A fotografia médica dos corpos indígenas

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Publicado em: Cascais, Fernando A. (ed.). Olhares sobre a cultura visual da medicina em Portugal. Lisboa: Leya Editores, 2103, 366-420.

A fotografia médica dos corpos “indígenas”. A Documentação fotográfica dos Serviços de Saúde da Diamang _____________________________________________________________________________

“Em Vila Andrada, servem-nos um lanche perfeitamente europeu sobre um gramado também perfeitamente europeu. (…) De qualquer modo sinto a ausência da África; e este sentimento de ausência da África em África, em vez de me regalar, aflige-me. Sinto uma como saudade da África que está sendo esmagada, abafada, sacrificada para que a Europa e os Estados Unidos estendam por terras africanas não só as suas maravilhas técnicas adaptadas ao gosto e às conveniências de povos tropicais como as suas banalidades, as suas futilidades, os seus excessos profiláticos de anti tropicalismo.” Gilberto Freyre (1953). Aventura e Rotina – Sugestões de uma viagem à procura das constantes portuguesas de carácter e acção. Livros do Brasil.

Este artigo é uma tentativa, naturalmente, provisória e incompleta, de responder ao apelo interpretativo suscitado por um conjunto particular de objectos resgatados de um arquivo (Trata-se do arquivo do Museu de Antropologia da Universidade de Coimbra). Objectos quase-perdidos no tempo e no espaço de prateleiras bem arrumadas e catalogadas mas, ainda assim, objectos esquecidos e mudos. Trata-se de um conjunto de relatórios da Direcção dos Serviços de Saúde da empresa de extracção diamantífera Diamang, situada na província angolana da Lunda. Com a extinção formal da Diamang, em 1988, o Museu de Antropologia da Universidade de Coimbra viria a comprar o espólio da Diamang, primeiramente o que se encontrava na sede de Lisboa e, já em 1999, receberia em depósito, da empresa que em Portugal assumiu a continuidade da Diamang, uma série de documentação variada, onde se incluem os relatórios médicos aqui referidos. A Universidade de Coimbra tem vindo a digitalizar e disponibilizar este material em linha, no sítio (). A Diamang foi fundada em 1917, como desenvolvimento de uma primeira empresa de pesquisa mineira fundada em 1912 - a PEMA (Pesquisas Mineiras de Angola). A PEMA fazia prospecção na região da Lunda, após notícias de que a empresa mineira belga Forminière descobrira 1

diamantes na região, no seu lado da fronteira, no Congo. Esta empresa belga viria a ser uma das parceiras na criação da Diamang, após a descoberta dos jazigos. No capital da Diamang entram ainda, investidores portugueses da empresa Henry Burnay&Companhia, que viria a tornar-se no banco Burnay, e o Banco Nacional Ultramarino; franceses do banco de L’Union Parisienne; dos Estados Unidos, o grupo Ryan-Guggenheim, e como referido, os belgas da Societé General de Belgique e da Mutualité, ligados à Forminière . Segundo Varandas (2004)) os americanos detiveram o poder de governo da empresa até à década de 30, apesar da legislação que obrigava a que as empresas em território angolano tivessem na sua administração gestores portugueses (Lei nº 241 de 20 de Fevereiro de 1923). A empresa recebeu do governo da colónia a concessão total e exclusiva de prospecção num território equivalente a cerca de metade da dimensão de Portugal Continental, a troco de 40% dos lucros (mais tarde passaram a ser 50%) (fonte: Diamang digital), consultada a 9 de Julho de 2013). A empresa foi nacionalizada em 1977, após a descolonização, e acabaria por ser extinta em 1988, dando lugar à actual Endiama. Os serviços médicos da empresa foram constituídos em 1920. As fotografias incluídas nos relatórios dos Serviços Médicos materializam, de um modo aparentemente fortuito, um imaginário social, médico e colonial que quisemos compreender enquanto aspectos da cultura visual da medicina em contexto colonial. O conjunto compreende 13 relatórios dactilografados, cada um com a sua respectiva pasta de cartão e capa, incluindo uma média de 90 fotografias por relatório, directamente coladas em páginas autónomas, sempre com a menção “Documentação fotográfica do ano X”, e colocadas, de forma quase aleatória, entre as páginas de texto e com numeração própria. Os relatórios encontrados espraiam-se entre os anos de 1949 e 1972 e têm uma natureza administrativa (Este foi o conjunto encontrado e seleccionado para integrar o corpus de imagens médicas em Portugal pelo projecto “História da Cultura Visual da Medicina em Portugal”, financiado pela FCT - HC/0110/2009). Redigidos pelo Director do Serviço de Saúde da Diamang (este cargo foi criado com esta designação em 1956. Depreende-se da leitura dos relatórios que antes desta data seriam redigidos pelo Médico-Chefe, cargo equivalente àquele - Cf. Relatório de 1967, pp. 2 e 4). A partir do ano de 1967, como referido no respectivo relatório, este passaria a ser distribuído também ao Secretariado Provincial da Saúde, Trabalho e Assistência de Angola. Tal facto sucede porque à Diamang tinham sido cedidas contrapartidas económicas em troca da prestação de cuidados de saúde às populações (Varanda, 2011), devendo, por isso, o Estado exercer alguma fiscalização nessa matéria. Os relatórios dirigiam-se, igualmente, à Administração da empresa e à Direcção dos Serviços de Saúde e Administração de Angola, por vezes, tendo partes unicamente destinadas ao 2

conhecimento da Administração e de circulação interna à empresa. Caso da secção “Factos em Foco” (cf. Relatório de 1967) onde se sublinhavam algumas falhas e carências a suprir, “escondidas” do relatório público. Uma das questões mais frequentes é a da instabilidade do quadro de médicos portugueses, cujo tempo de permanência era frequentemente de pouco mais do que dois anos, o que deixava a empresa mais dependente dos médicos estrangeiros, nomeadamente, dos belgas da Forminière (também detentora de parte da Diamang), a operar no vizinho Congo. Esta circunstância punha em causa o desejo de controlo português, ameaçando a imagem de autosuficiência que o Estado Novo de Salazar pretendia passar (Varanda, 2011; Mattoso, 1994). No entanto, e como excepção a este carácter interno e administrativo dos documentos, incluímos neste conjunto, um relatório impresso e publicado numa separata dos Anais do Instituto de Medicina Tropical de 1953 (Volume X, nº 4, Fasc.I, Setembro de 1953), escrito pelo médico José Picoto, então Chefe dos Serviços de Saúde da Diamang, que faz um balanço detalhado das actividades sanitárias empreendidas pela instituição até aquela data. José Picoto é também autor de vários dos relatórios dactilografados. No contexto de uma história da cultura visual da medicina, porque dirigimos o nosso interesse para objectos visuais e discursivos tão comezinhos, no seu carácter quotidiano e fastidioso, de documentos meramente burocráticos e administrativos? Mais ainda: porque considerá-los dignos de um certo resgate histórico no âmbito do nosso estudo? Como poderão estes relatórios contribuir para compreendermos as práticas visuais da medicina, aqui em contexto colonial? Porque não, simplesmente, extrair destes relatórios as imagens coladas em páginas soltas, para torná-las, apenas a elas, exemplares de um dado olhar médico, que com elas queremos formular? Não isolámos apenas o material fotográfico porque queremos compreender as práticas sociais da imagem que conduziram certas pessoas, nesta instituição em particular, neste local e datas específicas, a produzir fotografias de determinados objectos e situações, e a colá-las nas referidas páginas destes relatórios científico-administrativos. O contexto de produção e circulação destas imagens é, para nós, indissociável dos seus possíveis significados fotográficos para os seus praticantes, como aliás o comprovam as informações acima referidas sobre o contexto colonial da Diamang. Mais ainda, revelam o contexto de uma organização social separatista e racista, evidente nas fotografias e nas práticas médicas patentes nos relatórios. Que papel exerceram estas fotografias na retórica específica destes relatórios e na manutenção da segregação, que afectava também a ciência médica? Como agrupá-las na designação “olhar médico”, cujas fronteiras algumas fotografias parecem ultrapassar e, nesse sentido, problematizar? Como integram esses saberes? De que sentidos poderemos investi-las sem trair demasiado as histórias de onde emergem? 3

Tudo parece apontar para que estes relatórios, e as suas fotografias, - embora de alcance relativo e quotidiano - tenham integrado o conjunto de acções tendentes a promover a afirmação política do colonialismo português. Manifestam a aliança entre o saber médico - a sua instalação nos corpos como no “terreno” - e a instalação do colonialismo, num assinalável caso de biopolítica.

A lente teórica O nosso olhar é conduzido sob a influência teórica de Michel Foucault e do seu método arqueológico, que as perguntas atrás enunciadas manifestam. Para este autor, o discurso histórico deve constituir cada unidade discursiva, cada enunciado e cada sujeito da enunciação - que o historiador usa enquanto documentos -, em objecto de uma interrogação que não se dirige ao significado intrínseco e, por assim dizer, interno ao discurso, mas antes às suas condições de possibilidade. A história não deve tratar da sucessão contínua de ideias, autores e objectos de saber para encadear factos e pensamentos reportados nesses textos-documentos, mas deve situar-se a montante deles, ou seja, dar atenção às lógicas sociais e às formas de legitimação desses saberes, que fazem emergir tais discursos e os tornam possíveis. No seu célebre Arqueologia do Saber (1969), Foucault escreve o seguinte:

“A análise do campo discursivo é orientada de um modo muito diferente (da análise linguística); trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade do seu acontecimento; de determinar as condições da sua existência, de fixar da forma mais adequada os seus limites, de estabelecer as suas correlações a outros enunciados que lhe possam estar associados, de mostrar que outras formas de enunciação ele exclui. Não procuramos de todo, por baixo daquilo que é manifesto, a conversa fiada, meio silenciosa, de um outro discurso; devemos mostrar porque não poderia ser diferente do que é, em que medida exclui qualquer outro, como toma, no meio dos outros e por relação a eles, um lugar que mais nenhum poderia ocupar. A questão característica deste tipo de análise, poderíamos formulá-la do seguinte modo: qual é então, essa singular existência que vem à luz do dia no que se diz - e não noutro lado qualquer?” (Foucault, 1969: 40) (A tradução a partir do texto original em francês é da nossa responsabilidade).

Esta problematização implica a consideração concomitante de normatividades e de marginalidades que constantemente se multiplicam e dispersam historicamente. Deste conflito permanente, resultam formações discursivas, no interior das quais cada discurso ocorre e decorre, que mais não são do que regras institucionalizadas que distribuem os lugares do discurso, os seus sujeitos e objectos e asseguram as suas condições de verdade. Tal como lembra Foucault no início do seu célebre discurso no Colégio de França, as dificuldades de tomar a palavra, de estar no lugar da palavra, são acolhidas pela instituição que lhes responde de forma irónica mas quase sempre 4

segura - “o discurso está na ordem das leis”. As instituições exclamam: “sempre vigiámos o seu aparecimento", mostrando como a liberdade de dizer é conferida no interior de limites socialmente estabelecidos e sujeitos a condições de mudança que afectam igualmente, o princípio da veracidade e razoabilidade dos discursos: cada época possui a sua verdade. O que implica tornar a própria “verdade” num problema histórico (movimento que aliás, remonta a Nietzsche) e, por isso, num problema político. Esta vontade de verdade que se manifesta, historicamente, como vontade de saber e de poder - temas de Nietzsche -, permite identificar grandes regimes de dominação que tendem a conformar (se bem que sempre tensionalmente) instituições, sujeitos e discursos. É sabido que Foucault trabalhou sobretudo a transicção de regimes de dominação da idade clássica para a idade moderna. Estes regimes de dominação não correspondem, para Foucault, à ideia de ideologia política no sentido estrito do termo, mas adquirem uma acepção mais alargada a uma determinada lógica de racionalização social. A “ordem do discurso” integra-se de forma incessante e produtiva na ordem institucional não discursiva de que faz parte, dinamicamente. Cada época tende a produzir o seu próprio campo de possibilidades dominante sobre outros recusados e apagados da história - campo que inclui os interditos bem como a organização das normatividades e ainda, o “de-fora”, aquilo que não poderia ser visto, compreendido ou alcançado numa dada época e regime de dominação (e que está além dos interditos). Ou seja, cada época estabelece uma partilha entre empiricidades: um limite entre o que se vê , o que é visível e o invisível; o que se ouve e o inaudível; o que se sente, cheira ou toca e o que fica de fora da experiência possível para dados sujeitos situados e perspecticos , também eles produzidos neste processo (Nietzsche, 1996; Marques, 1993). Toda a ordem empírica e, principalmente, todo o sujeito da experiência deixam de ser categorias à priori do conhecimento como para o iluminismo kantiano - e adquirem a espessura do aqui e agora institucional e social. A este propósito, é esclarecedora a seguinte passagem de As Palavras e as Coisas: “Os códigos fundamentais de uma cultura - aqueles que regem a sua linguagem, seus esquemas perceptivos, suas trocas, suas técnicas, seus valores, a hierarquia de suas práticas - fixam, logo de entrada, para cada homem, as ordens empíricas com as quais terá de lidar e nas quais se há-de encontrar” (1966:9). A área da Cultura Visual será profundamente influenciada pelo trabalho teórico de Michel Foucault, principalmente, em torno da noção de regimes de visão ou de regimes de visualidade que alguns autores, sobretudo anglosaxónicos (Medeiros, 2006) desenvolverão a partir do seu trabalho e que tornam vãs as análises das imagens meramente formais, estilísticas ou desligadas da prática social (Foster, 1988; Jay, 1993; Crary, 1997; Batchen, 1991). 5

O trabalho de Michel Foucault contribuiu, decisivamente, para investigar as condições históricas da modernização da visão e da sua constante tecnologização, na cultura europeia, em resultado da articulação com os diversos campos de saberes, suas linguagens, sujeitos, empiricidades e enquadramentos institucionais emergentes. Nomeadamente, na medicina e na prática clínica (Foucault, 1977), que aqui nos interessam em particular, o seu trabalho abre os pressupostos para uma reflexão geral sobre as condições e definições do “olhar médico” e da sua generalização biopolítica. Vários estudos em história da medicina têm vindo a sublinhar o exercício do poder e os diversos interesses económicos como fortes razões para explicar o papel da medicina nos diversos impérios (Packard, 1989; MacLeod e Lewis, 1988; Curtin, 1998; Echenberg, 2002). Outros, dando uma orientação mais antropológica à vertente da história social da medicina, reflectem sobre as representações no que toca à prestação de cuidados ao “outro” e os modos como estas consubstanciaram dadas orientações políticas no terreno (Feireman, 1985; Arnold, 1988; Vaughan, 1994). Havik (2011) demonstra como o modelo da epidemia, em especial o caso da malária, moldou esta biopolítica, aproximando-se da tese de Foucault que considera a epidemia da lepra e as medidas sociais que originou, como origem do modelo disciplinar moderno. No campo da fotografia, cabe mencionar, a deriva “disciplinar” de John Tagg no que se refere à compreensão histórica e teórica da fotografia em uso nas diversas instuições desde a sua invenção, no início do século XIX (Tagg, 1988; 1999). A presença do institucional - e dos regimes discursivos e visuais respectivos - leva Tagg a afirmar a inexistência de qualquer “especificidade” do fotográfico fora destas definições institucionais, num argumento reactivo à deriva “essencialista”, de cariz greenbergiano, que dominou a teoria fotográfica praticamente até ao final dos anos 80 (Batchen, 1997; Elkins, 2007). Seja como for, e embora a tese de Tagg também mereça alguma revisão - já que existem “resistências” e resultados “inesperados”, suscitados, tantas vezes, pelos próprios usos institucionais, incapazes de tudo prever e controlar, e que demonstram alguma espessura do medium - esta linha de trabalho orienta o nosso olhar, debruçado sobre estes Relatórios que, sob ele, adquirem um estranho peso histórico e também, uma imensa estranheza de que procuraremos dar conta. Igualmente as fotografias, cujo papel, no interior destes Relatórios, interrogamos, adquirem uma certa autonomia, uma presença muda e, talvez, sempre excessiva face à palavra. Embora integradas num contexto discursivo, a sua visualidade impõe-se.

As fotografias médicas na ordem institucional: singularidades e repetições 6

Isolámos, então, estes relatórios como singularidades - com todo a grandeza do singular -, objectos-interruptores do fluxo contínuo da história; mas, em contra-mão, vêmo-los também, como exemplares - elementos de uma série, submetidos a repetições e conformações a regras de performatividade que lhe dão existência, engendrados por uma lógica que começa por ser discursiva e visual (neste sentido imediato da “documentação fotográfica”), para ser, ao mesmo tempo, institucional (os Serviços Médicos da Diamang) e administrada pela racionalidade de um regime de dominação colonial. Os relatórios e as suas fotografias destinavam-se a demonstrar às autoridades governamentais o cumprimento dos contratos de concessão da empresa. Em troca da exclusividade dos direitos de prospecção de diamantes naquele território e outras regalias associadas a essa prospecção, o governo da colónia de Angola exigia que a companhia prestasse assistência médica, instruisse e “elevasse o moral dos nativos”, primeiro apenas dos empregados e seus familiares, depois, a partir dos anos 40 (Picoto, 1953), de toda a população da Lunda. Era, por isso, relevante mostrar a obra feita no tocante à assistência médica. Jorge Varanda escreve a este propósito: “O contrato estabelecido com o governo da colónia de Angola era excepcional. A companhia detinha a exclusividade da prospecção de diamantes em todo o território. Além disso, estava isenta do pagamento de impostos relativos a bens alimentícios e têxteis, máquinas e outros equipamentos industriais relativos à prospecção mineradora. Outro privilégio da Diamang referia-se à exclusividade de toda e qualquer atividade comercial na área da sua concessão. O contrato também obrigava o Estado a ajudar no recrutamento de mão-de-obra indígena necessária ao funcionamento da companhia. Por seu lado, a companhia deveria prestar assistência médica, instruir e elevar o moral dos nativos. O Estado receberia, em troca da concessão, 40% dos lucros da empresa, índice que posteriormente foi elevado para 50%”. (Varanda, 2004: 262). A companhia tornou-se o maior empregador da colónia, com mais de 27.000 trabalhadores e era o principal contribuinte e fiador da colónia em empréstimos internacionais (Varanda, 2011). A documentação fotográfica que integra os relatórios cumpre essa função de prova e de aproximação emocional dos interlocutores a essa realidade visualmente documentada. Inseridas de modo autónomo entre as páginas de texto, de tom mais árido, as fotografias e as suas legendas contam por si só uma história: a do progresso civilizador e a do são convívio entre raças, repercutindo a tese de que a colonização portuguesa tinha uma forma de operar branda e integradora, distinta de outros povos colonizadores (Rosas, 2001). A narrativa fotográfica visa testemunhar da grandiosidade e do carácter benemérito dessa acção colonizadora. Como escreve José Picoto na sua participação no congresso de medicina 7

tropical de 1953: “A ocupação sanitária total da Circunscrição do Chitato, empresa necessariamente de grande vulto, impunha-se, que mais não fosse por humanitarismo” (Picoto, 1953: 2677). Ou, na conclusão do relatório: “examinando (estes dados) com atenção, de certo ressaltará o esforço desenvolvido, grandes cuidados e carinhos dedicados pela nossa Companhia à assistência (médica)” (idem: 2699). Esses “cuidados e carinhos” orientam o olhar fotográfico destes relatórios. Podemos dividir as fotografias em quatro categorias, recorrentes, por esta ordem, em todos os relatórios consultados: 1) as fotografias que documentam as instalações hospitalares que foram concluídas ou estão em construção durante o ano a que se refere o relatório (sob o título “instalações sanitárias”); 2) as visitas oficiais com os seus aspectos sociais e mundanos; 3) as fotografias que testemunham as actividades médicas, nomeadamente as diversas campanhas desenvolvidas junto das populações (contra a tuberculose, contra a doença do sono, campanhas de vacinação, etc.), ou as actividades nos laboratórios, nas maternidades, nas unidades de farmácia. O título desta série é “actividades sanitárias” e inclui as festas e celebrações com os doentes internados, onde as esposas dos directores assumem papel de destaque e, 4) as fotografias de foro estritamente médico, com documentação dos casos clínicos resolvidos durante o ano. O primeiro e terceiro tipos de fotografias testemunham o estabelecimento de uma rede médica que se apropria de um território, e reflecte o modelo de administração então seguido. Foucault em Nascimento da Clínica, lembrava que existe uma “espacialização” da doença, primeiro, numa ordem classificatória geral (na Medicina clássica); depois, uma espacialização secundária, que inscrevia a doença no corpo particular do doente; e, finalmente, o que designava, “espacialização terciária” que se reporta à administração da doença no corpo social: “o conjunto dos gestos pelos quais a doença, numa sociedade, é envolvida, medicamente investida, isolada, repartida em regiões privilegiadas e fechadas, ou distribuídas pelos meios de cura, organizados para serem favoráveis. (...) Implica um sistema de opções que diz respeito à maneira como um grupo, para se manter e se proteger, pratica exclusões, estabelece as formas de assistência, reage ao medo da morte” (1977:16). José Picoto revela no seu relatório, na conferência de medicina tropical de 1953, que a Diamang estava a criar dispensários e instalações sanitárias “rurais”, mais próximos das aldeias nativas, para melhor assistir os habitantes negros, complementando os Hospitais centrais do Dundo e Andrada. Nesta época, percebera-se que as endemias da malária, febre amarela, doença do sono ou tuberculose, entre outras, não poderiam controlar-se se as medidas profiláticas e de controlo dos 8

vectores de contágio apenas se destinassem aos europeus brancos e se restringissem aos centros urbanos, modelo este privilegiado desde o final do século XIX.

As fotografias das instalações hospitalares e o imaginário do progresso civilizacional As fotografias das “instalações sanitárias” mostram edifícios de arquitectura moderna europeia, construídos ou em construção, através das quais se sustenta o discurso da presença civilizadora e pacificadora que as fotos visam demonstrar (A guerra da independência de Angola começou em Fevereiro de 1961). Algumas legendas são simplesmente referenciais, identificando o tipo e local do edifício, mas muitas são qualificativas, acrescentando um sentido edílico ao que se mostra: “A grama e os arbustos tornam aprazível o aspecto do Hospital do Sacavula... E os doentes de tuberculose sentem-se bem nesse ambiente agradável e sedante” (“Documentação fotográfica”, 1967, fotos 5 e 6. Cf. Fig. 1). Ou, a propósito de outra imagem, “...A mesma vista do pátio interior, ficou guarnecida com uma bela varanda” (idem, foto 10). Ou ainda “O berçário da Maternidade do Canzar tem este agradável aspecto, depois de concluído” (idem, foto 20). Constrói-se assim uma narrativa de sonho, que imagina e prescreve o que deverão sentir os futuros internados nestes ambientes arquitectónicos. As fotos sublinham as linhas rectas do estilo arquitectónico moderno e, mesmo enquadrando os edifícios quase sempre de forma oblíqua, fazem-no reforçando, na imagem, as linhas horizontais. Os elementos humanos estão ausentes da maioria destas fotos ou, quando surgem, a sua presença não é destacada. São em geral trabalhadores negros que se confundem com o todo, tornados, por isso, mais ou menos insignificantes. Notamos a assinalável excepção de uma enfermeira, branca, que pousa para a foto junto ao edifício de uma maternidade. A maior parte das fotografias enquadra os edifícios a média distância, eliminando do enquadramento os terrenos envolventes ou revelando uma sua pequena parcela, o que contribui para essa eliminação de “África em África”, como refere Gilberto Freyre, e para a construção de uma imagem paradisíaca dos locais construídos (algumas das fotografias que mostram um pouco mais dos terrenos envolventes evidenciam a sua localização rural e a desflorestação circundante). Além disso, estas construções são em geral térreas e de média dimensão. Assemelham-se mais a vivendas privadas do que à típica arquitectura pública dos grandes Hospitais. Por isso, parecem prometer estadias faustas e “sedantes”, num paraíso domesticado e seguro. Estas fotos funcionam como uma espécie de catálogo serial, criando um espaço racional e “limpo”, que lembra a estética da nova objectividade concentrada nas propriedades do fotográfico para descrever e tornar presente um objecto, para o classificar num sistema racional, fora do espaço 9

e do tempo, como objecto singular de uma normatividade. A desterritorialização fotográfica é aqui um efeito ideológico. Nestas imagens apenas se permitem algumas marcas de exotismo, quase sempre através da presença de uma palmeira a pontuar um relvado, cliché do próprio exótico. As fotografias, bem impressas e esteticamente equilibradas, contribuem para enaltecer a capacidade empreendedora da Companhia que consegue o prodígio de desapossessar África - desde logo destas fotografias - tornando-se símbolos do que se entendia então por progresso civilizacional.

As fotografias das actividades sanitárias e o modelo de dominação biomédica dos trópicos Nas fotografias que documentam as actividades sanitárias podemos constatar também o modelo administrativo seguido na política de saúde, que é indissociável da política de dominação territorial e económica. Ao contrário das anteriores, estas imagens centram-se nas pessoas e nas suas actividades, mostrando alguns aspectos das suas acções: enfermagem, análises clínicas, ambulâncias, farmácia e campanhas no exterior, junto das populações. As fotos documentam a organização social hospitalar, também presente nos relatórios: a presença de africanos negros é a regra. Mas o máximo a que podem aspirar os homens e mulheres negros é serem enfermeiros ou enfermeiras. A maioria são auxiliares ou técnicos. Os médicos são por regra homens europeus brancos. Desde o início do século XX que se generalizou a ideia de que era difícil penetrar em território africano sem recurso à população local, também tida por mais “aclimatizada”, isto é, adaptada às condições climatéricas e alimentares das regiões e, portanto, menos sujeitas às “febres de África”. Curtin (1998), no seu trabalho sobre as campanhas militares em África, descreve a este propósito como se comprovou a tese da aclimatação durante a epidemia de febre amarela que atacou St. Louis, no Senegal, em 1878. Percebeu-se então que as pessoas oriundas de zonas endémicas de febre amarela resistiam melhor e passou a adoptar-se nos impérios britânico e francês um modelo de organização militar e da mão de obra com recurso aos negros, em especial nas zonas mais endémicas, em vez de europeus. Modelo de recrutamento que se extendeu também ao império português, em especial em regiões remotas, como o caso da Lunda, mas que era encarado como não isento de problemas adicionais pois os negros eram vistos como disseminadores dessas doenças (Curtin, 1985; Havik, 2011; Ferreira e Hamlin, 2010) e daí o desenvolvimento de recursos médicos e estratégias urbanísticas tendentes a proteger prioritariamente a população branca. A fixação de pessoal branco, nomeadamente médicos e enfermeiros, não era um problema apenas da Diamang: embora aqui pesasse a distância face a qualquer centro urbano mais desenvolvido. Também, por isso, o governo da colónia de Angola cedeu plenos direitos urbanísticos 10

e de administração da segurança à empresa. A Diamang, que começa a fixar-se no local desde 1917, possuía um corpo policial próprio, construiu cidades novas, como o Dundo ou Andrada, possuía um Museu, escolas e clubes recreativos e desportivos para o pessoal branco. Nas palavras do historiador Clarence-Smith, a Diamang era “um estado dentro do estado”: “Conduzindo praticamente todos os aspectos da vida, nesse canto noroeste de Angola, com a sua própria polícia, estradas, barragens e instalações hidro-eléctricas, rádio, escolas, serviços de saúde, estações agrícolas, serviços de extensão rural, missões e museus, a Diamang tornara-se um Estado dentro do Estado, referida como “a nona colónia do império” por espirituosos em Lisboa” (Clarence-Smith, 1985: 173). E era um Estado rigorosamente segregacionista e racista em todos os seus aspectos. Por serem urbanizações novas, os bairros eram separados por raças (o que não acontecia tão facilmente nas cidades antigas). Assim como as escolas, as igrejas e os hospitais. Também o sistema de saúde assenta numa rigorosa separação dos corpos por cores e género: consultas para brancos, consultas para negros, enfermarias para homens negros, enfermarias para mulheres negras; o mesmo para os brancos. Uma segregação que tem uma origem profunda na própria racionalidade médica, que diferencia os negros. Como refere Vaughan: “Os africanos eram olhados como pertencendo a grupos categorizados por raça, cor e etnia, enquanto os europeus eram vistos como indivíduos e o tratamento das maleitas obedecia, em consequência, a esta dicotomia imaginária” (Vaugham, 2004: 202-3) Curtin (1989) defende que “o clima, a paisagem inóspita, a flora e a fauna e os povos desconhecidos foram factores relevantes na formação de uma «imagem» de África, que viria a influenciar as atitudes para com o continente” (apud Havik, 2011: 381). A percepção ainda vigente no princípio do século XX, era a de África Ocidental como “túmulo do homem branco”. Qualquer real dominação territorial estava limitada por esta percepção, em parte real, em parte imaginária (Good, 2007). A permanência dos europeus em territórios tropicais foi amplamente debatida, sobretudo entre francófonos e anglófilos, desde o século XIX, tendo ganho novo alento com as teorias microbianas que mudaram radicalmente o pensamento sobre as causas, difusão e tratamento de doenças endémicas, substituindo (embora não imediatamente) a teoria miasmática. Esta teoria, formulada por Thomas Sydenham e Giovanni Maria Lancisi, durante o século XVIII, explicava a origem das doenças pelos “miasmas”, ou seja, o conjunto de maus odores provenientes de matéria orgânica em putrefacção, solos e lençóis de água contaminados e águas estagnadas. Em consequência o enterro dos mortos, o aterro dos excrementos humanos e a recolha de lixo foram 11

soluções adoptadas decorrentes dessa teoria. Não se pensava que mosquitos, ratos e outros animais pudessem ser vectores de doença. A ventilação das casas com bons ares era também uma medida recomendada. Em África, os climatologistas e naturalistas recomendavam que os europeus evitassem locais pantanosos e de vegetação tropical muito densa. Também recomendavam que arejassem as suas casas. O resultado das descobertas, no final do século XIX, de que são os microorganismos os responsáveis pelas doenças, permite avançar-se para novas formas de os controlar, como os antibióticos e as vacinas, depois de compreendido o sistema de imunidade. No campo das epidemias tropicais, Carlos Finlay, em Cuba, e Ronald Ross, na Índia, descobriram (Ross em 1898 e Finlay um pouco antes) que o vector de contágio da malária não são os “maus ares”, que deram nome à doença (na sua versão francesa «mal aire»), no contexto da teoria miasmática, mas um mosquito infectado com o protozoário que produz a doença ao ser introduzido no sangue pela picada. A acção do quinino, isolado apenas em 1820 mas conhecido desde o século XVII, é explicada agora no âmbito da nova microbiologia e o seu uso, já frequente entre os militares deslocados em África, tende a ser generalizado, em primeiro lugar entre a população branca. Embora a partir do final dos anos 40, no caso português, se defenda essa generalização (Picoto, 1953), ela nunca será completamente consumada e as prioridades não são profundamente alteradas, apesar do avanço do movimento higienista. Para o explicar intervém factores de diversa ordem: custo da inoculação profiláctica do quinino; dificuldade de aceitação por parte da população negra, dimensão territorial e a própria organização social e urbanística segregacionista (Picoto, 1953; Curtin, 1989). O movimento higienista será um “braço armado” do Estado numa política disciplinar no campo da saúde, autorizando-o a penetrar zonas da vida antes consideradas privadas. A sua implementação em África gerará contudo, um maior segregacionismo que o já existente sob a teoria miasmática (Havik, 2011). De facto, vários autores defendem que a coincidência entra as descobertas bacteriológicas e a corrida a África após a conferência de Berlim de 1884-85, moldou a política colonial moderna. A Diamang é um dos exemplos dessa experiência. O aparecimento da medicina tropical como nova disciplina, no final do século XIX, decorrente das concepções epidemiológicas da microbiologia, abriu uma nova esperança quanto à possibilidade de controlar as epidemias em África, e relançou a aliança entre medicina e poder. A bio-medicina transformou-se numa espécie de braço armado do império (Vaughan, 2004; Arnold, 1988). Havik sublinha: 12

“A ideia de que a medicina se podia tornar uma ferramenta fundamental para o império manifestou-se na sua nova vertente tropical que nas mãos das autoridades coloniais se transformou em «biopoder». Este serviu não só os desígnios de combater ou erradicar vectores e as doenças causadas por estes, mas também de exercer um controlo sobre populações e a sua mobilidade” (Havik, 2011: 377) Porque aumentou o segregacionismo com a microbiologia? De facto, sob os auspícios da teoria miasmática anterior, a ênfase do combate às epidemias centrava-se na natureza e no ambiente. Algumas das estratégias passavam por desflorestação, evitar zonas pantanosas, cuidar da limpeza das ruas ou evitar permanecer em África em certas alturas do ano. O que importava era evitar contacto com os “miasmas”, não com outras pessoas. Com a teoria microbiana e o resultante movimento higienista, a ênfase torna-se social e cultural, uma vez que, para muitas doenças, o contágio é feito entre pessoas através dos micróbios que transportam, agora compreendidos como causadores das doenças. Apesar de se perceber que algumas das principais doenças endémicas africanas não resultavam do contacto entre pessoas mas dos mosquitos, isso não evitou essa associação. Por outro lado, alguns autores, nomeadamente Ross, avançam com a teoria da “reserva nativa”, que identificava as crianças indígenas até aos cinco anos como uma das principais fontes de infecção (Echenberg, 2002). Assim, uma das principais consequências da aplicação das teses higienistas em África resultará num incremento do segregacionismo racial e da presença do Estado na vida. Vários autores sublinharam que a aplicação prática dos conhecimentos da “revolução bacteriológica” em África, não foi linear e esteve repleta de preconceitos que visavam a estigmatizarão de certos estratos da população (Marks e Andersson, 1988; Packard, 1989; Ngalamulume, 2004). As medidas sanitárias foram de vária ordem, embora a sua eficácia tenha estado sempre limitada à falta de recursos materiais e humanos. Tanto nos impérios francês e inglês, como no português. O controlo dos vectores da malária e febre amarela, por exemplo, passou por medidas de drenagem de pântanos (que já se fazia parcialmente) e administração de larvicídas em larga escala (nomeadamente querosene), medida esta que colocava vários problemas ambientais para além do dispêndio económico e não foi continuada. Outras medidas visavam o controlo social através da profilaxia e de medidas de higiene: o uso de mosquiteiros e a vacinação obrigatória de todos os nativos e europeus. Além disso, a “revolução bacteriológica” deu aos governos coloniais plenos poderes no que toca ao planeamento urbanístico sanitário. Um dos modelos foi o usado no Senegal, seguido parcialmente por ingleses e portugueses. O surto de peste bubónica no Senegal em 1914, levou à destruição pelo fogo de casas indígenas, à deslocação compulsiva de populações negras para zonas periféricas e à criação de cordões 13

sanitários. Criaram-se cidades para brancos, expulsando a população negra e controlaram-se os movimentos dos africanos negros no país. Este modelo foi seguido com adaptações por vários impérios. Os cordões sanitários eram considerados essenciais para a protecção dos europeus em África. No caso da Diamang, manifesto nestes relatórios, os projectos urbanísticos seguiram esse modelo separatista, em todos os aspectos urbanísticos, sociais e culturais. Toda a zona mineira foi desflorestada, rios desviados e os vectores de doença minimizados. As campanhas sanitárias foram impostas aos trabalhadores e, posteriormente, como referimos, extendidas à população negra. Gilberto Freyre, na sua visita à Diamang, em 1951, à procura das marcas da “portugalidade”, escreve: “Noto que no Dundo, há relutância em me mostrarem as casas de habitação reservadas aos trabalhadores indígenas. Em me informarem sobre o seu sistema de alimentação: até que ponto o desta redução como que jesuítica difere daquele a que se acham habituados os indígenas nas suas aldeias africanas (...).Vejo apenas por fora as casas de habitação reservadas aos indígenas: casas cobertas por umas como folhas de zinco que devem torná-las infernais, nos dias mais quentes. (...)No Dundo, o problema da habitação para o trabalhador indígena não é problema ecológica e economicamente resolvido; nem sequer é considerado a sério. Em compensação – e por um como paradoxo – o indígena doente é aqui objecto de uma assistência exemplar: talvez egoísmo do branco a resguardar-se das doenças dos pretos. Visitando o Hospital, na companhia do chefe de Serviços de Saúde, Dr. Picoto, sinto-me orgulhoso do trabalho organizado e mantido aqui por técnicos portugueses. (...)Vejo além do hospital e dos serviços de radiologia, as maternidades. As maternidades para indígenas. As maternidades para europeus. Visito oficinas claras e arejadas”.

A Companhia administrava de forma férrea e autoritária todos os aspectos da saúde do trabalhador negro, isto é, da sua vida. As inspecções e o controlo médicos eram constantes, uma vez por mês. No relatório de 53, são descritos os procedimentos, quando da admissão de um novo trabalhador negro (sem menção para o que acontece no caso de um branco). O futuro empregado negro é submetido a um exame completo (“Nas inspecções são procurados defeitos de conformação do esqueleto, hérnias, varizes, gonorreia, doença do sono, parasitismo intestinal, etc, etc. (...) Desde o começo de 1952 que estamos classificando o sangue, com vista a ser fácil encontrar dadores convenientes” (Picoto, 1953: 2685); O novo candidato permanece, obrigatoriamente 21 dias na cidade principal do Dundo, “para se adaptar ao trabalho”, após os quais é novamente pesado e medido e sujeito a testes de robustez física. Estes testes eram usados para seleccionar os indivíduos aptos para o trabalho e excluir os considerados inaptos. Se fosse admitido, era deslocado para uma das minas onde era submetido a “intensa fiscalização exercida pelos médicos nas minas”, os quais, por vezes, dados os problemas de subnutrição, administravam 14

“rações suplementares aos que enfraquecem” (idem). “O trabalhador é periodicamente pesado no próprio local de trabalho, acompanhando-se assim, a curva de peso, elemento importante na apreciação da forma física do indivíduo (...) No intuito de uniformizar o critério da classificação, reduzindo ao mínimo o factor pessoal, adoptaram-se normas gerais” (ilidem: 2686). Portanto, um pensamento de gestão racional e racial dos corpos em plena acção. Os relatórios prestam menos atenção aos trabalhadores brancos e às suas inspecções, que ocorreriam provavelmente com menor grau de exigência e controlo. A preocupação económica não é escondida: “Todos os cuidados, toda a acção se dirige no sentido de manter em boa forma a capacidade física do serviçal”, revela José Picoto (1953: 2686). O poder da empresa no controlo da vida individual e social é descrito por Gilberto Freyre, nos seguintes termos: “Levam-nos às máquinas separadoras. Às trituradoras. (…) Os detectives devem estar aqui em toda a parte. A Central de Escolha é lugar com alguma coisa de novelesco. (…) Porque as máquinas (…) não cumprem sózinhas a sua delicada missão, têm que ser auxiliadas por homens não só brancos como pretos. (...) São estes pretos conservados na Central de Escolha como se fossem prisioneiros. Adolescentes, moços, solteiros, vivem meses sem lhes ser permitido sair da Central: um que saísse poderia ser portador de uma fortuna inteira em diamantes engolidos ou escondidos nas partes mais secretas do corpo. Vivem uma vida de seminaristas (…) o seu viço de adolescentes tende a transbordar em afectos homossexuais.(…) Homossexualismo platónico – o outro seria impossível sob a vigilância em que vivem. (...) São bem alimentados, bem cuidados, bem alojados (…) O sacrifício que se exige deles é o da segregação (…) . Segregação, castidade, renúncia à mulher. Nunca sabem quando saem, que é para não se prepararem para a saída engolindo algum diamante. (…) Termino a minha visita às instalações da Companhia de diamantes (…) tendo sob os olhos milhões de cruzeiros sob a forma de diamantes espalhados sobre uma mesa de veludo negro.”

A preocupação religiosa com o dever de cuidar do “espírito” do indígena, deu lugar, no século XX, a uma preocupação maior com a manutenção da saúde produtiva dos seus corpos, embora inscrevendo-se no mesmo discurso da necessidade de “civilizar” o indígena: lembremo-nos que, durante o Estado Novo, só adquiriam a nacionalidade portuguesa, os “assimilados”, aqueles negros que adoptassem hábitos europeus. Este carácter “incivilizado” das populações africanas era objecto de comentário nos relatórios médicos, dada a dificuldade de impôr a medicina europeia, sobretudo nas aldeias. “Agir em área de cerca de 35.000 km quadrados, de teor populacional baixo, de aglomerados indígenas bastante dispersos e de gente ainda presa a muitas crenças, superstições e hábitos de incivilizados, obrigava a traçar normas suaves e cautelosas. Seria indispensável proceder a infiltrações astuciosas, chegar ao ponto de criar entre os indígenas a necessidade dos nossos 15

serviços. Uma boa actuação médico-sanitária em meio como o nosso tem forçosamente de usar de condescendência e, com lentidão, adaptar o indígena aos usos e costumes duma prática médica bem díspar da sua” (Picoto, 1953: 2693). Neste aspecto, as fotografias que documentavam as acções médicas nos relatórios dos Serviços de Saúde que examinamos, nomeadamente as ambulâncias médicas que andavam pelo território, eram usadas para mostrar e enaltecer este tipo de “infiltração”e os bons resultados conseguidos, segundo a lógica colonial. As fotografias têm um efeito probatório de grande impacto e validação da presença portuguesa que, desde 1961 está ameaçada pela guerra nesta colónia. Nas acções sanitárias incluíam-se as fotografias das festas e celebrações com os doentes, que são assim consideradas parte integrante daquelas acções. Estas celebrações não eram iniciativa dos internados, mas faziam parte de uma acção sanitária do próprio Hospital e da sua organização geral da vida. Este aspecto é significativo por quanto mostra a intenção de assimilar os negros à cultura europeia, imposta como norma. As fotografias têm este papel de impor uma normatividade que adquire a força da evidência documental do fotográfico, (con)vertendo a realidade à superfície de uma imagem. As fotografias tornam-se elas próprias meios de aculturação dos negros. Estas imagens das festas hospitalares cumprem ainda o papel ideológico de mostrar a boa convivência entre negros e brancos, surgindo estes últimos como cuidadores carinhosos e atentos. Os negros, mesmo os adultos, são sempre infantilizados e isso nota-se nestas fotografias pela posição sempre serviçal em que são mostrados e pela sua hesitação evidente. Arrumados a um canto, amontoados em redor de uma mesa, jovens adultos vão comendo de forma alegre e resignada (Figura 2). Estas imagens visam demonstrar a felicidade dos internados e destacam a acção de enfermeiras, esposas e filhas dos directores, em aparições públicas e beneméritas nestas ocasiões. Facto que evidencia a estrita partilha dos papéis sociais por género e classe social, na época (Pimentel, 2007). Imagens idealizadas de uma felicidade espartilhada.

As fotografias das visitas: a Àfrica idílica das elites brancas A afirmação de um certo estilo de vida, de uma resoluta superioridade feliz, impregna as fotografias que documentam as visitas oficiais aos Serviços de Saúde, por parte de autoridades representadas como amigáveis e familiares. Autoridades próximas das Direcções dos Serviços de Saúde da Diamang - a elite colonial. No exemplo do relatório de 1967, mistura-se o lado oficial da visita ao lado mundano, com as legendas a sublinharem o agrado dos visitantes: “O Delegado de Saúde de Saurimo e sua Exma. Esposa muito apreciaram a Casa de Repouso do Cossa, onde 16

almoçaram, sempre acompanhados pelo Administrador do Concelho do Chitato”; ou, ainda, “No ambiente tranquilo do pátio do Hospital do Dundo, o Prof. Cruz Ferreira trocou impressões com alguns componentes dos Serviços de Saúde” - “componentes” estes sempre brancos. Nestas fotografias sobre as visitas, os funcionários negros - principais protagonistas das fotografias sobre as diversas actividades sanitárias - desaparecem. Os lugares do poder circunscrevem-se, como no enquadramento, aos europeus ou africanos brancos. Existem alguns retratos colectivos, mas a maioria das imagens acompanha as diversas visitas em estilo “reportagem”. Os enquadramentos são próximos dos visitantes e seus anfitriões, captando a sua interacção no espaço, predominando as escalas de semi-conjunto e o que se convencionou chamar nos estudos fílmicos “planos americanos”. Mais do que simplesmente documentar, estas fotografias mostram sequências de “cenas” destas interacções, narrativizam as visitas e constroem uma percepção eufórica dessas visitas que se extende, por metonímia, a toda a actividade da Diamang. Os Serviços de Saúde da empresa dispensam grande atenção à documentação fotográfica. Há uma preocupação constante em fotografar todas as acções médicas e seus modus operandi, com grande envolvimento de recursos humanos e materiais. Os dirigentes destes serviços revelam estar bem cientes do papel testemunhal e ideológico da fotografia. O controlo dos pontos de vista apenas se detecta se interrogarmos a realidade histórica e social desta empresa, e se notarmos as ausências: desde logo do próprio contexto africano, que surge reduzido a patine. Esta política do ponto de vista resulta do fenómeno de “censurância” mais do que do de censura (Bragança de Miranda, 1985), já que parece revelar um olhar condicente com a interpretação do fotógrafo ou fotógrafos, crente(s) nesta visão feliz de uma África tropical europeizada. Seja como for, o contrário não estaria na “ordem discursiva” da instituição nem do regime colonial e seria, de qualquer modo, proibido. As fotografias produzidas pelos Serviços de Saúde são parte da estratégia de ocupação territorial e económica através da medicina. São um meio tido como indispensável para criar adesão ao projecto colonial português, na metrópole como no estrangeiro. De facto, a exposição pública das acções dos serviços de saúde desta empresa tinha um motivo propangadístico, em particular desde que a Organização Internacional do Trabalho passou a inspeccionar a actividade sanitária nas colónias portuguesas (desde os anos 50). Em 1962 a Diamang é apresentada pelo governo como exemplo do trabalho “civilizador” realizado em todas as colónias. Segundo Jorge Varandas “o objectivo desta manobra do governo português seria expor a situação vivenciada neste canto longínquo da colónia como sinédoque para a totalidade dos territórios coloniais, isto para consubstanciar as representações de um projecto colonial cuidador das suas populações 17

autóctones. Subjacente a este processo de negociação estavam concepções de uma colonização portuguesa com modus operandi próprio e redes ímpares no terreno” (Varandas, 2011: 339). Redes estas, assentes no argumento da presença histórica de Portugal naquele território. Todos os relatórios e fotografias se inserem neste contexto e são instâncias de consubstanciação desta narrativa. Contudo, a intensa actividade fotográfica revela-nos um alcance maior dado à fotografia no contexto da Medicina Tropical que ultrapassa a actividade propagandística. A produção fotográfica em contexto desconhecido da maioria dos médicos ocidentais penetra a própria racionalidade médica. Existe um interesse médico suscitado por estas imagens que produzem conhecimento: elas revelam modos de proceder e contextos médicos estranhos, exercidos sobre populações com modos de vida incompreendidos. Estas imagens traduzem os preconceitos culturais dos seus praticantes e confirmam o grande uso da fotografia como instância de controlo da ansiedade dos “fotógrafos” em virtude do contacto com o desconhecido. Sontag dizia-o a propósito do turismo (Sontag, 1986). A fotografia parece funcionar, neste contexto colonial, de dois modos complementares: as fotografias dedicadas às doenças objectivam e radicalizam a diferença percepcionada pelos médicos face aos corpos negros; as fotografias sobre a organização social da medicina participam da produção imaginária de uma África ideal, levada a cabo pelos colonos, que encaram a sua presença como um direito escudado num dever providencial. A organização médica é um dos principais argumentos. Na medicina tropical, fotografar integrou o sistema médico. Tirar uma fotografia tornou-se um acto de biopoder e parte integrante dos actos médicos sobre “o outro”, nas suas múltiplas componentes: conhecimento e controlo dos corpos negros; afirmação da acção protectora e benemérita dos corpos brancos, que os “indígenas” deviam agradecer; domínio total do território devido ao perigo das epidemias e protecção médica da força de trabalho.

As fotografias clínicas como operações de exclusão: o corpo negro como “Outro” O quarto tipo de fotografias incide sobre os casos clínicos do ano a que respeita cada relatório. Apenas elas correspondem à definição estrita de “imagens médicas”, se remontarmos à sua origem renascentista que as define como imagens dos corpos - saudáveis ou doentes (o que também tem a sua história)- , destinadas à produção e divulgação do saber médico (Rifkin, Ackerman e Falkenberg, 2006; Kemp, 2006 ). Os atlas médicos elegiam o corpo como seu referente único. Por conseguinte, não se dedicavam àquilo que Foucault designa por “espacialização terciária” (ver nota 11). Contudo, a dimensão social da medicina tornou-se reconhecida na modernidade, parte da sua própria 18

autoconsciência e um instrumento indispensável ao colonialismo, justificando, a nosso ver, o seu tratamento no âmbito da racionalidade médica como outro dos tipos de “imagens médicas”. Estas fotografias sem corpos medicalizados parecem-nos, ainda assim, componentes importantes da cultura visual da medicina moderna e, por conseguinte, do seu estudo. São fotografias que indiciam uma outra medicalização: a do corpo social. A medicina moderna veio encontrar na tecnologia fotográfica, inventada na mesma época, um instrumento para se consubstanciar e expandir num momento em que a anatomia patológica se afirmava cada vez mais em torno do caso individual, tornado exemplar, e começa a abandonar os desenhos de corpos idealizados. Trata-se da transicção de um paradigma epistemológico ligado ao modelo de verdade que Daston e Galison (2010) designam por “fiel à natureza” (“True-to-Nature”), segundo os princípios da ciência clássica taxonómica, para o modelo epistemológico da “Objectividade Mecânica”, que introduz a ideia da separação entre verdade e subjectividade inexistente na ciência clássica. As máquina ópticas, como a fotografia, acabaram por desempenhar um importante papel na medida em que se acreditava que o seu automatismo anulava a subjectividade. Por outro lado, ao invés do uso de imagens idealizadas que mostravam os tipos em todas as suas fases de desenvolvimento num só desenho, propõe-se, agora, o encontro dos tipos a partir da diversidade da natureza, dando mais valor ao papel do índice na formulação das inferências lógicas do conhecimento científico (Cf. Daston e Galison, 2010). Na medicina segue-se um caminho idêntico (Foucault, 1977). A aplicação da fotografia facilitou a introdução de novas temáticas para além do corpo, como as fotografias relativas à prática clínica e cirúrgica e às condições do seu exercício. Estas fotografias aparentemente “não médicas” (como as imagens das instalações sanitárias ou das campanhas de vacinação “no terreno”) constituem, na nossa opinião, parte integrante da cultura visual da medicina moderna e uma sua marca peculiar. Seja como for, a sequência final da documentação fotográfica destes relatórios ocupa-se sempre dos “casos clínicos”, com a mesma forma anterior: páginas de fotografias intercaladas com páginas de texto, sem qualquer relação imediata entre o texto do relatório e a página das fotografias. Contudo, neste caso particular, assiste-lhes uma característica peculiar e muito significativa da racionalidade médica colonial: os casos clínicos apresentados não só não ilustram os dados clínicos analisados no relatório sobre a forma de gráficos e tabelas, como ignoram os dados relativos ao pessoal branco que foi às consultas e que surge no texto escrito e nos gráficos. Assim, em contraste com o conteúdo do relatório escrito, estas fotografias são sempre sobre casos clínicos da população negra. Em todos os relatórios consultados, há apenas um caso de um 19

rapaz branco fotografado. Na legenda escreve-se: “Anomalia congénita do pavilhão auricular direito no filho dum empregado leucodérmico: desenrolamento do hélix” . Uma segunda fotografia mostra o resultado da cirúrgia de reconstituição (Relatório de 1967, fotos 89 e 90). Estas fotografias, único caso clínico de um rapaz branco, são também as únicas onde o rosto do rapaz não é revelado e a sua identidade é protegida. Ambas as imagens são grandes planos, deixando ver apenas o órgão intervencionado. A política do “ponto de vista” é conduzida por essa partilha entre o familiar e o estranho, entre uns que são “sujeito”, detentores de individualidade, e aqueles e aquelas que são “objecto”, desprovidos de individualidade. A fotografia objectiva - torna objecto - e, neste processo coloca o doente “nas mãos” do médico, sob o seu olhar examinante. Só o médico parece ter direito sobre as imagens dos pacientes. Mas, no caso dos pacientes brancos é-lhes reconhecida a individualidade e um certo direito ao sigilo e à reserva da vida privada que não é conferido ao negro. Se compararmos este caso de anomalia congénita com um outro, mais grave mas similar, presente neste mesmo relatório, constatamos que, num conjunto de seis imagens de um rapaz negro, apenas existe uma fotografia em grande plano. Todas as outras mostram o seu rosto. Esta retórica é bastante frequente: o “close up” é necessário para tornar mais visível a doença destacada, mas numa grande maioria de casos é sempre conjugado com uma ou mais fotografias em escalas mais alargadas, mostrando o rosto e o aspecto geral do paciente negro. Em todo o caso, estas fotografias são guiadas pela atenção à patologia particular e à sua localização no corpo. As suas escalas são mais aproximadas do que as usadas nas fotografias sobre as temáticas sanitárias ou sociais e, frequentemente, são comparadas as fotografias anteriores e posteriores à intervenção médica, numa narrativa de “antes e depois”, que orienta a exposição fotográfica dos casos clínicos nestes relatórios. A terminologia usada para dar conta dos dados clínicos e dos dados relativos aos funcionários dos serviços tem inscrita uma diferenciação por raças que atravessa a ciência médica desde o século XIX. No relatório de 1967, que temos usado como exemplo privilegiado, o médico J.H. Santos David, Director e redactor do relatório, introduz uma mudança de terminologia que para ele se coaduna melhor com a realidade vivida e não usa como critério a raça mas o estado civilizacional. Escreve ele:

“As três categorias do pessoal (evoluído, intermédio e subevoluído) serão examinadas em separado. Note-se a alteração das designações, uniforme em todo este relatório a partir deste ano, e as suas equivalências e justificações: evoluídos, substitui a antiga categoria de leucodermos e está de acordo com a actual situação, em que muitos evoluídos, pertencentes e 20

já registados para os efeitos sanitários na secção, não são justamente leucodérmicos; intermédios, corresponde à primitiva categoria de evoluídos e significa aqueles indivíduos cuja situação socio-económica, os âmbitos e o modo de vida estão em transição da situação de subevoluídos para a de evoluídos; e subevoluídos, equivale a nativos, primitiva infeliz designação, porquanto muitos dos que se orgulham de ser nativos do concelho do Chitato não são subevoluídos, mas evoluídos” (Relatório do ano 1967:15). Esta actualização terminológica visando substituir a divisão entre “leucodérmicos” (brancos) e “melanodérmicos” (negros) não é, apesar do que escreve Santos David, substancialmente diferente daquela que José Picoto usa no seu relatório de 1953 para dar conta do registo de consultas: indígenas ou nativos; europeus; assimilados. Sendo que os assimilados e os indígenas eram melanodérmicos e os europeus leucodérmicos. A categoria de “assimilados” impunha já, na própria prática médica, um critério civilizacional que desde 1967 se pretendeu generalizar. Porém, a terminologia estritamente evolucionista acaba por acentuar mais ainda a mesma lógica discriminatória que parece pretender erradicar uma vez que coloca, explicitamente, a cultura europeia - e a pele branca - como modelo a seguir e norma. Todas as estatísticas referentes tanto ao pessoal dos serviços quanto às consultas e doenças observadas obedecem a estas categorias sem que, para isso, exista um real critério médico. Se compararmos a tabela que regista as doenças diagnosticadas nas consultas externas para “evoluídos”, “intermédios” e “subevoluídos” verificamos que o paludismo (ou malária), as doenças respiratórias e as doenças intestinais encabeçam a lista em qualquer dos tipos de indivíduos (Relatório de 1967). Se as doenças registadas não são específicas nem particulares de “tipos de indivíduos”, o que justifica o seu tratamento separado nas estatísticas? A medicina interiorizou a divisão racial como critério médico e as fotografias dão corpo a esta percepção, reproduzindo a segregação que tem a sua origem na antropologia física que primeira produziu uma classificação tipológica dos habitantes - “tipos” - africanos. Essa tradição tipológica está presente nas imagens através do uso do sistema de representação visual desenvolvido por Alphonse Bertillon em 1870. Trata-se do primeiro sistema antropométrico da polícia científica com o objectivo de produzir um arquivo criminal que facilitasse o reconhecimento dos indivíduos reincidentes. O seu sistema, para além de uma série de medidas do corpo, prevê duas imagens, uma de frente para descrever o aspecto facial, e outra de perfil que permite a mensuração do crânio e a identificação da sua forma. A antropologia e a medicina tropical adoptam este sistema antropométrico e fotográfico com o mesmo propósito descritivo e tipológico. A fotografia e o uso do desenho esquemático facilitam a construção e classificação dos tipos. Este sistema é ainda reconhecível nas imagens destes relatórios (Figura 3). 21

A este sistema de representação associa-se o imaginário teratológico que, embora importante desde a Idade Média, entrou na medicina durante o Renascimento, na forma de desenhos e relatos de malformações incríveis e inexplicáveis, tantas vezes associadas ao trabalho do diabólico ou à expiação de culpas, numa mistura entre causas naturais, sobrenaturais e morais (Fontes da Costa, 2010). Como realçam Ferreira e Hamlin (2010), o mundo moderno veio exigir a circulação dos corpos e destruir a organização feudal que pressupunha a existência de um lugar próprio para tudo, incluindo para os monstros. A ciência clássica veio garanti-lo através da taxinomia e da construção de tipologias. Aí, as mulheres, os negros e os monstros são catalogados como o Outro do civilizado, estruturando-se este discurso em torno da oposição fundamental entre natureza e cultura. Ao homem branco é garantida a sua identidade civilizada, enquanto que mulheres, negros (também homens e mulheres) e monstros são considerados evidências de uma natureza tanto pródiga quanto castigadora. As tipologias científicas procuram, assim, resolver a ansiedade que estes seres considerados híbridos

e fronteiriços produzem e o imaginário científico reforça esta visão

precisamente pela sua legitimidade de discurso verdadeiro:

“Com o negro ocorre algo semelhante (ao que ocorre com a mulher). Se é comum encontrarmos discursos nos quais ele é apresentado como bom selvagem, força da natureza, alma dócil, pacífica, objecto de desejo, ele é, ao mesmo tempo, desregrado, macaco, lugar de vício, luxúria , repulsa” (Ferreira e Hamlin, 2010: 814) Algo deste imaginário está ainda bem presente nestes relatórios. Todos eles consistem numa sucessão de fotografias sobre casos de malformações congénitas (lábio leporino é o caso mais frequente; há ainda vários casos de micro e macrocefalias e outros distúrbios anatómicos). Algumas destas malformações surgem como inversões, do género “homem com uma mama” ou o caso da mulher que deu à luz dois gémeos, um preto e outro branco; as malformações por doença, como o bócio ou as hérnias gigantes e as malformações por acidentes, como os queimados, são também frequentes. Curiosa é também a presença de várias fotografias de homens com elefantíase do pénis, exibindo pénis gigantes e que facilitam a sua compreensão num sentido “selvagem” e “animalesco”, associado à representação da sexualidade desregulada dos indígenas. A este propósito Ferreira e Hamlin lembram a obra A Mind of its Own. A Cultural History of the Penis, de David Friedman. O autor “nos conta da reação dos primeiros aventureiros ingleses ao pisar solo africano diante de uma natureza exuberante, dificilmente comparável aos padrões estéticos europeus. Mas foi a exibição de uma parte da vida selvagem local que chamou especialmente a atenção dos europeus: um certo Dr. Jacobus Surtor teve a oportunidade de encontrar nos sudaneses exemplos de uma máquina 22

“aterrorizante”, mais próxima do pênis de um “jumento” que de um “ser humano”. O pênis do africano foi objeto de curiosidade não apenas de exploradores, mas da investigação “de cada uma das escolas de anatomia de Londres. O negro circula pela Europa como escravo, como mercadoria, e como possuidor de perigosas máquinas de reprodução. E essa circulação significa, por vezes, literalmente castração, ou seja, a circulação de membros amputados como curiosidade científica. A ciência emergente constrói canais através dos quais esses objetos de medo e admiração, de horror e de fascinação, circulariam de modo seguro: em jarras próprias à observação” (Ferreira e Hamlin, 2010: 821). Há ainda os casos referidos na legenda como “Monstruosidades” e que apresentam os nados-mortos com malformações congénitas terríveis, nascidos nos hospitais da companhia. Esta sucessão de fotografias repulsivas confirmam a diabolização do negro, mesmo que a sua prevalência seja inconsciente aos médicos que as reunem. É certo que os casos apresentados são os mais fotografáveis: são doenças que se oferecem à visualidade do aparelho fotográfico. A uma visualidade excessiva. São, sem dúvida, marcas físicas exteriores que permitem a sua assinalação clara na imagem do corpo e a identificação dos corpos negros com a malformação e a monstruosidade, perpetuando um conjunto de estereótipos coloniais, já longínquos. Admitimos que um doente de paludismo, a doença mais preponderante, não apresente estas características de visibilidade. O mesmo se passa quanto às manifestações visuais de doenças respiratórias ou do foro intestinal, cujos sintomas não se prestam à clara representação fotográfica. Porém, se as características do medium ajudam a explicar as escolhas dos casos clínicos, não o explicam completamente. Se é certo que algumas doenças se prestam menos a ser fotografadas por não exibirem manifestações exteriores claras e distintas ou estas serem diminutas, reduzindo o seu interesse médico, por outro lado, não deixa de surpreender a ausência de fotografias daquelas doenças mais endémicas que constam dos gráficos dos relatórios escritos. A questão que interessa colocar é precisamente a da ausência fotográfica dessas doenças endémicas. A expectativa seria a de que a representação visual facilitasse o seu reconhecimento por parte de médicos europeus que nunca se depararam com os seus sintomas. No entanto, a espectacularidade parece ser o critério prevalecente nas imagens clínicas destes relatórios. Espectacularidade no duplo sentido do que mais facilmente se dá à visão e do que mais efeitos de surpresa, choque e espanto produz no espectador. Sem dúvida, construindo um imaginário que benefícia a acção médica da empresa no território ao revelar a estranheza dos casos, a sua dificuldade extrema e ao tornar mais evidentes também os resultados das intervenções cirúrgicas. Além disso, perpetua um imaginário que justifica a dominação colonial. 23

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