ‘guardar ovelhas dos lobos por mandar mais lobos’. Era, em certo sentido, uma declaração profética”: SCHWARTZ, Burocracia e Sociedade, p. 109.

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meses casou-se com D. Brites de Almeida, da importante família Pimentel (capítulo III). Tornou-se, assim, “muito poderoso na cidade da Bahia, por sua riqueza, com que se não podiam fazer com ele, e menos executar os termos ordinários da justiça”. Havia sido preso durante o governo de Antônio Teles da Silva, mas a devassa misteriosamente desapareceu. Em seguida, foi investigado pelo Santo Ofício em 1651 por dizer que “a alma acabava com o corpo”; que no inferno (para onde diziam que ele iria) “tudo era o primeiro ano de noviciado de tormento, e passado ele ficavam sendo diabos como os santos”, de modo que não havia problema; que não assistia a “sermão por não ouvir gritar um barbado”; por ter amigos neerlandeses, sendo fluente em flamengo. Escapou também da Inquisição, confirmando a relativa invulnerabilidade da elite baiana da qual já tratamos (capítulo III), talvez porque os outros membros da elite que depuseram, como Diogo de Aragão Pereira, Lourenço Carneiro de Araújo e Belchior Barreto de Teves, alegassem que Paez Florián falava “galhofando”, em “galanterias”. Contra as acusações de Salema de Carvalho de que o castelhano era um inconfidente que falara mal de D. João IV, dizendo que “El-Rei de Castela o lançaria fora pelas orelhas”26, Francisco Barreto reproduz o discurso dos amigos de Paez Florián, dizendo ser este sujeito de qualidade, discreto e engraçadíssimo, muito velho, desprezador de autoridade com que poderia conservar sua fazenda, que é considerável. Foi sempre estimado por todos por sua pessoa e conversação e dos generais que foram deste Estado. (...) E como no modo e no juízo é naturalmente jocoso e agudo, em qualquer parte folgavam os mais e menos entendidos de o ouvir. Por não perder um bom dito não reparava talvez em dizer uma heresia, que nem nele passavam da superfície, nem nos que ouviam a escândalo27.

Ao final das contas, o desembargador não pôde contra tantas resistências locais e, apesar do apoio do Conselho Ultramarino, foi considerado suspeito e teve de abandonar a investigação. Antes, porém, acumulou uma imensa quantidade de informações, que enviou em uma arca para Lisboa, contendo cadernos, papéis e róis que detalhavam a cobrança das fintas e listavam todos os engenhos da capitania28. O próprio controle dessa informação era, na prática, monopólio do poder local, pois a administração periférica da Coroa não possuía pessoal suficiente para recolher e administrar tantos dados. A ampliação do peso da fiscalidade não se baseou, portanto,

26

AHU, Bahia, LF, cx. 16, doc. 1877 (primeira e última citações) e IAN/TT, Cadernos do Promotor 33, fls. 437454v (restantes); CG, vol. I, pp. 406-8; VALENCIA, Juan de. “Relación sobre la jornada al Brasil” in: MIRAFLORES, Marquês de & SALVA, Miguel (eds.). Colección de Documentos Inéditos para la História de España. Madri: Viuda de Calero, 1870, vol. 55, pp. 88 e 113. O último membro da facção, Cosme de Sá Peixoto, deve ter pensado no amigo preso quando decidiu retirar-se da vida pública: AHU, Bahia, LF, cx. 16, doc. 1831. 27 DH, vol. 4, p. 334. Veja-se também GARCIA, A circulação, pp. 177-80. 28 AHU, Bahia, LF, cx. 15, doc. 1874.

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em uma especialização “burocrática”, mas simplesmente no recurso mais intenso ao “saber local” monopolizado pela nobreza baiana29. Coaduna-se com sua política de boa vizinhança com a elite local a atitude de Francisco Barreto, que apenas um dia após tomar posse escreveu à Câmara, dizendo-lhes que “me pareceu devia ser a minha primeira ação chamar a vossas mercês” para introduzir mais uma taxa sobre os açúcares para compensar a Companhia-Geral de Comércio pela perda do monopólio sobre quatro gêneros30. No seu relato ao monarca, contou que “chamando em particular a cada um de seus oficiais os persuadi”31. Pouco depois, “agrade[ceu] muito” aos camaristas seu zelo no sustento da infantaria, confiando neles para “que esta matéria se conduza com tal acerto e suavidade”, deixando “o povo sem queixa”32. O governador-geral aprovou os eleitos para definir a cobrança (que incluíam os destacados pró-homens Diogo de Aragão Pereira como senhor de engenho, Jorge de Araújo de Góis como cidadão e Pedro Marinho Soutomaior como homem de negócio), decisão “que me pareceu tão acertada como o são todas as ações da Câmara”33. Sua admiração pelo Senado soteropolitano era tal que após apenas três dias em Salvador enviou carta à Câmara de Olinda, ordenando que seguisse em tudo o exemplo de sua contraparte baiana34. Entende-se, assim, a carta do Senado ao monarca elogiando-o governador “por sua limpeza [honestidade], grande amor e cortesia com que nos trata”35. Como outros governadores anteriores, porém, Barreto colocou uma criatura sua como tesoureiro dos donativos, o cristão-novo Manuel Vaz de Gusmão36, contando com sua distância da elite local e tino comercial. Francisco Barreto discordou da Câmara na nomeação de oficiais da ordenança, afirmando que os escolhidos pelo Senado não possuíam as qualidades necessárias. Nomeou, então, um Albuquerque e um Muniz como capitães, dotados de qualidade suficiente “para que se animem os soldados a segui-los e obedecê-los” – confiando, portanto, no poder e prestígio de duas tradicionais famílias nobres da capitania (capítulo III), talvez adversárias das facções representadas na Câmara nesse ano. Essa atitude, porém, não significava mais que um reconhecimento e reforço das hierarquias costumeiras em construção na capitania, com o objetivo de evitar desequilíbrios e insatisfações. O governador também 29

Para um contraste, veja-se as transformações na Inglaterra seiscentista analisadas por BRADDICK, Michael. State Formation in Early Modern England, c. 1550-1700. Cambridge: Cambridge UP, 2000, pp. 177-285. 30 DH, vol. 86, pp. 133-4. 31 DH, vol. 4, pp. 309-10. 32 DH, vol. 86, pp. 134-5. 33 DH, vol. 86, pp. 136-7 (citação), AC, vol. III, pp. 353-5 e AHMS, PGS, 1649-77, fls. 128-128v. 34 DH, vol. 5, pp. 264-7; MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715. São Paulo: 34, 2003 [1995], 2ª ed., p. 80. 35 CS, vol. I, p. 60. 36 DH, vol. 86, p. 135 e vol. 7, pp. 65-6; NOVINSKY, Anita (ed.). (ed.). Gabinete de Investigação: uma “caça aos judeus” sem precedentes. São Paulo: Humanitas, 2007, p. 43 (denunciado em 1646).

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exigiu que o Senado pagasse uma gratificação aos ajudantes supranumerários dos terços de infantaria, não aceitando reclamações37. Entretanto, como o conflito com os indígenas continuaria nas décadas seguintes, o governador-geral continuava obrigado a requisitar recursos consideráveis à Câmara para a organização das expedições durante todo o seu governo38 – concedidos pelo Senado por sua importância para a defesa do sistema produtivo da capitania, e até das vidas de muitos de seus habitantes. A “guerra dos bárbaros” reproduziria, assim, a dinâmica construída durante os conflitos com os neerlandeses, mas numa escala reduzida que não provocava tensões adicionais, sendo incorporada por uma Câmara já acostumada com os elevados dispêndios necessários para sustentar a infantaria em Salvador. A eterna penúria da Fazenda Real fazia com que qualquer emergência tivesse que ser respondida através da mobilização da municipalidade, já que, repitase, só essa podia levantar recursos adicionais, através de uma tributação supostamente consentida pelo “povo”. Foi o que se viu também na defesa do porto em Salvador entre 165862, quando os camaristas, a nobreza e os homens de negócio entraram em acordo, cabendo a Francisco Barreto apenas aprovar a resolução – assim como nas discussões sobre como se arrecadar o que faltava para o sustento da infantaria39. Essa colaboração podia ser percebida também quando o governador escreve ao monarca, concordando com a petição do Senado para que este pudesse gastar 1.000 cruzados da imposição dos vinhos em obras da cidade, ou quando avisa que suspendia a introdução do ofício de juiz do peso até que se deliberasse sobre a posição contrária da municipalidade 40. Da mesma maneira, Barreto responde aos camaristas sentir “grande pesar por lhes não poder aliviar de sua opressão como quisera”, autorizando ao menos que a Fazenda Real emprestasse 715$ em caráter emergencial ao Senado para o sustento da infantaria, em razão da falta de vinhos 41. Até ordens do governador para a Câmara, como mais uma tentativa de extinção da comercialização de cachaça, muitas vezes tinham sua origem em pedidos dos próprios vassalos42. Após receber a portaria de Francisco Barreto, a Câmara chamou o povo para decidir que ainda não se instituiriam novos donativos, na esperança de que o aumento do número de 37

DH, vol. 86, pp. 137-8 (citação); DH, vol. 86, pp. 142. DH, vol. 86, pp. 138-43 e vol. 20, p. 24; AC, vol. III, pp. 368-72; vol. IV, pp. 10-1 e 91-3; AHMS, PGS, 164977, fls. 113-113v e 129v-130; 1660-77, fls. 11v-12v, 27v-30 e 32-32v. 39 AC, vol. III, pp. 378-4, 397-400 e 403-6; vol. IV, pp. 63-5 e 101-5; AHMS, PGS, 1649-77, fls. 130v e 132-133; 1660-77, fls. 32v-34; PS, 1651-64, fls. 56v-58. 40 DH, vol. 4, pp. 343-5 e 356; vol. 66, pp. 141-5. 41 AHMS, PGS, 1660-77, fls. 18v-19v e DH, vol. 86, pp. 148-9. 42 AHU, Bahia, LF, cx. 15, doc. 1740. Processo similar ocorre em finais de 1660, quando o governador ordena a ampliação da cadeia e açougue em razão de representações que lhe foram feitas, e justifica a importância de reformar as casas da Câmara como “bem público, benefício desta cidade e autoridade da mesma Câmara”: AHMS, PGS, 1660-77, fls. 24-25v e 26-27; AC, vol. IV, pp. 48-53 (citação à p. 51). 38

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vinhos com a nova proibição da aguardente fosse o suficiente para pagar a infantaria. Insatisfeito, o mestre de campo general do Estado do Brasil escreveu imediatamente ao Senado: “quem como vossas mercês servem a Deus e a Sua Majestade com o zelo com que eu conheço e é notório não necessita de chamar o povo e demitir de si da jurisdição (...) pois a cobrança de impostos pertence só a vossas mercês”. Afirmou, ainda, que a arrecadação dos donativos seria maior através do seu arrendamento, e deu o exemplo da Coroa de Portugal, que teria feito isso com todos seus rendimentos para evitar os descaminhos. Para convencê-los, trata sempre os camaristas “como tão zelosos no serviço” real, gastando dois fólios entre elogios e justificativas para uma ordem que 20 ou até 10 anos antes poderia ter sido dada de forma seca com a certeza da obediência43. Assim, “lida [na Câmara] a carta do dito Senhor, e as razões que a movem” os camaristas “se conformavam com a resolução do Senhor governador” e lhe pediram que assinasse “para mais firmeza deste assento e resolução”44. Já em fevereiro de 1660, quando a municipalidade consulta o governador sobre um acerto com os homens de negócio sobre a cobrança do donativo, este aceita plenamente a resolução dos camaristas, agradecendo o “grande serviço” que faziam a Sua Majestade45. Até quando Barreto discordava da solução proposta pela Câmara, como quando a municipalidade pediu para se responsabilizar pela venda das centenas de pipas de vinho encalhadas, monopolizando a venda da bebida para evitar o contrabando, ele concordava com os pedidos, pois “para todo o melhoramento do povo me acharão vossas mercês sempre com ânimo próprio para os ajudar em tudo que estiver em minha mão” 46. O mesmo ocorreu no ano seguinte, quando a falta de vinhos fez com que a Câmara pedisse a liberação da venda de cachaça: “resolvi que sem embargo de eu ser de contrário voto [na junta com os ministros de fazenda e justiça] se arrendassem as bebidas por um ano”47. Francisco Barreto irritou-se com a mudança de opinião do Senado, que dois anos antes havia pedido a reiteração da proibição em razão dos seus muitos malefícios listados em detalhe pelo governador, mas conformou-se com a inevitável inconstância da municipalidade: “ou com a diferença dos sujeitos que servem naquele tribunal, ou com a dos tempos que ordinariamente

43

AHMS, PGS, 1660-77, fls. 12v-14 (ênfase minha). Em 1662 os camaristas consultam o governador sobre a possibilidade de chamar o povo para aprovar o novo tributo do papel selado, mas Barreto novamente os repreende, dizendo que cabia apenas cumprir a ordem régia. Os oficiais do Senado o obedeceram, embora a demora de mais de um mês possa indicar certa resistência: DH, vol. 86, pp. 155 e AC, vol. IV, pp. 124-6. 44 AC, vol. III, pp. 413-6. 45 AC, vol. IV, pp. 31-8 (citação à p. 37); veja-se, sobre a farinha (temática recorrente, em que Francisco Barreto costumava apoiar o Senado), dentre outras, pp. 71-2: “vossas mercês prossigam o intento que eu aprovo muito”. 46 AC, vol. IV, pp. 19-24 (citação à p. 23). 47 DH, vol. 86, pp. 144-5; veja-se também p. 146-50.

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faz variar as resoluções, se alterou esta”48. A açucarocracia estava ligeiramente melhor representada entre os camaristas que pediram a liberação da proibição, mas o fator determinante provavelmente foi a falta de vinhos e a necessidade imediatista de arrecadar recursos para o sustento da infantaria. Uma das justificativas do pedido, porém, foi que os pobres, por serem os principais produtores comerciais da aguardente, eram os maiores prejudicados pela proibição49. Essa argumentação é fortemente repudiada pelo governador, pois não é razão política a que estas [a aguardente] têm contra si de padecerem muitos pobres na sua falta, porque as Repúblicas se não conservam com os pobres (que nesta podem ter outros exercícios mais úteis), se não com os ricos, que as fazem opulentas. (...) Não é conveniente destruir os que conservam as praças por preservar os que as debilitam50.

Explicita-se, assim, o caráter elitista e mesmo plutocrático do governo na época moderna – o que, longe de ser algo específico de áreas de exportação de produtos tropicais, era característico de todas as estruturas políticas no mundo atlântico51. A açucarocracia controlava a produção da riqueza que sustentava não só a administração periférica da Coroa (através do dízimo) mas também a defesa do território (via donativos) e até mesmo, como vimos no capítulo I, contribuía consideravelmente para o financiamento da própria Coroa e sua aristocracia. Explica-se, assim, porque o governador-geral opôs-se a uma decisão dos camaristas de 1662 (nenhum deles senhor de engenho, até onde pude determinar) de eleger três “louvados” para escolher o meio de vender as pipas de vinho encalhadas em Salvador: os eleitos eram homens de negócio, e votaram que os “senhores de engenho e lavradores de cabedal” fossem obrigados a comprar os vinhos, pagando com açúcar. Barreto preferia que a municipalidade pedisse empréstimos aos negociantes da praça, e justificava sua oposição pelo baixo preço do açúcar (“tão mal reputado”) e pelo costume da açucarocracia de sempre contribuir com o pior açúcar que houvesse, de modo que ninguém compraria o procedido dessa imposição. Acabou, porém, sendo convencido pelo vereador João Peixoto de Sá (filho de um senhor de engenho e o oficial mais próximo da açucarocracia nesse ano), que prometeu que aqueles que não fossem membros da açucarocracia contribuiriam com dinheiro, e o açúcar teria “compradores infalíveis”. Barreto retornou, assim, a seus usuais elogios ao “zelo” e “lealdade” do Senado52. Após década e meia de governo e intensa atividade comercial na América, estava claro para o

48

AHU, Bahia, LF, cx. 16, doc. 1811. Veja-se, por exemplo, uma carta de Atouguia a Barreto em DH, vol. 3, pp. 262-4. 50 AHU, Bahia, LF, cx. 16, doc. 1811. Para uma interpretação desse documento que enfatiza os interesses de um amorfo “capitalismo comercial”, veja-se LENK, Guerra e pacto, pp. 448-9. 51 Veja-se, por todos, BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, Economia e Capitalismo (trad.). São Paulo: Martins Fontes, 1996 [1978], vol. II: Os jogos de trocas, pp. 411-50 e FRIEDRICHS, Christopher. Urban politics in Early Modern Europe. Nova York: Routledge, 2000, pp. 11-20. 52 AC, vol. IV, pp. 108-14, citações às pp. 111, 113 e 114. 49

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governador que a prosperidade da açucarocracia constituía-se em elemento essencial do vigor da monarquia portuguesa e que a principal instituição política da açucarocracia, a Câmara, era o pilar essencial para o financiamento da defesa, de modo que valia a pena deixar que resolvessem as formas de contribuição. A mais importante negociação entre o Senado e Francisco Barreto deu-se em abril de 1662. Apesar da gradual (ainda que irregular) intensificação da comunicação política direta com a Câmara soteropolitana (capítulo VII), a Coroa escreveu somente ao governador para que este acertasse com as elites locais a cobrança das exorbitantes somas de 120.000 cruzados anuais para a indenização às Províncias Unidas dos Países Baixos e 600.000 cruzados do dote de D. Catarina de Bragança a ser entregue a Charles II, o recém-restaurado Rei da Inglaterra e Escócia. A Coroa lembrava os 200.000 cruzados prometidos no final do governo de Antônio Teles da Silva (capítulo V), “e agora com maior razão devem servir-me, pois com esta contribuição se livram dos encargos de uma guerra que sempre lhes foi tão sensível e danosa a seu comércio (...). Procurareis com esses moradores (...) mostrem nessa ocasião o amor que tem do meu serviço”53. A regente D. Luísa confiava, assim, na tradicional relação entre governadores e o Senado, potencializada pelo fato de que Francisco Barreto era o governador que ficara mais tempo no cargo desde a saída de Diogo Luiz de Oliveira. Os camaristas tiveram a prerrogativa, como cabeça do Estado do Brasil, de dividirem a pesada carga entre as diversas capitanias. Atribuíram a si apenas 40% do valor, mas Francisco Barreto, em uma rara discordância, alterou a parte que cabia à Bahia para 80.000 cruzados, 57% do total, devido ao maior vigor econômico da sua produção açucareira, medida através dos dízimos, de maneira a distribuir a carga com mais equidade54. Por outro lado, o governador aceitou que se estabelecesse um preço mínimo para o açúcar (1$200 réis para o branco e $600 para o mascavado), beneficiando a açucarocracia em momentos de baixa significativa do preço dessa commodity, generosidade que gerou reclamações da Coroa quando finalmente chegou a Lisboa a primeira parcela do donativo, em finais de 166455. Da mesma maneira, aceitou que a Câmara criasse novos ofícios remunerados para a cobrança do donativo, permitindo, portanto, que uma parte dos recursos arrecadados beneficiasse os escolhidos pela elite56. 53

DH, vol. 66, pp. 190-3 (citação à p. 191). AC, vol. IV, pp. 136-41. Em 1659-60, os dízimos da Bahia representavam 61% do total, ante 20% de Pernambuco e 19% do Rio de Janeiro, dando razão ao governador. CARRARA, Angelo. Receitas e despesas da Real Fazenda no Brasil: século XVII. Juiz de Fora: EDUFJF, 2009, p. 126. Para uma descrição da instituição do donativo, vejase FERREIRA, Letícia dos Santos. É pedido, não tributo: o donativo para o casamento de Catarina de Bragança e a Paz de Holanda (Portugal e Brasil, c. 1660-1725). Tese de Doutorado. Niterói: PPGH/UFF, 2014, pp. 80-90. 55 DH, vol. 66, pp. 317-8. 56 DH, vol. 86, p. 157. A forma de cobrança para as outras capitanias lhe foi sugerida por Bernardo Vieira Ravasco, como Barreto menciona em carta ao governador do Rio de Janeiro: vol. 5, pp. 149-51. 54

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A discussão sobre a implantação do donativo permaneceu como uma das preocupações centrais do novo representante do monarca na América, o Conde de Óbidos (1663-7). Escaldado por uma deposição na Índia em 1653 pelas elites locais, D. Vasco Mascarenhas finalmente retornava ao Brasil após mais de 20 anos, depois de ter sido cogitado para esse governo em 1644 e em 166057. Vinha, porém, como vice-rei, e com amplos poderes, em razão da confiança que lhe era depositada por D. Afonso VI e seu valido, o Conde de Castelo Melhor (filho do benquisto governador-geral)58. Examinemos, portanto, uma “ocasião que El-Rei meu Senhor foi servido dar nova forma ao governo deste Estado, e eu o venho restituir de tudo o que a variedade dos tempos lhe ocasionou ir perdendo”, nas palavras do próprio Óbidos59. Assim, a primeira carta enviada pelo Conde ao Senado repreendia os camaristas pela demora na cobrança do donativo, e nomeava uma junta composta por alguns dos mais destacados membros da elite local para resolver os meios da cobrança: Diogo de Aragão Pereira e Felipe de Moura Albuquerque, de duas famílias tradicionais, estabelecidas na capitania há, respectivamente, cerca de 75 e 40 anos; o provedor-mor da fazenda e cristão-novo Antônio Lopes de Ulhoa, cuja família também estava presente na capitania há mais de 80 anos; quatro homens de negócio em acelerado processo de ascensão social (listados aqui em ordem de antiguidade na terra): Francisco Fernandes Dosim, João Peixoto Viegas, José Moreira de Azevedo e João Velho Gondim; e o escrivão da Câmara Rui de Carvalho Pinheiro, cuja família controlava esse cargo há quase 80 anos (sobre eles, veja-se os capítulos II e III). Logo depois o vice-rei lançou uma portaria draconiana para se inventariarem todos os cativos da capitania, ameaçando os sonegadores com prisão e perda do escravo, que seria dado ao delator. Com a demora do Senado, o Vice-Rei fez um regimento, cujas disposições foram ratificadas na Câmara: determinou-se que o montante seria arbitrado de acordo com o número de escravos e benfeitorias, mas é notável que a Câmara cedia ao Conde a jurisdição de escolher pessoas “para irem fazer aos inventários assim ao Recôncavo como a esta cidade e seus arredores”. O controle

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Nessa segunda ocasião a notícia chegou à nobreza baiana: Luiz de Melo de Vasconcelos escreveu ao Dr. Cristóvão de Soares de Abreu, figura de algum relevo na Corte, dizendo que “temos por notícia que foram consultados para esse governo o Conde de Óbidos e Francisco de Sousa Coutinho, se vossa mercê com eles tem amizade me faça recomendar-me ao que vier para o governo” (BPA, 54-VIII-37, n. 1013), provavelmente indicando o quanto se acompanhava esses boatos em Salvador e a tentativa de cair nas graças dos governadoresgerais antes mesmo de sua chegada. 58 “Nos súditos que faltam a suas obrigações se resolvendo a negá-la, nem os mesmos Reis têm a Coroa segura. A mim me privaram de Vice-Rei da Índia, e a El-Rei de Inglaterra do Reino e da vida”: DH, vol. 9, pp. 135-6, em carta escrita ao governador de Pernambuco nem seis meses após sua chegada; cf. AHU, Bahia, LF, cx. 16, doc. 1814 e DH, vol. 5, pp. 114-5; SANTANA, Ricardo. Lourenço de Brito Correia: o sujeito mais perverso e escandaloso. Conflitos e suspeitas de motim no segundo vice-reinado do Conde de Óbidos (Bahia, 1663-1667). Dissertação de Mestrado. Feira de Santana: PPGH/UEFS, 2012, pp. 72-91. 59 DH, vol. 9, p. 134.

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sobre o donativo, porém, permanecia com o Senado, como reconhecia Óbidos e é perceptível pelo fato de que foi este tribunal a produzir o regimento detalhado da cobrança, depois de mais seis meses, ao qual o governador fez apenas um reparo de pouca importância. O cotidiano da cobrança ficava nas mãos dos capitães de ordenança, a principal autoridade em cada freguesia – ou seja, da elite local, que ampliava seus poderes com mais essa atribuição 60. A demora é indicativa da vontade de atrasar a contribuição o quanto fosse possível, pois já haviam se passado quase dois anos desde a aceitação do donativo – em oposição à pressa demonstrada pela Coroa e, consequentemente, pelo Vice-rei61. Óbidos foi capaz, porém, de exercer certa influência na administração da contribuição ao nomear um tesoureiro (o homem de negócio José Moreira de Azevedo, que havia acabado de ser aceito na Misericórdia, indicando que estava no início de seu processo de aceitação na elite local), e depois, em 1664, um escrivão (ignorando o candidato apresentado pelo Senado e as reclamações de Rui de Carvalho Pinheiro, furioso com a perda de sua jurisdição), com significativos salários de 200$, para tomar conta dos imensos valores arrecadados pelo Senado – 150.000 cruzados, segundo o vice-rei, mais do que o dobro do valor do dízimo em 1662-3 – supostamente com o objetivo de acalmar a “murmuração do povo”62. Era quase inevitável que uma nova exação fiscal gerasse insatisfações, e a suspeita de que alguns membros da elite tenham se beneficiado dela deve ter produzido tensões. Óbidos também convocou a Câmara e alguns cidadãos principais para deliberar sobre a diminuição da imposição dos vinhos, em razão de uma petição dos homens de negócio ao rei. A Câmara, a nobreza e outra junta novamente escolhida pelo Vice-Rei (composta por Ravasco, Pinheiro, o provedor-mor Ulhoa e três dos negociantes presentes na junta anterior) votaram pela diminuição da imposição e pela proibição da cachaça63. Óbidos iniciava seu governo intervindo mais no Senado do que seus antecessores, mas provavelmente conseguira tornar essa atitude aceitável ao recorrer a diversos grupos dentro da elite, a se julgar pela carta elogiosa enviada logo depois pelos camaristas à Coroa64. Como se nota da resposta de Afonso VI, Rei e Vice-rei estavam em acordo, numa política pensada para a monarquia portuguesa como um todo: me pareceu dizer-vos que na independência e isenção que a Câmara pretende ter desse governo se não deve inovar coisa alguma do que até agora se usou, por não ser conveniente, antes muito 60

AC, vol. IV, pp. 173-7 (citação à p. 176) e 190-202; DH, vol. 4, pp. 125-30, vol. 7, pp. 145-6 e 156; vol. 86, pp. 159-60; AHMS, PGS, 1660-1677, fls. 48-51. 61 AHU, cód. 16, fls. 121-121v; DH, vol. 66, pp. 255-6 e 284-5; AHMS, PGS, 1660-1677, fls. 74v-79. 62 AHMS, PGS, 1664-72, fls. 2v-3 e AHU, Bahia, LF, cx. 18, docs. 2045-6 e 2068-9; DH, vol. 7, pp. 188-9 (citação). 63 AC, vol. IV, pp. 163-6; DH, vol. 66, pp. 222-3. Veja-se também a carta ao rei sobre esta decisão: AHU, Bahia, LF, cx. 17, doc. 1952 e a consulta: cód. 16, fl. 104v. 64 AHU, Bahia, LF, cx. 17, doc. 1947.

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necessário e lícito que reconheça o Senado a superioridade desse governo, na forma que sempre o fez, e de tudo o referido dareis notícia à Câmara para que o tenhas entendido65.

A concessão de sesmarias a alguns poderosos deve ter suavizado a implantação desse projeto, que na prática aumentava a intervenção sobre o Senado e a fiscalização dos donativos, que passaria a contar com maior participação do provedor-mor66. Dentre os beneficiados estão Antônio Guedes de Brito, Bernardo Vieira Ravasco, Lourenço de Brito Correia e seu filho Lourenço de Brito de Figueiredo67 – todos homens que exerceriam um papel importante nos conflitos que marcariam o final de seu governo, ainda que nem sempre favoráveis ao vice-rei. Devido à contínua, ainda que irregular, expansão para o sertão, constantemente se buscava obter novas sesmarias, muitas vezes imensas (capítulo III). Assim, o poder de outorgar novas terras deve ter contribuído para a construção de redes de apoio aos governadores, ainda que esse tema mereça uma análise mais sistemática. Óbidos também favoreceu os moradores ao limitar o frete dos navios em 1664, arbitrando, a favor dos homens de negócio, senhores de engenho e lavradores baianos, um conflito que os opôs aos mestres de navios68. Ainda mais significativo, porém, foi o enorme empréstimo feito pelo Conde à Câmara para pagar 8 meses de soldos atrasados dos soldados no início de 1664: 10.530$000. Tanto dinheiro só estava parado nos cofres da Fazenda Real graças ao novo cunho da moeda (capítulo VII), e os camaristas contaram com ele para não terem de lançar novas fintas. O Senado, porém, não quis se comprometer com tamanha dívida, de modo que Carvalho Pinheiro se ofereceu para ficar responsável pela venda das centenas de pipas de vinho estocadas, cuja arrecadação permitiria quitar o débito69. Só podemos imaginar as possibilidades de lucro em negócio desta magnitude, especialmente nas mãos de alguém já acusado de desviar recursos. E não foi só nessa vez que Óbidos recorreu ao Pinheiro, pois assim que esta obrigação foi cumprida pelo escrivão ele recebeu a incumbência de ir cobrar o donativo na freguesia rural de Itapuã70 65

AHU, cód. 275, fl. 349, utilizando os mesmos termos que o Conde em sua carta: Bahia, Avulsos, cx. 2, doc. 147. Óbidos demonstra um claro desprezo frente à elite baiana: “as pessoas de que Vossa Majestade costuma fiar o governo daquele Estado tem sempre maiores obrigações para zelar os acertos do seu Real Serviço que o concurso dos sujeitos de que aquele Senado se forma, que ordinariamente tem maiores experiências das lavouras que dos negócios políticos, e menos reparo na culpa ou merecimento de suas ações no serviço de Vossa Majestade e benefício de sua República”. Ambos estavas se referindo a uma carta da Câmara de 1659, na qual a municipalidade pedia para poder “mudar os tributos nesta e naquela droga, alterá-los ou diminuí-los, pois ele é o que há de sustentar a dita infantaria” – AHU, Bahia, LF, cx. 15, doc. 1751. Luciano Figueiredo vê esse momento como decisivo para a restrição para a autonomia fiscal das Câmaras americanas, mas discordo, como se verá: Revoltas, Fiscalidade e identidade colonial na América Portuguesa. Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais, 1640-1761. Tese de Doutorado. São Paulo: PPGHS/USP, 1996, p. 485. Sobre o reinado, veja-se XAVIER, Ângela Barreto & CARDIM, Pedro. D. Afonso VI. Lisboa: Círculo de Leitores, 2008 [2006], 2ª ed., pp. 170-205. 66 DH, vol. 7, pp. 160-1. 67 DH, vol. 21, pp. 185-7 e 214-6. 68 DH, vol. 7, pp. 173-5. 69 AHMS, PGS, 1660-77, fls. 54-55v; DH, vol. 7, pp. 120-2, 124-5, 131-2, 141 e 149; vol. 21, pp. 203-5. 70 DH, vol. 7, pp. 154-5.

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Assim, no início do governo do Vice-rei sua relação com as elites locais foi razoavelmente tranquila, pois Óbidos tornou suas intervenções mais palatáveis através da concessão de algumas benesses menores. Mesmo quando se opôs à reformação de alguns oficiais do exército, de modo a diminuir o encargo do Senado com os soldos, o fez em defesa de dois militares já bem integrados na elite local: Pedro Gomes (que então já havia sido provedor da Misericórdia uma vez) e Antônio de Brito de Castro (que viria a sê-lo)71. Entretanto, se o vice-rei pensou que seria barato assim comprar todos os agentes políticos da capitania, muito se enganou. A obsessão de Óbidos em nomear homens de seu círculo pessoal para os postos mais diversos e controlar o provimento de ofícios, já demonstrada na Índia, rapidamente gerou insatisfações dentro da administração da Coroa, primeiro com a Relação e depois, excepcionalmente, com o Conselho Ultramarino, que o acusa de estar “fazendo-se por esse modo senhor absoluto do Brasil, e independente de Vossa Majestade”, querendo “prover [ofícios] absolutamente, como se Vossa Majestade não fora Rei, e Senhor daquele Estado, para galardoar com as mercês que for servido, aos que serviram e vão servir a ele”, na mais forte condenação deste tribunal a um governador no século72. Se lembrarmos que o Óbidos trouxera consigo uma comitiva de 90 pessoas, um número não muito diferente do que acompanhava os vice-reis castelhanos às prestigiosas possessões italianas, percebe-se que o Conde estava tentando, ainda que de forma um tanto desajeitada, constituir uma corte a seu redor, como faziam suas contrapartes hispânicas tanto no Novo quanto no Velho Mundo e como o próprio experimentara, ainda que em menor grau, em seu breve governo indiano73. Em sua concepção, ao vice-rei, como alter ego do monarca, deveria caber um significativo poder de distribuir mercês, para construir redes clientelares que pudessem dar-lhe sustentação política. Assim, logo após chegar ao Brasil o Conde escreveu à Coroa pedindo a faculdade de distribuir 12 foros de fidalgos e igual número de hábitos militares, “mercê particular que Vossa Majestade faz a todos os Vice-reis da Índia (...) e ele os não levou quando o foi governar”74. Óbidos, porém, não teve sucesso, sendo obrigado a contentar-se com as serventias usualmente providas pelos governadores-gerais.

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AHU, Bahia, LF, cx. 17, docs. 1997-8. AHU, cód. 16, fl. 119v. Veja-se também DH, vol. 66, pp. 318-9; ARAÚJO, De golpe, pp. 106-14 e SANTANA, Lourenço de Brito Correia, pp. 100-9. 73 DH, vol. 21, pp. 120-1; RIVERO RODRÍGUEZ, Manuel. La edad de oro de los virreyes: el virreinato en la Monarquía Hispánica durante los siglos XVI y XVII. Madri: Akal, 2011, pp. 133-74. 74 AHU, cód. 16, fls. 121-121v. Sobre as relações patrão-cliente como elemento central de governo, cf. CAÑEQUE, Alejandro. The King’s living image: the culture and politics of viceregal power in Colonial Mexico. Nova York: Routledge, 2004, pp. 138-60, que nota as inevitáveis disputas por cargos e acusações de corrupção. 72

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O governo do Brasil distinguia-se do Estado da Índia pela maior proximidade com Lisboa, e tanto o Conselho Ultramarino quanto os grupos de poder locais estavam acostumados com um contato cada vez mais intenso com o outro lado do Atlântico (capítulo VII). Consequentemente, aceitava-se mal essa tentativa de ampliação do poder do representante do rei na América, em um conflito que se repetiria 50 anos depois com o próximo vice-rei, o Marquês de Angeja (1714-8) – como o próprio Conselho Ultramarino notará em suas críticas ao 3º vice-rei do Estado do Brasil75. Ainda que eu não tenha encontrado informações sobre as comitivas dos demais governadores, parece-me que deviam ser muito menores, de modo que a quantidade de acompanhantes de Óbidos contribuiu para a intensificação das tensões locais. Assim, em vez de as nomeações solidificarem uma base de apoio político a Óbidos, elas o transformaram em um alvo por excluírem os grupos de poder já estabelecidos (problema recorrente em outros vice-reinados)76. Em acréscimo, sua irascibilidade e arrogância ao lidar com o Conselho Ultramarino – talvez contando com o favor do jovem Conde de Castelo Melhor – fizeram com que se tornasse um alvo fácil para os descontentes. Assim, a situação chegou a tal ponto que, em julho de 1665, dois anos após Óbidos ter sido empossado, os conselheiros recomendaram sua substituição o quanto antes: São tantas e tão continuadas as queixas que há neste conselho dos procedimentos do Conde de Óbidos, assim dos vassalos do Estado do Brasil, como dos mais particulares que há suas, originando com seu escandaloso governo muito descontentamento naqueles moradores, de que pode resultar um levantamento contra ele, como já o intentou fazer a infantaria da Bahia por lhe faltar com as pagas, e tão pouco o respeito que o Conde tem à corte de Vossa Majestade e o pouco caso que faz delas, e a liberdade com quem publicamente fala nos ministros deste conselho que representam a real pessoa de Vossa Majestade, com palavras indecentes, como por vezes se tem já feito presente a Vossa Majestade, que obriga tudo ao conselho com justo sentimento e movido com zelo que deve ao serviço de Vossa Majestade e conservação das conquistas, que é o que lhe incumbe a representar a Vossa Majestade que convém muito a seu real serviço e a quietação e sossego dos moradores do Brasil mande Vossa Majestade logo nomear governador para aquele estado77.

Um dos moradores que criticavam o governador era Antônio Lopes de Ulhoa, provedormor da fazenda, afastado do cargo sob justificativa de que deveria ser submetido a uma residência antes de exercer seu segundo triênio no posto e substituído por uma criatura do vice-

SANTOS, Catarina Madeira. “Los virreyes del Estado de la India en la formación del imaginário imperial português” e BICALHO, Fernanda. “Gobernadores y virreyes en el Estado do Brasil: ¿dibujo de una corte virreinal?” in: CARDIM, Pedro & PALOS, Joan-Lluís (eds.). El mundo de los virreyes en las monarquías de España y Portugal. Madri/Frankfurt: Iberoamericana/Vervuert, 2012, pp. 71-118 e 391-402. 76 Nomeou, por exemplo, um militar lisboeta muito próximo a si, o sargento-mor Antônio Pereira, na serventia da provedoria da alfândega, e não um dos quatro filhos do proprietário, Antônio de Brito de Castro: DH, vol. 21, pp. 128-9 e AHU, cód. 83, fls. 25-25v. Um dos poucos membros da elite providos pelo vice-rei foi Felipe de Moura de Albuquerque como alcaide-mor, porque esse cargo estava por demais ligado à elite baiana (pp. 391-5). 77 AHU, cód. 16, fl. 164v. 75

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rei78. O Conde também havia se incompatibilizado com Rui de Carvalho Pinheiro, após ter retirado dele a jurisdição sobre os donativos, certamente a parte mais lucrativa de seu ofício. Outro indício de inimizade entre os dois é o fato de que Óbidos tenha mandado substituir o escrivão da Câmara de uma junta eleita para administrar o donativo em 9 de março de 1665 79. O Vice-rei opunha-se, portanto, a uma importante facção que há duas décadas anos exercia um poder considerável, talvez até dominante, em Salvador. É nesse contexto que se deve entender a petição do capitão, fidalgo e cavaleiro da Ordem de Cristo Paulo de Azevedo Coutinho à Câmara, mesmo “não lhe tocando procurar o sustento da infantaria (...) e a ter com alguns oficiais dela demasiado desabrimento sobre o mesmo intento da petição”, o que, considerando que os soldos estavam em dia “e havendo precedido a revolução que há poucos dias houve na mesma infantaria, convém averiguar-se tudo”, segundo portaria do vice-rei ao ouvidor-geral, que deveria atentar especialmente para as “palavras que o dito capitão teve com o oficial ou oficiais daquele Senado”80. Vemos aqui o primeiro sinal claro de que, em finais de outubro de 1664, as relações entre Óbidos e a elite local começavam a se desgastar. Como a portaria sugere, porém, a municipalidade não estava a lhe fazer uma oposição monolítica, mesmo porque um dos vereadores nesse ano era Antônio Guedes de Brito (capítulo III), nomeado capitão de infantaria paga pelo Conde e posteriormente apontado como seu amigo por Bernardo Vieira Ravasco81. Seja como for, é provável que alguma resistência houvesse. Talvez por isso o Conde tenha precisado emitir uma portaria em dezembro de 1664 para que o tesoureiro da Câmara Sebastião Nunes da Silveira (nomeado pelo governador e, até onde sei, sem ligações com a nobreza) pedisse 5 contos de réis por empréstimo a 18 homens de negócio (400$ a João de Matos de Aguiar e David Ventura, 800$ a Sebastião Duarte, e por aí vai), medida excepcional que pode indicar tanto uma necessidade desesperada de recursos para o sustento da infantaria quanto corpo mole da Câmara, que não tomou atitude para remediar o problema, contrariando sua prática de décadas. A inferência é reforçada pelo fato de que a portaria só foi registrada nos livros municipais quatro meses depois, provavelmente em razão da insatisfação do Senado82. É impossível traçar em detalhe o crescimento da discórdia, mas tudo explodiu na partida da frota de julho de 1665. Segundo o relato de Óbidos, ele teria descoberto uma conjuração maquinada pelo chanceler da Relação (um de seus principais adversários), o septuagenário 78

AHU, Bahia, LF, cx. 18, doc. 2098 e DH, vol. 22, p. 52 AHMS, PGS, 1660-77, fls. 74v-79. 80 DH, vol. 7, pp. 198-9. 81 AHU, Bahia, LF, cx. 19, doc. 2210. 82 AHMS, PGS, 1660-77, fls. 72v-74v. 79

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Lourenço de Brito Correia (que havia acabado de servir mais um termo na provedoria da Misericórdia, denotando seu duradouro prestígio), seu filho e três capitães de infantaria: o já citado Paulo de Azevedo Coutinho, Antônio de Queirós Siqueira e Francisco Teles de Menezes. Materializava-se (ao menos na cabeça do Vice-rei) o levantamento temido pelo Conselho Ultramarino do outro lado do Atlântico. “Lembrando-me o sucesso que tive na Índia”, o Conde achou por bem mandar todos presos para Lisboa, com exceção do chanceler Jorge Seco de Macedo. Lourenço ainda era um dos homens mais poderosos da capitania, Francisco pertencia a uma tradicional (ainda que decadente) família da açucarocracia e Antônio havia entrado através do casamento na parentela dos Araújo – ligada, por sua vez, a Rui de Carvalho Pinheiro83. Quatro dos cinco presos, portavam, faziam parte da elite baiana. Eles procuraram por todos os meios persuadir os ânimos do povo, e dos soldados, a um geral ódio contra minhas ações, e inclinação às de Lourenço de Brito Correia: o qual, com as presunções de ter sido um dos três governadores que sucederam ao Marquês de Montalvão, haver tido com ele os indecentíssimos procedimentos que são notórios, e voltar, indo preso a essa Corte, sem castigo algum para este Estado: e com a soberba de haver capitulado [criticado em carta para o rei] aos Condes da Torre e Castelo Melhor (tendo recebido de ambos o favor de o haverem autorizado com a sua mesa); murmurado do de Atouguia, e escrito, capitulado e posto pasquins a Francisco Barreto, sem com ele se usar demonstração alguma; assim como eu entrei neste governo, pretendeu logo seguir o mesmo ditame. Todo o intento de Lourenço de Brito Correia foi sempre a elação de querer governar este Estado (...). E desenganado daquela indústria, buscou ultimamente esta de conspirar contra minha pessoa, capitulando-me e enviando a essa Corte e a alguns ministros vários papéis contra o meu procedimento: para que ajudado do favor daquele de quem ele jactava era mais bem ouvido que os governadores deste Estado, se tomasse alguma resolução comigo, e me viesse a suceder. E quando Vossa Majestade lhe não fizesse tanta mercê, ficasse ao menos justificada a resolução de com um motim geral me privarem do governo e o elegerem a ele, para ocupar meu posto, usando em suas práticas do exemplo de estar acostumado a suceder aos Vice-Reis do Brasil. (...) Foi ver que a que na Índia se usou comigo (...) não só não foi castigada, mas voltaram os cúmplices habilitados a ocupar os governos das praças daquele Estado; que no Rio de Janeiro se levantaram os êmulos de Salvador Correia de Sá com aquela praça e se não fora a demonstração que então se fez com Jerônimo Barbalho, em nenhum outro culpado se viu até agora castigo; que André Vidal de Negreiros, sendo governador de Pernambuco, súdito de Francisco Barreto, governador e capitão geral deste Estado, lhe desobedeceu publicamente (...), e em lugar do justo castigo que merecia, ficou sem nenhum; e o governo-geral com o descrédito daquela indecência. Que usando Jerônimo de Mendonça das desobediências que desde que entrou a governar aquela capitania, teve a minhas ordens (...); e sobretudo vez o mesmo ver o mesmo Lourenço de Brito Correia quando o Conselho Ultramarino procurou encontrar a minha jurisdição, ordenando-me por cartas suas em várias matérias o que ele se jactava lhe havia advertido84.

A visão do Conde serviu como uma das epígrafes desse capítulo não por ser uma descrição acurada de seus anos na Bahia, mas por representar um governador ideal, “procurando com todo o desvelo manter em paz e quietação aos moradores que é o fim de um acertado

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CG, vol. II, pp. 727-8. AHU, Bahia, LF, cx. 18, doc. 2100. Óbidos só contou com o apoio do cabido da Sé, composto por adversários do chanceler: doc. 2101. Veja-se também a carta de Manuel de Almeida Peixoto: doc. 2110. 84

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governo”. Repudiava, assim, acusações de que “era um público ladrão” que roubara baixelas de prata, anéis de diamantes e, mais grave, vendia as serventias dos ofícios reais – imputação crível, considerando a supracitada obsessão de Óbidos em nomear todos os ofícios, ainda que de difícil comprovação, já que a ilicitude do ato excluía a produção de registros oficiais. O motim quase teria ocorrido quando os soldados foram à casa de Lourenço de Brito Correia inquietos (provavelmente pelo atraso dos soldos), e todas as “as pessoas de nome” da cidade correram à praça principal da cidade, num “alvoroço por traça e ordem sua [de Brito Correia] para se fazer governador (...) publicando que era chamado e provido no governo deste Estado, para o qual se julga muito merecedor, pois diz que ninguém é maior fidalgo que ele”85. Óbidos não esclarece como conseguiu impedir o levantamento, passando a impressão de que parte do que relata não passou de elucubrações de uma imaginação fértil. As críticas de Brito Correia a Diogo Luiz de Oliveira e ao Conde da Torre emprestam, porém, alguma credibilidade às acusações do Vice-rei, assim como o fato de esse potentado ter se orgulhado até o fim da vida de sua breve participação no governo. É possível que, desde sua primeira passagem por Salvador como braço armado de Diogo Luiz de Oliveira, Óbidos tenha se desentendido com Lourenço, e ambos pareciam bem capazes de cultivar seu rancor desde finais da década de 1620. Considero mais provável, porém, que a insatisfação generalizada com seu governo tenha sido vista pelo paranoico Conde como o prelúdio de uma sedição, de modo que preferiu prevenir a ser novamente deposto, conhecedor que era das diversas revoltas no mundo português por esses anos86. Parafraseando Oscar Wilde, ser deposto uma vez pode ser considerado um infortúnio, mas duas vezes já começa a parecer incompetência. A carta do Vice-rei gerou polêmica no Reino, chegando a ser debatida até mesmo no Conselho de Estado – indicador do quanto a política baiana podia interessar à Corte87. A discussão, porém, foi mais intensa no Conselho Ultramarino, no qual, de modo geral, concordou-se que Óbidos fora precipitado. O letrado paraibano Feliciano Dourado foi o mais enfático, “porque dar capítulos contra os poderosos não é crime nem é conjuração, antes é um recurso por onde se faz saber aos Reis e Príncipes e a seus ministros os procedimentos daqueles contra quem se dão”88. Essa postura é compreensível, se lembrarmos que havia acabado de

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AHU, Bahia, LF, cx. 19, doc. 2144. FIGUEIREDO, Luciano. “O império em apuros: notas sobre o estudo das alterações ultramarinas e das práticas políticas no império colonial português, séculos XVII e XVIII” in: FURTADO, Júnia (org.). Diálogos Oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do império ultramarino português. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, pp. 198-214. 87 BPA, 51-V-41, fl. 186v: cinco dos nove membros presentes se abstiveram em razão da proximidade com Óbidos, e decidiu-se iniciar uma devassa no Reino ouvindo pessoas que haviam chegado na frota. 88 AHU, Bahia, LF, cx. 18, doc. 2100. 86

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receber a procuração da Câmara de Salvador para representá-la como seu procurador no Reino89. A demora do Conde em enviar testemunhas provavelmente objetivava manter os seus inimigos presos pelo maior tempo possível, incapazes de perturbar os últimos anos de seu governo – no que foi bem-sucedido. O Conselho Ultramarino concluiu, porém, que a devassa feita pelo Conde não só era falha como não provava nada além de que os acusados haviam escrito contra ele – o que, como haviam dito desde o início, estava longe de ser um crime90. O que se pode depreender do governo do Conde de Óbidos, tão mal falado pelos contemporâneos? Novamente em um momento de mudanças e renovação, como ocorrera nos governos de Diogo Luiz de Oliveira e Antônio Teles da Silva, envia-se um governador menos contemporizador, disposto a usar da violência para impor sua autoridade. Como seus antecessores, o vice-rei teve sucesso – se este é compreendido como não ser deposto – mas fracassou em atingir “o fim de um acertado governo”, nas suas próprias palavras: “manter em paz e quietação aos moradores”. A presença da Relação amplificava as denúncias contra seu comportamento arbitrário e sua arrogância transformou até o Conselho Ultramarino em adversário. Assim, tornou-se mais fácil constituir uma facção opositora, que pode ter procurado derrubá-lo utilizando o exército. Se foi o caso, parece ter sido o mando do Conde Vice-Rei sobre a mesma infantaria que o manteve no poder, provavelmente através das alianças com seu compadre Nicolau Aranha Pacheco, mestre de campo, já então bem inserido na açucarocracia, além de Antônio Guedes de Brito (capítulo III). É de se notar que, apesar de Guedes de Brito ser sobrinho-neto de Lourenço de Brito, isso pouco significou, pois ambos ficaram em lados opostos, provavelmente porque seus objetivos eram distintos: o membro mais novo da família procurava aliados para acelerar sua ascensão, enquanto o mais novo queria, se acreditarmos em Óbidos, o posto que um dia ocupara de governador. Percebe-se também, e novamente, a importância da infantaria – e principalmente de seus oficiais – como suporte político último dos governadores, mesmo quando estes, como Óbidos, conseguiam deixar insatisfeitas diversas facções na cena política local. Evidencia-se, portanto, a diferença da situação baiana em relação à revolta que ocorrera no Rio em 1660-1 e a que ocorreria em Pernambuco em 1666, com a deposição do Xumbergas – que contou, em verdade, com a anuência do próprio Óbidos, por irônico que isso possa parecer91. Mesmo assim, as turbulências do período deixam claro que era melhor governar pelo amor do que pelo temor, como a maioria dos governadores compreendia.

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AC, vol. IV, pp. 223-4. AHU, Bahia, LF, cx. 19, doc. 2169 e cód. 16, fls. 182v e 216v. 91 FIGUIREDO, Revoltas, Fiscalidade e identidade colonial, pp. 24-83 e MELLO, A fronda, pp. 23-61. 90

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Óbidos conseguiu, porém, terminar em paz seu “admirável” governo92. Já que a estratégia de prender os adversários dera certo, o Vice-rei aprisionou seu próprio secretário, Bernardo Vieira Ravasco, mantendo-o trancafiado de maio de 1666 até junho do ano seguinte, supostamente por ter-se oferecido para denunciar as roubalheiras contra a Fazenda Real. Contando com a ajuda de seus aliados Guedes de Brito, então provedor da Misericórdia, e do rico mestre de campo Nicolau Aranha Pacheco, procurou cobrar as muitas dívidas de Ravasco e sua família, afastando também os lavradores de cana de sua moenda. Assim, “impedido eu de poder tirar do meu engenho uma arroba de açúcar para o meu sustento e de minha casa; privado dos emolumentos da secretaria”, sem ordenado, “meu pai entrevado em uma cama sem ter de que se valer (...) sem eu ter parente algum nem amigo que se atreva a ver-me” e com seus pedidos negados pela Relação, agora subserviente ao Vice-Rei, só restou a Vieira Ravasco pedir auxílio ao monarca. Acabou, porém, sendo solto só após a partida de Óbidos para Portugal93. É notável que a Coroa praticamente não tenha se manifestado nessas confusões, não muito diferente do que ocorrera com Diogo Luiz de Oliveira e Antônio Teles da Silva, apesar da simpatia dos conselhos régios com as atribulações das elites locais. Para o monarca, devia ser mais seguro substituir seu representante na América por outro e esperar que isso acalmasse os ânimos, evitando tomar partido e se incompatibilizar com qualquer uma das facções, especialmente considerando que suas ordens poderiam encontrar um cenário político distinto e causar ainda mais agitação. Por isso, o mais que D. Afonso VI fez foi escrever para Vieira Ravasco dizendo que ouviria o Conde antes de proceder sobre as “violências e moléstias” que este lhe fazia e dizendo que o secretário deveria advertir o monarca dos descaminhos que encontrara. Para a Câmara, nem uma palavra explícita sobre o assunto, mas a comunicação de que lhe mandava um novo governador-geral vinha acompanhada, além da ordem usual para que tivessem “toda a boa correspondência com ele”, presente em cartas anteriores e posteriores, da lembrança de que deveriam proceder “nisso e em tudo o mais com a autoridade em parte devida a sua pessoa e lugar”, no que parece uma sutil admoestação pelos conflitos com o vice-rei – mesmo que a Câmara não tenha desempenhado um papel de destaque nesse embate94. Outro dos aliados do Conde apontados por Ravasco foi o supracitado homem de negócio José Moreira de Azevedo95, que fora nomeado tesoureiro e membro das juntas para decidir 92

PITA, História, p. 375, mas é improvável que muitos concordassem com essa afirmação na década de 1660. AHU, Bahia, LF, cx. 19, doc. 2210; também DH, vol. 7, pp. 307-8. Veja-se também doc. 2145 e cód. 16, fl. 215 para a perseguição contra o mestre de campo Álvaro de Azevedo na mesma época. Para tentativas de cobranças de vários dos muitos devedores de Ravasco, veja-se docs. 2177-8 e cx. 20, doc. 2337. 94 AHU, cód. 275, fl. 376v; AHMS, PR, 1641-80, fls. 94-94v. A carta avisando sobre a nomeação de Óbidos não possuía nenhuma sentença similar: AHU, cód. 275, fl. 332. 95 AHU, Bahia, LF, cx. 19, doc. 2209. 93

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sobre o donativo. Através de sua trajetória, nota-se como o Vice-rei procurou interferir na composição do Senado, de modo a ter ao menos um aliado neste tribunal. Moreira de Azevedo foi eleito para a municipalidade pela primeira vez em 1665 como vereador e no ano seguinte já ocupou o posto de juiz ordinário, graças a uma provisão de Óbidos que escusara um dos juízes de servir, abrindo uma vaga. Da mesma maneira, uma licença a outro camarista permitiu que Moreira de Azevedo assumisse o posto de contador da Câmara, útil para averiguar – ou efetuar – descaminhos nos vastos recursos arrecadados pelo Senado. Com o apoio do Conde, esse homem de negócio conseguiu ainda ser eleito em 1667 (possivelmente contando com o auxílio de Guedes de Brito, então juiz ordinário) para uma junta que trataria do donativo de dote e paz e, mais importante, como procurador da Câmara em Lisboa, talvez com o objetivo de partir para o Reino junto com seu patrono96. Óbidos ainda agraciou o primo de José, Antônio, com o mesmo posto de escrivão do donativo, em finais de seu governo – ainda que o nomeado tenha se provado menos polêmico, conseguindo gozar o ofício por mais de uma década97. O final do governo do Conde, no primeiro semestre de 1667, testemunhou o início de um conflito aberto entre José Moreira de Azevedo (com apoio dos aliados de Óbidos) e a facção de Rui de Carvalho Pinheiro. Antes mesmo de partir para o Reino como procurador do Senado, Moreira de Azevedo acusou Carvalho Pinheiro de desviar recursos, e contou com o apoio de seu aliado Guedes de Brito, então juiz ordinário, que inculpou o escrivão da Câmara em uma devassa98. Pouco depois, o Senado escreveu duas cartas ao monarca contra a nomeação de João de Góis de Araújo como superintendente dos donativos. Antecessor de Azevedo no posto de representante da municipalidade em Lisboa, o licenciado aproveitara seus anos na Corte para granjear diversas mercês, como o ofício de desembargador da Relação da Bahia, com a atribuição especial de devassar os devedores da Fazenda Real – o que incluía os donativos administrados pela Câmara. Os camaristas, porém, protestaram contra essa nomeação, pois o novo desembargador era cunhado de Rui de Carvalho Pinheiro, e o sogro deste, Cristóvão Vieira Ravasco (mais conhecido como pai de Antônio Vieira), devedor de grandes quantias, assim como o pai do letrado, Jorge de Araújo de Góis99. Pinheiro procurou inverter o jogo e acusou os camaristas de desviarem os donativos, ampliando ofensiva que se iniciara em finais de 1666 contra tesoureiros e cobradores nomeados pelo Conde. Sabedor de quem era seu principal adversário, o escrivão proprietário da Câmara

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AC, vol. IV, pp. 244-6, 269 e 285-301. AHMS, PGS, 1660-1677, fls. 40v-41. 98 AHU, Bahia, LF, cx. 19, doc. 2195. 99 AHU, Bahia, LF, cx. 19, docs. 2196 e 2198; DH, vol. 23, pp. 23-30. 97

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afirmou que “a primeira e causa de todas haver naquela cidade um José Moreira que se preza de potentado e de fazer quanto quer naquela Câmara”, manipulando eleições, desviando fundos, recebendo ajudas de custo excessivas e ilegais, deixando de pagar a infantaria, provendo ofícios em seus criados e falsificando os livros do Senado. Talvez Pinheiro estivesse se sentindo afrontado por alguém se imiscuir em sua especialidade100. Moreira deve ter chegado a Lisboa ao mesmo tempo que essas cartas, e imediatamente entregou ao Conselho Ultramarino um extenso papel contra o escrivão da Câmara e sua facção, relembrando a malsucedida devassa de Luiz Salema de Carvalho e dizendo ter achado, ao rever as contas do escrivão da Câmara, um exorbitante desfalque de 13.708$800. Acusou ainda João de Góis de Araújo de intimidar o Senado para impedir qualquer investigação sobre os malfeitos de seu bando101. A se acreditar na prestação de contas de José Moreira de Azevedo ao Senado, o Conde de Castelo Melhor o atendera pessoalmente por diversas vezes, mostrando-se favorável à sua facção, provavelmente por influência de Óbidos, “não fazendo caso dos embargos que se deram por parte do Sargento-mor Rui de Carvalho Pinheiro”. O golpe que expulsara o valido da Corte não assustara Moreira de Azevedo, que confiava em suas ligações com “o Marquês de Marialva, [que] me faz muito particulares favores com tanto excesso que se admiram muitos”102. A argumentação de Moreira de Azevedo (ou, talvez, o pagamento de um salário de 500$ a Feliciano Dourado103) convenceu o Conselho Ultramarino em consulta realizada em maio de 1668, ao menos no tocante à inconveniência de João de Góis de Araújo devassar as contas do donativo em Salvador. Entretanto, eles, como nós, não conseguem decidir sobre quem tem razão na disputa entre o escrivão proprietário da Câmara e o procurador do Senado na Corte, pedindo apenas que se tirassem novas investigações. A única certeza que os conselheiros podiam ter era que havia “muitos descaminhos (...) na cobrança do donativo”104. Enquanto isso, os camaristas de 1667 retiravam o ordenado de 200$ de Rui de Carvalho Pinheiro, acusando-o de ter recebido ilicitamente 140$ durante anos “por provisão dos governadores”. Também escreveram ao novo governador-geral, Alexandre de Souza Freire, pedindo para que João de Góis de Araújo não exercesse o cargo de superintendente dos 100

AHU, Bahia, LF, cx. 19, doc. 2199 (citação); AC, vol. IV, pp. 275-7. Em 1670, um dos degredados pelo Conde, o capitão Paulo de Azevedo Coutinho, também enviou uma carta criticando José Moreira de Azevedo em termos não muito distintos: cx. 22, doc. 2635. 101 AHU, Bahia, LF, cx. 19, doc. 2200. 102 AC, vol. IV, pp. 329-39, citações às pp. 329 e 338. D. Antônio Luiz de Menezes, Marquês de Marialva, seria uma presença muito influente na Corte até sua morte, em 1675: XAVIER & CARDIM, D. Afonso VI. Talvez não seja mera coincidência o fato de o senhor de engenho baiano Manuel Botelho de Oliveira (capítulo III) ter escrito um poema em sua homenagem por esses anos: Poesia completa: Música do Parnasso, Lira Sacra. Organização de Adma Muhana. São Paulo: Martins Fontes, 2005, pp. 212-3. 103 AC, vol. IV, p. 335. 104 AHU, cód. 16, fl. 280. Veja-se também fl. 363.

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donativos105. Em finais de 1667, os oficiais deixaram registrado para seus sucessores as denúncias, afirmando que se devia cobrar de Pinheiro as dívidas de seu pai, morto há 20 anos. Prevendo ainda a possibilidade de que os próximos juízes ordinários e vereadores pertencessem à facção oposta, defenderam a conservação de Azevedo como procurador do Senado106. Seus temores não eram infundados. Os camaristas de 1668 escreveram ao monarca já em 28 de janeiro, criticando seus antecessores por deixarem o Senado endividado e, principalmente, os procedimentos duvidosos de José Moreira de Azevedo como tesoureiro, vereador, juiz e contador na Câmara, pedindo “um ministro de zelo e limpeza [para] devassar estes descaminhos”107. Rui de Carvalho Pinheiro também conseguiu retornar a seu ofício em finais do ano, voltando a receber seu largo ordenado108. A posição da nova Câmara, contrária aos antigos aliados de Óbidos, pode ser inferida pela escolha (em razão da escusa do eleito nos pelouros) de Antônio Teles de Menezes, irmão de Francisco, que havia sido preso pelo vice-rei – e, nessa época, já de volta à Salvador com seus supostos co-conspiradores, reinstituído como capitão e agora nomeado como alcaide-mor, mercês obtidas ainda no final do governo do Conde de Castelo Melhor109. Entretanto, devia haver discordâncias no Senado, pois embora Teles de Menezes e o juiz ordinário Francisco de Negreiros Soeiro tenham ido reclamar de José Moreira de Azevedo com o novo governador-geral, dizendo que a procuração que lhes havia sido enviada não era válida e que havia sido enviado ao Reino “por respeitos particulares”, e não pelo “bem comum”, os camaristas como um corpo nunca chegaram a enviar uma carta ao monarca desautorizando seu procurador, como haviam dito a Souza Freire que fariam110. O governador-geral só encaminhou as reclamações, sem dar parecer algum. No meio desse fogo cruzado, Souza Freire parece ter adotado a atitude mais prudente: cortejar ambos os lados. Logo após sua chegada, em meados de 1667, o governador pediu ao rei para que Góis de Araújo assistisse no despacho da Relação enquanto estivesse em Salvador, e pouco depois nomeou Guedes de Brito como sargento-mor de um terço da infantaria paga de Salvador. Já no final de seu governo, o proveu como mestre de campo de um terço de infantaria, apesar de sua experiência ser muito menor do que diversos outros militares de carreira na capitania111. 105

AC, vol. IV, pp. 310-1 (citação) e AHMS, PGS, 1660-77, fls. 119-122. AC, vol. IV, pp. 324-9. 107 AHU, Bahia, LF, cx. 19, doc. 2238. 108 AC, vol. IV, pp. 311-2. 109 DH, vol. 23, pp. 18-23. Outro dos presos, Lourenço de Brito de Figueiredo, também conseguiu mercê de um triênio do ofício de provedor-mor, assim como seu pai: pp. 151-4 e vol. 66, pp. 33-4. 110 AHU, Bahia, LF, cx. 20, doc. 2272 e cód. 16, fl. 298. 111 AHU, Bahia, LF, cx. 19, doc. 2216; DH, vol. 23, pp. 82-5 e vol. 24, pp. 99-103. Em 1669, o governador nomeou um filho de Ravasco como tesoureiro do donativo dos quatro vinténs: AHMS, PGS, 1660-1677, fls. 189-191 e outro como capitão de infantaria: DH, vol. 23, pp. 447-9. O secretário de Estado, por sua vez, recebeu uma sesmaria: pp. 458-61. Já o Desembargador Manuel de Almeida Peixoto, inimigo de Óbidos, afirma ter sido 106

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Provavelmente era uma maneira de tentar obter o apoio da Câmara, liderada por Guedes de Brito (interlocutor preferencial do governador112) em 1667 e 1669, que estava impondo algumas dificuldades à cobrança do donativo, recusando-se a aceitar a forma sugerida por João de Góis de Araújo e ordenada pelo rei: uma junta de seis homens, dois de cada um dos três Estados. Procurava-se, assim, manter o controle exclusivo do Senado sobre “o maior donativo que vassalos alguns ofereceram a Seu Rei e Senhor”113. Araújo não deixou de denunciar essa resistência, responsabilizando sempre José Moreira de Azevedo, e destacando que dos 300.000 cruzados arrecadados em 1664-6 pouco mais de 200.000 haviam sido enviados ao monarca, tendo o resto permanecido em Salvador em razão de salários, propinas e descaminhos114. Se o cálculo é verdadeiro (o Senado afirmava que o dinheiro havia sido gasto no sustento da infantaria115), pouco menos de 100.000 cruzados foram embolsados pela nobreza baiana, numa “taxa de administração” de quase 1/3 que ajuda, novamente, a entender a aceitação por parte da elite baiana dessa pesada contribuição. Esses recursos controlados pela municipalidade representavam “um dos maiores e mais regulares fluxos de riqueza líquida na província – e um que poderia ser aproveitado por aqueles dotados de influência e privilégio”, isto é, as elites locais116. Tais desvios provavelmente eram usuais na América Portuguesa117, ainda que sejam difíceis de detectar, em grande medida porque revelá-los não interessava às elites locais – que se beneficiavam com esses recursos – e nem à administração periférica da Coroa – pois só assim era possível arrecadar dinheiro adicional para as necessidades régias. Ao fim e ao cabo, como os responsáveis por angariar recursos só precisavam prestar contas a seu próprio grupo e aos representantes do rei, tornava-se relativamente simples subtrair esses valores. O “povo” provavelmente aceitava, ainda que insatisfeito (como demonstra a supracitada denúncia de 1651), devido ao seu limitado poder para reclamar e, possivelmente, pelos laços pessoais ou econômicos que os ligavam a membros da elite.

substituído por Souza Freire em seus cargos na Relação por João de Góis de Araújo e pelo outro desembargador natural do Brasil, Cristóvão de Burgos (AHU, Bahia, LF, cx. 21, docs. 2454-5), indicando uma tentativa de cooptação de aliados. 112 AC, vol. IV, pp. 322-3. 113 AHMS, PGS, 1660-1677, fls. 112v-119 (citação 115v-116). Veja-se DH, vol. 7, pp. 313-4 e 321-2: o governador manda que militares cobrem o donativo rapidamente, seguindo uma ordem régia, que reclamara que a contribuição era paga “com menos pontualidade do que é necessário” (DH, vol. 67, p. 16-7). 114 AHU, Bahia, LF, cx. 19, doc. 2228. 115 AC, vol. IV, pp. 314-6. 116 BEIK, William. Absolutism and society in seventeenth-century France: State power and provincial aristocracy in Languedoc. Cambridge: Cambridge UP, 1985, p. 245. Segundo o autor, a “taxa de administração” nessa província francesa também podia ser estimada em cerca de 1/3 (pp. 260-6). 117 MELLO, Evaldo Cabral de. “Pernambuco no período colonial” in: AVRITZER, Leonardo; BIGNOTTO, Newton; GUIMARÃES, Juarez & STARLING, Heloísa (orgs.). Corrupção: ensaios e críticas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008, p. 226.

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A tensão diminuiu em 1669, deixando-se de lado as acusações – atitude prudente numa briga em que os dois lados haviam cometido descaminhos118. O mais interessante nesse conflito é a capacidade que o maior representante do monarca na América possuía para impulsionar trajetórias de ascensão ao poder, principalmente pela nomeação de aliados em postos-chave, mas também, embora isso seja bem mais difícil de discernir, pelo prestígio emprestado às figuras que devem ter se associado mais proximamente ao vice-rei. Entretanto, se Óbidos conseguiu desalojar temporariamente a facção Pinheiro/Ravasco/Araújo do poder, pouco após sua ida para o Reino eles retornaram, e dos dois principais membros da facção criada pelo Conde – Moreira de Azevedo e Guedes de Brito – apenas aquele com amplos recursos locais foi capaz de permanecer um ator político relevante passados alguns anos do malfadado governo do 2º vice-rei do Estado do Brasil. Percebe-se, assim, que o poder de um governador em influenciar a dinâmica política podia ser significativo, mas era transitória e, como veremos, a relação entre poder local e representante real tendia a retornar as suas características já estabelecidas após a partida de quem havia servido como ponto focal de todas essas confusões. Assim, fosse por suas enfermidades e cansaço, como quis Sebastião da Rocha Pita 119, ou por prudência, o novo governador-geral Alexandre de Souza Freire desenvolveu um relacionamento tranquilo com a nobreza baiana durante seu governo, retornando ao padrão quebrado por Óbidos – e até intensificando-o, a se julgar pelo grande número de cartas trocadas entre governo e Senado. Concordou, por exemplo, com o pedido para arrendar um donativo sobre a cachaça, cuja produção crescera numa escala inaudita120. Como ocorria há décadas, o objetivo maior da colaboração era garantir o sustento da infantaria, e com esse fim o governador acatou um requerimento do Senado para atribuir uma parcela maior da carga fiscal aos homens de negócio, aliviando os “moradores, os mais contínuos nas contribuições, despesas e perdas na conservação de seus engenhos”121. Mesmo quando discordava das decisões da municipalidade, Souza Freire sempre repetia “desejar eu muito livrá-los desta opressão” em que viviam, dizendo mesmo que “se o tivera [dinheiro] de minha casa, com melhor vontade oferecera a vossas mercês para este desempenho”, isto é, as dívidas em razão do sustento da

118

Veja-se a decisão de manter Moreira de Azevedo como procurador: AC, vol. IV, pp. 407-9, em vereação liderada por Antônio Guedes de Brito. No ano seguinte, porém, vota-se outra vez por sua substituição: vol. V, pp. 34-6. Mais críticas a ele ocorrem em 1672, quando o irmão de João de Góis de Araújo, José de Góis de Araújo, foi eleito juiz: pp. 64-6. No mesmo ano, o Senado pede para que Moreira de Azevedo não possa mais tirar inquirições para habilitações das ordens militares: AHU, cód. 17, fl. 74. Para o recuo dos oficiais no ano seguinte e vitória judicial de Moreira de Azevedo, veja-se AC, vol. V, pp. 103-6 e 152. 119 PITA, História, pp. 375-6. 120 AC, vol. IV, pp. 367-72. 121 AHMS, PGS, 1660-1677, fls. 132-134 (citação à fl. 133) e 138v-141.

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infantaria122. Da mesma maneira, repetidamente procurava “louvar e agradecer muito a vossas mercês o cuidado com que zelam [pel]o serviço de Sua Alteza e benefício deste povo”123. Outro elemento que deve ter tornado Alexandre de Souza Freire mais querido entre a nobreza baiana foi a reestruturação das tropas de ordenança, abrindo espaço para quatro novos coronéis (incluindo homens poderosos, como Francisco Gil de Araújo) e muitos outros oficiais. Aproveitando a boa vontade dos nomeados, incluiu os coronéis nas discussões da Câmara sobre a cobrança do donativo, com o objetivo de tornar a arrecadação mais eficiente124. O governador também concordou com a fixação de um valor mínimo para o açúcar em 1669, ano em que os preços estavam perigosamente baixos, ao menos na visão dos produtores, e emprestou 200$ à Câmara para que se pagasse ajuda de custo aos capitães que iam combater os indígenas125. Imagem 1: organograma simplificado da estrutura de arrecadação dos donativos (c. 1670) Câmara Municipal

Coronel de ordenança

Capitães de ordenança

Governador-geral

Escrivão dos donativos

Tesoureiros (dos donativos e da Câmara)

Coronel de ordenança

Coronel de ordenança

Capitães de ordenança

Capitães de ordenança

Nomeados pelo governador Coronel de ordenança

Capitães de Ordenança

Em troca, o Senado tratava Souza Freire com toda a cortesia e contribuía sempre que lhe era pedido, chegando os camaristas de 1669 a fornecerem de seus próprios rebanhos dezenas de cabeças de gado cada um, para não onerar mais as já sobrecarregadas finanças municipais126. Um deles, o sargento-mor Marcos de Bitencourt (capítulo III) escreveu ao Doutor Cristóvão Soares de Abreu (filho do antigo provedor-mor da fazenda Francisco Soares de Abreu com uma 122

AHMS, PGS, 1660-1677, fls. 141v-145 (citações a fls. 144 e 144v). AHMS, PGS, 1660-1677, fls. 145-146v (citação à fl. 145v), e a resposta do Senado em 146v-149v. 124 Vejam-se algumas de suas muitas nomeações em DH, vol. 31, pp. 388-417, e cartas para o Senado em DH, vol. 86, pp. 164-6. Cf. também AC, vol. IV, pp. 387-92. O governador-geral reclama das demoras em pagar o donativo em missiva ao rei: AHU, Bahia, LF, cx. 20, docs. 2276 e 2308. 125 AC, vol. IV, pp. 409-11 e vol. V, pp. 5-6; AHMS, PGS, 1660-1677, fls. 171v-173v. 126 Veja-se, por exemplo, AHMS, PGS, 1660-1677, fls. 179v-180v e 186-9, sobre a guerra ao gentio. 123

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mulher natural do Brasil), então vereador mais velho da Câmara de Lisboa e pessoa de alguma influência na Corte desde a década de 1640, elogiando o governador “que sua cortesia e bondade merece que sempre nos lembre”, apesar de sua “frouxidão” em alguns momentos127. O senhor de engenho e letrado Manuel Botelho de Oliveira também elogiou Souza Freire em verso: “em paga do valor sempre aplaudido, América governa venturosa, Na presença gloriosa, Que a parte de dois mares satisfeita. África o teme, América o respeita”128. Vê-se, portanto, que a residência desse governador-geral pode ter pintado um quadro exageradamente róseo, mas não muito afastado da realidade. Nela diz-se que Alexandre de Souza Freire procedeu “com grande desinteresse e limpeza, assim a respeito da Fazenda Real de Vossa Alteza como dos moradores, aos quais tratava com grande acolhimento e procurava fazer justiça, por cuja causa foi geralmente benquisto e amado, sem haver dele queixas”129. Percebe-se aqui as duas preocupações centrais da Coroa: que o governador-geral não desviasse fundos e fosse “geralmente benquisto e amado”, pois, como ficava cada vez mais evidente, uma relação amigável com os vassalos tornava muito mais simples o cotidiano da governação, já que o representante da Coroa dependia da elite baiana para pagar a infantaria e arrecadar os donativos, as duas principais preocupações da monarquia nesse momento.

Tempos de Paz (1671-94)? Em meados de 1671 chegou à Salvador Afonso Furtado de Castro do Rio de Mendonça (1671-5)130. O novo governador-geral manteve uma relação tranquila com as elites locais desde o início de seu governo, para o que talvez tenha contribuído sua imediata eleição como provedor da Misericórdia em 3 de julho do mesmo ano, em sessão que contou com a presença de muitos dos homens mais ilustres da Bahia131. Nada sabemos sobre sua atuação no comando da irmandade, exceto o que diz seu panegirista ao elogiar “o generoso de sua esplêndida caridade”, o que, sendo verdade, teria sido útil para a construção de sua boa reputação em Salvador132.

127

BPA, 54-VIII-37, fl. 109. OLIVEIRA, Poesia completa, p. 113. O poeta havia “largado o hábito de bacharel” para acudir à defesa da cidade quando Souza Freire convocou os moradores: AHU, cód. 86, fls. 250-251 (citação à fl. 250). 129 AHU, Bahia, LF, cx. 22, doc. 2620. Veja-se a consulta em cód. 17, fl. 162. 130 Cf. seu regimento em RAU, Virginia & SILVA, Maria Fernanda Gomes da (orgs.). Os manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval respeitantes ao Brasil. Coimbra: Universidade, 1955, vol. I, pp. 211-29. 131 ASCMS, Livro 2º de Eleições, 1667-1726, fls. 5-5v. Logo após sua chegada, Afonso Furtado também mereceu dois sonetos elogiosos de Botelho de Oliveira: Poesia Completa, pp. 69-70. 132 “O panegírico fúnebre a D. Afonso Furtado, de Juan Lopes Sierra (Bahia, 1676)” in: SCHWARTZ, Stuart & PÉCORA, Alcir (orgs.). As excelências do governador: o panegírico fúnebre a d. Afonso Furtado, de Juan Lopes Sierra (Bahia, 1676) [trad.]. São Paulo: Companhia das Letras, 2002 [1979], p. 119 (citação) e 125-7. 128

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Assim, Furtado de Mendonça recorreu à Câmara para garantir que esta decidisse com os mercadores o preço do açúcar, de modo a não atrasar a saída da frota – apesar de o regente D. Pedro ter ordenado “a este governo que se não intrometesse no preço dos açúcares” – e para reunir dinheiro e mantimentos para as entradas no sertão133. Da mesma maneira, ordenava ao provedor da alfândega (cargo transmitido hereditariamente entre as famílias da terra desde a fundação de Salvador, então na posse do fidalgo Antônio de Brito de Castro, seu antecessor na Santa Casa) que mediasse entre homens de negócio e mestres de navios para definir o valor do frete, como o fizeram todos os governadores subsequentes, instituindo uma intervenção no mercado que tendia a favorecer os grupos locais, diminuindo seus custos134. Frente a uma dúvida levantada pelo próprio Senado sobre sua jurisdição para definir o preço da farinha de mandioca, o governador-geral escreveu que “às Câmaras pertence pôr-se o preço dos mantimentos, e se para este efeito necessitar de alguma ordem minha, por esta lhe dar a vossas mercês toda a faculdade necessária para que se evite a exorbitância que há no preço delas”135. Reclamações sobre os atrasos no donativo e no pagamento da infantaria existiram, mas não constituíam nada de extraordinário, já que muitas vezes o Senado retardava os pagamentos em razão da demora da arrecadação, ou simplesmente por estar utilizando temporariamente os recursos para outros fins136. Se o governador-geral não era tão cortês quanto seu antecessor, também não era agressivo, tomando a cooperação camarária como algo inevitável137. Por outro lado, deixava um espaço um pouco maior para a autonomia do Senado, mesmo em temáticas tributárias, como “a extinção do imposto do azeite de peixe”, feita “sem mais intervenção do governador-geral nem de ministro algum”138. Essa atitude pode ter derivado de uma carta régia enviada no início do seu governo, em que a Coroa, depois de pedidos dos procuradores da Bahia (nosso conhecido José Moreira de Azevedo) e do Rio de Janeiro, determinava que nenhum oficial régio deveria se intrometer “nas eleições da Câmara, nem em nomear pessoas para servirem de tesouro delas nem nos lançamentos dos donativos”. Apesar da ironia de este pedido ter sido impetrado por alguém que havia sido nomeado tesoureiro por Óbidos, a determinação certamente reforçava a autonomia camarária139.

133

DH, vol. 86, pp. 189-91 (citação à p. 189). DH, vol. 8, pp. 157, 215 e 239-40. 135 AC, vol. V, pp. 66-7. 136 DH, vol. 86, pp. 194-201 e 204-5; AHMS, PGS, 1660-1677, fls. 331-331v. 137 Curiosamente, a carta em que é mais efusivo (“eu desejo tanto a este povo todas as felicidades”) foi enviada ao Senado pouco antes de sua morte: DH, vol. 86, p. 207. 138 AC, vol. V, pp. 115-8. Algo similar ocorre na taxação dos criadores de gado do sertão (pp. 150-1). 139 AHMS, PR, vol. II, fls. 146v-147. 134

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Mesmo assim, a Coroa determinou que o governador deveria exigir das Câmaras do Brasil o envio de “relações dos impostos e donativos que cobram por seus oficiais (...) com toda a clareza que convém”140. Ainda que essa instrução tenha sido ignorada, é um dos primeiros sinais do lento e tortuoso processo de intromissão do poder régio nos donativos administrados pelo poder local, iniciado nesse momento em que a paz com as Províncias Unidas e a monarquia hispânica já havia sido selada, mas que só vai se consolidar na segunda década do século seguinte, em 1713 para a Bahia e até 1727 para o Rio de Janeiro e Olinda, dentro do contexto de revoltas na década de 1710 e de inflexões políticas na Corte joanina 141. O fim da Guerra de Restauração no Reino em 1668 e, principalmente, a ratificação do tratado de paz com as Províncias Unidas dos Países Baixos em 1669 diminuíram grandemente a ameaça militar sobre a América Portuguesa, de modo que a Coroa teria menos necessidade da colaboração dos vassalos brasílicos. Assim, a monarquia se sentiu mais confiante para começar, mesmo que levemente, a limitar a autonomia fiscal dos poderes locais americanos142. Mais importante, enquanto no Reino os “povos” (isto é, os representantes das nobrezas provinciais) reunidos em Cortes foram capazes de impor o levantamento dos tributos cobrados para a guerra143, garantindo a virtual dissolução do exército permanente, nada similar ocorreu na América. Apesar de algumas reclamações esparsas de que os conflitos há muito haviam cessado, as exações continuaram, indicando uma significativa divergência entre as trajetórias políticas dos dois lados do Atlântico, provavelmente devido à incapacidade das elites da América Portuguesa de montar um protesto coeso, unindo-a ao que se fazia no Reino, devido ao caráter marcadamente paroquial das elites locais, tanto em Portugal quanto no no Brasil.

140

AUC, CCA, Livro do Governo da Baía, 1578-1725, VI-III-1-1-4, fls. 141-142v (repetida na instrução dada a Roque da Costa Barreto: fls. 142v-145). 141 CRUZ, Miguel Dantas da. O Conselho Ultramarino e a administração militar do Brasil (da Restauração ao Pombalismo): política, finanças e burocracia. Tese de doutorado. Lisboa: ISCTE, 2013, pp. 158-77. Veja-se também os trabalhos essenciais de FIGUEIREDO, Revoltas, fiscalidade e identidade colonial, principalmente pp. 84-153 e 489-90, e “Equilíbrio distante: o Leviatã dos Sete Mares e as agruras da Fazenda Real na província fluminense, séculos XVII e XVIII”. Varia História, n. 32, 2004, pp. 144-75, embora, em minha opinião, o autor sobrevalorize a oposição entre os vassalos ultramarinos e a Coroa. Para Pernambuco, cf. LISBOA, Breno. “Cuidando do patrimônio da Coroa: as contas da Câmara municipal de Olinda na segunda metade do século XVII e na primeira metade do século XVIII”. SÆCULUM, vol. 29, 2013, pp. 421-36. Para o contexto mais amplo, vejase ALMEIDA, Luís Ferrand de. “O absolutismo de D. João V” [1992] in: id. Páginas dispersas: estudos de História Moderna de Portugal. Coimbra: Instituto de História Econômica e Social, 1995, pp. 183-207; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Identificação da política seiscentista. Notas sobre Portugal no início do período joanino”. Análise Social, vol. 25, n. 157, 2001, pp. 961-87 e BICALHO, Fernanda. “Inflexões na política imperial no Reinado de D. João V”. Anais de História do Além-Mar, vol. VIII, 2007, pp. 37-56. 142 É possível estabelecer aqui uma analogia com o enfraquecimento das lideranças indígenas e negras após a expulsão dos neerlandeses de Pernambuco, pois a diminuição de sua importância militar ocasionou a perda dos privilégios prometidos pela Coroa: RAMINELLI, Nobrezas do Novo Mundo, pp. 150-4, 164-8, 189-94, 199-205. 143 COSTA, Fernando Dores. “A paz de 1668 e a ilegitimidade dos exércitos permanentes”. Revista de História das Ideias, vol. 30, 2009, pp. 355-74.

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Nos momentos em que julgava necessário, Furtado de Mendonça não hesitava em impor sua autoridade, como se vê quando o Senado registra em ata que “o senhor governador Afonso Furtado obriga a esta Câmara da Bahia tenha a dita farinha conchavada como foi sempre para haver pronta e certa ração para a infantaria, e evitar os insultos e clamores que fazem os soldados” – ainda que provavelmente haja algo de protocolar na afirmação, já que foi textualmente repetida ao longo do século144. Lopes Sierra trata longamente de uma junta que o governador-geral teria reunido para procurar recursos para atacar os indígenas inimigos. A Câmara, porém, recusara-se a fintar o povo para obter o dinheiro necessário em razão dos muitos encargos já pagos, frente ao que Furtado de Mendonça pouco pôde fazer145. A história é corroborada por uma carta da municipalidade ao governador, na qual os camaristas escrevem: “Sua Alteza deve de direito e justiça por sua Fazenda Real defender seus vassalos” – embora, como deixam implícito os vassalos, isso não ocorra146. Fosse por uma incapacidade real, potencializada pela baixa do preço do açúcar, ou simplesmente porque Furtado de Mendonça não estabelecera com os vassalos uma relação amistosa o suficiente para que o Senado se dispusesse a mais esse sacrifício, o fato é que o governador-geral nada pôde fazer. Furtado de Mendonça deve, porém, ter se conformado, se realmente acreditava nos princípios que enunciara em carta ao governador de Pernambuco, de 1672: “nem os povos nem os postos inferiores podem por si resolver coisa alguma contra o que dispõem os superiores, nem ainda os que são superiores meter-se na jurisdição alheia”147. Furtado de Mendonça continuou a prover membros destacados da elite como coronéis e a recorrer a eles para as mais diversas necessidades, desde coordenar os capitães do mato na repressão aos quilombos a recrutar homens para expedições contra os indígenas, além da cobrança do donativo148. Exatamente por depender dos principais oficiais de ordenança para a “execução das ordens desse governo”, o governador-geral proibiu que esses homens ocupassem cargos no Senado149. Foi, portanto, através das ordenanças que esse governador-geral estabeleceu uma colaboração mais intensa com a elite local 150. Também contou com o auxílio

144

AC, vol. V, pp. 130-3, 136-42 e 146-7 (citação à p. 131, repetida à p. 136). Cf. também AHMS, PGS, 16601677, fls. 289v-290. 145 “O panegírico”, pp. 129-36. 146 CS, vol. II, pp. 6-10 (citação à p. 8). O alcaide-mor Francisco Teles de Menezes escreveu ao Duque de Cadaval acusando Furtado de Mendonça de tentar influenciar as eleições da Câmara, com o objetivo de tornar o Senado mais dócil a seus desmandos – muitos, a se acreditar nessa denúncia: RAU & SILVA, Os manuscritos, pp. 240-1. 147 DH, vol. 6, p. 272. A melhor apreciação sobre o homem e seu governo ainda é SCHWARTZ, Stuart. “Introdução” in: id. & PÉCORA (orgs.), As excelências, pp. 27-32. 148 DH, vol. 8, pp. 130, 206, 300-1, 393, 397-8, 415-8, 421 e 425-7; vol. 12, pp. 222-4. 149 AC, vol. V, pp. 88-90 (citação) e DH, vol. 86, pp. 201-2. 150 “O panegírico”, p. 141 menciona uma expedição na qual o governador “deu mesa a todas as pessoas de conta que o assistiram, como foram coronéis, mestres de campo, capitães e graves pessoas, que foram mais de 30”.

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de potentados em suas campanhas contra os indígenas, como João Peixoto Viegas (a quem nomeou escrivão da Câmara após a morte de Rui de Carvalho Pinheiro), Francisco Dias de Ávila e Antônio Guedes de Brito151. O momento mais memorável do governo de Furtado de Mendonça foi, porém, seu fim. No dia 25 de outubro de 1675 o governador-geral foi acometido por uma doença, sofrendo um declínio acelerado. Após quase um mês de enfermidade, começou-se a discutir quem lhe sucederia, e Furtado de Mendonça convocou “os ministros da Relação todos, os oficiais do Senado da Câmara desta Cidade, os prelados das religiões, os oficiais maiores da milícia, o provedor-mor da fazenda real, e alguns sujeitos da nobreza e cidadãos” para uma reunião do paço na manhã do dia 24 de novembro, com o objetivo de “evitar com esta diligência as dissensões que costumam haver em semelhantes casos nos povos”, no dizer do provedor-mor da fazenda Antônio Lopes de Ulhoa152 – revelando, novamente, o caráter inerentemente conflituoso da vacância do governo, intensificada pela ausência de uma ordem régia que determinasse os mecanismos de sucessão. Por isso, tanto Lopes de Ulhoa quanto o Conselho Ultramarino urgiram o monarca a escolher um governador o mais rapidamente possível153. O registro oficial dos debates dessa junta não chegou até nós, mas sua grande importância e as polêmicas ainda maiores que gerou fizeram com que vários de seus participantes escrevessem relatos da discussão. Cada um dos presentes deveria votar sobre a nova forma de governo, mas não havia consenso sequer sobre quantos deveriam ser os governadores provisórios. A sugestão do desembargador Antônio Nabo Peçanha de que deveriam ser escolhidos o chanceler da Relação, o mestre de campo mais antigo e o juiz ordinário mais velho foi acatada por quase todos154. Os três eleitos seriam Agostinho de Azevedo Monteiro, Álvaro de Azevedo e Antônio Guedes de Brito (aliados de Peçanha, segundo o desembargador João de Góis de Araújo). Entretanto, os desembargadores Manuel da Costa Palma e José de Freitas Serrão “disseram [que] não convinha o juiz”155, numa tentativa de excluir Guedes de Brito do poder. É de se notar que poucos dias após a posse de Guedes de Brito no Senado Furtado de Mendonça nomeara como escrivão da Fazenda Real o polêmico

151

DH, vol. 8, pp. 393-4, 397-8 e 416; vol. 25, pp. 397-404, AHMS, PGS, 1660-1677, fls. 287-289 e 331v-339; “O panegírico”, pp. 101 e 141-2. 152 AHU, Bahia, LF, cx. 23, doc. 2688 (citações); “O panegírico”, pp. 187-202. 153 DH, vol. 88, pp. 85-6. 154 “O panegírico”, pp. 203-4. 155 AHU, Bahia, LF, cx. 23, doc. 2698 (carta de João de Góis de Araújo, 27 de fevereiro de 1676).

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José Moreira de Azevedo, possivelmente como agradecimento à ajuda que Guedes de Brito vinha lhe emprestando no conflito com os indígenas e aproximando-se dessa facção156. Apesar de suas negativas, o próprio Góis de Araújo desejava ser governador, e o fato de estar servindo como provedor da Santa Misericórdia era uma prova de seu prestígio, riqueza e poder157 – honraria obtida em grande medida, sem dúvida, graças à importância de sua família há quase meio século (capítulo III). O argumento em favor de sua presença no triunvirato seria, porém, seu papel como “presidente” do Senado, pois como ouvidor-geral do cível exercia a função de corregedor da comarca, supervisionando o Senado – no que recebeu o apoio do poderoso mestre de campo Pedro Gomes e do sargento-mor Damião Lençóis de Andrade. Guedes de Brito e seu colega, o juiz mais novo Pedro Camelo Pereira de Aragão, reagiram, afirmando “que a Câmara não tinha presidente senão o governador” – citação reveladora da intensa relação entre o Senado e o alter ego americano do monarca158. O próprio Gomes diria depois que “o dito governador foi inimigo capital dele suplicante, e tiveram entreveros, e causas, que de direito produzem e provam a dita inimizade”, e que “estando morrendo, se acordou” para fazer com que o militar no triunvirato fosse Álvaro de Azevedo, apesar de este não exercer seu posto desde 1671159. Compreende-se, assim, o porquê de Gomes apoiar um adversário do governador, talvez com a esperança de assumir o lugar de Álvaro de Azevedo. Gomes não exagerou quando afirmou que a restituição de Álvaro de Azevedo havia sido uma manobra para impedir Gomes de participar do triunvirato. Azevedo conseguira um alvará favorável determinando seu retorno ao cargo em 13 de julho de 1672, mas o príncipe regente determinara que ela só deveria ocorrer após o término do governo de Furtado de Mendonça. Este, em 20 de novembro de 1675 (apenas quatro dias antes da convocação da junta, portanto), escreveu um despacho em que dizia: “cumpra-se como Sua Alteza manda, (...) e terá seu efeito no mesmo instante em que por algum acaso eu faltar do governo deste Estado, e sem dúvida, nem contradição alguma. (...) E debaixo desta cláusula hei logo dada posse do terço para o tal tempo e feita a restituição dele”. Apesar da data, o despacho só foi registrado no dia da morte

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DH, vol. 25, pp. 373-6. Moreira de Azevedo pouco depois pediria a propriedade desse posto: AHU, Bahia, LF, cx. 22, doc. 2659. Permaneceu no cargo até 26 de maio de 1676: DH, vol. 26, pp. 61-3. 157 ASCMS, Livro 2º de Eleições, 1667-1726, fls. 9-9v. 158 AHU, Bahia, LF, cx. 23, doc. 2698. Em Angola o ouvidor-geral funcionava como presidente da Câmara, mas em Goa o Senado resistiu a essa pretensão até o início do XVIII: BOXER, Charles. Portuguese Society in the Tropics: the municipal councils of Goa, Macao, Bahia, and Luanda, 1510-1800. Madison: University of Wisconsin Press, 1965, pp. 23 e 113. 159 IAN/TT, Colecção São Vicente, L. 13, fl. 270: essa petição faz parte de um embate entre os herdeiros do governador e o mestre de campo por algumas terras no sertão, descrito nos fls. 264-272; veja-se também DH, vol. 67, pp. 325-6. Apesar de Azevedo ser natural da Bahia (filho de um militar reinol cavaleiro da Ordem de Cristo), estava muito menos integrado à nobreza baiana que Gomes, que por esses anos já fora provedor da Santa Casa por duas vezes (1660 e 1667), enquanto Azevedo só se tornaria irmão dessa irmandade em 1664 (capítulo III).

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do governador, em 26 de novembro160. Essa discrepância sugere que o governador decidiu recolocar Álvaro de Azevedo no cargo após a resolução da junta de 24 de novembro, como uma forma de manter seu inimigo Pedro Gomes fora do governo. Os intrincados detalhes valem menos por si do que pelo que revelam, ainda que eu deva admitir que reconstruí-los é tão estimulante quanto montar um quebra-cabeça. Prazeres infantis à parte, essas peças nos permitem entrever um frenético jogo de alianças na tentativa de preencher um vácuo de poder. Essas facções não tinham como elementos determinantes a naturalidade ou o grupo social, pois tanto Góis de Araújo quanto Guedes de Brito eram naturais da terra, mas quem se aliou ao desembargador foi o reinol Pedro Gomes. Todos os três eram membros destacados da nobreza baiana e senhores de engenho, possuindo interesses econômicos e sociais idênticos. O cargo também não servia como um ponto unificador, como se vê através das fraturas dentro do próprio Tribunal da Relação ou do conflito entre os mestres de campo. O que temos são consórcios baseados em projetos individuais ou familiares de poder, mais instáveis do que nos é possível perceber. Bernardo Vieira Ravasco fizera parte do mesmo grupo que Araújo 10 anos antes, mas nesse momento não apoiou o desembargador, talvez porque o laço que os unia desaparecera havia três anos, com o falecimento de Rui de Carvalho Pinheiro, cunhado de ambos. Álvaro de Azevedo também havia, como eles, se indisposto com Óbidos, mas isso não era suficiente para formar uma aliança duradoura. No final das contas foi a solução aceita por todos os outros, inclusive o Senado e o governador, que prevaleceu: o triunvirato composto pelo Desembargador Azevedo Monteiro, pelo mestre de campo Álvaro de Azevedo e pelo juiz ordinário Guedes de Brito. Eles ascenderam ao poder rapidamente, já que Furtado de Mendonça faleceu apenas dois dias depois da polêmica junta. Entretanto, as manobras políticas estavam longe de terminar, porque permanecia uma dúvida: seria Guedes de Brito substituído pelo próximo juiz mais velho, já que seu mandato na Câmara estava prestes a acabar? Com uma recompensa tão alta, não só Guedes de Brito começou a buscar formas de se manter no poder e João de Góis de Araújo de colocar seu irmão como juiz mais velho, mas “publicamente se tem declarado as principais famílias desta cidade no intento” de elegerem “o juiz mais velho que há de sair no primeiro pelouro, com a ambição de que entre no governo”, no dizer dos camaristas, em carta escrita três dias após o falecimento do governador. Em seguida, após elogiarem Guedes de Brito, “muito amado da infantaria”, disseram estar com “ânimo de fazermos a Vossa Alteza um particular serviço em suspender a eleição, e se assistir

160

DH, vol. 26, pp. 20-2 (citação à p. 21).

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este Senado dos oficiais presentes, para assim se conservar o Governo no Estado em que o deixou o Governador e capitão-geral (...), porque entendemos que é o que só convém ao serviço de Vossa Alteza e quietação desta República”, pois assim se evitaria “o perigo das sedições”161. Em outras palavras, a disputa por uma vaga no triunvirato que governaria o Estado do Brasil ameaçava produzir uma guerra civil, e a solução proposta pelos oficiais em exercício era, simplesmente, que eles continuassem no poder até a chegada do próximo governador. A figura dominante na municipalidade com a saída de Antônio Guedes de Brito era o juiz mais novo Pedro Camelo de Aragão Pereira, destacado membro da família Aragão, a mais importante da Bahia por essas décadas (capítulo III). Em troca do apoio, Pedro manteria não só grande influência no Senado por um longo tempo, mas também receberia imediatamente a patente de coronel de ordenança da cidade162. O triunvirato reforçou sua influência na Câmara ao nomear como escrivão serventuário dela o capitão Domingos Dantas de Araújo em 4 de dezembro, colocando no cargo um aliado subserviente aos interesses de Guedes de Brito163. No dizer do rancoroso Doutor João de Góis de Araújo, os membros da facção de Guedes de Brito “começaram a persuadir a infantaria que convinha fosse Antônio Guedes governador por ser muito rico, e que se não fizesse eleição, e a espalhar pelo povo” a ideia. Em seguida, os camaristas – liderados por Pedro Camelo Pereira de Aragão – fizeram “requerimento [para] que se conservasse assim como estava e não houvesse eleição”. Para consolidar o apoio da infantaria a Guedes de Brito, este emprestou dinheiro para o pagamento de dez meses de soldos atrasados da infantaria com “seis sacos de dinheiro”. Essa facção também teria noticiado através de pasquins sediciosos que haveria um motim se Góis de Araújo tentasse presidir uma eleição para nomear novos camaristas, afirmando que a intenção do desembargador era apenas “tirar Antônio Guedes de Brito do governo” para colocar seu irmão José. O desembargador tentou presidir a eleição, mas sua casa amanheceu com mais pasquins sobre a temida revolta. Assim, na Casa da Câmara só apareceram os camaristas em exercício, e Guedes de Brito escusou-se alegando “uma dor de garganta”. João de Góis de Araújo não era nada senão persistente, de modo que ordenou que o meirinho batesse nas casas dos cidadãos para que viessem votar sob

161

AHU, Bahia, LF, cx. 23, doc. 2749. DH, vol. 12, pp. 373-5, também registrado na Câmara em AHMS, PGS, 1660-1677, fls. 358-361. 163 AHMS, PGS, 1660-1677, fls. 355v-358. Dantas de Araújo vinha cobrindo as ausências de João Peixoto Viegas desde 1º de janeiro de 1675: AC, vol. V, p. 153. Ele estava ligado ao mestre de campo por servir o ofício de tabelião de propriedade de Guedes de Brito, não sendo homem de riqueza ou qualidade notáveis: AHU, Bahia, LF, cx. 23, doc. 2697. Também mantinha laços com José Moreira de Azevedo, pois quando este obteve o ofício de “mamposteiro-mor dos cativos do Brasil” em 1669, Dantas de Araújo foi imediatamente nomeado seu escrivão: IAN/TT, Chancelaria de D. Afonso VI, L. 26, fls. 387v-388. Por volta de 1677, Dantas de Araújo iria ainda ao Reino como procurador de Antônio de Aragão Pereira, irmão de Pedro Camelo, demonstrando a força de seus laços com essa facção: DH, vol. 67, pp. 298-302 e AHU, Bahia, LF, cx. 24, doc. 2931. 162

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ameaça de prisão. Conseguiu fazer a eleição, mas no dia de abertura dos pelouros, 11 de janeiro de 1676, o juiz Pedro Camelo se opôs à posse dos eleitos, mantendo-se os oficiais do anterior no cargo, situação inédita. A continuidade dos camaristas de 1675 no poder foi legitimada pela Relação, principalmente graças ao esforço do Chanceler Agostinho de Azevedo Monteiro, que, “como um dos três governadores, se empenhou tanto neste negócio que diz ao escrivão do crime e chancelaria Manuel Teixeira de Carneiro que não havia de haver eleição”. A fim de impedir Góis de Araújo de continuar em sua cruzada, ele foi declarado suspeito graças ao testemunho de vários criados de Furtado de Mendonça, “seus inimigos” capitais, e de amigos e parentes do mestre de campo Guedes de Brito. A devassa sobre o motim também não chegou a lugar algum, pois seu juiz, o Doutor Cristóvão de Burgos, era casado com D. Helena da Silva Pimentel (capítulo II), aparentada tanto com Pedro Camelo quanto com Guedes de Brito164. A derrota de Góis de Araújo foi sacramentada com a eleição de Pedro Camelo para a provedoria da Misericórdia em 2 de julho de 1676, reafirmando o prestígio do novo coronel165. No final do mesmo ano, chegou a Salvador uma carta régia referendando a decisão local, ordenando que não se fizesse eleição até a chegada do próximo governador, e que “o Governo continue na mesma forma que o deixou Afonso Furtado e pelas mesmas pessoas”. Como a carta foi enviada à Câmara, temos a situação insólita de camaristas avisarem aos governadores de sua permanência no cargo166. Entretanto, a facção de João de Góis de Araújo não aceitou a derrota silenciosamente, desforrando-se em um dos membros mais frágeis do bando vencedor: o polêmico José Moreira de Azevedo. Em 20 de março de 1676, “voltando para sua casa, saindo da Igreja de São Francisco, lhe deram (por uma banda da rede em que ia) com um cutelo de modo que lhe partiram o olho esquerdo pelo meio, de cujo golpe ficou leso daquela parte, por lhe quebrarem alguns ossos”. O Conselho Ultramarino recomendou que o desembargador Manuel da Costa Palma tirasse a devassa, já que era cavaleiro da ordem de Cristo – honraria necessária, pois se suspeitava da participação de outros cavaleiros no crime, indicando que o atentado era atribuído a membros da elite baiana. Como Costa Palma era, porém, próximo a seu colega (e cavaleiro) João de Góis de Araújo, a devassa nada revelou167. A nobreza baiana não se resumia, porém, a essas duas facções. Por isso, os três governadores procuraram cortejar aliados e ameaçar seus inimigos. O primeiro foi uma figura 164

AHU, Bahia, LF, cx. 23, doc. 2697. A narrativa de João de Góis de Araújo é parcialmente corroborada por AC, vol. V, pp. 174-5 e 177-8 e pela carta da Câmara (15 de abril de 1676) em AHU, Bahia, LF, cx. 23, doc. 2709 (documentos produzidos por seus rivais, cabe lembrar), assim como por “O panegírico”, p. 218. 165 ASCMS, Livro 2º de Eleições, 1667-1726, fls. 10-10v. No ano seguinte, Pedro Camelo pôde passar o cargo para seu primo Domingos Garcia de Aragão, reafirmando o prestígio da família (fl. 11-11v). 166 AHMS, PR, vol. II, fls. 192-192v (citação) e DH, vol. 86, p. 214. 167 AHU, Bahia, LF, cx. 23, docs. 2774-6.

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poderosa, ainda que distante de Salvador: Francisco Dias de Ávila, o senhor da Torre. No dia seguinte à morte de Afonso Furtado de Mendonça o triunvirato escreveu ao potentado enaltecendo os serviços que “vossa mercê e sua casa” haviam prestado ao monarca e, por isso, tinham decidido nomeá-lo Coronel de ordenança, efetivamente criando um posto só para acomodá-lo168. Como Guedes de Brito e Dias de Ávila já haviam entrado em conflito por terras no sertão em 1668, talvez a patente marcasse uma bem-sucedida aproximação169. Os três governadores também procuraram garantir o apoio de Vieira Ravasco, como se pode deduzir de uma alteração que fizeram na folha de pagamento, colocando o nome do secretário de Estado logo abaixo dos três governadores, implicitamente concedendo-lhe preeminência sobre os desembargadores – que evidentemente ofenderam-se com a injúria170. Em junho de 1676, por outro lado, os governadores depuseram a Guilherme Barbalho Bezerra do posto de coronel “pelo excesso que cometeu” (sem se especificar qual) e repreenderam a Afonso Barbosa da França (que, na pauta feita por João de Góis de Araújo, seria juiz mais velho e, consequentemente, governador em 1677, sucedendo a seu irmão, o coronel Lourenço) por querer opinar na escolha dos capitães para seu partido de ordenança171. Demonstrava-se para todos o poder dos governadores, desestimulando a consolidação de um partido oposicionista em volta do desembargador João de Góis de Araújo. Assim, em meados de 1676 o triunvirato havia consolidado seu poder. Entretanto, em 26 de julho do ano seguinte mais um evento viria a sacudir Salvador e trazer de volta boatos sobre motins: o falecimento do chanceler Agostinho de Azevedo Monteiro. Esse desembargador provavelmente era o parceiro dos sonhos para a nobreza baiana, a se julgar por uma carta que escreveu a Antônio de Aragão Pereira, irmão mais novo de Pedro Camelo, em setembro de 1676, quando o desembargador já era um dos três governadores há quase um ano. Nela, Azevedo Monteiro chama o senhor de engenho baiano de “meu senhor”, apresenta-se como “seu criado” e agradece por alguns móveis de jacarandá que recebera de presente do primo de Antônio, o senhor de engenho Pedro Garcia de Araújo (a quem também chama de “meu senhor”)172. Mesmo considerando os exageros característicos da cortesia barroca, é inimaginável pensar em qualquer governador-geral nomeado pelo monarca escrevendo em termos tão subservientes a um membro da elite local. Quando examinamos as reclamações do 168

DH, vol. 8, p. 430. BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O feudo. A Casa da Torre de Garcia d’Ávila: da conquista dos sertões à independência do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007 [2000], 2ª ed. rev., pp. 195-6, 209 e 225-6. Sobre a disputa, ainda em curso em 1675, veja-se DH, vol. 88, pp. 78-82. 170 AHU, Bahia, LF, cx. 23, doc. 2731. Veja-se a consulta em DH, vol. 88, pp. 127-9. 171 DH, vol. 9, pp. 10-1, 19-23. 172 AHU, Bahia, LF, cx. 23, doc. 2808. 169

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“povo da cidade da Bahia” contra Azevedo Monteiro em 12 de fevereiro de 1675 é mais fácil compreender o porquê dessa atitude. Tendo chegado a Salvador em 1659 com 7 filhos e uma esposa, “não levavam 18 camisas de seu, uma escrava e um moço de serviço”. Mesmo assim, Azevedo Monteiro enriquecera ao arrendar terras e não pagar os proprietários, usando sua influência para intimidá-los. Conseguiu, assim (e provavelmente vendendo sentenças a quem desse mais), tornar-se um lavrador de cana com 22 escravos, bois e cavalos173. Considerando esses indícios, penso que Azevedo Monteiro se contentou em ser um parceiro menor no governo, que lhe interessaria principalmente pelas oportunidades de ganho financeiro e prestígio. O mesmo deve ter ocorrido no caso de Álvaro de Azevedo, já que este escrevera ao monarca logo após tomar posse, pedindo para que o monarca mandasse um governador ou, ao menos, para que fosse escusado do cargo, por preferir servir apenas como mestre de campo174. Tanto Azevedo Monteiro quanto Álvaro de Azevedo eram bastante idosos, como notou Sebastião da Rocha Pita, de modo que “se não podiam esperar grandes disposições, nem pronta assistência”. Na prática, portanto, o governo estava sob controle do potentado Antônio Guedes de Brito, num nível muito maior do que estivera sob seu tio-avô, Lourenço de Brito Correia, quando foi um dos três governadores que sucederam Montalvão, pois era o único com “boa idade para sustentar o peso, com que não puderam os dois companheiros”175. A situação seria completamente diferente com o sucessor de Azevedo Monteiro, o desembargador baiano Cristóvão de Burgos. Apesar do parentesco distante de sua mulher com Guedes de Brito e a família Aragão, Burgos era um homem de personalidade forte e obstinada, acostumado a se envolver em conflitos para impor sua vontade, além de ser um dos mais ricos proprietários da capitania e senhor de três engenhos (capítulo II). Burgos já entrara em conflito com Guedes de Brito ao tentar impedi-lo de presidir a Relação e “assentar-se na cadeira debaixo do dossel da Relação, lugar destinado somente para a Real Pessoa de Vossa Alteza, se estivera presente, e para a pessoa do governador da justiça em ausência de Vossa Alteza, e com efeito o conseguira com a mão do Doutor Agostinho de Azevedo Monteiro”. Em consequência, Guedes de Brito e Álvaro de Azevedo, “atendendo mais a suas paixões particulares”, tentaram continuar a governar sozinhos após a morte de Azevedo Monteiro. Sugeriram que a Câmara arbitrasse a disputa, pois sabiam que ela decidiria a seu favor, já que pertenciam à sua “parcialidade” e “facção”176. O argumento do de Guedes de Brito e Álvaro de Azevedo era de

173

DH, vol. 88, pp. 48-50. DH, vol. 88, pp. 98-9. 175 PITA, História, pp. 395-6. 176 AHU, Bahia, LF, cx. 23, docs. 2795-8, primeira citação em 2796, as demais em 2795. 174

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que a ordem régia determinava que o governo deveria continuar com as “mesmas pessoas” escolhidas por Furtado de Mendonça. Assim como seu adversário, os membros remanescentes da junta provisória justificavam sua atitude, em carta para o Senado de 4 de agosto, para evitar “o que pudesse ser perturbação dessa República” e obedecer às ordens régias, contando com o apoio da municipalidade177. Como Burgos não desistira, intentaram no [dia] seguinte a maior desordem que se pode imaginar e foi intimidar-nos com um grande ajuntamento de gente que constava de algumas 80 ou mais pessoas, que nesse dia sete [de agosto] à noite andaram juntos por toda esta cidade, com bacamartes e outras armas, buscando aos oficiais de justiça, e reconhecendo as pessoas que encontraram, lhes diziam: “se é justiça ou meirinho, morra!”.

Guedes de Brito, Pedro Camelo e Álvaro de Azevedo acompanharam seus prepostos nessas andanças noturnas e procuraram fomentar um motim do povo e da infantaria, mas as ameaças não chegaram a se concretizar. Como Burgos se manteve firme, possivelmente contando mais com seus parentes da poderosa família Pimentel e sua vasta escravaria que com seus colegas letrados, os dois mestres de campo acabaram aceitando sua entrada no triunvirato no dia 11 de agosto de 1677. Antes, porém, queimaram os autos do agravo, para que não pudessem ser responsabilizados por “esta violência tão pública sem fundamento algum, e (...) grande escândalo e perturbação, e por maus modos encaminhados a um motim e rebelião”. Burgos pedia ao monarca, portanto, a punição de “Antônio Guedes de Brito, acostumado a ameaçar os ministros com levantamento [rebelião] só a fim de se sustentar no governo, como sucedeu, no fim do ano de 1675, depois de falecido Afonso Furtado”. Sua narrativa corroborara as acusações de João de Góis de Araújo, apesar de este tê-lo declarado como suspeito em seu relato de fevereiro de 1676. O fato de Burgos dizer que João de Góis de Araújo deveria apontar juiz para devassa do caso sugere uma reaproximação entre os dois, provavelmente incomodados com o poder de Guedes de Brito178. Ao fim e ao cabo, Burgos foi aceito no poder, de modo que “se achava o governo-geral do Brasil em três patrícios da Bahia”179, dois dos quais estavam entre os mais destacados membros da nobreza local. A única reação do Conselho Ultramarino frente a todas essas confusões foi repetidamente pedir ao monarca que enviasse um governador o quanto antes para evitar que irrompessem conflitos ainda mais graves, ao que D. Pedro sempre respondia: “com toda a brevidade declararei governador”180. Roque da Costa Barreto, porém, só chegaria a Salvador em março de 1678, após quase dois anos e meio de governo provisório. Além disso, 177

AHMS, PGS, 1660-1677, fls. 395v-397v, citação à fl. 396v. AHU, Bahia, LF, cx. 23, docs. 2795-8, primeira citação em 2796, última em 2798 e as demais em 2795. 179 PITA, História, p. 398. 180 DH, vol. 88, pp. 103-5 (citação à p. 105). 178

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a Coroa pouco escreveu ao triunvirato181, só voltando a se comunicar normalmente com o governo-geral em finais de 1677, após a nomeação de Roque da Costa Barreto, com cartas que viriam junto com ele para a América. O mesmo vazio ocorreu na correspondência com o Senado (capítulo VII), deixando um espaço livre de qualquer tipo de interferência régia para Guedes de Brito e sua facção. Como a conjuntura em Portugal não se alterou significativamente do momento em que a Coroa parou de escrever para a Bahia (finais de 1675) para quando retornou (finais de 1677), e o Rio de Janeiro (para citar apenas um exemplo) continuou a receber cartas normalmente182, parece-me que D. Pedro chegou à conclusão de que a situação política na capital do Estado do Brasil era complexa demais e qualquer ação régia poderia ser danosa. A opção escolhida foi a inação, confiando que o próximo governador-geral poderia resolver eventuais problemas e que o triunvirato manteria o status quo. A Coroa lusitana depositava, portanto, uma considerável confiança em seus vassalos baianos, resultado de décadas de contribuições e donativos excepcionais, frequentemente louvados tanto pelos governadores quanto pelo Conselho Ultramarino. Como, então, esse potentado e seus aliados atuaram nesse breve momento de autonomia significativa, no qual a nobreza baiana (ou ao menos uma facção dela) efetivamente se autogovernou em nome do rei? Não muito diferente dos outros governadores-gerais que lhes precederam, em verdade. Como se fazia desde Souza Freire, utilizavam os coronéis de ordenança para transmitir suas ordens, como levar o açúcar para o porto a tempo da partida da frota; ordenaram à Câmara de Salvador que definisse o preço do açúcar e que o provedor da alfândega acertasse o frete; juntaram-se à municipalidade para obrigar suas homólogas de Cairu, Camamu e Boipeba a fornecerem farinha; procuravam reparar as naus da Índia; mantiveram as expedições em curso contra os indígenas inimigos e instavam todos os capitães de ordenança a recolherem o donativo e reclamavam dos usuais atrasos na arrecadação. Em grande medida, eles sintetizaram sua política em carta ao Coronel Francisco Dias de Ávila: “siga Vossa Mercê em ambas o regimento e ordens que tiver do Senhor Afonso Furtado de Mendonça, porque não é nossa intenção alterá-las em coisa alguma”183. Um dos poucos momentos em que os interesses e inclinações pessoais de Guedes de Brito influenciaram o curso

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Veja-se os registros feitos na secretaria de Estado, publicados em DH, vol. 67. Só encontrei uma carta do monarca em AUC, CCA, Livro Governo da Baía, 1648-1701, VI-III-1-1-6, fls. 25v-26. Da parte do triunvirato, só me deparei com duas missivas à Coroa: fls. 27-28 e AHU, Bahia, LF, cx. 23, doc. 2710. 182 XAVIER & CARDIM, D. Afonso, pp. 332-9; AHU, cód. 223, fls. 10-17 registra quase meia centena de cartas para o governador, a Câmara, o provedor e o ouvidor do Rio de Janeiro, no mesmo período em que Salvador recebeu apenas duas, em oposição à usual predominância soteropolitana (capítulo VII). 183 DH, vol. 9, pp. 3-60, citação à p. 7 (no mesmo sentido, veja-se p. 44); vol. 13, pp. 5-22; vol. 26, pp. 23-310; vol. 86, pp. 207-19.

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do governo foi quando o triunvirato repreendeu o provincial dos jesuítas por suas pretensões de controle dos indígenas e sua oposição à expansão dos latifundiários da capitania no sertão, como João Peixoto Viegas. O governo provisório defendia, ainda que implicitamente, os interesses de seu líder em expandir suas propriedades no sertão sem interferência eclesiástica184. D. Pedro acertou em confiar em seus vassalos e Roque da Costa Barreto encontrou Salvador em boa ordem. Apesar das graves acusações que os desembargadores lançaram sobre Guedes de Brito, ele foi considerado pelo Conselho Ultramarino em 13 de janeiro de 1679 “sujeito digno e merecedor de toda a honra”. Recebeu, assim, permissão para fundar uma vila, intitulando-se senhor e alcaide-mor dela, para além de obter o elevado foro de fidalgo cavaleiro em 16 de março do mesmo ano185. A própria identidade da nobreza baiana construíra-se em relação com os representantes do monarca (capítulo III) e a interação com eles era o elemento definidor da vida política da elite baiana. Assim, não só as estruturas do governo-geral estavam então já suficientemente bem estabelecidas para continuarem a funcionar de forma praticamente inalterada numa situação prolongada de vacância de poder, mesmo sob controle de um membro da nobreza baiana, como os interesses dos pró-homens se provavam essencialmente idênticos aos dos governadores-gerais, pois em um momento de controle quase absoluto por uma facção da nobreza não há sequer uma tentativa realizar qualquer tipo de mudança política. Uma das principais tarefas do novo mestre de campo general foi fiscalizar a cobrança do donativo, garantindo que seu envio para o Reino fosse feito no prazo. Nisso, como no sustento da infantaria e abastecimento de farinha, Costa Barreto manteve as tradições estabelecidas há décadas186. Mesmo assim, tensões surgiram já em seu primeiro ano: o mestre de campo general ordenara que o Senado cobrisse a falta do provedor-mor da fazenda, pois este não possuía recursos para pagar um “subsídio da infantaria” em sal, mas a municipalidade afirmara que perderia muito dinheiro ao fazer o pagamento em espécie, pois vendia o sal mais caro para as vilas de Ilhéus em troca de farinha para os soldados. Os camaristas disseram ainda a Barreto que “Vossa Senhoria deve favorecer com igual justiça a todos os tribunais, fazendolhes guardar suas jurisdições”, pois tanto a Câmara quanto o provedor administravam a Fazenda Real. O mestre de campo general insistiu, tendo conseguido impor sua vontade187.

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DH, vol. 9, pp. 23-5. AHU, Bahia, LF, cx. 24, doc. 2875; AMARAL, Luís (ed.). Livros de Matrículas dos Moradores da Casa Real: foros e ofícios, 1641-1744. Lisboa: Guarda-Mor, 2009, vol. II, pp. 429. A única repreensão que os três tiveram foi em razão da “homenagem” que prestaram a um general da Índia que voltava preso para o Reino. Tal atitude foi, porém, muito bem pensada, pois o prisioneiro era João Correia de Sá, filho de Salvador Correia de Sá, que então sentava no Conselho Ultramarino: DH, vol. 67, pp. 308-9 e vol. 82, pp. 315-7. 186 DH, vol. 67, pp. 234-46; vol. 32, p. 90 e vol. 86, pp. 220-2. 187 DH, vol. 86, p. 222 (primeira citação) e CS, vol. II, pp. 37-8 (segunda). 185

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Mais grave foi um entrevero em dezembro de 1678, quando, por insistência do Desembargador José de Freitas Serrão (o “Rabo de Vaca”188, que, lembremos, votara contra a entrada do juiz ordinário no governo provisório em 1675), o mestre de campo general ordenou a suspensão de um tributo posto pelo Senado no azeite de baleia, “porquanto a Coroa ficava ofendida em haver pessoas nesta República que lhes usurpassem a sua jurisdição em lançar tributos de novo [isto é, criá-los], cuja regalia pertence somente ao príncipe, nosso senhor”. Os camaristas devem ter ficado estupefatos, pois vinham fazendo isso desde o início do século, com aprovação dos governadores e da Coroa. A presença de 59 homens bons na reunião que avaliou como responder ao governador é um indicador da importância que a nobreza baiana deu à suspensão do tributo, porque devem tê-la visto como um ataque a suas prerrogativas. Argumentaram que “os oitenta réis em cada canada de azeite de peixe não eram finta nem tributo que eles oficiais da Câmara lançavam ao povo, e que somente era um donativo voluntário”. Costa Barreto ordenou que se esperasse a resolução régia mas, apesar das demandas do Senado, esta nunca chegou a Salvador. Mesmo que o mestre de campo general tenha procurado suavizar o golpe com elogios, dizendo esperar “que os vassalos que o servem com o zelo, fidelidade e obediência que Sua Alteza tem experimentado em todos os moradores da Bahia não faltem agora com este obséquio a sua autoridade”, é certo que este foi um baque significativo para a autonomia fiscal do poder local, possibilitada pela menor dependência da Coroa frente a seus vassalos com o fim da ameaça de invasores europeus e diminuição do perigo indígena189. Outro sintoma foi a maior vigilância sobre a arrematação das rendas da Câmara, que passaram a ter de ser aprovadas por Roque da Costa Barreto190. O que mais incomodou os camaristas, porém, foi o privilégio que Costa Barreto lhes retirou em 1679: há mais de 20 anos os oficiais do Senado não pagavam as fintas no ano em que serviam, mas o “senhor governador” lhes obrigou a contribuir. Como os juízes e vereadores justificavam sua isenção sob o argumento de que faziam “grandes dispêndios que fazem os ditos oficiais com suas pessoas e escravos com que vem assistir de fora de suas casas a esta cidade”, deviam se sentir afrontados pela exigência do mestre de campo general191.

188

SCHWARTZ, Burocracia e Sociedade, p. 261. Pouco depois o monarca ordenou que o Freitas Serrão fosse substituído no Tribunal da Relação e retornasse a Portugal junto com um colega em razão de “culpas” que lhe eram imputadas: DH, vol. 32, pp. 333-4. 189 DH, vol. 86, pp. 223-4 (primeira citação à p. 223, terceira à p. 224); AC, vol. V, pp. 242-4 (segunda citação à p. 242); CS, vol. II, 74-5. Veja-se PUNTONI, A Guerra dos Bárbaros, pp. 116-22. 190 DH, vol. 86, pp. 225-6 e AC, vol. V, pp. 293-4. 191 AC, vol. V, p. 276 (primeira citação). Sobre a isenção, veja-se AHU, Bahia, LF, cx. 14, doc. 1702 e AHMS, PS, 1672-81, fls. 23v-24 e 61-61v (segunda citação).

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Apesar desse bem-sucedido esforço de Costa Barreto em impor sua autoridade, todas as opiniões posteriores sobre seu governo são positivas, das cartas que o Senado escreveu ao regente D. Pedro e a ele à avaliação imortalizada por Sebastião da Rocha Pita em sua História, passando pelo sermão fúnebre pregado em Salvador após seu falecimento. A municipalidade deve ter aceitado a supervisão do governador-geral, pois em sua carta para o regente D. Pedro elogiou o mestre de campo general por “não se intromete[r] mais que administrar justiça a todos igualmente, e conservando as jurisdições”. Talvez a chave tenha sido pôr em prática as medidas impopulares logo no início de seu governo e não dar abertura para outras críticas, sem participar do comércio atlântico, como tantos de seus antecessores, elemento destacado pelo Senado. O mestre de campo general seguia aqui uma instrução contida em seu regimento, inserida em razão dos esforços dos procuradores das Câmaras e do Rio de Janeiro. Já na carta escrita ao próprio Costa Barreto logo após seu retorno a Portugal, elogia-se seu “bom governo” e “aquele amor que em Vossa Senhoria experimentamos”, contando com seu auxílio para os requerimentos da Bahia na Corte (capítulo VII) 192. Aqui é forçoso reconhecer as limitações impostas pelas fontes sobreviventes, pois é muito provável que Roque da Costa Barreto só tenha conseguido construir uma imagem tão positiva de seu governo na capitania através de laços pessoais com membros da nobreza baiana, talvez facilitados pela sua excelente relação com o Padre Antônio Vieira, que conhecera ainda no Reino e que havia retornado a Salvador em 1681193. É provável, portanto, que o mestre de campo general tenha se apoiado no irmão de Vieira, o secretário de Estado Bernardo Vieira Ravasco, para construir uma rede de aliados. Muito mudaria com o próximo governador, Antônio de Souza de Menezes, empossado em 23 de maio de 1682 e conhecido como o “Braço de Prata”, pela prótese que usava em lugar do membro perdido “valorosamente nas guerras de Pernambuco”. Anos mais tarde, Rocha Pita escreveu que o novo governador-geral, “sendo de longa idade, se não achava com aquelas experiências que costumam trazer os muitos anos”, de modo que era “impróprio para o governo político da Bahia, cabeça de um Estado vastíssimo, e braço tão distante do corpo da monarquia, onde chegam com tanta dilação os recursos e trazem com a mesma demora as resoluções”194.

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CS, vol. II, pp. 109-10 (primeira citação) e 114 (segunda e terceira); PITA, História, p. 409 e MADRE DE DEUS, Padre Frei Manuel. Sermão Fúnebre nas exéquias do senhor Roque da Costa Barreto. Lisboa: Officina de Manuel Lopes Ferreira, 1699. Sobre ele, seu regimento e governo, veja-se COSENTINO, Governadores-gerais do Estado do Brasil (séculos XVI-XVII): ofício, regimento, governação e trajetórias. São Paulo: Annablume, 2009, pp. 189-98, 253-69 e 328-31; VIANNA, Modos de governar, pp. 198-230. 193 VIEIRA, Antônio. Cartas. Coordenação e notas de João Lúcio de Azevedo. São Paulo: Globo, 2008, vol. III, pp. 322-6, 331-4, 369-70, 400-1 e 438. 194 PITA, História, p. 417.

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Souza de Menezes não esperou sequer uma semana para exigir que todos os tribunais de Salvador (inclusive a Câmara) lhe informassem sobre os ofícios em serventia e os coronéis lhe enviassem as patentes de todos os capitães de ordenança, presumivelmente com o objetivo de provê-los em quem lhes apetecesse, numa sede sem igual desde o tempo do Conde de Óbidos, duas décadas antes – e não é preciso lembrar ao leitor os conflitos enfrentados pelo vice-rei. Logo depois informou ao provedor-mor que o regimento trazido por Costa Barreto não se aplicava a ele, já que seu antecessor viera como “mestre de campo general” e não governador, de modo que o Braço de Prata se sentia no direito de prover todos os postos militares. Em seguida, ordenou que o tesoureiro-geral não fizesse pagamento algum sem antes consultá-lo. Souza Menezes também enviou ordem semelhante ao Senado, exigindo saber de todos os “rendimentos desse Senado de qualquer qualidade que seja”, e que os ordenados só deviam ser pagos com autorização do governador195. Seu intento, segundo afirmou depois um de seus muitos inimigos, o Padre Vieira, “era fazer mercancia de todos os ofícios e provimentos”196, repetindo acusação lançada contra o Conde de Óbidos, quase vinte anos antes, indicando ser este uma forte imputação, utilizada apenas contra os governadores mais odiosos e permanencendo dormente no restante do tempo. O Braço de Prata também acusou o provedor da Alfândega André de Brito de Castro, seu escrivão, o escrivão da Câmara João de Couros Carneiro e o escrivão da fazenda Francisco Dias de Amaral de levarem emolumentos excessivos, acabando por suspendê-los de seus cargos197. Até em questões comezinhas o Braço de Prata conseguia gerar descontentamentos, pois proibira que os homens utilizassem capas em Salvador, provavelmente com o objetivo de impedir que pessoas ocultassem sua identidade ao cometer crimes. As palavras do Padre Antônio Vieira ao Marquês de Gouveia exatamente dois meses após a posse do novo governador-geral acabaram por ser proféticas: “eu não posso presumir mal de Antônio de Menezes, porque a madureza dos seus anos promete grandes acertos, e o não ter herdeiros igual desinteresse. Mas esta terra é má de contentar”198. Um dos primeiros prejudicados pelas medidas do governador-geral foi Bernardo Vieira Ravasco, pois o governador procurou reduzir ao máximo seus emolumentos e poder, de modo a evitar que o secretário de Estado prejudicasse seu “injusto comércio” de ofícios e provimentos. Ravasco “ficou com isto morrendo de fome”,

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DH, vol. 86, pp. 231-2. DH, vol. 32, pp. 187-91, 197-200 e 205; vol. 28, pp. 110-2 e 126-7; VIEIRA, Cartas, vol. III, p. 332 (citação). 197 DH, vol. 89, pp. 8-12. 198 VIEIRA, Cartas, vol. III, p. 321 (ênfase minha). Veja-se também o poema “Discrição, entrada e procedimento do Braço de Prata, Antônio de Souza de Menezes, governador deste Estado”, no qual Gregório de Matos ofende o governador de obeso, “estátua”, “cego”, “burro”, feio, “desastre”, descortês, parvo e muito mais. 196

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e quando Vieira tentou interceder em favor de seu irmão o Braço de Prata irritou-se a ponto de gritar “Querem poder mais do que eu!”199 Em poucos meses na América, Souza de Menezes conseguira invadir a jurisdição de todos os tribunais da capitania, angariando inimizades a torto e a direito. Quando as notícias de alguns abusos chegaram a Lisboa, a Coroa mandou ao provedor-mor que os retificasse e emitiu carta em favor dos desembargadores, mas sem muito efeito, já que o governo estava prestes a acabar200 – um lembrete de que muitas disputas políticas precisavam ser resolvidas localmente, como temos visto ao longo desse capítulo. A perdição do Braço de Prata deveu-se, porém, a seu “favorito”, o alcaide-mor Francisco Teles de Menezes, a quem conhecera em 1666 no Reino. Teles de Menezes possuía, porém, muitos inimigos, pois abusava da autoridade de seu cargo, “pesada aos que o julgavam menos benemérito dele”, e constantemente granjeava novas inimizades “pelo defeito de uma língua imodesta e de um ânimo vingativo”201. Apesar de pertencer a uma família antiga na terra (seus pais e suas avós haviam nascido na América, e seu avô materno vimarense aparece como proprietário de uma “casa de meles” em finais do século XVI), ela possuía pouco destaque político (seu irmão Antônio fora vereador em 1668 e um cunhado em 1680) e estava em decadência econômica, pois o pai não conseguira transmitir seu engenho para a geração seguinte, de modo que Francisco e Antônio não passavam de lavradores de cana202. Um dos inimigos do alcaide-mor era o fidalgo, comendador da ordem de Cristo, militar, provedor da alfândega e lavrador Antônio de Brito de Castro, cuja posição entre os homens principais da capitania foi coroada quando de sua eleição como provedor da Misericórdia em 1670. Brito de Castro comprara a alcaidaria-mor de Bernardo de Miranda Henriques, mas este ignorara o acordo e a vendera a Teles de Menezes, o qual, na opinião um tanto parcial do prejudicado, era um homem indigno, “que não é fidalgo, antes é notoriamente de nação hebreia, e por tal tido e havido de todos”. Além disso, o alcaide-mor abusava de seu poder, soltando presos por crimes graves e agredindo diversas pessoas, “por onde todos julgam serve nesta cidade de muita perturbação e incapaz de tal cargo”, segundo certidão de 1672 assinada por seis homens importantes da capitania, como o mestre de campo e senhor de engenho Pedro Gomes, o latifundiário que já servira de provedor-mor Lourenço de Brito de Figueiredo e o coronel e

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VIEIRA, Cartas, vol. III, pp. 331-4, citações às pp. 332 e 333, respectivamente. Veja-se também a petição de seu irmão em AHU, Bahia, LF, cx. 26, docs. 3223-4. 200 DH, vol. 83, pp. 5-9. Veja-se também vol. 67, pp. 139-40 e vol. 88, pp. 226, 229-35, 239-44, 268-70, 281-4 e 286-9. 201 PITA, História, p. 418. 202 Veja-se, dentre outros, CG, vol. I, pp. 384-5 e 392; AHU, cód. 84, fls. 220v-221 e 229-229v.

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senhor de engenho Afonso Barbosa de França. A disputa fez com que Teles de Menezes e Brito de Castro passassem anos trocando acusações, infamando um ao outro de cristãos-novos203. Não satisfeito em se juntar à figura tão polêmica, o Braço de Prata escolheu como principal aliado no Tribunal da Relação, nas palavras do Padre Antônio Vieira, “João de Góis de Araújo, inimigo capital da Companhia e de meu irmão [Bernardo Vieira Ravasco], e a mão com que Antônio de Souza escrevia”, além de Manuel da Costa Palma204, (o qual, como vimos, opusera-se à ideia do juiz ordinário Antônio Guedes de Brito servir como um dos governadores, o que certamente não o tornou simpático aos olhos dessa facção). Góis de Araújo era “parente do alcaide-mor por afinidade”, enquanto Costa Palma era “seu particular amigo há muitos anos”, no dizer dos outros desembargadores205. Entende-se, assim, porque Gregório de Matos, próximo dos Ravasco, ofende Teles de Menezes e o tribunal superior na mesma sátira: “Para o alcaide ladrão com despejo e sem temor, que na mão leva o doutor, na barriga a Relação”. O governador-geral via-se obrigado a carregar o peso de 15 anos de ódios há muito sedimentados, mas suas ações só acirravam as tensões. Um exemplo foi a manipulação das eleições camarárias: como os eleitos em 1683 não interessavam ao Braço de Prata e seus aliados (um dos quais, o Desembargador João de Góis de Araújo, presidia as eleições como corregedor da Câmara), eles foram quase integralmente substituídos: os senhores de engenho Diogo Muniz Barreto e Domingos Barbalho Bezerra foram escusos por estarem doentes; o lavrador Rui Lobo Freire foi considerado culpado numa devassa tirada por Cristóvão de Burgos (padrasto do alcaide-mor) e o Coronel Manuel de Barros da França, “um dos primeiros fidalgos desta cidade”, estava preso pelo governador. Elegeram-se, assim, pessoas do agrado da facção dominante: o irmão de Francisco Teles de Meneses, Antônio, como juiz; o fidalgo Francisco Freire de Andrade reeleito para o mesmo posto; e, como vereadores, João Velho Barreto e Manuel Pereira de Faria, “um parente e outro apaniguado do dito alcaide-mor”. O Tribunal da Relação anulou a segunda eleição, ordenando que os homens escolhidos através do tradicional método do pelouro fossem empossados, mas o governador “os mandara conservar, não obstante a sentença, o que causara grande embaraço e perturbação, mostrando-se parcial do alcaide-mor em querer que servissem os seus apaniguados para abonarem de seu procedimento”206. Assim, apenas dois dos seis camaristas eleitos pelo pelouro estava servindo no primeiro semestre de

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IAN/TT, TSO, Conselho Geral, Habilitações, Sebastião, Mç. 4, n. 97; KRAUSE, Em Busca da Honra, pp. 21529. 204 VIEIRA, Cartas, vol. III, p. 348. Veja-se também SCHWARTZ, Burocracia e Sociedade, p. 223. 205 AHU, Bahia, LF, cx. 26, doc. 3163. 206 AC, vol. V, pp. 337-45; VIEIRA, Cartas, vol. III, p. 337 (primeira citação); AHU, Bahia, LF, cx. 26, doc. 3155 (segunda e terceira citações); DH, vol. 89, pp. 6-8.

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1683, garantindo a dominação do Senado pela facção aliada ao Braço de Prata. Enquanto isso, outros membros da elite haviam se refugiado no colégio jesuíta, como Gonçalo Ravasco, “por o governador também o mandar prender”207. Apesar de acusações similares perpassarem a disputa política ao longo do século, nunca um governador intervira com tanta força no poder local, o que não podia deixar de ampliar os ressentimentos já sentidos com a ascensão de Teles de Menezes e Góis de Araújo. Os Brito de Castro, embora já desfalcados de seu patriarca (falecido em 1675), não esqueceriam “rivalidades de família que se arrastavam por gerações e davam à Bahia um sabor de Verona de Shakespeare” – nada muito diferente do Reino, é verdade208. Os filhos herdaram o orgulho, a arrogância e a propensão em se meter em confusões do pai, e a súbita ascensão do alcaidemor deve ter sido causa de uma irritação profunda. Assim, depois de enfrentamentos menores entre os bandos opostos (com importante participação de escravos de ambos os lados, como era de se imaginar), o ódio e ressentimento mais ou menos represados explodiram na manhã de 4 de junho de 1683, pouco mais de um após a chegada do Braço de Prata. Apesar de avisado do perigo, Francisco Teles de Menezes saiu à rua carregado por três escravos quando “oito mascarados com bacamartes e catanas” [facões] atiraram, matando ou ferindo os “negros que se puseram adiante”, liderados por Antônio de Brito de Castro, flanqueado por um ou dois de seus irmãos. Com o caminho livre, feriram mortalmente o alcaide-mor com golpes de facão e o abandonaram agonizando, deitado na rua. Fora de si, o governador-geral voltou-se contra seus inimigos, instado pelos parentes do morto: os Brito de Castro, os Ravasco (inclusive o venerando pregador) e outros aliados, como o capitão Diogo de Souza Câmara (um dos principais confidentes de Antônio Guedes de Brito durante seu governo), os mestres de campo Pedro Gomes e Álvaro de Azevedo (embora estes tenham escapado momentaneamente incólumes pelo temor de um motim da soldadesca). O Braço de Prata imediatamente dirigiu-se à secretaria de Estado e “e de sua paixão o descompôs [a Vieira Ravasco] diante de muita gente, chamando-lhe de nomes indecentes a sua pessoa e cargo, e não se satisfazendo o seu ódio com isso o mandou meter na enxovia pública”. Em seguida cercou o colégio dos jesuítas para tentar capturar seus inimigos, mas “por queixa que fizera o arcebispo mandara retirar a infantaria”. O primeiro desembargador escolhido para devassar o caso fora Manuel da Costa Palma, mas por ser considerado – com razão – suspeito 207

VIEIRA, Cartas, vol. III, p. 334. SCHWARTZ, Burocracia e Sociedade, p. 224 (citação); CUNHA, Mafalda Soares da & MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Velhas formas: a casa e a comunidade na mobilização política” in: MONTEIRO, Nuno (coord.) & MATTOSO, José (dir.). História da Vida Privada em Portugal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2011, vol. II: A Idade Moderna, p. 404. 208

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pelas partes, foi substituído por João da Rocha Pita (tio do futuro historiador), supostamente imparcial. Sua narrativa, porém, apontava como causa de todos os males a amizade de Souza de Menezes com o alcaide-mor e os dois desembargadores, e afirmava que a sede de vingança da família do alcaide-mor dificultava qualquer tentativa de investigação. Apesar de esse ser um dos momentos mais traumáticos da política baiana seiscentista, o Conselho Ultramarino não emitiu uma mísera opinião sobre o ocorrido, enquanto o rei simplesmente não se manifestou209. Em alguma medida, isso pode ter ocorrido porque também no reino “parecem onipresentes os conflitos associados aos usos políticos que se faziam das famílias”, principalmente em Lisboa, onde abundavam “atitudes de violência física entre ilustres fidalgos, que assim dirimiam os seus desaguisados pelas suas próprias mãos, sobretudo quando se tratava de agravos de honra”. Mutatis mutantis, fidalgos se matavam dos dois lados do Atlântico, e a Coroa pouco podia fazer, mesmo quando os distúrbios afetavam a esfera “pública” – de resto, indistinta da “privada”210. Os adversários do Braço de Prata, porém, não ficaram quietos: o Tribunal da Relação escreveu à Coroa reiterando as acusações contra o governador (inclusive a manipulação das eleições no Senado) e acrescentando outras, como o total desrespeito à jurisdição e honra do tribunal superior211. O Coronel Manuel de Barros França, Gonçalo Ravasco, o capitão Diogo de Souza Câmara e o assassino, Antônio de Brito de Castro, fugiram para o Reino, pretendendo obter o apoio do monarca contra o despótico governador. Vieira, em sua verve característica, chega a escrever em 24 de julho de 1683 que “todos ficam esperando o pronto remédio, o qual se não vier logo, logo, entenderão esses vassalos que Portugal quer perder o Brasil, como já estivera perdido se a fidelidade e respeito de Sua Alteza e os prazos desta mesma esperança lhes não tiveram sustentado a paciência”. O pregador habilmente relembra a seu interlocutor (um desembargador do Paço) os muitos serviços prestados pela nobreza baiana, mas ao mesmo

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AHU, Bahia, LF, cx. 26, doc. 3223 (primeira citação); DH, vol. 88, pp. 262-4 (segunda à p. 264); PITA, História, pp. 418-23; BNP, reservados, códs. 300-1: Bahia restaurada pelo feliz governo do excelentíssimo Marquês das Minas, pelo licenciado Antônio Marques Perada, 1685, vol. I, fls. 4v-10. A melhor análise sobre os significados da endêmica violência protagonizada a mando das elites escravistas no Estado do Brasil é MELLO, A Fronda, pp. 101-10, que mostra sua forte ligação com a defesa da honra familiar. Sobre isso, é válido citar o Padre Vieira, que procura escusar de culpa os Brito de Castro porque suas razões, “nas leis da honra e do mundo, e ainda segundo a natureza da conservação da própria vida, foram mais justificadas” (Cartas, vol. III, pp. 367-8). 210 CUNHA & MONTEIRO, “Velhas formas”, pp. 412-9, citações às pp. 413-4, respectivamente. Se a violência nobiliária pode ter sido mais comum em Lisboa, esteve também muito presente em outras Cortes, como Madri: MARTÍNEZ HERNÁNDEZ, Santiago. “‘Por estar tan acostumbrados a cometer semejantes excesos’: una aproximación a la violencia nobiliária en la Corte española del seiscentos” in: id., HERNÁNDEZ FRANCO, Juan & GUILLÉN BERRENDERO, José (dirs.). Nobilitas: estudios sobre la nobleza y lo nobiliario en la Europa Moderna. Madri: Doce Calles, 2014, pp. 255-97. 211 AHU, Bahia, LF, cx. 26, doc. 3163.

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tempo deixa no ar uma ameaça implícita - facilmente entendida se notarmos que em carta do dia seguinte ele menciona as revoltas da década de 1660 em Pernambuco e no Rio de Janeiro212. Ameaças ou não, o segundo ano do Braço de Prata foi anticlimático, pois não ocorreram eventos de monta. O governador agiu contra seus inimigos, substituindo o escrivão da Câmara e confinando o mestre de campo Pedro Gomes em um de seus engenhos, mas parou por aí 213. Não se registraram manifestações de descontentamento, pois não só o governador havia afugentado ou prendido seus principais opositores como todos estavam em compasso de espera, no aguardo da decisão régia. Quando esta veio, em meados de 1684, chegou logo com um novo governador, o Marquês das Minas, e uma carta para Antônio de Souza de Menezes, aliviandoo do ofício, “atendendo aos vossos anos e aos muitos que tendes de serviço desta Coroa, parecendo-me que desejais ver-vos fora do Brasil para virdes descansar no Reino”214. Os perseguidos retomaram seus postos já nesse ano ou, no máximo, nos seguintes, numa acomodação similar à que ocorrera após Óbidos215, mas a Coroa só mencionou as confusões indiretamente ao pedir para o Senado que “enquanto Antônio de Souza aí se detiver, lhe tenhais todo o respeito, e procurando que nessa cidade e Estado não haja desavença ou discórdia alguma, e assim o tenho por muito certo do amor e fidelidade com que sempre tratastes do bem e quietação deste Estado”. A resposta dos camaristas ia na mesma linha, pois “ainda que Vossa Majestade nos não fizesse esta advertência, temos tanto diante dos olhos o bem e quietação deste Estado que não havíamos permitir perturbação alguma (...), porque sempre nos assiste a fidelidade com que sempre servimos a Vossa Majestade (...) e com todos os governadores”216. Como sempre, a preocupação era a manutenção do consenso, mesmo que para isso tenha sido preciso abreviar o tempo do governador-geral – atitude única, que nunca ocorrera antes nem se repetirá depois, mas necessária para evitar a possibilidade de uma revolta, como notou obliquamente o panegirista de seu sucessor: “único remédio a que instava o dano padecido, para que não chegasse a extremo mais perigoso”217. Antônio de Souza de Menezes embarcou-se, então, para o Reino, provavelmente sem ouvir o irônico soneto que lhe dedicara Gregório de Matos: “Homem (sei eu) que foi Vossa Senhoria, Quando o pisava da fortuna a Roda, Burro foi

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VIEIRA, Cartas, vol. III, pp. 334-40, citação à p. 339; AHU, Bahia, LF, cx. 26, doc. 3204. A melhor narrativa do crime e seu desenrolar posterior (do qual não tratarei aqui) ainda é AZEVEDO, João Lúcio de. História de Antônio Vieira. São Paulo: Alameda, 2008 [1921], tomo II, pp. 259-66. 213 DH, vol. 32, pp. 214-8; vol. 33, pp. 199-200, 229-30 e 238. 214 DH, vol. 68, p. 145. 215 Veja-se, dentre outros, DH, vol. 32, p. 222 216 AHMS, PR, vol. III, fl. 30v (primeira citação) e CS, vol. II, pp. 122-3 (segunda). 217 BNP, reservados, códs. 300-1, vol. I, fl. 10v.

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ao subir tão alto clima. Pois vá descendendo do alto, onde jazia, Verá quanto melhor se lhe acomoda Ser homem embaixo, do que burro em cima”. Os paralelos do mau governo do Braça de Prata com o do Conde de Óbidos são evidentes. Por que, porém, as consequências foram distintas? Em primeiro lugar, a nobreza baiana já havia desenvolvido uma maior coesão social e familiar (capítulo III) e consolidado seu discurso político de autodefinição estamental (capítulo IV), tornando-se uma força política mais formidável, mesmo que fragmentada – como já era possível intuir anos antes, com a ascensão ao poder do triunvirato liderado por Antônio Guedes de Brito. Em consequência, não só o governador pôde apoiar-se mais fortemente em seus validos, mas também a reação ao brutal desequilíbrio no xadrez político baiano causado pela ascensão de João de Góis de Araújo e, principalmente, Francisco Teles de Meneses foi muito mais violenta. Assim, o assassinato do alcaide-mor, por mais que tenha tido origem numa antiga rixa, acabou por funcionar como um ataque ao próprio governador-geral – sem, porém, incorrer no crime de lesa-majestade que poderia ser atribuído aos que ferissem o alter ego do monarca na América. A escolha errada do favorito, portanto, tendia não a proteger o governante, mas a torná-lo mais vulnerável218. Mais uma vez, porém, o controle sobre a infantaria assumiu um papel fundamental para perseguir os inimigos do Braço de Prata e até, talvez, garanti-lo no cargo. Como na época das disputas sobre o controle do governo provisório, a distância dificultava uma intervenção da Coroa, pois não se sabia o quanto o cenário poderia mudar no tempo que levava para uma carta atravessar o Atlântico. Mesmo assim, a situação havia chegado a tal ponto que D. Pedro apressou-se mais em substituir Antônio de Souza de Menezes do que o fizera quando do triunvirato que sucedera a Furtado de Mendonça, pois um novo governador foi enviado menos de um ano após a chegada das notícias do assassinato. Ainda que o recémcoroado D. Pedro II tenha se irritado com o pouco respeito prestado a seu representante no América219, a prudência mandava substituir o governador antes que a tensão gerasse novos assassinatos ou, quem sabe, uma rebelião. O que a Coroa procurava era um retorno ao equilíbrio anterior à chegada do Braço de Prata. Como era a cooperação e não o conflito a principal

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Veja-se FRAZÃO, Gabriel Almeida. Amizades no papel: Antônio Vieira e o assassinato do alcaide-mor da Bahia (1682-1692). Dissertação de Mestrado. Niterói: PPGH/UFF, 2006. É possível traçar um paralelo com o assassinato do Duque de Buckhingham em 1628, representante das políticas mais impopulares de Charles I e alguém que ascendera muito acima do seu nascimento: BRADDICK, Michael. God’s Fury, England’s Fire: a new history of the English Civil Wars. Londres: Penguin, 2009 [2008], paperback, pp. 40-7. 219 O que parece provável, pois Gonçalo Ravasco contara ao Padre Vieira que D. Pedro II “lhe tinha dito estas palavras formais: ‘Estou muito mal com seu tio Antônio Vieira, porque descompôs o meu governador’”: VIEIRA, Cartas, vol. III, p. 347 (no mesmo sentido, veja-se p. 344).

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característica da relação entre elites locais e governadores, esse objetivo se alcançava sem muita dificuldade após a partida daquele que havia ultrapassado os limites de sua autoridade. D. Antônio Luiz de Souza Telo de Menezes, 2º Marquês das Minas e 4º Conde do Prado, chegou a Bahia no início de maio de 1684 com o “fim da reparação desta Cidade e povo dela”. O objetivo foi rapidamente alcançado, a se julgar pelo que escrevera o Padre Vieira ao Duque de Cadaval: “com a vinda do novo governador respirou de novo esta cidade; e na diferença de sua condição, benignidade, inteligência e atenção às obrigações do ofício, assim no militar como no político, se prometem todos um felicíssimo governo”. O idoso jesuíta se sentira lisonjeado com a atenção que lhe dera D. Antônio ao visitá-lo na cama em que estava adoentado e pedir-lhe que pregasse nas exéquias da Rainha D. Maria Francisca de Savóia. Já Vieira Ravasco se responsabilizaria pela “fábrica do túmulo” e pôde retornar a seu ofício de Secretário por permissão do governador, embora logo a devassa do sindicante o tenha forçado a se recolher novamente em um convento, enquanto outros acusados escondiam-se no Recôncavo220. O Marquês, porém, sabiamente acenou também para o outro lado, primeiro retirando a José Moreira de Azevedo do posto de capitão-mor de Ilhéus que ocupava desde 1678 por nomeação de Roque da Costa Barreto. Depois nomeou para o ofício de ouvidor da mesma capitania o irmão do desembargador João de Góis de Araújo, o licenciado José. Para além da importância da região para o abastecimento alimentício de Salvador e seu Recôncavo, os avós dos Araújo haviam se estabelecido primeiro nessa região, e lá provavelmente ainda tinham parentes, mesmo que distantes221. Em geral, o novo governador-geral procurou evitar conflitos e tranquilizar os ânimos, adotando uma política diametralmente oposta à de seu antecessor, como se percebe quando “com prudentíssima e singular direção confirmou os que serviam” os ofícios, só realizando alterações para restituir a posse aos proprietários, segundo seu exagerado panegirista222. A Câmara o elogiou logo após sua chegada, especialmente por sua atenção “com a disciplina militar da infantaria e [o] bem da cidade”, em referências indiretas aos desmandos de seu antecessor223. Também Antônio Marques Parada enfatizou esse elemento em seus elogios ao Marquês, pois a infantaria representava a “alma das monarquias, seguro arrimo dos Reinos, importante defesa da justiça, reparo justo da vida, constante exame da honra”224 – mais 220

BNP, Reservados, códs. 300-1, vol. I, fl. 11 (primeira citação) e vol. II, fls. 9v-10; VIEIRA, Cartas, vol. III, p. 346 (segunda) e 349 (terceira); veja-se também pp. 341, 353, 357, 361 e 363. Bernardo Vieira Ravasco e Gregório de Matos também escreveram poemas elogiosos ao Marquês quando este aportou em Salvador. Do primeiro, é “De flores e pedras finas floresce e enriquece o Estado, floresce sim pelo prado, enriquece pelas minas”. Cf. também, dentre outros, DH, vol. 68, pp. 77-8 e 94-6 221 DH, vol. 9, p. 106 e vol. 28, pp. 330-2. 222 BNP, Reservados, códs. 300-1, vol. I, fls. 15v-17v (citação à fl. 15v). 223 CS, vol. II, p. 123. 224 BNP, Reservados, códs. 300-1, vol. I, fl. 20.

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um indicador da importância que assumira em Salvador, enquanto em Portugal não existia um exército permanente desde o fim da guerra contra Castela, quase vinte anos antes. Mais do que tudo, D. Antônio “não admitiu privanças” nem “assentiu a respeitos” particulares, evitando se identificar com qualquer facção da nobreza baiana e repetir o erro do Braço de Prata225. Apesar de alguns dos acusados do assassinato do alcaide-mor terem continuado a ser investigados durante seu governo, o Marquês das Minas teve três anos calmos na Bahia, e seu governo não se distinguiu dos padrões estabelecidos desde Alexandre de Souza Freire. Assim, o governador-geral fez eco às lamentações da Câmara sobre a pobreza da terra para evitar o aumento da tributação; instou o Senado a garantir o suprimento de farinha; ordenou aos coronéis que cobrassem o donativo e, partindo do precedente estabelecido por Costa Barreto, procurou exercer algum tipo de controle, ainda que muito frágil, sobre as contas da municipalidade226. Foi, porém, na peste de 1686 que o Marquês das Minas se destacou, pois sua “piedade, zelo e liberalidade resplandeceram nesta ocasião”, agindo em conjunto com o Senado para tentar evitar um desastre ainda maior do que já estava a ocorrer 227. Para sacramentar sua popularidade, D. Antônio fez o mesmo que Souza Freire após o conflitivo governo do Conde de Óbidos: reformou as ordenanças, criando capitães e coronéis, de modo a contentar mais membros da nobreza sem custos para a Fazenda Real, como o filho do Secretário, Gonçalo Ravasco Cavalcante de Albuquerque, que passara de foragido a coronel. Seu objetivo era tornar as ordenanças mais disciplinadas e capazes de reagir em momentos de necessidade, mas não só, pois a reforma também significaria uma maior eficiência “no lançamento dos donativos e fintas consignadas ao dote de Inglaterra, Paz de Holanda e sustento da infantaria”. Os camaristas de 1687, seu último ano de governo, transmitiram ao monarca seu “sentimento de não lograr por mais tempo os acertos da prudência e zelo com que se procurou toda a felicidade ainda entre os dissabores em que achou o Estado, e os acidentes do tempo”, destacando a reforma da ordenança como um de seus principais legados228. Após o Braço de Prata não deve ter sido difícil causar uma boa impressão, mas o importante é que a concórdia fora restaurada. O novo governador, Matias da Cunha, já havia servido por quatro anos como governador do Rio de Janeiro entre 1675-9 e, ao menos segundo sua carta patente, “exercitar[a] o dito cargo

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BNP, Reservados, códs. 300-1, vol. II, fl. 17. DH, vol. 9, p. 112; vol. 86, pp. 237-9; vol. 89, pp. 24-6 e 63-6; FONSECA, “Subsídios para a História”, pp. 419-52; AHMS, PG, 1683-9, fls. 185v-190v. 227 CS, vol. III, pp. 22-3 e 25-6 (citação à p. 25); PITA, História, pp. 428-35. 228 DH, vol. 32, pp. 243-52, primeira citação à p. 243; CS, vol. III, p. 40 (segunda). Veja-se também AHMS, PG, 1683-9, fls. 42v-43. A Coroa não aprovou a iniciativa, pois assim que soube ordenou ao provedor-mor que passasse a informar ao Conselho Ultramarino sobre a efetiva necessidade de criação de postos na ordenança, enquanto os governadores-gerais foram proibidos de fazê-lo sem ordem régia: DH, vol. 83, pp. 57-8 e 81-2; vol. 68, p. 186-7. 226

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com boa aceitação dos moradores”229 – única informação que o documento oferece sobre seu governo, denotando sua importância e justificando sua escolha para a Bahia, pois as lembranças do Braço de Prata ainda estavam próximas. O governo não durou sequer um ano e meio, pois em 24 de outubro Cunha faleceu, vítima do “mal da bicha”, que continuava endêmico na capital da América Portuguesa. Seu breve período pouco teve de notável, mas o governador-geral mostrou-se simpático às reinvindicações da nobreza baiana, como se percebe em sua intercessão junto ao rei para derrogar as cartas régias de 20 e 23 de março de 1688, que procuravam limitar a autoridade dos senhores para castigar seus escravos, pois os escravos teriam se tornado menos obedientes ao supor-se protegidos pelo monarca. Também reproduziu o discurso da Câmara sobre a miséria da Bahia e, para mitigá-la, proibiu que dinheiro fosse enviado ao Reino (capítulo VII), assim como endossou as tentativas de garantir o abastecimento alimentar de Salvador, ao proibir a criação de gado em Maragogipe (pelos prejuízos que causavam à plantação de mandioca) e concordar com o pedido dos camaristas para uma lei que obrigasse a plantação de mantimentos no Recôncavo230. Talvez a boa relação estabelecida de pronto com o Padre Vieira tenha contribuído para o estabelecimento de boas relações com a nobreza231. Entretanto, Matias da Cunha não aceitava tranquilamente ações que via como ataques a sua jurisdição. O alvo de sua irritação não foi, porém, o Senado soteropolitano, mas sim sua contraparte olindense, quando da morte do recém-chegado governador de Pernambuco Fernão Cabral. No leito de morte, Cabral nomeara um triunvirato composto pelo bispo, mestre de campo mais antigo e juiz ordinário, numa solução similar à adotada em Salvador quando do falecimento de Furtado de Mendonça. O Senado recusou, porém, a fórmula, dizendo que a

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DH, vol. 29, p. 73. No Rio de Janeiro, porém, Cunha denunciou o provedor da fazenda (membro de uma importante família local) por desvios e o ouvidor Pedro de Unhão Castelo Branco por distribuir ofícios sem jurisdição para tal. Posteriormente, em Salvador, acabou testemunhando o casamento da filha de Castelo Branco (recém-promovido a desembargador) com o filho do mestre de campo Pedro Gomes, indicando o estabelecimento de boas relações do recém-chegado governador com membros da elite local: FRAGOSO, João. “A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da terra do Rio de Janeiro, século XVII. Notas de pesquisa”. Tempo, n. 15, 2003, pp. 26-7 e CG, vol. II, p. 568. Sobre sua origem social (neto de um aclamador e filho segundo), veja-se COSENTINO, Francisco. “Carreira e trajetória social na monarquia e no império ultramarino português: governadores-gerais do Estado do Brasil (1640-1702)”. Revista Brasileira de História, vol. 33, 2013, pp. 192-3. 230 DH, vol. 68, pp. 159-61 e 174; DH, vol. 89, pp. 86-7, 89-91, 95-6 e 105-6; AHMS, PG, 1683-9, fls. 168v-169v. É possível que a origem dessas resoluções contra os castigos excessivos em cativos esteja em denúncias em Roma por parte de um mulato brasílico, que haviam recebido o apoio de missionários capuchinhos, e gerado uma condenação aos abusos enviada a diversas autoridades, inclusive ao núncio papel em Portugal em abril de 1686, o que pode ter movido a consciência real: GRAY, Richard. “The Papacy and the Atlantic Slave Trade: Lourenço da Silva, the Capuchins and the Decisions of the Holy Office”. Past & Present, n. 115, 1987, pp. 52-68. 231 VIEIRA, Cartas, vol. III, p. 376; veja-se também p. 380. Os três sonetos de Gregório de Matos dedicados “à morte do governador Mathias da Cunha” também indicam uma apreciação positiva dele por parte da açucarocracia baiana, como se percebe por esse trecho: “Quem há de alimentar a luz do dia? Quem de esplendor ilustrará a Nobreza? Quem há de dar lições de gentileza à toda a gentileza da Bahia?”.

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decisão lhe cabia: tentou governar, mas, “por não o poder conseguir”, deu “posse ao Bispo”. Matias da Cunha confirmou a escolha, mas afirmou que esta cabia apenas a ele, repreendendo fortemente os camaristas por intentar “introduzir-se sem faculdade alguma na jurisdição superior que lhe usurpava: tudo defeitos que de nenhum modo podiam ser aprovados”232. Esse imbróglio, ocorrido menos de um mês antes de sua morte, deve ter contribuído para que na junta de 23 de outubro de 1688, convocada por Cunha para decidir sobre sua sucessão com participação d“o Senado da Câmara, a Nobreza e os Cabos” [os principais oficiais militares], a decisão fosse em favor do arcebispo D. Fr. Manuel da Ressurreição “para o governo militar e político”, mesmo tendo chegado há menos de seis meses, enquanto o papel de regedor da Relação caberia ao chanceler, o Dr. Manuel Carneiro de Sá233. O recente desaparecimento dos protagonistas do último interregno – Antônio Guedes de Brito, falecido em 1687, e João de Góis de Araújo, no ano anterior – também deve ter dificultado a ascensão de qualquer membro da nobreza local a uma posição que lhes permitisse reivindicar a participação no governo provisório. Mesmo o juiz mais velho da Câmara, o coronel e senhor de engenho Sebastião de Araújo de Góis (irmão do falecido desembargador), não chegava perto do poder exercido por Guedes de Brito. Mais interessante, porém, é notar o destacado papel político dos prelados, como se notou ao tratar do período 1641-2, quando o bispo D. Pedro da Silva foi o mais importante dos três governadores. Independente da experiência ou das qualidades pessoais dos dignitários eclesiásticos, sua autoridade os transformava em uma das primeiras alternativas em momento de vacância do poder, denotando o entrelaçamento entre Igreja e monarquia, especialmente no momento que via em Portugal e na Europa a ascensão de um ideal de bispo que enfatizava não só sua atividade pastoral, mas também a importância do bom governo de sua diocese234. Como os períodos de Sé vacante se tornaram cada vez mais raros, os arcebispos exerceram um papel de destaque nas juntas governativas de 1719-20 (D. Sebastião Monteiro da Vide) e 1754-5 (D. José Botelho de Matos), enquanto a nobreza baiana nunca mais conseguiu emplacar um representante. Assim, após três governos provisórios com participação destacada do poder local, o período entre 1688-90 foi o primeiro a quebrar com essa tradição, sinalizando talvez uma vontade difusa e jamais expressa de impedir a ascensão de membros da elite local a uma posição tão importante, mesmo que temporariamente, e estabelecendo um padrão para o século seguinte.

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DH, vol. 10, pp. 302-5 (citações às pp. 304-5); MELLO, A Fronda, pp. 68-9. PITA, História, pp. 439-40. Para a carta régia confirmando a escolha, DH, vol. 68, p. 236. 234 PAIVA, José Pedro. Os bispos de Portugal e do Império: 1495-1777. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2006, pp. 147-54, 171-213 e 446-87. 233

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O arcebispo-governador teve que colocar em campo sua autoridade, pois no mesmo dia de sua eleição estourou uma rebelião da infantaria, descontente com nove meses de pagamentos atrasados, em razão da diminuição da arrecadação causada pela baixa do açúcar, situação tornada ainda mais grave pelo aumento do preço da farinha (capítulo I). Os mais de 300 soldados amotinados ameaçavam “entrarem na cidade, e a saquearem, ameaçando com especialidade as casas dos oficiais da Câmara”. Seus oficiais tentaram acalmá-los, mas não tiveram sucesso. O arcebispo precisou ir “pessoalmente ao campo em que estavam, acompanhado somente de seu grande espírito, de sorte que não sucedeu o mínimo dissabor aos moradores, porque todos o veneram e amam”. A revolta, porém, só terminou quando os camaristas pagaram os soldados, através de empréstimos junto a fundos arrecadados pela municipalidade para outros fins, como a contribuição para o Cais de Viana (capítulo VII) e a concessão de um perdão geral, assinado pelo agonizante Matias da Cunha e pelo arcebispo235. Embora finalmente tenha se concretizado a ameaça feita pelo governador Diogo Luiz de Oliveira 60 anos antes, a usual colaboração entre Câmara e governo impediu que o problema alcançasse maiores proporções – e ambos continuaram vigilantes para evitar qualquer atraso nos soldos. Em 1689, o Arcebispo cedeu às pressões locais e não aplicou a nova lei sobre as moedas, em razão da perda que causaria aos moradores (capítulo VII), demonstrando significativa sensibilidade aos interesses baianos – que também devem ter apreciado a proposta do governador interino de criar novos terços de auxiliares, que implicariam postos de oficiais remunerados que poderiam ser providos na nobreza236. D. Pedro II, agora rei, estava mais decidido a evitar interinidades do que em 1675. Assim, rapidamente nomeou para o governo de Pernambuco uma “alta personalidade da Corte”, o almotacé-mor do Reino Antônio Luiz Gonçalves da Câmara Coutinho, “ao arrepio da praxe de selecioná-lo em lista tríplice do Conselho Ultramarino”, com o objetivo “de pôr termo à instabilidade pernambucana, através de medidas drásticas contra o poder dos homens principais”. A se acreditar em seu panegirista, o novo governador caracterizou-se pelo rigor contra os criminosos, desinteresse pessoal e trato respeitoso com a nobreza, tendo sido eleito provedor da Santa Casa de Misericórdia de Olinda. Sua popularidade, porém, não foi geral, já que boa parte da açucarocracia parece ter ficado insatisfeita com sua rigidez – talvez por ter

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PITA, História, pp. 440-1 (primeira citação à p. 441) e CS, vol. III, p. 77-80 (segunda à p. 78); veja-se também AC, vol. VI, pp. 116-8 e FIGUEIREDO, Revoltas, Fiscalidade e Identidade, pp. 90-3. Apesar do perdão, o governador-geral Câmara Coutinho puniu alguns dos revoltosos, enviando-os para Angola e Pernambuco: DH, vol. 33, pp. 334-7 e 442. A resposta régia pode ser vista em ACCIOLI, Inácio. Memórias Históricas e Políticas da Província da Bahia. Anotado por Braz do Amaral. Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1925, vol. II, p. 247. 236 DH, vol. 86, pp. 239-40; vol. 89, pp. 159-61.

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procurado tolher privilégios da elite (como proibir que filhos de camaristas se alistassem na infantaria, ganhando soldo sem servir) e limitar o poder dos régulos locais237. Pouco após a chegada do almotacé-mor a Pernambuco, porém, Lisboa decidiu que era mais urgente enviá-lo a Salvador para aliviar o arcebispo do fardo do governo-geral. Câmara Coutinho permaneceu, portanto, apenas um ano no governo da capitania antes de partir para a cabeça do Estado do Brasil. Chegando a Salvador, o almotacé-mor seguiu o exemplo de seus antecessores e estabeleceu boas relações com o padre Vieira: o exemplo da campanha do idoso missionário contra o Braço de Prata devia ter permanecido na memória de todos e, através de seu irmão secretário, o jesuíta continuava ligado a uma importante facção da nobreza238. Para além das práticas usuais de governação estabelecidas há décadas, como a preocupação com o sustento da infantaria e o abastecimento de farinha239, o governador procurou imediatamente dar ordem à Bahia, pois esta estava, segundo ele, “tão confusa que certamente me pareceu bicha de sete cabeças, porque cada qual governava como lhe parecia”. Os terços estavam repletos de soldados que não serviam mas recebiam soldo, enquanto os que serviam “nem exercício, nem guardas faziam, senão os que queriam”. Os oficiais maiores, por sua vez, “andavam tão desunidos que muitos se não falavam”. Como em Pernambuco, Câmara Coutinho procurou evitar “as brigas, mortes e feridos, com toda a severidade e administração da justiça, (...) e está de maneira a Bahia que depois que eu governo está tudo quieto”240. Três questões se destacam na atuação do almotacé-mor, talvez o governador mais consciencioso de seus deveres em todo o século. Em primeiro lugar, foi em seu governo que se resolveu a questão longamente debatida da “moeda provincial”, isto é, com valor diferente da que corria no Reino (capítulo VII). Seguindo uma ordem régia, Câmara Coutinho também procurou obter recursos dos moradores para a fundação de uma Junta de Comércio da Índia. O governador, assim, só conseguiu reunir 9.950$, e o principal ofertante foi o rico homem de negócio Antônio Maciel Teixeira, que prometeu enviar milhares de rolos de tabaco como donativo em troca de um foro de fidalgo, perfazendo mais 16.000$, num total de quase 26 contos de réis (65 mil cruzados). O grande comerciante vianense ainda não havia servido nem MELLO, A Fronda, p. 70-3 (citações à p. 70) e MELLO, José Antonio Gonsalves de (ed.). “Pernambuco ao tempo do governo de Câmara Coutinho (1689-90)”. Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambuco, vol. 51, 1979, pp. 257-300. Veja-se também VIEIRA, Cartas, vol. III, pp. 396-7 e 409 e SANTOS, Marília. Escrevendo cartas, governando o império: a correspondência de Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho (1691-3). Dissertação de Mestrado. Niterói: PPGH/UFF, 2007, pp. 90-8. 238 VIEIRA, Cartas, vol. III, p. 437 e 446; “Livro de cartas que escreveu o Senhor Antônio Luiz Gonçalves da Camara Coutinho”. RIHGB, tomo 71, parte I, 1908, p. 44; DH, vol. 34, p. 63 e 178. A influência jesuítica não se resumia a Vieira, e provavelmente se fortaleceu na segunda metade do século. Espero que trabalhos futuros de autores como Carlos Zeron e Pablo Magalhães nos ajudem a compreender a relação entre religião e política. 239 DH, vol. 86, pp. 243-6, 248-9; AC, vol. VI, pp. 223-5; AHMS, PG, 1689-95, fls. 63-67 e 135v-136 240 DH, vol. 33, pp. 356-62. Veja-se também “Livro de cartas”, p. 47-50 e 57-8. 237

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na Câmara e nem na Misericórdia, de modo que sua contribuição fazia parte de seu esforço de alpinismo social. Depois, o senhor de engenho Pedro Fernandes Aranha (filho do mestre de campo Nicolau Aranha Pacheco) ofereceu 4.000 cruzados – até onde sei, porém, somente este recebeu o foro, ainda que tenha sido Maciel Teixeira a ser satirizado por Gregório de Matos como um dos negociantes que compravam honras através do seu “dinheiro poderoso”. Apesar de os esforços de Câmara Coutinho terem se prolongado nos anos seguintes, a resistência da nobreza baiana, desejosa de obter sua moeda provincial e largamente endividada, impediu um engajamento efetivo do Senado, a melhor maneira de se recolher largas somas de dinheiro, como a experiência dos últimos 70 anos havia demonstrado. Em acréscimo, “todos estes moradores, além da miséria em que estavam, duvidavam da inteireza e procedimento da Junta, por ser nesse Reino tão longe donde eles assistiam”. Assim, o governador-geral foi forçado a admitir “que finalmente neste negócio me parece que se não pode dar um passo nem tirar cabedal que possa fazer volume para ajudar o comércio da Índia”241. Especialmente interessante, porém, por se inserir na tendência visível desde a década de 1670 de intervenção nos donativos administrados pela Câmara, é o esforço do almotacé-mor em fiscalizar as contas da municipalidade, “pois deve-se-lhe dos efeitos dos soldados mais de cem mil cruzados. Estas demandas correm diante dos juízes ordinários, que são parentes e amigos dos devedores, e por aquele respeito fazem as demandas eternas, e nunca se hão de acabar”. Para remediar esse problema, o governador sugere ao monarca a nomeação de um desembargador como “juiz privativo nestas causas e suas execuções” e que a Câmara só possa gastar esses recursos com autorização régia, sendo proibida de utilizá-los para qualquer outro fim – como quando completava o donativo de dote e paz com os recursos arrecadados para o sustento da infantaria. Por último, ao final de cada ano o governador-geral e um juiz deveriam conferir as contas do Senado e enviá-las para aprovação régia. O Conselho Ultramarino e a Coroa não concordaram, provavelmente receosos de cederem tamanho poder a um governadorgeral – lembrando que o detestado Braço de Prata emitira portaria nesse sentido242.

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DH, vol. 33, pp. 362-4 e 366; vol. 34, pp. 139-42 (primeira citação à p. 141, ênfase minha); vol. 86, p. 244; “Livro de cartas”, pp. 51-3, 72-3 e 87-8 (segunda citação à p. 88); ACCIOLI, Memórias, vol. II, p. 249, nota 16. Veja-se também SANTOS, Marília. “Do Oriente ao Atlântico: a Monarquia Pluricontinental portuguesa e o resgate de Mombaça, 1696-1698” in: FERRREIRA, Roberto (org.). Dinâmica imperial no Antigo Regime português: escravidão, governos, fronteiras, poderes, legados – séc. XVII-XIX. Rio de Janeiro: Mauad, 2011, pp. 116-9. A Junta Geral de Comércio da Índia teve uma vida curta (1694-9), sem jamais alcançar muita relevância, assim como todas as outras tentativas semelhantes: SUBRAHMANYAM, Sanjay. The Portuguese Empire in Asia, 1500-1700. Chichester: Wiley-Blackwell, 2012 [1993], 2ª ed. rev., pp. 197 e 201; DISNEY, A. R. A History of Portugal and the Portuguese Empire: from the beginnings to 1807. Cambridge: Cambridge UP, 2007, pp. 307-8. 242 DH, vol. 33, p. 351 (citações) e 359-60; vol. 89, pp. 185-6; “Livro de cartas”, p. 47-8.

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Câmara Coutinho aceitou a ordem sem discutir, pondo em prática outra determinação régia: em conjunto com o chanceler da Relação Manuel Carneiro de Sá e o desembargador Dionísio de Ávila Vareiro243, insistiram com o Senado para que todos os seus livros de contas fossem disponibilizados aos letrados, que tomariam sobre si o encargo de cobrar as dívidas – o que implicaria grandes custos para os membros da nobreza que, graças a suas conexões com os camaristas, tinham conseguido contribuir menos do que deveriam nas décadas anteriores244. Se, como o Senado repetira durante décadas, esses donativos deveriam ser cobrados sem intervenção da administração periférica da Coroa, a ação de Câmara Coutinho permitiu que essa barreira fosse quebrada. Da mesma maneira, os açougues administrados pela municipalidade (dentro de sua obrigação de zelar pelo abastecimento) passariam a ter suas contas tomadas por um desembargador, que deveria extrair daí recursos para o reparo das fortificações245. Essas medidas não suscitaram resistência significativa em Salvador, numa situação bem distinta da intensa campanha encetada pela câmara olindense contra o sucessor de Câmara Coutinho no governo de Pernambuco – e que acabou sendo referendada pela Coroa246. O que esse paralelismo reforça é a já tradicional imagem de uma Câmara de Salvador menos resistente aos desígnios dos governadores-gerais, agora não por fraqueza dos seus próhomens, mas, principalmente, devido à tradição de colaboração entre o representante do monarca e a elite local, forjada ao longo de todo o século XVII. O monarca também ordenou que a Câmara enviasse 8% do valor dos contratos arrendados pela Câmara para sustento da infantaria para compra de munições, mas Câmara Coutinho juntou sua pena à do Senado, afirmando que os recursos eram parcos e, mesmo nos anos em que havia sobejos, a provisão impediria que as sobras de um ano saldassem as dívidas do seguinte. O monarca foi parcialmente convencido por seu governador e determinou que apenas as sobras fossem enviadas para o Reino247. Ao fim e ao cabo, Antônio Luiz Gonçalves da Câmara Coutinho foi o governador mais elogiado pela nobreza baiana em todo o século, tendo sido o único a merecer três cartas do Senado em seu favor, principalmente por causa de sua atuação em defesa da moeda provincial, como veremos no próximo capítulo. Na primeira, os camaristas pedem que o monarca “se sirva

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Vareiro servira como ouvidor em Pernambuco no início da década de 1680, mas sairia corrido da capitania, perseguido pelo governador e pela nobreza. O letrado deve ter se sentido aliviado ao lidar com uma Câmara menos irascível na capital do Estado do Brasil: MELLO, A Fronda, pp. 65-7. 244 AHMS, PR, vol. III, fls. 65 e 165-165v; PG, 1689-95, fls. 144v-145 e 285v-286v; DH, vol. 34, pp. 7 e 105-8; vol. 89, p. 229; “Livro de cartas”, p. 113; AC, vol. VI, pp. 231-2. 245 DH, vol. 83, pp. 127-8 e AHMS, PG, 1689-95, fls. 287v-288. 246 MELLO, A Fronda, pp. 80-5. 247 AHMS, PR, vol. III, fls. 60v e 64v; DH, vol. 34, p. 32 e vol. 89, pp. 227-9; AHU, Bahia, LF, cx. 29, doc. 3637.

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de o reconduzir por mais três anos com o título de Vice-Rei, assim em parte do prêmio de seus grandes merecimentos como por crédito do dito Estado”. Caso isso não fosse possível, ao menos que seu primo, o ex-governador de Angola D. João de Lencastre, fosse nomeado para o cargo. Quando os camaristas de 1694 souberam que o monarca havia decidido pela segunda opção, escreveram elogios inauditos ao almotacé-mor: “com tal inteireza governou, e com tal isenção regeu estes povos durante o tempo do seu governo, que excede singularmente a todos os que conheceu este Estado, não sabemos se nele se verá daqui por diante Governador que o possa exceder, mas nem ainda competir”248.

Conclusão Deixemos para outra ocasião o governo de D. João de Lencastro, primo de Câmara Coutinho que havia sido governador de Angola e, fato inédito, tivera sua nomeação como governador-geral reivindicada pelo Senado, pois seu governo será marcado pelos debates sobre como se administrar as minas de ouro recém-descobertas249. Outras alterações de monta no período foram a criação do juiz de fora em 1696, extinguindo-se os juízes ordinários, e a nova forma de escolha dos camaristas, via Relação da Bahia e não mais por eleição dos cidadãos250. Como avaliarmos, então, a relação entre governadores-gerais e a nobreza baiana na segunda metade do século XVII? Tratando do final da centúria, e mais especificamente do governo de Câmara Coutinho, Pedro Puntoni escreveu em um excelente artigo que “o sistema político do governo-geral” conheceu uma corrosão d“o seu papel coordenador da colonização, na medida em que passa a ser instrumentalizado, cada vez mais, pelos interesses da açucarocracia”251. Tal argumentação, porém, só faz sentido a partir do pressuposto de que já no seiscentos Portugal e suas conquistas americanas constituíam-se como “um centro decisório (metrópole) e outro subordinado (colônia)”252. Longe de mim negar a autoridade régia: objeto 248

CS, vol. III, pp. 110-1 (primeira citação à p. 111) e vol. IV, pp. 12-3 e 24-7 (segunda à p. 25). Veja-se também DH, vol. 89, p. 256 e PITA, História, pp. 441-2. Por outro lado, Gregório de Matos escreveu poemas extremamente ofensivos contra Câmara Coutinho, descrevendo-o como “merda dos fidalgos”, um “fanchono beato”: “ardendo morram já como Solis, e como arderam já duas cidades, Ardam Luiz Ferreira e Antônio Luiz”. Qualifica-o, enfim, como “um monstro (digo) inumano, que no bico era tucano, e no sangue mamaluco (...) Este pois por exaltar-se veio reger a Bahia: que bom governo faria, quem não sabe governar-se! (...) Se fosse El-Rei informado de quem o Tucano era, nunca à Bahia viera governar um povo honrado: mas foi El-Rei enganado, e eu com o povo o paguei, que é já costume, e já lei dos reinos sem intervalo, que pague o triste vassalo os desacertos de um Rei”. 249 CS, vol. III, pp. 110-1; ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das minas: ideias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008, pp. 39-50. 250 BOXER, Portuguese Society, pp. 74-5, seguindo uma prática adotada oito anos antes em Goa. 251 PUNTONI, Pedro. “‘O mal do Estado Brasílico’: a Bahia na crise do final do século XVII” [2010] in: id. O Estado do Brasil: poder e política na Bahia colonial, 1548-1700. São Paulo: Alameda, 2013. Nessa passagem, o autor está tratando da questão da moeda, que será abordada no próximo capítulo da tese. 252 NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 2006 [1979], 8ª ed., p. 62, citado por Pedro Puntoni em “Introdução” in: id. O Estado do Brasil.

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apenas a uma concepção dicotômica da relação entre a Coroa e os vassalos ultramarinos, aplicando uma perspectiva pensada a partir do discurso da administração central da Coroa de finais do setecentos para relações políticas de base ideológica e realidades práticas distintas. Praticamente todos os governadores, ainda que em graus muito variáveis, defenderam interesses locais e estabeleceram relações de cooperação com a elite baiana253. Eles não estavam, porém, sendo cooptados ou “instrumentalizados” por tibieza ou cupidez, mas apenas cumprindo o que deles era esperado. Como já se escreveu sobre os intendentes nas províncias francesas, “eles trabalhavam através e não contra os sistemas locais de autoridade, pois sem uma rede de contatos locais eram impotentes, e essa rede só podia ser construída através da sensibilidade a interesses locais”254. A colaboração era possível porque os interesses dos representantes do monarca e da nobreza baiana não se mostravam opostos, mas coincidentes. Discordâncias à parte, todos desejavam proteger a economia açucareira e defender a capitania de invasores, e o respeito formal à autoridade régia era universal255. Ao fim e ao cabo, os governantes não podiam retirar sua esfera da comunidade política mais ampla, porque sua autoridade estava baseada num sistema de poder compartilhado e numa gradação de privilégios presidida pelo monarca. Sem o rei não podia haver uma hierarquia de autoridades e nenhuma “divisão de trabalho” entre elas. Por outro lado, não havia possibilidade de um controle régio porque o rei confiava em seus aliados sociais na província e não tinha alternativa a seu governo256.

Pode-se dizer que as três funções básicas de uma monarquia – além de seu dever transcendental de dar justiça aos vassalos – eram a defesa militar, a manutenção da paz interna e a fiscalidade (para poder cumprir com as duas obrigações precedentes). Nenhuma das três podia ser alcançada sem uma intensa colaboração das elites locais, de modo que é necessário ultrapassar a dicotomia rei/súditos para pensar a monarquia e as comunidades locais como “feixes de relações entre pessoas em vez de coisas ou unidades que levam vidas próprias”257. No sentido em que é possível falar de um poder “estatal” na época moderna, ele precisa ser entendido como “uma rede de ofícios exercendo poder político”, da qual as elites provinciais 253

Puntoni reconhece a íntima relação entre governadores e a Câmara, mas a entende como resultado de uma condição especial de Salvador, por ter sido uma municipalidade fundada junto com o governo-geral e que com ele se desenvolveu. Cf. “O Governo-Geral e o Estado do Brasil: poderes intermédios e administração (1549-1720)” [2008] in: id. O Estado do Brasil: poder e política na Bahia colonial, 1548-1700. São Paulo: Alameda, 2013. Entretanto, o que variava era apenas o grau, pois em todo o mundo atlântico poder local, poder central e seus representantes colaboravam, de acordo com as relações de força vigentes em cada situação. 254 BEIK, Absolutism and society, p. 99. 255 SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835 (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1988 [1985], pp. 220-2. 256 BEIK, Absolutism and society, p. 219. Para uma reafirmação das suas ideias centrais vinte anos depois, cf. id. “The absolutism of Louis XIV as social collaboration”. Past & Present, n. 188, 2005, pp. 195-224. 257 TAYLOR, William. “Between Global Process and Local Knowledge: An Inquiry into Early Latin American Social History, 1500–1900” in: ZUNS, Oliver (ed.). Reliving the Past: The Worlds of Social History. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1985, p. 146.

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participavam numa posição de destaque258. Somente assim podemos compreender como o Senado administrava a Fazenda Real e os oficiais de ordenança funcionavam como importantes auxiliares dos governadores, de forma cada vez mais marcada nas últimas três décadas do século. Dessa maneira, tanto o governador-geral quanto a nobreza baiana ampliavam seu poder e mantinham uma ordem que lhes era, em termos gerais, favorável. Como escreveram os camaristas em 1676, “temos por certo serem duas as obrigações principais a que somos obrigados: a primeira tudo o que se nos oferecer do serviço de Vossa Alteza não perdermos ponto, como bons e leais vassalos; segunda o que for utilidade e quietação deste povo, e quase vem a ser uma ambas as obrigações”259. O serviço à Coroa, o bem da República e a manutenção de uma ordem social hierárquica e desigual eram, assim, objetivos comuns a todas as elites. A cooperação também era essencial porque a própria “Coroa não era um sujeito unitário, mas sim um agregado de órgãos e de interesses”, o que dificultava (ainda que não impossibilitasse) qualquer reforma mais profunda, de modo que “na Época Moderna prevalece, ainda, uma concepção ‘regulativa’ e não ‘activa’ da política”260. Os governadores procuravam conservar e não modificar: não à toa, as ações de Óbidos, provavelmente o mais “ativista” em todo o século, geraram fortes reações em todos os grupos de poder baianos. De modo geral, as mudanças que introduziam eram limitadas e ditadas por necessidades práticas imediatas. Entretanto, a tendência a partir da década de 1670, após o fim da Guerra de Restauração, da paz com os neerlandeses e em um momento de consolidação do regime brigantino, foi de um lento e gradual aumento da intervenção dos governadores na administração dos recursos da Fazenda Real administrados pelo Senado. Como o período de D. Pedro foi um “governo dos conselhos (...) caracterizado pelo restabelecimento de antigas formas de governo e pela escassa produção legislativa e inovação tributária”261, tais inovações se verificavam lentas e só assumiriam maior significado no século seguinte. Por outro lado, se o Senado continuava vulnerável aos ditames de um governador como o Braço de Prata, tais atitudes parecem ter se tornado consideravelmente menos aceitáveis do que 40 anos antes, salvaguardando a autonomia da instituição. A consolidação das principais famílias da capitania na segunda metade do século 258

BRADDICK, Michael J. State Formation in Early Modern England, c. 1550-1700. Cambridge: Cambridge UP, 2000, p. 428. 259 AUC, CCA, Livro Governo da Baía, 1648-1701, VI-III-1-1-6, fls. 28-29. 260 CARDIM, Pedro. “‘Administração’ e ‘governo’: uma reflexão sobre o vocabulário do Antigo Regime” in: BICALHO, Fernanda & FERLINI, Vera (orgs.). Modos de Governar: ideias e práticas políticas no Império português, séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005, pp. 53 e 68. Entretanto, como se depreende da exposição aqui realizada, penso que o estudo da dinâmica política efetiva demonstra uma articulação mais intensa do que a reconhecida pelo autor nesse trabalho, ao menos no tocante às principais áreas da monarquia. 261 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “A consolidação da dinastia de Bragança e o apogeu do Portugal Barroco (16681750)” in: TENGARRINHA, José (org.). História de Portugal. Bauru/São Paulo: EDUSC/EDUNESP, 2001, 2ª ed., pp. 208 e 210.

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(capítulo III) deve ter colocado maiores restrições à ação dos principais representantes da Coroa, assim como a existência do Tribunal da Relação. Tornava-se, assim, cada vez mais necessário construir um consenso, sob pena de surgimento de tensões que dificultassem sobremaneira a governação. Por outro lado, o fortalecimento de bandos também implicou uma maior conflitualidade, ampliando-se as disputas por influência dentro da própria nobreza. Os governadores podiam optar por auxiliar alguma das facções em disputa, mas, ao fazê-lo, arriscavam construir inimizades mais poderosas do que o apoio obtido – como no caso do governo do Braço de Prata. De modo geral, a elite local conseguiu manter o poder na primeira metade do século e até ampliá-lo, com o aumento da relevância das ordenanças e o controle da arrecadação do donativo de dote e paz. Movimento similar parece ter ocorrido no Reino, embora provavelmente tenha se mostrado de forma mais pronunciada na América262. A trajetória da Câmara é, portanto, radicalmente diferente do cabildo da cidade do México, em franca decadência a partir de 1640, em razão da forte intervenção dos vice-reis e do surgimento de opções de investimento mais interessantes para as elites locais, tornando o posto de regidor cada vez menos valorizado – fenômeno largamente disseminado nas possessões americanas da monarquia hispânica263. Quando olhamos para Pernambuco e Rio de Janeiro é difícil fugir da impressão de que o Senado soteropolitano colaborava mais intensamente com os governadores-gerais. Em termos práticos, os representantes da Coroa tinham tanto mais instrumentos para ameaçar os vassalos – através da infantaria – quanto para atraí-los, usando seu prestígio e o provimento de ofícios. A escala dos donativos administrados pelo Senado também dava à nobreza baiana mais motivos para cooperar, pois o controle desses recursos funcionava como uma importante ferramenta de fortalecimento da elite, contribuindo para a consolidação das principais famílias que se revezavam nos cargos da República. Mais do que submissão, a colaboração indicava integração: a Bahia fazia jus a seu título de “cabeça do Estado do Brasil” ao servir à monarquia, sendo por isso recompensada com privilégios, como os de cidadão do Porto e a fundação de um convento na década de 1660, cujos lugares deviam ser reservados à nobreza local (capítulos III e IV). Somente a Coroa podia, porém, conceder essas mercês, e uma marca do período bragantino é a maior participação do

CARDIM, Pedro. “La Corona y las autoridades urbanas en el Portugal del Antiguo Regímen. Entre los Habsburgo y los Braganza” in: BRAVO LOZANO, J. (ed.). Espacios de poder. Cortes, Ciudades y villas. Madri: Limencop, 2002, p. 43. 263 PAZOS, Maria. El Ayuntamiento de la Ciudad de México en el siglo XVII: continuidad institucional y cambio social. Sevilla: Diputación, 1999, pp. 237-50 e 277-90; RAMINELLI, Ronald. A era das conquistas: América Espanhola, séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2013, pp. 71-105. 262

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centro político na política ultramarina, apesar dos limites impostos pela demora inerente à distância. Como vimos, a relação com os governadores-gerais possuía imensa importância: entretanto, em muitos temas o representante do monarca nada podia fazer além de somar suas cartas às petições dos vassalos. Assim, se os dois pilares que sustentavam o império eram as Câmaras e os governadores264, o vértice do triângulo político era a Coroa, com quem todos se correspondiam265. Será, portanto, a comunicação política o último tema da tese.

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BOXER, Charles. O império marítimo português, 1415-1825 (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2002 [1969], p. 286 aponta como dois pilares do império os poderes municipais e as Misericórdias, enfatizando as instituições locais, em razão da impermanência dos oficiais régios. GOUVÊA, Fátima; SANTOS, Marília & FRAZÃO, Gabriel. “Redes de poder e conhecimento na governação do Império Português, 1688-1735”. Topoi, vol. 5, n. 8, 2004, pp. 123-5 já haviam acrescentado os governadores na equação, mas penso que a diminuta relevância política das irmandades leigas justifica pensar como pilares do império o poder local e a administração periférica da Coroa, enfatizando-se assim a importância da relação entre os representantes do rei e das elites locais. 265 Cidade, governador e Rei representavam “os três ângulos de um contrato político”: GANTELET, Martial. L’absolutisme au miroir de la guerre: le roi et Metz (1552-1661). Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2012, p. 87.

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Capítulo VII Do Coração do Estado do Brasil à Cabeça do Império: dinâmica e temas da comunicação política O pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala; muitas vezes se quis queixar justamente, muitas vezes quis pedir o remédio de seus males, mas sempre lhe afogou as palavras na garganta, ou o respeito, ou a violência; e se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos de quem o devera remediar, chegaram também as vozes do poder, e venceram os clamores da razão. Padre Antônio Vieira, Sermão da Visitação de Nossa Senhora, 1640.

Introdução O império ultramarino português na época moderna caracterizou-se por sua fragmentação e complexidade, mostrando-se capaz de conciliar tendências aparentemente contraditórias, como a formação e reiteração de vigorosas elites locais e a “centralidade do centro” da Coroa, isto é, sua posição focal no império como o polo a que todas as elites se reportavam. Dessa maneira, o que garantia o “equilíbrio dos poderes no Império” era o “fato de as distintas instâncias, e as respectivas elites, mutuamente se tutelarem e manterem vínculos de comunicação com o centro”1. Nesse sentido, muito já se escreveu sobre as “cadeias de papel” que ligavam a administração periférica às distantes Coroas ibéricas, transmitindo conhecimento, informações, sugestões e ordens, possibilitando assim o funcionamento de formações políticas tão inovadoras como os impérios ultramarinos europeus da Época Moderna, ainda que não necessariamente de acordo com as aspirações do centro político. Os conselhos régios exerciam aí um papel fundamental na avaliação desses escritos, mediando a relação com o monarca e, em larga medida, moldando o que este poderia vir a conhecer2.

MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Trajetórias sociais e governo das conquistas: notas preliminares sobre s vice-reis e governadores-gerais do Brasil e da Índia nos séculos XVII e XVIII” in: FRAGOSO, João; BICALHO, Fernanda & GOUVÊA, Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 283, nota 54 (primeira citação); id. & CUNHA, Mafalda Soares da. “Governadores e capitães-mores do império atlântico português nos séculos XVII e XVIII” in: id. & CARDIM, Pedro (eds.). Optima Pars: Elites Ibero-Americanas do Antigo Regime. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005, p. 194 (segunda e terceira). 2 Cf. ELLIOTT, John H. “A Espanha e a América nos séculos XVI e XVII” in: BETHEL, Leslie (ed.). História da América Latina: a América Latina Colonial, vol. I (trad.). São Paulo: EDUSP/Fundação Alexandre de Gusmão, 1997 [1984], p. 287. Para o caso luso-brasileiro, cf. HESPANHA, António Manuel. As Vésperas do Leviathan: instituições e poder político, Portugal – séc. XVII. Coimbra: Almedina, 1994 [1986], pp. 291-3 e SANTOS, Marília. “A escrita do império: notas para uma reflexão sobre o papel da correspondência no império português” in: SOUZA, 1

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Também se tem enfatizado a importância da comunicação entre os vassalos e os reis portugueses, especialmente através das Câmaras, o principal órgão político do poder local no Império luso. As municipalidades ultramarinas seriam capazes de estabelecer negociações com a Coroa sobre diversos pontos políticos e econômicos fundamentais 3, reproduzindo relações também vigentes no Reino. O objetivo desse capítulo é estudar a comunicação política entre Salvador e a Coroa lusitana ao longo do século XVII. Trata-se, portanto, de analisar um tipo de fonte largamente utilizado pelos historiadores, mas de forma geralmente assistemática: cartas da Câmara, consultas e missivas régias, numa pesquisa de cariz explicitamente institucional – pois fontes que permitam uma análise da comunicação informal, como cartas pessoais, são muito escassas, ainda que também atravessassem o Atlântico em grande número4. Procuro, assim, aceder, da forma mais direta possível, à relação política entre Coroa e conquistas em um caso concreto e relevante, pois a correspondência camarária era a principal forma de contato coletivo entre as localidades (representadas, claro, por suas elites) e o centro político. Procuro demonstrar como essa correspondência constitui-se como um importante fluxo de informações e, principalmente, interesses, potencializando a influência das elites locais sobre as políticas que lhes interessavam e, ao mesmo tempo, limitando sua margem de arbítrio, ao exigir que dessem conta de suas ações ao centro. Em última instância, contribuíam para a própria coesão da monarquia, ao reforçar os laços que uniam as duas margens do Atlântico, constituindo-se em um elemento central do império ao constantemente revigorar a comunidade política da monarquia portuguesa5. A construção de comparações com outros impérios atlânticos seria importante. Entretanto, a historiografia sobre as elites hispano e anglo-americanas tem se focado nos conflitos políticos locais, na estrutura e funcionamento de suas instituições e nas características

Laura de Mello e; FURTADO, Júnia & BICALHO, Fernanda (orgs.). O Governo dos Povos. São Paulo: Alameda, 2009, pp. 171-92. 3 Cf. BOXER, Charles. Portuguese Society in the Tropics: the municipal councils of Goa, Macao, Bahia, and Luanda, 1510-1800. Madison & Milwaukee: University of Madison Press, 1965 e BICALHO, Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. Para um incisivo debate historiográfico sobre a relação entre câmaras e a Coroa, cf. RAMINELLI, Ronald. Nobrezas do Novo Mundo: Brasil e ultramar hispânico, séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2015, pp. 62-72. 4 Além das conhecidas cartas do Padre Vieira, veja-se as poucas cartas seiscentistas de membros da elite baiana para o Dr. Cristóvão Soares de Abreu, diploma e letrado de prol na política brigantina por mais de três década, em BPA, 49-X12, fl. 769; 54-VIII-37, fl. 109; 54-VIII-36, n. 82; 54-VIII-37, ns. 152, 168, 170, 172, 176 e 178; 54VIII-38, ns. 294, 302-303, 316, 334, 345, 350-1 e 359. Em razão de sua vasta correspondência e dos muitos postos que serviu, uma biografia dessa figura seria de grande interesse para a história portuguesa. 5 RAMINELLI, Ronald. Viagens Ultramarinas: monarcas, vassalos e o governo a distância. São Paulo: Alameda, 2008, pp. 21-47; BRENDECKE, Arndt. Império e información: funciones del saber en el domínio colonial español (trad.). Madri/Frankfurt: Iberoamericana/Vervuert, 2012 [2009], pp. 23-8, 75, 289-90 e 486-92; BANKS, Kenneth J. Chasing Empire across the Sea: communications and the state in the French Atlantic, 1713-1763. Montreal: McGill Queen’s UP, 2002, pp. 5 e 11.

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socioeconômicas dos grupos dominantes, sem realizar análises detalhadas da comunicação política com os respectivos centros imperiais. Mesmo assim, é possível inferir que a comunicação política através das assembleias locais não foi muito significativa na América Inglesa continental, embora talvez tenha tido uma importância maior no Caribe. No geral, a monarquia inglesa privilegiou a comunicação com os governadores, diferentemente da América Ibérica. Por outro lado, o império britânico parece ter se caracterizado, a partir da primeira metade do setecentos, por uma intensa comunicação transatlântica não institucional, baseada em uma elevada circulação de cartas particulares e jornais entre o Velho e o Novo Mundo. Mesmo na América espanhola, o enfraquecimento dos cabildos no século XVII e a possibilidade de participação das elites locais na administração periférica da Coroa provavelmente reduziu a importância da comunicação política através das instituições representativas locais – ainda que a comunicação continuasse a ser profundamente plural, garantindo-se a diversos agentes a possibilidade de estabelecer contato com o centro político6. Tais contrastes são interessantes para melhor compreender o desenvolvimento que se pretende traçar nesse capítulo: a partir de contatos episódicos no período filipino, a comunicação política evolui para uma relação cada vez mais dialógica depois da Aclamação do Duque de Bragança, tendência consolidada a partir da década de 1660. Salvador assume, portanto, um papel de destaque, não só em relação ao Brasil, mas também ao conjunto da monarquia portuguesa. Os donativos representavam a temática mais importante, devido aos significativos recursos administrados pela municipalidade e às novas demandas régias a partir da década de 1660. Em diversos outros temas, porém, o Senado frequentemente requeria a intervenção da Coroa, estabelecendo um diálogo excepcionalmente intenso, complementar à relação com os governadores-gerais analisada nos dois capítulos precedentes. O objetivo é, através do estudo dessa dinâmica, reforçar a ideia já apresentada de uma profunda imbricação entre os poderes local e central, a partir da relação de interdependência que os unia, fortalecida

6

O melhor ponto de partida é ELLIOTT, John H. Empires of the Atlantic World: Britain and Spain in America, 1492-1830. New Haven: Yale UP, 2007 [2006], pp. 117-52; cf. também BILLINGS, Warren M. A Little Parliament: the Virginia General Assembly in the Seventeenth Century. Richmond: Library of Virginia, 2007; JORDAN, David W. Foundations of Representative Government in Maryland, 1632-1715. Cambridge: Cambridge UP, 1987; BECKLES, Hilary McD. “The ‘Hub of Empire’: the Caribbean and Britain in the Seventeenth Century” in: CANNY, Nicholas (ed.). The Origins of Empire: British Overseas Enterprise to the Close of the Seventeenth Century. Vol. I de LOUIS, Roger (ed.). The Oxford History of the British Empire. Oxford: Oxford UP, 1998, pp. 218-40; ROSS, Richard J. “Legal Communications and Imperial Governance: British North America and Spanish America Compared,” in: TOMLINS, Christopher & GROSSBERG, Michael (eds.). Cambridge History of Law in America, vol. I: Early America (1580-1815). Cambridge: Cambridge UP, 2008, pp. 114-8; STEELE, Ian. The English Atlantic, 1675-1740: an exploration of communication and community. Oxford: Oxford UP, 1986.

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exatamente pela maior diferenciação política entre conquistas e Coroa, em razão da crescente complexificação da sociedade e administração americanas7.

Um interlocutor preferencial O status de capital do Estado do Brasil, “como coração no meio do corpo” (capítulo I), conferia à Câmara de Salvador considerável prestígio na relação com a Coroa, tanto na perspectiva dos camaristas quanto do centro político. Sua posição destacada manifestava-se em momentos excepcionais, como quando da Aclamação de D. João IV: imediatamente após o recebimento da notícia da Restauração em 15 de fevereiro de 1641, foram enviadas cartas para as “Capitanias do Sul” conclamando-as a aderirem à Restauração portuguesa, antes mesmo da resposta enviada ao monarca – reproduzindo, sem saber, o que a Câmara do Porto havia feito dois meses antes no Norte de Portugal8: pedimos a Vossas Mercês com a confiança de ser esta terra Cabeça deste Estado que sigamos o mesmo estilo que no Reino se usou, sendo tão geral a conformidade e conhecimento do Rei no que em nenhuma parte foi necessária violência para com isto ter todo este Estado merecimento e confiança para esperar d’El-Rey nosso as mercês que de sua grandeza e amor paternal de verdadeiro Rei e Senhor nos assegura 9.

Entretanto, não há um esforço continuado da Câmara de Salvador de representar o o Estado do Brasil: seu status de “cabeça” é invocado principalmente como argumento para justificar a demanda por privilégios. Um exemplo desta estratégia discursiva pode ser visto quando os camaristas pediram os privilégios da Cidade do Porto, já concedidos a São Luís do Maranhão, sendo “justo que os tenha também a Câmara da Bahia, como a cabeça de todo o Estado do Brasil”10; outro quando requerem, em 1673, a mudança de seu lugar nas cortes para o mais prestigioso primeiro banco, onde Goa já estava localizada11. Embora o Conselho

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Norbert Elias transpôs a noção de interdependência, presente desde o século XIX na sociologia funcionalista para destacar a importância da divisão do trabalho na coesão, para a discussão sobre a formação do Estado ao afirmar que a intensificação das interações entre regiões e grupos sociais gerava uma dependência mútua, surgindo daí a necessidade de um poder estatal para regular essas relações cada vez mais complexas. Seu interesse reside principalmente em destacar a importância de expandir a análise do poder para além do centro político, ao mesmo tempo em que evidencia a necessidade de pensar o local em relação com o todo mais amplo. Cf. ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte (trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001 [1969], pp. 38, 45, 56, 93-5, 125-34 e 152-60; id. O Processo Civilizador (trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993 [1939], vol. 2: Formação do Estado e Civilização, pp. 33-6, 50-6, 82-5, 98-107, 128-31, 157-81, 194-8 e 207-74. Ronald Raminelli tem utilizado repetidamente essa noção para refletir sobre a relação entre a América Portuguesa e monarquia em Viagens Ultramarinas, pp. 17-176 e Nobrezas do Novo Mundo, pp. 25 e 71-82, no qual o emprega exatamente para compreender o significado da comunicação política entre câmaras e a Coroa no Atlântico luso. 8 AC, vol. II, p. 9; CS, vol. I, pp. 13-4; SILVA, Francisco Ribeiro da. “A cidade do Porto e a Restauração”. Revista da Faculdade de Letras, História, II série, vol. XI, 1994, pp. 193-4. 9 CS, vol. I, pp. 12-3. 10 AHU, Bahia, LF, cx. 10, doc. 1176. 11 CS, vol. I, pp. 118-9.

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Ultramarino repetidamente louvasse a lealdade e os méritos dos vassalos baianos no serviço ao monarca “à custa de suas vidas e fazendas”12, raramente enfatiza sua capitalidade13. Mesmo assim, a eficácia dessa representação simbólica pode ser vista quando, após uma representação de Frei Mateus de São Francisco em 1653 para que fosse concedido ao Estado do Brasil representação nas Cortes, D. João IV resolve que “a cidade da Bahia, metrópole do Estado do Brasil, pode mandar procuradores às Cortes”14. O que é mais notável é o fato de que Frei Mateus (cujas boas relações com a elite soteropolitana são perceptíveis por uma carta de 1650, em que os camaristas o elogiam e pedem para que ele seja nomeado bispo do Brasil) 15 enfatizou em seu memorial os serviços de Pernambuco, sem mencionar a Bahia, mas foi esta a escolhida, mesmo sem qualquer pedido nesse sentido por parte da Câmara – um relevante indicador do reconhecimento régio de sua importância. É de se destacar a singularidade dessa honraria. Salvador foi a segunda municipalidade ultramarina a obter o direito de representação institucional num Parlamento europeu, após Goa, capital do Estado da Índia, que obteve esta mercê em 1645 – quando o Procurador da Coroa Tomé Pinheiro da Veiga já sugeriu que Salvador deveria representar o Brasil nas Cortes – e que o título de “Senhor do Brasil” fosse acrescentado ao “nome real de Vossa Majestade” 16. Décadas depois chegou a vez de São Luís, capital do Estado do Maranhão e Grão-Pará, por iniciativa do centro político. A capitalidade constituiu-se, assim, no elemento unificador que explica a concessão da representação em Cortes destas três cidades, para que estes Estados pudessem ser representados através de suas cabeças17. Na América hispânica, embora tenha havido discussões nesse sentido entre 1528 e 1635, nada de efetivo ocorreu, tanto pela relutância régia em conceder poder de voto aos procuradores americanos quanto pela resistência dos vassalos ultramarinos em concordar com as grandes contribuições desejadas pelos Habsburgo18. Mesmo no caso do império britânico, onde se constituiu um poderoso “lobby do açúcar” no Parlamento no século XVIII, este era resultado

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AHU, cód. 16, fl. 104v, para citar um dentre muitos exemplos. Embora o faça uma vez para demandar que contribuísse para a defesa de outras capitanias, “porque como cabeça daquele corpo deve acudir às mais partes dele”: DH, vol. 89, p. 264. 14 AHU, Bahia, LF, cx. 12, doc. 1527. 15 CS, vol. I, pp. 28-9. 16 AHU, Bahia, LF, cx. 10, doc. 1177. Sobre a capitalidade de Goa e as discussões políticas sobre sua importância e mudança de capital, cf. SANTOS, Catarina Madeira. “Entre Velha Goa e Panguim: a capital do Estado da Índia e as reformulações da política ultramarina”. Revista Militar, vol. 51, 1999, pp. 119-57. 17 CARDIM, Pedro. “The representatives of Asian and American cities at the Cortes of Portugal” in: id.; HERZOG, Tamar; RUIZ IBAÑEZ, José Javier & SABATINI, Gaetano (eds.). Polycentric Monarchies: how did early modern Spain and Portugal achieve and maintain a global hegemony? Eastbourne: Sussex Academic Press, 2012, pp. 4353. 18 LOHMANN VILLENA, Guillermo. “Notas sobre la presencia de la Nueva España en las Cortes metropolitanas y de Cortes en la Nueva España en los siglos XVI y XVII”. História Mexicana, vol. 39, n. 1, 1989, pp. 33-40. 13

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de proprietários caribenhos absenteístas que, graças à imensa fortuna acumulada nas ilhas, retiravam-se para a Inglaterra e assumiam um estilo de vida aristocrático, construindo imponentes mansões no campo e fazendo-se eleger como membros do Parlamento (em 1765, haveria mais de quarenta, representando as principais famílias das “Índias Ocidentais”) 19. Não havia, portanto, uma representação institucional desses territórios no Parlamento britânico. Reforça-se, assim, a excepcional importância do império dentro da arquitetura política lusitana, como explicitou Matias de Albuquerque em arbítrio de 1642: “que esta Monarquia consiste das costas da Guiné em África, das do Brasil na América, e das da Índia na Ásia, a experiência o mostra, a grandeza passada o diz e o desfalecimento presente o prova” 20. Ao mesmo tempo, evidencia-se o papel de destaque exercido por Salvador (apesar da subalternidade implícita em ser um território novo, conquistado e ultramarino21). O pertencimento de Salvador à monarquia portuguesa também se reiterava de outras formas. Antes mesmo de receber o privilégio de representação em Cortes, o Senado manteve procuradores em Lisboa, especialmente após a Restauração22, situação que se perpetuou ao longo da maior parte do século. Dessa maneira, a relação entre Coroa e conquista também podia ser personalizada através da presença desse agente na Corte. Encontrei 35 referências detalhadas a representações dos procuradores entre 1645-93 – 26 delas entre 1663-71, quando João de Gois de Araújo e José Moreira de Azevedo ocuparam o cargo (capítulo VI). Considerando, porém, o envio de 40 cartas da municipalidade para seus procuradores na capital do império a partir de 1658 (e certamente muitas outras, já desaparecidas), pedindo em quase todos os anos que esses procuradores atendessem aos seus requerimentos junto ao Conselho Ultramarino, assim como o fato de que diversas cartas régias se referissem à atuação do procurador como causa imediata da ação monárquica (em um caso, sendo capaz de reverter uma decisão tomada menos de quatro meses antes23), creio que sua atuação foi muito relevante na comunicação política ao longo de toda a segunda metade do seiscentos. É possível observar

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Para uma síntese recente, cf. PARKER, Matthew. The Sugar Barons: Family, Corruption, Empire and War in the West Indies. Londres: Hutchinson, 2011, pp. 296-310. 20 BNL, cód. 1555, fls. 142-3. 21 CARDIM, Pedro & MIRANDA, Susana Münch. “Virreyes y gobernadores de las posesiones portuguesas en el Atlántico y en el Índico (siglos XVI-XVII)” in: CARDIM, Pedro & PALOS, Juan-Luis (eds.). El mundo de los virreyes en las monarquias de España y Portugal. Madrid/Frankfurt: Iberoamericana/Vervuert, 2012, pp. 175202. 22 AC, vol. I, p. 368 e vol. II, pp. 28-30. 23 Sobre o aumento do salário do síndico do Senado. Cf. AHMS, PR, vol. 3, fls. 96 e 98. Para um estudo muito mais detalhado sobre os procuradores, porém, veja-se CARDIM, Pedro & KRAUSE, Thiago. “A comunicação entre a Câmara de Salvador e os seus procuradores em Lisboa durante a segunda metade do século XVII” in: MARQUES, Guida; SOUZA, Evergton Sales & SILVA, Hugo Ribeiro da (orgs.). Salvador da Bahia: Retratos duma cidade atlântica (século XVII-XIX). Lisboa/Salvador: CHAM/UFBA, 2015, no prelo.

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nas cartas aos procuradores indícios de sua importância. Em 26 de maio de 1682, por exemplo, os camaristas escreveram ao Capitão Manoel de Carvalho: As cartas e provisões de Sua Alteza se entregaram neste Senado e rendemos a vossa mercê as graças do particular cuidado com que assiste aos negócios deles, de que nos achamos tão obrigados como vossa mercê experimentará nas ocasiões que for servido dar-nos de seu serviço. Ao Capitão Domingos Martins Pereira, procurador de Vossa Alteza, digo de vossa mercê, entregamos duzentos mil réis a conta de ordenado, e não do que lhe devemos24.

Ainda mais difíceis de discernir são os laços clientelares. Sua importância é significativa, mas só pode ser inferida através de algumas cartas sobreviventes. O próprio Capitão Manuel Carvalho foi escolhido em razão de sua inserção em uma rede clientelar, como é explicitado na primeira carta do Senado que lhe é enviada, em 24 de julho de 1680: O secretário André Lopes de Lavre se mostra tão amante desta cidade que ao mesmo tempo que nos inculcou o desamparo de seus negócios nos ensinou também a grande capacidade de vossa mercê para eles tem, o que se ajuntou à boa informação que nosso procurador Domingos Dantas de Araújo nos deu, com o que resolvemos a remeter a vossa mercê procuração para que a pessoa de vossa mercê represente este Senado25.

O rico fidalgo Lopes de Lavre, secretário do Conselho Ultramarino26, revela-se, assim, uma figura fundamental para a comunicação entre a elite baiana e a Corte, como pode ser percebido no trecho final de uma carta que os camaristas enviaram ao secretário: “conhecerá este Estado que todos os provimentos que em seus particulares conseguir os deve ao patrocínio de vossa mercê”27. Outros a receber correspondência da Câmara foram os presidentes do Conselho Ultramarino Conde de Odemira e Duque de Cadaval, e delas fica a impressão que este tipo de missiva não era extraordinário. A Odemira, por exemplo, os camaristas pedem que lhes “faça mercê como costuma”28. Antigos governadores também podiam ter seu patrocínio requisitado, como no caso de Roque da Costa Barreto29. Um elo fundamental na constituição dessas redes era o próprio procurador, sendo pedido a ele que se encontrasse pessoalmente com figuras de importância para melhor representar os interesses da Câmara30. É possível que o Padre Antônio Vieira também tenha contribuído de alguma forma para a inserção da 24

CS, II, pp. 110-1. CS, II, pp. 91; cf. também pp. 117-20. 26 BICALHO, Fernanda. “Ascensão e queda dos Lopes de Lavre: secretários do Conselho Ultramarino” in: MONTEIRO, Rodrigo Bentes; FEITLER, Bruno; CALAINHO, Daniela Buono & FLORES, Jorge. (Orgs.). Raízes do Privilégio: mobilidade social no mundo ibérico do Antigo Regime. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, pp. 283-304. 27 CS, II, pp. 91-2; cf. também p. 96. 28 CS, vol. I, pp. 70-1 e CS, vol. IV, pp. 59-60. 29 CS, vol. II, p. 114. 30 Cf. CS, vol. II, pp. 95-7: “para que vossa mercê ampare esta causa como nossa, e peça ao secretário André Lopes a favoreça”; pp. 106-7: “se aviste vossa mercê com o Procurador Geral dos Reverendos Padres da Companhia nessa Corte, o Padre Francisco de Matos, que ele dará a informação mui adequada”; pp. 110-1: “O negócio das religiosas com o patrocínio de vossa mercê esperamos tenha bom sucesso ao senhor Arcebispo, a quem vossa mercê nos fará mercê de nossa parte visitar”; 25

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municipalidade baiana nas redes cortesãs, em razão de suas boas relações com muitos homens de destaque na Corte lisboeta – como os supracitados Cadaval e Costa Barreto. Fica claro, assim, que o estudo da comunicação politica exige também o reconhecimento da importância das redes clientelares na política do Antigo Regime, mesmo quando submersas nas consultas aparentemente burocráticas dos conselhos superiores da monarquia. O entrelaçamento característico da época moderna entre instituições e relações pessoais gerava essa indistinção entre o que hoje classificamos como público e privado31. Infelizmente, porém, não conheço fontes que permitam avançar muito por esse caminho.

“Temos escrito muitas e repetidas vezes a Vossa Majestade” Apesar da sobrevivência de um relevante fundo documental no Arquivo Histórico Municipal de Salvador, parcialmente publicado, o cartório da Câmara está longe de ser completo, mostrando-se especialmente frágil para o período que vai até 1668. Da forma ainda mais pronunciada, a documentação inventariada nas coleções avulsas do Conselho Ultramarino sobre a Bahia também está repleta de lacunas. Tornou-se necessário, portanto, complementar a pesquisa através de diversos fundos documentais para obter um panorama mais completo. O exame dos livros de registro do Conselho Ultramarino, nomeadamente as consultas e cartas régias, são essenciais, pois, se não garantem o acesso à totalidade da correspondência produzida, ao menos permitem a coleta de praticamente toda a documentação considerada relevante pelo centro político. Em acréscimo, 73 cartas foram recuperadas através de referências em outros documentos (como consultas do Conselho Ultramarino que resumem cartas da Câmara), embora os originais tenham se perdido. Ainda assim, é inevitável que vazios continuem a existir, especialmente para a primeira metade do século, antes da fundação do Conselho Ultramarino32. Em última instância, é preciso recorrer ao velho axioma da história econômica: números falsos – ainda que não muito, espero – mas curvas verdadeiras33. Cabe aqui um esclarecimento: pequena parcela da documentação produzida pela Coroa e copiada no cartório da Câmara não foi classificada como comunicação política. Selecionei

NOVAIS, Fernando A. “Condições de privacidade na colônia” in: id. (coord.) & SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da Vida Privada, vol. 1: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 13-39. 32 Para uma discussão similar sobre duas Câmaras do Reino, cf. CUNHA, Mafalda Soares da & FARRICA, Fátima. “Comunicação política em terras de jurisdição senhorial. Os casos de Faro e de Vila Viçosa (1641-1715)”. Revista Portuguesa de História, tomo XLIV, 2013, pp. 296-300. 33 ALEXANDRE, Valentim. Os Sentidos do Império: questão nacional e questão colonial na crise do Antigo Regime Português. Porto: Afrontamento, 1993, p. 20. Cf. SOBOUL, Albert. “Descrição e medida em história social” in: A História Social: problemas, fontes e métodos. (trad.) Lisboa: Edição Cosmos, 1973 [1967], p. 34. 31

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somente aquelas em que a própria Coroa ordena o registro nos livros do Senado, as que foram produzidas em respostas a missivas da Câmara e as que tocavam diretamente à municipalidade. Deixei de fora, assim, documentos rotineiros, como cartas patentes, e outros interessantes, como uma carta ao Vice-Rei Marquês de Montalvão recriminando de forma duríssima os paulistas em razão da escravização dos índios34. Tal procedimento se deve ao fato de que o registro na Câmara nesses casos não foi intenção da Coroa, devendo-se à iniciativa de agentes locais. Em acréscimo, talvez os próprios camaristas pudessem manipular os registros, com destaque para a figura do escrivão, parte da elite e uma figura ativa do jogo político baiano, como as desventuras de Rui de Carvalho Pinheiro estudadas no capítulo anterior deixam claro. A manipulação também podia se dar através do “esquecimento” em registrar missivas régias consideradas inconvenientes. Percebe-se, assim, que a constituição da memória administrativa tinha significados políticos – o que se tornará ainda mais evidente quando notarmos a capacidade de intervenção dos governadores-gerais na correspondência municipal. Retornando aos números, encontrei 505 missivas da Câmara, numa média de 5 por ano (mediana: 3.5). Já a Coroa, entre cartas, provisões e alvarás, escreveu 330 vezes, numa média anual de 3.3 (mediana: 2). A distribuição temporal da correspondência é muito irregular, como podemos perceber no gráfico abaixo, embora a tendência seja claramente de alta.

Gráfico I: número de cartas da Câmara e Coroa. 25

20

15

10

5

0 1600

1610

1620

1630

1640

1650

1660

-5 Câmara

34

AHMS, PR, vol. I, fls. 242-247.

Coroa

1670

1680

1690

1700

296

Fontes: AC, vol. 2, pp. 9-13; CS, vols. 1-5; AHMS, PR, vols. 1-3 ; Cartas do Governo e Senado, 1642-8, fls. 116-119v e 259v-161v; CCLP, vols. 1, 3-4, 6 e 8-10; DH, vols. 33, 34, 66-8, 83 e 88-9; AHU, códs. 13-7, 92, 275-6; Bahia, LF, cxs. 1-34; Avulsos, cxs. 1 e 2; Castro Almeida, cx. 1, docs. 25; Brasil Geral, cx. 1, docs. 66 e 73; Rio de Janeiro, Castro Almeida, cx. 6, doc. 1147; IAN/TT, Corpo Cronológico, mç. 15, ns. 104 e 107; Desembargo do Paço, Livro 7, fls. 126-126v e Livro 18, fl. 251; Mesa da Consciência e Ordens, Livro 17, fls. 158-9; Manuscritos da Livraria, L. 1116; Chancelaria de Felipe II, Ls. 32, fls. 36v-37 e 42, fls. 47v-48v; de Felipe III, L. 16, 210v-211; de D. João IV, L. 20, fls. 283v-284; de Afonso VI, L. 51, fls. 198v-199; de D. Pedro II, Ls. 36, fls. 81v-82 e 49, fl. 17v; AUC, CCA; BPA, 51-V-48, fls. 50-53; 51-V-75, 22v-23; 51-VIII-18, 23v; 51-X-1, fls. 274-5; Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, ms. 547, f. 107; Documentação Ultramarina Portuguesa, vol. IV. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1965, pp. 590-1 e 593-4.

Quadro 1: número de cartas da Câmara e Coroa. Período

Câmara Média/Mediana Coroa Média/Mediana

1601-40

21

0.5/0

26

0.6/0

1641-56

71

4.4/4

41

2.6/2.5

1657-6/62

53

10.2/9.5

6

1/1

7/1662-67

62

11.8/11.5

42

7/4.5

1668-83

130

8.1/7

79

4.9/5

1684-1700

168

9.9/11

136

8/7

Total

505

5/3.5

330

3.3/2

Fontes: ver Gráfico 1.

A correspondência da Câmara antes de 1640 é fragmentada e incompleta, impedindo uma análise sistemática. Desse modo, privilegiarei o período pós-Restauração, avançando até o final do século XVII. A impressão que fica é a da rarefação da comunicação direta entre a municipalidade e o centro político, especialmente se compararmos com os períodos posteriores. Entre 1625 e 1641, só consegui localizar uma carta da Monarquia Hispânica diretamente para a Câmara de Salvador, e mesmo esta era parte de um último (e inútil) esforço para evitar a adesão das conquistas à Restauração Portuguesa, meses depois da aclamação de D. João IV em Salvador e quando há muito já se desistira de esforços semelhantes no Reino35. Não quero dizer

35

Documentação Ultramarina Portuguesa, vol. IV. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1965, pp. 590-1 e 593-4, junto com cartas para o Bispo e para o Vice-rei (pp. 588-94). Os últimos despachos de Felipe IV para seus vassalos portugueses deram-se muito antes, em 15 de dezembro de 1640, para o Porto: VALLADARES, Rafael. A Independência de Portugal: Guerra e Restauração, 1640-1680 (trad.). Lisboa: Esfera dos Livros, 2006 [1998], p. 47.

297

que os Felipes negligenciassem o império português ou que o Senado não possuía importância: antes, o governador era o interlocutor privilegiado pela monarquia, exercendo um importante papel de negociação e constante diálogo com a municipalidade, como vimos no capítulo V. Para o restante do século, foram utilizadas as balizas cronológicas da monarquia portuguesa, considerando-se que os reinados e as regências representam conjunturas políticas específicas, úteis para compreendermos o funcionamento da comunicação política. O governo de D. João IV caracterizou-se pela incerteza quanto à sobrevivência da nova dinastia, mas também por significativas reformulações na estrutura polissinodal lusitana, notavelmente a criação do Conselho Ultramarino, principal interlocutor das conquistas36. A Restauração foi um período decisivo para a manutenção do Atlântico Português, assistindo ao auge e posterior derrubada do domínio neerlandês, com a recuperação do Norte do Brasil e de Angola. Destaca-se aqui o aumento significativo de cartas régias, após seis anos sem missivas para a Câmara, mas, principalmente, a multiplicação da correspondência ativa da municipalidade, que viu a Aclamação brigantina como um momento propício para pedir mercês e, depois, contou com a atenção do recém-criado Conselho Ultramarino para fazer uma série de demandas e reclamações, possivelmente reprimidas pela fragilidade da comunicação nos últimos anos do governo de Felipe IV. O surgimento de um tribunal específico que centralizaria praticamente toda a comunicação com as Câmaras e, em geral seria simpático a suas reivindicações parece ter dado, portanto, um significativo impulso à comunicação política, integrando as conquistas mais fortemente à monarquia – processo similar ao que ocorrera nas possessões italianas dos Felipes com a criação do Consejo de Italia, na década de 156037. Entretanto, após um período excepcionalmente ativo de comunicação com Salvador entre 16416, há uma queda: talvez se sentisse que as questões mais urgentes já tivessem sido resolvidas e já se demonstrara, como no Reino, que a dinastia brigantina era distinta dos Habsburgo ao comunicar-se a seus vassalos38, permitindo que se privilegiasse a defesa nas fronteiras com Castela e outras questões urgentes do ultramar, como as reconquistas de Angola e Pernambuco e a instituição da Companhia-Geral de Comércio. A regência de D. Luísa de Gusmão, prolongada devido à instabilidade do jovem D. Afonso, viveu momentos de tensão tanto em razão de disputas políticas internas da Corte BARROS, Edval de Souza. “Negócios de Tanta Importância”: o Conselho Ultramarino e a disputa pela condução da guerra no Atlântico e no Índico (1643-1661). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: PPGHIS/UFRJ, 2004 (há edição portuguesa, a qual infelizmente não pude consultar). 37 SABATINI, Gaetano. “El espacio italiano de la Monarquía: distintos caminhos hacia una sola integración” in: MÁZIN, Óscar & RUIZ IBAÑEZ, José Javier (orgs.), Las Indias Occidentales: Procesos de incorporación territorial a las Monarquías Ibéricas. Cidade do México: El Colegio de México, 2013, pp. 155-80. 38 CARDIM, Pedro. Cortes e Cultura Política no Portugal do Antigo Regime. Lisboa: Cosmos, 1998, p. 162. 36

298

lisboeta quanto das ameaças externas das Províncias Unidas dos Países Baixos e da Monarquia Hispânica – para além das difíceis negociações diplomáticas com França, Inglaterra e a Santa Sé39. No tocante à comunicação política com Salvador, a tendência de alta se manteve para as cartas da municipalidade, atingindo o nível que, com algumas oscilações, mantiveram até o final do século: considerando a simultaneidade dos processos, é difícil não enxergar alguma correlação entre esse desenvolvimento e a consolidação da elite política baiana, cada vez mais concentrada num reduzido número de famílias, confiantes em seu poder e autoridade e acostumadas a dialogar com os governadores (capítulos III e VI). A Coroa, porém, pouca atenção deu à Câmara, mais preocupada com as disputas políticas na própria Corte, ensejando uma clara distinção entre as duas curvas, desenvolvimento que já vinha se manifestando desde 1651, pois enquanto as cartas do Senado se multiplicavam, as da Coroa permaneceram estáveis no final do governo de D. João IV, para reduzir-se a níveis quase irrisórios durante a regência. A tomada de poder pelo jovem rei D. Afonso VI em meados de 1662 e a posterior ascensão do Conde de Castelo Melhor a um papel central na Corte trouxeram transformações para o governo da monarquia, concentrando poder para fazer frente ao desafio da intensificação da guerra contra os castelhanos. As ligações de membros destacados da nova facção no poder com o Brasil (como o próprio valido, cujo pai fora governador-geral entre 1650-4, e o Conde de Atouguia, que lhe sucedeu no triênio seguinte) garantiram à América uma atenção especial, representada não somente pelo envio do Conde de Óbidos como vice-rei, mas também pela elevação a níveis inauditos do número de cartas régias enviadas para a Câmara soteropolitana, demonstrando os efeitos políticos da viragem atlântica do império40. Como após a Aclamação do primeiro Bragança um quarto de século antes, a chegada ao poder de D. Pedro representou um momento de esperança de que as coisas poderiam mudar em favor dos vassalos baianos. Provavelmente tratava-se mais de retórica, já que a Câmara estava dominada por aliados do Conde de Óbidos, como vimos no capítulo anterior, mas a citação vale exatamente pela tentativa de demonstração de lealdade ao novo regime: Até agora cuidamos que o não se nos deferir era nossa desgraça e falta de conhecimento de que [d]os mais povos de que se compõem a monarquia de Vossa Alteza, era este o que com razão podia, se não preferir, ao menos igualando, mais amante e fiel; porém agora que Vossa Alteza tem sobre seus ombros o governo desse Reino e com tanta atenção se mostra igualmente pai e Senhor de seus vassalos, com muita razão esperamos vencer aquela desgraça, e que de sua grandeza mande deferir a todos os requerimentos (...) para que assim tenhamos entendido que com a obrigação de vassalos gozemos também o amor de filhos41.

39

Id. & XAVIER, Ângela Barreto. D. Afonso VI. Lisboa: Círculo de Leitores, 2008 [2006], 2ª ed., pp. 87-130. XAVIER & CARDIM, D. Afonso VI, pp. 170-205. 41 CS, vol. I, p. 82. 40

299

Como era de se imaginar, nada do gênero ocorreu, embora sob D. Pedro os ritmos da comunicação política tenham se estabilizado. O número médio de cartas diminuiu um tanto, mas em compensação estas se tornaram mais regulares. Mais interessante, as duas curvas aproximaram-se, o que indica um reforço do diálogo: cada vez mais as cartas referiam-se a missivas passadas, respondendo-as em vez de simplesmente ignorá-las. Após a coroação de D. Pedro em 1683, ocorreu uma nova intensificação da comunicação política, atingindo, no caso das cartas régias, os níveis mais altos do século, seguindo uma tendência que se esboçava desde 1677, quando o poder do regente já se estabilizara, após os turbulentos sete anos iniciais, quando sempre se temia ação dos “afonsistas”, partidários do rei deposto42. A comunicação por parte do Senado, por sua vez, também cresceu, aproximando-se do pico de 1662-7, só que agora de forma mais sustentada e duradoura. Em termos gerais, o período brigantino primou por uma comunicação com a Câmara muito mais intensa que durante os Felipes, ainda que as conjunturas cortesãs tenham afetado a atenção dispendida à Bahia. Em acréscimo, a comparação com os dados obtidos pelo projeto internacional “A comunicação política na monarquia pluricontinental portuguesa” e reunidos na base COMPOL indica que Salvador recebeu consideravelmente mais atenção do centro do que a maioria da Câmaras de Portugal continental: enquanto a Coroa enviou 304 cartas entre 1640-1700 para o Senado soteropolitano, Viana recebeu 169, Faro 196 e Vila Viçosa 253. A exceção foi Évora, a segunda ou terceira municipalidade de Portugal, com 719. Ainda que mais estudos sejam necessários para hierarquizar precisamente as vilas e cidades de acordo com a atenção que lhes dava a Coroa, Salvador provavelmente só estava abaixo das mais prestigiosas urbes do Reino, como Évora e Porto, demonstrando capacidade de interlocução com a Coroa comparável à que era habitual em qualquer “grande” câmara do território europeu da monarquia43. Considerando-se apenas os recursos geridos por essas municipalidades, é possível compreender essa aproximação: enquanto a Câmara do Porto manejava anualmente algo em torno de 12 contos de réis44, a municipalidade baiana lidava com somas em torno de 40 contos, por causa do donativo de dote e paz e do sustento da infantaria, como vimos no capítulo anterior. Já a comparação com a base de dados Ius Lusitaniae, que sistematiza parte da produção

CARDIM, Pedro & MARTÍN MARCOS, David. “Atracción y separación. Portugal y la Monarquía de Carlos II” in: GARCÍA, Bernardo & ALVAREZ-OSSORIO, António (eds.). Vísperas de la Sucesión. Europa y la Monarquía de Carlos II. Madrid: Fundación Carlos de Amberes, 2015, pp. 209-25. 43 Para uma excelente visão geral, veja-se RAMINELLI, Ronald; MONTEIRO, Nuno & RODRIGUES, José Damião. “Poder político das Câmaras” in: FRAGOSO, João & MONTEIRO, Nuno (orgs.). A comunicação política na monarquia pluricontinental portuguesa (no prelo). 44 VALENTE, Patricia Costa. Administrar, Registar, Fiscalizar, Gastar: as despesas municipais do Porto após a Guerra da Restauração (1668-96). Dissertação de Mestrado. Porto, UP, 2008, p. 86. 42

300

legislativa da monarquia, sugere que o incremento da comunicação da Coroa com a Câmara baiana deu-se de forma radicalmente oposta ao movimento verificado na emissão de normas gerais, onde o período filipino foi marcado por uma excepcional produção legislativa que caiu fortemente entre 1641-68 e novamente no restante da centúria45. Sendo esse o caso, o crescimento da comunicação política com a Bahia pode ter representado uma elevação ainda mais significativa em termos proporcionais. Entretanto, diferentemente do que ocorre nas câmaras europeias, leis sem relação direta com a localidade nunca são enviadas à Salvador (e o mesmo parece ser verdade para as demais câmaras do Império, a se julgar pelos livros de cartas régias do Conselho Ultramarino46). Algumas foram inscritas nos Livros da Relação da Bahia, mas, para além de seu número reduzido, a maioria delas trata do funcionamento da justiça, e quase todas datam do final do século XVI e início do século XVII, tendo sido registradas no contexto da fundação da Relação, em 1609. Após essas leis, que acompanharam o Tribunal em sua travessia do Atlântico, geralmente se seguiram apenas determinações específicas para a Bahia e o Estado do Brasil47. Mesmo no Reino, porém, a monarquia difundia suas leis de forma desigual, enviando a cada municipalidade o que se considerava mais relevante para suas características, de modo que mesmo no Reino a taxa de registro das leis régias é reduzida48. As conquistas se constituíram num caso extremo dessa especialização geográfica de leis supostamente gerais, provavelmente por um reconhecimento implícito de que suas condições sociais, políticas e econômicas específicas tornavam praticamente inútil a legislação geral. Da mesma maneira, não estão incluídas em minha conta em Salvador patentes e provimentos de ofício, muito presentes na urbe eborense. Assim, a larga maioria da correspondência ativa da Coroa aqui analisada foi produzida especificamente para o caso baiana. Uma quantificação mais precisa exigiria uma análise detalhada da base COMPOL, de modo a enumerar quantas cartas foram produzidas especificamente para cada localidade, e aí compará-las com Salvador. É provável que, se isso fosse feito, o destaque da capital do Estado do Brasil frente às municipalidades portuguesa seria ainda mais amplo, diminuindo a vantagem de Évora. Outra especificidade ultramarina reside na presença dos governadores-gerais. O número de cartas escritas pela Câmara era menor do que o montante enviado ao monarca pelos governadores-gerais, a se julgar por Câmara Coutinho, que escreveu 222 cartas ao monarca CARDIM, Pedro & BALTAZAR, Miguel. “A difusão da legislação (1621-1808)” in: FRAGOSO & MONTEIRO (orgs.), A comunicação política. 46 AHU, códs. 245 e 275-6, cobrindo os períodos entre 1644 e 1727. 47 Cf. ANRJ, códs. 537-41. 48 CUNHA & FARRICA, “Comunicação política”, p. 303 e CARDIM & BALTAZAR, “A difusão da legislação”. 45

301

entre 1691 e 169349, muito mais do que as 26 missivas da municipalidade nesses três anos. O almotacé-mor foi excepcionalmente prolífico, mas, se pensarmos em Francisco Barreto, que enviou 100 cartas em 1657-6250 – significativamente mais que as 57 da Câmara no mesmo período – vemos que essa desproporção se repetiu ao longo de todo o século, mesmo que em menor escala. A comunicação com o monarca era uma das funções fundamentais dos governadores, recebendo uma ênfase crescente em seus regimentos desde finais do século XVI, no início do período filipino51. O governador-geral agia como um informante do monarca, em grande parte respondendo às solicitações do centro político – muitas vezes ligadas a pedidos de cargos dos vassalos americanos, e se constituía em um interlocutor muito mais constante da Coroa do que a Câmaras – o que já denota a importância desses oficiais no jogo político ultramarino, apesar de sua transitoriedade no governo. Assim, também do ponto de vista da comunicação os dois pilares da monarquia portuguesa no Atlântico eram os governadores e as Câmaras, pois através deles o centro político recebia a maior parte das informações essenciais para a governança de seu império marítimo52. Os diferentes fluxos de comunicação que cruzavam o Atlântico não eram estanques, mas sim profundamente entrelaçados, pois o governador podia atuar como um intermediário fundamental, em razão de seu conhecimento local53. Em 18% das cartas do Senado, por exemplo, os camaristas fazem referência ao governador-geral, geralmente quando os assuntos tratados eram mais importantes e delicados, do modo que este surge como o principal interlocutor do poder local. Por outro lado, a própria Coroa eventualmente escrevia ao governador, pedindo que este fizesse registrar sua missiva nos livros da Câmara54. Este, por sua vez, como vimos nos capítulos anteriores, não raro emprestava sua voz a uma demanda das elites locais, como foi o caso do pedido para fundação de um convento (capítulo III) e das muitas cartas destacando a pesada carga fiscal suportada pelos vassalos e os períodos de crise

49

SANTOS, Marília. Escrevendo cartas, governando o império: a correspondência de Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho no governo-geral do Brasil (1691-1693). Dissertação de Mestrado. Niterói: PPGH/UFF, 2007, pp. 121-5. 50 MENDES, Caroline Garcia. A circulação e a escrita de cartas do governador-geral do Estado do Brasil Francisco Barreto (1657-1663). Dissertação de Mestrado. Campinas: PPGH/UNICAMP, 2013, p. 76. No século XVIII, os governadores das colônias francesas se comunicavam em escala similar com Paris: BANKS, CHasing empire, pp. 51-2 e 209-10. 51 SANTOS, Marília. “O império na ponta da pena: Cartas e regimentos dos governadores-gerais do Brasil”. Tempo, vol. 27, 2009, pp. 1-15. 52 No Reino, o governador e capitão-general do Reino do Algarve exerce papel similar: CUNHA & FARRICA, “Comunicação política”, pp. 302-4. 53 BRENDECKE, Império e información, pp. 294-305 e BANKS, Chasing Empire, pp. 187-94. 54 AHMS, PR, vol. II, fls. 28-29, 80v-82, 199-199v, 214-215 e 215-216.

302

econômica. Em acréscimo, as cartas do monarca podiam ser mostradas pelo governador-geral ao Senado como forma de reforçar a sua posição em um assunto específico. O triângulo comunicacional evidencia-se também quando notamos ser bastante usual que uma carta do Senado ensejasse uma missiva régia ao governador, como, para escolher apenas o exemplo mais curioso, no caso de uma reclamação feita contra os negros feiticeiros que matavam muitos escravos sem confissão, gerando uma recomendação da Coroa para que Furtado de Mendonça ordenasse diligências pelo Recôncavo para devassar estes crimes55. O centro político almejava essa forte interação, recomendando sempre aos camaristas que tivessem com o governador “toda a boa correspondência que convém, fazendo-lhe as lembranças de meu serviço e bem comum que vos parecerem necessárias, procedendo nisto e em tudo o mais com a autoridade e respeito devido a sua pessoa e lugar” 56. Como o monarca desejava uma cooperação entre esses dois pilares, pois somente através deles era possível governar à distância, o papel fiscalizador da Câmara estava implícito, podendo mesmo tornarse explícito em alguns momentos, como quando foi ordenado aos camaristas que informassem sobre o cumprimento da ordem que proibiu os governadores e mais ministros de participarem do comércio57. No geral, porém – como é possível imaginar a partir dos capítulos anteriores – o que predominou foi uma certa afinação nos discursos.

O Que Escrever Quer Dizer: temas da correspondência camarária Quais eram os temas da comunicação política? Quase todas as missivas da municipalidade demandavam algo considerado de interesse do “povo” da capitania. São, assim, majoritariamente requerimentos, distinguindo-se, portanto, da correspondência produzida pelos governadores. Através das missivas, “o sujeito coletivo [a Câmara] que as enuncia afirma subordinar seu lugar institucional ao lugar do destinatário, o rei, reiterando a vassalagem; e negocia com ele, para persuadi-lo da verdade dos enunciados como adequação ao ‘bem comum’”58. Para a municipalidade, a comunicação com a Coroa era um privilégio, não um dever, e fazia-se de acordo com os interesses locais. A Coroa, por sua vez, geralmente informa, agracia ou requer algo de seus vassalos, muitas vezes em resposta a iniciativas da Câmara.

55

CS, vol. I, pp. 102-3; DH, vol. 67, pp. 132-3. AHMS, PR, vol. II, fls. 94-94v; ver também 35-35v, 143v-144 e 198v-199, dentre outras. 57 AHMS, PR, vol. II, fls. 162-163. 58 HANSEN, João Adolfo. “Representações da Cidade de Salvador no Século XVII”, 2010. Disponível em: http://sibila.com.br/mapa-da-lingua/representacoes-da-cidade-de-salvador-no-seculo-xvii/3343, acessado pela última vez em 19/02/2015. 56

303

Para refletirmos sobre a correspondência, é necessário construir uma tipologia, de modo a perceber regularidades e questões comuns que perpassam nossas centenas de cartas, ao longo de quase um século. Cabe notar que muitas missivas tratam de mais de uma temática, de modo que a soma das porcentagens é maior do que 100%. Não deve se esquecer, claro, que “uma tipologia com essas características é quase sempre redutora, sobretudo porque jamais reflecte fielmente a vasta gama de assuntos evocados”, mas penso que as 15 categorias abaixo expressam adequadamente os elementos mais importantes59. Quadro 2: temáticas da comunicação política. Tema

Descrição

Câmara

Coroa

Donativos

Tributos administrados pela Câmara.

159 (31%) 75 (23%)

Administração

Convívio com a administração periférica da 118 (23%) 80 (24%) Coroa. Inclui desde boas-vindas ao Governador a conflitos de jurisdição com esses oficiais. Crédito, moeda e frotas.

83 (16%)

37 (11%)

Militar

Guerra, defesa e manutenção de tropas.

67 (13%)

45 (14%)

Funcionários,

Nomeações e soldos de escrivães, síndicos, 61 (12%)

39 (12%)

bens e obras

almotacéis e procuradores em Lisboa; prédios da

Comércio Atlântico

câmara, aforamentos e obras públicas. Religião

Cabido, bispo, ordens religiosas, mosteiro das 54 (11%)

30 (9%)

freiras e escolha do novo padroeiro da cidade. Exportação

Preço e regulação da produção de açúcar e 53 (10%)

23 (7%)

tabaco. Festas

Procissões organizadas pela Câmara.

32 (6%)

17 (5%)

Mercês

Pedido de privilégios por parte da Câmara, como 35 (7%)

11 (3%)

de cidadão do Porto, primeiro banco em Cortes, mosteiro de freiras e universidade. Monarquia

Situação política do império, incluindo guerras e 15 (3%)

19 (6%)

eventos vitais da família real. Fiscalidade

59

Tributos administrados pela fazenda real

CARDIM, Cortes e Cultura Política, pp. 150-1.

14 (3%)

13 (4%)

304

Economia

Gêneros alimentares consumidos internamente: 8 (2%)

Local

mandioca,

água,

preços

de

artigos

10 (3%)

de

subsistência, comércio local, ofícios mecânicos. Eleições

Critérios para servir na Câmara.

9 (2%)

8 (2%)

Escravidão

Quilombos, tráfico e controle dos cativos.

4 (1%)

4 (1%)

6 (1%)

5 (2%)

Outros

Gráfico 2: Distribuição temática dos assuntos (em %). 35 30 25 20 15 10

Câmara Coroa

5 0

Fontes: ver Gráfico 1.

Percebe-se imediatamente a relevância da questão tributária na correspondência camarária, assunto que aparece em um terço das missivas (34%, somando os donativos administrados pela Câmara e a fiscalidade régia – essa, porém, pouquíssimo relevante, por estar fora da jurisdição municipal). Mesmo nas Cortes de 1645, carregadas por novos impostos para sustentar a guerra contra os castelhanos, as petições enviadas por municípios portugueses não chegaram à metade dessa porcentagem60. Pouco após o envio da primeira carta com a notícia da Aclamação do Duque de Bragança, o novo monarca enviou uma missiva informando que suspendia “todos os tributos, estanques e contribuições que o Marquês de Montalvão depois de haver entrado no governo de dito Estado lhe impôs e lançou de novo para que cessem, e se não

60

CARDIM, Cortes e Cultura Política, p. 153.

305

peçam nem cobrem mais”, com o intuito de que seus “vassalos moradores e assistentes no Estado do Brasil conheçam e experimentem o cuidado com que estou de os aliviar e favorecer, tendo por certo que o saberão merecer em meu serviço”61. Os camaristas agradeceram a mercê imediatamente, “oferta natural da grandeza de Vossa Majestade”, em consideração aos prejuízos causados à economia da capitania desde a invasão de 162462. Em grande medida, as discussões sobre tributação no período pós-restauração são oriundas dos últimos quinze anos da monarquia dual, quando se instituiu uma força militar permanente e numerosa em Salvador, pois, para mantê-la, a Câmara ampliou seus poderes fiscais. Devido ao caráter teoricamente voluntário dessas contribuições, ficava sob responsabilidade do poder local, portanto, o dever eminentemente régio (como os edis relembrariam em suas reclamações) da defesa da comunidade (capítulo V). Já que a negociação fazia-se preferencialmente com os governadores-gerais, pouco se escreveu ao monarca nos primeiros oito anos de governo brigantino sobre essa temática. Sua principal aparição é como argumento para pedir mercês, inclusive a extinção do ofício de juiz do peso, obtido por Bernardo Vieira Ravasco graças à recém-adquirida influência na Corte de seu irmão, o Padre Antônio Vieira. Enfatiza-se, assim, em 1644 os gastos ordinários de 40.000 cruzados na defesa, para além de outros, extraordinários – longo avanço para uma Câmara que, em 1626, reclamava de não ter sequer 500 cruzados de renda63! É interessante notar que ambas as cartas foram escritas pouco após o recebimento de missivas em que D. João IV agradecia os esforços de seus vassalos baianos, tendo recebido notícias de seu “amor e fidelidade” através do governador-geral Antônio Teles da Silva64. Especialmente a partir de 1649, a temática mais importante é a cobrança e valor dos donativos administrados pela Câmara. A intensificação da comunicação política estimula o recurso ao centro, oferecendo mais uma possibilidade de negociação para além dos governadores, recurso este que se torna especialmente necessário em razão do surgimento de questões que ultrapassavam as jurisdições dos corpos sediados em Salvador. O sistema de frotas e os privilégios monopolistas concedidos à Companhia Geral de Comércio geraram muita insatisfação, pois seus administradores e deputados recusavam-se a pagar o donativo do vinho

61

AHMS, PR, vol. I, fls. 271-271v. CS, vol. I, pp. 14-6. Sobre a correspondência e a Restauração no Império, cf. FERREIRA, José Miguel de Moura. A Restauração de 1640 e o Estado da Índia: agentes, espaços e dinâmicas. Dissertação de Mestrado. Lisboa: FCSH/UNL, 2011, pp. 44-9. 63 AHMS, PR, vol. II, fls. 6v-8v e 9v-10; AHU, Bahia, LF, cx. 3, docs. 423-4. 64 AHMS, PR, vol. II, fls. 6-6v e 21v-22. 62

306

(um dos principais produtos importados)65, além de manipularem os preços dos produtos de estanco e o comércio como um todo, em razão do seu controle sobre o transporte de mercadorias pelo Atlântico. O argumento central dos oficiais camarários é que estas atitudes prejudicavam a arrecadação, dificultando o pagamento dos soldados e oficiais militares. Esperavam ter, assim, a atenção do centro político. Por que, porém, não foram capazes de resolver estes problemas através da jurisdição ordinária dos seus juízes? Segundo carta de 10 de junho de 1651, como nós somos privativos juízes das imposições e donativos desta Câmara, e o procedido deles é Fazenda Real com que se acode ao sustento ordinário da infantaria e mais despesas da guerra, sem haver outros efeitos com que poder acudir-lhe, tratamos de proceder na execução como sempre fizemos antes e depois da Companhia. O que vendo o Ouvidor deste Estado João Jácome do Lago passou uma carta no Real Nome de Vossa Majestade a esta Câmara como juiz conservador dos Ministros da Companhia Geral (...) nesta cidade (...) a qual mandava que de nenhuma maneira entendêssemos com os ditos administradores nem tratássemos da cobrança66.

Fazia-se necessário demandar a intervenção régia porque a Câmara tinha sido bloqueada por um membro da administração periférica e, principalmente, pelo próprio caráter transatlântico do comércio realizado pela Companhia, saindo do escopo de controle da Câmara, cuja capacidade de intervenção dava-se principalmente no mercado local. E aqui cabe notar o comércio atlântico como o terceiro tema de maior destaque na correspondência camarária, em razão de sua importância na vida da capitania e de sua elite. Por outro lado, esta atitude justificava-se também pelo fato de o “procedido deles [donativos ser] Fazenda Real”, evidência da interpenetração entre poder régio e municipal, elemento repetidamente enfatizado tanto pelo poder local quanto pela administração periférica da Coroa67. Embora o centro político reconhecesse as obrigações da Companhia de Comércio, continuava a exigir que os camaristas a favorecessem e contivessem a insatisfação popular, certamente deixando a elite local insatisfeita68. Diversas temáticas se entrecruzavam numa mesma missiva – porque o faziam, em verdade, na política da época moderna. Entretanto, continuaremos na fiscalidade, antes de passarmos para outras questões. O exemplo da Companhia demonstra como era possível utilizar privilégios para fugir do pagamento de tributos, e até 1658 os cavaleiros das ordens militares 65

O vinho também se constituía em produto fundamental na tributação no Reino e no restante da Europa, exatamente por seu consumo generalizado. Cf. CARDOSO, António Barros. “Vinho e fiscalidade na Época Moderna”. Douro – Estudos e Documentos, vol. I (3), 1997, pp. 71-83. Para as muitas cartas da Câmara sobre o tema, cf. AHU, Bahia, LF, cx. 17, doc. 1952; cx. 18, docs. 2025 e 2081; cx. 19, doc. 2151; cx. 28, doc. 3412; cx. 32, doc. 4143; CS, vol. I, pp. 36-46, 88-9, 89-90, 92-4 e, 106-7; vol. II, pp. 3-4; vol. III, pp. 94-6. 66 CS, vol. I, pp. 40-6. 67 CS, vol. I, pp. 40-6. Cf. as outras cartas em AHU, Bahia, LF, cx. 12, doc. 1413 e cód. 15, fl. 251v; CS, vol. I, pp. 23-5; 31-2, 36-40, 50-3, 57-8 e 99-100. 68 AHMS, PR, vol. II, fls. 29-30 e 30-30v. A exceção é uma provisão de 1667 para que todos os navios de guerra da Companhia pagassem as contribuições: AHMS, PR, vol. II, fls. 102-103v.

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foram exemplares nessa estratégia, embora não estivessem sozinhos69. A partir de então as reclamações foram contra indivíduos, principalmente o polêmico senhor de engenho e desembargador Cristóvão de Burgos, e contra as ricas ordens religiosas regulares70, temáticas que vão perpassar a correspondência até a última década do seiscentos. Nesses momentos, reafirmava-se a função do rei como árbitro, pois é a ele a quem o poder local recorria quando os conflitos ultrapassavam a jurisdição da municipalidade, aproveitando a oportunidade para coibir a extensão de privilégios que nada beneficiavam a Coroa, e dificultavam que a municipalidade cumprisse as tarefas que lhe tinham sido delegadas pela Coroa, como o sustento da infantaria e a cobrança do Donativo de Paz de Holanda e Dote da Rainha da Inglaterra71. No terceiro quartel do século XVII, porém, a principal questão das cartas sobre a fiscalidade administrada pela Câmara era o elevado custo de financiar o presídio. Apesar de a Câmara carregar inteiramente esta obrigação, não exercia ingerência alguma na administração militar, responsabilidade do governador, e apenas o monarca podia determinar reestruturações na tropa. A própria temática militar, quarto tema mais comum, estava umbilicalmente ligada à tributação72: a discussão era majoritariamente fiscal, pois raramente o poder municipal se interessava pelos aspectos propriamente bélicos, pois estes estavam fora de sua jurisdição. Assim, os oficiais camarários repetidamente pediram a reforma das tropas estacionadas em Salvador. A diminuição dos oficiais constituía a principal demanda, pois seu excesso gerava um imenso dispêndio a drenar os recursos baianos, totalizando em média de 50 a 60.000 cruzados por ano. Embora a Coroa tenha ouvido os apelos de seus vassalos e frequentemente procurado aliviá-los através de reformações que diminuíam o número de oficiais73, não achou necessário responder a nenhuma das cartas do Senado sobre o tema. Obviamente o diálogo podia dar-se através de atos, não de palavras, e, neste como em outros casos, certamente aqueles eram mais prezados do que estas. No final do século, embora a questão militar ainda estivesse muito presente como argumento, ela perde um pouco de importância com a redução da tropa,

KRAUSE, Thiago. “Ordens Militares e Poder Local: elites coloniais, câmaras municipais e fiscalidade no Brasil seiscentista” in: FRAGOSO, João & SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de (orgs.), Monarquia Pluricontinental e a governança da terra no ultramar atlântico luso: séculos XVI – XVIII. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012, pp. 87111; CS, vol. I, pp. 35-6 e 63-5; AHU, LF, cx. 14, doc. 1642; cx. 15, doc. 1745 e Bahia, Avulsos, cx. 1, doc. 109. 70 SOUZA, Jorge Victor de Araújo. Para Além do Claustro: uma história social da inserção beneditina na América Portuguesa, c. 1580 – c. 1690. Tese de Doutorado. Niterói: PPGH/UFF, 2011, pp. 58-76 e 169-224; MAGALHÃES, Pablo Antônio Iglesias. Equus Rusus: a Igreja Católica e as Guerras Neerlandesas na Bahia (16241654). Tese de Doutorado. Salvador: PPGH/UFBA, 2010, vol. I, pp. 296-347. 71 AHMS, PR, vol. II, fls. 45v-47, 70v-71v, 64v-66 e 75-75v. 72 Como também ocorria no Reino: FONSECA, Teresa. “The Municipal Administration in Elvas During Portuguese Restoration War (1640-1668)”. e-Journal of Portuguese History, vol. 6, n. 2, 2008, pp. 3 e 13; SILVA, “A cidade do Porto”, p. 213 e CUNHA & FARRICA, “Comunicação política”, p. 306-7. 73 AHU, cód. 15, fls. 14v-15; cód. 16, fls. 147-148; DH, vol. 67, pp. 109-10, dentre outros. 69

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resultado das menores ameaças militares europeias após o fim da guerra de Restauração e da assinatura definitiva da paz com os Países Baixos em 1669. Se, como argumentei nos capítulos anteriores, o poder de tributação ganho pela Câmara mostra-se muito significativo, já que a municipalidade passa a lidar com dezenas de milhares de cruzados anualmente, também o são as obrigações dele decorrentes. Entretanto, esta responsabilidade podia ser usada como argumento para se livrar de novas imposições, como no caso do papel selado, quando os camaristas pediram sua extinção, “em consideração também do serviço que este povo faz a Vossa Majestade no sustento do presídio sem a fazenda de Vossa Majestade concorrer para o dito efeito em coisa alguma”74 – como, subentende-se, deveria fazêlo, por ser a defesa responsabilidade régia. A crítica implícita funcionava como um argumento para rejeitar a adoção de novos tributos. A partir de 1662, a aceitação do pagamento do donativo do dote da Rainha da GrãBretanha e Paz de Holanda ampliou ainda mais as obrigações fiscais da Câmara, como vimos no capítulo anterior. Com a necessidade de pagar mais 80.000 cruzados anuais, começam a se multiplicar as afirmações da pobreza da Bahia, utilizada como argumento para pedir o alívio da carga tributária. Em 12 de Agosto de 1666, por exemplo, a Câmara protestou não ser possível (sem que pereçamos de todo) contribuirmos com mais de 40 mil cruzados em cada um ano; e com ser a metade menos do que violentamente se nos distribuiu nos parece impossível pela experiência [pagar 80 mil cruzados]. É conveniente ao serviço de Vossa Majestade ser proporcionada a contribuição com a nossa possibilidade, porque deste modo poderemos continuar no serviço de Vossa Majestade com o amor e a lealdade que nossos corações desejam75.

Enfatiza-se aqui, como é recorrente nas cartas da Câmara, “o amor e a lealdade”76, mas o donativo é apresentado como uma imposição violenta, capaz de arruinar a economia baiana, especialmente justa porque parecia gravar mais pesadamente sobre a cabeça do Estado do Brasil: “vem a pagar a Bahia 700 mil cruzados mais do que todas as outras capitanias do Estado juntas”, no dizer do procurador em Lisboa João de Góis de Araújo77. Especialmente a partir da década de 1670, multiplicam-se as reclamações contra o excesso de tributos e os pedidos para sua diminuição (principalmente do donativo, mesmo esta contribuição tendo sido reduzida para 40.000 cruzados anuais após as representações da Câmara), sempre justificada pela redução da produção açucareira da capitania. Entretanto, poucas reclamações foram tão incisivas quanto

74

AHU, Bahia, LF, cx. 16, doc. 1861; cf. também cx. 17, doc. 1900. O mesmo ocorreu no caso do tributo que o Correio-mor pretendia introduzir: CS, vol. I, p. 87; vol. II, pp. 53-5. 75 AHU, LF, Bahia, cx. 19, doc. 2146, ênfase minha; cf. também docs. 2196, 2198 e 2220 e CS, vol. I, pp. 104-6. 76 Cf. FERREIRA, Letícia dos Santos. Amor, Sacrifício e Lealdade: o donativo para o casamento de Catarina de Bragança e para a Paz de Holanda (Bahia, 1661-1725). Dissertação de Mestrado. Niterói, PPGH/UFF, 2010. 77 AHU, cód. 16, fls. 201v-205.

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esta carta de 1666, quando a própria novidade do donativo o tornava especialmente incômodo78. A maioria das contribuições das quais a Câmara reclamava originara-se como subsídios e donativos voluntários entre 1620 e 1660, mas acabaram por se prolongar por um período muito maior do que o esperado, tornando-se obrigações das quais a Câmara não conseguia escapar, gerando ressentimentos – provavelmente reforçados pelas cobranças régias79. Outras imposições foram colocadas sobre a Bahia, como uma contribuição para o Cais de Viana em carta régia de 5 de dezembro de 1676, ao que a Câmara replicou, afirmando que com “este novo tributo crescerão os apertos, com ruína total de todo o Estado [e] a diminuição infalível das Rendas de Vossa Alteza, [que] antes já hoje padecem estes grandes detrimentos”. O motivo seria a crise da produção açucareira, e apenas o aumento da população teria impedido um declínio maior da arrecadação80. Apesar da argumentação dos camaristas, a Coroa permaneceu irredutível, gerando mais um protesto em 24 de julho de 1680, também sem sucesso, apesar das reclamações de que nada nesta obra beneficiaria Salvador81. Assim, a Câmara reinterpretou sua própria posição, ignorando sua reticência anterior para afirmar em carta de 12 de Agosto de 1688 que “se fez a este povo um lançamento para o cais de Viana de quantia de dez mil cruzados, se consentiu nesta contribuição, tirando forças de fraquezas, obrigados da ordem que veio de Vossa Majestade”82. Se o Senado acabou pagando o que devia, os vários problemas que atrasaram o envio desta contribuição83 podem indicar que a Câmara usou mecanismos protelatórios contra uma cobrança que via como descabida. Evitavam, assim, a desobediência ao monarca, mas mantinham temporariamente o controle destes recursos, utilizando-o, por exemplo, para pacificar os soldados amotinados em 1688 (capítulo VI). Em 1690, possivelmente em razão do temor de invasões francesas84, ordenou-se que 8% da arrecadação para sustento da infantaria (cerca de 4.000 cruzados) fosse utilizado na compra de munições, prejudicando as já combalidas finanças municipais e obrigando ao lançamento de mais uma finta para pagar a tropa. Já em 1694 impôs-se outra finta de 10.000 cruzados para o

78

CS, vol. I, pp. 114-5; vol. II, pp. 39-41, 44-8 e 121-2; vol. III, pp. 7-8, 17-20 (na qual a Câmara se refere à “contribuição (...) se pediu a este povo e constrangido se obrigou a pagar”), 49-51; AHU, Bahia, LF, cx. 24, doc. 2841, dentre outros. 79 AHMS, PR, vol. 2, fls. 115v-116. 80 CS, vol. II, pp. 61-3. 81 CS, vol. II, pp. 86-7. 82 CS, vol. III, pp. 54-5. 83 CS, vol. III, pp. 91 e 99-100. 84 Cf. PUNTONI, Pedro. “O ‘mal do Estado brasílico’: a Bahia na crise final do século XVII” [2010] in: id. O Estado do Brasil: poder e política na Bahia colonial (1548-1700). São Paulo: Alameda, 2013; também VALLADARES, A independência de Portugal, pp. 341-3.

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socorro da Colônia de Sacramento, a que a Câmara não se opôs, pedindo apenas ao monarca que autorizasse a cobrança no sal, peixe e azeite, mesmo contra a opinião do governador-geral85. Apesar de a Câmara poder administrar a cobrança dessas contribuições, precisava da autorização régia para realizar diversas alterações. Algumas fontes de arrecadação foram apropriadas pela Coroa, “com que não temos com que poder acudir as festas de Vossa Majestade nem as fontes e calçadas e outras muitas coisas do bem comum, pelo que pedimos a Vossa Majestade nos queira restituir a imposição dos mil réis por pipa [de vinho] que sempre foi nossa”, para citar um exemplo em carta de 2 de abril de 165186. Ao menos dentro do discurso produzido para consumo do monarca, as contribuições eram tantas que impediam que fossem cumpridas atribuições básicas da gestão camarária. Por vezes, mesmo procedimentos relativos à cobrança, quando saíam do usual, eram submetidos à aprovação do centro político, como quando se decidiu tomar “todas as contas dos cobradores que o haviam sido dos lançamentos que ao Recôncavo tocaram nos anos passados” para suprir os atrasos no sustento da infantaria. Executaram-se os bens de dois indivíduos para recuperar mais de quatro contos, e, “para ser presente a Vossa Majestade a forma de nosso proceder, nos pareceu dar conta a Vossa Majestade de tudo”87. Na segunda metade do século, para iniciar, acabar com ou alterar algum tributo de relevância também era preciso obter permissão régia. Um exemplo foi a “consignação nova dos azeites” em 1678, para qual era necessária “conformação de Vossa Alteza”88. Mais relevante era a vintena, cuja cobrança foi encerrada pela Câmara a partir de uma negociação com o governador-geral Conde de Castelo Melhor. A justificativa foi “a dilação que há desta cidade a essa Corte”, sendo por isso repreendida pelo monarca, que ordenou o retorno do tributo89. Parecia aos camaristas que “pode o povo mudar os tributos nesta e naquela droga [o vinho] alterá-los ou diminuí-los, pois ele é o que há de sustentar a dita infantaria”; entretanto, fazia-se necessário requerer essa “liberdade” ao monarca, inclusive para evitar a intervenção do governador e da Relação90. Evidencia-se aqui outro elemento fundamental na comunicação política: a defesa das prerrogativas camarárias contra funcionários régios. Se o poder obtido com a tributação era significativo, fazia-se necessário que fosse exercido cotidianamente pela Câmara, sem supervisão. Como vimos nos últimos dois capítulos, porém, isso não significa uma defesa de 85

CS, vol. III, pp. 99 e 104; CS, vol. IV, pp. 33-6. CS, vol. I, pp. 32-3. No mesmo sentido, cf. pp. 53-4 e AHU, LF, cx. 16, doc. 1859. 87 AHU, LF, cx. 15, doc. 1779. 88 CS, vol. II, pp. 42-4. 89 CS, vol. I, pp. 47-9. Carta praticamente idêntica foi enviada um ano e meio depois: AHU, LF, cx. 11, doc. 1372. Cf. também cx. 17, doc. 1952. 90 AHU, Bahia, LF, cx. 15, doc. 1751. 86

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prerrogativas locais contra um inexistente absolutismo metropolitano, mas antes disputas entre indivíduos e grupos, que, ao procurar aumentar a amplitude de jurisdição de seus cargos, podiam, indiretamente, contribuir para a ampliação do poder da Câmara e/ou do monarca. Assim, após agradecer ao monarca por haver permitido o arrendamento do “imposto dos vinhos” como haviam pedido, “por sermos nós quem há de suprir a falta de menos rendimento para o sustento do presídio”, pedem a mercê de que este seja feito sem a presença do provedormor da fazenda, do contador-mor e do procurador da fazenda, como a carta régia de 12 de abril de 1664 havia estabelecido, pois esse era o costume. Pedem mesmo que, caso o monarca insista na participação da administração periférica na cobrança, “seja Vossa Majestade servido por nos fazer mercê conceder licença para fazer deixação destas consignações para que se distribuam pelos ministros da fazenda de Vossa Majestade ficando este povo desobrigado para não contribuir com coisa alguma para o dito sustento”91. Apesar da obstinação da Coroa, a Câmara manteve sua posição, afirmando que “na criação dos mesmos donativos diz o povo que de nenhuma maneira passaram nem se admitiram ministros de Vossa Alteza”92. O provedor-mor também tentou interferir na atuação dos almoxarifes do sal da Câmara, ao que os oficiais replicaram, detalhando os equívocos dessa ingerência: “são distintos os tribunais”, de modo que eram “independentes” do provedor-mor, e que o sustento da infantaria não estava a cargo desse funcionário, mas da Câmara. Enfatizam também “a pureza com que neste Senado de Vossa Alteza o servimos”, negando assim as acusações implícitas de desvio de recursos, subtexto da fiscalização do provedor, e temática que repetidamente aparece nas disputas políticas locais, como vimos nos capítulos anteriores93. A intervenção do provedor-mor foi principalmente no sentido de tentar, geralmente sem sucesso, ampliar seu controle sobre a fazenda municipal, como também ocorreu em relação ao donativo do dote e paz94. Outros, como o Desembargador Freitas Serrão, podiam intrometer-se para proibir a cobrança de tributos, como o “imposto dos oitenta réis por canada de azeite de peixe para o convento das freiras”, fazendo-o “sem advertir que o mesmo povo uniforme e voluntariamente o tomou sobre” si. A razão desta interferência seria a ligação do desembargador com o contratador das baleias Manuel Dantas, “seu particular amigo”95.

91

AHU, Bahia, LF, cx. 18, docs. 2081-2. CS, vol. I, pp. 92-4. Cf. também pp. 101-2. 93 Id., vol. I, pp. 96-7. Cf. também AHU, Bahia, LF, cx. 18, docs. 2083 e 2088; cx. 19, doc. 2168; AHU, cód. 16, fl. 169; CS, vol. I, pp. 107-10. 94 CS, vol. II, pp. 26-8. 95 CS, vol. II, pp. 58-61. 92

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No tocante aos donativos demandados pelo centro político, portanto, a correspondência da Câmara é reativa, especialmente após a expulsão dos holandeses em Pernambuco, pedindo a diminuição da tributação, no máximo com sucesso parcial. Se o donativo era, em princípio, um dom, um ato voluntário derivado do “amor e lealdade” enfatizados recorrentemente pela Câmara, já vimos nos capítulos anteriores que na prática o caráter desigual da negociação sobre fiscalidade é evidente. O pagamento dos “donativos” não era algo que estivesse em negociação, apenas o montante e a forma – inclusive em razão de sua essencialidade para a própria sobrevivência da dinastia de Bragança e manutenção de seu império, através do estabelecimento e manutenção de relações cordiais com as duas principais potências marítimas do Velho Mundo, Inglaterra e as Províncias Unidas dos Países Baixos. Por outro lado, a comunicação abria espaço para a manifestação de insatisfações e por vezes possibilitava a redução da carga que caía sobre os vassalos baianos, diminuindo a tensão num aspecto inerentemente conflituoso da relação entre a Coroa e seus vassalos. Ao mesmo tempo, para garantir o apoio das elites, a Coroa tendia a manter a arrecadação sob controle da Câmara, apesar das denúncias de desvios, como as realizadas pelo desembargador Sebastião Cardoso de Sampaio. Em 1681, esse sindicante afirmou ter descoberto, ao investigar os donativos para sustento da infantaria, “que em poucos anos haviam os oficiais da Câmara divertido deles mais de 30 mil cruzados”. A autonomia camarária na área fiscal era um elemento fundamental em suas atribuições, necessária para que as elites concordassem em carregar sobre si as diversas cargas fiscais sucessivamente impostas, inclusive em razão das oportunidades que a manipulação de tais somas conferia (por várias vezes referidas nos dois capítulos anteriores), assim como para evitar a ameaça de que o controle passasse à administração periférica da Coroa, como viria a acontecer no início do século XVIII96. Reafirmou-se repetidamente o caráter voluntário dessa tributação, com o importante efeito de garantir seu controle pelo poder local, mantendo a monarquia dependente de sua cooperação em uma questão central: a defesa. Se o rei podia impor donativos e contribuições, o caráter teoricamente voluntário dessa tributação exigia a participação das elites locais, sem as quais o monarca não teria como extrair as dezenas de milhares de cruzados anuais necessárias para sustentar a infantaria, pagar os donativos, consertar o cais de Viana, socorrer Sacramento e o que mais lhe parecesse necessário. Provavelmente em razão dessa dependência e do limitado aparato fiscal com o qual a Coroa podia contar do outro lado do Atlântico, o peso da taxação na América foi relativamente

96

AHU, Bahia, LF, cx. 24, doc. 2972 (citação); CRUZ, Miguel Dantas da. O Conselho Ultramarino e a administração militar do Brasil (da Restauração ao Pombalismo): política, finanças e burocracia. Tese de doutorado. Lisboa: ISCTE, 2013, pp. 166-73.

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reduzido – em comparação, por exemplo, com a América Espanhola, embora lá também a necessidade de consenso tenha se intensificado ao longo do seiscentos97. Entretanto, da mesma maneira que havia uma menor necessidade de pressionar diretamente a população do Reino a contribuir financeiramente para a monarquia do que em outros reinos europeus, exceto em momentos de crise (mormente as guerras contra Castela), em razão da dependência das rendas advindas do império, a extração direta de recursos das conquistas não se constituía em uma questão tão premente porque a monarquia portuguesa conseguia obter rendimentos muito mais elevados através de monopólios (o tabaco e, em menor escala, o pau-brasil) e da taxação alfandegária. Como a elite baiana se responsabilizava diretamente pela manutenção do sistema produtivo local em cada uma de suas “casas” senhoriais, reforçava-se a necessidade de contemporização – a qual, repito, era estimulada e até possibilitada pelo fato de que a maior parte da arrecadação dava-se no Reino.

A administração periférica da Coroa e os conflitos de jurisdição Os conflitos entre a Câmara e a administração periférica da Coroa estão presentes em muitas das missivas supracitadas, em níveis consideravelmente mais elevados do que os encontrados nas petições das Cortes de 1641 e 1645, indicando a maior presença da administração periférica na Bahia do que na maior parte do Reino98. Como alter-ego do monarca na América, o governador-geral era o principal interlocutor político da elite baiana. Entretanto, na grande maioria dos casos a referência ao governador se mostrava elogiosa ou, quando muito, neutra, possivelmente por sua capacidade de intervenção na correspondência dos vassalos. Tal interferência pode explicar as muitas lacunas no cartório da Câmara nas décadas de 1640 e 1660, que englobam alguns dos momentos de maior conflito da Câmara e da elite baiana com dois representantes máximos da Coroa no Estado do Brasil: o governador-geral Antônio Teles da Silva e o vice-rei Conde de Óbidos, analisados nos capítulos anteriores. A intervenção de Teles da Silva na comunicação política da Câmara é visível em carta da Câmara de 2 de setembro de 1644 (significativamente ausente do cartório municipal), na qual alguns camaristas reclamam que “Antônio Teles da Silva, governador deste Estado, nos tira e a todos os moradores dele o podermos oferecer e avisar a Vossa Majestade do que nos for

97

Cf., numa perspectiva geral, KLEIN, Herbert. The American Finances of the Spanish Empire: royal income and expenditures in colonial Mexico, Peru, and Bolivia, 1680-1809. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1998, pp. 101-11 e, especificamente para o século XVII, o belo trabalho de AMADORI, Arrigo. Política americana y dinâmicas de poder durante el valimento de Olivares (1621-1643). Tese de Doutorado. Madrid, Universidade Complutense, 2011. 98 CARDIM, Cortes e Cultura Política, pp. 152-5.

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necessário e ao serviço real, porque nem há coisa quer que se escreva se não por sua ordem”99. O resultado foi a prisão de dois dos reclamantes por escreverem inverdades, denotando claramente que o governador-geral se julgava árbitro do que se podia ou não informar ao monarca. No caso de Óbidos, não foi a Câmara a reclamar de sua interferência na correspondência, mas sim um desafeto do vice-rei, o desembargador Manuel de Almeida Peixoto, listando-a como um excesso dentre os muitos cometidos pelo autocrático Conde100. Como se disse nos capítulos V e VI, em todos esses momentos o Conselho Ultramarino defendeu a importância e a necessidade de permitir uma comunicação livre dos vassalos com a Coroa, para benefício de ambas as partes e contenção dos arbítrios dos governadores. Nesse ponto, ambos os governadores não estavam fazendo mais do que seguir precedentes longamente estabelecidos, a se julgar pelas várias queixas contra o procedimento do Governador-Geral Diogo Luiz de Oliveira (1627-35). Como já vimos dois capítulos atrás, Lourenço de Brito Correia, um dos mais destacados membros da elite baiana, acusou o governador de, dentre as muitas “vexações, opressões públicas e roubos” que praticava, obrigar os camaristas a “darem cartas para Sua Majestade em abonação de seus próprios procedimentos, os quais ele dito governador fazia e a mandava só assinar pelos oficiais da Câmara que eles por temor faziam como em tudo o mais”101. Mais contido, mas não menos indignado, o Bispo do Brasil, D. Pedro da Silva, também acusa o governador de interferir com a correspondência dos vassalos: “mais desconsolada ficou esta cidade, se mais o podia estar com esta tomada de cartas, ou vista delas, e os vassalos de Vossa Majestade atemorizados para não escreverem e representarem aos pés de Vossa Majestade o que sentirem que importa a seu real serviço” – posição compartilhada pelos conselheiros régios102, pois a liberdade de escrever (e denunciar) ao monarca era um dos pilares da legitimidade do poder real103. Talvez fosse a essas práticas que o Padre Vieira tenha se referido em seu Sermão da Visitação de Nossa Senhora, utilizado como epígrafe desse capítulo. Mesmo para o período posterior, de grande abundância de registros, chama a atenção que em 1683 apenas duas cartas foram enviadas pela Câmara104, nenhuma delas tratando do assassinato do alcaide-mor Francisco Teles de Meneses, que gerou conflitos opondo parte da 99

AHU, Bahia, LF, cx. 9, doc. 1094. No registro da Câmara está presente apenas uma elogiosa missiva sobre o governador, quando ele se preparava para retornar a Portugal, em 1650 (CS, vol. I, p. 27). 100 AHU, Bahia, LF, cx. 19, doc. 2180. 101 BPA, 49-X-10, fls. 320-2 – infelizmente, não encontrei nenhuma dessas supostas cartas. 102 AHU, Bahia, LF, cx. 5, doc. 554. 103 BRENDECKE, Império e información, pp. 262-3. Para um caso similar envolvendo o presidente da Audiência, cf. HERZOG, Tamar. Ritos de control, prácticas de negociación: pesquisas, visitas y residencias y las relaciones entre Quito y Madrid (1650-1750). Madri: Fundación Hernando de Larramendi-Mapfre, 2000, pp. 73-7. 104 CS, II, pp. 114-7.

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elite da capitania (principalmente o clã Vieira Ravasco) ao governador-geral Antônio de Sousa de Meneses e à família do falecido alcaide-mor. Em verdade, ao longo de todo o governo do “Braço de Prata” não há nenhuma carta criticando-o. A única referência ao conflito é indireta, e em resposta a uma carta da Coroa. Vale citá-la pela singularidade de uma Câmara ultramarina ter de prometer respeitar o governador-geral enviado pela Coroa: Por carta de nove de março do presente ano nos ordena Vossa Majestade que enquanto o Governador que foi deste Estado Antônio de Sousa de Meneses se detiver nesta cidade lhe tenhamos todo o respeito, procurando que nela não houvesse desavença ou discórdia alguma, e ainda que Vossa Majestade nos não fizesse essa advertência temos tanto diante dos olhos o bem e quietação deste Estado que não havíamos [de] permitir perturbação alguma nem menos que se perdesse o respeito ao dito Governador, porque sempre nos assiste a fidelidade com que sempre servimos a Vossa Majestade assim na paz como na guerra, e a todos os Governadores que vieram governar este Estado105.

Em outros momentos, o governador-geral podia examinar a correspondência a pedido dos camaristas, como em 1657, quando Francisco Barreto aprova as reclamações sobre a falta dos gêneros monopolizados pela Companhia-Geral de Comércio e contra as altas taxas cobradas sobre o açúcar, mas sugere modificações em algumas linhas “por serem um pouco dissonantes da humildade e submissão com que sempre se deve falar aos reis. E por isso as mandei distinguir com o risco que vão para que Vossas Mercês as mudem de maneira que antes seja modificar rogando, que exasperar sentindo”106. Após essa advertência, os camaristas enviaram a carta no dia seguinte, sugerindo que estavam apenas esperando a opinião do governador107. Assim, creio que a raridade das reclamações contra os governadores-gerais por parte da Câmara ao longo do século XVII é consequência da capacidade dos governadores-gerais de intervir na correspondência municipal, ou ao menos de uma cautelosa autocensura por parte dos camaristas para evitar se indispor com o representante máximo da Coroa na América. Em consequência, como vimos nos capítulos anteriores, os conflitos se resolviam no âmbito local – diferentemente do Reino, onde o caráter inovador dos Governadores de Armas ensejou muitas reclamações em Cortes, também porque sua capacidade de controlar o discurso camarário nessa ocasião fosse praticamente nula108. Assim sendo, na maioria dos casos são os silêncios, isto é, a falta de elogios, a indicar insatisfações – como foi o caso do Braço de Prata. Já no tocante aos outros setores da administração periférica, os camaristas não temeram externar seu descontentamento. Apesar de terem enaltecido a criação do Tribunal da Relação

105

CS, II, pp. 122-3. Cf. a carta da Coroa em AHMS, PR, vol. 3, 30v. DH, vol. 86, p. 134. 107 CS, vol. I, pp. 57-8. 108 CARDIM, Cortes e Cultura Política, p. 156. 106

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em 1610109 e após sua extinção em 1626 repetidamente requerido sua recriação, inclusive em razão de conflitos com os ouvidores-gerais em 1651, que estariam tomando “toda a pequena jurisdição que temos”110, já em 22 de setembro de 1659 a Câmara reclama da Relação, que estaria usurpando a jurisdição dos almotaceis. Nada diferente do que ocorria em Goa111. A partir daí ocorrem diversos conflitos com desembergadores, como no caso supracitado do Desembargador José de Freitas Serrão, mas principalmente com João de Góis de Araújo (capítulo VI). No início dos embates com Góis de Araújo, após muitas reclamações contra o Desembargador e senhor de engenho Cristóvão de Burgos (capítulo II), a Coroa decidiu, em resposta a um requerimento do Procurador Moreira de Azevedo (inimigo de Góis de Araújo) no Desembargo do Paço pedindo a extinção da Relação112, que “nenhum filho do Brasil fosse desembargador na sua pátria”. Segundo os camaristas de 1671, “parece, Senhor, que é uma ofensa que Vossa Majestade faz aos filhos deste Estado, e principalmente aos da Bahia, a quem Vossa Alteza por seus serviços concedeu os privilégios de infanções e outras muitas mercês”, para além dos postos em que foram nomeados em razão dos muitos serviços prestados. Por isso, pediram a anulação dessa medida113 – sem sucesso, embora o decreto tenha sido repetidamente desrespeitado, especialmente na centúria seguinte. Em 1674, nesse contexto de irritação contra os Góis de Araújo e Freitas Serrão, os conflitos entre Câmara e Relação chegam a um patamar institucional, quando os desembargadores prendem e multam os juízes ordinários por não participarem do “dia da festa da justiça (havendo feito na véspera)”114. A intensificação dos embates com Gois de Araújo e a Relação chega ao paroxismo em 1676, em razão da tentativa de intervenção do desembargador baiano nas eleições da Câmara, com o objetivo de eleger seu irmão como juiz mais velho e assumir o controle do governo provisório (capítulo VI). Em consequência, em 29 de fevereiro os camaristas, liderados por seu desafeto Pedro Camelo de Aragão, escreveram pedindo o cumprimento rigoroso do decreto, para retirar do cargo Góis de Araújo, acusado de favorecer seus parentes e prejudicar seus inimigos. Meses depois, chegam a demandar por duas vezes a extinção da Relação em razão de sua ineficiência e corrupção, para além de reclamarem contra

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IAN/TT, Corpo Cronológico, mç. 15, ns. 104 e 107. CS, vol. I, pp. 17-8, 22-3 e 31 (citação). 111 AHU, Bahia, LF, cx. 15, doc. 1749; BOXER, Portuguese Society, pp. 22-3. 112 DH, vol. 88, p. 97. 113 CS, vol. I, pp. 100-1. Entretanto, tal solução havia sido reivindicada pela Câmara em 1643, quando requereu a recriação da Relação, pedindo que não fossem “providos nela desembargadores pessoas que sejam moradores nesta cidade pelos inconvenientes que disso sucedem”: CS, vol. I, pp. 17-8. 114 CS, vol. II, pp. 14-5. 110

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seus procedimentos – no que servia também como uma eficaz cortina de fumaça para esconder o fato de que desejavam eles mesmos se pertuaram no poder, como fizeram até 1678115. Em resposta, os desembargadores enviam uma de suas raras cartas coletivas à Coroa, sugerindo a criação de um juiz de fora em Salvador, pois assim “não ousarão os oficiais da Câmara aproveitar-se das rendas do Conselho e donativos de Vossa Alteza aplicados à infantaria e outros particulares de seu serviço (...) e terá Vossa Alteza um ministro seu na Câmara de uma cidade tão principal como esta, para com mais suavidade poder obrar nela o que convier a seu serviço”116. Os desvios da Fazenda Real administrada pelo Senado aparecem mais uma vez como argumento para retirar os donativos da jurisdição da municipalidade, mas é interessante perceber também que os desembargadores concebiam o juiz de fora como um instrumento da vontade régia não através da imposição, mas sim como mais uma ferramenta para construir o consenso, tornado mais fácil pela perda de poder que a elite local conheceria com a extinção do posto de juiz ordinário. É de se notar que várias das críticas mais fortes, e especialmente os dois requerimentos para o fim da Relação, não estão registrados nos livros da Câmara. Aqui o temor talvez não fosse do poder institucional dos desembargadores, mas de suas ligações com membros da elite que poderiam vir a servir no Senado, especialmente no caso do detestado Góis de Araújo – é possível mesmo que a recente morte de seu cunhado, sargento-mor e escrivão da Câmara Rui Carvalho Pinheiro117, tenha estimulado a reação contra o desembargador. Percebe-se, assim, como em muitas questões políticas não havia uma continuidade institucional, mas sim mudanças a partir dos grupos que estivessem no controle da Câmara em cada ano. Em resumo, a animosidade contra o tribunal da Relação demonstrada na década de 1670 devia-se antes a brigas entre facções rivais da nobreza baiana, para os quais o tribunal era arrastado não só por seu “abrasileiramento” mas também, e principalmente, pela presença de dois destacados rebentos da elite local entre os juízes: Góis de Araújo e Burgos. A profunda inserção dos desembargadores na sociedade baiana, onde permaneciam por anos, às vezes décadas, tinha como consequência inevitável seu envolvimento nos enfrentamentos políticos locais118. Se há alguma surpresa, é que sua participação não tenha sido ainda mais destacada. Não havia, assim, qualquer oposição estrutural entre a Câmara e o Tribunal da Relação, apenas conflitos eventuais, movidos por disputas pessoas e familiares, como estava a ocorrer na década de 1670. 115

AHU, Bahia, LF, cx. 23, docs. 2699, 2709, 2718; cx. 24, doc. 2842 e 2954. CS, vol. II, pp. 41-2 e 55 AHU, Bahia, LF, cx. 23, doc. 2780. 117 Cf. AHU, Bahia, LF, cx. 22, docs. 2631-9. 118 SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: o tribunal superior da Bahia e seus desembargadores, 1609-1751. São Paulo: Companhia das Letras, 2011 [1973], pp. 253-86. 116

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Eu não poderia deixar de citar aqui o famoso parecer do Procurador da Coroa sobre essa querela em finais de 1678, no qual este afirma que à Câmara da Bahia se devia logo responder severamente, de sorte que entendam aqueles vereadores que Vossa Alteza não tinha repartido com eles o cuidado de como há de governar a sua monarquia, que não podem ter voz mais que para a sua queixa, a que Vossa Alteza acudirá como príncipe, como pai e como senhor, quando justificada119.

Estabelecia-se, assim, um claro limite para as reclamações dos vassalos, como perceberam os diversos autores que citaram este trecho120. A própria metáfora da paternidade, geralmente empregada pelas Câmara para enfatizar a obrigação monárquica de acudir seus “filhos”, aparece aqui mais no sentido “do pai que detém poder absoluto sobre os seus filhos”121. Entretanto, nem o Conselho Ultramarino nem a Coroa seguiram o irado Procurador e a Câmara escapou de receber uma descompostura. É possível pensar, portanto, que as atitudes dos camaristas baianos, se pareceram um atrevimento para o magistrado, puderam ser aceitas sem muito problema pelo centro político – que acabava por receber, afinal, mais notícias do que estava a correr do outro lado do Atlântico. Cabe notar o uso da expressão “filhos do Brasil” e do termo “pátria” (no caso, a Bahia) ao longo destes embates, que sugerem certo sentimento de identidade, aparecendo de forma especialmente marcada na década de 1670122. Ao longo da época moderna, havia uma identidade portuguesa, mas ela se caracterizava por ser multifacetada, incluindo aspectos religiosos, “nacionais”, regionais, locais e estatutários. É impossível falar em uma identidade brasileira no século XVII (e até o XIX, em verdade), especialmente para uma elite profundamente influenciada pelo modelo lusitano. Entretanto, uma vaga identidade “baiana” perpassa a documentação camarária, com a conotação de pátria chica, isto é, o local de nascimento (ou moradia, no caso dos muitos imigrantes portugueses que ali se estabeleceram e se inseriram entre a elite), provavelmente não muito diferente da identidade da elite portuense ou coimbrã na mesma época, exceto pela maior fluidez, pois a distinção entre nascidos e moradores na Bahia nem sempre se fazia de forma muito precisa 123. Afinal, vários dos que

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DH, vol. 88, p. 153. BOXER, Charles. O império marítimo português, 1415-1825 (trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2002 [1969], p. 298 e SCHWARTZ, Burocracia e sociedade, p. 216, dentre outros. 121 CARDIM, Cortes e Cultura Política, p. 149. 122 Para outros exemplos, veja-se AC, vol. V, p. 65 e CS, vol. II, pp. 17-8. 123 SILVA, Ana Cristina Nogueira da & HESPANHA, António. “A Identidade Portuguesa” in: MATTOSO, José (dir.) & HESPANHA, António. História de Portugal, volume 4: O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Editorial Estampa, 1998 [1993], pp. 19-33; SCHWARTZ, Stuart. “The formation of a colonial identity in Brazil” in: CANNY, Nicholas & PAGDEN, Anthony (eds.). Colonial identity in the Atlantic World, 1500-1800. Princeton: Princeton UP, 1985, pp. 38-40; id. “‘Gente da terra braziliense da nasção’: Pensando o Brasil. A construção de um povo” in: MOTA, Carlos Guilherme (org.). Viagem Incompleta: a experiência brasileira (1500-2000). Vol. I: Formação – Histórias. São Paulo: SENAC São Paulo, 2000, pp. 103-25. 120

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falavam em “filhos do Brasil” na década de 1670 eram naturais do Reino, devido ao contínuo influxo de forasteiros na elite baiana (capítulo III): dois dos quatro signatários da carta de 1671, três dos seis em 1672 e provavelmente quatro em 1674. Assim, a identificação com a localidade era percebida como mais importante do que o local de nascimento: alguém que morasse há décadas na Bahia e lá tivesse seus interesses era potencialmente muito mais ligado à comunidade local do que um natural da Bahia, mas que tivesse se estabelecido no reino. Enfim, tais expressões de apego, para além de remeterem, sobretudo, para solidariedades locais, eram flexíveis ao ponto de os agentes políticos as utilizarem em função dos seus interesses. Entre as décadas de 1660 e 1680 ocorreram diversos conflitos dentro das ordens religiosas regulares pelo controle político na América entre os “filhos do Brasil” e os “filhos do Reino” nas principais capitanias do Brasil, com Salvador como o epicentro de muitos desses embates. Em razão da íntima relação dos leigos com os monges e a inserção dessas ordens nas sociedades católicas, esses conflitos influenciaram as elites brasílicas, apesar do caráter muito particular dos choques intra-monásticos – como se vê da carta que a Câmara de Senador, em razão d“o clamor com que a nobreza e povo” reclamaram da suposta discriminação contra os naturais da América entre os jesuítas, escreve ao provincial em 14 de julho de 1665124. Para além dessa pátria chica, porém, por vezes aparecem breves referências ao Estado do Brasil como um elemento identitário, ainda que extremamente frágil, e sempre integrado na monarquia portuguesa. Em muitos momentos enfatiza-se a distância como um aspecto lamentável da América Portuguesa a prejudicar os leais vassalos baianos e são estabelecidas comparações com o Reino e com a Índia para embasar requerimentos e reclamações. Destacavam-se os largos serviços prestados pela Câmara, mormente os tributos pagos e a guerra contra os neerlandeses. Estes serviços se colocavam no mesmo patamar dos realizados pela Índia, com o subtexto de que seriam até superiores, dentro da retórica de serviços e mercês que caracterizava a relação entre vassalos e soberanos no mundo ibérico125. Em suma, a maior integração política na Coroa portuguesa estimulou um discurso reivindicativo da parte dos moradores dos principais lugares da América Portuguesa, discurso esse que assumiu, quase sempre, uma expressão defensiva do espaço político local ante aquilo que se considerava ser a ingerência da Coroa, ainda que sempre se respeitasse a legitimidade

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A carta e a resposta que ela suscitou foram publicadas em LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945, vol. VII, pp. 48-53. Cf. também SCHWARTZ, “The formation”, pp. 41-44; MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda dos mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715, São Paulo: Ed. 34, 2003, 2ª ed. rev., pp. 111-39 e SOUZA, Para Além do Claustro, pp. 225-73. 125 Cf. OLIVAL, Fernanda. As Ordens Militares e o Estado Moderno: Honra, Mercê e Venalidade (1641-1789). Lisboa: Estar, 2001 e KRAUSE, Em busca da honra, pp. 53-92.

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da autoridade régia. A justificativa baseava-se sempre nos serviços prestados por “estes seus vassalos que tão gloriosamente e com tanta liberalidade derramaram tantas vezes o sangue e deram e dão as fazendas pelo serviço de Vossa Alteza”126. Numa época em que alguns dos vínculos políticos mais fortes residiam na fidelidade, na obediência, na graça e no benefício, com a monarquia retratada como um espaço onde uma das formas mais frequentes de distinção era alardear uma irrepreensível obediência127, com o passar do tempo, a tópica da lealdade serviu para que os naturais da Bahia reivindicassem outro tipo de tratamento. Em 1658 os procuradores das Câmaras da América Portuguesa, em sua primeira ação conjunta, chegaram mesmo a demandar a criação do cargo de cronista do Estado do Brasil, para “haver pessoa que dê a estampa as verdadeiras relações do que naquele Estado obraram meus vassalos”, no dizer da provisão régia que nomeou o “brasiliense” e natural do Rio de Janeiro Diogo Gomes Carneiro para o cargo. Com seu ordenado pago nas rendas do Brasil e de Angola, o cronista foi mal e irregularmente pago, jamais chegando a publicar a obra à qual se dedicou por quase vinte anos. Mesmo assim, é de se notar que, quando se pediram informações sobre o tema “ao procurador do povo e Câmara da Bahia João de Góis de Araújo”, o letrado enfatizou o quanto a Câmara estava sobrecarregada com o sustento da infantaria e o pagamento do donativo, mas reconhecia a importância do ofício de cronista para perpetuar os “feitos que obraram os vassalos de Vossa Majestade nele nas guerras que tiveram tantos anos, dignos de toda a memória, pelo crédito e reputação com que ficaram as armas portuguesas, em que os moradores e naturais do Estado são os mais interessados”. Era desta maneira que se justificava mais essa imposição sobre o rendimento das principais Câmaras do Atlântico Sul128. No aspecto institucional, não houve qualquer percepção baseada na alteridade ou oposição entre “metrópole” e “colônia”, conceitos que não fariam sentido nas mentes daqueles indivíduos, mas antes de similaridade entre “Reino” e “conquistas”, o que justificava, por exemplo, que prerrogativas das Câmaras do Reino valessem para Salvador. A posição da Bahia como “cabeça do Estado do Brasil” provavelmente estimulou uma visão ligeiramente mais abrangente do todo americano do que em outras capitanias, de modo que a partir de meados da

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AHU, Bahia, LF, cx. 24, doc. 2842 (16 de agosto de 1678); cf. também cx. 31, doc. 3952, cód. 16, fl. 237; CS, vol. I, pp. 118-9 e vol. III, p. 76, dentre outros. Sobre esse topos reivindicativo, cf. MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: o imaginário da restauração pernambucana. São Paulo: Alameda, 2008 [1986], 3ª ed. rev., pp. 89-124. 127 GIL PUJOL, Xavier. “The good law of a vassal: fidelity, obedience and obligation in Habsburg Spain”. Revista internacional de los estudios vascos, n. 5, 2009, pp. 83-106. 128 CORDEIRO, José Pedro Leite (ed.). “Documentos sobre Diogo Gomes Carneiro”, RIHGB, n. 244, 1959, pp. 417-30 (citações às pp. 417 e 420-1); ALMEIDA, Eduardo de Castro (ed.). “Inventário dos documentos relativos ao Brasil existentes no Archivo de Marinha e Ultramar”. Anais da Biblioteca Nacional, vol. 39, p. 128 e RODRIGUES-MOURA, Enrique “Manoel Botelho de Oliveira, autor del impreso Hay amigo para amigo”, Revista Iberoamericana, vol. 71, n. 211, 2005, p. 560.

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década de 1660 seus representantes na Corte por vezes se intitulavam Procuradores-Gerais do Estado do Brasil, sem que jamais tivessem recebido procuração para tanto129. Tratava-se, é claro, de uma tentativa de engrandecimento por parte desses homens, que se utilizavam com sucesso desse status para obter mercês (nomeadamente, o hábito da Ordem de Cristo), mas não deixa de ser relevante em termos do surgimento de uma percepção unitária da América Portuguesa e do papel dominante da Bahia nesse conjunto. Assim, nas Cortes de 1668 José Moreira de Azevedo, procurador-geral da Câmara da Bahia e, como tal, servindo de “procurador do Estado do Brasil”, solicitou, no segundo dos capítulos que enviou ao monarca, como remuneração aos serviços pelos moradores da América Portuguesa prestados “na defesa daquele Estado”, que fossem providos nos ditos moradores “os ofícios de Justiça e Fazenda como também em seus filhos as Igrejas, Conezias e Dignidades, pois é justo que despendendo seus avós e pais as fazendas, derramando seu sangue e perdendo muitos as vidas, sejam os postos, os cargos e as honras do dito Estado concedidos a estes sujeitos em que concorrem as partes e qualidades necessárias”. A petição mereceu o favor do regente e deu origem a um decreto de 6 de maio de 1673, registrado nos livros da Câmara carioca – mas não, curiosamente, no arquivo do Senado soteropolitano130. Não devemos, porém, nos deixar levar pela empolgação. Foram raríssimos os momentos de atuação concertada, ou em que o agente baiano defendesse os interesses de outra capitania que não a sua. Um dos parcos exemplos foi uma representação do Procurador soteropolitano em Lisboa José Moreira de Azevedo, em conjunto com sua contraparte fluminense131. A distância e o contato com outros vassalos ultramarinos podem ter estimulado a percepção, mesmo que conjuntural, de certos interesses comuns, mas não era algo que pudesse ir muito longe, devido à fragilidade dos laços entre as conquistas do Estado do Brasil. Retornando aos conflitos de jurisdição, cabe enfatizar a importância do provedor da comarca, um desembargador responsável por auditar periodicamente as contas do Senado. Sua presença exigia o constante recurso ao rei para legitimar muitos dispêndios municipais. O exemplo mais recorrente, que se repete ao longo de toda a segunda metade do seiscentos, é a questão do pagamento de propinas aos camaristas nas procissões, pois o desembargador não levava em conta os gastos realizados em procissões não previstas nas ordenações do Reino, seguindo determinação régia de 1632132. 129

Cf. AHMS, PR, vol. II, fls. 90v-93. IAN/TT, Conselho Ultramarino, Livro 1º de Decretos, fl. 15; AHU, Rio de Janeiro, Avulsos, cx. 4, doc. 427; AHU, Bahia, LF, cx. 22, doc. 2569. 131 AHU, Rio de Janeiro, Castro Almeida, cx. 6, doc. 1147. 132 CCLP, vol. IV, p. 249. 130

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O único pedido bem-sucedido foi o primeiro, de 28 de julho de 1649, no qual a Câmara pedia para que seus gastos nas festas da Aclamação fossem aceitos na prestação de contas 133. Necessitando afirmar a legitimidade da nova dinastia e sua ligação com os vassalos, certamente deve ter parecido boa política conceder à Câmara soteropolitana esta mercê que, no fundo, interessava tanto ao centro quanto às localidades, pela oportunidade para “demonstrar a preocupação do rei com seus vassalos ultramarinos (...), providenciando [também] uma ocasião para que as elites coloniais demonstrassem publicamente sua proximidade com o monarca”134. Entretanto, os requerimentos seguintes, que buscavam autorização para os gastos das procissões de São Sebastião, São Felipe e Santiago e Santo Antônio de Arguim foram negados ou ignorados. “Muitas e repetidas vezes” os oficiais argumentaram que “muitas cidades e vilas desse Reino” e mesmo em Pernambuco a prática era comum, e que “os oficiais da Câmara não têm outro emolumento mais que esta propina, que é coisa limitada, em comparação do muito que gasta cada um em vir de fora de suas fazendas para assistirem nesta cidade” 135. Foi finalmente a comparação com a capitania do Norte que sensibilizou a Coroa depois de décadas de insistência, pois negar ao Senado soteropolitano uma prerrogativa gozada por uma Câmara menos importante era afrontar a preeminência de Salvador como cabeça do Estado do Brasil136. Também na criação e remuneração de ofícios menores relacionados à Câmara, como de síndico, inquiridor, escrivães, tabeliães e mesmo o procurador em Lisboa, fazia-se necessário obter autorização régia, sob pena de ter as contas reprovadas pelo provedor da comarca. O mesmo valia para a realização de obras públicas, inclusive para garantir a higiene urbana e a proteção contra as intempéries. Outras vezes era necessário defender a jurisdição da Câmara na nomeação de cargos contra a interferência do centro político, como de juiz da vintena, médico da municipalidade e oficiais de ordenança – esses últimos, os mais importantes, geralmente escolhidos pelo governador-geral a partir de uma lista prévia preparada pelo Senado. Mesmo que em muitos casos essas demandas fossem atendidas, o recurso ao centro político era obrigatório, pois “para estes [dispêndios] é necessário haver provisão minha”, como afirma o monarca em carta régia de 9 de fevereiro de 1689137.

133

AHU, Bahia, LF, cx. 13, doc. 1365; CCLP, vol. 9, pp. 195-6; CS, vol. I, pp. 29-30 e AHMS, PR, vol. III, fls. 18-19v. 134 BANKS, Chasing empire, pp. 45-6. 135 CS, vol. I, pp. 29-30, 58 e 95; vol. II, pp. 11-4; vol. III, pp. 6, 78-9 e 86-7; vol. IV, pp. 45-7 e 66-7; AHU, Bahia, LF, cx. 16, docs. 1798 e 1855; cx. 17, docs. 1944 e 1995; Avulsos, cx. 2, doc. 141. 136 Cf. a consulta em DH, vol. 90, pp. 16-7, e a carta régia em AHMS, PR, vol. III, fl. 92. 137 CS, vol. II, pp. 127; vol. III, pp. 3-4 e 24-5; vol. IV, pp. 71-2; CCLP, vol. IX, pp. 359 e 370; vol. X, pp. 83 e 186-7.

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A se julgar pelo século XVIII, a atuação do provedor da comarca não se mostrava tão eficaz nem regular quanto se poderia depreender das cartas da Câmara (o que explica que nem todo ano se enviassem missivas do gênero). A Câmara dispunha de razoável autonomia138, mas mesmo assim, eventualmente, o provedor podia interferir, atrapalhando as intenções dos camaristas e abrindo espaço para a atuação do monarca como árbitro. Até para cumprir as “obrigações” do Senado, como “tratar do provimento de todos os mantimentos necessários para o sustento da cidade”, podia ser necessário pedir uma provisão régia para colocar em prática a determinação de que os mestres dos navios “assim com [que] lançarem ferro venham logo dar entrada a este Senado e notícia de todos os gêneros de mantimentos que trouxeram”, porque se estava a interferir no comércio atlântico139. Por fim, surge nas últimas décadas do século conflitos sobre quem havia de ocupar o cargo de procurador da Câmara (temática responsável por praticamente todas as missivas da temática “eleições”). A Coroa é chamada a intervir, alterando a maneira como essa posição era vista ao enobrecê-la (capítulo IV) e chegar a um compromisso com o Senado ao atender sua reivindicação de isentar o procurador de cobrar as rendas da municipalidade (motivo pelo qual a nobreza menosprezava essa posição), função que passaria a caber ao tesoureiro140. Assim, em vários aspectos do próprio funcionamento da Câmara fazia-se necessário recorrer ao monarca, por motivos financeiros, institucionais e de pessoal. Em diversas questões cotidianas o monarca, mesmo distante, era lembrado pelo Senado soteropolitano. Mesmo assim, apesar do número de missivas incluídos nesta rubrica ser maior do que se poderia esperar, não se tocava em muitas das atribuições fundamentais do poder municipal. A justiça ordinária, por exemplo, mal é mencionada, em razão de seu caráter profundamente local – ou ao menos é o que se supõe, já que sabemos muito pouco sobre a ação judiciária das Câmaras no mundo lusitano, inclusive em razão do desaparecimento de boa parte da documentação relevante141. Da mesma maneira, a regulação da economia local pouco aparece, sendo responsável por apenas 2% das missivas da municipalidade – notavelmente menos do que nas Cortes do Reino na década de 1640142, indicando talvez uma maior capacidade de autorregulação ou, simplesmente, o reconhecimento de que o poder real pouco poderia intervir nessas questões.

138

SOUSA, Avanete Pereira. A Bahia no século XVIII: poder político local e atividades econômicas. São Paulo: Alameda, 2013, pp. 115-202. 139 CS, vol. III, pp. 20-1. 140 Cf. CS, vol. II, 98-9 e 126-7; vol. III, pp. 102-3; vol. IV, pp. 32-3 e vol. V, pp. 13-4; AHU, Bahia, LF, cx. 25, doc. 3072; AHMS, PR, vol. III, fls. 21v, 36v, 38 e 63-4. 141 Cf., porém, BORGES, Joacir Navarro. Das justiças e dos litígios: a ação judiciária da Câmara de Curitiba no século XVIII (1731-1752). Tese de Doutorado. Curitiba: PPGH/UFPR, 2009, que destaca a importância do crédito. 142 CARDIM, Cortes e Cultura Política, pp. 151 e 154.

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Em todas as cartas a tratar dos conflitos que opunham os múltiplos polos de poder na Bahia seiscentista, a comunicação política é resultado da apelação ao monarca como árbitro. A “centralidade do centro” vê-se reforçada pela posição do rei como juiz último dos privilégios, mesmo que a Coroa estivesse longe de determinar todas as hierarquias sociais, como já se viu nos capítulos III e IV. De qualquer maneira, a própria necessidade de recorrer ao monarca para resolver estas questões intensificava os laços a ligar centro e periferia, fortalecendo ligações políticas essenciais para a manutenção do império.

Economia, Comércio e Política No Antigo Regime, e especialmente em sociedades escravistas, o próprio caráter agrário e a forma de aquisição da mão de obra cativa davam ao crédito um papel fundamental no funcionamento da economia brasileira, sendo o endividamento um elemento constituinte da atividade dos produtores agrícolas. Mesmo que parte considerável do crédito fosse concedida por instituições controladas pela elite, como a Misericórdia, o papel dos comerciantes era relevante o suficiente para gerar temores sobre o destino dos membros da elite, geralmente carregados de dívidas de várias procedências143. Adentramos, assim, na temática da economia de exportação, sinônimo de açúcar neste período e presente em 11% das representações camarárias. Já em 1610 a Câmara reclama do endividamento dos produtores, e a Coroa determina em 1612 que os senhores de engenho paguem somente metade dos seus rendimentos aos credores, e os lavradores de cana 2/3144. A situação se repete em 1632: em resposta a requerimentos dos senhores de engenho e lavradores, a Câmara pede ao monarca a proteção do capital produtivo dos terratenentes, ao que a Coroa responde que escravos diretamente empregados na lavoura não poderiam ser arrestados145. Em 1636, o governador-geral Pedro da Silva reforça a ordem, afirmando que a penhora só poderia ser realizada quando a dívida totalizasse um valor próximo ao do engenho146. É interessante notar que na Ilha da Madeira esse privilégio foi concedido por D. Manuel já em 1496, e a monarquia hispânica fez o mesmo para os engenhos de Espanhola e Porto Rico

143

Para a Bahia em finais do XVII e inícios do XVIII, cf. FLORY, Rae. Bahian Society in the mid-colonial period: the sugar planters, tobacco growers, merchants, and artisans of Salvador and the Recôncavo, 1680-1725. Tese de Doutorado. University of Texas, 1978, pp. 63-82; para uma comparação com o Rio de Janeiro, cf. SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. “O mercado carioca de crédito: da acumulação senhorial à acumulação mercantil (16501750)”. Estudos Históricos, n. 29, 2002, pp. 29-49. 144 IAN/TT, Corpo Cronológico, mç. 15, n. 107 e Chancelaria de Filipe II, Livro 32, fls. 36v-37. Cf. a reclamação dos homens de negócio de Lisboa contra essa medida em AHU, Bahia, LF, cx. 1, doc. 52. 145 AHMS, PR, vol. I, fls. 123v-139v e CCLP, vol. IV, p. 249. 146 DH, vol. 16, pp. 388-91.

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em 1529147. Mesmo que esses precedentes não tenham sido mencionados, parece muito provável que o caso madeirense tenha servido de modelo para o pedido baiano, o qual continuaria a ser reivindicado pelos senhores e lavradores baianos ao longo de todo o século XVII como requisito essencial para a sua sobrevivência econômica. O pedido da década de 1630 forneceu a base para que, em 1662, a Câmara de Salvador requeresse que “se não façam penhoras nas ditas fabricas e só sejam executados os devedores nos rendimentos de suas fazendas para assim se poderem conservar e terem cabedais para acudir ao serviço de Vossa Majestade de quem esperam tudo o bom e melhoras daquele povo”148, mercê concedida pela Coroa no ano seguinte, após parecer favorável do Conselho Ultramarino149. Poucos anos depois, em 16 de fevereiro de 1668, João de Góis de Araújo, atuando como “procurador-geral do Estado do Brasil”, parte de uma reclamação da Câmara carioca para conseguir do regente D. Pedro extensão do privilégio ao restante da América Portuguesa, nomeadamente da capitania fluminense, Pernambuco, Paraíba e Itamacará150. Assim, o Senado envia à Coroa repetidos pedidos relacionados a uma regulação do crédito favorável aos produtores de açúcar151, como a demanda de que a Coroa passasse uma “lei irrevogável” proibindo a venda a crédito a todos (especialmente a “homens pobres”), com exceção das que “se venderem para o fornecimento dos engenhos e fazendas de canas e lenhas, sem o que não poderá fabricar-se”152. É de se imaginar a importância dessas medidas para a açucarocracia baiana, em razão de sua dependência do crédito, acompanhada por uma frustrante incapacidade de regulá-lo. A periódica necessidade de renovação deste privilégio ao longo da segunda metade do seiscentos era mais um elemento a exigir a ligação deste grupo com a Coroa, intermediada institucionalmente pela Câmara de Salvador. Em torno desses interesses, a açucarocracia revelava-se, como já vimos no capítulo III, capaz de “agir de modo coeso como uma classe com interesses e objetivos próprios, assumindo papéis políticos e procurando influenciar a política VIEIRA, Alberto. “Sugar Islands: the sugar economy of Madeira and the Canaries Isles, 1450-1650” e RODRÍGUEZ MOREL, Genaro. “The Sugar Economy of Española in the Sixteenth-Century”, ambos em SCHWARTZ, Stuart (ed.). Tropical Babylons: sugar and the making of the Atlantic World, 1450-1680. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2004, pp. 59 e 96. 148 AHU, cód. 16, fol. 87v. 149 CCLP, vol. VIII, p. 267; cf. também vol. IX, p. 7 e AHU, Bahia, LF, cx. 18, doc. 2024. 150 IAN/TT, Chancelaria de D. Afonso VI, L. 20, fls. 250-250v. Da mesma maneira, em representação de 12 de Agosto de 1665 favoravelmente recebida pelo Conselho Ultramarino, Góis de Araújo cita os prejuízos sofridos nos últimos anos por todas as capitanias do Brasil para pedir a proibição da concessão das licenças fora do corpo da frota, especialmente a estrangeiros, em razão da diminuição no preço do açúcar que elas acarretavam: AHU, Bahia, LF, cx. 18, doc. 2103. 151 CS, vol. II, pp. 99-100, 103-4 e 114-7; vol. III, pp. 5-6, 55-6, 89-90, 96-8 e 112-4; AHU, Bahia, LF, cx. 18, doc. 2024; DH, vol. 89, pp. 223-4. 152 CS, vol. III, pp. 5-6. 147

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régia e municipal”153. Para isso, utilizavam o topos onipresente no mundo ibérico moderno do “bem comum”, significando, na prática, “a generalidade dos interesses particulares dos senhores de engenho em conflito com as representações de outros grupos”154. Assim, para legitimar a “apropriação do excedente social” pela elite155, esta se apropriava do discurso público institucional que representava a região. Inextricavelmente ligado às questões acima, o comércio atlântico representa 16% da comunicação ativa do Senado, pois temáticas como crédito, moeda e frotas foram objeto constante das missivas da municipalidade. O sistema de frotas e os monopólios da Companhia Geral de Comércio geraram grande insatisfação nos camaristas, em razão dos prejuízos que acarretaram na arrecadação da Câmara. Entretanto, as reclamações advinham também de seus efeitos no comércio local, com a carestia dos produtos de primeira necessidade monopolizados pela Companhia e a consequente subida nos preços. O comércio da maioria dos produtos acabou por ficar dependente da Companhia, e até o trato de açúcar foi prejudicado pelos elevados fretes que passaram a ser cobrados. Tais reclamações são contínuas entre 1650 e 1661156, embora mesmo antes da fundação da Companhia em 1649 já surgissem insatisfações contra o sistema de frotas, presentes numa das primeiras cartas enviadas ao novo monarca D. João IV157. Missivas sobre as frotas continuaram a ser enviadas ao longo do século XVII, pedindo sua permanência158, a permissão para enviar navios fora das frotas159, não virem navios fora das frotas160, mas sim duas frotas anuais161, a definição de datas mais compatíveis com a produção açucareira162... Como é usual nas demandas da municipalidade, o conteúdo muda ao sabor das circunstâncias, dentro do que parecesse mais apropriado a cada momento específico. Outras cartas sobre comércio também aparecem na correspondência camarária, como um pedido para a reabertura do trato com a América Espanhola, temática especialmente premente nas décadas

153

SCHWARTZ, Segredos Internos, p. 176. HANSEN, “Representações”. Cf. também CARDIM, Cortes e Cultura Política, pp. 145-6. 155 FRAGOSO, João. “A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial (séculos XVI e XVII)” in: FRAGOSO, BICALHO & GOUVÊA (orgs.), O Antigo Regime nos Trópicos, p. 48. 156 CS, vol. I, pp. 23-5, 27-8, 31-2, 36-46, 50-3, 57-9, 72-3; AHU, cód. 15, fl. 104v e 215v; Bahia, LF, cx. 14, docs. 1638 e 1686; cx. 15, doc. 1768; cx. 18, doc. 2024; AHU, Bahia, Avulsos, cx. 1, doc. 113. Cf. BARROS, “Negócios de tanta importância”, pp. 314-36, para o ponto de vista do Conselho Ultramarino, alinhado às elites locais. 157 AHU, Bahia, LF, cx. 8, doc. 929; BOXER, Charles. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola, 1602-1686 (trad.). São Paulo: Companhia Editora Nacional/EDUSP, 1973 [1952], pp. 194-203 e 303-5, que demonstra a eficaz oposição das Câmaras ao sistema de frotas, assim como seus motivos. Cf. também FIGUEIREDO, Luciano. Revoltas, Fiscalidade e identidade colonial na América Portuguesa. Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais, 16401761. Tese de Doutorado. São Paulo: PPGHS/USP, 1996, pp. 340-55. 158 AHU, Bahia, Avulsos, cx. 2, doc. 128. 159 AHU, Bahia, LF, cx. 16, doc. 1815 160 AHU, Bahia, LF, cx. 18, doc. 2103; cx. 19, doc. 2168 161 CS, vol. I, pp. 85-6; cx. 21, doc. 2453 162 CS, vol. I, pp. 87-8; vol. II, pp. 85-6. 154

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de 1640-50, com a desorganização de rotas que haviam adquirido significativa importância no período da monarquia dual – ligando principalmente a Bahia a Buenos Aires163. A importância do comércio atlântico na correspondência municipal devia-se a este se encontrar praticamente fora da esfera de intervenção do Senado. Fazia-se necessário recorrer ao monarca, pois, em razão da importância do escoamento do açúcar para a elite baiana e o constante intercâmbio oceânico realizado em Salvador, estas questões se mostravam cruciais para o bom funcionamento da economia açucareira e para o bem-estar econômico da elite. A “relativa fragilidade como produtores coloniais no mercado açucareiro atlântico”164 da elite baiana e os poderes reguladores da Coroa – ainda que muitas vezes insuficientes – também estimulavam o recurso ao centro político, mesmo porque muitas vezes coincidiam os interesses do rei e da açucarocracia baiana. O comércio, porém, só se faz com dinheiro, e, como afirmou o Senado soteropolitano ao monarca, “o sangue, Senhor, que sustenta e anima toda a monarquia é a abundância da moeda, e assim o confessam todos e o confirmam muitos ministros de Vossa Majestade, por cuja razão pretendem tirar o sangue dos braços para com ele se acudir a cabeça”165. Tal questão exigia o diálogo com a Coroa, detentora do poder da manipulação monetária, baseado na sua capacidade exclusiva de bater moeda166 – ao menos em teoria. Produziram-se algumas reclamações no Brasil antes de 1640, demandando-se já em 1626 o acrescentamento da moeda, “para que assim se não leve deste estado o dinheiro, que é causa de abater muito os preços dos frutos da terra”167. Imediatamente após a Restauração Portuguesa, porém, com as seguidas desvalorizações da moeda e o fim das trocas comerciais com a América Espanhola, as reclamações sobre a falta de meio circulante se tornaram cada vez mais numerosas, começando pelo governador-geral Antônio Teles da Silva, respondendo às demandas da Câmara. Como em Goa décadas antes, o poder local influenciava decisivamente as reformas monetárias intentadas no ultramar168. Segundo Lourenço de Brito Correia, em

163

CS, vol. I, pp. 61-3; AHU, Bahia, LF, cx. 8, doc. 979 e cx. 9, doc. 1002; MOUTOUKIAS, Zacarias. Contrabando y control colonial en el siglo XVII. Buenos Aires: CEAL, 1988, pp. 62-7. 164 Cf. RUSSELL-WOOD, A. J. R. “Ports of Colonial Brazil” [1991] in: KARRAS, Alain & MCNEILL, J. R. (eds.). Atlantic American Societies: from Columbus to Abolition, 1492-1888. Nova York: Routledge, 1992, pp. 174-211 e, especialmente, SCHWARTZ, Segredos Internos, pp. 144-76 (citação à p. 176). 165 CS, vol. III, pp. 114-7. 166 Para um amplo panorama, cf. SOUSA, Rita Martins de. “Moeda e Estado: políticas monetárias e determinantes da procura (1688-1797)”. Análise Social, vol. XXXVIII (168), 2003, pp. 771-792. 167 AHU, Bahia, Castro Almeida, cx. 1, docs. 2-5. 168 BOXER, Portuguese Society, p. 20; SOMBRA, Severino. História monetária do Brasil colonial: repertório cronológico com introdução, notas e carta monetária. Rio de Janeiro: Almanak Laemert, 1938, ed. rev. e aum., pp. 73-6, 81-7 e 93-104; AHU, Bahia, LF, cx. 8, docs. 979-80 e 994; cx. 9, doc. 1002. A temática também esteve presente no governo provisório que lhe antecedeu: AHMS, PR, vol. I, 279-279v.

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memorial escrito na prisão do Limoeiro, o açúcar estava caro na Bahia e relativamente barato no Reino, e a diferença de apenas 20% diminuía os lucros dos negociantes a ponto de estes evitarem comprar o açúcar, vendendo seus produtos a dinheiro e enviando mais de 400.000 cruzados ao Reino – situação que, se prolongada, impediria o sustento da guarnição, tornando a praça vulnerável a ataques de inimigos169. Assim, em meados de 1643 o governador reuniu uma junta com os camaristas, ouvidor-geral, mesteres, “pessoas nobres e da governança de maior autoridade e homens de negócio de maior cabedal”, os prelados das religiões, ouvidorgeral e provedor-mor, que recomendaram a valorização da moeda, posição com a qual o governador concordou, levantando as moedas de ouro em 25% e as de prata em 50%, supostamente para igualá-las a Portugal170. Apesar dos conflitos com parte da elite (capítulo V), Teles da Silva respondeu favoravelmente em um tema fundamental para os interesses da açucarocracia, demonstrando mais uma vez o quanto a cooperação entre os principais representantes da Coroa e o poder local era a norma. Em 1651, a Coroa ordenou a recunhagem em Lisboa das patacas e moedas de prata com suspeita de serem falsificadas, mas a Câmara reagiu imediatamente, temerosa das consequências de tamanha fuga de numerário para o comércio e o sustento da infantaria. Em reunião com “os três estados desta República, Clero, Nobreza e Povo”, decidiram propor ao governador-geral Conde de Castelo Melhor que as moedas se fundissem em Salvador, como já se havia concedido a Porto e Évora, e aproveitando o precedente estabelecido por Antônio Teles da Silva171, ainda em vigor. Castelo Melhor concorda e estende a resolução para o Rio de Janeiro e Pernambuco, obtendo a anuência e o agradecimento do monarca172. Pouco depois, porém, D. João IV reclama que os tostões corriam na Bahia por preços maiores, ordenando o fim da prática. Entretanto, ao invés de obedecer prontamente, o Conde de Atouguia decide, devido à gravidade da matéria, exigir diversos pareceres para tomar uma decisão abalizada. Contando com o apoio da Câmara, do desembargador Simão Álvares de la Penha, do provedormor Mateus Ferreira Vilas-Boas, do cabido, dos jesuítas e dos carmelitas (e ignorando o juízo contrário do Procurador da Coroa na Bahia, Fernão de Maia Furtado), o governador adia o cumprimento da ordem, enviando as opiniões que recebeu para Lisboa. A política foi mantida

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RAU, Virginia & SILVA, Maria Fernanda Gomes da (eds.). Os manuscritos do arquivo da Casa de Cadaval respeitantes ao Brasil. Coimbra: Universidade, 1955, vol. I, pp. 33-4 (no mesmo sentido, cf. o arbítrio anônimo e sem data às pp. 347-51). 170 AC, vol. II, pp. 176-8, AHU, Bahia, LF, cx. 13, doc. 1609 (citações); MAURO, Frédéric. Portugal, o Brasil e o Atlântico (1570-1670). Lisboa: Estampa, 1989 [1960], vol. II, p. 175; AHMS, PGS, 1642-8, fls. 74-81v. 171 DH, vol. 66, pp. 11-2 e AHMS, PR, vol. II, fls. 28-9; AC, vol. III, pp. 181-8 (citação). 172 DH, vol. 3, pp. 11-2; vol. 33, pp. 258-9; vol. 66, pp. 41-2; AHU, Bahia, LF, cx. 12, docs. 1464-5.

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pelo Conde de Óbidos nos primeiros dias de seu governo, tanto por sua importância econômica quanto para estabelecer boas relações com a elite local173. Assim, durante mais de duas décadas os governadores atuaram conjuntamente com o poder local para manter a moeda mais valorizada na Bahia do que no Reino, com o objetivo explícito de evitar a fuga de numerário para a Europa. Em consequência, a Câmara passa a pedir com mais insistência a partir de 1656, em nome da Bahia e do Estado do Brasil, uma “moeda provincial” mais valorizada do que a do Reino e uma Casa da Moeda, na tentativa de formalizar essa situação e garanti-la. Não obtiveram sucesso, porém, mesmo contando com o apoio dos governadores-gerais174. Demandas similares partiam do Rio de Janeiro desde a década de 1640, mas de maneira ainda mais intensa, pois seu açúcar era menos estimado, de modo que os comerciantes nas frotas desejavam vender seus produtos a dinheiro na praça carioca para adquirir preferencialmente o açúcar baiano175. A reivindicação de uma “moeda provincial” do Brasil marca presença em muitas das missivas dos anos que se seguiram. Trata-se de um pedido sem dúvida motivado por razões econômicas. No entanto, todos viam como evidente que tal faculdade, caso viesse a ser concedida, teria implicações no que dissesse respeito à posição do Brasil face aos demais territórios da Coroa lusa. Por isso, esta matéria esteve na origem de muitos requerimentos que as autoridades da América Portuguesa remeteram à Coroa, e neles se detecta não só um forte tom reivindicativo, mas também uma cada vez mais forte consciência do peso econômico – e político – dos territórios americanos no quadro da monarquia lusa176. Em um contexto de baixa dos preços do açúcar, as reclamações se acentuam: a municipalidade soteropolitana afirma em 1679 que ia “para esse Reino a maior parte do dinheiro que nessa cidade havia” pela ausência de uma Casa da Moeda, situação inaceitável, ainda mais quando se considerava que o Estado da Índia, “menos útil às alfândegas de Vossa Alteza e a sua Real Fazenda”, possuía três177. Tal situação prejudicava o escoamento de açúcar e tabaco, afetando as rendas régias, “em cuja consideração poderá suceder uma notória ruína desta

173

DH, vol. 66, p. 60; AHU, Bahia, Avulsos, cx. 1, doc. 94 e AHU, Bahia, LF, cx. 13, doc. 1609; CCLP, vol. 8, p. 88; DH, vol. 5, pp. 364-70 e vol. 21, pp. 105-7; AHMS, PGS, 1649-77, fls. 153-153v e 1660-77, fls. 44-46v. 174 CS, vol. I, pp. 53 e 116; AHU, Bahia, LF, cx. 17, doc. 2002 e cx. 30, doc. 3723; cód. 16, fls. 106v-107; CS, vol. II, pp. 48-50, 74-5 e 83-4; CS, vol. III, pp. 84-6; CS, vol. IV, pp. 3-12, 14, 42-3 e 68-9. 175 Cf. FRAGOSO, João. À Espera das Frotas: micro-história tapuia e a nobreza principal da terra (Rio de Janeiro, c. 1600 – 1750). Tese de Titular. Rio de Janeiro: Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2005, pp. 80-7. 176 Como notou Pedro Puntoni, “O ‘mal do Estado brasílico’: a Bahia na crise final do século XVII” in: id. O Estado do Brasil. 177 CS, vol. II, pp. 52-3. Pouco antes o tenente-general Jorge Soares de Macedo também pedira o envio de moedas de cobre que correriam pelo triplo do valor no Brasil, de cujo ganho a Fazenda Real retiraria recursos para financiar a fundação de Sacramento : RAU & SILVA, Os manuscritos da casa de Cadaval, vol. I, pp. 246-8.

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república [e] de todo este Estado”178. Pediram, portanto, que o Rei não só aceitasse a valorização que já vinha ocorrendo desde 1643 “por arbítrio daquele povo e autoridade do governador”, como também a ampliasse, de modo a que a pataca corresse não por seu valor de face de 600 réis ou por 640, como então se admitia na Bahia, mas por 720 réis. Os Procuradores da Fazenda e Coroa são contrários a essa medida, mas o Conselho Ultramarino, ainda mais simpático às reivindicações das conquistas, recomenda apenas uma consulta à Junta do Comércio179. Após diversas cartas da Câmara e repetidas instâncias do Conselho para que se chegue a uma resolução, a Coroa acaba por proibir qualquer levantamento da moeda, comunicando sua decisão ao governador em 3 de janeiro de 1682180. Não devia, porém, ser fácil mudar uma situação perto de completar seu 40º aniversário. Assim, enquanto o debate sobre a política monetária se intensificava no Reino181, a moeda continuava a correr com um valor maior no Estado do Brasil, como apontou Bernardo Vieira Ravasco em um interessante papel sobre a moeda produzido em 19 de abril de 1687, no âmbito da discussão sobre a nova lei da cunhagem182, finalmente decretada em 1688. A moeda foi desvalorizada em 20% e deveria possuir o mesmo valor em todo o império183, no auge da crise econômica que assolava a produção açucareira (capítulo I). A mudança gerou fortes reações nas conquistas, pois mesmo antes os mercadores já preferiam levar dinheiro do que açúcar, de modo que o governador Matias da Cunha foi obrigado a lançar uma portaria proibindo que se embarcasse dinheiro para o Reino184. Na Bahia, a lei não foi imediatamente aplicada em razão dos “grandes inconvenientes” para a economia baiana, como o Chanceler da Relação e o Arcebispo/Governador interino reconheceram, forçados a isso pela insatisfação local “de que se alvoraçava o povo”, pois a moeda perderia quase 30% de seu valor. A Câmara repete, então, seu pedido de uma “moeda nacional deste Estado por que não se leve a outras províncias”185.

178

CS, vol. III, pp. 100-1. CS, vol. II, pp. 48-50 e DH, vol. 88, pp. 148-50. 180 CS, vol. II, pp. 52-3, 74-5 e 83-4; DH, vol. 88, pp. 171-2, 177-8 e 202-3; vol. 68, pp. 32-3. 181 Cf. HANSON, Carl. Economy and Society in Baroque Portugal, 1668-1703. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1981, pp. 149-59 (há edição portuguesa). 182 BPA, 51-VIII-34, fls. 31-38v. Nem dois meses depois, seu irmão, o Padre Antônio Vieira, também não se furtava de criticar as mudanças monetárias, embora ainda não visse a moeda provincial como solução: VIEIRA, Antônio. Cartas. Coordenação e notas de João Lúcio de Azevedo. São Paulo: Globo, 2008, vol. III, p. 378. As páginas a seguir devem muito ao essencial trabalho de PUNTONI, Pedro. “O ‘mal do Estado brasílico’”. 183 AHMS, PR, vol. III, fls. 52-52v e DH, vol. 83, pp. 63-6. Cf. LIMA, Fernando. “A Lei de Cunhagem de 4 de agosto de 1688 e a emissão de moeda provincial no Brasil (1695-1702). Um episódio da história monetária do Brasil”. Revista de Economia Contemporânea, Rio de Janeiro, vol. 9, n. 2, 2005, pp. 385-410. 184 COELHO, Rafael. Moeda no Brasil no final do século XVII. Dissertação de mestrado. São Paulo: PPGHE/USP, 2013, p. 142. 185 CS, vol. III, pp. 84-5 (primeira e terceira citações) e DH, vol. 89, p. 151; cf. também AC, vol. VI, pp. 129-30 e COELHO, Moeda, p. 152-78. 179

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Assim, a discussão sobre a “moeda provincial” volta à pauta do Conselho Ultramarino em 1689. Embora o Procurador da Coroa em Lisboa tenha concordado com a recusa em implementar a lei, o Conselho Ultramarino defendeu sua aplicação inviolável, opinião seguida pelo rei. Entretanto, o Doutor Valentim Gregório Resende foi da opinião oposta, tomando o partido dos vassalos da Bahia ao afirmar que a criação e a manutenção de uma moeda provincial por décadas havia se dado “por consentimento expresso, ou por permissão tácita de Vossa Majestade”, devendo ser mantida para evitar novos inconvenientes186. Assim, D. Pedro II ordenou em 1690 que a lei fosse aplicada, pois somente ao monarca “tocava levantar a moeda, e a não a nenhum outro Magistrado”. Aceitava, porém, fazer uso dessa prerrogativa, levantando ligeiramente algumas poucas moedas: cedia, mesmo que muito menos do que os vassalos luso-brasílicos desejavam. A determinação devia ser aplicada “com toda a suavidade”, de modo que o recém-empossado governador-geral Câmara Coutinho optou por fazê-lo na véspera da partida da frota, para evitar os efeitos mais adversos da medida187. Como seria de se esperar, a Câmara reagiu imediatamente, manifestando-se junto ao governador e enviando mais uma carta à Coroa sobre “os imensos males desta resolução, e vem a ser que correndo a moeda por tostões a ruína fica uma porta aberta para que se leve para Portugal todo o dinheiro (como já se tem levado a maior parte)”, prejudicando a economia exportadora e impossibilitando o pagamento dos oficiais régios. Se o problema continua, a solução também: uma “nova moeda nacional e própria deste Estado, que não possa correr em outra parte”, para preservar o “Estado do Brasil, que hoje é o melhor senhorio de Portugal”188. O Senado liderou a tentativa de anular a lei na Relação, em um embargo assinado por quase todas as elites: a nobreza, o cabido, os prelados das ordens regulares e os homens de negócio, numa lista com mais de 100 assinaturas. Em uma argumentação mais política que jurídica, declarou-se que “o decreto, provisão ou lei é tão alheio à clemência dos sereníssimos senhores Reis de Portugal que sempre foram pais e seus vassalos”, porque o resultado seria “extinguir totalmente o negócio e comércio de todo o Estado do Brasil (...) que é a joia mais útil que tem a sua Coroa” com o envio da moeda para Portugal, como já os negociantes de Lisboa estavam instruindo seus comissários em Salvador a fazer. A falta de recursos para a defesa implicaria ainda que a cidade ficasse vulnerável a ataques. A única explicação para a decisão, segundo se repete várias vezes, seria que “Sua Majestade não foi informado para esta resolução com aquela verdade e zelo em que costuma fundar a soberana atenção de justiça que

186

AHU, Rio de Janeiro, Castro Almeida, cx. 9, doc. 1739. DH, vol. 33, pp. 354-6 e 371-4; AHU, Bahia, LF, cx. 29, doc. 3643-4. 188 CS, vol. III, pp. 100-1. 187

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igualmente guarda a seus vassalos”189. Como é característico do discurso dos camaristas, “a defesa dos interesses da Coroa identifica-se com a defesa dos seus interesses como produtores locais”190, devido à consciência que se tinha da contribuição baiana para as alfândegas. Em seguida, os peticionários explicitam claramente a concepção contratual do poder que unia vassalos e monarcas ao afirmarem que “nenhum príncipe do Mundo pode dar baixa à moeda com prejuízo de seus povos, sem proceder o consentimento dos mesmos povos”, citando em suporte dessa ousada declaração um acordo entre D. Afonso IV (1325-57), os povos e o estado eclesiástico para que não se fizessem mais desvalorizações. “Por força deste contrato parece que se não devia mandar abaixar a moeda no Brasil com tanto prejuízo de seus vassalos sem lhes serem ouvidos”. O precedente não era, obviamente, dos mais sólidos, já que nos três séculos e meio que haviam se passado desde esse suposto acordo diversas desvalorizações foram determinadas pela Coroa portuguesa191. Logo em seguida a representação recua, afirmando que “humildemente reconhecem os povos do Brasil, e com mais submissão e obediência os desta cidade, que sem embargo do exemplo antecedentemente alegado pode a potestade absoluta de Del-Rei Nosso Senhor dar baixa na moeda sem consentimento dos povos de sua Monarquia”, mas repetem: “por direito o não podia fazer sem consentimento dos vassalos do Brasil, e sem lhes serem ouvidos”. Assim, o rei podia tomar medidas sem construir o consenso, mas não deveria – e os vassalos sentiam-se livres para dizê-lo (ainda que não diretamente ao monarca, apesar de o embargo acabar sendo enviado ao Conselho Ultramarino), pois, como vimos, era esse o tom predominante de sua experiência política ao longo do século. Procuram, ainda, reforçar seu argumento numa interessante afirmação da paridade de seu valor com os vassalos europeus, pois “sendo Vossa Majestade igualmente Senhor dos do Brasil e Portugal” não deveria beneficiar uns em favor de outros, mesmo porque a moeda “que vai para o Reino não tem nele mais duração que enquanto os estrangeiros a não levam”. Entretanto, reconhecem que uma grande diferença, pois os vassalos da América, “não tendo fácil o recurso impedido com o oceano, cuja distância o faz menos ouvido”192. Mesmo que, como vimos, Salvador estivesse em contato muito mais intenso com a Coroa do que Câmaras muito mais próximas a Lisboa, a demora inerente às viagens transatlânticas podia agravar certa 189

AHU, Bahia, LF, cx. 29, doc. 3644. HANSEN, João Adolfo. A Sátira e o Engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo/Campinas: Ateliê/Ed. UNICAMP, 2004 [1989], 2ª ed. rev., p. 148 191 O reinado de D. Afonso IV geralmente é considerado um período de afirmação da autoridade régia, inclusive sobre os poderes concelhios, e não consegui encontrar referência alguma a esse suposto contrato: cf., de qualquer maneira, SOUSA, Bernardo Vasconcelos de. D. Afonso IV. Lisboa: Círculo de Leitores, 2005. Sobre as manipulações monetárias, cf. COSTA, Leonor Freire; LAINS, Pedro & MIRANDA, Susana Münch. História Econômica de Portugal, 1143-2010. Lisboa: Esfera dos Livros, 2011, pp. 40-1 e 178. 192 AHU, Bahia, LF, cx. 29, doc. 3644. 190

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sensação de insatisfação e injustiça em razão das medidas tomadas por um rei que só poderia ter sido enganado. Por outro lado, a intensa ligação econômica entre Salvador e Lisboa possibilitava o regular envio de correspondências: assim, se os 6500 quilômetros de água que separavam Salvador de Lisboa representavam uma dificuldade tão deplorada, por isso mesmo se mostravam um estímulo a se escrever mais e mais, reforçando os laços políticos transatlânticos que mantinham o império vivo193. Retornemos à moeda. Como não obtiveram sucesso, os camaristas voltam à carga em julho de 1692, reforçando argumentos há muito repetidos, redobrando as apostas na comunicação política. Para isso, alistaram o enfático apoio do governador-geral Câmara Coutinho, autor de longa carta ao monarca em que expõe eloquentemente pontos de vista muito similares aos esposados pela nobreza baiana, num esforço claramente concertado 194. Esse provavelmente foi um dos motivos para o requerimento da Câmara soterolitana na mesma frota pedindo a prorrogação de seu mandato “por mais três anos com o título de vice-rei”195. No mesmo mês juntou-se ao coro o venerável Padre Vieira, defendendo com sua verve característica a necessidade de uma moeda provincial em suas cartas aos ex-governadores Roque da Costa Barreto e Marquês das Minas, ao antigo valido de D. Afonso VI Conde de Castelo Melhor, ao Duque de Cadaval, ao fidalgo e cortesão Cristóvão de Almada e ao Doutor Diogo Marchão Temudo196. Seu irmão também termina seu parecer sobre a defesa militar da Bahia enfatizando a necessidade da moeda provincial, como já havia feito anos antes, essencial para suprir as necessidades logísticas de defesa da capitania197. Todos esses esforços foram mal sucedidos, e o governador-geral e almotacé-mor defende mais uma vez a moeda provincial em 1693, nuançando um pouco suas sugestões ao restringir a moeda provincial àquela cunhada em prata198. Dessa vez, porém, é a Câmara que se destaca por sua prolixidade, enviando longas representações das três ordens (Clero, Nobreza e Povo) à Coroa para pedir a instauração de uma Casa da Moeda em Salvador, “este só o meio

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FIGUEIREDO, Revoltas, fiscalidade e identidade colonial, pp. 289-306, apesar de o autor sobrevalorizar a oposição entre os vassalos brasílicos e a Coroa. Cf. também GARRETT, David. “‘En lo remoto de estos reynos’: distance, jurisdiction, and Royal government in late Habsburg Cuzco”. Colonial Latin American Review, vol. 21, n. 1, 2012, pp. 17-43. 194 DH, vol. 33, pp. 430-40. COELHO, Moeda, p. 167 nota a semelhança entre a argumentação do almotacé-mor e do Padre Vieira em carta escrita três dias antes ao Duque de Cadaval: VIEIRA, Cartas, vol. III, pp. 439-40. 195 CS, vol. III, pp. 110-1. 196 VIEIRA, Cartas, vol. III, pp. 438-54. 197 BPE, CV/1-17, fl. 299v. Esse “discurso político” havia sido escrito a pedido do governador recém-nomeado do Rio de Janeiro, Antônio Paes de Sande, como se vê em carta do irmão do autor: VIEIRA, Cartas, vol. III, p. 447. Os “remédios políticos” que se seguem, enfatizando a importância da moeda provincial, provavelmente foram enviados na mesma ocasião, embora sejam datados do ano seguinte: fls. 300-313v. 198 DH, vol. 34, pp. 151-3. Para seu bando no início desde ano, evidenciando a continuidade das discussões e disputas no âmbito local enquanto se aguardava uma decisão régia, cf. AHMS, PG, 1689-95, fls. 156v-159.

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conveniente e eficaz para se poderem remediar os danos todos (...) não merecendo menos os vassalos do Brasil à Sua Majestade que os de Portugal”199. Se ao longo de todo século se faziam comparações com câmaras do Reino e da Índia para justificar pedidos de privilégios, a discussão sobre moeda ensejou demandas explícitas por uma paridade que os vassalos baianos acreditavam ser mais que justa, concebendo-se como uma província portuguesa, mesmo que localizada no ultramar: a necessidade de dizê-lo, porém, já indica que temiam que as coisas não funcionassem exatamente dessa maneira. Apesar desses medos, seus argumentos foram bem sucedidos. As representações concertadas inclinaram a balança a favor do Estado do Brasil, pois em sua avaliação o Duque de Cadaval notou que “não pode haver verdade mais provável que a do comum consentimento de todos”. Afirmou, assim, ser necessário remediar a falta de moeda, “supostas as terríveis consequências da sua ruína. Além de tudo o referido tenho esta matéria por muito grave, e arriscada, e falando somente com vossa mercê temo muito a desesperação da gente da Bahia muito cobiçosa e altiva, por uma inveterada natureza”200. O caráter privado do documento permite que o Duque, “primeira figura da Grandeza do reino e personagem tutelar do governo de D. Pedro desde o afastamento de Castelo Melhor”201, revele uma visão da “gente da Bahia” muito distante dos vassalos leais e valorosos que sustentaram a infantaria tão elogiados pelo Conselho Ultramarino décadas antes. Apesar do contínuo esforço fiscal da localidade necessário para manter os soldados e pagar o donativo do dote e paz, os longos anos passados desde a guerra contra os neerlandeses tendiam a borrar as lembranças sobre os serviços da elite baiana e, consequentemente, diminuir a visão positiva sobre eles que marcou o início do período brigantino, tanto entre os conselheiros quanto entre o próprio rei. Os agradecimentos praticamente sumiram das cartas régias, parecendo que, após um início frágil, a nova dinastia brigantina tendia a conceber os serviços de seus vassalos mais como uma obrigação, e menos como uma ação voluntariamente tomada a merecer elogios e recompensas, insinuando uma transformação que se consolidaria nas primeiras décadas do século seguinte, como já mencionamos no capítulo anterior no tocante à administração dos donativos pelo Senado. Entretanto, fazia-se necessário tomar uma atitude frente a um longo e unificado esforço de mudar a política régia. Assim, em 8 de março de 1694 D. Pedro II finalmente concordou em fundar uma Casa da Moeda na Bahia para cunhar a moeda provincial. É de se notar que não 199

CS, vol. III, pp. 114-7; vol. IV, pp. 3-14; citação às pp. 7-8. British Library, Additional Manuscripts, n. 15170, fls. 207-207v. Agradeço a Luciano Figueiredo pela cessão desse documento. 201 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Identificação da política setecentista. Notas sobre Portugal no início do período joanino”. Análise Social, vol. 25, n. 157, 2001, p. 972. 200

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encontrei representações em 1692-3 das Câmaras ou dos governadores do Rio de Janeiro e de Pernambuco, indicando ser a criação da Casa da Moeda um sucesso oriundo principalmente dos esforços baianos. O levantamento da moeda em 10% em relação ao Reino era menos do que os 20% reivindicados, mas mesmo assim tornava atraente a cunhagem. Ao mesmo tempo, o monarca proibia o transporte da moeda provincial para fora da América Portuguesa e, no ano seguinte, proíbe mesmo a circulação de moeda do Reino no Brasil. O resultado foi a cunhagem entre 1695-8 de mais de 2.302.000 cruzados, soma astronômica, superior à atividade média da Casa da Moeda lisboeta por esses anos, demonstrando tanto o vigor econômico da capitania quanto o alarmismo das lamentações anteriores sobre a fuga da moeda, indicando que esta estava antes entesourada que desaparecida202. A discussão sobre a moeda provincial mereceu uma análise mais detalhada do que outros temas desse capítulo, não só por sua importância, mas também por demonstrar exemplarmente o complexo processo de negociação que permeava a comunicação política entre Reino e Ultramar. Embora o poder de levantar a moeda fosse exclusivo dos monarcas, na prática governadores e Câmaras das principais praças do Brasil atuaram em conjunto para criar uma moeda provincial de facto durante quase meio século, mesmo contra determinações da Coroa203. Por outro lado, a chancela régia continuava a ser valorizada, pois somente ela poderia dar estabilidade a essa situação. Quando decidia emitir ordens expressas, a Coroa mantinha o poder de alterar a ordenação monetária do Estado do Brasil, como ocorreu em 1691. Em última instância, a criação da Casa da Moeda é indício tanto da relevância da autoridade régia quanto da capacidade das elites ultramarinas influenciarem a formulação da política no centro – especialmente se contassem com o apoio dos governadores e ouvidos simpáticos na Corte. A inserção da Bahia na economia internacional e o papel de Salvador como porto exportador de açúcar e tabaco, bem como importador de escravos, alimentos e manufaturados, faziam com que o comércio fosse um elemento constituinte da vida de todos os habitantes da região. Creio mesmo que a Bahia estivesse mais imersa em redes mercantis que a maior parte do Reino, com exceção de Lisboa e, talvez, do Porto. Assim, mesmo que a Coroa estivesse longe de conseguir regular o fluxo de mercadorias e moeda, sua capacidade de intervenção legislativa nesses setores era reconhecida pela elite baiana, como mais um elemento a reforçar a cadeia de interesses que faziam a “cabeça do Estado do Brasil” se ligar à Corte.

202

CCLP, vol. 10, pp. 345-6; COELHO, Moeda, pp. 188-220. Para outras capitanias nos anos seguintes à lei de 1688, veja-se COELHO, Moeda, pp. 178-83, ainda que seja necessário investigar a antiguidade desses procedimentos fora da Bahia. 203

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Apesar de essenciais, nenhum dos aspectos econômicos citados acima estão ligados diretamente à produção, só raramente presente nas missivas da municipalidade. O caso mais importante foi, certamente, a discussão entre 1660-84 sobre a proibição ou não da construção de engenhos no Recôncavo (capítulo I). O único outro exemplo no qual o Senado pede a regulamentação do monarca em um aspecto da produção é quando, em 1686, demanda uma lei para obrigar a plantação de mandioca no Recôncavo, “com pena que mova o temor” e recomendações para que os “governadores a façam dar execução, porque por esta Câmara ficará sem fruto, pela razão de serem os que nela servem dos mesmos que hão de ser obrigados”204. A resposta régia foi positiva, emitindo alvará nesse sentido em 1688 205. Esse é o principal documento em que há uma discussão do abastecimento interno da capitania, temática muito rara na comunicação política. Os camaristas pedem, portanto, a intervenção régia em questões de regulamentação do uso da terra nas quais as divisões entre a açucarocracia se revelavam fortes demais para permitir uma ação concertada. Surgia, nessas polêmicas, um espaço regulatório para a Coroa, em resposta a demandas locais. Assim, a interferência da monarquia nesse campo (como em diversos outros) parece ter sido predominantemente reativa, aproveitando-se de questões que faziam os brasílicos demandarem a ação do centro político. Entretanto, praticamente inexistiu qualquer tentativa de regulação das relações de produção. Explica-se, assim, a ausência quase total da temática da escravidão nestas cartas (somente 1% das missivas). Mesmo quando dela se tratava, outras questões predominavam, como no caso da já mencionada carta de 14 de agosto de 1671, na qual os camaristas pediram ao monarca que fosse instituída uma devassa anual pelo Recôncavo para castigar os escravos “feiticeiros”, que matavam muitos cativos “repentinamente e sem confissão”206. Essa reclamação singular explica-se porque a feitiçaria configurava-se um crime fora da alçada da Câmara e contra o qual os senhores se sentiam impotentes, gerando grande temor entre a açucarocracia. Tais casos eram numerosos e continuaram a sê-lo207, apesar da resposta positiva do monarca, que recomendou ao governador-geral que fizesse diligências pelo Recôncavo, “porque é necessário acudir disto com remédio pronto”208.

204

CS, vol. III, pp. 32-3. LARA, Silvia Hunold (ed.). “Legislação sobre escravos africanos na América portuguesa” in: GALLEGO, José-Andres. Tres Grandes Cuestiones de la Historia de Iberoamérica. Madrid: Fundación Mapfre Tavera/Fundación Ignacio Larremendi, 2000, p. 198. 206 CS, vol. I, pp. 102-3. 207 Cf. AHU, Bahia, LF, cx. 25, doc. 3018; SWEET, James H. Recreating Africa: Culture, Kinship, and Religion in the African-Portuguese World, 1441-1770. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2003, pp. 119-88. 208 DH, vol. 67, pp. 132-3. 205

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Em duas outras correspondências, a questão é o tráfico: para garantir a oferta de cativos, o Senado pede que não possam ser enviados para Portugal e nem, após a descoberta do ouro, quando Salvador deixa de ser o mercado mais atrativo da América Portuguesa, para outras capitanias do Brasil209. Já a Coroa só trata do tema na comunicação com o Senado ao mandar registrar um alvará sobre o castigo e cativeiro dos negros de Palmares 210, pois as outras três cartas tratam do cativeiro de indígenas em início do seiscentos. Houve, porém, uma interessante resolução régia em 26 de junho de 1642, em resposta a um papel do Marquês de Montalvão sobre uma resolução a que ele havia chegado com a Câmara, vista como uma solução possível ao problema dos cativos fugitivos: venderem-se os negros capturados para cobrir os custos das expedições de destruição dos mocambos, como já se havia feito duas vezes, sob a justificativa de que se tratava de criminosos. D. João IV determinou que “não podia obrar nesta matéria coisa alguma por não pertencer à Câmara resolvê-la e mandá-la executar, nem haverem dado consentimento válido os donos dos escravos”. Decide-se, assim, que os crimes de cada cativo deviam ser individualmente apurados, e os senhores contribuírem para tais expedições – com o objetivo explícito de garantir a propriedade servil, essencial para o funcionamento de qualquer sociedade escravista, afigurando-se desse modo a principal contribuição da Coroa para a perpetuação da escravidão. Seguia-se, assim, o parecer dos três governadores que haviam substituído Montalvão, dois dos quais, como vimos no capítulo V, brasílicos: “a Câmara não podia fazer que os cativos de terceiros fossem de outros, nem tirados a seus donos, nem a cidade veio nisso, como consta do termo que se fez, e ainda que viera nem assim bastava, porque não o concorria o consentimento de seus donos”, contra o parecer do Procurador e da maioria dos conselheiros da Fazenda, que votaram pela legalidade da manobra do vice-rei211. Em finais do século, chega a haver algumas tentativas de ingerência régia na relação senhorial, criando-se em 1688 “duas leis dando a qualquer um, inclusive aos próprios cativos, o direito de denunciar senhores de escravos cruéis às autoridades civis ou eclesiásticas” – leis que não foram enviadas à municipalidade, talvez antevendo as reações negativas. Tal intromissão foi, porém, muito mal vista pelos proprietários, e não conseguiu obter sequer a concordância dos governadores (o que pode explicar porque a Câmara não precisou adentrar 209

CS, vol. II, pp. 20-1 e vol. V, p. 27. AHMS, PR, vol. III, fls. 11-13v e 16v-18v. 211 IAN/TT, Ministério do Reino, Conselho da Fazenda, L. 161, fls. 130-130v (primeira citação) e AHU, Bahia, Avulsos, cx; 1, doc. 39 (segunda); cf. também AC, vol. I, pp. 327-9, 333-5 e 477-9 e LARA, Silvia Hunold. Palmares & Cucaú: o aprendizado da dominação. Tese de Titular. Campinas: Unicamp, 2008, pp. 35-9 e 210-27: em 1678, membros do Conselho Ultramarino também criticaram a possibilidade de fazer acordos com os palmarinos pelo prejuízo que causariam aos direitos de propriedade dos senhores. 210

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neste debate). Em geral, “no tocante à escravidão, a Coroa essencialmente não interferia”, pois ela estava incluída no âmbito do governo doméstico, responsabilidade do pater familias212. A comunicação política implicava a discussão de eventos extraordinários ou reclamações e demandas, muitas vezes oriundas de conflitos de jurisdição. Nada disso se aplica ao cotidiano do cativeiro: todos aceitam plenamente a propriedade senhorial, e temas tão consensuais sequer precisam ser debatidos, pois são pressupostos inerentes ao funcionamento daquela sociedade. A escravidão não fazia parte, portanto, do debate entre Coroa e elites locais, pois ambos os polos estavam plenamente de acordo sobre ela. Na maioria dos momentos, provavelmente tal temática sequer ocorreria aos camaristas e conselheiros ultramarinos, tanto quanto discutir a subordinação de suas esposas e filhas213.

Privilégios e mercês Mencionamos muitos pedidos de intervenção nos assuntos mais diversos: crédito, moeda, tráfico, construção de engenhos, conflitos de jurisdição... Tais demandas muitas vezes assemelhavam-se antes a requerimentos de privilégios, o que é compreensível se lembrarmos o profundo entrelaçamento entre política e economia que caracterizava a época moderna. Chegamos, assim, ao tema que classifiquei como “Mercês”, rubrica sob a qual estão 35 cartas da municipalidade, representando 7% do total214. Aqui encontramos pedidos que visam a aumentar a dignidade da Câmara e de seus oficiais, como a possibilidade de eleger mesteres e juiz do povo215, os privilégios dos cidadãos do Porto (capítulo IV)216 e o já mencionado desejo de ocupar o primeiro banco nas Cortes. Outros aparentemente respondem a demandas específicas da elite e grupos intermédios, como da fundação de uma universidade em Salvador como a de Évora, tendo por base o colégio jesuítico. A demanda foi repetida nada menos que seis vezes no decorrer de mais de vinte anos, entre 1658 e 1681, porque “os merecimentos dos filhos desta cidade são iguais a todos os do Reino, porque suas habilidades não desmerecem das mais, e nas letras também têm mostrados seus talentos”, assim como os custos, distância e

212

SCHWARTZ, Segredos Internos, pp. 123-4 e 221; cf. também LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência: Escravos e Senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1988, pp. 64-6 e MARQUESE, Rafael. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São PaulO: Companhia das Letras, 2004, pp. 46-68. As cartas régias estão publicadas em DH, vol. 32, pp. 393-4 e vol. 68, pp. 160-1. 213 Para um paralelo, cf. BROWN, Kathleen M. Good Wives, Nasty Wenches & Anxious Patriarchs: Gender, Race and Power in Colonial Virginia. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1996. 214 Quantitativo similar às petições das Cortes de 1645: CARDIM, Cortes e Cultura Política, p. 153. 215 CS, vol. I, pp. 16-7. 216 AHU, LF, cx. 10, doc. 1176; cf. também CS, vol. I, pp. 55-6 e vol. IV, pp. 76-7.

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falta de cabedais217. Em razão da dominação institucional da Universidade de Coimbra nos estudos superiores, o pedido foi atendido apenas parcialmente após representação do procurador em Lisboa, pois seria levado em conta em Coimbra um ano de estudo na Bahia, seguindo exemplo de Braga e confirmando precedente de 1639218. Em outra questão, porém, os pedidos da Câmara obtiveram mais sucesso, depois de 60 anos de insistência: a fundação de um convento (capítulo III). O papel da Coroa como fonte de privilégios obrigava o recurso a ela pela Câmara soteropolitana, desejosa de distinções que reafirmassem sua posição social cimeira na capitania. Ainda que na Bahia certamente estivessem em ação mecanismos próprios, locais e costumeiros de hierarquização social, a obtenção de privilégios régios configurava-se como uma aspiração significativa para a elite baiana, como denota sua intensa participação na economia de mercê219. Aqui, como no restante das demandas da municipalidade, o discurso é similar ao utilizado nas petições das principais câmaras portuguesas. A ênfase na lealdade e fidelidade demonstra que a elite da Bahia já dominava todo o vocabulário reivindicativo típico daquela época, interagindo com as autoridades de Lisboa de uma forma estruturalmente idêntica às principais nobrezas provinciais do Reino – inclusive no tocante ao caráter eminentemente local dos temas abordados. Aqui, como lá, os requerimentos afirmavam “que uma situação harmoniosa havia sido quebrada, resultando daí um estado de injustiça carente da intervenção mediadora do rei”, fosse através da punição do culpado, reversão da mudança ou concessão de privilégio como recompensa pelos serviços e compensação pelos danos220. Outro tipo de carta provavelmente adquiria um significado similar ao reafirmar periodicamente a pertença dos vassalos ultramarinos à monarquia lusitana: as missivas em que a Coroa comunicava os eventos vitais da família real, como nascimentos, casamentos e mortes, para que na Bahia se fizessem as demonstrações esperadas “de tão bons e leais vassalos”, além da comunicação de eventos excepcionais, como a Aclamação e a convocação para as Cortes221. O maior número de missivas deste tipo sob D. Pedro, especialmente no último quartel do seiscentos, é um indicador da intensificação da relação política entre Salvador e a Coroa e da

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Citação em AHU, Bahia, LF, cx. 16, doc. 1856, em carta de 19 de maio de 1662, enviada novamente em 10 de dezembro do mesmo ano. Cf. também cx. 15, doc. 1730; cx. 17, doc. 1955; CS, vol. II, p. 11 e 105-6. Para a apreciação melhor documentada dessa questão, cf. LEITE, História da Companhia, vol. VII, pp. 191-208. 218 AHMS, PR, vol. 2, fls. 185-186v; CORDEIRO, J. P. Leite (ed.). “A segunda tentativa de criação de uma Universidade no Brasil”. Revista de História (USP), vol. 7, n. 16, 1953, pp. 443-5. 219 KRAUSE, Em Busca da Honra. 220 Veja-se, apesar das diferenças entre os requerimentos camarários usuais e as petições em Cortes, CARDIM, Cortes e Cultura Política, pp. 136-51 (citação à p. 143). 221 Topos repetido em quase todas essas missivas: AC, vol. II, pp. 9-10; AHMS, PR, vol. II, 6-6v, 132-132v, 17980, 208-209v; vol. III, fls. 3, 22v, 53, 62v, 80v, 84v, 94, 103 e 107.

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valorização da municipalidade como interlocutora regular da Coroa, pois até então era o governador-geral quem recebia regularmente correspondências desse gênero. Desde o início da dinastia brigantina o Senado expressa sentimentos apropriados nessas ocasiões, como quando do falecimento do rei D. João IV, descrevendo-se o modo como a notícia tinha sido recebida na Bahia e, também, a solenidade que fora de imediato organizada na catedral de Salvador em honra do falecido soberano222. A câmara de Salvador estava empenhada em demonstrar junto das autoridades de Lisboa que também ela acompanhava os principais acontecimentos da corte, assinalando-os através de cerimônias muito semelhantes às que se realizavam em diversas partes da monarquia. Assim, a Bahia demonstrava seu pertencimento ao mundo português através de reações adequadas de pesar ou júbilo, como em carta de 23 de agosto de 1663: Por via da cidade do Porto chegou a feliz nova da vitória que as armas de Vossa Majestade alcançaram no campo de Extremoz, de que damos a Vossa Majestade prostrados a seus reais pés o parabéns, assegurando-nos que deste principio tão ditoso irá vossa Majestade alcançar muito maiores para que se desenganem os reinos estranhos na monarquia que Vossa Majestade há de lograr ditosos anos para nos defender e amparar. Foi celebrada nesta cidade com todo o aplauso que merecia como faremos as que esperamos223.

Dessa maneira, apesar da tão deplorada distância produzia-se uma sensação de comunidade através do Atlântico, na qual uma vitória na fronteira com Castela era motivo de festa na América, e a morte de um rei, de pesar, tanto quanto seriam no Reino.

Conclusão A capacidade da monarquia de conceder privilégios, criar instituições, regular conflitos, emitir leis (embora estas estivessem longe de serem sempre eficazes) e regular questões macroeconômicas como comércio e tributação exigia que se mantivesse um constante contato entre os representantes do poder local e Coroa. A interpenetração entre centro político e localidades fazia com que este fosse um processo de mão dupla, no qual a iniciativa podia partir de ambos os lados. Na tributação, quase sempre era a Coroa a colocar temas em pauta com os quais a Câmara precisava lidar, num diálogo similar ao estabelecido com os governadores. Nos conflitos políticos e jurisdicionais, assim como nos regulamentos sobre comércio e moeda, a Coroa se via intimada a agir pelo Senado. Em todos os temas, porém, a Coroa necessitava do saber local da Câmara, a lhe oferecer outra perspectiva além das cartas do governador, sua principal, mas não única, fonte de informação: não é à toa que a maior parte das consultas ao Conselho Ultramarino fazia uma síntese das cartas originalmente enviadas pelos vassalos, e 222

CS, vol. I, pp. 56-7; veja-se também vol. II, p. 121, dentre outros. AHU, Bahia, LF, cx. 17, doc. 1948. Para os outros casos, cf. CS, vol. I, pp. 13-6, 60 e 78-80; vol. II, pp. 73-4, 81 e 120-1; AHU, Bahia, Avulsos, cx. 2, doc. 111 e LF, cx. 17, docs. 1901 e 1988. 223

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muitas vezes tais trechos acabavam aparecendo na carta régia que procurava resolver a demanda. O próprio sistema de consultas possuía um “carácter consensualístico”, já que buscava “a manutenção dos equilíbrios sociais” ao unificar pontos de vista distintos224. Por outro lado, o Senado ansiava pela legitimidade e benesses que só a monarquia poderia conceder. Em Salvador, havia ao menos cinco polos de poder relevantes: o governador-geral, a Câmara, o Tribunal da Relação, o provedor-mor e o (arce)bispo/cabido, para além das múltiplas parcialidades dentro da elite local. Os diversos conflitos daí decorrentes abriam espaços para a atuação do monarca como árbitro, impedindo o encapsulamento local da política. Já a inserção da Bahia no mundo atlântico tornava desejável e necessário o recurso às capacidades regulatórias da Coroa. Por outro lado, se o rei podia impor donativos e contribuições, o caráter teoricamente voluntário dessa tributação exigia a participação das elites locais, sem as quais o monarca não teria como extrair as dezenas de milhares de cruzados anuais necessárias para sustentar a infantaria, pagar os donativos, consertar o cais de Viana, socorrer Sacramento e o que mais lhe parecesse necessário. O quadro que emerge através dessas centenas de pinceladas está longe de retratar a marcha inexorável de formação de um “Estado Absolutista” ou uma dominação sem qualificativos de um centro metropolitano sobre sua colônia subordinada225. Por outro lado, também não me parece factível considerar que a autoridade monárquica fosse acima de tudo simbólica e de pouca significância prática, deixando um espaço irrestrito para a “hegemonia brutal das elites locais”226. Nenhum dos dois extremos é capaz de explicar a intensidade e o tom desses contatos entre a Coroa e o Senado soteropolitano. Apesar de ser necessário analisar sistematicamente os códices de cartas régias do Arquivo Histórico Ultramarino para determinar o peso de cada um desses polos na correspondência da Coroa, a municipalidade recebia mais missivas do centro do que o provedor-mor, a Relação e o arcebispo, indicando uma relação tão forte com o monarca que, mais que negociação, representava uma imbricação característica (ao menos no caso do ultramar) do período brigantino, cuja ascensão deu-se em um contexto de fragilidade e necessidade que reforçou uma relação de interdependência com os poderes locais, capazes de ampliar significativamente sua esfera de atuação – ainda que as bases desse processo tenham CARDIM, Pedro. “‘Administração’ e ‘governo’: uma reflexão sobre o vocabulário do Antigo Regime” in: BICALHO, Fernanda & FERLINI, Vera (orgs.). Modos de Governar: ideias e práticas políticas no Império português, séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005, p. 57. 225 NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 2006 [1979], 8ª ed., p. 62; para uma visão mais nuançada, porém, conferir p. 111: “em última análise, no âmbito da colônia, tudo depende da camada senhorial”. 226 HESPANHA, As Vésperas do Leviathan, p. 465. 224

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sido lançadas na relação com os governadores-gerais após 1625 (capítulo V). A intensidade da comunicação indica a necessidade do outro: se a Coroa precisava dos grandes municípios para arrecadar recursos para sua defesa, as elites locais, e ainda mais as ultramarinas, necessitavam da monarquia para legitimar e ampliar seu poder e prestígio, sendo compostas por famílias em processo de sedimentação e vivendo um processo de consolidação como grupo social. A consolidação dessa elite implicava, em verdade, um maior desejo de contar com o apoio régio, na tentativa de integrar a Bahia como uma província da monarquia, na mesma posição que suas contrapartes portuguesas. É, assim, a interdependência a marcar a tônica da relação entre o centro político e sua mais importante possessão atlântica no século XVII, especialmente após a ascensão da dinastia brigantina, de forma notavelmente similar ao restante do mundo português227. As diferenças com o Reino ou a Índia provavelmente não eram mais que de grau, pois em todos os lugares submetidos à soberania portuguesa se desenvolveram mecanismos paralelos de participação das elites locais na arrecadação de recursos e no governo político da República. Assim, a comunicação aproximava a experiência política baiana de suas congêneres europeias, ainda que, como vimos, a figura do governador representasse uma diferença fundamental. Sua presença ensejava um diálogo muito mais intenso com a administração periférica da Coroa do que na quase totalidade dos municípios de Portugal continental e, apesar de suas limitações jurisdicionais, funcionava como uma maneira eficaz de contornar a demora inerente à distância que separava a cabeça do Brasil do coração do império, ao mesmo tempo em que suportava o grosso das insatisfações dos vassalos. Ao mesmo tempo, exatamente porque os poderes dos governadores-gerais eram mais limitados do que os gozados pelos vice-reis hispânicos, fazia-se necessário recorrer muito mais frequentemente à Corte – o que também deve ter contribuído para um condicionamento das ações dos governadores, deixando ao menos a possibilidade de denúncia sempre presente. Assim, a correspondência transatlântica tinha caminho aberto para reiterar a proximidade simbólica entre vassalos e monarcas: paradoxalmente, “a distância aproximava vassalos dos reis”228. Se a importância soteropolitana permitia que suas elites eventualmente conseguissem intervir significativamente na política régia, como a concessão de privilégios para proteger a açucarocracia e, principalmente, a criação da Casa da Moeda em 1694 demonstram, a forte Para um paralelo com o contexto europeu, cf. GIL PUJOL, Xavier. “Centralismo e Localismo? Sobre as Relações Políticas e Culturais entre Capital e Territórios nas Monarquias Européias dos Séculos XVI e XVII”. Penélope: fazer e desfazer a história, n. 6, 1991, pp. 119-44. 228 FIGUEIREDO, Revoltas, Fiscalidade e Identidade colonial, p. 299 – apesar de que, como já notei em diversos momentos, minha percepção sobre essa proximidade é muito mais otimista do que a desse autor. 227

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ligação com o centro político também condicionava mais suas possibilidades de atuação: o poder vinha com restrições, pois, longe de uma relação unilateral, a relação política entre Coroa e conquistas era uma “coprodução” em que ambos os polos pautavam assuntos e precisavam aceitar compromissos, em negociação contínua. Assim, se é possível falar de uma “cogestão lusitana e brasílica no Atlântico Sul”229, ela começara nas Câmaras que, como representantes das elites locais, possibilitaram a conservação e reiteração tanto do domínio da monarquia quanto das nascentes nobrezas da América Portuguesa numa relação que, ao fim e ao cabo, reforçou ao longo do século XVII o poder de ambas as partes, legitimando-o230. Podemos, assim, repetir aqui um hispanista alemão: “a informação sobre a periferia não aumenta simplesmente o saber do centro, mas o configura, e não poucas vezes em benefício da periferia, pode ‘co-decidir’ o que vê e o que não vê o centro”. Muitas vezes, as notícias chegadas das periferias sequer eram aproveitadas pelo centro político, devido à inexistência de uma estrutura capaz de processar tamanha quantidade de dados231. Assim, mais do que informar, o objetivo da comunicação política era o consenso232. Afirmava-se deste modo tanto a “centralidade do centro” quanto a “centralidade da periferia”, dois aspectos constituintes e indissociáveis do império português, pois os polos dessa relação de interdependência buscavam o “bem comum”, definido como o benefício do monarca e das elites locais, dentro de uma concepção profundamente hierárquica de mundo em que os fardos e benefícios deviam ser distribuídos desigualmente, de acordo com o estatuto de cada grupo.

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ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp. 76 (citação) e 221-325. 230 Em um ensaio excepcional, Florestan Fernandes já afirmara há quase 40 anos que “a Coroa e os estamentos senhoriais eram o que hoje se poderia chamar de irmãos siameses. (...) Tanto a riqueza e o poder da Coroa quanto a riqueza e o poder do colono privilegiado cresciam do mesmo modo e na mesma direção”. Entretanto, influenciado por Faoro e pela teoria da dependência, o sociólogo continuou a priorizar a Coroa, relegando as elites brasílicas a uma posição secundária: “A sociedade escravista no Brasil” in: id. Circuito Fechado: quatro ensaios sobre o “poder institucional”. São Paulo: Hucitec, 1976, p. 44. 231 Como viria a ocorrer muito mais tarde com os dados recolhidos pelas “viagens científicas” de finais do XVIII: RAMINELLI, Viagens Ultramarinas, p. 119 e DOMINGUES, Ângela. “Para um melhor conhecimento dos domínios coloniais: a constituição de redes de informação no Império português em finais do Setecentos” [2001] in: id. Monarcas, Ministros e Cientistas: mecanismos de poder, governação e informação no Brasil Colonial. Lisboa: CHAM, 2012, pp. 148-50. 232 BRENDECKE, Império e información, p. 38; ver pp. 27, 76-7, 293 e 484; também HERZOG, Ritos de Control, pp. 10-1, 52, 71-2, 144-6, 153 e 185-6.

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Conclusões

Vossa mercê como procurador deste povo deve fazer presente a Sua Majestade que não somos vassalos conquistados senão muito obedientes, e que a desgraça de vivermos afastados da sua presença não há de ser causa de nos carregarem com o excesso que experimentamos, porque o não merece a fidelidade, amor, e despesa com que se assiste a seu Real Serviço, que não é só o que se assiste de presente, senão grandes quantias que se despenderam nas armadas, fortificações e outras muitas despesas, e também derramaram nossos antecessores o sangue e custou a muitos as vidas, sem mais prêmio que o da nossa fidelidade e obediência. Tomaremos para consolação nossa saber qual seja o povo de Portugal que tenha o encargo de pagar 40 [mil cruzados de] donativos cada um ano para o Dote e Paz, e mais de 50 [mil cruzados de] donativos para o sustento da infantaria, e sobre isto se tiram dos nossos frutos o excesso dos direitos, que tudo resulta em diminuição dos nossos cabedais, em que Sua Majestade não entra com alguma despesa, e interessa todos os anos a metade dos rendimentos que cultivamos, que tanto importam os direitos. Carta da Câmara de Salvador ao Procurador na Corte Manuel Carvalho, 12 de agosto de 1688.

Na transição do século XVI para o XVII, muitas das primeiras famílias senhoriais da Bahia estavam sendo substituídas por novas, as quais, juntamente com algumas remanescentes do período inicial, ascenderiam para a preeminência política ao longo do seiscentos. Tal processo foi concomitante à transição para a escravidão africana, sugerindo que as primeiras famílias foram incapazes de se adaptar à nova forma de reprodução social através do tráfico negreiro e não mais do apresamento de indígenas. Sabemos ainda muito pouco sobre o desenvolvimento das relações sociais que permitiram a consolidação da escravidão africana nesse momento, mas, a se julgar pelos dados da freguesia de Jaguaripe, desde o início o compadrio exerceu um importante papel ao ligar livres e cativos, especialmente em relação aos mestiços oriundos da significativa miscigenação entre livres e negros. Entretanto, os homens mais importantes da freguesia e seus familiares não estabeleceram laços diretos de parentesco ritual com os cativos, e esta era ainda uma sociedade em grande medida dividida entre escravos negros (ainda que se vislumbre um crescente número de mestiços) e livres brancos, a maioria dos quais no máximo chegavam a ser pequenos proprietários e estavam muito longe de pertencerem à elite.

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A desigualdade, porém, não impedia que na primeira metade do século XVII a elite política baiana incorporasse continuamente novos membros, muitos dos quais vieram a fundar novas famílias, enquanto outros tantos não estabeleceram relações parentais nem fundaram linhagens na terra. Em alguns casos, ligações familiares estimularam a travessia do Atlântico e a integração entre os homens da governança; noutros, o enriquecimento, a adoção de um estilo de vida nobre e a participação em prestigiosas irmandades facilitavam a inserção entre os pró-homens. Entre os forasteiros, contavam-se desde filhos de oficiais mecânicos a indivíduos considerados nobres em suas comunidades de origem, para além dos eventuais fidalgos. Entre recém-chegados e naturais, porém, predominava a atividade açucareira. Durante todo o século a açucarocracia foi capaz de atuar de forma mais ou menos unificada em defesa de seus interesses econômicos, procurando intervir politicamente no mercado em busca de privilégios. Entretanto, se em termos socioeconômicos o grupo pouco se alterou ao longo daquele período, era ainda uma elite em formação, cujas principais famílias ainda estavam se constituindo no início do século. Mesmo assim, foram obrigados a lidar com os imensos desafios que a ameaça neerlandesa gerou na América, em razão da necessidade de arrecadar recursos para defender suas vidas, propriedades, comunidades e religião contra os hereges do Norte, pois, apesar dos eventuais socorros enviados da Europa, monarcas de duas dinastias (os últimos Habsburgo e os primeiros Bragança) estavam muito mais preocupados com as ameaças enfrentadas no Velho Mundo. A partir de 1625 a Câmara Municipal teve de aprender a lidar com a numerosa infantaria estacionada na cidade para defendê-la – mas que em muitos momentos foi percebida como um fator de opressão da capitania. Numa época em que a comunicação direta com a Coroa ainda era reduzida, foi necessário estabelecer cooperação com seus principais representantes na América Portuguesa. Dessa maneira, ampliaram-se na mesma proporção as atribuições do Senado e os recursos disponíveis para o sustento da milícia, pois somente a municipalidade possuía legitimidade para lançar os tributos necessários, assim como o saber local necessário para dividir o fardo e os recursos humanos (a própria elite local) para efetuar as cobranças. Ainda mais importante, se concebia a contribuição como um donativo voluntário, de modo que sua arrecadação ficava sob controle exclusivo dos edis, com todas as oportunidades que o manejo de vastos montantes de recursos com fiscalização relativamente reduzida acarretava – mesmo que se tratasse, teoricamente, da Fazenda Real, já que seu destino era a defesa da comunidade, uma obrigação régia. Ainda que em diversos momentos a correlação de forças fosse favorável aos governadores, capazes de utilizar os soldados para ameaçar os camaristas, todos – mesmo Diogo Luiz de Oliveira, que se beneficiava do controle de uma infantaria recém-chegada à terra e comandada por um aliado – precisavam construir alianças, fosse através da concessão de serventias de ofícios e sesmarias ou

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da escolha de figuras de algum destaque local como “favoritos”, capazes de ajudá-los a navegar numa sociedade em constante mutação. Violência e colaboração não são realidades antagônicas, mas facetas da mesma moeda, sempre presentes, ainda que em graus distintos, determinados pelas circunstâncias de momento. Em geral, porém, dentro de uma ideologia que valorizava o consenso e a harmonia, e em razão de realidades práticas que impediam o uso constante da força, rapidamente a concórdia passou a predominar na relação entre camaristas e governadores-gerais. Entretanto, apesar das grandes contribuições em um momento de recuperação econômica, os esforços dos homens da governança não foram reconhecidos por Felipe IV, pois o monarca lhes concedeu apenas um privilégio para salvaguardar os engenhos contra seus credores – mais pela sua importância para a arrecadação do que como recompensa pelos serviços dos vassalos – negando outros que visavam a elevar o estatuto político da municipalidade. Mesmo assim, ao aumento da importância da Câmara em razão de ampliação de suas atribuições correspondia um tateante enobrecimento dos homens que davam vida à instituição. Tal situação se intensificaria em 1640, antes mesmo da Aclamação do Duque de Bragança como Rei de Portugal. Em primeiro lugar, a nomeação do Marquês de Montalvão – o mais graduado aristocrata a vir a governar a América Portuguesa até então – como vice-rei representou a concessão de um estatuto mais elevado para a América Portuguesa e, principalmente, para Salvador, sua “cabeça”. Ainda mais importante, porém, foi a participação do Senado na Aclamação de D. João IV e posterior deposição de Montalvão, quando pela primeira vez a elite política passa-se a referirse a si mesma como uma “nobreza da cidade”, começando a se conceber como estamento. Os primeiros anos da nova dinastia conheceram uma significativa intensificação da comunicação política, abrindo-se espaço para a concessão de uma mercê longamente desejada: os privilégios do Porto, em 1646, equiparando o estatuto baiano (e das outras municipalidades americanas que os receberam) às nobrezas municipais do Reino. Antes disso, a Coroa já havia agradecido os esforços baianos em diversas oportunidades, reconhecendo sua importante contribuição para a defesa do Estado do Brasil no turbulento contexto de afirmação da nova dinastia brigantina. O Conselho Ultramarino produziu, assim, um discurso elogioso que tendia a favorecer as reivindicações americanas, quase onipresente nesse tribunal durante mais de duas décadas. Ao mesmo tempo, a relação com os governadores tornava-se cada vez mais harmoniosa, especialmente a partir de 1645. Assim, mesmo que a Coroa tenha ficado até 1660 sem dar a mesma atenção a seus vassalos americanos, a boa convivência com seus representantes na América fez com que estes reconhecessem o novo estatuto nobiliárquico da elite política, atuassem em favor dos interesses da capitania em questões centrais, como a criação de facto de uma moeda provincial mais valorizada

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para evitar sua fuga para o Reino, e institucionalizassem a autonomia camarária na gestão dos recursos arrecadados para sustento da infantaria. Assim, a década de 1660 representou uma importante mudança em consequência dos processos que se desenrolaram nos 40 anos anteriores. O aumento da importância política da Câmara foi acompanhado por um crescente domínio dos mais importantes postos da República pelas principais famílias da elite, cada vez mais entrelaçadas através de laços parentais, de aliança e de rivalidade. Tais famílias provavelmente tinham sido as maiores beneficiadas pelos poderes assumidos pelo Senado e eram as mais capazes de se identificarem como uma nobreza, em razão da sua relativa antiguidade (para os padrões locais, é claro) e das honrarias obtidas por muitos de seus membros. Ainda que forasteiros tenham continuado a ser aceitos no grupo, o foram em números significativamente menores, de modo que a elite política tornou-se, gradualmente, um grupo mais consolidado e homogêneo, ainda que não na mesma escala do que suas congêneres no Porto, São Miguel ou Rio de Janeiro. A nobreza da Bahia aproximara-se de suas contrapartes nos grandes municípios reinóis, ainda que essa identificação jamais tenha chegado a ser completa, em razão da distinta base econômica, de uma relação com a Coroa e sua administração periférica mais intensa e da entrada de novos elementos numa escala mais significativa. No início dessa década, a Câmara exerceu um papel fundamental na negociação sobre o novo donativo de dote da Rainha da Grã-Bretanha e Paz de Holanda, primeiro com o governador e depois com o monarca – consequência da intensificação da comunicação política a partir do reinado de D. Afonso VI, possibilitando o estabelecimento de um diálogo cada vez mais constante e intenso entre o Senado e seu rei. Apesar de a monarquia impor um novo e pesado fardo sobre a economia baiana, o poder de sua elite saía reforçado em razão de sua responsabilidade pelo controle de mais um enorme montante de recursos que poderia ser utilizado para reforçar as desigualdades e hierarquias locais, fosse através ou de desvios ou das desigualdades na cobrança, como já vinha ocorrendo há décadas. Ao mesmo tempo, só foi possível suportar o incremento da carga fiscal em razão do significativo crescimento da economia açucareira nas décadas de 1660 e 1670, resultando numa multiplicação de engenhos que contribuiu para a consolidação das principais famílias, pois se tornou cada vez mais comum a posse de diversas moendas na mesma família e a passagem de lavradores de cana a senhores. Em acréscimo, a concessão em 1663 de um privilégio que preserva os engenhos e seus trabalhadores escravizados contra os credores, periodicamente renovado nas décadas seguintes, reforçou a posição da açucarocracia, contribuindo para uma maior estabilidade do grupo. Por último, outra ferramenta para a consolidação dessas famílias foi obtida nesse contexto com a autorização para a fundação de um convento em Salvador após décadas de insistência,

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enobrecendo e distinguindo Salvador, mesmo que as principais famílias não tivessem, de modo geral, recolhido suas filhas nessa instituição. Em consequência desses desenvolvimentos, os governadores-gerais estabeleceram relações cada vez mais estreitas com a nobreza baiana, condicionando suas ações em grau variado. Por outro lado, os representantes do monarca também ampliaram o alcance de suas ordens ao fortalecer as ordenanças: o aumento das suas responsabilidades e a multiplicação dos cargos de comando reforçaram a posição das principais famílias que controlavam o posto de coronel. Ainda que governadores tenham, em razão de instruções régias, atuado para diminuir ligeiramente a autonomia camarária na administração dos donativos e contribuições a partir da década de 1670, a perda do controle sobre esses recursos viria apenas no século seguinte. Mantinha-se, assim, a gestão municipal de grandes somas da Fazenda Real, até maiores do que as controladas pelo provedormor. Quando se faziam necessários mais recursos, era ao Senado que se recorria, e não à administração periférica da Coroa. O fortalecimento da elite baiana continuou em finais do século. Em 1686, a Coroa reconheceu o patamar superior do grupo dominante como uma “primeira nobreza”, distinguindo-o ainda mais do restante da população. A outra faceta desse processo de hierarquização social foi o lento desenvolvimento, a partir de meados do século, de um diminuto grupo de livres de cor, acompanhado por uma sutil tendência de um maior apadrinhamento de cativos por membros da elite, sugerindo a formalização de relações de reciprocidade entre senhores e escravos, ainda que de forma muito mais tênue e equívoca do que já se observou para o Rio de Janeiro setecentista. Dessa maneira, a sociedade se tornava mais diferenciada tanto no seu topo quanto na sua base, ainda que estivesse longe da complexidade atingida no século XVIII, em um contexto de acelerado crescimento demográfico e diversificação econômica. Em fins do século, a nobreza baiana mostrava-se forte o suficiente para suportar uma grande conjunção de problemas entre 1686-93: peste, carestia de mandioca, diminuição do tráfico de africanos escravizados, baixa do preço do açúcar e desvalorização monetária. Obteve do monarca, assim, a concessão da fundação de uma Casa da Moeda para cunhar a longamente desejada moeda provincial, evitando a fuga de numerário para o Reino. A Câmara, o governador-geral e os cortesãos conseguiram convencer o rei, demonstrando a densa rede de relações que unia o centro político às principais localidades de seu império. Nessa conjuntura, a nobreza baiana revelava-se um grupo cada vez mais consolidado e autoconfiante, cuja experiência política se desenrolara a partir de uma constante interação com a Coroa e os governadores-gerais. Em verdade, essa interação moldava as principais atividades do Senado no período, desde o abastecimento da cidade através do conchavo de mandioca acertado

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com as Câmaras de Ilhéus sob os auspícios do governador-geral até os eventuais acordos sobre o preço do açúcar, passando pelo sustento da infantaria, conflitos de jurisdição, crédito, comércio atlântico e procissões. Poder central e poder local não se constituíam, portanto, em dois polos opostos, cuja relação se constituía em um jogo de soma zero, em que para um ganhar o outro precisaria perder. O que a experiência baiana revela é antes uma relação de profunda interdependência, pois a Coroa dependia da Câmara para cumprir atribuições que deviam ser sua obrigação e prerrogativa, como a arrecadação de tributos para sustentar a defesa da República, enquanto as principais decisões políticas da municipalidade eram tomadas em diálogo – mesmo que nem sempre harmonioso – com a Coroa e seus representantes. Os governadores-gerais, por sua vez, atuavam como intermediários fundamentais nessa relação, mas dependiam do apoio da elite local para desempenhar suas funções, devido à fragilidade da administração periférica da Coroa – situação simbolizada pelo domínio da posição de Secretário de Estado pelo fidalgo baiano e senhor de engenho Bernardo Vieira Ravasco, importante figura nas lutas políticas intestinas da Bahia seiscentista que controlava a memória administrativa do governo e era o oficial régio mais próximo dos governadores. A única maneira daquele vasto império, dotado de recursos humanos limitados e obrigado a enfrentar imensos desafios, sobreviver era através da cooperação, intensa a tal ponto que todos, do governador ao vereador, passando pelo Conselho Ultramarino, podem ser concebidos como pontos de um alongado continuum político da monarquia. Da mesma maneira que um elemento fundamental para a constituição de Portugal dos Bragança terá sido a formação de uma restrita aristocracia cortesã, também o foi a formação e reiteração de poderosas nobrezas locais em Salvador, São Miguel ou Coimbra. Sem o apoio dessas elites espalhadas pelo Reino e conquistas, a Coroa teria muito pouco poder; melhor dizendo, a nova dinastia simplesmente teria cessado de existir, pois a administração de tributos pelas localidades tornou-se essencial para a sustentação do esforço de guerra, fosse na raia luso-castelhana, na América ou na Ásia. Por outro lado, os próhomens provinciais derivavam parte de sua legitimidade, autoridade e privilégios do pertencimento à monarquia, a “cabeça” do corpo político sem a qual os outros membros não fariam sentido. Entretanto, tal situação não excluía o conflito, mas o produzia, ainda que dentro das regras do jogo, pois cada ponto no continuum lutava para manter e ampliar sua esfera de atuação, poder e prestígio. Assim, surgiam duas questões fundamentais, não só para Salvador, mas provavelmente para muitas outras das principais municipalidades portuguesas: o estatuto político da cidade dentro da monarquia e o peso da tributação, mesmo que controlada pela Câmara. Como se percebe pela epígrafe, tais elementos viam-se potencializados pelo caráter ultramarino da capital do Estado do Brasil, pois a distância em relação ao Reino se construiu como um topos capaz de explicar os males

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de Salvador, já que fornecia uma explicação rápida e simples para a falta de atenção dada à cidade – do ponto de vista de sua elite, claro. Buscava-se, assim, manter ou obter um estatuto político igualitário frente a outras municipalidades portuguesas, pois ao longo do século a Bahia foi referida em diversos momentos como uma “província” e é como tal que os edis baianos desejam se ver e serem vistos. Enfatiza-se, assim, uma obediência voluntária, demonstrada pelos largos serviços prestados à monarquia desde a invasão neerlandesa e repetidamente reiterada pelos grandes dispêndios da municipalidade desde então. De maneira menos explícita que Pernambuco, mas não muito diferente de discussões similares, ainda que posteriores, no Rio de Janeiro, os próceres da elite baiana procuravam demonstrar que, se a América era composta por uma série de conquistas, eles não haviam sido conquistados, sendo antes agentes fundamentais na defesa do território. Viam-se debates similares sobre a condição política dos territórios na monarquia compósita hispânica, cujas diversas possessões competiam pela preeminência simbólica. Os que haviam sido conquistados procuravam apresentar-se como tendo se agregado por herança e pacto, situações que não inferiorizavam o território como a conquista, que pressupunha uma subordinação mais acentuada1. A comparação com outras situações no Novo e no Velho Mundo mostra-se iluminadora. Tais discussões sobre o estatuto de um território não eram uma especificidade americana, mas antes parte dos jogos políticos que ligavam territórios e capital nas monarquias imperiais da época moderna. Necessário se faz, portanto, romper com a barreira que a categoria “colonial” impõe e compreender a formação das elites americanas e dos impérios ultramarinos como parte do processo mais amplo de constituição das monarquias europeias e suas relações com os poderes locais. Em todo lugar grupos dominantes mais ou menos oligarquizados relacionaram-se com o poder central e contribuíram para a manutenção das monarquias – inclusive, e principalmente, em termos fiscais – derivando legitimidade e privilégios dessa ligação. Assim, os impérios configuravam-se como prolongamentos das monarquias, e as relações estabelecidas com as novas elites das conquistas moldavam-se de acordo com os padrões construídos nos contatos com as elites provinciais europeias – muitas das quais só haviam se constituído enquanto tais durante o próspero século XVI, não sendo necessariamente muito mais antigas que as elites brasílicas.

GIL PUJOL, Xavier. “Integrar un mundo. Dinámicas de agregación y de cohesión en la Monarquía de España” in: MÁZIN, Óscar & RUIZ IBAÑEZ, José Javier (orgs.), Las Indias Occidentales: Procesos de incorporación territorial a las Monarquías Ibéricas. Cidade do México: El Colegio de México, 2012, pp. 80-3; RUIZ IBAÑEZ, José Javier & SABATINI, Gaetano. “Monarchy as conquest: violence, social opportunity, and political stability in the establishment of the Hispanic Monarchy” (trad.). The Journal of Modern History, vol. 81, n. 3, 2009, pp. 50136 e, principalmente, o epílogo de CARDIM, Pedro. Portugal unido y separado: Felipe II, la unión de territorios y la condición política del reino de Portugal (trad.). Valladolid: Ed. Universidad de Valladolid, 2014, que analisa a missiva aqui utilizada como epígrafe. 1

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Na América como na Europa, nobrezas provinciais e capitais entrelaçavam-se por diversos motivos: ideológicos, dentro de uma concepção corporativa que não podia conceber uma comunidade sem cabeça, tanto em termos locais (a elite) quanto mais amplos (o rei); políticos, em razão da interdependência que fazia do governo da República e da monarquia um esforço colaborativo; e materiais, pois a continuidade de uma estrutura produtiva capaz de produzir excedentes para sustentação das elites e defesa do território era condição necessária para a sobrevivência do próprio sistema político e social – algo especialmente relevante para a Bahia escravista, um dos suportes da monarquia lusitana Havia, é claro, diferenças, não só entre impérios – os vínculos institucionais entre a monarquia inglesa e suas possessões americanas eram significativamente mais tênues o que os estabelecidos pela Coroa portuguesa com seus territórios ultramarinos – mas também dentro de uma monarquia ou território, pois os laços entre Salvador e a Coroa foram muito mais fortes do que os estabelecidos por São Paulo e mesmo Rio de Janeiro no seiscentos. Em verdade, provavelmente Salvador ligou-se mais fortemente à Corte do que muitas municipalidades de Portugal continental, como Viana, e consequentemente conhecia uma presença muito mais significativa da administração periférica da Coroa. A distância poderia ser sentida como um obstáculo à integração, mas certamente não a impossibilitava. Como em qualquer trabalho historiográfico, a dimensão temporal é absolutamente essencial. A formação de nobrezas, a relação com os governadores, a importância política das instituições políticas e as ligações com a monarquia conheciam significativas diferenças de século para século, reinado para reinado, década para década e mesmo de um governador-geral para outro. Assim, tentativas de estender conceitos e análises no tempo exigem uma redobrada atenção para as especificidades regionais e cronológicas, assim como para as conexões entre processos interligados, especialmente em sociedades tão dinâmicas como as que se constituíam na América na época moderna. Assim, a nobreza baiana é uma realidade principalmente a partir de 1660, mesmo período em que reforça seus laços com a monarquia – antes, porém, é preciso mais cuidado na utilização dessas categorias, e resta investigar como se transformam no século seguinte. Entretanto, a condição de ser um território ultramarino, novo e conquistado tinha consequências: apesar de a nobreza baiana preferir se pensar como governante de uma província, a partir da década de 1670, depois da diminuição das ameaças estrangeiras, tal percepção começou a mudar no centro político, ainda que muito lentamente, pois se pensava nos territórios ultramarinos cada vez mais como conquistas, com a subordinação implícita ao conceito. Para além do exclusivo comercial – que sequer era objeto de reclamações, no seiscentos ou depois – parece provável que os edis soteropolitanos estivessem corretos em se sentir desproporcionalmente taxados em

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comparação com o Reino, se somarmos os donativos administrados pela Câmara aos impostos alfandegários cobrados sobre o açúcar e ao monopólio sobre o tabaco, especialmente quando consideramos a diminuição da tributação no Reino após o fim da guerra contra Castela. Tal situação não derivava, porém, de uma ontológica inferioridade “colonial”, mas sim da facilidade em taxar a produção para exportação em razão de seu caráter mercantil, uma riqueza gerada pelo trabalho por africanos escravizados e seus descendentes, assim como da vulnerabilidade da cidade a ataques europeus a exigir a manutenção de uma larga força militar – custeada, claro, pelos vassalos. Maiores mudanças viriam a se dar no início do século seguinte, para além da introdução dos juízes de fora, pois, no contexto da conjuntura crítica da década de 1710 e das inflexões da política joanina, as principais municipalidades brasílicas perderam entre 1713-27 o controle sobre as contribuições para sustento da infantaria, diminuindo consideravelmente a quantidade de recursos administrados coletivamente pelas nobrezas americanas. Tais transformações certamente produziram alterações significativas na atuação política das Câmaras, mas a experiência política do século XVII deve ter continuado a conformar suas expectativas e ações. Também começou a se desenvolver um discurso que enfatizava a subordinação das conquistas, mas a monarquia continuou a necessitar da cooperação de seus vassalos, inclusive para se beneficiar das riquezas auríferas descobertas no Centro-Sul. Isso, porém, já é outra história.

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Bibliografia Fontes Manuscritas Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa/Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco) Bahia Avulsos, cxs. 1-3. Bahia Luiza da Fonseca, cxs. 1-34. Bahia, Castro Almeida, cx. 1, docs. 2-5. Brasil Geral, cx. 1, docs. 42, 47, 56-7, 62, 66, 73, 76-7, 79-80, 85, 94 e 106-7; cx. 2, docs. 120, 136, 148 e 153. Rio de Janeiro, Avulsos, cx. 4, docs. 373 e 427. Rio de Janeiro, Castro Almeida, cx. 4, doc. 760; cx. 5, doc. 938; cx. 6, docs. 1133, 1135-6, 1139, 1146-7; cx. 9, docs. 1612, 1679, 1739 e 1782. Ultramar, cx. 1, docs. 50, 72, 98-9. Códices 37, 476, 504, 42-3, 30 (Consultas do Conselho da Fazenda, 1627-1643); 13-19 (Consultas Mistas, 1643-1702); 1192, 31, 34, 35-A, 36, 38-41, 44, 278, 45-51 (Consultas de Partes, 1615-1702); 79-86 (Mercês Gerais, 1643-1703); 92-95 (Provisões, 1643-1715); 275-6 (Cartas Régias, 1644-1727); 245-6 (Cartas Régias e Provisões para a Bahia, 1673-1714); cód. 223 (Cartas Régias para o Rio de Janeiro); 1265 (Relação das Instituições que deixaram os testadores, patrimônios que estabeleceram, e encargos que com eles aceitou a casa da Santa Misericórdia da Bahia até o ano de 1744); 1279 (Relação de todos os contratos).

Arquivo Nacional (Rio de Janeiro) Códices 537-42 (Relação da Bahia, Cartas Régias).

Arquivo da Universidade de Coimbra Coleção Conde dos Arcos, Livro do Governo da Baía. Disposição dos Governadores de Pernambuco.

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Universidade Católica de Salvador/Laboratório Eugênio da Veiga, Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador1 Livro de Batismo da Paróquia de Nossa Senhora da Ajuda da Vila de Jaguaripe, 1613-67. Livro de Batismo da Paróquia de Santo Amaro da Purificação, 1652-1676. Livro de Batismo da Paróquia de Nossa Senhora do Ó de Paripe, 1672-1700. Livro de Batismo da Paróquia de Santo Amaro de Itaparica, 1691-1700.

Arquivo Histórico Municipal de Salvador Seção Secretaria Cartas de Eclesiásticos (1685-1804). Cartas do Senado aos governadores das Vilas e Capitanias (1686-1805). Certidões do Senado (1686-1771). Circulares da Câmara (1685-1885). Provisões do Governo e Senado, vols. I-IV (1642-72). Provisões do Governo, vols. I-IV (1683-99). Provisões do Senado, vols. I-III (1651-1726). Provisões Reais, vols. I-III (1624-1712).

Arquivo da Santa Casa de Misericórdia de Salvador Administração Geral 2. Livro 3º de Termos de Irmãos (1696-1733). 13. Livro 1º de Acórdãos da Mesa, 1645-75 e 14. Livro 3º, 1681-1745 (falta o 2º). 34. Livro 2º das Eleições das Mesas e Juntas, 1667-1726 (falta o 1º). 40. Livro 1º do Tombo, 1629-52; 41. Livro 2º do Tombo. 42. Livro 3º, 1686-1829. 195. Livro dos Segredos, 1630-1809.

Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo (Lisboa) Chancelaria de D. Afonso VI. Chancelaria de D. Felipe I. Chancelaria de D. Felipe II. Chancelaria de D. Felipe III. Chancelaria de D. João IV. 1

Os três últimos foram consultados a partir do site www.familysearch.com.

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Chancelaria de D. Pedro II. Coleção Cartográfica, n. 162. Coleção São Vicente, Livros 13 e 23. Colecção Engenheiro Raul Duro Contreiras, mç. 1, n. 51. Conselho Ultramarino, Livro 1º de Decretos. Corpo Cronológico, mç. 15, ns. 104-7. Desembargo do Paço, Leitura de Bacharéis. Desembargo do Paço, Repartição da Justiça e Despacho da Mesa, Livros 7-18. Habilitações da Ordem de Avis. Habilitações da Ordem de Cristo. Habilitações da Ordem de Santiago. Manuscritos da Livraria, Assumptos do Brasil, Livro 1116. Manuscritos da Livraria, Livro 1146, fls. 62-81. Mesa da Consciência e Ordens, Livros 17, 28 e 37. Ministério do Reino, Conselho da Fazenda, Livros 161-2. Registro Geral de Mercês. Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações Incompletas. Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações. Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitandos Recusados, livro 36. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Évora, Processo 5040. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Cadernos do Nefando, livro 12. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor, livros 15, 29 e 323. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processos, 3382, 6360 e 8664.

Biblioteca Pública da Ajuda (Lisboa) 47-VIII-10; 47-VIII-15; 49-X-2; 49-X-10; 49-X-12; 50-V-35; 50-V-36; 50-V-37; 51-V-34; 51-V-41; 51-V-42; 51-V-48; 51-V-75; 51-VI-19; 51-VI-21; 51-VI-52; 51-VIII-12; 51-VIII-18; 51VIII-21; 51-VIII-34; 51-VIII-6; 51-VIII-7; 51-VIII-8; 51-IX-30; 51-X-1; 51-X-2; 51-X-4; 51-X-7; 54-VIII-36; 54-VIII-37; 54-VIII-38.

Biblioteca Nacional de Portugal

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Mss. 208, ns. 10 e 16; mss. 218, n. 134; Fundo Geral, 300-301 e 1555, fls. 138-9 e 329-55; Fundo Reservado, 985, fls. 218-224.

Biblioteca Pública de Évora CVXVI/2-3, fls. 85-98v; CXVI/2-14, fls. 1-8; CXVI/2-15, n. 3; CV/1-17, fls. 285-317; CV/1-7, fl. 123v.

Archivo General de Simancas Guerra Antigua, Legajo 165.

Archivo General de Indias (Sevilla) Charcas 33 (Impresso solicitando licença para comércio por Buenos Aires, s/d, anterior a 1616).

British Library (Londres) Additional Manuscripts: 15170, fls. 202-207v.

Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra Manuscritos 547, 706-7 e 712.

Arquivo da Cúria Municipal do Rio de Janeiro Série da Visita Pastoral, VP38: “Notícias do Bispado do Rio de Janeiro no ano de 1687”.

Biblioteca Municipal do Porto Manuscrito 126: Livro que dá Razão ao Estado do Brasil.

Arquivo do Cartório da Casa da Ponte SG.88-06-0.

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