A FORMAÇÃO DOS PARES CÔMICOS NA COMÉDIA: DE ARISTÓFANES A ARIANO SUASSUNA

July 6, 2017 | Autor: Jacson Martins | Categoria: Aristophanes, Old Comedy, Ariano Suassuna
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A FORMAÇÃO DOS PARES CÔMICOS NA COMÉDIA: DE ARISTÓFANES A ARIANO SUASSUNA

FRANCISCO JACSON MARTINS VIEIRA1
ANA MARIA CÉSAR POMPEU2
RESUMO

Por ser uma arte que permanece há tantos séculos, o teatro desperta a
curiosidade acerca de seus primórdios, existindo várias conjecturas e
teorias sobre o surgimento da tragédia e da comédia. Como seria a
construção dos personagens cômicos antigos? O que dessa construção
permanece em nossos dias? Quais diálogos que o teatro mantém com outras
artes, como a Literatura de Cordel na elaboração de personagens cômicos?
São alguns dos questionamentos daqueles que se dedicam à musa cômica.
Muitos são os recursos utilizados na Antiguidade Clássica que ainda hoje
vigoram, pois, afinal, o teatro como a Literatura de Cordel é uma arte
híbrida que carrega consigo as marcas da tradição mescladas com os traços
do contemporâneo. Um exemplo desse entrecruzamento literário e oral é a
constituição dos tipos cômicos como a figura do roceiro astuto, recorrente
no primeiro comediógrafo a que temos acesso na cultura ocidental,
Aristófanes, em Acarnenses e abundante ainda nas peças teatrais de hoje,
como em o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, ou bem como no cinema,
arte que bebeu avidamente do teatro. Quem não recorda as figuras célebres
de Diceópolis, o duplo cômico (matuto) de os Acarnenses (Aristófanes) e de
João Grilo e Chicó, sendo este uma espécie de duplo, pois representa de
forma autorizada, a própria voz do poeta com todas as suas anedotas e os "-
Não sei, só sei que foi assim!" ou de algum outro matuto astuto de nossa
tradição cinematográfica ou teatral recriado na literatura de cordel, a
partir das influências ibérica ou grega?
______________
1 Aluno do Curso de Doutorado do Programa de Pós Graduação em Letras com
área de concentração em Literatura Comparada e Linha de Pesquisa em Estudos
Comparados de Literaturas de Línguas Clássicas.
2 Professora Dra. Departamento de Letras Estrangeiras - UFC. Orientadora do
Projeto de Pesquisa no Doutorado.
INTRODUÇÃO
Por ser uma arte que permanece há tantos séculos, o teatro desperta a
curiosidade acerca de seus primórdios, existindo várias conjecturas e
teorias sobre o surgimento da tragédia e da comédia. Como seria a
construção dos personagens cômicos antigos? O que dessa construção
permanece em nossos dias? Quais diálogos que o teatro mantém com outras
artes, como a literatura de cordel na elaboração de personagens cômicos?
São alguns dos questionamentos daqueles que se dedicam à musa cômica.
Muitos são os recursos utilizados na Antiguidade Clássica que ainda hoje
vigoram, afinal o teatro, como a Literatura de Cordel é uma arte híbrida
que carrega consigo as marcas da tradição mescladas a traços do
contemporâneo.
Um exemplo desse entrecruzamento literário e oral é a constituição
dos tipos cômicos como a figura do roceiro astuto, recorrente no primeiro
comediógrafo a que temos acesso na cultura ocidental, Aristófanes, e
abundante ainda nas peças teatrais de hoje, como em o Auto da Compadecida,
de Ariano Suassuna, ou bem como no cinema, arte que bebeu avidamente do
teatro.
Diante dessa apropriação e recuperação dos mecanismos narrativos da
comédia e de seu caráter atemporal, torna-se importante salientar que a
Comédia Antiga, além de construir "tipos cômicos", apresenta personagens
não universais, como os que são caricaturas de pessoas que viveram em
Atenas em um momento específico.
Pompeu (2011) nos esclarece que Acarnenses é a primeira comédia
escrita por Aristófanes, encenada em 425a.C. Ela traça um retrato
caricatural da cidade de Atenas, num período de crise das instituições
democráticas diretamente relacionada com a guerra do Peloponeso (431-404).
O título da peça refere-se aos habitantes do demos de Acarnas, ex-
combatentes da Maratona, que tinham apoiado a guerra contra Esparta por as
suas terras terem sido saqueadas pelos guerreiros lacedemónios.
O caráter didático do texto é expresso pelo próprio autor: "O que é
justo também é do conhecimento da comédia. Ora o que eu vou dizer pode ser
cáustico, mas justo é". Uma marca deste caráter didático pode ver-se no
discurso e nos nomes de alguns personagens, que têm uma significação
alegórica, como Diceópolis, o personagem principal, significa cidade justa.



Em Acarnenses, Aristófanes põe em cena nomes de figuras eminentes da
Grécia Antiga como o de políticos (Cleão e Lâmaco), pensadores (Sócrates) e
poetas (Eurípides e Ésquilo). A referência a essas personalidades, bem como
o diálogo com a mitologia, a história e o teatro, não constituía um
problema para a plateia de Aristófanes. No entanto, para nós, leitores de
outras gerações, a percepção de tais referências não é assim tão simples,
ainda que seja fundamental para a compreensão da comédia.
Nos atos de Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, esta apropriação
se efetiva a partir do uso de textos da tradição popular como O dinheiro,
de Leandro Gomes de Barros (1865-1918), no qual há um cachorro cujo dono
destina uma soma em dinheiro para que seu enterro seja feito em latim, um
gato que "descome" dinheiro, ou no 3º ato, com a preparação da parábase,
pela união dos discursos antes discordantes de João Grilo, um consenso em
virtude das trapaças, dos enganos, para que o coro, idealizado muitas vezes
por seu fiel escudeiro, o bobo Chicó, possa representar a voz do
protagonista/poeta.
Nesta perspectiva, todas as aparentes discordâncias são resolvidas e
integradas numa justiça do coro sagrado do teatro de Dioniso, em
Aristófanes, e podem ser resolvidas em Suassuna na divindade coletiva ou
coral da Compadecida, que "força" um consenso no agón entre Jesus e o
Diabo, para a salvação de João Grilo (representante dos sofridos
nordestinos), o justo.
Em Aristófanes, Diceópolis, que atua na comédia como João Grilo no
Auto da Compadecida representa muitos cidadãos, ele é a "Cidade Justa"
(espectador do teatro, participante da assembleia, ator ou personagem de
Eurípides, vendedor na sua ágora), que embora tenha burlado a assembleia, é
apontado pelo coro como justo, tendo convencido o próprio coro e vencido
Lâmaco (soldado representante da guerra até no nome 'Grande Batalha'). É
nesta interação de discursos que estabelecemos contato com o maior
entendimento da história da comicidade, a fim de entender os recursos que o
comediógrafo utilizou ao compor seus personagens, que permanecem por
séculos em nossa tradição.




Portanto, a presente investigação tem como proposta fazer uso do bem
cultural herdado de Aristófanes e da comédia popular recontada em versos,
através da literatura de cordel por Ariano Suassuna como forma de pensar
nos principais recursos cômicos que foram e ainda são utilizados na
confecção de personagens (heróis) cômicos em Acarnenses e no Auto da
Compadecida.


METODOLOGIA
Em termos metodológicos, nossa pesquisa se apoia em uma perspectiva
comparativista, considerando o contínuo uso da oralidade efetivado na
Comédia como voz autorizada para, como nos afirma Lacan anunciar o estatuto
da noção de linguagem e do próprio individuo, por meio de ações múltiplas,
grotescas como forma de afastar-se do caráter de opressão para a
compreensão e apreensão de uma verdade pura, muitas vezes advinda do social
e das situações de injustiça, como defendida por Diceópolis em Acarnenses e
por João Grilo em Auto da Compadecida.
Eis que da multiplicidade das práticas do discurso deriva-se o que se
pode reconhecer como uma tipicidade, um modo totalmente particular de
afirmação do sujeito, aquilo que o torna ímpar, diferente dos demais. Essa
imagem, capaz de reunir habilidades estabelecedoras de um valor cultural da
literatura é o que há de mais íntimo e intransferível nesse diálogo
proposto entre as obras estudadas e seus autores por operarem um mecanismo
narrativo simples e divertido através do diálogo entre o discurso literário
e o sociológico, tão presentes nos contextos nordestino e grego.
Para atingirmos nossos objetivos, o corpo do presente trabalho será
dividido em quatro capítulos. No primeiro, apresentaremos uma panorâmica
histórica acerca da Comédia Grega. No segundo capítulo, trataremos de
questões inerentes à estrutura da Comédia, ressaltando ainda sua
importância como elemento presente e ativo no processo de construção da
herança cultural erudita, mas de origem popular. No terceiro capítulo
discorremos sobre a literatura de Cordel, suas influências e os diálogos
possíveis com a comédia grega.
Por fim, desenvolveremos ao longo do quarto capítulo a análise
comparativa entre a tradução da comédia Acarnenses de Aristófanes, do texto
original grego de 425 a. C., que nos servirá como paradigma da Comédia
Antiga e o texto do Auto da Compadecida de Ariano Suassuna, demonstrando
que a oralidade/ linguagem matuta, tão presente na obra de Suassuna exerce
grande relevância na formação dos personagens cômicos, encontrando nesse
diálogo literário de caráter (in)formacional sua efetivação.
RESULTADO E DISCUSSÃO
A Literatura Popular vem sendo cada vez mais estudada e reconhecida
no âmbito acadêmico, ressaltando seu espaço regional pela criação e
construção de uma nova vertente literária. Nesse contexto, permeado de
apropriações e recriações é que estudaremos a linguagem matuta e os duetos
cômicos cordelescos fomentadores do imaginário e da construção de heróis
cômicos populares, por meio de rituais presentes na tradição popular
nordestina, de fontes escritas e de uma modalidade narrativa até pouco
tempo desprezada, esquecida, dotada apenas de uma má qualidade da
impressão, o pouco caso com a "correção" linguística.
Comum a este tipo de literatura, presença marcante da oralidade, o
fato de ser tradicionalmente vendida em feiras e o tipo de consumidor, em
geral pessoas de baixo nível escolar, cuja identificação com os folhetos se
estabelece por meio de variadas temáticas, havendo assim, uma significativa
mudança quanto à recepção dessa literatura, capaz de dialogar com outras
fontes literárias.
Com isso, a "importância" do cordel pelo meio acadêmico, dar-se pela
produção de intelectuais como Ariano Suassuna que transpõe episódios
inteiros do verso para a prosa ou vice-versa num imenso caldeirão de
ideias, consciente da força que essa modalidade literária detém na
representação do imaginário do povo, solidificando sua maneira de pensar e
de reagir ante os fenômenos sociais.
Essas reações aos diferentes contextos sociais, motivadas pelas
experiências escritas, auditivas e visuais pretéritas atribuem um valor
positivo à figura do herói cômico e /ou à conversão do matuto, do rústico e
são responsáveis pela construção mítica dos mesmos a partir do documento
linguístico do falar roceiro/caipira, herança cultural cearense. É nesse
contexto que a Literatura de Cordel se apresenta como um importante veículo
de expressão, habilitado à aproximação do popular e do erudito como também,
ferramenta de articulação da comunicação do sertão desprezado e inculto com
as referências gregas de narração, observadas em Aristófanes.
Por todas essas razões é que o presente trabalho, que se configura em
nosso projeto pretende realizar um estudo comparativo entre esses rituais
dionisíacos agrários apresentados em Acarnenses, de Aristófanes e dos
empréstimos da tradição do nordeste brasileiro tão bem versados por Ariano
Suassuna no Auto da Compadecida.
Para tanto, nos valemos da análise das obras referidas por gravitarem
em torno da temática proposta e abordarem de forma direta a linguagem
matuta e a construção dos duetos cômicos, tendo como foco a figura do
caipira/matuto. Dessa forma, abre-se o espaço para pensarmos um fenômeno
característico do Nordeste, que incorporado ao imaginário popular, é
elemento simbólico da cultura nordestina, bem como a pluralidade do herói
grego.
Considerações Finais
As duas peças que compõem o corpus da nossa pesquisa apresentam o
atrativo uma vez que a primeira, Acarnenses, foi encenada no começo da
Guerra do Peloponeso em 425 a.C. na qual o comediógrafo, num processo de
inversão, a começar pelo nome do personagem Diceópolis (cidade justa) veste-
se na defesa da paz em um ambiente corrompido por seus concidadãos a ponto
de assumir um discurso denso e sociológico para alcançar este objetivo. Já
Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, encenada em 1957 é fruto da
apropriação de textos tradicionais nordestinos, escrevendo com a
colaboração implícita de anos, quem sabe séculos de Literatura Oral (tantas
vezes transformada em texto apenas por praticidade e preservação).
O gesto de Suassuna ao teatralizar um texto em verso equivale ao
gesto do cordelista em versar uma história em prosa. O verbo versar é uso
corrente entre os autores de cordel. Trata-se de pegar uma história já
existente (lenda popular, conto de fadas etc.) e recontá-la em forma de
sextilhas.
Como as personagens cômicas e trágicas se confundem no referido
texto, é interessante traçar um percurso no qual elas se explicam: na
Poética de Aristóteles, a ação trágica tem caráter elevado e a ação cômica
rebaixa a grandeza. O protagonista da tragédia para tanto, necessita ser um
herói trágico, jamais um herói cômico. O jocoso provoca riso e jamais a
compaixão.
A comicidade, segundo Aristóteles, que em sua Arte Poética (2005), é
característica dos homens comuns, inferiores e não elevados, que, portanto,
não poderiam ser heróis. No entanto, no Auto da Compadecida vemos o oposto:
o herói é o astuto, o engraçado, o malandro. A personagem causa simpatia.
Chicó é uma personagem de grande destaque na obra, sendo companheiro todo o
tempo de João Grilo. Além disso, é tido como a personificação do
cordelista, contando histórias que não raro são absurdas e quando
questionado, as justifica com o chavão: "não sei, só sei que foi assim",
presente em muitos dos diálogos, como também podemos perceber na
representação do duplo, efetivado por Diceópolis.
Suassuna, ao apropriar-se de Literaturas de Cordel, também acaba por
aproximar o leitor da tradição do povo nordestino. Esse processo de
identificação facilita a assimilação do leitor, ampliando também seu
horizonte de interpretação o que se comprova na aproximação dos dois
autores pela "parábase" termo exclusivo da comédia antiga, do qual nos
apropriaremos para justificar a "quebra de ilusão dramática" de João Grilo
ao de forma caprichosa elaborar uma série de discursos para solidificar
suas ações de convencimento de sua condição miserável de vida até o agón
manifestado na cena do julgamento final, com interseção da Mãe de Cristo.
Seja por meio da ampliação dos diálogos com o predomínio do metro
iâmbico em Aristófanes ou pela formalidade do uso das sextilhas em Suassuna
podemos verificar nos aspectos dramáticos e cênicos das comédias estudadas
as possibilidades de averiguação de nosso objeto de pesquisa, e, por sua
incompletude, indicar caminhos para novas investigações nesse colorido
caleidoscópio literário que projeta imagens que estão em constante mutação.

Portanto, em ambas as obras, por mais incorrigíveis que possam se
apresentar esses personagens, na defesa de seus objetivos, marcados por uma
devoção obstinada a uma causa própria, em algum momento são levados a
sofrer uma transformação com a qual a arte cômica opera a desconstrução de
certezas às quais estão fixadas nestes personagens.








BIBLIOGRAFIA BÁSICA
Livros
ARISTÓFANES. Os Acarnenses. Introdução, versão do grego e notas de Maria de
Fátima de Sousa e Silva. Coimbra: Instituto Nacional de Investigação
Científica, 1985.

ARISTÓTELES. Arte Poética. In: BRUNA, Jaime (trad.). A poética clássica:
Aristóteles, Horácio, Longino. 12.ed. São Paulo: Cultrix, 2005.

POMPEU, Ana Maria César. Aristófanes e Platão: A Justiça na Pólis.
Biblioteca 24 Horas. São Paulo, 2011.

SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 35ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 2005.

BIBLIOGRAFIA DE APOIO

DUARTE, Adriane da Silva. O dono da voz e a voz do dono: a parábase na
comédia de Aristófanes. São Paulo : Humanitas / FFLCH / USP: FAPESP, 2000.

BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. 2ªed.
Tradução de: Nathanael C. Caixeiro. Rio de janeiro: Zahar, 1987.

GAZOLLA, Rachel. Pensar mítico e filosófico: estudos sobre a Grécia Antiga.
São Paulo: Loyola, 2011.

SUASSUNA, Ariano. Iniciação à Estética. 2ª ed. Recife: Editora
Universitária – UFPE, 2007.

PROPP, Vladimir. Comicidade e Riso. Tradução de: Aurora Fornoni Bernadini
e Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Ática, 1992.

Teses, dissertações e monografias.
JANH, Livia Petry. As raízes ibéricas e populares do teatro de Ariano
Suassuna. 2008. Monografia (Graduação em Letras) Faculdade de Letras e
Ciências Humans, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2008.
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