A formação dos novos tenentes: educação jurídica, ativismo e vanguarda burocrática (1985-2015)

Share Embed


Descrição do Produto

1

A

FORMAÇÃO

DOS

NOVOS

TENENTES:

EDUCAÇÃO

JURÍDICA,

ATIVISMO E VANGUARDA BUROCRÁTICA (1985-2015)

GUSTAVO CASTAGNA MACHADO*

INTRODUÇÃO

Aqui, elabora-se um Working Paper com a finalidade de ser discutido no Seminário Temático “014. História e Direito: temas, fontes e métodos em abordagens interdisciplinares”, deste XIII Encontro Estadual de História da ANPUH-RS: Ensino, Democracia e Direito. Tenta-se organizar ideias, reunir argumentos, pensando em um projeto de pesquisa a ser elaborado, que analise a relação da educação jurídica, como dada entre 1985 e 2015, e refletida nos currículos das faculdades de direito (não somente naquilo que consta nos currículos, mas também em suas lacunas), com aquilo que é chamado de “ativismo judicial”, não somente no sentido de “judicialização da política”, mas também no de “politização do judiciário”1. A ideia não é elaborar críticas ao ativismo judicial, mas analisar como as faculdades de Direito e os seus currículos influem nos rumos de tal ativismo.

*

Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com período sanduíche no Max-Planck-Institut für europäische Rechtsgeschichte [Instituto Max Planck de História do Direito Europeu] (MPIeR), Alemanha. Também é doutorando em Ciência Política pela Johann Wolfgang Goethe-Universität Frankfurt am Main, Alemanha. Possui mestrado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2011). Membro pesquisador do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS). Professor de graduação e pós-graduação lato sensu. 1 Sobre isso, ver VERONESE, 2009, pp. 260-266.

2

(1) Com o advento da Nova República em 1985 e, principalmente, com a Constituição Federal de 1988, criaram-se marcos normativos que possibilitaram o surgimento de teorias que atribuem um maior papel político a burocratas/tecnocratas jurídicos (juízes, promotores etc.). Isso vem sendo apontado por autores brasileiros, alguns com uma impressão positiva, outros com uma impressão negativa, sob a rubrica de neoconstitucionalismo (ver, e. g., ÁVILA, 2009; BARROSO, 2005; DIMOULIS, 2011). E isso não é um fenômeno isolado brasileiro. Diego López Medina, por exemplo, afirma que foi educado em uma faculdade de Direito da Colômbia entre 1987 e 1991, e naquele local e época um modelo “interpretativo”, “judiciarista” e “constitucionalista” do Direito estava começando a ser “importado” e o novo transplante teórico implicava em rearranjos muito importantes no mapa geojurídico do mundo e na compreensão local que se tinha da natureza do Direito (LÓPEZ MEDINA, 2009, p. 47). Percebe-se a semelhança dos cenários quando López Medina afirma que a vanguarda teórica (na Colômbia) era formada por autores e comentaristas que possuíam, em linhas gerais, uma abordagem linguística ou hermenêutica da teoria jurídica. Em todo esse material, a palavra “interpretação” aparecia como a chave com a qual as portas fechadas pelo formalismo poderiam ser abertas. Além disso, a abordagem hermenêutica estava ligada a uma nova concepção das instituições políticoconstitucionais na qual se dava ênfase à determinação judicial de regras ou fatos – uma “teoria do direito judiciarista” – que acabou por ser muito interessante para quem queria lançar um ataque contra a base teórica da consciência jurídica formalista e legocêntrica que desvalorizava o papel do intérprete na criação da lei por meio do mito da sabedoria do legislador e de uma férrea confiança na soberania política e na correção moral dos atos legislativos ordinários (LÓPEZ MEDINA, 2009, p. 47). Dentre os autores “canônicos” estavam Herbert Hart, John Rawls, Ronald Dworkin, Robert Alexy e Jürgen Habermas (LÓPEZ MEDINA, 2009, p. 42). Ele fala até mesmo sobre a importância que passou a ter uma nova forma de diferenciar entre “princípios” e “regras” (LÓPEZ MEDINA, 2009, p. 50). Tudo muito semelhante ao caso brasileiro.

3

Escrevendo sobre o caso brasileiro, Hespanha aqui há um equilíbrio algo paradoxal entre uma tendência antipositivista, que propõe a substituição da referência à lei (positivismo legalista) pela referência a valores civilizacionais de sentido emancipador, e um positivismo constitucional, que opta pelo primado dos sentidos objetivos plasmados na Constituição e nas leis do Estado progressista. Em uma primeira fase, aponta Hespanha, buscava-se descobrir valores por detrás da lei com um sentido emancipador e que, por isso, a “hermenêutica”2 (foi a etiqueta que designou esta orientação no Brasil) era automaticamente uma corrente mais progressista do que o direito do Estado. Isso durante os governos conservadores. Hoje, percebe-se que a situação mudou e que, frequentemente, o direito do Estado pode estar à frente da consciência política do grupo dos juristas e dos juízes. De acordo com o mesmo autor, o impulso para uma doutrina e para uma jurisprudência liberada dos constrangimentos da lei pode, assim, funcionar como uma espada de dois gumes, um promovendo um direito ainda mais emancipador, ou, em contrapartida, um direito vinculado a valores mais conservadores do que os do direito majoritário. Conforme Hespanha, o caráter paradoxal da situação tem sido notado, mas, na metodologia espontânea dos juristas, a hermenêutica mantém a sua aura de movimento indiscutivelmente emancipador3. Que, aparentemente, não se dá conta de que o reforço do poder dos juristas proporcionado pela confiança na bondade de uma hermenêutica jurídica “contramajoritária” pode não apenas voltar-se contra o direito majoritário, mas ainda substituir os sentimentos comunitários de justiça por uma ponderação de valores que uma elite especializada declara serem os mais vantajosos para a comunidade ou os realmente queridos por ela. Ou seja, novamente, um Professorenrecht nasceria da promessa de um Volksrecht (HESPANHA, 2012, p. 21).

Ver LYNCH (2007) sobre a “nova” e a “velha” hermenêuticas. Isso, em nossa opinião, serve apenas para demonstrar que a teoria e a filosofia do Direito feitas no Brasil pouco dialogam com áreas como história, sociologia e ciência política (não apenas no sentido conteudístico, mas também no sentido do método, como se nota na extrema dificuldade de situar seus raciocínios no tempo e no espaço), e sofrem todas as consequências disso. E.g., não se questiona, colocando a questão no tempo e no espaço, qual é o perfil do juiz brasileiro, como ele é selecionado, quem é que vai realizar a “hermenêutica” etc. 2 3

4

(2) Essas semelhanças apontadas servem também de pretexto para falarmos sobre a necessidade de especializar o que vamos aqui tratar. É aqui que aparece o papel do método. Em primeiro lugar, o caso brasileiro é inserido em um contexto global4 que, ao mesmo tempo em que recebe influências de fora, também influencia outros países e, mais do que isso, essas influências externas interagem com nossa tradição, com nossa cultura, e criam nossas soluções próprias, nossas peculiaridades (como qualquer outro contexto também possui, seja a França, a Inglaterra, a Alemanha etc.). Com isso, buscase afastar tanto a ideia de “mimese” como a ideia de “jabuticaba”. Como afirma López Medina, o funcionamento de uma teoria estrangeira é sempre uma “cópia” transformada da original, por maiores que sejam os esforços envidados para alcançar uma “assimilação” perfeita no novo local (LÓPEZ MEDINA, 2009, p. 41). É por isso que Legrand fala da impossibilidade de “transplantes jurídicos” (LEGRAND, 2014). Como afirma Burke, o poder do mal-entendido – ou, melhor dizendo, da reinterpretação inconsciente – não deve ser subestimado. Mesmo que todas as pessoas de todas as regiões do globo vissem imagens idênticas pela televisão ao mesmo tempo, não interpretariam o que viam do mesmo modo. Como aponta Burke, isso é algo que surgiu com muita clareza de estudos empíricos da recepção da novela de televisão Dallas em vários países, de Israel a Fiji (BURKE, 2003, p. 84). E isso não é diferente com teorias jurídicas. O fato de determinadas teorias jurídicas aparentemente circularem em vários países do globo ao mesmo tempo, por si só, não é algo definitivo. É por isso que as análises devem ser situadas no tempo e no espaço, ressaltando-se a extrema relevância do elemento da espacialidade na análise5, algo que muitas vezes recebe pouca atenção. Esta pesquisa também compartilha do ponto de vista de Andrei Koerner, de que a abertura da reflexão jurídica a novos problemas e materiais, tal como praticada pela História Social e a Sociologia Jurídica, é necessária para (analisar e) criticar as teorias e conceitos das doutrinas jurídicas. Essa abertura, comum e rotineira em outras áreas de pesquisa, traz novos elementos para o conhecimento histórico do Direito e é um

4

Ver DUVE (2015), que aponta para a necessidade de abordar a história do Direito europeu em um contexto global. O mesmo pode ser pensado para o caso brasileiro. 5 Recentemente publicamos dois trabalhos sobre a questão da espacialidade:

FLORES; CASTAGNA MACHADO, 2015a, e FLORES; CASTAGNA MACHADO, 2015b.

5

momento para a formulação de novos problemas e teorias (KOERNER, 2012, pp. 632633).

(3) Assim, no presente caso, entende-se que uma mera análise de questões jurídicas a respeito de ativismo judicial é insuficiente. Por isso, estabelece-se um diálogo com História Social, assim como com a Ciência Política, em especial com a área de estudo do Pensamento Político Brasileiro. Cita-se aqui a obra de Christian Lynch a respeito da cultura política brasileira. De acordo com Lynch, a cultura política brasileira, autorrepresentada como periférica e atrasada, possui um espaço significativo para as “vanguardas modernizadoras”. Conforme o autor, há uma série de personagens entre estas que, ao longo da história brasileira, acreditaram estar imbuídas de uma missão de regeneração da república contra a classe política corrompida ou “carcomida”. Há o tecnocrata apartidário e patriota, engenheiro ou médico; há o bacharel ou o jurista liberal ou libertário, geralmente constitucionalista ou penalista; há o militar ou tenente positivista etc. Com o fim do domínio militar e a redemocratização do país (1985), os militares foram paulatinamente substituídos na condição de vanguarda burocrática pelos magistrados e promotores, especialmente os da esfera federal. Para Lynch, recentemente surgiu uma categoria nova, o juiz ou promotor de justiça que se considera uma espécie de novo tenente. Como este, também está encrostado no Estado (“vanguarda do tipo burocrático”), mas acredita-se também autônomo, respondendo apenas à própria consciência republicana iluminada pelo texto da Constituição. Eles empunham a lei e o processo com o objetivo deliberado de "passar o país a limpo" a partir de uma perspectiva moral republicana, como se estivessem imbuídos de uma missão providencial, à maneira dos tenentes da década de 1920. Embora possa haver outros motivos corporativos a moverem a atuação desses grupos (um viés de classe média alta, imbuída dos valores supostamente meritocráticos do concurso, o desejo de manter a autonomia etc.), Lynch interpreta que não se pode dizer que obedeçam a intuitos partidários, no sentido de ser um braço de posição política partidária. O horror do Ministério Público e de grande parte da magistratura é à política e aos políticos em geral, independentemente das clivagens existentes no Congresso. Eles não têm interesse em um governo forte, cuja eventual

6

força poderia atrapalhar a “ação republicana” do MP. Por fim, recorda-se que quem criou o super Supremo Tribunal Federal e o super Ministério Público foi a própria classe política na Constituição e nas reformas posteriores. Empoderaram o Judiciário com o controle concentrado de constitucionalidade. Emanciparam o ministério público do Executivo, e agora parece que a polícia federal também se emancipou do governo (LYNCH, 2015). Portanto, com isso são descartadas teorias de cunho liberal que tentam explicar a questão a partir de certa noção de “paternalismo”.

(4) Apontamos aqui alguns fatores que entendemos que contribuem para isso. (4.1) Tem a ver com um tipo de “messianismo jurídico” que ainda assombra o ensino jurídico no Brasil, especialmente as faculdades mais tradicionais. Entende-se isso como uma reminiscência distorcida do que foi o ensino jurídico brasileiro do século XIX. Conforme Wanderley Guilherme dos Santos, com a criação, em 1927, das Faculdades de Direito de Olinda, Pernambuco, e de São Paulo, foi constituída a arena onde se iria gerar, discutir e difundir as doutrinas sociais, políticas, econômicas e de administração durante todo o século XIX e os primeiros trinta anos do século XX. O papel desempenhado na evolução da cultura europeia pela Filosofia, isto é, o de ser a grande matriz que incorporava todo tipo de conhecimento e saber, que gradativamente se foram tornando autônomos, inclusive organizacionalmente, foi no Brasil empreendido pelas Faculdades de Direito e pelos sistemas jurídicos. A inexistência de instituições especializadas, entre outras razões, fez com que os estudiosos dos problemas sociais, econômicos e políticos se refugiassem nas escolas de Direito e aí desenvolvessem seus estudos e reflexões. Assim, é nas Escolas de Direito que se discute, estuda e critica não apenas teorias jurídicas, mas também econômicas (cursos de economia política fizeram parte desde o início das escolas jurídicas), administrativas, sociológicas e políticas. E isto durante todo o século XIX e parte do século XX (SANTOS, 2002, p. 24).

7

Conforme Sontag há muito tempo a participação dos bacharéis em Direito na estrutura política imperial brasileira do século XIX vem sendo enfatizada por um grande número de historiadores. O próprio esforço do Império em fundar faculdades de Direito no Brasil teria sido uma resposta à necessidade de quadros para gerir a política no momento em que o Brasil se tornava independente de Portugal. Para Sontag, as interpretações específicas a respeito do fenômeno têm variado muito, porém o que interessa reter é que, a partir desse ponto de consenso da historiografia nacional, é possível dizer que, no imaginário imperial, o jurista seria a figura mais apta a participar na esfera dita política e guiar o país rumo à chamada civilização (SONTAG, 2009, p. 68). Conforme o estudo clássico de José Murilo de Carvalho, a elite brasileira era educada com valores e linguagens comuns nessas faculdades de Direito, o que também tornou possível um acordo básico sobre a forma de organização do poder (CARVALHO, 2010, p. 42). Posteriormente, no século XX, foram criados outros cursos, foram criadas as universidades, e o Direito perdeu a centralidade que tinha no século XIX e começo do século XX. Autores como Marcos César Alvarez (2012) e Dominichi Miranda de Sá (2006), escreveram sobre o debate travado entre “homens de letras” e “homens de ciência” nas primeiras décadas do século XX no Brasil, e, como resultado disso, a tradição até então dominante dos bacharéis passou a ser sistematicamente criticada, considerada como um dos principais obstáculos para o desenvolvimento efetivo da ciência brasileira. Em tal debate, os saberes modernos por excelência seriam a Medicina, a Engenharia, a Educação e, posteriormente, as próprias Ciências Sociais. Como

resultado,

formou-se

um

distanciamento,

ainda

presente

no

Brasil

contemporâneo, entre o Direito e as Ciências Sociais – que terminou por empobrecer ambas as áreas de conhecimento –, ao menos em parte, fruto da construção desses estereótipos que se disseminaram ao longo do combate entre homens de letras e homens de ciência desde o início do século XX no país. Além desses trabalhos, cita-se a importante análise crítica do ensino jurídico no Brasil de Aurélio Wander Bastos (1998).

8

Entretanto, embora todo esse cenário, tem algo de político no ensino jurídico brasileiro, herdeiro do século XIX, que permanece. É interessante citar aqui a percepção de Virgílio Afonso da Silva, de que do início do século XIX (na verdade, desde a independência, em 1822) até 1945, pensamento constitucional e pensamento político (ou político-institucional) são expressões em grande medida coincidentes. Não é à toa que os principais constitucionalistas desse período são, ao mesmo tempo, os principais pensadores das instituições políticas brasileiras (SILVA, 2015, pp. 229-230).

(4.2) Essa forma de agir dessa vanguarda de tipo burocrático também tem ver com a pouca penetração social dos partidos políticos no Brasil. Eles não conseguem fazer o papel de racionalizar a democracia, de organizar as pautas, as reivindicações, as discussões etc. Claro, isso não quer dizer que os partidos sejam fracos, pois os resultados da pesquisa de Guarnieri “mostram que os partidos que a literatura corrente trata como fracos, isto é, onde as lideranças não teriam controle sobre a organização e seus membros, são na verdade partidos fortes” (GUARNIERI, 2009, p. 173). Também não quer dizer que os partidos não tenham ideologia, que “os partidos no Brasil são de mentirinha, sem preocupação programática, e que seus líderes querem apenas o poder pelo poder”, como afirmou Joaquim Barbosa (SOUZA, 2014). Isso é de um reducionismo muito simplório. É possível identificar as ideologias e as diferenças entre partidos como PT, PSDB, DEM, PSOL etc. Mas essa questão dos partidos acaba abrindo espaço para as corporações e “ideologias” corporativas, que possuem uma pauta própria, sem ter vinculação necessária com ideologias partidárias.

(4.3) Outro ponto a ser levado em consideração diz respeito a aquilo que autores como Marcos César Alvarez (2012) e Dominichi Miranda de Sá (2006) escreveram sobre o debate travado entre “homens de letras” e “homens de ciência” nas primeiras décadas do século XX no Brasil. Como resultado desse debate, a tradição até então dominante dos bacharéis passou a ser sistematicamente criticada, considerada como um dos principais obstáculos para o desenvolvimento efetivo da ciência brasileira. Em tal

9

debate, os saberes modernos por excelência seriam a Medicina, a Engenharia, a Educação e, posteriormente, as próprias Ciências Sociais. Como resultado, formou-se um distanciamento, ainda presente no Brasil contemporâneo, entre o Direito e as Ciências Sociais – que terminou por empobrecer ambas as áreas de conhecimento –, ao menos em parte, fruto da construção desses estereótipos que se disseminaram ao longo do combate entre homens de letras e homens de ciência desde o início do século XX no país. Além desses trabalhos, cita-se a importante análise crítica do ensino jurídico no Brasil de Aurélio Wander Bastos (1998).

(4.4) A forma de seleção, de contratação dos atores que aqui se quer investigar fez surgir e popularizar a figura do “concurseiro”6, não apenas admitindo em cargoschave pessoas com lacunas relevantes em sua formação, mas também provocando um impacto muitas vezes negativo na formação dos juristas, a começar pela desvalorização das disciplinas chamadas de “propedêuticas” (aí incluída a história do direito) nos cursos de graduação, por não serem, normalmente, exigidas em concursos públicos, bem como uma simplificação do ensino de disciplinas dogmáticas mais tradicionais (e.g., direito civil).

(4.5) Nisso, claro, está o papel da interpretação do Brasil. Em concursos para juiz, promotor, procurador, dentre outros, não é exigido conhecimento de história, de política, de economia, de sociologia etc. Mas os atores aprovados em tais concursos sempre possuem uma interpretação do Brasil a oferecer, que muitas vezes são leigas e esbarram nos clichês oferecidos pelos meios de comunicação ou transmitidos oralmente por tradição familiar, por amigos etc.7 Deve ser notado, por exemplo, que Deltan Dallagnol, conhecido por seu trabalho nos processos relacionados com a operação Lava-Jato, afirma que “A corrupção sangra o nosso País”, que “A corrupção endêmica levou a ser cunhada, na nova República,

6

Sobre isso, ver FONTAINHA; GERALDO; VERONESE; ALVES, 2015. Aqui entra também a questão do “autodidatismo”, no sentido em que Alberto Venâncio Filho afirma que novas ideias artísticas, sociais e políticas eram discutidas pelos estudantes de direito, principalmente a partir da segunda metade do século XIX, mas essa discussão ocorria fora das salas de aula e longe dos mestres (ALVAREZ, 2014, p. 15) 7

10

durante o governo Getúlio Vargas, a expressão “mar de lama”.”, que “a corrupção no Brasil remonta ao período colonial e a uma cultura de exploração. Padre Antônio Vieira, no sermão do bom ladrão, já dizia que os governantes não vinham de Portugal com o propósito de alcançar nosso bem, mas sim de alcançar nossos bens. Quando a família real aportou no Brasil, em 1808, fugida de Napoleão, não havia uma estrutura palaciana para a abrigar. Hospedou-se na Quinta da Boa Vista, então pertencente a um traficante de escravos, que foi agraciado com uma série de benefícios pela coroa” (MACEDO, 2016). São apenas clichês que já tiveram a sua falta de cientificidade cabalmente demonstrada por Jessé Souza (2009), por exemplo. Souza critica esse tipo de visão de que seríamos vítimas de uma espécie de “mal de origem”, como decorrência de um suposto legado personalista e patrimonialista que os portugueses teriam nos deixaram, o que explicaria a presença da corrupção, pensada como uma característica folclórica desse tipo de sociedade e não como algo congênito ao capitalismo – como de resto nos mostrou sobejamente a última crise do capitalismo – em qualquer latitude do globo (SOUZA, 2009, p. 56). Entretanto, quando tais afirmações são proferidas por alguém com tanto poder nas mãos, como Dallagnol, as consequências podem ser graves. Pelo tipo de discurso proferido por instituições como Ministério Público, Judiciário etc., percebe-se que há uma crença fortemente arraigada de que o grande mal do Brasil é a corrupção.

(5) Assim, embora o papel político desses atores tenha sido modificado, por questões externas e internas às corporações apontadas, a sua formação acadêmica não acompanhou essa modificação, não sendo fornecido a esses atores um instrumental adequado para lidar com essa nova condição, criando-se importantes lacunas.

(6) Com isso, propõe-se analisar os currículos de cerca de 30 faculdades de direito do Brasil no período apontado que mais aprovam nesses concursos, entender como esses currículos foram construídos, as presenças e lacunas importantes neles observadas, articulando isso com análises discursivas de fontes como decisões judiciais,

11

jornais (artigos e entrevistas de juízes, promotores etc.) e entrevistas realizadas com profissionais selecionados.

(7) Uma hipótese que se levanta é que deficiências na educação jurídica, refletidas nos currículos, com uma série de lacunas importantes, acabam por influir naquilo que é chamado de “ativismo judicial”. Como isso ocorre, também é algo a ser pesquisado.

REFERÊNCIAS

ALVAREZ, Marcos César. A Formação da Modernidade Penal no Brasil: Bacharéis, Juristas e a Criminologia. In: FONSECA, Ricardo Marcelo; SEELAENDER, Airton Cerqueira Leite (Orgs.). História do direito em perspectiva. Curitiba: Juruá, 2012, pp. 287-304. ALVAREZ, Marcos César. Do Bacharelismo Liberal à Criminologia no Brasil. Revista USP, n. 101, pp. 11-26, mar./abr./maio 2014. ÁVILA, Humberto. Neoconstitucionalismo: entre a ciência do direito e o direito da ciência. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE), n. 17, pp. 1-19, jan./mar. 2009. BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista de Direito Administrativo, v. 240, pp. 1-42, abr./jun. 2005. BASTOS, Aurélio Wander. O Ensino Jurídico no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998. BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. Tradução de Leila Souza Mendes. São Leopoldo: UNISINOS, 2003. CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. DIMOULIS, Dimitri. Crítica ao Neoconstitucionalismo. Revista do Programa de PósGraduação em Direito da Universidade Federal da Bahia, n. 22, pp. 179-203, 2011.

12

DUVE, Thomas. História do Direito europeu: perspectivas globais. Tradução de Walter Guandalini Junior. Revista da Faculdade de Direito - UFPR, v. 60, n. 3, pp. 383-412, 2015. FLORES, Alfredo de J.; CASTAGNA MACHADO, Gustavo. O “espaço jurídico” como conceito heurístico alternativo em pesquisas de História do direito: um diálogo com a metodologia da antropologia jurídica In: XXVIII Simpósio Nacional de História, 2015a, Florianópolis. Disponível em: < http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1439864653_ARQUIVO_Espacialid ade-versaofinal.pdf > FLORES, Alfredo de J.; CASTAGNA MACHADO, Gustavo. História do Direito e Antropologia Jurídica: um diálogo mediante o uso de espaço jurídico como conceito heurístico alternativo em pesquisas jurídicas In: IOCOHAMA, Celso Hiroshi; TRAMONTINA, Robison; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de (Orgs.). História, poder e liberdade. Florianópolis: CONPEDI, 2015b, pp. 4-35. Disponível em: < http://www.conpedi.org.br/publicacoes/66fsl345/11208znb/Ud98x53lT6i3xllF.pdf > HESPANHA, António Manuel. As culturas jurídicas dos mundos emergentes: o caso brasileiro. Revista da Faculdade de Direito - UFPR, n. 56, pp. 13-21, 2012. FONTAINHA, Fernando de Castro; GERALDO, Pedro Heitor Barros; VERONESE, Alexandre; ALVES, Camila Souza. O concurso público brasileiro e a ideologia concurseira. Revista Jurídica da Presidência, v. 16, pp. 671-702, 2015. GUARNIERI, Fernando Henrique Eduardo. A força dos “partidos fracos”: um estudo sobre a organização dos partidos brasileiros e seu impacto na coordenação eleitoral. Tese (doutorado) – Universidade de São Paulo, Faculdade de Direito. São Paulo: 2009. KOERNER, Andrei. A História do Direito como recurso e objetivo de pesquisa. Diálogos, v. 16, n.2, pp. 627-662, mai./ago. 2012. LEGRAND, Pierre. A impossibilidade de ‘transplantes jurídicos’. Tradução de Gustavo Castagna Machado. Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito/UFRGS, v. 9, n. 1, pp. 11-39, 2014. LÓPEZ MEDINA, Diego E. ¿Por qué hablar de una “teoría impura del derecho” para América Latina? In: BONILLA MALDONADO, Daniel (Org.). Teoría del derecho y transplantes jurídicos. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, Universidad de los Andes, Pontificia Universidad Javeriana, 2009, p. 37-90. LYNCH, Christian Edward Cyril. A Velha e a Nova Hermenêutica Jurídicas: uma breve digressão. Ab Initio, v. I, pp. 272-281, 2007. LYNCH, Christian Edward Cyril. Cultura política brasileira. In: SANTOS, Gustavo; BRITO, Éder (org.). Política no Brasil. São Paulo: Oficina Municipal, 2015, pp. 57-83.

13

MACEDO, Fausto. ‘A corrupção não é um problema de um partido ou de um governo’, diz procurador da Lava Jato. Estadão, 2 de agosto de 2015. Disponível em: < http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/a-corrupcao-nao-e-um-problema-deum-partido-ou-de-um-governo-diz-procurador-da-lava-jato/ >. Acesso em: 12 jul. 2016. SÁ, Dominichi Miranda de. A ciência como profissão: médicos, bacharéis e cientistas no Brasil (1895-1935). Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006, p. 21-32; p. 73-87. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Roteiro bibliográfico do pensamento políticosocial brasileiro (1870-1965). Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz, 2002. SILVA, Virgílio Afonso da. Ideias e instituições constitucionais do século XX no Brasil: o papel dos juristas. Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 111, pp. 229-245, jul./dez. 2015. SONTAG, Ricardo. Triatoma baccalaureatus: sobre a crise do bacharelismo na Primeira República. Espaço Jurídico, Joaçaba, v. 9, n. 1, pp. 67-78, jan./jun. 2008. SOUZA, André de. Joaquim Barbosa critica congresso e diz que partidos brasileiros são de mentirinha. O Globo, 20 de junho de 2013. Disponível em: < http://oglobo.globo.com/brasil/joaquim-barbosa-critica-congresso-diz-que-partidosbrasileiros-sao-de-mentirinha-8441158 >. Acesso em: 12 jul. 2014. SOUZA, Jessé. A ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: UFMG, 2009. VERONESE, Alexandre. A judicialização da política na América Latina: panorama do debate teórico contemporâneo. Escritos (Fundação Casa de Rui Barbosa), v. 3, pp. 215265, 2009.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.