A fotografia é uma arte? A pergunta de 6,5 milhões de dólares

July 14, 2017 | Autor: Nuno Pinheiro | Categoria: Art History, Modern Art, Photography Theory, History of photography, Modern and Contemporary Art
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A Fotografia é uma Arte? A Pergunta de 6. 5 Milhões de Dólares.

Nuno Pinheiro CIES/IUL Apresentado a 15/06/2015 no Espaço Imargem

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Nos finais de 2014 circulou a notícia de que uma fotografia de Peter Lik teria sido vendida por essa enorme soma. Foi uma notícia que despertou controvérsia, já que o nome do fotógrafo é relativamente desconhecido. Porém, já são muitas as fotografias vendidas no mercado de arte, em leilões ou não, a ultrapassar o milhão e entre estas tanto estão fotografias dos grandes nomes da história da fotografia, como as de autores contemporâneos, activos e ainda relativamente jovens. A resposta à pergunta parece estar dada. Será assim tão simples? Será toda a fotografia arte? E será que a fotografia foi sempre considerada como tal? A questão é tão velha como a própria fotografia. Esteve subjacente ao discurso que Arago fez, em 1839, a apresentar ao mundo o que era um avanço técnico. Ao longo dos anos fotógrafos e historiadores da fotografia têm-se empenhado

na

criação

de

legitimidade

artística

para

uma

técnica/prática/arte que tem, de forma imperialista, abarcado o mundo.

A

História

de

Fotografia

enquanto

disciplina

procurou

inicialmente uma identificação com a História de Arte (talvez ser uma sua sub-disciplina), a História da Fotografia de Beaumont Newhall marca o início da disciplina e a entrada da fotografia nos museus. As

fotografias

amarelecidas,

retratos

de

pessoas

comuns,

instantâneos não faziam parte da forma tradicional de fazer a história da fotografia, cujo modelo foi estabelecido a partir do texto de Newhall em 19371, Na sua introdução descreve-a desta forma “It is a history of a 1

4 NEWHALL, Beaumont - The History of Photography. 5ª Ed. 11ª Impressão. Nova Iorque: Museum of Modern Art, 2006

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medium rather than a technique, seen through the eyes of those who, over the years have struggled to master it, to understand it, and to mold it to their vision (...) Photography is at once a science and an art, and both aspects are inseparably linked throughout its astonishing rise from a substitute for skill of hand to an independent art form ” .2 A história da fotografia seria assim a história dos seus principais praticantes (artistas), e da sua evolução como meio, ou forma artística. Outras disciplinas das ciências sociais têm pensado a fotografia de outra forma, Pierre Bourdieu dedicou “Un Art Moyen” à fotografia não se limitando àquela fotografia que tem lugar em Museus e Galerias, mas sobretudo à que se produz em enormes quantidades e está no privado da família. A “mais democrática das artes”, a “arte média”, a “criada das artes” são expressões usadas para a fotografia que iremos discutir. Num texto anterior (1905) Josef Maria Eder afirmou “In the endeavour to present more than a narrow technical history of photography, I have tried to record the development of photography in relation to the events of the time and its application. In addition I have taken great pains to hold fast to impartial, objective historical statements (…) It seemed indispensable to an objective historical record of the subject that some account of the fortunes and personal experiences of the pioneers of photography should be included, since these were often of vital influence on the development of the art.”3 A sua obra é, no entanto, uma magnífica história técnica da fotografia, recuando até aos gregos.

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3

Newhall, 2006, p. 7 Eder, Joseph Maria, History of Photography, Dover, New York, 1978, pp ix, ix.

Devo concordar com John Taft quando considera a história da fotografia como um produto da diversificação da história de arte.4 Como produto dessa diversificação, criou todo um corpus de artistas, de estilos e de períodos. Os dois últimos não correspondem aos tradicionais da História de Arte. Isto é um sinal da independência (ainda que não completa) da fotografia em relação a outras formas artísticas. A definição do “corpus” é, alias, uma das questões mais importantes e menos claras. Desta definição do corpus depende a própria demarcação da história da fotografia.A esmagadora maioria das fotografias

produzidas

são

retratos

com

fins

de

identificação,

instantâneos, ou várias formas de fotografia utilitária. Parece, assim, haver uma separação entre a fotografia artística e aquilo que recentemente se chama “fotografia vernacular”. Uma seria arte, outra não. A verdade é que muito do esforço dos praticantes da fotografia, ao longo de cento e setenta e cinco anos, tem sido para que a fotografia (em especial a sua) seja reconhecida como arte. Uma das formas de o fazer tem sido o demarcar-se da “fotografia utilitária” e também daqueles que praticando a fotografia o fazem de uma forma elementar, ou mais básica. Um dos textos mais antigos e explícitos neste sentido é o de P. H. Emerson, que em Portugal foi publicado na Arte Fotográfica de 1884/85 e que teve uma grande influência no seu tempo.

4

TAGG, John - The Burden of Representation: Essays on Photographies and Histories. Londres: MacMillan, 1988. p. 117

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Algumas décadas depois Afonso Lopes Vieira fazia a demarcação entre os que praticavam a fotografia como arte e os simples amadores: "Entretanto, depois que a pratica da photographia se generalizou entre amadores,

quantas

gramophones da luz!"

câmaras

foram

e

estão

sendo

apenas

os

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A fotografia seria assim uma arte quando executada por "indivíduos que pelo seu talento mostrem ser artistas", no entanto no mesmo artigo em que num dicionário se pretendia definir arte esta é definida como um "agregado de regras e preceitos que ensinam a executar com perfeição alguma coisa".6 Esta definição de arte talvez seja mais uma definição de técnica, mas o mesmo artigo coloca a questão em termos que podem ser considerados mais “modernos”. A arte é algo que se vê nos "olhos educados de um amador" que encontra na natureza: quadros, "como se estivesse vendo a sua reprodução numa tela emoldurada", no mesmo texto é atacada a preocupação de apanhar particularidades que escapam à nossa perceção quando se observa diretamente a natureza". Esta arte implica um degrau uma diferenciação. A fotografia será uma arte naquilo em que não é a prática de todos, naquilo em que é feito por um pequeno grupo com conhecimentos e técnica. A fotografia é uma arte, desde que não seja “a mais democrática das artes”. O confronto é social, já que com equipamento modesto (as Kodak) não é possível fazer arte, mas é também do individualismo (a arte, o artista) contra a sociedade massificada, contra a indústria. Paradoxo é que é essa sociedade industrial massificada que permite a existência desta ideia romântica do artista. No caso da fotografia, é a industrialização que permite a própria prática da fotografia. 5 6

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Illustração Portuguesa, nº199 e 200, 1909 Echo Photographico, nº9 Fev 1907

Não é um acaso que a cada movimento de popularização da fotografia surja uma “reação” elitista. Estamos a viver um momento desse tipo, com a fotografia digital, a proliferação de câmaras nos mais variados equipamentos (telemóveis, tablets, consolas de jogos, drones …) a que corresponde uma reação de regresso a processos fotográficos oitocentistas, ao uso de equipamentos low tech, ou à exacerbação da manipulação digital. Uma outra maneira de ver: A história da fotografia é a história do seu reconhecimento como arte, ou melhor dos esforços feitos pelo seu reconhecimento. Podemos encontrar sinais disto mesmo nos primeiros retratistas que frequentemente se intitulavam fotógrafos e pintores, ou tinham, no mínimo uma paleta e pincéis nos cartões em que colavam as suas fotografias. O movimento naturalista dos anos 1880, com o texto fundamental e já referido de P. H. Emerson é uma tentativa bem sucedida de o conseguir. Mais tarde o pictorialismo reforça essa ideia, Na altura em que inicialmente as placas secas, posteriormente a revolucionária Kodak popularizavam e simplificavam a fotografia, valoriza-se uma série de processos que se destinam a produzir fotografias que não se pareçam com fotografias, mas antes com pinturas ou gravuras. É isso que fazem técnicas como o bromóleo, o carbono, a Goma bicromatada, inventadas, ou tornadas populares nessa época. Pode-se dizer que estas tentativas são um reconhecimento de que a fotografia ganharia o estatuto de arte quando negasse a sua própria identidade. A tentativa é a criar uma representação o menos realista possível, o mais afastada daquilo que é a grande capacidade técnica de conseguir uma representação “perfeita” da realidade, Também são uma

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forma de dar maior importância ao trabalho manual e humano, sobre o lado “máquina” da fotografia. A máquina é o “pecado original” da fotografia, é o que faz com que do ponto de vista da arte possa haver suspeitas, mas também é aquilo que faz com que se pudesse (hoje já ninguém acredita nisso) na fotografia como um meio objetivo. Nos primeiros anos do século XX os movimentos vanguardistas na fotografia são, de certa forma, um regresso ao realismo. Por vezes são os mesmos fotógrafos (porque será que eu não disse artistas) que anteriormente advogavam uma estética pictorialista os iniciadores da “strait photography”. Impossível não lembrar Alfred Stieglitz ou Edward Steichen, Outro dos pioneiros da fotografia modernista, Paul Strand, também foi inicialmente promovido por Stieglitz. Lembremos que nesta mesma época, aquele que é considerado o maior fotógrafo português, Joshua Benoliel, não teve uma única fotografia publicada na imprensa fotográfica. Este tipo de fotografia criava a oportunidade de incorporar algum trabalho fotográfico, como o feito para a nascente imprensa ilustrada fotograficamente, na “grande fotografia”. E neste momento ninguém contesta que as fotografias de imprensa estejam nas paredes de galerias e museus. Aliás não são só as fotografias de imprensa a ganhar essa honra. O Centro Português de Fotografia abriu com uma exposição das fotografias de presos da Cadeia da Relação do Porto, isso justifica-se por estar a ocupar o edifício da Cadeia da Relação e também com alguns prisioneiros famosos como Camilo Castelo Branco (um parêntesis para lembrar um objeto que está frente ao edifício e que pretende ser escultura e ser arte). Há uns anos o MOMA apresentou uma exposição

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de fotografias de presos dos campos da morte no Cambodja. Nestes dois casos é a História a entrar no Museu (o que parece razoável). O mesmo MOMA também tem patentes (apresentados como arte) alguns objetos utilitários incluindo automóveis. A definição tradicional da arte exclui esses objetos da categoria arte. Na fotografia também não parece já haver exclusão para o que se considera arte. Primeiro foi Atget fotógrafo de paisagens urbanas de Paris para uso de pintores e descoberto por Man Ray, foram também as imagens de moda, de publicidade, os retratos de estúdio. Mesmo os instantâneos familiares ganharam categoria de arte, pelo menos quando já têm algum tempo. J. H. Lartigue, nome obrigatório nas histórias da fotografia, tem uma obra em que estes são os trabalhos fundamentais, alguns feitos muito cedo na vida. A fotografia entrou nos museus nos anos 1930, a obra pioneira de Newhall que pode ser vista como uma primeira história da fotografia é o texto que acompanhou a primeira exposição de fotografia no MOMA. Já a entrada nas galerias, pelo menos enquanto mercadoria rentável, foi muito mais demorada. Edward Weston, que personifica o ideal romântico do artista na fotografia (um pouco como Van Gogh) faleceu em 1958 numa situação financeira precária. Os seus trabalhos vendiam-se por quantias modestas, e já estavam nos museus, aliás o MOMA organizou uma retrospetiva do seu trabalho em 1946, havendo outra no Smithsonian em 1956, quando estava já bastante doente. Financeiramente foi mais bem-sucedido depois de morto. A impressão dos seus negativos foi um negócio rentável para um dos seus filhos (Cole) e manteve-se para os seus netos.

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Bem-sucedidos financeiramente foram outros fotógrafos um pouco mais jovens, e talvez mais dotados para o negócio. Ansel Adams tinha um bem montado negócio de formação. Falecido em 1984 viveu o suficiente para que o sucesso artístico se transformasse em sucesso comercial, A entrada da fotografia no mercado da arte faz-se nos anos 80 , e ao longo dos anos 90, assistindo-se depois a movimentos contraditórios. Um é a apropriação da fotografia pela pintura não só com pintores que fotografam (Hokney, Wharol) , como também pelas pinturas que se querem parecer com fotografias (geralmente instantâneos). É um movimento oposto ao pictorialismo de 1900 que pretendia fotografias que parecessem gravuras ou pinturas. Outro movimento contraditório é o dos fotógrafos que ganham o título de “artistas” o que representa menos na produção, do que em termos comerciais. Uma polémica recente envolve o artista Richard Prince, que foi construindo fama desde os anos 70 por obras centradas na apropriação de imagens, por este ter exposto e vendido, como se fossem suas, fotografias extraídas da conta do Instagram de várias pessoas (preços de 90 000 dólares). O mesmo artista já tinha feito o mesmo com imagens de publicidade, ou de ecrãs de televisão, mas agora é que a polémica estalou e alastrou por revistas de arte, fotografia, comunicação e até finanças. Uma das suas obras mais conhecidas, e que foi transacionada por valores muito elevados, reproduz um anúncio da Marlboro de 1977, com um cavalo e um Cowboy. Prince para uns é genial, para outros uma fraude. Todo o seu trabalho coloca em causa o conceito do que é arte e o próprio conceito de autoria. Levando o conceito de Prince, ainda mais longe, o site Suicide Girls está a vender cópias das fotografias de Prince a um milésimo do preço, 90 $. Este trabalho reflecte, de qualquer

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forma, algumas das tendências actuais. Não se debruça sobre a realidade, mas sim sobre a imagem. Numa sociedade feita de imagens, com imagens que nos manipulam, estamos perante uma manipulação da imagem e também perante a sua apropriação. Podemos voltar a Benjamin e à sua “A Obra de Arte na Era da sua Reprodutividade Técnica”7. Para Benjamin não era este tipo de apropriação que está em causa, mas sim o facto de a fotografia ser reprodutível, e permitir a reprodução de outras obras de arte. Esta foi aliás uma das utilizações mais comuns da fotografia, sem que isso seja visto como uma obra de arte em si. Hoje a resposta à pergunta inicial é clara, nem se coloca em dúvida, mas as nuances são muitas e a imagem digital, ainda muito recente, irá seguramente levantar novos problemas.

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in Benjamin, Walter, Sobre Arte, Técnica Linguagem e Política, Relógio de Água, Lisboa, 1992

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