A fragilidade e a virilidade do homem de bem

June 12, 2017 | Autor: Rafael Mantovani | Categoria: Vegetarianism, Meat and meat consumption, Slaughtering
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A fragilidade e a virilidade ossa sociedade ocidental preza a beleza. Todos nós prezamos a beleza, a queremos, a desejamos. Nossa sociedade ocidental, em contrapartida, não aceita o horror. Contra ele, é importante que saibamos como desviar o olhar, esquivar-nos da sua funesta existência. Em nome do amor à beleza e do horror ao horror, muitos procedimentos precisam ser obscurecidos. A importância de esconder o processo de produção, em si só, já se torna importante pela desterritorialização da sua confecção, o que facilita o chamado fetichismo da mercadoria, que é a possibilidade de cobrar mais do que o bem vale, uma vez que o valor a ele agregado (o trabalho contido) fica ofuscado. O ofuscamento do trabalho se torna ainda mais importante em alguns tipos de produção, todos eles notórios, mas que convém tirá-los da vista da nossa burguesia que preza, assim como o amor à beleza e o horror ao horror, a sua condição de civilizada. Ser considerado incivilizado é um insulto para nós. Contudo, vejamos sob o seguinte foco: não-civilizado seria aquele que não tira usufruto das benesses da civilização, entre elas, não precisar observar um processo de produção do seu início ao seu fim. Indígenas, por serem incivilizados – não estarem mediados pelos meios modernos de produção –, estão na relação direta da produção do que quer que necessitem: sejam remédios, roupas, comida. No caso da comida é simples: é preciso ir até a mata, encontrar um animal, matá-lo e trazê-lo para o preparo. Suponhamos um boi: é necessário que você encontre um e, em seguida, espatife a sua cabeça com um martelo. Depois, o corpo é aberto, as entranhas são tiradas, o sangue do solo é lavado, a carne é cozida, comida e, aqueles que tenham dotes culinários elevados, fazem brincadeiras gastronômicas com seus órgãos internos. Imaginemos um tupi-guarani que, por acaso, chega a um churrasco do mundo civilizado. Ele perguntaria: Ere-îuká-pe so'o-etá oîeí, cari îu? Ninguém entenderia a pergunta, afinal, quase ninguém fala tupi. Vamos supor que alguém, no meio da festa, saiba falar e traduza a frase: “Mataste muitos animais hoje, ó homem branco?” Aí se compreenderia que o desentendimento, mais do que linguístico, é cultural: seria muito provável que uma risada generalizada se seguisse, que todos abençoassem os procedimentos modernos, o avanço tecnológico e seguissem com a sua festa, podendo chegar a

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do homem de bem sentir pena do pobre índio que a tantas privações é submetido, que por torturas precisa passar, que seu alimento precisa caçar e preparar do estado bruto até o ponto de ser ingerido. Os índios, para os churrasqueiros, são bárbaros que fazem os adolescentes passarem por rituais cruéis, guerreiam sem trégua, têm a necessidade de matar. A civilização impede tudo isso: a dor do ritual de passagem, o instinto guerreiro, a necessidade de matar. Fragilidade do olhar moderno Vista com franqueza, a civilização é o enfraquecimento do espírito humano. O sofrimento precisa ser imediatamente sancionado; a doença, a morte, o assassinato precisam ser amenizados. Sob a beleza, por exemplo, da cidade do Rio de Janeiro, por debaixo da terra, corre o esgoto, os excrementos; a coleta de lixo é realizada durante a noite, momento em que a burguesia não teria a surpresa desagradável de ter de enfrentá-la. Essas são algumas conclusões da reurbanização do centro carioca do início do século 20 feitas por Nicolau Sevcenko em A Revolta da Vacina, momento de vitória sobre os não-normatizados, aqueles que apresentariam um potencial subversivo e precisaram ser tirados da pitoresca beleza da cidade maravilhosa. Assim como as burguesias carioca, paulista, gaúcha, européia não admitem os fatores acima descritos, “ninguém mais suporta ver um boi sendo morto a marteladas, mas não dispensa um bom filé, aromático e fumegante: melhor então não ver o boi” é outra das conclusões de Sevcenko. O que fazer, então? Criar mecanismos para que a fragilidade do olhar moderno não seja afetada pela maneira como é produzido aquilo que é consumido. Que se mantenha o processo de encarceramento, de mutilações, de mudanças genéticas e, por fim, o sacrifício, longe da observação daqueles que querem um bife mal passado, mas que poderiam criticar o assassinato em massa com toda a força do seu intelecto. A embalagem com o desenho da galinha, da vaquinha, do peruzinho sorrindo (como se pedissem para ser comidos), as prateleiras organizadas por seções, numeradas, sequenciadas, são expressão do conforto trazida pelo processo de racionalização. Sim, racionalização do aspecto brutal da vida, a vontade de comer outra vida, mas que afasta a necessidade de

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sacrificar outro ser com as próprias mãos, pois já está tudo preparado para ser consumido: você não precisa ser valente o suficiente para espatifar uma cabeça, você só precisa ter algumas notas no bolso para comprar um pedaço do seu corpo como se compra um suco, uma maça, uma escova de dentes. Tudo se reduz a isso: a “bens de consumo”. Seja a coleta de maça, a confecção de um tapete, ou a sentença de prisão perpétua de animais. O encarceramento é uma invenção das mais importantes. Ele regula aquilo que a classe dominante determina como aceitável e, por outro lado, aquilo que deve ser excluído, extirpado, punido. Esta engenhosa invenção apresenta outras finalidades. Granjas são verdadeiros campos de concentração para animais. Sendo assim, granjeiros devem exercer a sua atividade longe do campo de visão. Métodos da obscuridade Christophe Dejours, em A Banalização da Injustiça Social, aponta alguns fatores que podem funcionar como maneira de ignorar aquilo que rodeia que, de fato, deve ser ignorado para uma pretensa tranquilidade: o primeiro deles é o que ele chama de “antolho voluntário”, ou seja, o não-querer-saber voluntário, por ter a consciência de que o conhecimento lhe trará incômodo. O segundo é o chamado “cinismo viril”, ou seja, a idéia de que é típico da masculinidade ser indiferente à dor e ao sofrimento. O terceiro atende pelo nome de “retraimento da consciência intersubjetiva”, a sensibilização pelo mundo mais próximo, enquanto aquilo que está distante não lhe desperta interesse. O antolho voluntário é bastante conhecido e o mais eficaz de todos os métodos. Não saber tem as suas vantagens. O mundo oferece recompensa àqueles que se submetem e obedecem, entretanto, a submissão e a obediência exigem comportamentos que muitas vezes seriam condenados pela mais leve consciência ética. Logo, o grande esforço de não-pensar torna-se uma grande demonstração de servilismo. O cinismo viril poderia ser o mais cômico, caso não fosse trágico. O tio bêbado do churrasco de domingo à tarde é o especialista neste caso. É o argumento que justifica que “preocupar-se com os animaizinhos não é másculo”. Como se isso fosse, de fato, uma preocupação da ordem da piedade com relação aos animais! Ora, não é o fato de ter dó desses animais que faz com que eu não os coma, trata-se simplesmente do fato de não ignorar a vida a que são submetidos para saciar a minha fome. O mesmo se aplica ao mais absurdo dos argumentos: “os pés de arroz também têm vida!” Claro... Como se arrancar os pés de arroz fosse minimamente comparável a manter um pato pendurado toda a sua vida ou se pudesse falar de “campo de concentração de cenouras”. O terceiro ponto, o excêntrico retraimento da consciência intersubjetiva é importante, especialmente por facilitar o antolho voluntário. Aquilo que está longe é mais difícil de pensar a respeito. Se a granja não está ao lado, o pacote com o corpo do peru está em cima da mesa (com o peru sorrindo, como se fosse uma honra para ele ser devorado). A capacidade de ver o corpo morto na mesa de jantar e ignorar que aquilo é o

cadáver de um animal que foi encarcerado, muitas vezes, durante todos os dias da sua vida, é um feito fenomenal da sociedade moderna que desterritorializa os meios de produção e consegue a façanha de impedir que aquele que visualiza o bem comprado à sua frente perceba o trabalho envolvido nisto: a produção em série da morte atende pelo nome de consumo. Durante a época da Alemanha nazista, Por Rafael Mantovani os campos de concentração foram uma ([email protected]) realidade bastante difícil aos alemães. Contudo, Daniel Jonah Goldhagen traz Rafael Mantovani é sociólogo e mestrando pela PUC-SP, assustadores conclusões sobre “os pesquisador na área de carrascos voluntários de Hitler” que, ao sociologia histórica comparada contrário do que se diz sobre a obrigação de servir ao führer, milhares de alemães tinham o anti-semitismo tão arraigado em sua consciência que não consideravam matar judeus um problema. Exagerada ou não, a conclusão de Goldhagen nos mostra que, se de um lado, o antolho voluntário foi um mecanismo importante para que o povo alemão não se levantasse contra o holocausto, o enraizamento de uma idéia pode não apenas fazer com que se a tolere como que se a aceite, nem que se trate de... extermínio. Estamos falando do holocausto, um dos maiores horrores que a história produziu. Se trocarmos os que compunham os campos de concentração, ou seja, de animais humanos por animais não-humanos, passamos dos campos de concentração nazistas para as granjas atuais. Uma das formas de ignorar que o almoço carnívoro é proveniente do holocausto animal é fruto de uma das quatro nada enobrecedoras razões acima mencionadas: o antolho voluntário, o cinismo viril, o retraimento da consciência intersubjetiva ou o voluntariado carrasco. Uma diferença importante é que alemães que se levantassem contra o holocausto poderiam perder a vida; já aquele que não colabora com as granjas teria que ser menos... preguiçoso. A morte faz parte da existência. A cadeia alimentar é uma realidade. O problema é o enfraquecimento de espírito gerado pela indústria desterritorializada: um sistema que esconde o encarceramento e a prisão perpétua para que o ato final do consumo da produção em série da morte possa ser amenizado e aceito por uma sociedade de gente de bem, muito bem. O consumo de seres vivos requer o sacrifício: se aqueles que querem consumir forem capazes de sacrificar, que comam; caso não sejam, são fracos e tutelados por homens que fazem da vida e da usurpação da liberdade uma forma de ganhar a vida. Por sinal, uma vida bastante mesquinha e ordinária. E os ordinários fazem pulular campos de concentração animal pelo fato de frágeis ocidentais não poderem ver a morte daquilo que vão ingerir. E ainda acreditam que podem ter piedade do índio. Ora!





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Tudo se reduz a bens de consumo. Seja a coleta de maça ou a sentença de prisão perpétua de animais

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