A Formação dos professores liceais de ciências (1836-1859)

June 7, 2017 | Autor: Carlos Beato | Categoria: História Da Educação, Historia da Educação, História das Disciplinas Escolares
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A FORMAÇÃO DOS PROFESSORES LICEAIS DE CIÊNCIAS (1836-1859)

Carlos Beato Escola Secundária de José Afonso, Loures [email protected]

Introdução A modernização do ensino secundário português iniciou-se com o decreto de Passos Manuel que, em 17 de Novembro de 1836, mandava criar os liceus. Um dos vectores inovadores dessa legislação era o aparecimento das ciências e das línguas modernas como disciplinas escolares. Inicialmente houve muita dificuldade na execução desse decreto sendo necessário passar quase um quarto de século até os liceus previstos entrarem todos em funcionamento. Ao mesmo tempo as ciências viram a sua entrada nos programas escolares muito dificultada e foi sem surpresa que logo em 1844, com Costa Cabral, as cadeiras correspondentes foram abolidas pela legislação que reformou o decreto setembrista. Dado que as disciplinas de ciências tinham marcado uma presença praticamente virtual sob a legislação inicial, poderá dizer-se que esta medida, ao limitar os objectivos do ensino liceal, de algum modo, formalizou a situação vivida anteriormente. Em meados da década seguinte uma discreta lei de 1854, com Rodrigo da Fonseca no Ministério do Reino, permitiu a reintrodução das disciplinas de ciências nos programas liceais e, desta vez, com existência real, porque também as tornava “preparatórios” necessários para o acesso à Universidade. A necessidade de formação para os professores foi um dos obstáculos à rápida introdução das disciplinas de ciências no currículo liceal. Ao desenvolvimento da instrução secundária “se opõem dois grandes embaraços” referia o Conselho Geral Director do Ensino Primário e Secundário (CGDEPS) em 1839 explicitando que uma dessas dificuldades “é a falta de Professores hábeis, que ensinem as matérias respectivas com dignidade e perfeição” e embora fale “principalmente na Classe das 1

Humanidades,” o que se torna compreensível à luz do posicionamento geral deste órgão de direcção da Instrução Pública, traz para o debate a necessidade de fazer formação dos professores com “uma Escola Normal destas disciplinas como há em outros países” 1. O acesso à carreira era feito por concurso, com prestação de provas públicas, e os candidatos eram classificados em mérito absoluto e relativo. Depois de aprovados no concurso público os novos professores poderiam ser providos provisoriamente ou definitivamente, ficando proprietários da cadeira, consoante a qualidade da prestação e a classificação obtida. Normalmente, o professor provisório tinha acesso ao fim de alguns anos à propriedade da cadeira que leccionava. O controlo sobre a acção do professor era diminuto, salvo no que se refere ao seu comportamento moral e político, conferindo-lhe uma grande autonomia, não só nos conteúdos como nos métodos de ensino.

As habilitações literárias Num documento de 16 de Fevereiro de 1838, em que o órgão dirigente da instrução pública em Portugal procura responder à pergunta “porque se não tem executado o Decreto de 17 de Novembro de 1836, ou que dificuldades tem o Governo encontrado na sua execução?”, que constava dos quesitos apresentados pelo deputado Fernandes Tomás nas Cortes, pode ler-se o seguinte: Em quanto às cidades do Porto e Lisboa, onde o novo sistema deve achar melhor aceitação, o Conselho, quis montar os Liceus, e para esse fim mandou abrir o Concurso às Cadeiras respectivas: mas, no Porto não apareceram opositores, e a respeito dos dois que o decreto mandava criar em Lisboa fez-se ao Governo a proposta dos Professores que concorreram, pela mor parte dos antigos Estabelecimentos, a qual ainda não veio resolvida. 2 Esta pequena amostra identifica rapidamente o problema da falta de professores. Independentemente da ocupação de professor poder ser interessante, ou 1

DGARQ/AN (Direcção-Geral de Arquivos/Arquivos Nacionais (Torre do Tombo)) - Minuta da Consulta, e Projectos sobre a Reforma da Instrução Primária e Secundária, alterando os Decretos de 15 e 17 de Novembro de 1836. Em data de 17 de Dezembro de 1839: Ministério do Reino (MR), Maço (M) 3499 2

DGARQ/AN – Esclarecimento do Conselho Geral Director do Ensino Primário e Secundário às Cortes, 16/02/1838: MR, M 2127

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não, enquanto meio de prover à sua subsistência, os indivíduos deveriam possuir formação de nível superior para conseguirem esse emprego o que é, desde logo, uma limitação ao número de candidatos. Nas cadeiras tradicionais não parecia ser muito complexa a situação, pese embora o posicionamento do Conselho Geral Director. Aí havia sempre o recurso a cativar indivíduos com formação em áreas clássicas em dificuldades para obter outras saídas profissionais no aparelho de Estado e actividades conexas. No caso das disciplinas de ciências tudo seria mais complicado dada a menor procura que os cursos da Faculdade de Filosofia tinham, embora fossem aceites, como se verá, candidaturas de indivíduos com formação em Medicina ou Matemática. Para serem nomeados professores proprietários de uma cadeira (ou, pelo menos, provisórios) os indivíduos, após fazer prova das suas habilitações literárias, tinham que se sujeitar a um concurso público que passava pela prestação de provas sob a forma de exame aos seus conhecimentos científicos e pedagógicos. Em princípio o melhor classificado era provido no lugar a que concorria. Havia no entanto outros factores, comportamento moral, religioso e político que influenciavam, e muito, a decisão final. Vários documentos nos dão informação indirecta sobre a exigência de formação superior. Assim recuando no tempo em relação à existência dos liceus, verifica-se que cerca de 1830, o número de cadeiras não providas era grande na generalidade das escolas existentes. O organismo dirigente da instrução pública, no relatório anual referente a 1829/30, enumera as cadeiras vagas, e realça “a dificuldade insuperável à Junta de as prover” 3. Talvez para ultrapassar estas dificuldades, nesse mesmo ano de 1830, é publicada uma resolução que facilita o provimento dos professores em determinadas cadeiras e que Albuquerque (1960) descreve do seguinte modo: Esta Resolução de consulta de 17-VII-1830 é uma medida de excepção: dispensa de concurso os concorrentes que, mediante certas condições (diploma de qualquer curso universitário, sendo leigos; aprovação pelas

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DGARQ/AN - “Conta Anual dos estudos e Escolas da sua Inspecção pertencente ao ano lectivo de 1829 para 1830” apresentada pela Junta da Directoria Geral dos Estudos: MR, M 1001

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corporações a que pertenciam, no caso de serem religiosos), se candidatassem às cadeiras de Matemática e de História do ensino médio. (p. 141) Como se verifica a exigência de formação inicial, para as duas cadeiras em causa, passava pela posse de um título universitário para os não religiosos. Na situação e porque era uma medida de excepção, qualquer que fosse esse diploma servia. Catorze anos mais tarde, existindo já alguns liceus, num concurso para a cadeira de Princípios de Física, de Química, e de Mecânica aplicados às Artes e Ofícios no Funchal, todos os três concorrentes usavam o título de bacharel em Matemática, sendo que um deles acumulava a Matemática com a Medicina e a Cirurgia. A lei, segundo o Conselho Provincial de Instrução Pública, manifestava a sua preferência pelos formados em Filosofia. No entanto, permitia uma interpretação lata do que isso significava como o mostra um dos pareceres produzidos. O Conselho discorre acerca da formação inicial de um dos candidatos e faz a sua interpretação da legislação em vigor: Verdade é que a Lei exige para o provimento da 7ª Cadeira do Liceu a formatura em Filosofia; mas parece que a Lei só teve em vista a inclusão daqueles que são formados em faculdades não análogas às disciplinas daquela cadeira, não já a exclusão dos formados em Faculdades, tais como a Matemática e a Medicina, das quais são condição obrigada a Física e a Química, e a Mecânica parte integrante da Matemática. 4 Para uma melhor compreensão das regras do jogo deve considerar-se que a organização da Universidade, a divisão das matérias pelas diversas Faculdades era diferente daquela que se usa hoje. Por exemplo, pertencia à Faculdade de Filosofia o curso de Física mas, ao lado, na Faculdade de Matemática tinha cabimento a Astronomia que é hoje parte reconhecida da Física. Deste modo, não é de estranhar que, sendo exigida a formação proporcionada pela faculdade de filosofia, fossem admitidos a concurso opositores, como os que se apresentaram no Funchal, formados em matemática, ou em medicina.

4DGARQ/AN

– Parecer do Conselho Provincial de Instrução Pública do Funchal (CPIPF) no concurso para provimento da cadeira de (“PFQMAO”) do Liceu do Funchal (01/10/1844): MR, M 3534

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As habilitações cívicas O que acontecia é que estes concursos públicos não eram apenas documentais. Depois da respectiva abertura, os candidatos tinham, de facto, que fazer prova documental das suas habilitações e, depois, eram sujeitos a um exame que permitia classificar, em mérito absoluto e em mérito relativo, os seus conhecimentos das matérias e também os seus conhecimentos de pedagogia. Realce-se a importância que era dada ao conhecimento do candidato pelas autoridades, o que serviria em última análise para autorizar, eliminar ou diferenciar concorrentes. Isso mesmo fica patente lendo o modo como o Conselho provincial do Funchal, após a apreciação dos méritos científicos dos candidatos, se pronunciava: Finalmente, do procedimento civil, moral e religioso do requerente, nada pode o Conselho dizer que não seja em abono dele, que sempre se tem feito mui recomendável pelo regular, e até exemplar, desempenho de todos os deveres sociais, dos quais em nenhum ponto se tem transviado. 5 Nalguns casos a apreciação era negativa, o que não aconteceu aqui neste processo de provimento da cadeira de Física e Química no Liceu do Funchal com nenhum dos candidatos. Aliás este processo terá sido espontâneo, a cadeira estaria vaga mas não terá havido abertura oficializada do concurso. Apesar de tudo notam-se diferenças no modo como as qualidades dos candidatos são apreciadas, o que permitiria desde logo uma certa classificação. Por exemplo, a opinião do Conselho provincial é muito mais efusivamente manifestada no caso do bacharel em Matemática, Medicina e Cirurgia que nos outros: Se o requerente possui, como se vê, tão avantajadas partes literárias, não menores qualidades morais concorrem nele para ocupar o lugar de mestre da mocidade. O Conselho da Faculdade de Matemática unanimemente o aprova em procedimento e costumes, e o abona pela sua prudência, probidade e desinteresse; o Conselho da Faculdade de Medicina com igual unanimidade o aprova em procedimento e costumes: de modo que o requerente, na Universidade, desenvolveu e radicou as felizes propensões morais que lhe

5DGARQ/AN

– Parecer do CPIPF no concurso para provimento da cadeira de “PFQMAO”do Liceu do Funchal (24/06/1844): MR, M 3534

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conheceram aqui não só os que o ensinaram, mas também os que familiarmente o trataram.6 O contraste é ainda mais significativo quando se vê que sobre o último opositor ao concurso se assinala apenas que “pelo que respeita ao procedimento e costumes do requerente, a aprovação do Conselho da Faculdade de Matemática é uma abonação de tanto peso que me é desnecessário acrescentar mais nada,” não aparecendo no texto nenhuma referência específica à apreciação da faculdade sobre as qualidades morais, religiosas ou políticas do candidato, “além das honras de acessit, com que foi condecorado” 7. De acordo com um documento posterior, a Proposta de Regulamento geral dos liceus, provavelmente de 1853, no artigo 67, acessit era um prémio atribuído aos alunos “que pelo seu comportamento moral e literário tiverem dado distintas provas de um mérito relevante” 8. Infelizmente para qualquer um dos candidatos, aquela que era a 7ª cadeira do Liceu Nacional do Funchal não chegou a ser provida. De facto, a culminar o processo de contestação às ciências liceais, a cadeira foi suprimida pelo decreto de 20 de Novembro de 1844, menos de três semanas depois de ter sido emitido o último parecer do Conselho Provincial de Instrução Pública do Funchal. O processo documental poderia ser significativamente mais complexo do que o que se infere do estudo deste caso passado no liceu madeirense. De facto quando em 1856 um candidato, que já era professor interino, requereu “ser admitido ao concurso da cadeira de Latinidade do Liceu de Santarém” teve que passar por um escrutínio bem apertado, e sujeitar-se à respectiva burocracia, para poder fazer o exame a que era obrigado. Os “documentos exigidos pela Lei” 9 foram, neste caso, pelo menos os que se enumeram. Uma certidão de nascimento, uma “certidão de formatura” em Teologia, um comprovativo do “regular exercício de funções” “interina e provisoriamente” na

6DGARQ/AN

– Parecer do CPIPF no concurso para provimento da cadeira de “PFQMAO”do Liceu do Funchal (01/10/1844): MR, M 3534 7DGARQ/AN

– Parecer do CPIPF no concurso para provimento da cadeira de “PFQMAO”do Liceu do Funchal (24/09/1844): MR, M 3534 8DGARQ/AN 9

– Proposta de Regulamento Geral dos Liceus Nacionais: MR, M 3576

DGARQ/NA - Termo de apresentação (em itálico a parte manuscrita): MR, M 3575

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regência da Cadeira de Gramática Latina do seminário de Santarém, isto quanto à sua identidade e habilitações. Do ponto de vista do seu comportamento o professor apresentou um “atestado do seu comportamento moral civil e religioso” “sem nota alguma, antes muito regular, e exemplar” passado pelo pároco do seminário de Santarém, um em que a Câmara Municipal daquela cidade atesta “que o suplicante tem o melhor comportamento moral, civil e religioso” e ainda um outro confirmando o seu bom “comportamento moral, civil e político”, assinado desta vez pelo Administrador do Concelho. Teve ainda que “mostrar-se isento de culpas neste julgado”, o que solicitou ao Juiz de Direito de Santarém e que este confirmou através do seu escrivão. Para terminar houve necessidade de um Bacharel formado em Medicina e Cirurgia atestar que o professor não padece moléstia alguma contagiosa, o que perfaz um total de oito certificados10. E depois disto tudo e de ser aprovado viu o seu provimento ser recusado, numa primeira fase, porque tendo realizado provas de exame em Coimbra em 28 e 29 de Fevereiro de 1856, e tendo sido promulgada, em Lisboa, uns dias antes, legislação que alterava o processo de colocação dos professores, o Conselho Superior de Instrução Pública (CSIP) entendeu que não podia prosseguir o processo.

As provas de acesos Passando agora à terceira fase do processo que é o da prestação de provas avaliadoras da real capacidade dos candidatos para exercerem a função de professores, começa-se por se apresentar um regulamento e programa para o exame de acesso à docência. Em função da escassez de documentos até agora encontrados, volta-se a falar de Mecânica. Neste caso a “Mecânica aplicada às Artes” que surgiu depois da extinção das cadeiras de ciências. Esta nova cadeira corresponde a uma parte da anterior, como se vê pelas respectivas designações. Recorde-se que o nome da cadeira criada com a legislação de Passos Manuel e eliminada pela de Costa Cabral era “Princípios de Física, de Química, e de Mecânica aplicados às Artes e Ofícios.” O decreto de 20 de Setembro de 1844 extinguiu, de facto, as cadeiras da área das ciências, deixando apenas a hipótese de haver no Liceu de Lisboa a de 10

DGARQ/AN: MR, M 3575

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“Geometria e Mecânica aplicada às Artes e Ofícios” enquanto, para os outros liceus, apenas sobrava o que vinha no seu artigo 49º: O governo poderá quando o julgar conveniente, estabelecer nos liceus das Capitais dos Distritos, segundo as circunstâncias e necessidades locais, Cadeiras das seguintes disciplinas. . . . “Introdução à História Natural dos três Reinos, com as suas mais usuais aplicações à Indústria, e noções gerais de Física” e “Química aplicada às Artes.” Em 1845 foram impressos, na Universidade de Coimbra (“Coimbra: Na Impr. Da Univ, 1845”), “Programas” para os exames dos candidatos a professores de várias disciplinas. Entre esses está o “Programa para os professores de Mecânica aplicada às Artes”, que se transcreve11: 1ª Lição O opositor tirará por sorte um ponto da Mecânica de Francoeur com antecipação de 24 horas, que explicará por espaço de uma hora; e na seguinte meia hora responderá às perguntas, que houverem de fazer os examinadores sobre as matérias do dito ponto. 2ª Lição Semelhantemente com um dia de intervalo, pelo menos, e não mais de três, tirará por sorte outro ponto de Mecânica Industrial de Poncelet, que explicará por espaço de uma hora, e responderá às perguntas que lhe fizerem sobre a mesma matéria, por espaço de meia hora.

11DGARQ/AN

– Relatório do Conselho Superior de Instrução Pública (CSIP) – 1846-1847, Documento anexo nº 3, Dossier: A. S. E. - MR, M 3543

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Em seguimento deste último acto, o Examinando será obrigado a mostrar ideias gerais nos seguintes objectos, em que será interrogado: 1º História e progressos da Mecânica Industrial, e especialmente das máquinas de vapor. 2º Teórica das máquinas simples, tendo em vista o atrito e a rigidez das cordas. 3º Classificação das máquinas, sua composição, e decomposição. 4º Considerações gerais sobre diversas espécies de motores, modo de avaliar a sua acção, de a transmitir, e mudar a sua direcção. 5º Obstáculos, e sua natureza, ao movimento das máquinas, causas da sua irregularidade, melhores meios de a diminuir. 6º Modo de avaliar numericamente o efeito útil das máquinas. 7º Descrição das máquinas de vapor, de baixa e alta pressão. 8º Descrição das diversas espécies de bombas. 9º Descrição das máquinas mais vantajosas, destinadas ao levantamento das águas. 10º Resistência de madeiras, pedras, e metais (empregados nas diversas construções), sujeitos a esforços, que tendem a produzir neles esmagamento, extensão, torção, ou rotura. Figura 1 – Programa para os professores de Mecânica aplicada às Artes (1845) Explicar pormenorizadamente, durante uma hora, um “ponto da Mecânica de Francoeur” de que se era informado com uma antecipação de apenas 24 horas, logo seguido, no máximo ao quarto dia, da explicação, também em 60 minutos, de um “ponto de Mecânica Industrial de Poncelet” conhecido com igual antecipação de 24 horas, não era decerto tarefa isenta de dificuldades. A acrescer havia ainda dois períodos de meia hora de questionamento pelos examinadores e mais um tempo indeterminado para mostrar conhecimentos gerais sobre itens tão diversificados como as máquinas simples ou a resistência de materiais. Aparentemente não há preocupação pedagógica aqui, mas isso talvez se deva a uma concepção devedora da ideia que o importante para ensinar é conhecer os conteúdos e que, sendo esta área de conhecimentos nova no ensino secundário, era, em primeiro lugar, por esse caminho que se devia seguir. De facto noutras áreas de ensino mais tradicional a questão pedagógica há muito que estava presente. 9

O professor interino de Latinidade do liceu de Santarém, referido atrás, foi sujeito a um exame contendo 11 itens diferentes de avaliação. No segundo, o examinando teve que provar a sua capacidade “No Método prático de ensinar; os Princípios da Gramática em geral; os Rudimentos da Gramática Latina, e da Portuguesa; a Construção dos Autores, notando as suas principais diferenças” e isso não é outra coisa senão a sua habilidade para transmitir os conhecimentos aos seus alunos, dito em modos mais modernos, a sua aptidão pedagógica. Mas a preocupação com a qualidade do ensino pode ser detectada em tempos bem mais recuados. Por exemplo, em 1824, no exame para uma das disciplinas mais clássicas do curriculum tradicional, o quadro das “Qualificações do exame de Retórica e Poética” inclui no item II o “Método prático de ensinar” referência óbvia ao que poderíamos chamar as capacidades pedagógicas do professor sendo, por curiosa coincidência, usada a mesma expressão que no exame de Gramática e Latinidade trinta e dois anos depois. 12 Mais atrás, ainda, num documento de 1816 com o programa dos exames dos candidatos a professores de primeiras letras já está presente a preocupação com o savoir faire dos futuros professores, aí também chamado de “método prático de ensinar,” com a curiosidade de aparecer a encimar a lista de qualificações necessárias13. Muito mais tarde, o CSIP, no primeiro ano do seu funcionamento, em reunião de 8 de Novembro de 1844 avalisa a conclusão da sua segunda secção, e reconhece que: O trabalho mais urgente de que primeiro se devia ocupar, eram – O Regulamento Económico e Governativo dos Liceus. - As Regras com que os Professores de Instrução Secundária se deviam dirigir no ensino e nos exames dos alunos – As Instruções para a habilitação e concurso dos Professores de Instrução Secundária – os quais trabalhos tinha já distribuído por seus membros. 14

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DGARQ/AN – Qualificações do exame de Retórica e Poética: MR, M 1907

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DGARQ/AN – Qualificações do exame de Primeiras Letras: MR, M 1907

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DGARQ/AN - Colecção das actas do CSIP no ano de 1844 e 1845, Documento anexo: MR, M 3532

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Tudo isto vem na mesma linha de preocupações com a capacidade e qualificação dos professores, o que referiríamos hoje como a sua formação científica e pedagógica e respectiva performance prática.

O provimento dos novos professores Finalmente depois deste procedimento o órgão de direcção do sistema de ensino, que entre 1836-1844 foi o CGDEPS e, depois, até 1859, o CSIP, ambos sediados em Coimbra, fazia a proposta e o Ministério dos Negócios do Reino efectuava o provimento do lugar pelo novo professor (provisoriamente quando o júri não tinha sido unânime na avaliação positiva das qualificações do candidato, ou como proprietário eterno no caso contrário). Mostra-nos isso mesmo um documento do Conselho Superior de Instrução Pública ao pedir autorização para o provimento temporário da Cadeira de Física, Química e História Natural no Liceu da Horta à qual “ foi único opositor o Bacharel Formado em Filosofia, José Joaquim de Azevedo Júnior” e em função das “qualificações que o mencionado opositor obteve naquele exame, as quais em geral são apenas de suficiente, que convirá, antes de lhe dar um provimento definitivo, sujeitá-lo às provas do ensino público, provendo-o temporariamente por três anos” 15. Aí começava um novo processo, com o pagamento dos direitos de e, dado que o equilíbrio financeiro era mais uma meta procurada que uma situação comum dos candidatos a professores, a consequência eram os pedidos de que o pagamento fosse em prestações, o que era prática recorrente. A situação passado este obstáculo passava a ser de quase total autonomia do professor proprietário da cadeira (quase sempre o provisório acabava por passar a proprietário, por norma ao fim de três anos de serviço sem problemas) – não havendo nas áreas de ciências quase nenhum controlo sobre a sua actividade que não fosse da ordem das questões morais, religiosas e políticas. Alguns documentos confirmam esta afirmação, mesmo que indirectamente. É o caso do ofício em que o reitor do liceu de Lisboa pede ao Ministério dois professores, externos ao liceu,

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DGARQ/NA – Consulta do CSIP de 1 de Junho de 1858: MR, M 3584

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competentes para avaliarem os conhecimentos de um candidato a professor de Mecânica: Para poder ter lugar neste Liceu o exame de um Opositor à Cadeira de Geometria e de Mecânica aplicadas às Artes e Ofícios, cujo concurso findou há dias, precisa-se da assistência de dois Examinadores peritos principalmente na Mecânica Industrial, os quais, juntos aos Professores do Liceu hábeis em Conhecimentos teóricos de Matemática, sejam os juízes competentes do mesmo exame. 16 Por vezes há desconhecimento puro e simples do que faz, ou do que se trata nas aulas das disciplinas da cadeira de ciências. Na acta da reunião de 23 de Outubro de 1857 do CSIP, está escrito que convém, Oficiar de novo ao Reitor do Liceu Nacional de Coimbra, para que o Professor de Introdução à História Natural dos três Reinos, e de Princípios de Física e Química, apresente os programas, e declare os compêndios por onde deve ensinar aquelas disciplinas. 17 Não se pode deixar de notar que o liceu de Coimbra era, nesta altura, o de maior proximidade física e académica àquele órgão dirigente que era constituído por professores da Universidade, deixando adivinhar o que se passaria nos outros liceus. Nas cadeiras clássicas já não seria bem assim. Os próprios Comissários dos Estudos, que eram quem, tirando o caso de Coimbra em que o liceu estava sob a alçada do reitor da Universidade, controlava todas as escolas primárias e secundárias em cada distrito, tinham formação nessas áreas. Nos relatórios que os Comissários apresentavam as referências às ciências eram mínimas, ou pela sua não existência enquanto disciplinas do ensino liceal, ou porque os responsáveis não se arriscavam a tecer demasiadas considerações sobre um campo que não era propriamente o seu. Um exemplo desse tipo de relatórios é o que, proveniente do Funchal, vem assinado não pelo Comissário de estudos mas sim pelo Governador Civil, onde são

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DGARQ/AN – Ofício de 17 de Maio de 1850 do “Comissário dos Estudos, Reitor do Liceu Nacional de Lisboa”, Francisco Freire de Carvalho: MR, M 3552 17

DGARQ/AN – Actas do CSIP do ano de 1857: MR, M 3580

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descritos com à-vontade os procedimentos de professores das áreas clássicas e literárias. Este relatório será, naturalmente, fundado sobre as informações do comissário local. As ciências físicas e naturais não aparecem naturalmente porque a respectiva cadeira não estava provida em 1844, mas há uma muito interessante descrição sobre as ciências matemáticas que eram leccionadas no liceu funchalense: Na quarta cadeira, que o Decreto de 17 de Novembro computa a quinta dos liceus, ensina o bacharel formado Manoel Joaquim Moniz, aritmética, álgebra, geometria rectilínea e trigonometria plana. Os compêndios adoptados são a aritmética de Bezout, e as matemáticas puras de Lacaille. A matéria do primeiro é desenvolvida com explicações tiradas de Francoeur ou de Bourdon acerca de decomposição dos números, redução de quebrados e alguns problemas. Servem de introdução ao segundo dois ou três livros de geometria de Euclides para assim se habituar o educando a demonstrar rigorosamente. No ensino da álgebra, que nunca passa além de equações do segundo grau, sempre se trata de algumas séries fáceis, desenvolvidas pelo binómio de Newton, ou pela divisão; e bem assim de algumas aproximações, progressões e questões de puros compostos. Rematam o curso exercícios de prancheta para medição de alguma propriedade. Mas como no liceu não há instrumentos com que se possa aplicar na prática o cálculo à resolução dos triângulos, a aproximação a que tal exercício pode chegar, é só a que podem dar o petippé ou a escala decimal. Esta aula, cujo curso é de um ano, tem uma só sessão por dia.18 Finalmente, neste precioso relatório são elaboradas judiciosas considerações sobre o trabalho dos professores no sentido da valorização da sua formação e reconhecimento das suas competências, realçando a sua autonomia, o que nem sempre as entidades responsáveis têm condições para aceitar. O estado de desenvolvimento a que têm chegado em nossos dias algumas das disciplinas que o Decreto manda ensinar reunidas em curso bienal, reclama da 18

DGARQ/AN – Relatório estatístico do estado da instrução pública no Distrito Administrativo do Funchal – ano de 1845 (assinado pelo Governador Civil): MR, M 3539

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parte do professor que haja de ensiná-las conscienciosamente, um estudo e aplicação não vulgares: e quanto mais aturado for este estudo, quanto menor interrompida por outra esta aplicação tanto maior aptidão ganhará o professor para o ensino, tanto maior proveito colherão de seus trabalhos os discípulos que o ouvirem. Pois eis aí outra dificuldade com que têm de lutar na prática a acumulação de matérias diferentes na mesma cadeira. O professor que além de ensinar disciplinas diversas tem de coordenar e compor os compêndios respectivos . . . há-de forçosamente contentar-se com o conhecimento perfunctório de cada uma; do qual só poderá sair um ensino incompleto e rotineiro; - ensino que não dará nenhuma instrução sólida e substancial, qual cumpre seja a secundária, por que havendo esta de servir de habilitação para diversas cadeiras e profissões especiais, se dos primeiros anos se não adquire a ponto de descer e insinuar-se nas raízes das inteligência, será uma impressão superficial, que a positividade da vida obliterou e desvaneceu de todo. 19

Conclusão Na sua mais recente, e monumental, obra dedicada ao estudo do ensino e da disciplina de francês, diz-nos Chervel (2006): L’interprétation de l’histoire des disciplines par les textes officiels, par la littérature pédagogique ou par l’action de quelques individualités est à l’origine d’une image largement répandue du système éducatif et très dévalorisante pour le principal acteur du changement, à savoir le corps enseignant. (p. 73) Acrescenta, ainda na mesma página, «que ainsi s’est créé le mythe d’une école enfermée dans la passivité . . . incapable de renouveler par elle-même ses pratiques et totalement tributaire pour ses enseignements des interventions extérieurs.» Na página seguinte da obra citada Chervel diz-nos que fazer a história das disciplinas, continua a ser fazer história e daí que se adoptem os mesmos métodos. No que respeita à investigação das fontes, considera que « Seul le travail d’archive 19

Idem.

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permet de déterminer la situation exacte de l’enseignement . . . sur le terrain. . . . S’agissant de l’enseignement public du XIXe siècle, et de ses établissements de différents degrés, de ses multiples conseils . . . les recherches menées aux Archives nationales s’avèrent indispensables» (p. 774) É basicamente sobre o estudo de documentação dos Arquivos Nacionais que foi elaborado este texto. Se a sua hipotética força reside aí, o mesmo se poderá dizer das suas fraquezas, porque só o cruzamento das fontes disponíveis permitirá chegar a conclusões mais coerentes com a perspectiva histórica do papel dos professores na instalação dos liceus e na criação das disciplinas escolares, de ciências em particular, verdadeiro aspecto distintivo dos liceus face aos estabelecimentos escolares que os precederam. No entanto, este não é um trabalho acabado. Aliás o próprio título é excessivo para o conteúdo, embora não o abarque todo. Nem sequer a pesquisa nos arquivos está terminada e por isso muito poderá ainda ser feito. De qualquer modo, constata-se que a preocupação com a qualidade do ensino é algo que já está presente na primeira metade do século XIX, passando, sobretudo, pela exigência de formação de nível superior para qualquer que pretendesse obter o emprego de professor. O apontado prosseguimento do estudo exaustivo das fontes poderá, presumivelmente, abrir caminho para melhorar o nosso conhecimento sobre a história das disciplinas de ciências e dos seus professores.

Fontes DGARQ/AN – Direcção-Geral de Arquivos/Arquivos Nacionais (Torre do Tombo), fundo “Ministério do Reino”

Bibliografia Albuquerque, L. (1960). Notas para a História do Ensino em Portugal (Vol. 1). Coimbra: Edição do autor. Chervel, A. (2006). Histoire de l'enseignement du français du XVIIe au XXe siècle. Paris: Éditions RETZ.

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