A FORMAÇÃO DO SINCRETISMO RELIGIOSO NO BRASIL

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A FORMAÇÃO DO SINCRETISMO RELIGIOSO NO BRASIL Prof. Dr. Dilson Passos Júnior

INTRODUÇÃO

Durante décadas, as elites intelectuais do Brasil não se preocuparam frontalmente com os movimentos sociais populares e, referindo-se a eles, o fizeram dentro de uma ótica puramente periférica e acidental. Em outros momentos, tais elementos populares tinham maior beneplácito de romancistas que de cientistas sociais. Atualmente há preocupação com a cultura e a mentalidade popular, não mais como objetos exóticos de estudo e, sim, elementos formadores da própria estrutura sociocultural do Brasil. Dentro da ótica da religião, também se procura entender o pensamento popular como premissa para uma séria intervenção social que parta de pontos concretos. Até bem pouco tempo, o sincretismo era mencionado como atitude de gente ignorante, inculta, supersticiosa mesmo. De um lado atacado como um mal que ameaçava a religião institucional, de outro desprezado com desdém, o fato é que pouco se aprofundava seu sentido étnico, sociológico e religioso. Hoje, muitos autores abordam o problema da escravidão, do negro, da religião sem os preconceitos do passado, procurando ir a fundo às causas que desencadearam o processo do sincretismo. Nosso trabalho tem por finalidade abordar e atualizar o presente tema como elemento construtivo de nossa realidade, que só poderá ser transformada na medida em que for compreendida nas suas estruturas fundamentais. Sincretismo é a “tentativa de combinar ideias de diversas origens, obtendo-se com isso um corpo de doutrinas, que só na aparência são coerentes” 1. De fato, é a tentativa de conciliar o inconciliável e implica sempre numa visão confusa, dando lugar a uma concordância 1

Dicionário de Ciências Sociales, Sebastian del Campo – Instituto de Estudos Políticos Madrid – 1978 – C. Editorial. Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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puramente superficial sob a qual permanecem e subsidiem diferenças insuperáveis. A aparente compatibilidade de princípios díspares vislumbrada nesta falsa síntese acontece a partir de uma defeituosa compreensão dos mesmos. O termo “Sincretismo” é amplo e envolve quase todos os campos do saber humano, desde a Filosofia até a Medicina, da História até a Matemática. O fenômeno sincrético, não raras vezes, está ligado à desintegração de uma sociedade que a leva, de um lado, a salvaguardar desesperadamente valores ancestrais e, de outro lado, a adaptar-se às novas realidades. Via de regra, sociedades decadentes ou em fase de opressão tendem a adaptar-se à nova situação com esforço, às vezes supremo, de sobrevivência. Nenhum povo abre naturalmente mão de sua cultura, costumes, tradição e religião. Mudam lentamente através do contato sistemático e prolongado, no qual novas ideias, valores e elementos diversos vão sendo paulatinamente assimilados. Mas, quando esse encontro se realiza de modo impositivo, a parte mais fraca pode simular consciente ou inconscientemente, mudanças, sem, todavia, comprometer suas raízes que, não raro, mostramse fortes e vigorosas. O sincretismo é, portanto, uma manifestação que Toynbee chama de “sentido de promiscuidade”, característica que segue ao colapso duma civilização que, para sobreviver, absorve elementos da civilização dominadora. No âmbito religioso o sincretismo é algo mais que a simples justaposição de nomes e divindades: implica numa verdadeira fusão de ritos e crenças estranhos entre si na origem. É uma mistura de cultos, doutrinas e morais díspares que aconteceu em quase todas as sociedades para sobreviverem a uma crise profunda. No negro africano teremos a configuração nítida desta crise como veremos neste trabalho.

O Sincretismo em nossa realidade brasileira teve sua origem no contexto da escravidão onde duas culturas diferentes se confrontaram. Este “Encontro” foi marcado com o signo da violência. Não foi contato normal, como entre outros povos, através do comércio, dos portos e caravanas, onde valores culturais podiam ser questionados e/ou rejeitados. Muitos povos tornaram-se sincréticos através deste contato lento e natural. Os gregos, por exemplo, apesar de dominados pelos romanos, marcaram o grande Império nas artes, costumes e religião. O Império foi suporte da helenizarão dos povos dominados. O Sincretismo cultural e religioso nascido desse encontro entre os dois povos representava uma riqueza compartilhada com todos os povos que sofriam a influência do poder central de Roma. No contexto americano, os Ibéricos não contemporizam com vencidos. Espanhóis massacraram impiedosamente Incas,

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Maias e Astecas. A ganância mercantilista dentro da concepção bulionista2 liquidou a tudo e a todos que fossem obstáculos para sua sede de enriquecimento. A ideologia que justificava tal atitude era a de que os europeus eram racial e culturalmente superiores e como tal deviam impor-se sem contemporizações com os povos dominados 3 . Também os portugueses não escaparam a esta mentalidade. Escritos da época (1500-1600) afirmam que a meta dos colonizadores era obter “terras para o Sr. El – Rei e cristãos para sua Igreja”4. Os negros trazidos para o Brasil5 o foram como raça inferior, pagãos e infiéis. O colonizador tinha com estes povos metas bem simples: destruir tudo que fosse nativo, africano, moldando-os social, moral e religiosamente nos padrões pré-estabelecidos por portugueses. Perdiam a condição de pessoa para serem simplesmente propriedade, equiparados a animais de produção 6. Aos seus senhores deveriam submeter-se sob os aspectos físico, moral, religioso e social. Subjugado o corpo do escravo, sua inteligência, porém, manteve-se íntegra7. Sob o açoite do feitor, não se

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Tese econômica, também conhecida como “metalismo”, que predominou no período de expansão comercial, capitaneada por Portugal e Espanha, segundo a qual a acumulação de metais preciosos (ouro e prata) era riqueza. Esta teoria econômica favoreceu a decadência do Império luso-espanhol, enquanto de certo modo impediu que surgissem modos concretos de produção de riquezas, como manufaturas e indústrias a exemplo da Inglaterra. “o ouro fez buracos no Brasil, mosteiros em Portugal e indústrias na Inglaterra. ” (História da 11 Riqueza do Homem – Leo Huberman – 1976 Zahar Editares – Págs. 93-128). “A Espanha foi, no século XVI, talvez o mais poderoso e rico país do mundo. Quando homens inteligentes de outros países perguntavam a razão disto, julgavam encontrar a resposta nos tesouros que ela recebia das colônias, ouro e prata. Quanto mais tivesse, tanto mais rico o país seria. (...) A posse do ouro e da prata, o total de barras um país possuía eram, portanto, índice de riqueza e poder. A maioria dos autores da época se apegavam à ideia de que ‘um país rico, tal como um homem rico, deve ser um país com muito dinheiro, e juntar ouro e prata num país deve ser a mais rápida forma de enriquecê-lo’. (...). Os governos acreditavam nessa teoria de que quanto mais ouro e prata houvesse num país, tanto mais rico este seria. (Ibd). 3 A ideologia justifica em plano intelectual as atitudes de exploração sobre povos inferiores. Ela dá conotação de legalidade ao que moralmente poderia parecer absurdo. 4 Pe. Manoel da Nobrega, citado por Eduardo Hoorneart, Formação do Catolicismo no Brasil, pág.18, Ed. Vozes. 5 “O comércio de escravos africanos para o Brasil teve seu início nos primeiros tempos da colonização. Em meados do século XVII o número de negros superava a população branca. Durante mais de séculos o tráfico negreiro trouxe para o Brasil mais de três milhões de escravos, assim distribuídos segundo Roberto Simonsen: século XVII – ciclo econômico do açúcar – 350 mil negros Século XVIII e XIX – um milhão para os canaviais; 600 mil para a mineração; 250 mil para o café; um milhão e cem mil para outros misteres. Total: 3 milhões e 300 mil negos. (...). Os negros trazidos para o Brasil pertenciam principalmente a dois grupos os sudaneses e os bantos. Os sudaneses compreendiam os iorubas, os gegês, os minas, os fanti e outros. Os bantos eram os angolas, os benguelas, os congos e os moçambiques. Os sudaneses foram introduzidos inicialmente na Bahia, onde se espalharam para as regiões vizinhas. Os bantos foram trazidos para o Rio de Janeiro, Maranhão, Pernambuco, alcançando mais tarde São Paulo, Minas Gerais, Pará e Amazonas”. (História 9 do Brasil – Olavo Leonel Ferreira – 1959 – Ed. Ática). 6 Era comum os negros serem apresentados como mercadorias em mercados especializados, onde seus dotes físicos eram avaliados pelos compradores. Assim, analisavam-nos ao nível de verdadeiros “cavalos humanos”: dentes, musculaturas, etc... 7 Muitos negros não conseguiram o mínimo de adaptação. Tomados de tristeza moral caíram num estado profundo de melancolia, morrendo de inanição. Tal doença do espírito era chamada de banzo, que era a Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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deixaram aniquilar pelo universo de seus dominadores, sendo feroz sua resistência em não abrir mão de sua cultura, ainda que tendo que contemporizar com o mundo branco. O Sincretismo foi, no contexto brasileiro, um grito pela sobrevivência. Os negros assumiram, não raro, o acidental da religião católica, fazendo sobreviver em aparência cristã o essencial de suas crenças ancestrais. Foi uma forma de sobrevivência, de acomodação, uma “saída de emergência” para as populações escravas. O negro não foi absorvido pela sociedade branca brasileira8. O cruzamento de raças foi fruto inicialmente da lascívia do branco pela negra. Na sociedade patriarcal brasileira o lugar do negro era definido e incontestável: cabia-lhe ser mão-de-obra, “máquina” de produção, e, eventualmente, de prazer. As práticas sincréticas representaram, em síntese, a busca de sobrevivência num mundo que não pertencia ao negro e onde nada lhe restava senão submeter-se aos desejos de seus senhores na moral, nos costumes e na própria fé.

nostalgia mortal dos negros da África. Raimundo Correa, poeta brasileiro que viveu entre 1859 e 1911, escreveu o poema Banzo, no qual retrata de modo lírico esta tristeza profunda: Banzo Visões que n’alma o céu do exílio incuba Mortais visões! Fuzila o azul infando... Coleia, brasílico de ouro, ondeando O Níger.... Bramem leões de fulva juba... Uivam chacais.... Ressoa a fera tuba Dos cafres, pelas grotas retumbando E a estralada das árvores, que um bando De paquidermes colossais derruba... Como o guaraz nas rubas penas dorme, Dorme em ninhos de sangue o sol oculto... Fuma o saibro africano incandescente... Vai co’a sombra crescendo o vulto enorme Do baobá...E cresce n’alma o vulto De uma tristeza, imensa, imensamente... 8

“A denominada” democracia racial” é de fato uma falácia dentro da história da sociedade brasileira”. (Um catálogo do Racismo – David Brookshaw – Revista Veja, 12 de outubro de 1983 – págs. 5 a 7) “Castidade, vergonha, recolhimento, pejo, encolhimento, sisudez e modéstia foram sempre o ‘insigne distintivo das mulheres do Brasil’. É verdade, acrescentou, que em muitas mulheres pretas e pardas falte talvez a compostura e sobeje a liberdade’. E mais: ‘não negamos que sirvam (as mulheres de cor) de tentação, mas esta guerra permite Deus no mundo para os vencedores merecerem a coroa da glória’. Palavras que encerraram um grande, ainda que indireto elogio à tentadora beleza das pretas e pardas, da qual se servia o Senhor para 21 experimentar a firmeza do homem branco”. (Casa grande e senzala – Gilberto Freire – 1976 – pág. 423 – Livraria José Olímpio. Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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Neste ensaio nos dedicaremos especialmente ao Sincretismo Religioso, procurando mostrar sua origem dentro do contexto do encontro do mundo africano com o europeu, nascido no mercantismo metalista (1 e 2). Analisaremos inicialmente os elementos indiretos que contribuíram para o encontro dessas duas culturas. Veremos como o contexto políticoreligioso da Península Ibérica se manifestou o catolicismo guerreiro dos portugueses (1.1) que impuseram sua fé católica a povos vencidos e dominados. (1.2). Faremos menção ao mundo e à religião dos portugueses (1.1.1) em confronto com a Cosmovisão africana. (1.1.2) Em seguida apresentaremos os elementos diretos que contribuíram decisivamente para que o fenômeno Sincretismo acontecesse (1.2) e que se dará no encontro histórico-social de brancos e negros dentro do contexto específico da escravidão e da pós-escravidão. (2)

Essa análise histórico-social nos ajuda a entender o Sincretismo do Brasil na sua origem, formação e rumos que assume. Não serão objeto dessa pesquisa outros elementos que, secundariamente, entraram na formação do Sincretismo religioso do Brasil, tais como as crenças ameríndias ou o Espiritismo de Allan Kardec. A exuberância e a importância da cultura negra é o elemento mais determinante do surgimento do Sincretismo como hoje se apresenta.

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1- AS BASES DA FORMAÇÃO DO SINCRETISMO NO BRASIL O Sincretismo como fenômeno religioso no Brasil se deu num contexto específico sócioeconômico-cultural. A fusão religiosa aconteceu quando determinadas premissas históricosociais se colocaram. Se não tivessem sido criadas bases, as práticas sincréticas não teriam a vitalidade e exuberância que apresentam hoje. Existiram fatores, aparentemente isolados, que, ao se somarem ou se cruzarem no processo histórico da formação da sociedade brasileira, favoreceram a formação do atual sincretismo religioso. Nossa análise inicial tomará independentemente cada fenômeno-base como ingrediente do todo do fenômeno sincrético. Posteriormente, procuraremos demonstrar como houve a interpenetração destes elementos díspares na origem, mas que se coligaram dando início a esse processo de fusão socialreligiosa.

O que procuraremos com as bases é mostrar o pano de fundo, o cenário que favoreceu e deu mesmo origem às atitudes sincréticas em nossa terra. Esta análise é fundamental para que, quando abordarmos o aspecto religioso, o façamos dentro de uma dimensão realmente prática.

Como elemento indireto entendemos o modo de ser do branco com os seus interesses mercantilistas e a importância da sua atuação para o mundo da época. O modo de ser do negro está ligado à sua condição de homem desenraizado das florestas e estepes africanas para a condição de mão de obra escrava. Vindo o primeiro da Europa e o segundo da África, ambos tinham conteúdos e categorias próprios. Os elementos diretos dar-se-ão quando o mercantilismo, representado pelo português, e o escravismo, representado pelo negro, se tocarem, se aproximarem e coabitarem inicialmente no espaço físico limitado da fazenda açucareira e, posteriormente, na extração do ouro das Minas Gerais e nos cafezais do Vale do Paraíba. Ao serem legalmente separados em 1888 com a libertação dos escravos e, por conseguinte, com o término do modo de produção escravista, a cópula cultural havia se consumado. Um novo modo de pensar e agir havia ser cristalizado. Não foi apenas um novo modo cultural como somatório das duas culturas representadas pela cozinha, mistura de raças, dança e formas de luta. Uma nova ideologia religiosa havia nascido. O Sincretismo se implantara no Brasil como um novo modo de relacionamento do homem com a Divindade.

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1.1 Elementos indiretos

O surgimento do Sincretismo religioso no Brasil não foi fruto do acaso. Representou o encontro de duas culturas que, ao se unirem, traziam no seu bojo estruturas de mentalidades, costumes e fé. Nessa primeira etapa, desejamos nos voltar para estes primórdios culturais para melhor entender com que mecanismos se estruturavam as duas culturas quando se deu o encontro no modo de produção escravista. Tais elementos, denominados por nós de indiretos, mostram como brancos e negros contribuíram com suas cosmovisões para a formação duma nova mentalidade que determinará uma nova e sincrética visão de mundo.

1.1.1 O elemento branco e sua Cosmovisão

O elemento branco lusitano terá no mundo colonial a força, o poder, a dominação, sendo o articulador da vida colonial, ditando regras e zelando pelos costumes, fé e moral. Todo o Pacto Colonial9 será gerência sua. Outros brancos10 também estarão presentes na articulação e montagem do mundo colonial, mas nenhum estreitará contato tão profundo com o negro como o português. Vindo como colonizador ao Brasil, trará uma marcante herança cultural-religiosa adquirida na Península Ibérica. Herança esta tão forte que se introduzirão nos interesses materiais mercantilistas que os levaram a percorrer mares em busca de riquezas e, de maneira prioritária, metais preciosos. A invasão moura da Península Ibérica marcou fortemente a formação do “Espírito Português”. Durante quase oitocentos anos os habitantes da Península se debateram no combate ao invasor que lhes ameaçava a liberdade política e a fé. Foram mais de setecentos anos em que a pressão moura no sentido sul-norte encontrou a resistência dos habitantes da região meridional. Tantos séculos de resistência acabaram por formar uma mentalidade. A luta 9

O “Pacto Colonial” indica a forma de comércio entre metrópole e colônia, ficando a metrópole responsável de enviar à colônia manufaturados em troca de matéria-prima. Tal forma de comércio dependente desequilibra permanentemente a balança comercial em favor da metrópole comercial em favor da metrópole, condicionando a economia da colônia a um insuperável estado de fragilidade. (cf. A Herança Colonial da América Latina – Ensaio da Dependência Econômica – Stanle J. Stein e Barbara H. Stein – pág. 30-48) 10

Os franceses tentarão várias vezes invasões da terra ou tentativas esporádicas de atos de pirataria: os holandeses chegarão a ocupar a região litorânea do nordeste, deixando aí profunda marca colonizadora; espanhóis estarão aqui, sobretudo pela presença marcante da Companhia de Jesus, chegando inclusive a ameaçar a dominação portuguesa através das denominadas “Sete Cidades”, que nada mais eram que reduções jesuíticas e finalmente os ingleses articularão todo o comércio detendo boas fatias do mercado colonial e também garantindo o transporte marítimo e proteção naval. Esta influência vai bem além da proclamação da República em 1889. Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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contra os mouros foi ao mesmo tempo, luta pela fé e pela liberdade política. O guerreiro no campo de batalha era movido a defender num único bloco a terra e a fé. Tal mentalidade molda ano após ano, geração após geração, acabou por formar o Espírito Português, diferenciando-o do resto da Europa ao assumir uma postura guerreira também no anúncio de sua fé. O interesse mercantilista que movia colonizadores e aventureiros recebia, além da motivação econômica, também um sentido de verdadeira cruzada religiosa. Dom João III, escrevendo ao primeiro Governador-Geral do Brasil, Tomé de Souza, afirmava: “A principal causa que me levou a povoar o Brasil foi que sua gente se convertesse a nossa fé católica 11”. Os colonizadores portugueses, marcados por estas experiências, consideravam conquistar o Brasil e suas outras possessões uma cruzada12. O povo português era uma nação eleita pelo Criador para transformar o mundo em seu Reino. Rei, soldados e aventureiros estão unidos numa grande missão. “Os outros cristãos têm o dever de crer na fé. Os portugueses têm o dever de crer e propagá-la. Nas outras terras, uns são ministros do Evangelho e outros não; nas conquistas de Portugal, todos são ministros do Evangelho”. De certo modo, ao resistir 11

Cf. Formação do Catolicismo Brasileiro 1550-1800 Eduardo Hoornaert – pág. 32

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“Com uma tenacidade jamais vencida, Antônio Vieira aplicada este texto profético sucessivamente ao reino de D. João VI, D. Afonso VI, D. Pedro II... (...) Os animais e os carros simbolizavam os quatros impérios: assírio, persa, grego e romano sucessivamente. Mas hoje surge o quinto império, o Reino de Cristo na Terra, governado pelo Papa (poder espiritual) e pelo rei de Portugal (poder temporal), Portugal foi fundado por Deus para realizar esta vocação: o Reino de Portugal foi fundado no dia 25 de julho de 1139, quando Afonso I Henriques venceu os mouros em Ourique. Deus tinha dado ao Rei na véspera desta vitória: “Quero em ti e na tua posteridade estabelecer meu império” (palavras de Javé a Gedeão no Antigo Testamento). Comenta Vieira: “Todos os reis são de Deus, mas os outros reis são de Deus feito pelos homens: o rei de Portugal é de Deus feito por Deus e por isso mais propriamente seu”. Daí a vocação especial de cada português no sentido de levar o nome de Deus aos gentios, de separar, digo, espalhar o seu nome em terras longínquas. Nas palavras de Vieira: “Os outros homens por instituição divina têm só a obrigação de ser católicos, / o português tem a obrigação de crer na fé / o português tem a obrigação de crer e de propagá-la. A história de Portugal é uma verdadeira história sagrada, uma história da Salvação. Deus vence os islamitas em Ourique, suscita as casas reais de Avis, Bragança, etc... Português é o “seminário” da fé a ser propagada pelo mundo inteiro. As caravelas portuguesas são de Deus. Os portugueses são ‘anjos de Deus enviados aos gentios que o esperam’ (Is 18, 2-7). Soldados e missionários unidos na grande tarefa. Para esta tarefa a união entre o poder temporal e espiritual é necessária. O padroado é uma necessidade ‘Nas outras terras são ministros do Evangelho e outros não: nas conquistas de Portugal todos são ministros do Evangelho’. ‘Não são apóstolos apenas os missionários, senão também soldados e capitães, porque todos vão buscar gentios e trazê-los a lume da fé e ao grêmio da Igreja’. A escravidão negra é um meio de salvação, uma estrada no Reino de Deus. Há uma escravidão maior que a do corpo: a da alma. A salvação está na cruz, no rosário da Mãe de Deus, na fé em Jesus Cristo. Servindo ao seu Senhor aqui na terra, o cativo receberá o prêmio no céu. Estas afirmações são confirmadas por textos bíblicos: Cl 3, 22-24; Ef 6, 5-9; 1 Pd 2, 18-21; Lc 12, 37. “Já me persuado sem dúvida que o cativeiro da primeira transmigração (da África para o Brasil) é ordenado pela sua misericórdia para a salvação da segunda (no céu)”. (Ibd) Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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aos mouros que lhes invadiam as terras, acabaram os portugueses por assumir uma posição verdadeiramente de guerra santa na defesa e difusão da fé. Deviam não apenas expulsar o invasor, mas defender e eventualmente impor a própria fé. Os marcos religiosos serão um sinal dessa unidade entre o Estado e a Religião. Nas caravelas há sempre a presença de sacerdotes para a assistência religiosa de marujos e comerciantes, assim como para a eventual pregação da religião aos povos que encontrassem. A própria cruz é sinal de tomada de posse. Ao fincar o cruzeiro em algum lugar, indicavam pelo sinal religioso a posse política13. E na devoção aos santos, terão destaque aqueles envolvidos nas guerras por causa da fé e por seu Deus. Esta mentalidade, este Espírito Português é fundamental para que se possa entender posteriormente a exploração do negro e as exigências para que fosse cristão. Não são poucos os documentos que mostram de modo inquestionável esta unidade entre os interesses políticos e religiosos em Portugal. Padre Nóbrega, escrevendo ao Rei de Portugal em 1558, diz: “Nosso Senhor ganhará muitas almas e Vossa Alteza muita renda nesta terra” 14.

Se na Península Ibérica existia um grande ardor pela defesa do catolicismo, nada impedia que existissem aí também práticas sincréticas no meio da população. Em Portugal, heréticos eram apenas judeus e mouros, enquanto era corrente o uso de bruxarias, feitiçarias, encantamentos, benzedores, culto às almas, etc... 15Artur Ramos afirma:

O Catolicismo popular de fronte lusitana é de fato um Paganismo supérstite da frase de Sébillot, onde o ritual católico se contaminou com lendas, crenças e rituais populares, superstições que deixam adivinhar reminiscências de velhos mitos e cultos. São ritos de fecundidade, de nascimento, etc., ritos de passagens, práticas mágicas, crendices nos astros, meteoros, das águas, da terra, das pedras, vestígios, enfim, das religiões pagãs16.

Realmente, junto ao conteúdo católico existem em Portugal muitas lendas, onde o fantástico e o extraordinário sempre encontram lugar. A fé portuguesa se liga ao milagroso. O “espírito português” distancia-se por demais da frieza proverbial dos povos nórdicos da Europa. O sentimentalismo faz parte integrante de sua fé. A fria análise não existe na sua estrutura 13

Também no Brasil a cruz foi o primeiro sinal da posse efetiva da nova terra.

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Citado por Egídio Vitório Segna no Livro “Análise crítica do Catolicismo no Brasil” – 1ª Edição – Pág. 17.

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Tais práticas não eram assumidas pela Igreja enquanto tal, mas eram utilizadas mais ou menos abertamente pela população lusitana. 16

Introdução à Antropologia Brasileira – II volume – Rio de Janeiro – pág. 125. Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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psicológica. Duro nas guerras, cruel nas conquistas, tem sua alma tocada pelas manifestações religiosas, sendo capaz de chorar por sua fé e por causa dela torturar e até matar. Tal sensibilidade marcará profundamente sua colonização. A alma lusitana possui um imenso, quase incomensurável senso de grandiosidade, tão destacado pelo poeta Camões em sua obra épica Os Lusíadas. Ele próprio dizia que a grande missão do português era a dilatação da Fé e do Império. Gilberto Freire, na sua obra Casa Grande e Senzala afirma que a autoimagem do português é muito mais próxima de um narcisismo sentimentalista que da realidade17.

Guerreiro, piedoso, sentimentalista, o lusitano será mercantilista por excelência. Aventureiro dos oceanos, transportará para sua empresa colonial a marca do seu caráter, não sendo seu propósito inicial assentar-se em novas terras, mas apenas retirar delas suas riquezas, de modo especial ouro e prata, numa mentalidade eminentemente bulionista. As novas terras, recémdescobertas, o frustrarão por não apresentarem nenhuma riqueza metálica18. A única riqueza inicial será o pau-brasil19 que servia de corante na Europa e era trazido pelos índios até as praias em troca quinquilharias. Será na cana de açúcar que o Brasil terá seu sentido de existir como produtor duma riqueza do mercantilismo internacional da época. Este produto será mola mestra que impulsionará o desenvolvimento inicial destas terras, ensejando a formação duma estrutura social peculiar dessas regiões. E será nessa estrutura social, eminentemente patriarcal, que serão criadas as condições para a formação do Sincretismo.

O Sincretismo terá assim sua origem remota e indireta nos interesses mercantilistas de comerciantes lusitanos que trarão negros para o Brasil como moeda de compra de açúcar 20 e “máquina” de produção. O Português assemelha-se nestas terras a um senhor feudal dos trópicos que, da Casa Grande, exercerá um poder quase absoluto sustentado no modo de 17

Cf. Casa Grande e Senzala – Gilberto Freire – 21ª edição págs. 189 a 195.

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“O interesse metalista continuava presente, mas o contato com os indígenas esclareceu pouco. Dois mundos, duas linguagens diferentes: ‘... mas ninguém o entendia, nem ele a nós, por mais que lhe perguntássemos a respeito do ouro, porque desejávamos saber se o havia na terra’”. (História da Sociedade Brasileira – Francisco Alencar – 1981 – Pág. 11). 19

“Parece perfeitamente claro que a substituição da escravatura indígena pela negra não obedeceu às razões então invocadas pelos interessados e ainda hoje sustentadas por uma historiografia oficiosa. A análise do processo de substituição revela que a mesma se operou em todas as regiões em que a economia se articulou com o comércio internacional”. (O escravismo Brasileiro – Décio de Freitas – 1980 – Pág. 26 – Editora Vozes) 20 J. M. Agossou – Apelos Evangélicos e Antropologia Africana in Concilium, 126 (1977) 47 e 48, edição brasileira, citado por Franziska C. Rehbein no livro Candomblé e Salvação – 1985 – Pág. 21 – Ed. Loyola. Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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produção escravista. No triângulo Casa Grande-Capela-Senzala se estabelecerá fértil terreno para o surgimento de práticas sincréticas.

Estes são alguns traços do colonizador lusitano que, ao assumir a busca das riquezas em terras d’além-mar, atendendo ao capitalismo comercial capitaneado pela Inglaterra, criava condições através do modo de produção escravista da formação dum sincretismo que se constituirá em traço própria de nossa cultura.

1.1.2 O elemento negro e sua Cosmovisão

É complexo falar do africano na África porque, se de um lado existem elementos comuns aos povos que habitam o continente, de outro entre os diversos conglomerados populacionais há individualizações em muitos aspectos. Somos tentados, não raro, numa simplificação sumária, a identificar o negro africano num único bloco. Como nosso trabalho, porém se prende apenas ao problema do Sincretismo no Brasil, iremos traçar um perfil geral das tribos africanas que foram escravas no Brasil e, dentro deste perfil bastante amplo, teremos elementos que nos farão compreender em profundidade a estrutura psicossocial destes diversos povos vivendo o cativeiro da escravidão no Brasil.

Na África a organização destes povos é tribal ao redor dum chefe que mantém a unidade política e administra, cabendo a este líder zelar pelo bem-estar de todos. Em geral não conhecem a escrita, sendo que suas tradições social, moral e religiosa se sintetizam e se transferem de geração em geração através da dança e da música. É impossível conceber um africano que não tenha na dança e na música o meio primordial de expressão de seus sentimentos, de sua fé de sua História e de sua solidariedade social.

O relacionamento hierárquico senhor-escravo nas possessões lusitanas fez com que não se compreendesse e nem houvesse preocupação em decodificar a Cosmovisão africana, que possui uma riqueza intrínseca, não apreendida por observadores superficiais. Nem tão pouco o português, envolvido em seu projeto mercantilista, teria uma visão antropológica profunda de um animal de trabalho já que não havia métodos científicos para o estudo da sociedade. O fato é que muitos observadores da época não apreenderam a riqueza sócio-humano-religiosa destes povos. Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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Uma Cosmovisão não é apenas a ‘representação do mundo’ tal como ele é, mas se fundamenta na compreensão e interpretação de um EU, de um sujeito individual e coletivo. Ele abrange um conjunto de valores, de ideias e ideais e de opções práticas pelas quais uma pessoa ou uma coletividade se afirma; muitas vezes, nem é totalmente consciente; por isso, manifesta-se mais como uma crença que como um ‘saber’21.

Paulo VI, em sua mensagem “Africae Terraram!”, afirma:

A visão espiritual da vida é o fundamento constante e geral na tradição africana. Não se trata simplesmente da chamada ‘concepção animista’ no sentido emprestado a este termo pela história das religiões no fim do século passado. Trata-se antes de uma concepção mais profunda, mais ampla e universal, segundo a qual todos os seres e a própria natureza visível acham-se ligados ao mundo do invisível e do espírito. O homem, em particular, nunca é concebido apenas como matéria limitada à vida terrena, mas se conhece nele a presença e a eficácia de outro elemento espiritual que faz a vida humana ser sempre posta em relação com a vida do além. Esta concepção encontra-se subjacente em todas as instituições comunitárias, políticas e sócio religiosas nos diversos traços culturais, como provérbios, contos, lendas, músicas, esculturas, ritos. (Paulo VI – Mensagem “Africae Terrarum”. Petrópolis – 1968 – págs. 6-7).

Francisca C. Rehbein, na sua tese doutoral Candomblé e Salvação, afirma: “O africano acredita que entre todas as criaturas existe uma profunda interação, uma corrente de forças. Nada se move neste universo sem influir nas outras com sua força e seu movimento. O mundo das forças comporta-se como teia de aranha onde não se pode vibrar nem um só fio sem que se agitem as outras malhas. Não há apenas interdependência entre a realidade e a religião, a religião e a razão, razão e causalidade, senão interdependência ou compatibilidade de todas as disciplinas. Uma teoria médica que se oponha a uma conclusão teológica deve ser rejeitada e vice-versa. A exigência duma compatibilidade mútua de todas as disciplinas elevadas a sistema é a arma principal de Pensamento, Filosofia, Teologia, Política, Sociologia, Direito Agrário, Medicina e Psicologia. Nascimento e morte estão compreendidos num sistema tão lógico, tão compacto, que, ao tirar-lhe uma parte qualquer, desmorona-se a estrutura total.22

Deus é o centro do pensamento africano sem o qual tudo perde o seu sentido, seu significado. Ele se manifesta até nos elementos mais rudimentares da vida natural. E, se na Filosofia grega se poderia se abstrair da existência de Deus sem comprometer todo o sistema de pensamento, o mesmo não acontece com o pensamento africano.

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O africano não é intelectualizado dentro dos padrões ocidentais, mas intuitivo. Enquanto no Ocidente procura-se transmitir as noções embasadas na reflexão e na Razão, o africano o faz através de símbolos e de sinais exteriores. Acredita na existência duma ‘força vital’, uma espécie de força eficiente que move todas as coisas e que está em tudo e em todos. Ela gera tempestades, dá forças ao homem, dá poder aos remédios, enfim, é força vital. É responsável pela vida, sendo bom tudo que a aumente e mal o que a comprometa. Estará plena na saúde e ameaçada na doença. Na procriação, transmite-se com ela a vida, repleta de sua energia. Ela impulsiona tudo que existe. Na língua nagô ou Iorubá chama-se Axé.

Sem Axé a vida ficaria desprovida de toda possibilidade de realização, a existência fica paralisada. Ela é o princípio que torna possível o processo vital. (...) essa simbologia nos ajuda a compreender o significado dos ritos e dos símbolos que constituem uma grande parte da vida religiosa africana, pois toda oferenda, todo sacrifício, assim como todo rito de iniciação e de consagração implicam na transmissão e revitalização do Axé, da força vital.23

Para o africano, o mundo espiritual e material é uma só coisa. Para nós, ocidentais, isto não é fácil de ser assimilado, pois, em nossa estrutura de pensamento distinguimos o material do espiritual, os momentos sagrados dos profanos, os litúrgicos dos seculares... O nosso contato com a Divindade se faz por entrar em oração. Tal concepção não se enquadra na visão africana. O mundo africano é essencialmente uno. Todos os seres do universo são interdependentes entre si em todos os níveis de cosmos: visíveis e invisíveis, sensíveis e insensíveis. Neste contexto a vida é maior dom, o valor supremo, encontrando-se muitas vezes ameaçada por forças que ultrapassam o homem, que lhe suscitam, ao mesmo tempo temor e fascinação. Procuram dominar e aplacar tais forças, tornando-as favoráveis ao seu destino. O homem africano sente-se desprotegido num mundo hostil que o rodeia. Sente-se pequeno frente às forças da natureza que não compreende e não consegue dominar. Torna-se imperativo captar essas forças para superar os perigos que o rodeiam. Acima de todos os mistérios está o próprio homem. Todos os rituais estarão voltados, acima de tudo, para preservar seu dom maior: a vida.

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1.1.2.1 as manifestações religiosas africanas

O africano é monoteísta. Acredita num Deus incriado e criador, origem de todas as coisas e que recebe denominações variadas nas diversas tribos. Seus atributos, porém, são comuns em todos os grupos. Curiosamente, entretanto, este Grande Deus é pouco cultuado e, em alguns momentos, aparece mais como uma força primordial, origem de todas as coisas e sem a qual nada existiria.24 Quase não possuindo culto, não são feitas imagens suas. Os estudiosos não sabem precisar o porquê de tal fenômeno. Enquanto os intermediários, os espíritos e Orixás recebem culto organizado, o Grande Deus parece como que esquecido, recebendo eventualmente alguma breve oração. 25 Nos grandes momentos da vida, nos grandes empreendimentos, diante da angústia e do mistério, o africano se volta para o Grande Deus. Mas no seu dia a dia está muito mais voltado para os intermediários (os Orixás) que resolvem seus problemas do cotidiano. 26

É preciso entender o sentido de intermediário na vida e mentalidade do africano. Para nós, ocidentais, o intermediário representa, na maioria das vezes, um obstáculo para o contato direto com quem desejaríamos falar ou tratar. Na sociedade africana ao contrário, ele é valorizado, pois trata dos casamentos, da restauração da concórdia e mesmo da guerra. Não é impedimento, mas quem promove com rapidez e de modo solene as ações importantes da vida política, econômica, social e religiosa. Assim, o intermediário não se constitui num obstáculo, mas em meio natural de se obter todas as coisas. O Grande Deus (Olorum) é a fonte e a origem de todas as coisas. Os Orixás, concebidos como antepassados divinizados ou como forças da natureza, tratam da dinâmica da vida no dia a dia. Os Ancestrais/Orixás viveram na terra em eras remotas quando fizeram obras importantes como a descoberta do fogo, o ensino

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Il faut reconnaitre que les panthéons africains à bien des confusions. La découverte de la croyance en un Être Suprême a été assez tardive, car une profusion de cultes communautaires s’adressait à des intermédiaires, Esprits, Ancêntres, Génies que peulent la bousse et la forêt, les fleuves et les sources. Les uns viventes sous la terre, à la maniére d’une famille humaine. Les autres circulent et sont tout près des vivants ou dans les bois sacrés ou dans leur ofre des libations et des sacrifices. Les uns sont bénefiques. Les autres, moins nombreux à ceux qui transgressent leur lois. Les uns et les autres contribuent à l’ordre du monde et constituent une veritable ‘chefferie céleste’ sous l’autorité du ‘Grand Dieu’”. (H. Gravrand citado por Franziska C. Rehbein - Candomblé e Salvação – Pág. 28). 25

Ibd – Págs. 28-29.

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Coleção “Os Orixás” – 12 opúsculos – Editora Três. Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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da caça, a cura contra a peçonha de animais perigosos, etc... e, agora são invocados para estas finalidades. É dentro da Cosmovisão africana, cujo valor supremo é a vida e a unidade de todas as coisas, que devemos procurar compreender o conceito de Orixá. Possuindo um Axé muito forte e poderes excepcionais, esses antepassados, após a morte, desfeitos todo elemento material, tornaram-se energia pura, Axé, força vital do material. Sendo assim, o Orixá torna-se perceptível aos homens, incorporando-se em um membro de sua descendência. Este vem a ser o vínculo que lhe permite voltar à terra para saudar descendentes e devotos e receber suas provas de respeito e veneração. Para conseguir proteção do Orixá e, ao mesmo tempo revitalizar e dinamizar o fluxo de seu Axé são feitos sacrifícios e oferendas. Por sua vez, ele protege e mantém em boa situação aquele que é fiel em oferecer-lhe os sacrifícios e oferendas prescritas. Devemos, portanto, distinguir (...) duas dimensões: a primeira é Deus, o Ser Supremo que preside à ordem do mundo, embora pareça afastado; na segunda estão os ‘deuses’, intermediários e manifestações dos atributos de Deus e, em geral, personagens que viveram entre nós.27

O homem africano sente-se elemento direto do universo, identificando-se com ele. Possuidor de inteligência profunda, não possui espírito discursivo, mas intuitivo. Sua Metafísica brota da vida. Intrinsecamente religioso, não distingue, como dissemos anteriormente, o invisível do visível. Para ele tudo é uma só realidade. O mundo é uno. O Mistério, o Sagrado, o Divino, fazem parte do seu cotidiano e não se assustam diante deles. O invisível está presente em cada momento da vida africana sendo controlado por dos ritos mágicos. A Palavra possui um poder mágico quando pronunciada e é eficaz por estar impregnada de Axé. Ela sai da pessoa que a pronuncia e, quanto maior for a energia do mitente desta Palavra, maior será sua força.28 Uma bênção ou uma maldição são eficazes quando emitidas por uma pessoa de forte Axé. É natural que seja valorizada a palavra numa cultura em que a tradição oral é praticamente o único meio de se perpetuar a cultura e a religião. A criança ouve o pai com veneração, pois a palavra do pai é de certo modo a palavra do ancestral que transmitiu de geração em geração o sentido da vida e os segredos do mundo. Percebemos o valor sagrado da Palavra. Próximos aos sons e à Palavra encontraram a música, a poesia e o ritmo.

Para o africano, o ritmo é a arquitetura do ser, o dinamismo interno que lhe dá forma, o sistema de ondas que circulam dentro dum outro individuo. O ritmo é o choque vibratório, a força que, através dos sentidos, lhe faz perceber a raiz do ser; expressão, portanto, da vida. (...) A dança não é totalmente profana: pelo seu dinamismo, ela aumenta a vida. As alegrias que dela brotam e as energias negativas que elimina contribuem para o equilíbrio do homem e da comunidade. Na África, todos dançam, e os velhos, que são os mais sábios, dançam mais que os jovens. Os 27

Ibd – Págs. 31-32.

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Esta força da palavra chega a ter, guardadas as devidas proporções, certa analogia com a Palavra Contida (logos endiatetós) e a palavra proferida (logos proforikós). Não estaria aqui de alguma forma a “semente do Verbo”? Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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espectadores, muitas vezes, entram na dança ou a acompanham com batidas de mãos ou cantos. Em qualquer cerimônia, em qualquer espetáculo, todos são espectadores e atores. Deste modo, a dança é, simultaneamente, alegria e libertação, catarse e realização do entusiasmo sagrado, elemento importante e indispensável na vida africana. 29

A dança, a música, a palavra, são elementos essenciais não somente da convivência étnica, clânica ou tribal, mas constituem de fato elementos fundamentais da manutenção, preservação e mesmo sobrevivência da cultura como um todo. Através destes meios, a História, os costumes e a fé são transmitidos de geração em geração. Retirar estes elementos de um africano é descaracterizá-lo, é desestruturá-lo do seu próprio sentido de ser.

1.1.2.2 a vida familiar e comunitária

Não se pode entender o africano só. Ele vive com. A hospitalidade, a profunda sensibilidade, o amor e a solicitude marcam decisivamente a famílias que se reúnem no clã, tendo por base a identidade de sangue o que os leva a venerar os mesmos ancestrais.

O Clã aparece como meio vital comunidade de vida e de subsistência. É o ponto de intercâmbio entre os mortos e os vivos, encontro do mundo visível e invisível, o centro da unidade que dirige o ser de cada individuo. em todas as suas relações com antepassados, parentes e estranhos. No interior dos clãs, vivos e defuntos convivem num ritmo idêntico, numa constante simbiose constitutiva do mesmo. 30

Dentro das crenças africanas, é muito importante o intercâmbio entre vivos e mortos, pois trocam, de certo modo, favores. Os antepassados necessitam dos ritos e sacrifícios dos vivos e estes, por seu lado, precisam de apoio e proteção. Na troca de favores, mais e mais se solidifica essa relação. O clã recebe maior força quando, unido a outros clãs, forma uma tribo. O chefe é escolhido e constituído com poderes especiais porque é o que representa os ancestrais, recebendo destes uma assistência própria. O Chefe, quando investido da liderança, sofre uma modificação profunda, adquirindo uma nova maneira de ser que se manifesta não somente pela troca de nome, como por um novo modo de agir, já que encarna e prolonga a autoridade dos antepassados. Seu poder é forte porque deriva do invisível. Ele é o

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prolongamento da força vital dos ancestrais. É o ponto de encontro entre o mundo visível e invisível, assegurando a unidade e coesão do grupo 31.

O africano é essencialmente solidário, horizontal e verticalmente, com seus contemporâneos e com as divindades, com os irmãos de sangue e com os antepassados. Esta solidariedade é de difícil compreensão para o espírito individualista ocidental. O ideal fundamental do homem africano é viver, possuir força vital, procurando vivê-la de forma íntegra. Esta força vital não é totalmente humana, já que os anciãos decrépitos são seus portadores em maior grau. Ter essa força vital é ter a integridade do ser32. A fonte desta vida é Deus, o Ser Supremo. Os elementos que existem fora d’Ele têm como função colaborar de alguma forma na manutenção da força vital que é, em sentido mais profundo, o próprio Deus. A morte vem significar a perda dessa força vital, o aniquilamento. Isto, porém, não é levado a um ponto de desespero, pois o africano conserva na sua descendência a perpetuação dessa força vital de que é possuidor. Sexualidade, Paternidade e Maternidade assumem um sentido profundo dentro dessa cultura. Morrer sem filhos é considerado a maior desgraça. A esterilidade é vista como a morte em vida. Aliás, tal mentalidade é também comum aos orientais. Morrendo e deixando descendência, o homem volta ao Orum 33, para reencontrar-se com seu duplo que aí reside desde o momento da criação. Já que se acredita numa vivência de alma, os ritos funerários são tomados de significativo vigor. A morte passa a ser um modo de ser e, portanto, a casa dos Orixás será uma construção natural da aldeia onde residirão os antepassados. Eles não ficam perdidos no tempo, mas permanecem cuidando dos interesses do seu povo. Não partiram, mas estão vivos, certamente diferentes, porém presentes na vida do seu clã. Como já afirmei mais de uma vez, o mundo visível e o invisível são uma única coisa para o africano, sendo tão reais e tangíveis que formam um só universo.

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O rito pelo qual uma pessoa é constituída em autoridade não é apenas uma ação jurídica. O chefe investido sofre uma mudança profunda, adquire uma nova maneira de ser, o que se expressa pela adoção dum outro nome e de um comportamento diferente que encarna e prolonga a autoridade dos antepassados. O chefe é prolongamento da força vital dos ancestrais, sua voz viva reúne todo o grupo. Seu poder oferece garantias porque deriva de uma união com o invisível. E, sobretudo uma autoridade religiosa cujo papel, como intérprete da vontade dos antepassados, consiste principalmente em manter a comunhão de vida pela observância da tradição. É o ponto de encontro entre o mundo invisível e o visível, assegurando a unidade e a coesão dos grupos – Ibd – Pág. 44. 32

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O mundo dos homens é a imagem e o prolongamento do mundo invisível, no qual se encontram os falecidos, os ancestrais, os espíritos, os intermediários entre os homens e a divindade. O mundo do invisível se visibiliza nos símbolos. Daí a importância dos ritos, das cerimônias, dos cultos. Tudo é rito, mesmo o mais simples gesto humano. Para o africano sua arte, sua música, sua dança são expressões variadas de sua religiosidade. Em nenhuma parte do mundo, a religião impregna tanto a vida social e cultural como na comunidade africana. 34

Dentro da ética africana, bom é tudo que reforça a vida, e mau tudo que ameaça. A magia visará restabelecer as forças do bem, enquanto que a feitiçaria se voltará para o mal, ainda que seja sempre mal vista socialmente, porque combate a vida ou a diminui em seu esplendor. O feiticeiro será privado da imortalidade.

Estas colocações da cultura africana são fundamentais para entendermos mais adiante os mecanismos que realizam a aproximação teológica entre a religiosidade africana e o catolicismo, ainda que nascida da violência e da escravidão. Mas o encontro no nível religioso não foi tão antagônico quanto possa parecer num primeiro momento, pois de certo modo haverá aparentemente semelhança entre a linguagem religiosa e a metafísica de ambas as manifestações religiosas. As práticas religiosas africanas e mesmo a sua fé irão encontrar uma certa compatibilidade com o catolicismo. Os pontos de aparente contato entre o catolicismo e o africano são muito mais numerosos do que pode parecer à primeira vista. Esta ambígua similitude oferecerá espaço para as práticas sincréticas.

1.2 Elementos diretos Nos elementos denominados por nós de indiretos procuramos apresentar o pano de fundo, as bases em que se estruturavam a psicologia e a organização social lusitana e africana. Agora é nosso intento mostrar como se deu o encontro entre a cultura portuguesa e a africana, sendo efetivamente o encontro entre dois mundos. Esse contato sociocultural se deu dentro duma realidade concreta e num determinado momento histórico. O Mercantilismo lusitano com seus interesses bulionistas ensejou o modo de produção escravista na América, reunindo num mesmo espaço geográfico povos e nações diferentes. Será nos verdejantes canaviais nordestinos que negros e brancos se unirão para produzir riquezas para o mercantilismo europeu. Este contato continuará na extração do ouro nas Minas Gerais e terá seu final, enquanto modo de produção, nos cafezais paulistas. A convivência diária foi fundamental para o surgimento de atitudes sincréticas que posteriormente se solidificaram em duas atitudes 34

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básicas em nossa realidade brasileira. Dum lado, a religiosidade popular, já com certa origem portuguesa, mas acrescida de elementos africanos e, de outro as diversas formações africanizadas da religião, possuindo matizes que vão de certa fidelidade às práticas religiosas africanas até às que assumem características tipicamente católicas.

1.2.1 Causas históricas do sincretismo no Brasil: mercantilismo e escravismo

O modo de produção escravista foi frequentemente utilizado por povos da antiguidade. Roma baseou boa parte de seu vasto Império neste modo de produção. No Brasil, ele surgirá não duma simples necessidade de mão de obra, mas por uma articulação gerada pelos interesses mercantilistas da época. Um estudo de História arcaica que perdurou no Brasil por muito tempo, afirmava que o indígena não era usado como mão de obra por ser indolente e incapaz do trabalho braçal, tendo-se então necessidade de importação de mão de obra negra, vorazmente absorvida pela insaciabilidade do latifúndio. Todavia, tal afirmação não é a mais aceita por importantes segmentos de historiadores do Brasil, já que se constata que o indígena foi usado como mão de obra no interior de São Paulo e nas reduções jesuíticas, mostrando-se tão eficientes quanto os negros no nordeste. A mão de obra negra foi utilizada nos setores econômicos onde existia estreito relacionamento com o Mercado Internacional, funcionando como moeda de troca. 35 Não era trazida ao Brasil pelos colonizadores portuguêses como a única forma de suprir o latifúndio canavieiro; era, antes, o melhor meio de resolver o grande problema da mão de obra para as grandes extensões de terras sem se dispender reservas de ouro ou prata na compra. É necessário que nos situemos no momento histórico-econômico dos séculos XV a XVIII onde a tese econômica do Metalismo predomina como dogma econômico quando se acreditava que riqueza era o acúmulo de metal precioso, especialmente o ouro e a prata. Qualquer pagamento com este tipo de moeda representava uma descapitalização e, apesar de o açúcar bruto do Brasil ter preços relativamente baixos para o europeu mercantilista, o dispêndio de ouro seria uma perda significativa nos lucros auferidos no comércio internacional. Assim, procurava-se pagar o açúcar com manufaturas europeias e com o negro, moeda altamente valiosas nas colônias latifundiárias.

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“A verdadeira explicação da escravatura negra não só no Brasil, mas também em toda a América Latina bem como na América do Norte é de ordem puramente política e econômica. Escravatura era concebida no século XVI como uma instituição mundial e no Novo Mundo como estrutural e imperativa. O problema da escravidão era uma decorrência do sistema político e econômico do regime colonial inglês, francês, português e espanhol”. (O Negro e a Igreja – J. E. Martins Terra – 1984 – Pág. 35 Edições Loyola) Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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Eric Williams em seu livro Capitalism and Slavery afirma que a escravidão na América esteve coligada com os interesses mercantilistas da época em sua famosa tese triangular, segundo a qual os comerciantes sempre se utilizavam de moeda forte 36 contra produtos locais baratos, mas que, levados a outras regiões, tornavam-se aí moeda forte de aquisição de produtos locais. O mecanismo era o seguinte: trocavam-se manufaturas adquiridas na Europa por negros nas costas africanas; nas colônias americanas, permutavam-se os negros por matérias-primas ou produtos já manipulados (açúcar, ouro, café), que eram vendidos na Europa por altos preços em troca de ouro e de matéria-prima que novamente seriam levados à África para dar continuidade ao processo.

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“O que talvez tenha importado não é a rarefação de aborígenes e a dificuldade de seu apresamento e transporte, mas a ‘preferência’ pelo africano que revela, mais uma vez, a engrenagem do sistema de relações tendentes a promover a acumulação primitiva da metrópole. Ora, o tráfico negreiro, isto é, o abastecimento da colônia com escravos, abria um novo e importante setor de comércio colonial, enquanto o apresamento do indígena era um negócio interno da colônia. Assim os ganhos comerciais resultantes da apreensão dos aborígenes mantinha-se na colônia, com os colonos empenhados neste ‘gênero de vida’. A acumulação gerada no comércio africano, no entanto, fluía para a metrópole e os mercadores desta realizavam-na engajados no abastecimento desta ‘mercadoria’. Esse talvez seja o segredo da melhor ‘adaptação’ do negro à lavoura escravista.” (Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial – Fernando Novais – Ibd – Pág.105 – Hucitec – São Paulo). Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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TESE TRIANGULAR (Eric Williams)

EUROPA Abundância de Manufaturas

Quase total ausência de ouro nas transações comerciais (ERIC WILLIANS) (ERIC WILLIAMS)

AMÉRICA Abundância de matéria- prima

NEGROS

AFRICA Abundância de mão de obra negra

Os lucros de tais transações oscilavam entre 100 a 300% ou mais. Este comércio triangular Europa-África-América fomentou a produção manufatureira europeia, ensejando a acumulação de capital precursor da Revolução Industrial e permitindo ainda a chegada de grandes contingentes de negros no sul dos EUA, Antilhas e Brasil, absorvidos imediatamente pelos latifúndios, canavieiros nas Antilhas e Brasil e plantações de fumo e algodão no sul dos Estados Unidos. O que conferia a este comércio uma alta taxa de lucros era a obtenção de matérias-primas americanas mediante o pagamento duma moeda ridiculamente barata para os comerciantes, mas supervalorizadas, no caso, pelos grandes proprietários da América do Norte (plantations) e dos latifundiários antilhanos e brasileiros na plantação de cana-de-açúcar e sua manipulação. Esta moeda era o Negro. O Mercantilismo europeu salvaguardava seu capital (ouro), já que tanto maior fosse o contingente de negros trazidos para a América, Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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menor seria sua descapitalização no que tange a metais preciosos. Além desta articulação internacional, o negro, como mão de obra, representou a única solução viável para a organização social, econômica e administrativa para o latifúndio canavieiro.

MATÉRIA-PRIMA a baixo preço

PACTO

COLÔNIA

METRÓPOLE

COLONIAL

MANUFATURAS a alto preço

Pela própria estrutura do pacto colonial, onde a colônia se colocava como fornecedora de matéria-prima para a metrópole que retribuía com manufaturados, o engenho de açúcar do Brasil, sobretudo em sua implantação inicial, não teria condições de se formar sem a decisiva contribuição da mão de obra escrava que se tornava mais fácil de aquisição que o índio, que deveria ainda ser caçado no interior do continente com todos os obstáculos naturais de uma colônia ainda em fase embrionária de exploração e ocupação.

Pouco valorizado nos portos do Brasil, em proporção aos preços oferecidos no mercado europeu, o açúcar é riqueza para a colônia enquanto se apoia na mão de obra escrava, já que se gasta o mínimo necessário com a escravaria, sendo que a totalidade do necessário para sua sobrevivência era retirado aqui da própria colônia por eles mesmos. O custo do escravo estava mais na compra das primeiras “peças” já que aqui se reproduziam. A mão de obra para grandes extensões de terras cultivadas deveria ser essencialmente barata, sem o que a estrutura da produção canavieira abriria falência. 37 Quanto mais negros empenhados na 37

Apesar da mecanização de boa parte dos grandes latifúndios, existe ainda hoje a colheita de cana-de-açúcar feita manualmente por mão-de-obra dos “boias-frias”, quando a mecanização atinge apenas o transporte e o processamento industrial, como moagem, fervura e refinamento. Tem havido por parte do Estado o esforço para Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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produção, mais riquezas. Partia da própria estrutura colonial a necessidade insaciável de mão de obra escrava. Qualquer que fosse o número de negros trazidos para o Brasil, seriam de imediato absorvidos pelos latifúndios. Juntavam-se os interesses do mercantilismo internacional com a sofreguidão insaciável das imensas terras carentes de braços. Calcula-se que nas costas brasileiras aportaram entre cinco a dez milhões de negros.

O trabalhador negro será a mão de obra que dará sucessivamente sustentação aos ciclos econômicos do Brasil colônia e Império: nos canaviais do nordeste, na extração do ouro nas Minas Gerais e no ciclo do café do Vale do Paraíba fluminense e paulista. Com a industrialização, a Inglaterra passa ter necessidade de mercados consumidores que atendam aos seus interesses comerciais38, o que corrobora para que esse país, antes mentor do tráfico negreiro, se “engaje” nas campanhas humanitárias abolicionistas, seguindo o modelo americano que já havia dado liberdade aos negros. A isso se soma, no Brasil, a interiorização do café para o oeste paulista com a utilização de mão de obra livre vendo-se no modo de produção escravista algo economicamente ultrapassado, o que criaria menos obstáculos à libertação dos negros no Brasil (1888). O uso da mão de obra escrava deixou de ser lucrativa nos cafezais que exigiam pouco trabalho depois de plantados. A libertação, porém abalou de imediato o combalido sistema político imperial brasileiro, apresando a queda do Império (1989) após a Lei Áurea. Os fazendeiros de café do Vale do Paraíba, não tendo se modernizado, não estavam em condições de manter suas fazendas sem a mão de obra escrava. Muitos foram à ruína. O Império perdia sua ultima base de sustentação política já que havia perdido anteriormente o apoio da Igreja e do Exército, naquilo que a historiografia brasileira definiu como Questão Religiosa e Questão Militar. Não respondendo mais aos interesses do Mercantilismo o negro era desligado deste sistema sendo posto, ispso facto, às margens dos novos modos de produção e da sociedade. Nos mocambos e favelas, hostilizados pela sociedade branca, os negros terão que reinventar não só sua sobrevivência, como também sua cultura e mentalidade, cruelmente dilaceradas pelos interesses econômicos que os arrancaram da mãe África.

garantir os direitos básicos e condições dignas para essa massa de trabalhadores, o que não impede que em alguns lugares a legislação seja ludibriada. 38 Cf. O Escravismo Brasileiro – Décio de Freitas – 1980 – Pág. 96 – Editora Vozes. Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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A dolorosa peregrinação pelo Brasil desta mão-de-obra influenciou na formação duma nova mentalidade. Ainda que escravo, objeto ou coisa no mundo dos brancos, o negro não só sofrerá influência, mas deixará também sua forte marca na linguagem, na cozinha, nos costumes e na religião. A identidade do Brasil, enquanto cultura e nação, seria outra, caso os povos africanos não tivesse feito parte de sua História. A contribuição da cultura negra não foi em nenhum momento periférica, mas se estabelece como um dos principais fundamentos de nossa nacionalidade e de nossa identidade cultural.

1.2.2 Causas sociais do sincretismo no Brasil O primeiro branco a aportar no Brasil foi o aventureiro39. Não se pode falar em sociedade no Brasil nesta primeira etapa, quando expedições exploradoras e guarda-costas procuravam, de um lado conhecer as novas terras e, de outro, defendê-las de países invasores. O Brasil, recém-descoberto, frustrou os interesses mercantilistas dos portugueses, já que não encontraram nem metais preciosos e nem mercado consumidor, já que os selvícolas viviam em estado natural como povos pré-históricos. A única riqueza disponível era o pau-brasil que servia como corante, não competindo, porém em lucratividade com produtos oriundos de outras áreas de colonização portuguesa, como a África e Ásia. No inicio da colonização não há organização social no Brasil, existindo no seu litoral apenas feitorias, simples armazéns de recolhimento de pau-brasil a ser embarcado para Portugal. A partir do cultivo da cana-deaçúcar em Pernambuco e na Bahia é que acontecerá o assentamento do homem à terra de modo definitivo, fomentando a organização social, religiosa e econômica. A família legitimamente constituída desempenha um papel moralizador na colônia, onde a mãe, a esposa e a filha passam ser referenciais de respeito e moralidade. A figura do padre capelão, agregado ao latifúndio, dá também estabilidade ao sistema com os valores da religião. O latifúndio é um “feudo dos trópicos” que ainda eu não reproduza exatamente a estrutura do feudalismo europeu, o senhor de engenho assume para si funções legislativas, executivas, judiciárias e religiosas40. Os latifúndios, distanciados por léguas, fazem menos contatos entre 39

Cf. História da Sociedade Brasileira – Francisco Alencar – 1980 – Ao livro Técnico - Pág. 8-9. “A Casa Grande, completada pela Senzala, representa todo um sistema social, econômico, político de produção: a monocultura (latifundiária); o trabalho (escravidão); o transporte (carro de boi, o banguê, a rede, o cavalo); religião (o catolicismo da família, com o capelão subordinado ao ‘Pater Familiae’, culto dos mortos, etc...); vida sexual e família (o patriarcalismo polígamo); a higiene do corpo e da casa (o ‘tigre’, a touceira de bananeira, o banho de rio, o banho de gamela, o banho de assento, o lava-pés); a política (o compadrismo). Foi ainda, banco, cemitério, hospedaria, escola, santa casa de misericórdia amparando velhos e viúvas, recolhendo órfãos”. (Casa Grande e Senzala – Gilberto Freire – Prefácio – Pág. 13). 40

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si do que com a Europa, já que têm poucas coisas a oferecerem entre si, enquanto que para a Europa enviam o açúcar bruto, posteriormente refinado na Holanda, recebendo máquinas de engenho, manufaturados e, por tabela, escravos da África. Esse português latifundiário tem suas raízes na Europa, cuja vida procura reproduzir. No apogeu do ciclo do açúcar, procura-se copiar o estilo de vida do velho mundo. Nas casas grandes o mobiliário, as alfaias e as baixelas são refinadas, tudo trazido da Europa. As filhas falam francês e os jovens são enviado a Lisboa ou Paris para lá se educarem como doutores41.

A arquitetura dos latifúndios canavieiros explicita a estratificação sócio-econômica-cultural desta primeira sociedade brasileira: Casa Grande-Senzala-Capela. A Casa Grande, residência do senhor de engenho é o centro de poder: ampla, com grandes salões, muitas dependências, móveis finos da Europa, mostrará, por sua suntuosidade, o poder de seu proprietário42. Esse Senhor de Engenho terá, eventualmente, foros de nobre e, como no medievalismo europeu, a terra será seu grande título. A Senzala, habitação coletiva dos negros, abrigará a mão de obra escrava, força braçal da grande propriedade. Relegada ao último plano social no cenário latifundiário, representará de fato o primeiro lugar no plano econômico, pois dela virá toda a riqueza. A Capela, finalmente, será o lugar de encontro entre todos os elementos deste mundo. Nela, de certa forma, se criará a justificativa de todo o sistema social vigente. Muitos autores modernos indicam-na como elemento gerador de uma ideologia que justifica a própria escravidão 43 . Os negros serão vistos como cristãos de segunda categoria frente aos seus senhores porque participantes, ao menos formalmente, da mesma religião. A Capela foi um elemento importante na estabilidade social do engenho. Aos negros, ela indicará a virtude da paciência, da obediência e da esperança dum mundo melhor na eternidade. Aos brancos, se dará a tranquilidade e a certeza de que dão aos negros o maior dom: a fé. A ideia do 41 42

O título de “doutor” tem até hoje certo aspecto de magia para grande parte dos brasileiros. O mesmo modelo se reproduzirá nos Estados Unidos com os grandes casarões no mundo das “plantations”.

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“Não há trabalho nem gênero de vida no mundo mais parecido a cruz de Cristo que o vosso em um destes engenhos. Bem-aventurados sois vós se soubéreis conhecer a fortuna do vosso estado, e com a conformidade e imitação de tão alta e divina semelhança aproveitar e santificar o trabalho. Em um engenho, sois imitadores de Cristo crucificado porque padeceis em um modo muito semelhante ao que o Senhor padeceu na cruz, além de toda a sua paixão. A sua cruz foi composta de dois madeiros e a vossa em um engenho é de três. Também ali não faltaram as canas porque duas vezes entraram na paixão. Parte da paixão de Cristo foi à noite, sem dormir, e parte foi de dia sem descansar, e tais são as vossas noites e os vossos dias. Cristo despido e vós despidos; Cristo sem comer e vós famintos; Cristo foi maltratado e vós maltratados em tudo. Os ferros, as prisões, os açoites, as chagas, os nomes afrontosos, de tudo isso se compõe a vossa imitação, que se for acompanhada de paciência (grifo nosso), também terá merecimento de martírio”. (Sermão a uma irmandade de pretos de um engenho do Recôncavo Baiano em 1633 – Sermões – Padre Antônio Vieira). Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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tutelamento por uma raça, cultural e religiosamente superior justifica a própria escravidão44, e a esperança escatológica é vista, no plano ideológico, como elemento profundamente estabilizador da escravidão. Ela dará, senão uma explicação da escravidão, pelo menos um bálsamo-esperança para uma vida futura para os que forem bons, cumprirem com dedicação e honestidade seus deveres.

O sacerdote desta estrutura será apenas um subalterno do senhor de engenho, um agregado, dependendo também ele em seu sustento deste senhor, não podendo, pois questionar a escravidão. No Brasil colônia seu contato era bem maior com o senhor de engenho do que com o próprio bispo45, contato ainda mais distante pela falta, na época, de eficientes meios de comunicação. Absorvido pela vida da casa-grande vivia como modesto, mas respeitado funcionário, dando bênçãos, aulas aos filhos do senhor, puxando terços, dizendo missas e eventualmente visitando algum doente. Alguns autores afirmam que não poucos sacerdotes perdiam o élan que os animava no início de seu sacerdócio, adequando-se à mole vida das fazendas e mesmo atendendo com certo enfado aos negros, dos quais exigiam apenas que soubessem algumas fórmulas de catecismo e de orações para ministrar-lhes os sacramentos. É lógico que existiram dentro deste contexto sacerdotes zelosos que realmente se preocuparam com uma séria evangelização da Senzala. Isto, porém, não foi regra geral. Não resta dúvida de que os sacerdotes exerciam importante papel de mediadores dentro da estrutura colonial, pois atalhavam brigas, eram força moral, mediadores nas súplicas dos escravos aos senhores. Mas também, na qualidade de subalternos, eram obrigados a fechar os olhos frente aos desmandos morais tão comuns aos senhores e a consolarem as senhoras nos desregramentos dos maridos e filhos. Muitos sacerdotes, formados em Roma, acabaram por assumir a vida e o modo de ser do Brasil Colonial, nem sempre sendo este modo de ser correto nos negócios e na moral. 44

“Os “decimentos” ou “reduções jesuíticas”, bem como a escravização do negro girava em torno deste princípio, pois era necessário libertá-los – indígenas e negros – de sua “ignorância invencível” na qual estavam mergulhados e iluminá-los com a luz do Divino Espírito Português, mesmo que por isso fosse necessário usar a força. Aliás, ela nunca foi dispensada”. (A Evangelização do Negro no Período Colonial Brasileiro – João Manoel Lima Lira – 1983 – Pág. 39 – Edições Loyola). 45 “Os Jesuítas sentiram, desde o início, nos senhores de engenho seus grandes e terríveis rivais. Os outros clérigos, e até mesmo frades, acomodaram-se, gordos e moles, às funções de capelães, padres-mestres, tiospadres, padrinhos de meninos, à confortável situação de pessoas da família, de gente de casa, de aliados aderentes do sistema patriarcal, sendo que no século XVIII muitos deles moravam na própria Casa Grande. Contra os conselhos, aliás, do jesuíta Andreonni, que enxergava nesta intimidade o perigo da subserviência dos padres aos senhores de engenho e ao demasiado contato – não diz claramente, mas insinua com meias-palavras – com negras e mulatas moças. Ao seu ver, devia o capelão manter-se ‘familiar de Deus e não de outro homem’; morar sozinho, fora da casa grande e ter por criada uma escrava velha. Norma que parece ter sido seguida raramente pelos vigários e capelães dos tempos coloniais”. (Casa Grande e Senzala – Gilberto Freire – 21ª Edição – Pág. 195 – Livraria José Olímpio) Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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As senhoras de engenho cabia à parte mais social e religiosa nas senzalas e nos casebres. Aliás, é típico da sociedade brasileira anexar à ideia do padre mais a doçura das mulheres que ao aspecto rígido dos senhores. Serão elas que, de certo modo, junto com a religião e os sacerdotes irão dar um aspecto mais suave ao sistema escravista.

Enquanto o feitor personifica a lei e a disciplina do engenho, o senhor é visto, em alguns casos como homem-bom, cabendo ao seu testa de ferro a responsabilidade direta pela produtividade dos escravos e por eventuais castigos. É a força policial fazendo que a escravaria seja submissa às duras leis do trabalho e da obediência. Gilberto Freire magistralmente46 analisa como se desenrolava a vida de brancos e negros na fazenda. O colonizador europeu, vindo das lutas pela reconquista das terras portuguesas dos mouros e como aventureiro na conquista de terras no novo mundo, ao se tornar proprietário amolenga-se na vida pessoal. As moças, rodeadas de escravas a fazer-lhes as mínimas vontades, perdem pouco a pouco a fibra. As mulheres nos casarões, rodeadas por escravos, não têm muita coisa a fazer durante o dia, salvo ir à missa e a algum eventual sarau noturno. Indolentes, tornam-se cheias de caprichos. Os homens, além de administração, passam o dia no comando. Cria-se no português um atrativo irresistível pelas negras e, posteriormente, pelas mulatas. A aparente moralidade esconde de fato a vida dissoluta dos homens desde a puberdade. Afinal, no Brasil, haverá uma dupla moral, rígida para as mulheres e liberal para os homens. E neste mundo fechado, com suas leis consuetudinárias, terá inicio a sociedade brasileira.

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“(...) a vida das aristocracias do açúcar foi lânguida, morosa. (...) os dias se sucediam iguais; a mesma modorra; a mesma vida de rede, banzeira, sensual. (...) os homens, criados sob a influência da escravidão africana, impressionaram os europeus pelas suas atitudes sempre comodistas; pelo seu andar desengonçado; pela nenhuma esbelteza de seu porte; pelo seu ar de indivíduos fracos do peito, os ombros curvos, as espáduas estreitas. Só a voz, grande e imperiosa. (...) Uns grandes indolentes sempre nas suas redes. Voluptuosidade e indolência quebradas, porém, pelo espírito de devoção religiosa que só no século XIX diminuiu nos homens para refugiar-se nas mulheres, nos meninos e nos escravos”. Ibd – Pág. 430-431. Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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2 - A INTERPRETAÇÃO ÉTNICO-RELIGIOSA ENTRE O CATOLICISMO E AS RELIGIÕES AFRICANAS

Temos até aqui o pano de fundo socioeconômico que ensejou o surgimento do sincretismo religioso no Brasil. De um lado, nações oriundas da África sob o cruel jugo da escravidão, com pessoas reduzidas ao status de objetos e propriedades. De outro, uma sociedade de senhores proprietários de terra crescendo em suas riquezas e usufruindo dos bens gerados pelo mercantilismo. O ponto de encontro dessas duas culturas estará embasado no modo de produção mercantil. Raças diferentes coabitam juntas com a finalidade de gerar riquezas para o comércio internacional. E o negro, dentro deste quadro, não será simples mão de obra produtora de riquezas, mas propriedade, coisa, objeto, animal de serviço e útil, na medida que não crie problemas, não conteste seu estado, não seja diferente. Integrá-lo ao mundo português e colonial será elemento fundamental para a estabilidade social e econômica. Integrá-lo mesmo como coisa ou como ser de segunda categoria, mas integrá-lo. Na grande orquestra colonial não se pode entender e/ou se aceitar dissonâncias ideológicas, sociais, morais e religiosas. E o colonizador português, marcado com o Catolicismo guerreiro, jamais poderá admitir que alguém não se submeta ao seu modo de ser, ao seu mundo e à sua fé. O Sincretismo, portanto, irá desabrochar a partir da imposição de uma raça sobre outra, sendo um ato de violência do português mas, ao mesmo tempo, de sobrevivência do negro num mundo que não é seu. É difícil falar-se do negro no Brasil. A literatura existente nasce a partir de lugares oficiais 47 e só recentemente surgiram movimentos como o da Consciência Negra, que procura interpretar a História a partir do lugar do negro. Grande parte da literatura existente foi realizada por brancos que, relendo a escravidão, o fizeram do lugar do branco. Alguns autores modernos negros procuram rever a história da escravidão a partir do lugar do negro, mas eles mesmos são vítimas de preconceitos. Não se pode reduzir a ação da Igreja no contexto da escravidão a 47

Só recentemente a religiosidade popular assumiu destaque nos estudos acadêmicos. Assim, também os negros foram relegados a um plano não significante em meios cultos. Rui Barbosa mandou que fossem destruídas grandes quantidades de documentos de negros no Brasil com o desejo de “apagar esta mancha de nossa história”. Só a partir da década de 50 é que os negros começaram a ter uma certa ascensão socioeconômica, e isto em reduzíssimo número. Só após a década de 60 é que lentamente passaram a ser objeto de estudo mais sistemático, enquanto se elaborou uma ideologia pós-marginalizados. Hoje, alguns autores negros procuram analisar as propostas de seus ancestrais a partir do “lugar do negro”. Tais propostas são vista hoje por segmentos conservadores de historiadores como um processo ideologizado ao qual faltaria, segundo eles, seriedade. Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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uma mera ação com a finalidade de domesticar os negros numa ação desumana e nefasta48. Devem-se evitar aquelas radicalizações que veem sistematicamente má fé na catequese do negro como se ela fosse sempre utilizada como instrumento de dominação ideológica. Como afirma o Professor da Universidade de Paris, Maxime Haubert, no seu livro As Missões Jesuíticas de Itatim, há um terrorismo intelectual que estabelece um verdadeiro dogma dos historiadores modernos que afirmam “que a Evangelização (da América Latina) não foi mais que um instrumento de colonização, um disfarce ideológico de penetração capitalista” 49. Não podemos absolutamente comungar com tais ideias, pois, como já vimos anteriormente, o colonizador de nossas terras amava sua fé e religião. E se elas, de alguma forma serviram como justificativa ideológica da escravidão, tal fato se deu muito mais por uma contingência histórica e de mentalidade do que por um elaborado plano de dominação. Paradoxalmente, o português apenas não permitiu dissonâncias num mundo que era seu. 2.1 Primeiro período – o encontro na escravidão (1550-1888)

O catolicismo português e as crenças africanas encontram-se no contexto da Escravidão. Este entorno “escravidão” é fundamental para entendermos o relacionamento destas duas raças e as consequências que geraram. No foi um encontro natural, mas violento. Violência física, cultural e religiosa. Dizemos “violência” porque não se permitiu à parte mais frágil a oportunidade de escolha. No seu íntimo, o negro era livre de não aceitar as proposições ideológico-religiosas de seus dominantes. Isto, porém, não é fácil assim. Raptado das estepes e florestas africanas foi lançado num mundo completamente novo e hostil, onde tudo era mistério, porque novo. Homem livre anteriormente, vivendo as tradições e valores de sua tribo, passa a ser coisa num mundo que não é seu. Torna-se propriedade de alguém. Seus senhores, pela própria essência da instituição escravista, tornam-se donos de suas forças físicas, do seu dia, de sua vontade e de sua vida. Esta destruição da própria vontade pessoal eram-lhe imposta pela instituição escravista que o queria simplesmente submisso50.

As fazendas de açúcar, com o complexo arquitetônico, Casa Grande-Capela-Senzala, envoltas nos verdes mares de canaviais, era acima de tudo uma instituição hermética onde cada qual 48

Cf. O Negro e a Igreja – J. E. Martins Terra – 1984. Pág. 25 e 26 – Edições Loyola.

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Cf. Ibd – Pág. 23. Cf. Escravos e Senhores de Escravos – Décio de Freitas – 1977 – Págs. 19 a 23 – Editora Chronos.

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deveria ocupar o seu lugar. O Negro, nesta sociedade patriarcal, possui seu lugar social inferior: era escravo. Não era concebível que tivesse opiniões pessoais, cabendo-lhe apenas acatar o que lhe fosse determinado. Qualquer insubordinação à ordem constituída representava imediata repressão. Cabia-lhe apenas se submeter aos serviços, aos costumes, à religião e às tradições de seus donos. O português, com seu espírito guerreiro que lutara não só em defesa da sua fé contra os mouros, mas também na sua difusão pelas terras descobertas e conquistadas, não podia admitir ou mesmo conceber que seus escravos tivessem uma fé diferente da sua. Os senhores de escravos procuravam inclusive destruir tudo que pudesse de alguma forma unificar os negros, separando-os de seus grupos de origem para obstaculizar qualquer articulação contra o sistema. Muitas vezes, numa mesma fazenda, estavam negros de origens, tradições, idiomas e manifestações religiosas diferentes, pois a única coisa que os unia em muitos casos era o fato de serem escravos. Era dever do negro se adaptar ao sistema dos brancos em todos os aspectos, inclusive no campo religioso. Não havia dúvidas da parte de seus senhores: simplesmente eles deveriam ser católicos. Era uma questão fechada e inquestionável. Seriam católicos, ainda que de segunda categoria, pois nem mesmo a religião os igualava socialmente51. Algumas escolas de historiografia religiosa, como já nos referimos, falam num mecanismo de destruição das crenças africanas, sendo consciente ou inconscientemente um instrumento de dominação no qual o escravo era dominado não só física, mas também espiritualmente. A fé justificava a escravidão para os portugueses a partir a tese de Tutelamento 52 , enquanto era um ato de caridade cristã, pois , ao submeter o escravo, o senhor o fazia com o fim de catequiza-lo dando-lhe o maior dos bens: a fé e a salvação. E do lado do escravo, vivendo nas desumanas estruturas da escravidão, restava-lhe o Céu, uma vida eterna onde teria a recompensa, seria livre e teria o prémio de seus sofrimentos se fosse, é logico, piedoso, bom e obediente. 51

Em pesquisa de campo, em 1973, localizei no Vale do Paraíba – RJ – uma antiga fazenda de café onde a estrutura social era bem definida, ainda hoje, nos moldes da escravidão. A capela era dividida em três ambientes: uma pequena saleta que dava para o presbitério, ocupada apenas por homens fazendeiros que daí assistiam a missa sem nunca se ajoelharem. No corpo principal da capela havia próximo ao lado do altar as cadeiras para as patroas, mulheres mais próximas da vida íntima da casa grande. A capela tinha sua parte central vazia, uma espécie de zona neutra e ao fundo, cabisbaixos, submissos, de olhos voltados para o chão, os colonos, todos negros. 52

“Robert Southey, como patenteia Maria Odila da Silva Dias, ‘chegaria a propor panos quentes e a divulgar senão uma justificativa, pelo menos um atenuante, da escravidão no Brasil: o bom trato dos escravos, a amenidade da instituição, o caráter paternalista, senhoril, meio do jeito feudal de que se revestia, chegando a desculpar a instituição, onde se via outra solução a não ser o trabalho regenerador das luzes, da lei, do Estado, da moral, da religião...”. (A Igreja e a Escravidão – Uma Análise Documental – Cônego José Geraldo Vidigal de Carvalho – 1985 – pág. 33. Instituto Nacional do Livro). Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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Os padres das fazendas, dependentes dos senhores de engenho faziam parte deste sistema socioeconômico, não podendo aprovar rebeldias dos escravos contra os senhores. Vivendo à sombra dos engenhos, formados na Europa e lançados no Sertão, onde o nível cultural era nulo, se adequavam à morna vida dos engenhos, acabando, não raras vezes por se “acablocarem” inserindo-se na mentalidade e na mediocridade do dia a dia. Ainda hoje nas populações do interior há a ideia de que os padres gostam duma uma boa mesa e duma vida mansa. Padres chegaram a constituir família sob o olhar complacente da sociedade de então. O anedotário brasileiro é repleto de histórias do tipo mulher do padre e sobrinho do padre53. Alguns sacerdotes cumpriam com enfado seus deveres religiosos com os negros, já que preferiam a doce convivência da Casa grande aos fétidos casebres ou senzalas. Mesmo nas celebrações religiosas nas capelas, os negros ficavam no fundo, com um espaço neutro no meio que os dividia dos brancos. Em alguns locais, havia uma sala anexa à capela, como pude verifica no Vale do Paraíba, onde os senhores assistiam à missa, isolados não só dos negros, mas também dos outros brancos da fazenda. Algumas fazendas chegavam a ter ofícios religiosos em separado para brancos e negros. Não se pode negar, porém, que dentro desta estrutura física e social existiam sacerdotes que eram zelosos e movidos por verdadeiro espírito evangélico na assistência religiosa dos negros. Mas, apesar de todos os desmandos possíveis, não há dúvida que a presença de sacerdotes no engenho serviu para humanizar a vida dos escravos, moralizar ou, ao menos, ajudar a manter uma fachada moral dessa sociedade. O clero religioso não teve acesso às fazendas, apesar de ter sido mais organizado e sério no Brasil. Não podemos esquecer o trabalho dos jesuítas dirigido aqui especialmente aos índios.

O negro não podia deixar de ser católico. Em alguns casos, eram batizados nos próprios navios negreiros sem uma mínima consciência religiosa. Havia leis que determinavam o batismo de negros54. Muitos senhores não permitiam que se ensinasse aos escravos mais que o 53

Cf. Casa Grande e Senzala – Gilberto Freire –1981 – Págs. 442 a 444 – Livraria José Olímpio.

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“E para maior segurança dos Batismos dos Escravos brutos e bouçais, e de língua não sabida, como são os que veem da Mina, e muitos também da Angola, se fará o seguinte: depois de terem alguma luz de nossa língua, ou havendo intérpretes, servirá a instrução dos mistérios, que já advertimos vai lançada no terceiro livro número 579. E só se farão demais aos sobreditos as perguntas que se seguem: - Queres lavar tua alma com água santa? - Queres comer o sal de Deus? - Botas fora de tua alma todos os teus pecados? - Queres ser filho de Deus? Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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necessário. Não existia na maior parte dos casos uma Evangelização, mas antes algumas fórmulas decoradas que serviam para se receber os sacramentos55.

O simples batismo não fazia cristão. Ainda que, vivendo num mundo católico, as tradições e raízes africanas permaneciam vivas em seus corações. Não tendo um código que delineasse a ortodoxia das crenças africanas, não lhes era difícil aceitar algumas práticas da fé católica sem abrir mão da fé ancestral. As primeiras gerações vindas da liberdade para o cativeiro foram relutantes em abraçar costumes cristãos. Os seus filhos, porém nascidos no cativeiro e não tendo não vivido na África eram menos resistentes em acolher os elementos religiosos dos brancos. E, não raro, a promiscuidade cultural era tal que também brancos acreditavam em certas práticas de feitiçarias africanas. O ambiente é complexo. Havia franca promiscuidade social, cultural e moral56. Adolescentes, “sinhozinhos”, usavam negrinhas e negrinhos para suas iniciações sexuais. Os senhores tinham suas escravas preferidas57. A lascívia envolvia a vida dos trópicos. O mulato, fruto das frequentes incursões dos brancos às negras, será um elo de ligação social intermediário entre os dois mundos sociais. Jorge Amado, no seu romance Tenda dos Milagres, com maestria mostra que o mulato não era apenas um elo racional, mas também um elo religioso. Para ele, a missa e o terreiro de macumba se completavam.

Mas como se colocava o negro frente à nova religião? É fundamental acentuar que se vive numa nova sociedade sacral. Todos os dias há rezas ao amanhecer e ao anoitecer. Nada se faz de importante sem que se reze. Mesmo nas fazendas onde não há sacerdotes são comuns as - Botas para fora de tua alma o demônio?” Constituições citadas por João Manoel Mira Lima no Livro A Evangelização do Negro no Brasil – 1983 – Pág. 144 – Loyola. 55

As perguntas de catequese são sumaríssimas e supõe apenas uma modesta memorização de elementos que talvez os negros nem sequer pudessem compreender. Ora, tais respostas não significavam absolutamente uma conversão ou uma adesão ao catolicismo, mas era um ato de imposição do senhor ao escravo. O negro não se importava de aceitar novos elementos para o seu conteúdo religioso e assim era batizado sem saber direito o que faria e identificando o Sacramento como mais um rito mágico a ser acrescentado ao seu universo de magia. Ainda hoje muitas pessoas humildes procuram e fazem questão do Batismo não como um ato de adesão à Igreja, mas como meio para se obter a cura de uma criança doente, acalmar criança nervosa, obter “algo” de bom para o filho. Não há, portanto, nestes casos uma escolha de Jesus Cristo, mas apenas um ato mágico tradicional. Cf. Ibd – Pág. 56. 56 A promiscuidade moral era muito mais ampla que social. 57

A negra no Brasil colonial foi sempre vista como objeto sexual dos brancos da fazenda. A mulata, fruto destas uniões ficou estereotipada como modelo de mulher livre. Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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rezas no mês de maio, de São João, as ladainhas, os terços e as procissões. Seria um capítulo à parte mostrar a própria formação do denominado Catolicismo Popular Brasileiro que sobreviveu, e bem, ao lado do Catolicismo Oficial58, representado pelo culto presidido pelo sacerdote. Forma-se no Brasil um catolicismo com base no povo, independendo do sacerdote, mas sempre acolhendo-o com carinho. Em muitas regiões, o catolicismos popular e oficial se mesclarão e viverão em simbiose sem se oporem ou contradizerem. O africano está, pois, mergulhado no ambiente sagrado cristão e, por sua própria mentalidade, isto não o desagrada. O Cristianismo exercerá fascínio no negro. Nas fazendas os dias santos são respeitados 59 com um calendário religioso repleto de festas religiosas. Os santos são comemorados com novenas, rezas, missas e feriados. Esses dias santos são dias de folga e folguedo, diminuindo os rigores da escravidão. Indo às capelas seus olhos se enchem de cores, cantos e mistérios. É uma religião com pouca doutrina e muito sentidos que entram n’alma pelos ouvidos, olhos, paladar, tato e olfato. As cores dos paramentos, as alfaias brancas de linho, os cantos, o próprio latim que lhes soa como língua misteriosa, o incenso, as comidas das festas tudo encanta e deslumbra. O padre passa é visto como curandeiro, um mágico que possui poderes especiais – Axé – 60. Também ele possui segredos, assim como os curandeiros africanos. Não há da parte do negro nem contradição nem rejeição da sua fé. Aceitar o mistério católico não compromete suas crenças africanas.

O Catolicismo é uma realidade na vida do escravo. Na estrutura patriarcal-latifundiária não pode se opor à religião dos seus senhores. Oficialmente, não há um espaço-negro onde ele possa recriar seus elementos culturais e religiosos. O mundo é dos brancos e são eles que determinam o lugar que cada um deve ocupar.

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Muitos autores combatem os termos Catolicismo Popular e Catolicismo Oficial como sendo impróprios já que, como afirmam, o Catolicismo é uma única coisa. Todavia, em nossa pesquisa, assumindo a terminologia de importantes segmentos de sociólogos e historiadores modernos, entendemos como catolicismo oficial aquele que está ligado diretamente à hierarquia da Igreja e utiliza uma linguagem e uma terminologia universais, seja no seu discurso religioso ou em sua liturgia. O catolicismo popular, sem em momento algum contradizer-se ao oficial, apresenta-se como algo com linguagem do povo e com uma liturgia própria, ainda que não antagônica a oficial. Em parte, ele tem suas bases apoiadas na ausência de sacerdotes para comandar o culto divino. 59 Existem escritos de sacerdotes que chamam a atenção de alguns senhores que não respeitam domingos nem dias santos. O desejo do lucro fazia com que alguns escravos trabalhassem sem descanso físico nem práticas religiosas. 60

Ainda hoje sobrevive nas camadas mais humildes esta visão mágica dos sacerdotes, sobretudo daqueles que guardam os sinais tradicionais como a veste clerical, uso do latim, etc... Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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O português desdenhou a profundidade do espírito africano, considerando-o como raça inferior, boçal. Mas este soube criar uma saída de emergência para a situação em que estava vivendo. Saída que não foi planejada, mas instintiva e intuitiva. Será o Sincretismo religioso. Alguns autores mais simplistas, sobretudo de livros didáticos no Brasil, quiseram ver na sociedade que se formou em torno do engenho de cana-de-açúcar61 o lugar por excelência do encontro de duas raças e culturas. Denominaram-na mesmo de confraternização racial. Visão por demais utópica, para não dizer simplória. Viam estes autores no mulato um símbolo de integração racial, elo de conexão entre duas raças. Muitos brancos viram na miscigenação, cujo fruto concreto era o mulato62, uma democracia racial. Este é um modo de ver o lugar branco, enquanto do lugar do negro isto nada mais representava que uma saída de emergência para uma situação sem opções.

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O mesmo se aplica para as fazendas de café no Vale do Paraíba. No Brasil, o embranquecimento passou a ser meta de muitos grupos negros que viam no clareamento de sua pele uma forma de promoção social. Assim, de modo explícito, manifestavam-se as pressões contra a raça negra a partir do próprio mundo negro que buscava se tornar mais aceito socialmente dessa forma. A Tese do Embranquecimento tem sido defendido por muitos autores como sendo uma forma de se fugir ao estigma histórico-social de ser negro. Só atualmente começa a se formar no mundo negro uma autovalorização da própria raça e cor, que se manifesta, sobretudo no movimento denominado “Consciência Negra” (Black Power – USA), que procura assumir a cultura negra como um valor a ser não só preservado, mas até desenvolvido. Este grupo tem proposto sistematicamente a releitura da história do Brasil a partir do lugar dos oprimidos sob influência da Teologia da Libertação. Assim, rejeitam-se antigas teses da História Clássica do Brasil quando determinados líderes negros foram considerados como bandidos, como é o caso de Zumbi, líder do quilombo de Palmares. 62

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MODO DE VER O MULATO

Mulato

O branco

enquanto branco

democracia racial

enquanto negro

O negro

saída de emergência

Esta saída de emergência racial também aconteceu no Catolicismo brasileiro. O negro assumiu o Cristianismo enquanto uma saída de emergência visando sua sobrevivência, enquanto o branco europeu via nesta conversão uma integração dos escravos não só à cultura dos dominadores, como também, e, sobretudo, à Fé religiosa. Aqui desvendamos o grande enigma histórico do Catolicismo Brasileiro. O que era saída de emergência, busca de sobrevivência para o negro, foi visto pelo português como sendo uma democracia racial e a integração na fé e na sociedade luso-brasileira.

Modo de ver a conversão do negro ao Catolicismo

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Catolicismo Brasileiro

enquanto europeu

europeu

enquanto africano

é visto como integração

africano

é visto como sobrevivência

As diversas tribos aqui escravizadas não tinham um Cânon Dogmático religioso, mas sim crenças passadas de pais para filhos. Não lhes repugnava, portanto, acrescentar novas crenças às suas. Como já afirmamos anteriormente, ainda que, relutando em alguns momentos, pouco a pouco passaram a assumir posturas aparentemente cristãs. E aqui não podemos deixar de destacar a figura do símbolo como elemento integrador do africano na fé católica. O símbolo foi elemento fundamental do encontro religioso dos dois mundos. Não podemos ignorar que, aparentemente e de modo superficial, há certa analogia entre o Catolicismo e as crenças africanas. As distâncias doutrinais não são tão fortes para um homem vindo da África, pois, afinal, há algo de comum. De um lado, a fé num único Deus. E é bom lembrar, de outro lado, que os portugueses cultivavam profunda fé nos santos que eram, de maneira incisiva, na cultura portuguesa, os mediadores entre Deus e os homens. A fé nos santos não deixava em alguns momentos de obscurecer (sem negar em momento nenhum) ao Deus único e transcendente. Ora, os negros não tiveram dificuldades em identificar as imagens africanas de seus orixás com os santos católicos. Todavia, apesar do símbolo ser o mesmo, sua interpretação era diferente. O Símbolo continha no seu interior a ambiguidade. Notemos, portanto, que havia um aparente encontro ao redor do mesmo símbolo, encontro, todavia, carregado de sentido subjetivo da parte dos que se reuniam ao seu redor. Havia dupla leitura, com duplo significativo do mesmo símbolo. Símbolo Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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(Imagem/Santo)

Visão Católica (Santo)

Lugar do encontro

Visão Africana (Orixá)

Assim, dentro do espaço católico, os negros africanos recriavam e retornavam à fé ancestral da mãe África. Esta fineza de adaptação não foi percebida pelos portugueses. Assim, numa procissão de São Jorge, a imagem no andor era a mesma, mas a sua leitura era diferente, pois enquanto africanos viam nele o Orixá Oxoci, os portugueses veneravam São Jorge63. As primeiras gerações vindas das terras africanas relutavam em assumir as novas formas de se viver e de se expressar religiosamente, enquanto que as gerações nascidas no cativeiro diminuíram gradativamente sua reação a esta proposta, oferecendo menor resistência que seus pais no início do cativeiro. Milhares de escravos no Brasil desconheceram não só a África, como também a própria experiência de liberdade, situação esta favorável ao desenvolvimento do Sincretismo, não de maneira intencional, mas de fato. É obvio que nem sempre essa pseudo-aculturação se deu sem conflitos. Apesar de toda a repressão colonial, existiram movimentos contestatórios da Escravidão de grupos negros que conseguiram de alguma forma se articular em resistências, se bem que frágeis, mas articuladas. Impossibilitados de retornar à África, existiram de fato, tentativas de se recriar, o mundo africano no Brasil. A estes movimentos deu-se o nome de quilombos64, sendo o de

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Alguns grupos de negros do norte, sob a influência islâmica, não adotaram a concepção de Orixás no quadro de suas crenças e assim também rejeitaram o culto dos santos. Mas tais posições ficaram perdidas em concepções isoladas de indivíduos e nunca de grupos representativos. 64

“Os quilombos medravam à margem da sociedade escravista: marginalidade econômica, geográfica, e social. Não ofereciam, à vista disso, algum ou qualquer risco realmente sério aos sistemas. Causavam perturbações e prejuízos, é certo, porém deixaram-no intacto. Configurando uma forma elementar de libertação, mostravam-se incapazes de subjugar e transformar a sociedade inteira. Tratava-se de uma luta repetitiva e sem esperança. (...) A adoção do Quilombo como forma de luta e impotência da massa escrava para se libertar coletivamente mediante a derrubada do sistema escravista encontraram explicação na extrema debilidade de uma classe – a classe escrava existente no ordenamento estamental da sociedade escravista”. (O Escravismo Brasileiro – Décio de Freitas – 1980 – Pág. 47 – Instituto Cultural Português) Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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Palmares o que melhor se articulou, chegando a ser descrito por muitos autores como o movimento verdadeiramente épico. Décio de Freitas assim o descreve: Os quilombos medraram à margem da sociedade escravista: marginalidade geográfica, econômica e social. Não ofereciam à vista disso qualquer risco realmente sério ao sistema. Causavam perturbações e prejuízos, é certo, porém, deixavam-no intacto. Configurando uma forma elementar de luta de libertação, mostravam-se incapazes de subjugar e transformar a sociedade inteira. Tratava-se de uma luta repetitiva e sem esperança. É incontestável que essas manifestações contribuíram para a supressão da escravatura. Sabemos, porém, que essa supressão foi determinada pela intervenção de um elemento externo, a saber, as pressões inglesas para a cessação do tráfico o que, por sua vez, originou a decomposição gradativa do sistema e sua morte por obsolência. A adoção do quilombo como forma de luta e a importância da massa escrava para se libertar coletivamente mediante a derrubada do sistema escravista encontraram explicações na extrema debilidade de uma classe – a classe escrava existente no estamental da sociedade escravista. 65

Estes movimentos, porém, foram fatos dispersos e representaram tentativas isoladas dentro do sistema escravista. E a própria classe escravista estava dividida, existindo uma aristocracia escrava ou liberta que possuía seus próprios escravos. Ora, se a negritude e as origens africanas os aproximavam, o sistema intuitivamente acabava por dividir e privilegiar alguns grupos de negros que, paradoxalmente, tiravam também eles proveito da escravidão e, portanto, de alguma forma, dividiam e impediam uma verdadeira resistência organizada66. A esmagadora maioria de escravos não só não conseguiu recria uma nova cultura isolada no Brasil, mas teve que se amoldar ao modo de ser do mundo dos brancos. Mesmo assim, conseguiram salvaguardar valores ancestrais trazidos da África.

Os colonizadores portugueses não chegaram a entender o âmago da cultura africana. E isto nem lhes interessava, já que visavam à produção de riquezas com mãos escravas. Apesar dum

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Convêm lembrar que quando teve início o tráfico de escravos, os povos da África negra ainda não se haviam constituído em nações. O que havia no continente negro eram etnias, ou seja, comunidades linguísticas e culturais que ocupavam espaços geográficos. Nas mais desenvolvidas, como as dos sudaneses, despontavam formas embrionárias de nacionalidades, porém nada que em vigor se pudesse qualificar como tal. O número de etnias é incalculável e havia entre elas permanentes hostilidades. (...) De resto, a heterogeneidade étnica sempre foi a política dos senhores de escravos. Uma plantação ou uma mina formavam, assim, um verdadeiro mosaico étnico. Dado que falavam diversas línguas, os escravos não tinham no começo meios de se comunicar. A seguir, tinham que aprender a língua dos dominadores – condição para entenderem as ordens dos feitores – comunicando-se assim também entre si numa língua estranha. O sistema pouco a pouco os despojava de sua identidade étnica e os submetia a um processo de desintegração cultural. Ao mesmo tempo, os escravos se antagonizavam em função de arraigadas e exacerbadas aversões oriundas da própria história africana. Não raro um escravo seria subjugado pelo povo de seu companheiro de trabalho e sofrimento. O ódio e a vingança levavaos por vezes a delatar as conspirações de negros de outras nações. Ibd – Pág. 49 e 50. 66

Ibd – Pág. 50. Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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profundo zelo para que estes abandonassem sua fé ancestral, permitiam, sem perceber, que ela se mantivesse viva de uma forma exuberante através da música e da dança, formas impares através das quais os africanos transmitiam sua cultura e sua fé 67. Com exceção de alguns grupos islâmicos do norte africano, estes povos em sua maioria não conheciam a escrita. Portanto, o meio por excelência de se manter a cultura, a fé, a religiosidade e as tradições eram a dança e a música. E à noite, sobretudo nos dias de festividades religiosas, era permitido que se divertissem. Assim, por meio deste instrumento ingênuo e bárbaro aparentemente, sobreviviam cultura e fé sob o olhar complacente dos senhores. Após terem participado dos cultos católicos durante o dia, celebravam seus orixás durante a noite. Cultura negra sobrevivendo, à sombra da branca.

Aos poucos, ambas as crenças se mesclam e se fundem. De um lado, o Catolicismo se impondo como religião oficial; do outro, as crenças africanas amoldando-se à esta dominação sem resisti-la, mas adaptando-se a ela. E, em maior escala, também o branco não fica isento da influência religiosa africana, passando a crer de alguma forma também na eficiência dos ritos, tanto para o bem, quanto para o mal. Aos poucos, ritos católicos vão tomando também uma coloração negra, organizando-se e institucionalizando certa forma de religiosidade para negros. As confrarias e Irmandades foram recriações do mundo africano dentro do Catolicismo68. Os reis do Divino, as cortes destas instituições, o status alcançados por seus membros são recriações, às vezes patéticas, da organização religiosa e social da África 69 . Organizaram-se, de fato, duas liturgias na mesma Igreja: uma para brancos e outra para negros.

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Cf. Estudos Afro-Asiáticos – Cadernos Cândido Mendes – Editora Coopim – Págs. 239-251.

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Todos sabem que certas Irmandades, como Nossa Senhora do Rosário dos homens pretos eram especificamente destinada a congregar as pessoas de cor, livres e escravas. Uma gravura Rugendas mostra-nos que o próprio padre podia ser preto e também os Santos. (História da Igreja no Brasil – Vozes – Tomo 2 – Pág. 238 – citando Oliveira Torres). 69

“Um sincretismo que ficou foi a festa do Rosário, tipicamente mineira, que exibe colorações com nuances diferentes de diferentes cidades ou regiões, de acordo com as peculiaridades locais, com influencia religiosa do catolicismo e com as tradições dos grupos africanos. O catolicismo foi elemento básico na constituição da nacionalidade brasileira, mas foi assumido feições e práticas apropriadas, por força da penetração dos diversos traços culturais estranhos, sempre admitidos pelos padres católicos, mais interessados em arrebanhar fieis e em manter e garantir a predominância da Igreja no meio do que em preservar as formar e o conteúdo do verdadeiro catolicismo. O que se admite e compreende, porque o elemento humano que os missionários e clérigos tratavam eram por demais heterogêneos do ponto de vista cultural. Assim, as novenas, as cerimônias triunfalistas, as comemorações dos dias santificados, a maneira de festejar os santos, as procissões – tudo se deixou infiltrar por aspectos estranhos ao Catolicismo puro e original”. (Culto e Tradições de Mato Dentro – não consta editora – citação da 17ª folha) Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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As últimas gerações que viveram a escravidão estarão já inseridas no modo de viver do mundo luso-católico. Terão, porém, um modo sincrético de ver a fé, já que não se aniquila uma cultura pela opressão.

Em diversas partes do Brasil, a cultura africana será quase que totalmente apagada, como na região de Minas Gerais, onde se fundirá numa nova linguagem religiosa, a religiosidade popular, que não sendo oriunda da Igreja oficial, no entanto não se contraporá à sua ortodoxia. Será uma forma menos oficial, menos clássica, menos elitizada do povo utilizar uma linguagem religiosa própria, todavia, tão eficiente quanto o rito oficial católico70 e se inserirá de modo forte na própria liturgia oficial, que chega a abrir espaços para tais manifestações 71 (reisado, folia de reis, cavalhada, reis do Divino, etc...). Será no norte do Estado do Rio de Janeiro e em Minas Gerais que estas formas (e não conteúdos), como sementes sincréticas batizadas, criarão o denominado Catolicismo Popular Brasileiro, que não será combatido, mas mantido e alimentado pelo clero e pelo próprio episcopado local. O Sincretismo nesta área será mais cultural e litúrgico que dogmático. Existirão práticas sincréticas, mas amortecidas pelo Catolicismo que se impõe como força, ainda que absorvido numa linguagem popular. Já em outros centros, como Bahia (Salvador), as formas sincréticas sobreviverão com exuberância e vigor, não raro procurando retornar às formas originais africanas e negando mesmo a sua coligação com o Catolicismo72. 2.2 Segundo Período – O Encontro no Pós-Escravidão (1888) até hoje

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Para o povo ligado à religiosidade popular, um terço e uma procissão tem o mesmo valor de uma missa.

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Em pesquisa de campo no interior de Minas Gerais, no povoado de Abreus, distrito de Alto do Rio Doce – pude constatar uma sobreposição de Liturgias oficial e popular. Assim, o Rei e a Rainha do Divino recebem tronos na Igreja, são responsáveis diretos por uma liturgia própria que se une simbolicamente à liturgia católica. O mesmo pode ser observado ainda em Conceição do Mato Dentro, também em Minas Gerais. Estas formas de simbiose litúrgica podem ser constatadas facilmente no interior do Brasil quando a rígida liturgia romana se mescla e coabita com manifestações populares. Como modelo, podemos citar folia de reis, reisado, Festa do Divino, cavalhada, etc. 72

“Santa Barbara não é Iansã; o Senhor do Bonfim não é Oxalá e São Jorge não é Ogum. Esta é a nova ordem que corre por alguns terreiros de Salvador no candomblé, sendo Salvador o centro mais importante da fé Iorubá no Brasil. ‘O Pai de Santo coerente não deve admitir o Sincretismo’, prega Stela de Oxossi, respeitada Mãe-desanto do Ilê-Axé-Apó-Afronja, um dos católicos e a religião dos Orixás têm doutrinas e liturgias próprias e bem diferentes. ‘O Sincretismo surgiu porque os escravos precisavam dele, mas agora não é mais necessário’, afirma” (Revista Veja – 17. ago. 1983 – p. 87). Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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O negro, trazido ao Brasil como moeda do mercantilismo internacional, mão-de-obra barata e solução para o problema do latifúndio, contribuiu de forma decisiva para economia brasileira. “Nada mais se queria dele, e nada mais se pediu e obteve que a força bruta, material. Esforço muscular primário, sob a direção e açoite do feitor” 73. Utilizado nos canaviais nordestinos, levado para as minas de ouro de Vila Velha, Congonhas, Sabará e adjacências (MG), vai finalmente terminar seus dias nos cafezais do Vale do Paraíba. Começa-se a se contestar a escravidão. Contestação econômica e humanitária. Grupos denominados abolicionistas formam-se nas cidades; há grupos que compram escravos para lhes dar liberdade. A própria Inglaterra, mentora inicial do tráfico negreiro, já começa a reprimi-lo, pois seus interesses comerciais não mais se coadunam com o Escravismo 74 . Com a Revolução Industrial, a Inglaterra passa a ter necessidade de mercados consumidores de seus produtos industrializados e a escravidão passa a ser um grande empecilho, já que impede a formação de uma classe, potencialmente, de consumidores. A crise entre Inglaterra e França que teve como ápice, de um lado, o Bloqueio Continental imposto pela França à Inglaterra e, de outro, a invasão da corte portuguesa por tropas francesas, obriga à Família Real e a corte (cerca de 15 mil pessoas) a se transferirem para o Brasil. A Inglaterra, que deu cobertura à fuga da família imperial em 1807, já começa a partir daí a pressionar Portugal para que suspenda paulatinamente a escravidão no Brasil. E com o Bloqueio Continental, o Brasil passa a representar para a Inglaterra um grande mercado consumidor de seus produtos industrializados, quando leis emanadas de D. João VI abrem os portos brasileiros às nações amigas, o que de fato quer dizer à Inglaterra. Já que, enquanto se cobra 15% de taxa alfandegária aos produtos ingleses, aos portugueses cobram-se 16% e aos de outras nações 24%. Em resumo, o Brasil tornara-se o paraíso para as exportações inglesas e era necessário que se organizasse também um mercado consumidor apto a adquirir os bens trazidos, alguns inclusive absolutamente inconsumíveis, como patins para gelo e carteiras para notas de um país que só utilizava moedas. Tudo isso nos mostra o porquê do interesse dos ingleses em coibir o tráfico negreiro e em combater a própria instituição da escravidão como algo nefasto aos seus interesses e desrespeitoso ao ser humano.

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História Econômica do Brasil – Caio Prado Jr. – 1972 – p. 32 – Editora Brasiliense.

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O Governo Britânico não cessará de empregar todos os meios que estiverem ao seu alcance para abolir a escravatura, sem excluir mesmo os de violência. (...) O Brasil é agora o único país do mundo onde levam, sem ser por contrabando, novos escravos... em todo o resto da América se acha este tráfico abolido. O que podemos é ainda ganhar espaço. Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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O cultivo da cafeicultura, que tivera seu início no século XVIII, começado no Rio de Janeiro, vai subindo pouco a pouco o Vale do Paraíba e daí expandindo-se para o oeste paulista (1930). As constantes restrições ao tráfico negreiro, capitaneados pela Inglaterra, fez com que os cafeicultores da região da Paulista fizessem opção por mão-de-obra assalariada, em substituição à escrava. Por volta de 1880 as fazendas fluminenses e da região do Vale do Paraíba em São Paulo mantém o modo arcaico de produção apoiada na mão de obra escrava, não se modernizado, enquanto que as da paulistas, sobretudo no oeste do Estado, adotam a mão de obra assalariada, sem maiores ônus para os cafeicultores da região, favoráveis à abolição da escravatura, diferentes de seus pares do Vale do Paraíba que tinham nessa mão de obra a base e o sustentáculo de sua produção.

As campanhas humanitárias abolicionistas, o modo de produção escravista do café que se mostrava inadequado, pois não exigia a presença de trabalhadores ano inteiro, as pressões inglesas, enfim, vários fatores levaram à assinatura pela Princesa Isabel da Lei que terminava em definitivo com a escravidão. O Império pagou um alto preço pela Lei Áurea, pois as elites cafeicultoras tradicionais deixaram de oferecer base política a já frágil e combalida monarquia brasileira, implantando-se a República no ano seguinte, 1889. Apesar da liberdade obtida muitos deles tiveram dificuldades para obter o próprio sustento. Muitos negros tiveram que abandonar as fazendas ou se submeter a um irrisório salário. Existiram fazendas que mantiveram ainda por algum tempo a estrutura escravista, não dando liberdade aos negros, e outras, enfim simplesmente faliram incapazes de se atualizarem à nova situação socioeconômica. Pouco a pouco esses negros desempregados migarão para as cidades em busca de sobrevivência, alojando-se em suas periferias, vivendo miseravelmente e aceitando subempregos, vistos como párias, marginais ou gente ociosa.

Tais mudanças político-sociais atingiram fortemente, não só a organização econômica, mas também religiosa do país. A Igreja católica perdia a tutela do Estado deixando de ser religião oficial e perdendo seu poder coercitivo, amparado pelo poder do Estado, sobre as populações. Por outro lado, os negros tornavam-se livres, ao menos formalmente, de praticar suas crenças. Não se pode perder de vista, porém, que o mundo continuava sendo dos brancos, cabendo ao negro ocupar um espaço físico e social periférico. A ideologia duma raça, cultura e religião inferiores não se apagarão das mentalidades com a simples assinatura duma lei.

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No âmbito religioso os ex-escravos se viram frente a três possibilidades: abraçar o Catolicismo de forma integral; fundi-lo com as crenças africanas; ou, retornar para as práticas religiosas de seus antepassados. O catolicismo popular recebeu forte influência da cultura africana, quando a fé católica ganhou linguagem e roupagem de matriz africana, não se configurando, porém como uma mistura religiões.

Será o sincretismo que efetivamente

integrará organicamente conteúdos doutrinais do cristianismo com crenças africanas, oscilando entre uma maior ou menor proximidade com o catolicismo. Muitos optaram ainda pelo retorno imediato e radical às origens africanas, especialmente na Bahia onde a cultura negra preservou de forma mais pura a fé dos ancestrais75.

O Negro perde o seu lugar funcional na sociedade brasileira, sendo marginalizado como classe inferior quando muitos brancos irão preferir empregar imigrantes europeus a negros. Isto tem reflexos sociais imediatos. Muitos se entregarão à marginalidade com o uso da violência, criando-se estereótipos do negro como ladrão, violento, vadio e incapaz intelectualmente. Na República Velha (1889-1930) há forte repressão a todas as formas de cultura negra. Jorge Amado, no seu livro Tenda dos Milagres, procura mostrar como a polícia reprime todas as manifestações culturais negras da cidade de Salvador. Tenta-se aniquilar tudo que de alguma forma relembra de modo organizado o mundo africano. Os terreiros são suportados com repulsa e invadidos pela polícia com violência. São considerados locais de ignorância, superstições e imoralidades. A repressão político-social e policial é sistemática. A mentalidade da Casa Grande sobrevive tenazmente. Isto, porém, não impedia que brancos de bem não frequentassem às escondidas os terreiros em busca de favores.

Até 1930 a repressão da elite branca contra os líderes negros que teimavam em realizar práticas culturais e religiosas oriundas da África foi acirrada, em menor ou maior escala desde o nordeste até o Vale do Paraíba 76 . Com inicio da Era Vargas há o abrandamento das perseguições77. Este processo já se inicia em 1929 com a quebra da bolsa de Nova Iorque quando o café deixa de ser comercializado com os Estados Unidos. Com crise dessa 75

Como já citamos o caso da Mãe Stela – Revista Veja – 17. ago. 1983 – p. 87. Este fenômeno inexiste no sul porque colonizado por europeus. Também não está presente no centro-oeste brasileiro e norte, regiões que foram povoadas só mais tarde e não conheceram o latifúndio monocultor. 76

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Será um momento de profunda crise para a cafeicultura brasileira; ao mesmo tempo, Getúlio Vargas dá início, ainda que da forma embrionária, ao populismo brasileiro, uma forma de capitalizar as forças populares então emergentes pela industrialização e urbanização como força política. Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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monocultura que dava sustentação econômica ao Brasil, os Barões do café, decadentes, perdem seu poder político-econômico. Com a quebra das fazendas cafeeiras parte do contingente remanescente de negros que ainda estavam no campo passa migra para as periferias das cidades. O Estado totalitário de Getúlio Vargas com sua política populista passa a não reprimir tão violentamente os negros e, com a Segunda Guerra Mundial (1938) e início da industrialização do Brasil (1945), as práticas sincréticas são mais toleradas, o que não impede que coronéis e chefes regionais continuem a atacar esporadicamente as manifestações culturais e religiosas dos negros.

Os elementos até aqui apresentados nos permitem perceber de maneira nítida as condições que favoreceram a formação do Sincretismo religioso no Brasil. A libertação dos escravos da tutela dos seus senhores permitia-lhes a organização de seus cultos, antes na clandestinidade. Apesar de violentas repressões, vão se organizando e estruturando. Aos poucos vão deixando de ser coisas de preto78 para receber um razoável contingente de mulatos e brancos oriundos das classes mais pobres que, refugiando-se nas favelas e não tendo assistência religiosa de sacerdotes, aderem maciçamente a essas formas de cultos sincréticos.

A industrialização iniciada por Vargas fomentou o êxodo rural. E, se no campo existia uma sociedade sacral onde o templo católico com suas festas religiosas se impunha arquitetônica e ideologicamente, nas favelas. mocambos e periferias a Igreja perde o controle sobre estas populações que, tendo raízes católicas hauridas no interior, coabitam no entanto com população de práticas não católicas. Esses elementos e essas condições são determinantes para a incubação nessas populações, deslocadas de seus ambientes do campo, para atitudes sincréticas.

A industrialização promove uma cultura urbana, diferente da mentalidade do mundo agrário tradicional. A Igreja vai se distanciando das populações urbanas, mormente daquelas periféricas. A Igreja perde a representatividade e a incidência que tivera no campo e nos povoados interioranos, e é neste hiato que se criam condições para o crescimento de práticas religiosas que fundem elementos católicos com tradições religiosas advindas das crenças africanas.

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O termo preto dentro da cultura brasileira é pejorativo. Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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A Bahia é o mais importante centro para este estudo. Aí, desde as formas mais puras de culto africano até as manifestações sincréticas coabitam pacificamente, e mesmo a Igreja Católica, tão rígida perde parte dessa rigidez nas celebrações litúrgicas e elaborações dogmáticas. Não que a Igreja abra mão de seus princípios, de fato, porém coabita certa tolerância que não deixa de ter sua ambiguidade. É comum ver-se nas missas pessoas com indumentárias dos terreiros sendo celebradas missas com intensões ambíguas, que não se sabe se católicas ou ligadas à fé oriunda da África.

Na mentalidade do povo, além da aceitação do Sincretismo, que é mistura de religião, há também a aceitação de duas religiões sobrepostas, mas não fundidas, guardando cada uma delas sua eficiência própria. “Candomblé e Catolicismo são como água e óleo: podem ficar no mesmo corpo, mas não se misturam” 79. Para muitos crentes não é contraditório aceitar separadamente cada uma das religiões.

Era de se esperar que Sincretismo, enquanto ação de sobrevivência, tendesse a diminuir ou ao menos se estratificar com o fim da escravidão. A libertação dos escravos, porém e sua sequente libertação das imposições da Casa Grande, longe de fazer com que os rios religiosos retornassem às suas calhas, o que aconteceu foi que o sincretismo se ampliou. A liberdade de escolha da própria religião foi sempre reprimida pelos colonizadores portugueses, que entendiam que no orbis christianus todos deveriam ser cristãos. As contestações às atitudes sincréticas, porém mesmo no período após a escravidão encontrou campo fértil nas massas populares que viam nesse agregado de crenças elementos que se complementavam e atendiam suas necessidades e buscas religiosas.

A sociedade brasileira em formação desde o período colonial apresentava vários estamentos com concepções variadas. Essas variáveis podem nos levar a confundir a religiosidade popular com sincretismo. No Brasil duas classes se polarizavam: a da elite dominante de um lado, rica e que era influenciada pelos modismos europeus como Maçonaria, Liberalismo, Iluminismo e Positivismo e, de outro, a grande massa ignorante, crédula e sacral. Tal polarização vai desde o apogeu da cultura canavieira até a decadência da cultura cafeeira. O ouro foi um elemento desestabilizador desta polarização social, pois representou a democratização da riqueza, enquanto oferecia, mesmo aos deserdados, a oportunidade duma 79

Balbino Daniel de Paula – Babalorixá – Revista Veja – 17. ago. 1983. Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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ascensão social imediata. A Igreja efetivamente não possuía uma real unidade existindo um alto e um baixo clero. O primeiro era culto e identificava-se com as grandes teses filosóficas que pululavam na Europa e o segundo era interiorano, acaboclado, interagindo com a religiosidade popular, o que gerou dois discursos religiosos, um oficial e elitizado e outro popular. O povo sempre votou respeito à Igreja, mas no seu relacionamento com Deus e os santos criaram sua própria linguagem, sem menosprezar a liturgia oficial, incompreensível para eles. Este catolicismo popular crédulo era a antessala para o acolhimento de doutrinas sincréticas. Mas esta passagem nem sempre acontecia e assim muitas manifestações religiosas de cunho popular se localizavam neste limbo entre a ortodoxia e o sincretismo. Na Festa do Divino, por exemplo, o Rei e a Rainha do Divino, eram levados à Igreja paroquial, onde recebiam honras reais pelo vigário que os introduzia no presbitério, onde, coroados sentavam-se em trono. A religiosidade popular fundiu o Sagrado católico com uma forma de expressão popular que reconstituía as realezas tribais africanas. O texto abaixo é valioso pela riqueza de detalhes e como nos mostra de maneira magistral a linguagem popular dentro do rito oficial católico. Percebemos que as fronteiras entre o ortodoxo e o pagão se tocam tenuemente sem percebermos bem se estamos diante uma mera expressão de religiosidade popular ou de uma expressão sincrética: “Um Sincretismo religioso que ficou foi o da festa do Rosário, tipicamente mineira, que exibe colorações com nuances em diferentes cidades e regiões, de acordo com as peculiaridades locais, com influência religiosa do catolicismo com as tradições do grupo africano. O Catolicismo foi elemento básico na constituição da nacionalidade brasileira, mas foi assumido feições práticas e apropriadas, por força de penetração dos diversos traços culturais estranhos, sempre admitidos pelos padres católicos, mais interessados em arrebanhar fieis e em manter e garantir a predominância da Igreja no meio do que em preservar as formas e conteúdo do verdadeiro catolicismo. O que se admite e compreende, porque os elementos humanos que os Missionários e outros clérigos tratavam eram por demais heterogêneos do ponto de vista cultural. Assim, as novenas, as cerimônias triunfalistas, as comemorações dos dias santificados, a maneira de festejar os santos, as procissões – tudo se deixou infiltrar de aspectos estranhos ao catolicismo puro e original. (...) Os festejos do ‘congado’, festa tipicamente africana, há cerca de 213 anos se realiza em Conceição e, que atualmente tem o mesmo cerimonial de dois séculos atrás, sendo a mais viva reminiscência do tempo da escravidão. Outrora, o “reisado” abrangia os dias 25 de dezembro à 06 de janeiro; hoje, porém, é apenas no primeiro dia do ano. Os negros vinham de todos os pontos. Quedavam-se a olhar boquiabertos o desfile da corte caricata do rei Beiçola, a rainha, o ‘maneta’, o ‘Quimboto’ sarapintado de açafrão, os ‘cumumbis’ que partiam para a guerra contra a turba de “Ginga”. No dia de Todos os Santos, o procurador da Irmandade do Rosário, acompanhado de grande cortejo de marujos, patrões, calafates pilotos, etc..., ao som bárbaro do tantã ensurdecedor, vão buscar o Rei Congo e a Rainha Ginga, príncipes e toda a corte de Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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Luanda. Ao som de pipiruis, berimbaus, caxambus, marchetes, entoam as cantigas melancólicas do inesquecível Moçambique: Mexum cadê sucantô Molomim Campum surin chovô tuniva Ó Rainha, Mãe Senhora, Mãe da noite Para o segredo, que já é chegada a hora Vamos todos para o céu cantando viva! viva! À Senhora do Rosário. Mexum cadê sucantôo Molomim Sigam, que vivam seu novo estado Príncipe, princesa e nosso pai coroado! (...) a maravilhosa procissão – misto extravagante de cristianismo e paganismo – é recebida à porta da Igreja do Rosário pelo pároco. Celebra-se então o ritual. O rei deposto entrega a coroa e o cetro ao seu sucessor e os monarcas são levados, em triunfo, ao trono armado ao lado da epistola. Inicia-se a missa cantada. Os negros, percebendo, como é natural, o sentido do culto católico, vendo apenas a imagem da Virgem, que é para eles apenas a iconografia mais bonita dos seus orixás (com quem a confundiam), curvam reverentes os joelhos à porta da Igreja persignando-se ingenuamente. No momento do Evangelho, os maiores fazem a coleta dos óbulos destinados à Irmandade, recebendo contribuições estipuladas no ‘compromisso’ (...) Seis meses depois, numa tarde de junho, realiza-se a procissão de Corpus Christi e toda a Irmandade acompanham em alas, com as opas azul-celeste esvoaçando, carregando tochas e ‘tirando’ ladainhas e terços o longo e lento itinerário dos andores. Até hoje o ‘Congado’, que se realiza na cidade de Conceição, verdadeira relíquia das tradições de nossa religiosidade, reveste-se daquele singularíssimo ritual bárbaro, estranho e místico de 1728, quando a raça negra predominava em número na capitania das Minas Gerais...”80

O interior mineiro foi um relicário onde se preservou a religiosidade popular com uma linguagem pré-sincrética, mas que, paradoxalmente oferecia ao povo o sentido de pertença à Igreja local e universal. Após a escravidão, rompendo com o passado nas fazendas, os exescravos se fixaram em favelas e mocambos, mantendo aí suas manifestações populares, mas sem a tutela da Igreja que, de certo modo, tentava domesticar esta relação ambígua entre as praticas católicas e africanas.

Com o capitalismo tardio implantado no Brasil, sem passar pelas diversas etapas de amadurecimento do capitalismo clássico81, o êxodo rural tornou-se cada vez maior, chegando hoje a mais de 80% da população nacional habitando as cidades. A Igreja, que sempre se 80

Cultos e tradições de Mato Dentro – organizado pelos capuchinos. O capitalismo denominado clássico é aquele que viveu as diversas etapas de amadurecimento técnico, econômico e social. Foi uma maturação lenta. Já o denominado “capitalismo tardio” é aquele que se implanta em países do Terceiro Mundo sem preparação. Simplesmente se implanta com toda a tecnologia de um momento para outro, não dando às populações oportunidades de assimilarem a rápida mudança sócio-econômicotecnológico. 81

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organizou e se estruturou para o mundo rural, paulatinamente foi se distanciando das populações urbanas, hoje “doutrinadas” pelos meios de comunicação social e pelas redes sociais. Esses meios de comunicação, na sua maioria, apresentam matriz materialista promovendo o consumismo, não cultivando, mas ignorando a matrizes cristãs. A religiosidade popular desconecta-se das instituições religiosas formais alimentando-se da religiãoespetáculo promovido pelos meios de comunicação, onde a fé torna-se produto de consumo sinalizando meios rápidos de se obter bens materiais com benefícios em nível pessoal. O número reduzido de sacerdotes católicos, o modelo paroquial ultrapassado que foi elaborado para aldeias e povoados, a ausência de representantes da Igreja nos bairros e periferias, um discurso eclesial acadêmico e distanciado do cotidiano do povo são alguns dos elementos que oferecem campo fértil para a perpetuação e ampliação de práticas sincréticas. As populações urbanas perderam o contato físico e afetivo com a Igreja. O Batismo para muitos é apenas um ato de tradição familiar, mas sem uma real inserção com a vida eclesial. A catequese, dada a uma minoria, é inconsistente e distanciada da vida. Essas situações favorecem sobremaneira modernas formas de sincretismo religioso no contexto da religiosidade popular. A maioria da população brasileira e diz católica, mas um catolicismo fluido, genérico, impregnado de materialismo e vulnerável às investidas de seitas protestantes, espiritas e de grupos afrobrasileiros. Atualmente este fenômeno não se restringe apenas a negros, mas há um “branqueamento” e elitização das práticas da umbanda, macumba, candomblé e outras formas por artistas populares que são modelo para as massas.

Num tempo não muito distante nossas elites culturais menosprezaram as manifestações populares. Há hoje, porém a revalorização das manifestações populares, procurando não apenas redescobrir os valores da cultura negra africana como também mantê-los vivos. O Movimento Consciência negra é desses braços que buscam este resgate. O camdomblé, à guisa de exemplo, tem procurado retornar à sua forma mais pura desprendendo-se de “acessórios” não originais. Apresar destes focos de resistência se constata que o Sincretismo vive um exuberante processo de crescimento, enquanto o homem moderno incorpora em sua vida em todos os âmbitos – inclusive no religioso – tudo aquilo que considere útil para si. Crescem em importância e audiência os mais variados programas religiosos na televisão e no rádio. Tudo no campo religioso vai sendo considerado bom e aproveitável, não importando muito a que matriz religiosa pertença. É um tempo de profunda tolerância e aceitação das mais variadas formas de expressões religiosas. O Catolicismo institucional e ortodoxo vai Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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perdendo lugar no consumo popular, substituído por formas sincréticas e menos ortodoxas de religiosidade. Em rádios em programas católicos junto à oração a bênção de alguns padres, há preces para as 13 almas benditas, escrava Anastácia e outros elementos híbridos não cristãos.

Os mestres populares, os guias, os conselheiros umbandistas estão ocupando espaço cada vez maior nos meios de comunicação. E, como já afirmei anteriormente, grande parte dos ídolos populares se afirmam umbandistas, espíritas, etc...

O Catolicismo ortodoxo não tem perdido as massas populares. Materialismo, seitas evangélicas, seitas exóticas orientais vão ocupando espaços no Brasil, pois é um pais em pleno processo de configuração em busca de sua identidade como nação e cultura.O moderno Sincretismo vai se distanciando catolicismo cada vez mais enfraquecido, malgrado os imensos esforços da Igreja para uma verdadeira evangelização.

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CONCLUSÃO

Constatamos que no processo da formação do Catolicismo no Brasil não existiu em muitos momentos uma efetiva evangelização do negro, mas a imposição da religião oficial. O Brasil, apesar duma aparente catolicidade, construiu formas híbridas de religiões. A desestruturação do mundo rural frente ao capitalismo tardio e ao êxodo rural fez com que os flancos desprotegidos se mostrassem. Catolicismo no Brasil, ainda hoje aceito como religião da maioria dos brasileiros, não é tão profundo quanto parece. Não há dúvida que existe uma base cristã em nossa cultura, ela, porém não é tão profunda quanto pretendeu ser82. Não existiu uma “traição” ao catolicismo ao se assumir atitudes sincréticas, mas sim uma catequese incompleta, que não chegou ao status de Evangelização. No Brasil cresce a secularização, fruto imediato da urbanização com a crescente oferta de bens materiais, vai sendo um novo dado no crescente enfraquecimento do catolicismo. A Igreja lutou para dominar ou ao menos domesticar a religiosidade popular que deveria se submeter ao controle da Igreja oficial, caindo nas “garras” dum clero intelectualizado que após os anos 30, sob a influência do Iluminismo, olhava com desdém essas manifestações populares. A vinda dessas populações rurais para os grandes centros fez com que o povo perdese o contato com a Igreja oficial, nem sempre capacitada a dar assistência a imensos conglomerados populacionais das periferias. Esses bolsões de religiosidade popular advindas do campo foram se enfraquecendo pelo estilo de vida nas grandes cidades onde a luta pela sobrevivência é a preocupação primeira das classes menos favorecidas. Perde-se o contato com a hierarquia oficial, e se enfraquecem nas novas gerações as relações com as práticas da religiosidade popular de seus pais e antepassados 83 . Sem contatos com grupos do interior que zelassem pela fé, estes grandes grupos passaram a ser presas simples de todas as formas de manifestações religiosas, desde o Pentecostalismo até a Umbanda. A falta de referências com a Igreja oficial faz com que estas massas não percebam as contradições religiosas das práticas sincréticas. O comportamento sincrético é ainda um dado presente nos meios de comunicação que se pautam por princípios mercadológicos e não de valores.

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Existem metrópoles com paróquias com mais de 200 mil habitantes para um único sacerdote.

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Lembremos que as Irmandades tinham também suas hierarquias, seus diretores que zelaram pela fidelidade de seus associados. Prof. Dr. Dílson Passos Júnior – [email protected]

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O Catolicismo e as Igrejas protestantes históricas, detentoras dum quadro doutrinário estável, se veem ameaçadas por uma mentalidade eclética que permeia todos os campos sociais, sendo incapazes duma proposta consistente para as grandes massas. Pelo próprio relativismo que permeia nossa sociedade o Sincretismo religioso tende a crescer, em detrimento das religiões cristãs históricas. Aquilo que nascera no período da escravidão e que parecia fadado a se enfraquecer quando é feita a libertação dos negros, não só não diminuiu, mas vem assumindo proporções cada vez maiores.

O Sincretismo histórico brasileiro não é uma ameaça à fé. Ele é, antes de tudo, uma simples etapa pré-cristã do Evangelho que nunca foi superada. O cristianismo em sua essência nunca foi de fato implantado no Brasil. Apresentado às populações, sempre esteve envolto em práticas que ambígua ou diretamente não possuíam matriz cristã.

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