A fotografia de família no documentário Diário de uma busca

Share Embed


Descrição do Produto



Mestranda do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, linha Imagem, Som e Escrita.
A fotografia de família no documentário Diário de uma busca

Patrícia Cunegundes Guimarães

Resumo
O trabalho analisa a importância do uso de fotografias de família como gatilho acionador de memória em "documentários de busca". No filme "Diário de uma busca", a cineasta Flávia Castro apoia-se em seu diário, documentos, fotografias de família e cartas para apresentar a vida de seu pai, Celso Afonso Gay de Castro, militante de esquerda morto em 1984. A partir da soma de todas as memórias afetivas, Flávia Castro tenta reconstruir muito mais do que a identidade do pai, mas a sua própria história.
Palavras-chave: fotografia; álbum de família; cinema; documentário; memória; memória coletiva


Family photography in the documentary Diário de uma busca

Abstract
This article analyzes the importance of the use of family photographs as a collective memory trigger in the documentary Diário de uma busca. The filmmaker Flavia Castro uses her diary, documents, family photographs and letters to present the story of her father, Celso Afonso Gay de Castro, killed in 1984. From the sum of different memories, Flavia Castro tells us more than her father story.
Keywords: photography; family album; cinema; documentary; memory; collective memory

Introdução

O presente trabalho pretende mostrar o uso de fotografias de família como acionador de memórias coletivas no documentário Diário de uma busca (Flávia Castro, 2010). O ponto de partida para a discussão será o conceito de memória coletiva, até chegarmos na ideia de fotografia e cinema como "lugares de memória". Em seguida, será feito breve conceituação de fotografia de família e uma apresentação sobre documentário como memória e instrumento de história de vida, para, então, chegar ao uso das imagens dos álbuns familiares no documentário em análise.
Memória coletiva
O conceito de memória como conhecemos atualmente se refere a processos sociais ou coletivos de reconstrução do passado desde o presente. Pode ser considerada uma categoria de uso social e de problematização de questões éticas e políticas. A discussão sobre a importância da memória nasceu no início do século XX, num campo de debates que incluía psicólogos, sociólogos e filósofos europeus, interessados pela "crise" deflagrada pela mudança das sociedades rurais em urbanas e, em seguida, pelo impacto da Primeira Guerra Mundial.
Para que a memória individual se beneficie da memória de outras pessoas ou grupos, deve haver uma "negociação", conforme Maurice Halbwachs, em sua análise da memória coletiva, ainda nos anos 20 do século passado. Não é suficiente que os outros tragam seus testemunhos, é necessário que a memória individual concorde com as memórias coletivas e que haja suficientes pontos de contato entre elas para que "a lembrança que os outros trazem possa ser reconstruída sobre uma base comum" (HALBWACHS, 1990).
Para Jacques Le Goff, a apreensão da memória depende do ambiente social e político: "trata-se da aquisição de regras de retórica e também da posse de imagens e textos que falam do passado, em suma, de um certo modo de apropriação do tempo" (LE GOFF, 2013).
Outra perspectiva distinta da de Halbwachs, embora não seja uma crítica, é a de Michel Pollack (1989), que discute a memória dentro de uma concepção construtivista. O interesse de Pollak é apurar como se estabelece e como ocorre a construção da memória coletiva. O foco de Pollak são as minorias periféricas, a memória dos excluídos, dos vencidos, dos grupos dominados.
Para o autor, quando privilegia a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a História (oral) passou a dar importância a memórias subterrâneas que, "como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à 'memória oficial', no caso a memória nacional" (POLLAK, 1989).
Portanto, esta memória clandestina procura uma oportunidade frente ao discurso dominante para que possa se posicionar, "ou mesmo contestar, a construção da história oficial no sentido de que se possa ter um entendimento distinto das formas de organização do Estado no tocante ao processo de construção da memória nacional" (GONDIM, 2011).

Lugares de memória e imagem
Na década de 1980, Pierre Nora desenvolveu a ideia de "lugares de memória", que iriam do objeto material e concreto, ao mais abstrato, simbólico e funcional. Os lugares de memória podem ser, então, um monumento, uma personagem, uma obra de arte, um museu, arquivos, símbolos, um a comemoração de um evento. Contudo, deve existir "uma vontade de memória", uma intenção memorialista que garantiria a identidade do "lugar".
Os "lugares de memória" não contemplam imagens – fixas ou em movimento -, contudo, ao considerar que tais lugares são construções sociais, "mais do que ficar confinado aos casos estudados por Pierre Nora", o conceito pode ser adotado em diferentes circunstâncias que "apelem à recordação" (FREIRE, 2012).

Fotografia de família
Família é o grupo responsável pela transmissão de cultura, valores, identidade. É o núcleo primeiro de pertencimento e construção de subjetividades, e também um lugar de conflitos e de transmissão de segredos, silêncios e "vergonhas" (FORTUNY, 2014).
Os álbuns de família podem ser definidos como um conjunto de fotografias que contam uma história: nascimentos, aniversários, casamentos, viagens, celebrações. As fotos familiares procuram mostrar momentos de felicidade, guardando um silêncio sobre os dramas íntimos de cada grupo.
Os álbuns de família, entendidos como "um conjunto de fotografias que compõem o imaginário documentado de um grupo atado por laços de intimidade, encerram uma temporalidade própria" (BUCCI, 2008, p. 69-88).
Para o historiador e teórico da fotografia André Rouillé, a fotografia seria um dispositivo munido de poder misterioso e divino de ressuscitar simbolicamente os mortos, de autorizar a volta dos corpos da morte para a vida, ressuscitar o que o tempo eliminou.
Como já dito anteriormente, as memórias individuais são compostas de memórias de outras pessoas, de outros grupos e integram o que chamamos memória coletiva – ou, num sentido mais amplo, a memória histórica. Os álbuns de família trazem as memórias, as alegrias, as dores, as disputas de um grupo específico. No entanto, essas lembranças são carregadas de outras recordações, dentro de um contexto histórico, social e cultural específico. "Nossa memória nunca é completamente nossa, tampouco as fotografias são representações imediatas do nosso passado" (HIRSCH, 2012, p.13).
Para Marianne Hirsch, as fotografias se localizam no espaço de contradição entre o mito de uma família ideal e a realidade vivida. De acordo com Armando Silva, se o álbum é rito, é memória. "Mas essa memória deve estar relacionada ao esquecimento, pois os acontecimentos que a família guarda nas fotografias não são todos, mas os que passaram pelo processo seletivo do tempo" (SILVA, 2008).

Documentário como instrumento de memória e história pessoal
Os filmes sobre a história moderna, que remetem a um passado coletivo, são chamados por F. Niney3 de "o teatro da memória". De acordo com Peixoto (2011), utilizando documentos fílmicos, jornais, fotografias, desenhos e testemunhos, eles (os filmes) reconstroem um momento da história, falam do passado através de "personagens" que são confrontados com sua própria memória. Neste sentido, Peixoto (2011) afirma que biografias podem ser fontes metodológicas extremamente eficazes para a compreensão dos processos de construção de memória social e completa:
É assim, por meio da reconstituição das memórias individuais, entendidas como versões plausíveis dos processos históricos e de traços culturais, que se constitui a memória social. Reavivar uma memória que, ao fio do tempo, cria uma tensão permanente entre o passado e o presente, entre o particular e o universal, é uma forma de compreender e/ou desvendar o silêncio de uma geração, de um lugar, de um grupo social. (PEIXOTO, 2011, p.19-20)

Assim como as fotografias, os filmes também produzem o efeito de ativar a memória. De acordo com Peixoto (2011), são filmes de memória que, fugindo da narrativa ficcional, procuram criar uma narração própria, pautada muitas vezes em um período histórico, uma questão política, na vida de uma testemunha/personagem [...].

Fotografia de família no documentário Diário de uma busca

Um complexo trabalho de constituição (ou reconstituição da memória) pode ser encontrado no documentário Diário de uma busca, filme de estreia da diretora Flávia Castro, cujo roteiro apresenta a história de seu pai, Celso Afonso Gay de Castro, militante de esquerda morto em 1984. Apoiada no diário que escreveu desde pequena e em fotografias de família, cartas, documentos oficiais e recortes de jornais, Flávia Castro conduz, muito mais do que a história do pai, mas a sua própria história.
A intenção real do filme, que vai muito além de tentar entender as circunstâncias da morte do pai, fica bem clara logo no início, quando Flávia, narradora do documentário, diz: "Mas durante muito tempo, pensar no meu pai significava pensar na sua morte. Como se pelo seu enigma e pela sua violência, ela tivesse apagado a sua história e, com ela, parte da minha vida".
Flávia começa o filme sem saber se suas expectativas serão atingidas, levando consigo as expectativas dos irmãos Joca e Maria (esta do segundo casamento do pai, com quem conviveu apenas dois anos e meio). Torna-se, então, no entendimento de Montoro (2011:12) a heroína em uma aventura pessoal, que, apesar de realizar o documentário contando com a presença irmãos, das tias, da avó e da mãe, está numa jornada interna, transformando o filme numa espécie de culto à memória do que foram e do que não foram, aos momentos felizes, à superação dos vários rompimentos familiares impostos pela vida no exílio, pelas prisões, pelos desaparecimentos, pela morte.
Dos 105 minutos de filme, Flávia Castro expõe, em 30 minutos, fotos de família, recortes de jornal, fotos de arquivo do período da ditadura, vídeos de arquivo e cartas do pai. Em vários momentos, as fotografias são expostas como se estivessem em um altar, prontas para um ritual de ressignificação da identidade daquele grupo familiar.
É partindo do particular, da soma de afetos que move a família Castro, que Flávia consegue atingir sentimentos universais, dando contornos humanos a um período da história do Brasil. Sua busca interna, de resgate da identidade familiar, talvez abalada com as circunstâncias que podem ter levado à morte do pai, resulta em um filme que traz a história de todas as famílias de militantes políticos exilados durante a ditadura militar, exceto morte de Celso.
Justamente porque atravessam a superfície, é que fotos de família, a despeito de registrarem momentos particulares, vão além do que mostram e resgatam sentimentos profundos - elas dizem mais através da sua ausência. No documentário de busca de Flávia Castro, todas as imagens de família utilizadas para reconstruir a vida de Celso Afonso Gay de Castro representam aquilo que não é mais. Pode-se afirmar, conforme Hirsch (2012), que elas também representam o que foi violentamente destruído.

Considerações finais

Fotografias de família – sejam guardadas em álbuns, esquecidas em caixas de sapato, expostas em porta-retratos ou 'grudadas' na geladeira – pontuam ausências e perdas, mas, ao mesmo tempo reconstroem, reconectam, trazem de volta à vida, detonam memórias. Quando fotografamos nossos momentos familiares, normalmente criamos uma imagem idealizada das relações inter-familiares. No entanto, com o passar do tempo, a análise do conjunto de imagens revela camadas mais profundas, evocando lembranças que vão além do que o idealizado pelo fotógrafo e pelos fotografados à época. Ao serem usadas em documentários como o de Flávia Castro, as fotografias de família saem do âmbito privado, entrando na esfera pública, inserindo-se no poliedro de histórias e memórias que formam nossas memórias coletivas.

Referências
ANDRÉ, Richard Gonçalves (org). Álbuns de Família: a história e a memória entre os fios luminosos da fotografia. Coleção História na Comunidade v.7. Londrina, Universidade Estadual de Londrina, 2014.
BUCCI, Eugênio. Álbum de família – Meu pai, meus irmãos e o tempo. In:
MAMMI, Lourenço e MORITZ SCHWARCZ, Lilia. 8x Fotografia. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008, p. 69-88
BURKE. Peter. A História como Memória Social. In: _____. O mundo como teatro – estudos de antropologia histórica. Lisboa: Difel, 1992
FORTUNY, Natalia. Memorias fotográficas – imagen y dictadura em La fotografia argentina contemporânea. Buenos Aires, La Luminosa, 2014.
FREIRE, Dulce. Fotografias como « lugares de memória» portáteis. Identidades, discursos e significados da agricultura em Portugal », . In: Ler História [Online], 63 " 2012, posto online no dia 09 Abril 2015, consultado no dia 29 Setembro 2016. URL : http://lerhistoria.revues.org/408 ; DOI : 10.4000/lerhistoria.408
GONDIM, Rosemary. IMEMORIAL: fotografia e reconstrução da memória em Rosângela Rennó. Estudos de Sociologia, Local de publicação (editar no plugin de tradução o arquivo da citação ABNT), 1, mar. 2013. Disponível em: . Acesso em: 28 Set. 2016
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo. Vértice Editora, 1990
HIRSCH, Marianne. Family Frames – Photography narrative and postmemory. 2. ed., Cambridge: Harvard University Press, 2012.
KOSSOY, Boris. Fotografia & História – 4. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2012.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Ed. da Unicamp, 2013
MORETIN, Eduardo Victorio. O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro. In: História: Questões & Debates, Curitiba, n. 38, p. 11-42, 2003. Editora UFPR
NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas, SP, Papirus Editora, 2016, 6 ed.
NORA, Pierre. Entre história e memória: a problemática dos lugares. In: Revista Projeto História. São Paulo, v. 10, p. 7-28, 1993
PEIXOTO, Clarice Ehlers. Filme (vídeo) de família: das imagens familiares ao registro histórico. In: PEIXOTO, Clarice Ehlers (org). Antropologia&Imagem volume 1. Rio de Janeiro: Garamond, 2011, p. 11-26
POLLAK, Michel. Memória, esquecimento e silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15 http://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esquecimento_silencio.pdf
ROUILLÉ. André. A fotografia: entre documento e a arte contemporânea. São Paulo: Editora Senac, 2009.
SILVA, Armando. Álbum de família – a imagem de nós mesmos. São Paulo, Edições Sesc SP, 2008.
VEIGA, R. O menor e o maior no cinema pessoal: Diário de uma busca. Elena e Mataram meu irmão. In: Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, v.17, n.3, set./dez. 2014.




Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.