A fotografia e a edificação do Estado colonial: a missão de Mariano de Carvalho à província de Moçambique em 1890

September 29, 2017 | Autor: P. Fernandes | Categoria: Colonialismo, Fotografia, Moçambique
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A fotografia e a edificação do Estado Colonial: a missão de Mariano de Carvalho à província de Moçambique em 1890 PAULO JORGE FERNANDES

Introdução

  Paulo Jorge Fernandes, Mariano Cirilo de Carvalho: O «Poder Oculto» do liberalismo português (1876-1892) (Lisboa: Assembleia da República e Texto Editora, 2010), pp. 304-318 1

Em meados de 1890, Mariano de Carvalho, antigo ministro da Fazenda do governo progressista e um dos mais proeminentes rostos deste partido político, deslocou-se a Moçambique, alegadamente com o objectivo oficial de inventariar os recursos económicos disponíveis na colónia. A muito popular e controversa figura passaria cerca de seis meses a viajar por toda a província, entrando em contacto com realidades locais muito diferentes entre si numa altura em que na Europa se procedia à partição do território entre Portugal e a Grã-Bretanha sob a atenção das restantes potências no contexto pós-Ultimatum de 1890. À época, a viagem foi anunciada como um facto extraordinário por diversos e não menos polémicos motivos. Antes de mais, Mariano de Carvalho era um nome muito pouco consensual entre a elite política da monarquia constitucional. Para começar, tinha acabado de ser demitido – em Fevereiro de 1889 – da pasta da Fazenda, depois de se ter visto pessoalmente envolvido num escândalo financeiro de enormes proporções e das quais nunca se conheceria publicamente a verdadeira extensão, a chamada negociata da “outra metade”. Depois deste episódio, cujo debate apaixonou verdadeiramente a opinião pública nacional durante meses, falar de Mariano de Carvalho nas diversas configurações do espaço público passou a ser sinónimo de traficâncias várias e corrupção, indecências muito pouco edificantes para os governantes da época 1. Para agravar o falatório, os contornos da muito comentada nomeação para a “missão” à África Oriental portuguesa nunca seriam totalmente esclarecidos, deixando campo aberto para todo o tipo de insinuações e especulações. Depois de Moçambique chegou a falar-se também na possibilidade de uma outra visita, desta vez a Angola. Qual seria a verdadeira natureza destas viagens? Para além dos motivos ditos “oficiais” que interesses se escondiam por detrás de tão inesperada promoção, premiando alguém que tinha recentemente caído em desgraça nos círculos políticos metropolitanos? Como explicar a outorga de tais responsabilidades a um indivíduo sem experiência diplomática relevante ou conhecimentos sobre a realidade colonial por195

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tuguesa que o habilitassem especialmente para a tarefa? As respostas a todas estas questões seriam tudo menos óbvias. Nos meses imediatamente anteriores, Mariano de Carvalho tinha passado o tempo entre Lisboa e Paris como representante não oficial do governo (progressista) de Portugal na exposição universal que teve lugar na capital francesa em 1889 e que ficaria famosa pela inauguração da Torre Eiffel. Retirado da primeira fila do debate político nacional pelo executivo de que fizera parte, numa cuidadosa operação de controlo de danos, mas cujo efeito funcionaria ao contrário do previsto, Mariano de Carvalho ressurgiu em pleno já em Maio de 1890 pela mão do ministério seguinte e de quem se tinha revelado um feroz opositor desde sempre. Estranhou-se, por isso, que os regeneradores lhe confiassem tão assinalável responsabilidade sem que tal não envolvesse obscuras contrapartidas 2. Mariano de Carvalho aceitou a incumbência e partiu para Moçambique, a bordo da canhoneira Zaire, comandada por Álvaro da Costa Ferreira – via Paris / Marselha / Suez / Zanzibar – nos inícios de Junho de 1890, regressando à metrópole apenas em Dezembro desse ano (pela rota do Cabo). A viagem de ida ocorreria, como se referiu, num momento diplomaticamente importante, uma vez que na altura Portugal e a Grã-Bretanha negociavam as fronteiras das zonas de influência respectivas no Sul de África. Para além disso, é de destacar que nunca um governante da primeira grandeza do reino, estatuto que Mariano de Carvalho, apesar de tudo, podia envergar com convicção, tinha passado tanto tempo na província portuguesa do Índico. Do Cabo Delgado a Lourenço Marques, o ex-ministro conheceu demoradamente os principais “centros urbanos”. Por todo o lado viu e falou com autoridades locais civis, religiosas e militares. No final da sua viagem por Moçambique, produziu um documento que enviou ao novo ministro da Marinha e do Ultramar propondo um plano de reorganização administrativa e fiscal da província da África Oriental portuguesa, que consubstanciava uma visão estratégica alargada do que deveria ser o aproveitamento político e económico do império naquela zona do continente. A ser tomada em consideração, esta seria uma peça fundamental no processo de construção do Estado colonial moderno em Moçambique 3. Mas esta “missão” iria revelar-se importante ainda por uma outra razão. Mariano de Carvalho seria acompanhado pelo fotógrafo Manoel Romão Pereira, que fixou em imagens a realidade por ele testemunhada. Este texto pretende debater o impacto do périplo africano do antigo governante centrando a sua análise na “reportagem” então realizada, naquilo que constituiu, eventualmente, um dos primeiros projectos fotográficos conhecidos, até do ponto de vista geográfico, do que era Moçambique em finais do século XIX. Seriam registadas 116 fotografias (na prática 115 fotografias, aparecendo uma delas repetida), que dariam origem a uma colecção designada por “Missão de Mariano de Carvalho a Moçambique, em 1890”. As provas foram montadas sob cartão com a gravação “Lisboa Typographia Freire Gravador”, sendo as imagens descritas no catálogo da “Exposição Insular e Colonial Portugueza”, 196

  Paulo Jorge Fernandes (2012), “A súbita vocação «africanista» de um ex-ministro: A viagem de Mariano de Carvalho a Moçambique em 1890”, in Africana Studia, Faculdade de Letras, Centro de Estudos Africanos, Universidade do Porto, Porto, n.º 17, pp. 17-39. 3   Mariano Pina, Questões de Hoje. Os Planos Financeiros do Sr. Mariano de Carvalho, (Lisboa: Typographia da Companhia Nacional Editora, 1893); Braga Paixão (1965), Moeda e Alfândegas de Moçambique: (a missão de Mariano de Carvalho em 1890), Separata do Boletim n.º 62 – Serviço de Estudos Económicos do Banco Nacional Ultramarino, Lisboa, pp. 7-32 e Fernandes, Mariano Cirilo de Carvalho…, pp. 323-343. 2

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em 1894, realizada no Palácio de Cristal, na cidade do Porto, onde se referiu pela primeira vez a autoria e o contexto da criação das fotos 4. Proponho olhar para o acervo fotográfico reunido em tais condições não apenas como um objecto historiográfico em si mesmo, não apenas como uma fonte documental da máxima importância pelo carácter inédito revelado à época em que foi produzida, não apenas como uma abordagem focada em aspectos específicos da realidade ultramarina, ou como uma representação dessa mesma realidade. Tentarei apresentar argumentos que defendam a ideia de como o conjunto de fotografias que resultou desta “missão” se tratava de uma peça conscientemente inventariada do processo de construção de um certo tipo de Estado colonial moderno, intenção primeira e última de Mariano de Carvalho ao participar na produção deste inventário fotográfico. Importa por isso perceber primeiro um pouco melhor quem foi esta figura e quais as razões que explicam a importância desta viagem para depois conhecer o fotógrafo que o seguiu e quais os contornos do projecto ultramarino de Mariano de Carvalho para Moçambique, dado a conhecer posteriormente. Uma vez que as suas ideias nunca seriam devidamente consideradas nos meios políticos nacionais, o ex-ministro nunca faria menção do acompanhamento fotográfico da sua viagem à colónia africana nos artigos que publicou no Diário Popular ou nos documentos oficiais que produziu. Por fim, iremos ainda analisar as geografias e as tipologias das imagens obtidas tentando perceber a coerência da associação entre a missão fotográfica de 1890 e o propósito da viagem do antigo ministro da Fazenda ao território.

O significado de ter um ex-ministro em Moçambique

  Todas as imagens que foram produzidas no âmbito da “missão” podem ser visualizadas no site do Arquivo Científico Tropical Digital do Instituto de Investigação Científica e Tropical – Fotografia / Provas Antigas: [http://actd.iict.pt/collection/ actd:AHUC187] consultado em 14 de Abril de 2014. Existem idênticas colecções ainda que com títulos diferentes nos espólios da Biblioteca da Ajuda e da Sociedade de Geografia de Lisboa. Luísa Villarinho Pereira, Moçambique – Manoel Pereira (1815-1894). Fotógrafo comissionado pelo Governo Português, (Lisboa: edição de autor, 2013), pp. 133-134. 5   Diário da Câmara dos Deputados, sessão de 24 de Maio de 1890, p. 391; Jornal das Colónias, de 25 de Maio de 1890, p. 1 e Pontos nos ii, de 29 de Maio de 1890, p. 176. 6   Eduardo Fernandes, Memórias do «Esculápio», (Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1940), p. 64. 4

Na primavera de 1890 Mariano de Carvalho foi incumbido pelo titular da Marinha e Ultramar – Júlio de Vilhena – para uma comissão de serviço em África, acabando por aceitar o convite que lhe fora dirigido por uma “companhia composta de capitalistas importantes do país” 5. Surgiram imediatamente dúvidas na imprensa sobre a súbita vocação africanista do ex-ministro. Nada no seu percurso de vida até aí faria prever esta escolha. Alegadamente, o recém-nomeado tinha mostrado desejos de receber tal incumbência, cuja única virtude residia no facto de “afastar da nossa política esse constante fermento de perturbação e embaraço para tudo”. A imprensa logo se encheu de trovas chistosas alusivas à viagem 6. O propósito da deslocação parecia fácil de explicar. Mariano de Carvalho apenas pretenderia “cheirar Moçambique e reconhecer os recursos que essa rica província pode oferecer para a constituição da grande Companhia Africana” que, alegadamente, o director do Diário Popular pretendia ajudar a constituir. Explicava-se assim uma recente deslocação a Paris, onde Mariano de Carvalho se tinha reunido com banqueiros. Tratava-se, pois, de uma operação “bem combinada”. Na época apenas se estranhava o convite dirigido por Júlio de Vilhena, um adversário político, o que acabava por levantar ainda mais 197

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suspeitas sobre as reais intenções do executivo nesta matéria. Temia-se que a missão oficial, afinal, apenas servisse para promover interesses privados 7. Para além disso, havia ainda que equacionar as conveniências britânicas na questão africana. No contexto da época, a dimensão internacional desta questão seria fundamental para se perceber os contornos da viagem. É de relembrar que poucas semanas após a partida de Mariano de Carvalho, Portugal e a Grã-Bretanha assinariam o primeiro acordo sobre as zonas de influências de ambos os países em Moçambique, tratado esse que seria muito mal recebido pela oposição progressista em Lisboa e que estaria mesmo na origem da queda do governo regenerador em funções 8. Para além disso, a pretensão de Mariano de Carvalho de ser enviado à África meridional portuguesa era uma aspiração pessoal antiga. Ainda antes do Ultimatum, o ex-ministro da Fazenda tinha-se oferecido a José Luciano de Castro para comandar uma missão de exploração em Moçambique com o objectivo de analisar “as suas necessidades de administração e examinar as suas fontes de riqueza”. Na realidade, o principal fim da expedição era o de observar os tesouros mineiros e agrícolas da província, nomeadamente para levantar a possibilidade de se pesquisar minas de carvão de pedra na Zambézia por uma entidade privada 9. Oficialmente, o “Poder Oculto” abalava para empreender “os estudos necessários nas Províncias Ultramarinas de Angola e Moçambique para a reorganização administrativa e económica do Ultramar, e especialmente de tudo o que mais de perto interessar ao fomento agrícola, comercial e industrial das referidas Províncias” 10. Todavia, a opinião pública não esquecia a polémica da viagem 11. Afinal, Mariano de Carvalho tinha passado os últimos anos a pregar no parlamento e nos jornais contra a associação menos clara entre interesses privados e o mundo da política. Agora entrava em nítida contradição com essa postura servil em relação a interesses “mercantilistas”. Mariano de Carvalho não estaria sozinho em Moçambique. A sua expedição deveria ser acompanhada por uma comitiva que incluía vários oficiais militares e um grupo de civis de proveniências muito diversas. Entre outros, juntaram-se ao “Poder Oculto” o explorador Paiva de Andrade, cujas ambições empresariais em África tinham sofrido uma fortíssima oposição por parte do director do Diário Popular uns anos antes, mas também personalidades mais ou menos conhecidas como o médico Rodrigues Pinto, Alexandre de Campos, Albino Augusto Leite, Moreira Feio, o inspector de florestas suíço Max Siber, o engenheiro de minas francês Guigad Joseph e o intérprete holandês Luiz Jordan. Como “amadores” e acompanhando o grupo a custas próprias encontravam-se também o francês visconde de Breteuil, o barão polaco Henri de Traktensteins e o italiano príncipe de Ruspoli 12. Já em Moçambique, Mariano de Carvalho encontraria Manoel Romão Pereira, o “photographo desenhista” algarvio, que o seguiria e registaria em imagens grande parte da viagem.

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  Carta de Júlio de Vilhena para Mariano de Carvalho, de 24 de Maio de 1890, in BNP, Espólio de Mariano de Carvalho, N16/87; Charivari, de 24 de Maio de 1890, pp. 324-325 e O Sorvete, de 22 de Junho de 1890, pp. 7-8. 8   Diário Popular, de 22 de Agosto de 1890, p. 1; Francisco Assis Oliveira Martins (1942), D. Carlos I e os «Vencidos da Vida», Lisboa, Parceria António Maria Pereira, pp. 62-63 e Basílio Teles (1968), Do Ultimatum ao 31 de Janeiro. Esboço de História Política, 2.ª ed., Lisboa, Portugália Editora, p. 216. 9   Jornal das Colónias, de 1 e 8 de Junho de 1890, p. 1 e Diário Popular, de 2 de Junho de 1890, p. 1. 10   Diário do Governo, de 27 de Maio de 1890, p. 1193. 11   A própria imprensa humorística não resistiu ao remoque. As caricaturas publicadas na época mostravam que Mariano de Carvalho ao chegar a África só tinha encontrado metade dos nossos antigos domínios, desconhecendo onde poderia encontrar “a outra metade”, numa clara referência gráfica ao escândalo financeiro em que se vira envolvido. Charivari, de 12 de Julho de 1890, p. 381. 12   Diário Popular, de 10 de Julho de 1890, p. 1. 7

A fotografia e a edificação do Estado Colonial

A “missão fotográfica” de Manoel Romão Pereira e o acompanhamento da viagem de Mariano de Carvalho

  A fotografia passou a ser utilizada como forma de representação tanto da realidade colonial como da resistência ao colonialismo. Ver a título de exemplo Ana Cristina Nogueira da Silva (2009), “Fotografando o mundo colonial africano: Moçambique, 1929”, in Varia História, Vol. 25, n.º 41, Belo Horizonte, pp. 107-128 e Drew A. Thompson (2013), “Visualising FRELIMO’s liberated zones in Mozambique, 1962-1974)”, in Social Dynamics. A Journal of African Studies, Routledge, pp. 24-50 e Idem, Re-Inserting into the Frame: the Photographic Practices and Archives of Immigrant Settler Communities in Colonial Mozambique, (Bard College, University of Minnesota, 2013). 14   Leonor Pires Martins, Um Império de Papel. Imagens do Colonialismo Português na Imprensa Periódica Ilustrada (1875-1940), (Lisboa: Edições 70, 2012). 15   José António Matheus Serrano, “Explorações portuguezas em Lourenço Marques e Inhambane”, in Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, n.º 13, Lisboa, 1894, pp. 397-496 e Ana Cristina Roque, “Cartografar fronteiras nos finais do século XIX: questões em torno da demarcação e delimitação da fronteira entre Moçambique e o Transvaal”, comunicação apresentada ao IV Simpósio LusoBrasileiro de Cartografia Histórica, (Porto: Universidade do Porto, 2011). 16   As imagens obtidas por esta “missão” podem ser visualizadas no Repositório Digital do Arquivo Científico Tropical: [http://actd.iict.pt/collection/actd: AHUC141] consultado em 14 de Abril de 2014. 13

Nos finais do século XIX Moçambique começou a ser mais bem conhecido também através do recurso a fotografias. Captar a realidade colonial por via da imagem transformou-se numa prática crescentemente recorrente à medida que este meio tecnológico se foi tornando cada vez mais disponível, até enquanto instrumento de substituição das representações visuais do império baseadas essencialmente na gravura 13. Ao “Scramble for Africa” corresponderá uma autêntica “Corrida às Imagens” deste continente 14. Seria a fotografia entendida como um retrato mais ou menos fiel de um fragmento desse universo ultramarino? A verdade é que a fotografia (re)produz uma determinada realidade de forma mais ou menos consciente de acordo com o olhar emprestado pelo fotógrafo. No exercício existe sempre um propósito, o de fixar parte de uma verdade, qualquer que ela seja, apesar de todas as fotografias serem distintas entre si tanto nos seus preceitos como nas suas formas de recepção. Afinal, também existe uma ordem no discurso fotográfico que traduz uma relação de poder. Nas presentes circunstâncias – Moçambique em finais do século XIX –, quem registou as imagens foi um europeu branco, que procurou preencher um determinado imaginário colonial. Terá neste caso particular havido algum frenesim em fotografar a existência moçambicana? Com que propósito? Nos primeiros exemplos conhecidos aplicados à África Oriental portuguesa os motivos seriam claros. O emprego da fotografia visava dotar as autoridades coloniais de um conhecimento sobre o território que não existia à época e que era fundamental até enquanto utensílio diplomático. Não surpreende, por isso, que algumas das primeiras imagens conhecidas daquela província surjam na altura em que decorriam os trabalhos de construção da linha de caminho-de-ferro de Lourenço Marques e na época em que se procuravam fixar os limites do Sul do território, preocupação maior do poder colonial no contexto pós-Conferência de Berlim e pós-Ultimatum britânico. Neste sentido, as missões da Comissão de Delimitação das Fronteiras entre Lourenço Marques e a República bóer do Transvaal, em 1890-1891, lideradas do lado português pelo engenheiro militar Alfredo Freire de Andrade, e que integravam ainda o engenheiro Elvino Mezzena, o capitão José António Matheus Serrano e o major Alfredo Caldas Xavier 15, produziram um conjunto de várias dezenas de imagens interessadas em determinar, sobretudo, alguns acidentes geográficos da zona compreendida entre os rios Limpopo e Incomati (incluindo o rio dos Elefantes) e em registar os costumes e as tradições dos povos locais 16. Curiosamente, nas várias fotografias então obtidas surgem uma das várias mulheres de Gungunhana e o próprio régulo, figura central no jogo político que se desenhava na região. Numa delas, obtida por Elvino Mezzena, o Rei dos Vátuas aparece até acompanhado de um europeu, José Joaquim de Almeida, que servia como secretário da Companhia de Moçambique e que esteve “acreditado” na “corte” de Gungunhana como intendente-geral 199

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dos Negócios Indígenas, em Gaza 17. Para além do conhecimento do território e dos povos que o habitavam, mostrava-se o esforço político das autoridades portuguesas para estabelecer acordos com os principais régulos locais, estratégia de entendimento que visaria claramente testemunhar a capacidade de Portugal em administrar a colónia. Para além do emprego da fotografia neste enfoque específico de cariz mais político e diplomático, o poder colonial estaria também interessado em produzir provas do seu total empenhamento no desenvolvimento infra-estrutural da região. Este plano não ficaria completo sem que o “fotógrafo oficial” de Moçambique, Manoel Romão Pereira, registasse em imagens a evolução dos trabalhos da construção da linha de caminho-de-ferro que então se aproximavam do final, a pedido da Direcção de Obras Públicas locais. O álbum produzido com este propósito registou com detalhe o processo de edificação da estação ferroviária de Lourenço Marques, para além dos pormenores da empreitada que decorria até à estação da vila de Ressano Garcia, junto à fronteira com o Transvaal. As reproduções fotográficas preocupavam-se, sobretudo, em exibir a construção de pontes e gares, ou seja, o emprego da engenharia europeia, bem como os técnicos envolvidos. Por outras palavras e contrariando a imagem corrente na opinião pública internacional, Portugal esforçava-se por demonstrar que também era capaz de governar com sucesso e de forma moderna o seu império 18. O fotógrafo Manoel Romão Pereira regressou à Europa em 1889, mas em finais desse ano já se encontrava novamente em Moçambique. Em Setembro recebeu outra incumbência oficial. O ministro da Marinha e do Ultramar, Frederico Ressano Garcia, fez publicar uma portaria que comissionava Manoel Romão Pereira, na altura já com 75 anos de idade, para liderar uma nova Expedição Fotográfica no território a desenvolver em 1890. Por esta altura África não seria uma novidade para Manoel Romão Pereira. Em 1877 estivera em Cabo Verde como amanuense interino do Governo-Geral de Cabo Verde, na Cidade da Praia, por ordem de Fontes Pereira de Melo. Em 1881, fotografou os Paços do Concelho da Ilha de Moçambique, realizando diversos trabalhos no Sul do território moçambicano durante os anos seguintes. Em Lourenço Marques chegou mesmo a estabelecer um “Atelier Portuguez de Photographia”, em 1887, acabando por ser uma das testemunhas privilegiadas do crescimento urbano da cidade, categoria administrativa atingida apenas em Novembro desse mesmo ano. De acordo com o estipulado na mencionada portaria do ministro Ressano Garcia, Manoel Romão Pereira deveria “percorrer os territórios de Lourenço Marques, Inhambane, Gaza e alto Zambeze, tirando photografias dos edifícios, dos monumentos, fazendas mais importantes, povoações, estações de caminho de ferro, e bem assim dos typos das diferentes raças, régulos e indivíduos mais importantes de cada um dos países, e bem assim de todos os sítios, regiões ou acidentes naturais que mereçam ser reproduzidos” 19. Para além destas incumbências, que Manoel Romão Pereira cumpriu com zelo, como veremos, outras seriam acrescentadas por força das circunstâncias. A própria escolha 200

  Trindade Coelho, Dezoito Anos em África: notas e documentos para a biografia do conselheiro José de Almeida, (Lisboa: Typographia Adolpho de Mendonça, 1898). 18   Collecção de Photographias relativas ao Caminho de Ferro de Moçambique, Reproduções Camacho (1891) – colecção de Luísa Villarinho Pereira; Luísa Villarinho Pereira, Moçambique – Manoel Pereira (1815-1894). Fotógrafo comissionado pelo Governo Português (edição de autor) pp. 115-123. 19   Luísa Villarinho Pereira, Moçambique – Manoel Pereira (1815-1894). Fotógrafo comissionado pelo Governo Português, p. 24. 17

A fotografia e a edificação do Estado Colonial

Figura 1. “Edifício da Câmara Municipal da Ilha de Moçambique”. Imagem obtida no âmbito da Missão Fotográfica de 1890. Fotógrafo Manuel Romão Pereira. Arquivo Histórico Ultramarino

  Idem, p. 74.

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do itinerário não seria inocente e teria sido proposto pelo próprio fotógrafo ao governante. O estatuto técnico de Manoel Romão Pereira permitia-lhe já este tipo de tratamento ao mais alto nível por parte do governo, até porque podia ser considerado um dos pioneiros da fotografia em Moçambique. Todavia, o seu trabalho veio a ser de algum modo silenciado devido às posições políticas menos ortodoxas que assumiu. Pronunciou-se algumas vezes contra os avanços da influência britânica no Sul de Moçambique, um ponto de vista que seria incómodo quando expresso no momento em que Portugal e a Grã-Bretanha negociavam os termos de uma convivência pacífica na região depois do Ultimatum de Janeiro de 1890 20. Manuel Romão Pereira não era apenas crítico em relação aos ingleses, mas também o seria em relação aos próprios governantes de Portugal, posição que, não nos custa imaginar, encontrou alguma simpatia num despeitado Mariano de Carvalho depois do seu envolvimento no escândalo da “outra metade”. É de relembrar que o “Poder Oculto” fora ministro do governo que escolhera Manoel Romão Pereira para a missão fotográfica na África Oriental portuguesa, em 1890, mas a portaria de nomeação foi assinada numa altura em que Mariano de Carvalho já se encontrava fora do executivo. No seguimento dos trabalhos anteriores, o mandato de Manoel Romão Pereira era o de registar a construção do caminho-de-ferro de Lourenço Marques ao Traansval. Este fora já aberto em Dezembro de 1887, embora a linha entre Lourenço Marques e Pretória apenas viesse a ser concluída definitivamente e inaugurada oficialmente em Abril de 1895. Na cerimónia que então decorreria em Lourenço Marques marcou presença o próprio Paul Kruger, Presidente do Transvaal. Para além disso competia a Manoel Romão Pereira documentar o ensino do português neste território africano, retratar os vátuas 201

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de Gungunhana, cruzar o planalto de Manica, zona que se encontrava em disputa entre os interesses portugueses e ingleses, e percorrer os chamados “prazos da Zambézia”. Com a chegada de Mariano de Carvalho a Moçambique no início do segundo semestre de 1890, Manoel Romão Pereira acrescentou mais uma tarefa ao seu vasto encargo, a de acompanhar o ex-ministro no seu périplo africano, registando em imagens os avanços e os contactos efectuados pelo antigo governante. O “Poder Oculto” estava habituado a ser o centro das atenções. A sua presença constante no espaço público nacional desde 1870 conferia-lhe um traquejo que poucos políticos portugueses poderiam ostentar. Do que observou entre o Cabo Delgado e Lourenço Marques resultou um plano de desenvolvimento colonial, talvez o primeiro projecto global moderno pensado exclusivamente para o território de Moçambique. As reproduções de Manoel Romão Pereira seriam o testemunho e a visualização desse mesmo plano.

O Plano de Mariano de Carvalho para Moçambique A encomenda de Manoel Romão Pereira era, como vimos, a de visitar os territórios entre Lourenço Marques e o alto Zambeze, fotografando edifícios, monumentos, empreendimentos agrícolas, povoações, estações ferroviárias, acidentes geográficos e locais de interesse genérico, para além de documentar visualmente os habitantes locais sob diferentes perspectivas. Todas estas obrigações foram cumpridas na íntegra, mas ao lado de Mariano de Carvalho o fotógrafo acabou por fazer um pouco mais, daí que se possa inferir que o “plano colonial” que o antigo ministro progressista pensou para Moçambique acabou por ficar retratado nas chapas de Manoel Romão Pereira. O projecto do “Poder Oculto” era vasto e abrangia vários pontos da realidade colonial em Moçambique. Propunha-se uma ambiciosa reforma política do território, baseada nos conceitos de descentralização administrativa e autonomia económica, tão caros ao seu autor. Não nos podemos esquecer que estas questões dominavam a agenda programática do Partido Progressista desde 1876 e já anteriormente tinham sido defendidas por Mariano de Carvalho no âmbito da sua intervenção no movimento Reformista nos finais da década de 1860. Para começar, o ex-ministro da Fazenda de José Luciano de Castro passou a aconselhar a constituição de companhias exploradoras dos recursos naturais do território sedeadas em Lourenço Marques e em Quelimane, à semelhança da recentemente fundada Companhia de Moçambique (1888). No fundo, este seria o grande propósito da viagem: certificar-se da viabilidade de tais empreendimentos. Tratava-se também da confirmação de que o político que tão duramente tinha advogado a alienação do espaço ultramarino no passado recente a entidades privadas tinha-se agora convertido à “política dos interesses” como forma de administrar os bens públicos em contexto colonial. 202

A fotografia e a edificação do Estado Colonial

Figura 2. “Edifício da Alfândega de Lourenço Marques”, 1890. O projecto de Mariano de Carvalho contemplava uma reforma da Pauta Alfandegária do território. Fotógrafo Manuel Romão Pereira. Arquivo Histórico Ultramarino.

  Mariano Pina, Questões de Hoje. Os Planos Financeiros do Sr. Mariano de Carvalho, (Lisboa: Typograpia da Companhia Nacional Editora, 1893), pp. 52-59. 21

No plano da fiscalidade, propunha-se uma reorganização alfandegária, apresentando-se um projecto de pautas para os portos de Ibo, Quelimane e Lourenço Marques, com “o objectivo de aumentar as receitas públicas, desenvolver as forças económicas da província e proteger o comércio”. A ideia principal seria a de combater a concorrência de Zanzibar e do domínio inglês no Natal. Desenhava-se como ambiciosa a concepção de uma pauta comum nos domínios portugueses e britânicos no Sudeste africano, desígnio que Mariano de Carvalho chegou a apresentar e discutir em privado com políticos ingleses ligados ao Partido Conservador, então no poder em Londres, por altura de uma das suas muitas viagens pela Europa 21. De referir que esta mesma medida chegou a ser exposta e analisada em Conselho de Ministros, em 1891, quando Mariano de Carvalho regressou à pasta da Fazenda. De acordo com tal proposta, o imposto fixado na dita pauta comum seria igual para todas as mercadorias importadas, qualquer que fosse a sua origem ou procedência e nunca superior a 5% ad valorem. Tratava-se de uma moção altamente impopular numa altura em que a opinião pública portuguesa continuava bastante inflamada com os britânicos devido ao constante envolvimento destes nas questões coloniais portuguesas. Já no plano financeiro, o ex-ministro advogava a reorganização da circulação da moeda em Moçambique através da proibição da importação de rupias directamente do porto de Mombaça. Esta seria a maneira aconselhada de preparar uma reforma monetária cujo alcance último seria o de uniformizar os regimes em vigor na metrópole e no território. No sector dos transportes, o “plano colonial” de Mariano de Carvalho passava pelo estabelecimento de uma carreira de navegação permanente entre o Portugal europeu e a província de Moçambique, fazendo-se a conexão desta 203

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linha com uma outra a inaugurar a partir de Lourenço Marques com destino à Índia e que se propunha assegurar a circulação de mercadorias e passageiros entre a Europa, a África e a Ásia. Em termos administrativos, as ideias do antigo governante seriam particularmente avançadas. No seu pensamento, Moçambique deveria emergir como um Estado descentralizado, que pela sua dimensão seria dividido em três províncias: a do Norte ou de Moçambique, a do Centro ou da Zambézia e a do Sul ou de Lourenço Marques. Os encargos políticos e administrativos seriam repartidos pela existência em paralelo de três governadores de província, que responderiam perante um governador-geral, que assim ficaria aliviado na execução das suas múltiplas tarefas. Para colocar em prática o princípio da descentralização, a coordenação dos serviços de tesouraria da colónia, por sua vez, seria certificada pelo Banco Nacional Ultramarino, enquanto o governo financeiro passaria para a responsabilidade de um Conselho de Fazenda. No que respeita à gestão quotidiana este último órgão deveria ser dotado de uma ampla autonomia de modo a que a gerência dos dinheiros da África Oriental portuguesa ficasse o mais simplificada e desburocratizada possível. Todavia, para impedir que o mencionado Conselho da Fazenda se transformasse “num Estado no Estado”, este organismo ficaria sob a dependência directa do ministro da tutela 22.

Geografias e tipologias das imagens da missão fotográfica de 1890 Atendendo às linhas gerais deste programa administrativo e económico pensadas para Moçambique por Mariano de Carvalho, que aqui apresentámos nos seus aspectos mais gerais, o fotógrafo Manoel Romão Pereira tornou-se testemunha das intensões reformistas do ilustre viajante que acompanhou. As imagens por ele obtidas acabaram, assim, por obedecer a uma lógica intencional de modo a servirem de suporte e de argumento ao “Plano Colonial” apresentado em Lisboa já em 1891 aos responsáveis políticos que, recordo, pertenciam ao quadrante partidário oposto ao que tinha enviado o “Poder Oculto” em tal missão. Em relação às geografias das fotografias recolhidas por Manoel Romão Pereira há a destacar o carácter de extrema diversidade da “colecção”. Moçambique acabou por se retratado do extremo norte ao sul, na que teria sido a primeira recolha sistemática e alargada de imagens do conjunto do território, de Pemba (no Cabo Delgado) a Lourenço Marques. De alguma forma, o trabalho de Manoel Romão Pereira constitui uma aproximação real ao conceito moderno de reportagem fotográfica aplicado a este contexto colonial. Seguindo o sentido de norte para sul e adoptando a ordem pela qual foram registadas as imagens, aparecem 10 imagens do Cabo Delgado, enquanto na Ilha de Moçambique, que à época ainda servia de capital política do território, foram tiradas 30 fotografias – se incluirmos as obtidas no Mossuril (26% 204

  As linhas gerais do programa político de Mariano de Carvalho para Moçambique podem ser acompanhadas no relatório que produziu e enviou para entregar em Lisboa ao ministro da Marinha e do Ultramar. Cf. Braga Paixão (1965), Moeda e Alfândegas de Moçambique: (a missão de Mariano de Carvalho em 1890), Separata do Boletim n.º 62 – Serviço de Estudos Económicos do Banco Nacional Ultramarino, Lisboa, pp. 7-32. 22

A fotografia e a edificação do Estado Colonial

Geografia das imagens da “Missão” Ilha de Moçambique Mussoril; 30

Cabo Delgado; 10 Lourenco Marques; 24

Sofala Chiloane; 1 S/ referência geográfica definida; 17

Zambézia, Quelimane, Prazo Mahindo; 34

do total), enquanto em Sofala apenas seria recolhida 1 imagem. A Zambézia, região considerada de rico potencial para o desenvolvimento económico da colónia, também seria amplamente fotografada, aparecendo em 34 imagens (29% do total), das quais 19 foram tiradas em Quelimane. As outras 15 mostram a realidade do Prazo Mahindo, um dos mais importantes da zona. Por fim, destacam-se as 24 fotografias registadas em Lourenço Marques (21% do total). Aqui o fotógrafo revelou a preocupação de testemunhar o desenvolvimento infra-estrutural e social da cidade. Numa altura em que subia a cotação da baía e do porto locais, assim como o “apetite” das grandes potências coloniais europeias pela região, era importante demonstrar como os portugueses controlavam o território e revelavam capacidade para o desenvolver. Não foi possível identificar onde foram obtidas as restantes imagens. Seja como for, e esse será outro aspecto a destacar, Manoel Romão Pereira e Mariano de Carvalho procuraram retratar as regiões política, económica, social e demograficamente mais relevantes para o processo de afirmação da presença portuguesa na África Oriental e que coincidiram, embora de forma não inocente, com as zonas de passagem e que seriam alvo da visita do antigo ministro da Fazenda. Em relação à tipologia das fotografias temos de destacar a grande preocupação em fixar o desenvolvimento infra-estrutural da colónia. Um total de 39 fotografias foi dedicado aos equipamentos militares e de segurança pública (imagens de fortalezas, quarteis, paióis, cadeias, soldados e polícias), mas também de transportes e comunicações (imagens do caminho-de-ferro de Lourenço Marques, da estação telegráfica do cabo submarino, de portos), assim como infra-estruturas económicas (imagens de alfândegas, gasómetros, fornos, mercados, palmares e do Prazo Mahindo). Para além destas o conjunto contém as fotografias de infra-estruturas civis e de governo local (imagens de repartições várias, hospitais, câmaras municipais 205

2.  Conhecimento / Circulação

Figura 4. “Prazo Mahindo – Frente exterior do recinto fortificado”, 1890. A Zambézia tinha sido identificada por Mariano de Carvalho como zona de rico potencial económico. Fotógrafo Manuel Romão Pereira. Arquivo Histórico Ultramarino.

e diferentes edifícios públicos), assim como edifícios religiosos, nomeadamente igrejas católicas. Em muitas imagens surgem fotografias de moçambicanos, maioritariamente homens, cujo trajar denotava a adopção do islamismo, realidade sobretudo mais sensível fora de Lourenço Marques. Mariano de Carvalho, nos relatos que transmitiu para Lisboa e que seriam amplamente divulgados pelo “seu” Diário Popular, revelou-se um forte crítico da expansão da fé muçulmana em Moçambique, referindo escandalizado que fora de Lourenço Marques existiriam mais mesquitas do que igrejas católicas. Neste sentido considerava que sem o reforço da componente religiosa cristã dificilmente o colonialismo português poderia obter algum sucesso por tais paragens. Por outro lado, o desenvolvimento urbano do território também seria fixado em imagens, sendo tiradas 30 fotografias com planos diferentes de ruas e “avenidas”, residências oficiais e particulares de autoridades locais, cemitérios e panorâmicas urbanas de vários tipos. Muitas destas imagens seriam obtidas sem qualquer tipo de encenação, isto é, Manoel Romão Pereira faria “instantâneos”, não se preocupando em remover os transeuntes das imagens. Já o registo etnográfico também seria alvo dos dois visitantes europeus tirando 20 fotografias onde aparecem retratados os diferentes grupos étnicos que habitavam o território, dos macondes do Norte aos Vátuas (Landins), mais frequentes a sul do rio Save. Para além do retrato individual ou colectivo de indígenas, neste caso um universo exclusivamente masculino, a “colecção” mostrava imagens de cubatas, sepulturas e costumes dos povos nativos. É curioso como também aparece retratada a visita de Mariano de Carvalho aos régulos Volide Volaine e Pachirr`Ali, chefes políticos e religiosos muçulmanos do norte (nas baías de Mocambo e Pemba) (ver figura 5). 206

A fotografia e a edificação do Estado Colonial

Figura 5. “Bahia de Mocambo – Uma visita ao Régulo Volide Volaine”, 1890. À direita da imagem pode verse a figura de Mariano de Carvalho. O “Plano Colonial” de Mariano de Carvalho era sensível ao contacto com as autoridades locais. Fotógrafo Manuel Romão Pereira. Arquivo Histórico Ultramarino.

Muito fotografada também seria a presença militar dos portugueses. Um total de 13 imagens mostrava navios de guerra, batalhões com tropas locais e soldados / marinheiros europeus, armamento de tipo diverso e alguns comandos militares, como é exemplo o de Mossuril – cujo comandante em 1896 seria o então capitão Manuel Gomes da Costa. A adopção dos costumes políticos europeus também seria merecedora da atenção do fotógrafo, pois para além das imagens de edifícios das câmaras municipais (registadas na Ilha de Moçambique, Quelimane e Lourenço Marques), mostrando a importância da instituição concelhia, aparecem fotografias de eleitores em pleno acto eleitoral, embora não se consiga determinar se estamos perante eleições gerais de deputados – que ocorreram na metrópole em Março de 1890 – ou a escolha dos elencos municipais. Seja como for, os eleitores retratados – todos homens, obviamente – eram negros e pelo trajar seriam muçulmanos. Diferentes autoridades civis, militares e religiosas portuguesas aparecem em 4 fotografias dedicadas ao governador da colónia, curiosamente um antigo aluno de Mariano de carvalho da Escola Politécnica de Lisboa, ao comandante da canhoneira Zaire – que o transportou para Moçambique – ao bispo de Moçambique e ao próprio Mariano de Carvalho. Mais discreta é a presença na “colecção” da botânica local fixada apenas em 6 fotografias de árvores e diferentes espécies exóticas e a inclusão de alguns pontos de interesse geográfico, que surgem em somente 4 imagens com variados aspectos das baías de Pemba, Nacala e Mocambo, todas situadas no Norte. Apesar da diversidade geográfica e temática das imagens recolhidas em Moçambique aquando da passagem de Mariano de Carvalho pelo território 207

2.  Conhecimento / Circulação

Figura 6. “Eleições (vista do edifício da alfândega na Ilha de Moçambique)”, 1890. De acordo com as ideias de Mariano de Carvalho, os costumes políticos europeus deveriam ser desenvolvidos em contexto colonial. Fotógrafo Manuel Romão Pereira. Arquivo Histórico Ultramarino.

Tipologias das imagens da “Missão” Presença militar; 13 Botánica; 6

Pontos de interesse geográfico; 4 Desenvolvimento infra-estrutural; 39

Registo etnográfico; 20

Autoridades portuguesas; 4

Desenvolvimento urbano; 30

Figura 7

durante o segundo semestre de 1890, as fotografias não reproduzem qualquer tipo de violência colonial, mas as que representam indivíduos são claramente encenadas. Existe uma pose para a câmara, notando-se a ausência de espontaneidade porque o papel da encenação em fotografia era o de representar um momento ensaiado, estudado com o objectivo de provocar um impacto. Neste caso a mensagem a transmitir seria a de um universo pacífico, ordenado, também exótico, mas onde o elemento europeu se encontrava perfeitamente integrado. Seria uma forma de reforçar a imagem do português enquanto bom administrador colonial. 208

A fotografia e a edificação do Estado Colonial

Conclusão. Um projecto colonial para Moçambique em imagens

  Mariano Pina, Questões de Hoje. Os Planos Financeiros do Sr. Mariano de Carvalho, (Lisboa: Typographia da Companhia Nacional Editora, 1893, p. 341 e p. 346) 23

No contexto pós-Ultimatum surgiram duas soluções para conter a situação em Moçambique: uma militar, defendida por operacionais que conheciam a realidade no terreno como os oficiais Caldas Xavier e Mouzinho de Albuquerque, que não desagradava completamente aos ministros António Enes e Júlio de Vilhena, e uma visão “civil”, apoiada por Mariano de Carvalho e com algum eco junto do Conselho de Ministros de 1891-1892, mais vocacionada para o aproveitamento e desenvolvimento económico do território, tendo por base uma reorganização política de Moçambique. Dada a extensão da província e a falta de meios humanos e logísticos, a sua conquista militar seria um desperdício de recursos, tema que o ex-ministro da Fazenda conhecia como poucos. Esta via alternativa seria recebida com hesitação pelos restantes membros do executivo quando discutida em Conselho de Ministros em 1891, mas Júlio de Vilhena, o ministro da Marinha e do Ultramar de então, logo declarou que dela “fazia questão ministerial” e que abandonaria de imediato o gabinete caso as ideias de Mariano de Carvalho fossem aprovadas, prolongando e agravando a crise política latente desde Janeiro de 1890 23. Para o citado Júlio de Vilhena parecia inconveniente e até “politicamente prejudicial” o estabelecimento de uma convenção aduaneira com a Inglaterra no próprio momento em que a opinião pública se encontrava ainda em pé de guerra contra os Ingleses. Como é que o governo português poderia enfrentar o povo e fazer as pazes com a Inglaterra? Como se explicaria ao espírito público que o governo português queria negociar com os ingleses um modelo através do qual as alfândegas nacionais ficariam sujeitas à fiscalização estrangeira e que a simples arrecadação dos impostos seria feita em comum? Pareceria que se estariam a vender ao inimigo. Júlio de Vilhena lembrava-se, com certeza, de que anos antes já esta tinha sido a causa da queda de ministérios e a origem da crise política que ainda não se tinha resolvido. Não quereria repetir a experiência agora. Além disso, o estabelecimento de uma taxa única para todas as mercadorias iria provocar o desagrado da Associação Comercial de Lisboa, transformada em grupo de pressão poderoso, que solicitava a aprovação de um diferencial a favor dos produtos nacionais em todos os relatórios enviados ao governo. Da forma projectada por Mariano de Carvalho nenhum bem da indústria portuguesa entraria em Moçambique, uma vez que seria impossível suportar a concorrência dos britânicos. A “via económica” para o desenvolvimento e ocupação de Moçambique seria inviabilizada pelas disputas da agenda política doméstica. Restava a saída das armas. Os custos políticos seriam menores e sempre se dava uma satisfação à opinião pública. A missão fotográfica de Mariano de Carvalho a Moçambique em 1890 serviu para o governante fixar e desenvolver estes pontos de vista, que vieram a ser apresentados ainda em território colonial. O conjunto de imagens que fez reunir perante a câmara de Manoel Romão Pereira não deve ser entendido somente como um objecto historiográfico em si mesmo, não apenas como 209

2.  Conhecimento / Circulação

uma fonte histórica única testemunha de um tempo e de um espaço singulares, mas sobretudo como uma peça importante de um processo imaginado de construção do Estado colonial moderno, intenção primeira e última do observador, Mariano Cirilo de Carvalho. Estas imagens revelam mais do que o olhar do fotógrafo sobre a realidade colonial. Mostram, acima de tudo, a intenção de defender um plano integrado de desenvolvimento do futuro Estado colonial em Moçambique. Sob este ponto de vista, são fotografias com uma carga ideológica muito forte, ainda que não aparente, porque estão ao serviço de uma ideia política concreta. Encontram-se, todavia, do lado errado da História, porque os acontecimentos a partir de 1894-1895 viriam a consagrar outro tipo de solução, remetendo o processo de construção do Estado colonial para uma lógica militar e nacionalista que, em bom rigor, viria a ser predominante até 1974. No muito que Mariano de Carvalho escreveu sobre a sua visita a África nunca referiu a presença de Manoel Romão Pereira a seu lado nem são conhecidos pormenores das relações pessoais desenvolvidas entre ambos. Por outro lado, o álbum da “missão fotográfica” também nunca seria apresentado pelo político nos meios coloniais metropolitanos e o material obtido em Moçambique jamais seria reproduzido em postais, como depois se tornaria hábito. Por outro lado, como os jornais ainda não publicavam fotografias de forma sistemática, a parceria entre Mariano de Carvalho e Manoel Romão Pereira depressa sairia da memória dos contemporâneos. Não contando com a descrição das imagens no catálogo da “Exposição Insular e Colonial Portugueza”, realizada no Palácio de Cristal em 1894, na cidade do Porto, durante muito tempo não se iria ouvir falar no assunto. O novo escândalo financeiro em que se envolveu no início de 1892, que implicaria a queda do governo, e o ocaso da carreira política de Mariano de Carvalho a partir de então, ditariam o esquecimento. Quando caiu em desgraça foi acusado de ser um “financeiro embrulhador” que atirou o país para o “atoleiro” 24. “Mariano”, no final do século XIX, em Portugal, passou a ser o apelido de alguém “intrujão” e “desonesto”. Injustamente, foi esta última imagem que sobrou como sua recordação. A “missão fotográfica” de 1890 em Moçambique seria vítima desta situação.

210

  Eduardo Fernandes, Memórias do «Esculápio», (Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1940), pp. 101-102. 24

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