A função pedagógica da imagem em Gutierrez de los Rios e Filippe Nunes

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“O borboletear do método”

1ª Edição

ISBN: 978-85-62707-79-7

ANAIS DO CONGRESSO

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Belo Horizonte 12 a 15 de Abril de 2016

I Congresso do Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Imagem NINFA/UFMG O Borboletear do Método Belo Horizonte, 12 a 15 de Abril de 2016

A função pedagógica da imagem em Gutierrez de los Rios e Filippe Nunes Clara Habib de Salles Abreu Mestre Universidade do Estado do Rio de Janeiro [email protected] Julia Dias Möller Bacharel Universidade Federal de Juiz de Fora [email protected] Resumo: Com este trabalho nos propomos a entender como os tratadistas ibéricos Gutierrez de los Rios e Filippe Nunes se posicionaram diante das polêmicas geradas no âmbito da Reforma e Contrarreforma no que diz respeito à imagem. Como personagens católicos do pós Trento, nada mais típico do que a presença, em seus textos, de defesas da legitimidade da pintura sacra. Assim, ambos os tratadistas fazem uma adaptação de preceitos clássicos, revividos pelo humanismo, à realidade católica pós Concílio de Trento. Nesse contexto de apropriação notamos a importância, nesses escritos, do nobre objetivo da pintura em instruir, enfocando assim, no poder pedagógico da imagem cristã. Palavras-chave: Tratadística; Contrarreforma; Teoria da pintura; Função da pintura sacra.

No ano de 600, o então Papa Gregório Magno trocou uma série de epistolas com Serenus, o bispo iconoclasta de Marselha que mandara destruir todas as imagens de sua jurisdição. Gregório aconselhava uma espécie de via média na relação com as imagens, ele recusava as tendências iconódulas orientais e também o outro extremo, a iconoclastia. Em uma emblemática carta, o Papa Gregório defende a legitimidade da imagem para a Igreja Latina apontando, dentre outras, sua função didática entre os menos instruídos. Dizia Gregório Magno: Uma coisa, com efeito, é adorar uma pintura, e outra aprender por uma cena representada em pintura aquilo que se deve adorar. O que os escritos proporcionam a quem os lê, a pintura oferece aos analfabetos que a contemplam porque assim esses ignorantes vêem o que devem imitar; as pinturas são a leitura

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daqueles que não sabem ler, de modo que funcionam como um livro, sobretudo entre os pagãos.396

Gregório claramente enfatiza a função pedagógica da imagem, mas não a reduz a essa função, ele também aponta sua importância na rememoração das histórias sagradas que emocionam o fiel, a vida de Cristo e dos Santos. Gregório também aborda o poder da imagem de suscitar a compulsão no fiel, que assim se torna capaz de reconhecer, humildemente, sua posição de pecador e se arrepender. De acordo com Baschet “Instruir, rememorar, emocionar: tal é a tríade das justificações da imagem que os clérigos retomam ao longo da Idade Média”397. Essas funções, por sua vez, se relacionam profundamente com as funções da retórica antiga que tinha objetivos de deleitar, persuadir, emocionar, ensinar e rememorar. Assim, é impossível reduzir os argumentos de Gregório e os usos da imagem sacra medieval a uma mera pedagogia para os iletrados. Não vamos entrar no mérito dos usos e funções da imagem medieval aqui, porém, é válido apontar que frequentemente vemos essa solução simplista ser aplicada sem critério na análise das imagens medievais. Entretanto, por outro lado, também é impossível negar que a importância didática da imagem se tornou central nos debates acerca das funções da imagem sacra na cristandade ocidental e foi invocada pela Igreja Latina, como argumento de autoridade, sempre que foi necessária uma defesa da legitimidade da imagem não só durante a Idade Média, mas inclusive no contexto da Reforma e Contrarreforma. Se no Ocidente Medieval o debate teórico era restrito aos teólogos, a situação depois do Concílio de Trento se modifica. O argumento de Gregório vai ser revivido nas deliberações do Concílio e assimilado vividamente pelos teóricos da pintura como uma verdadeira legislação para as imagens. O debate sobre as imagens se restringiu à última sessão do Concílio de Trento, realizada entre os anos de 1562 e 1563. Os decretos do Concílio reafirmam a legitimidade das imagens sacras [...] devem-se ter e conservar, especialmente nos templos, imagens de Cristo, da Virgem mãe de Deus e dos outros santos e a elas se deve conferir a devida honra e veneração, não por se acreditar que haja nelas alguma divindade ou virtude em razão da qual deveriam ser cultuadas, ou para se obter algo delas, ou porque se deva depositar confiança nas imagens, como outrora ocorria com os gentios, que

GREGÓRIO MAGNO apud BESANÇON, Alain. A Imagem Proibida: uma história intelectual da iconoclastia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 243. 397 BASCHET, Jérome. A civilização feudal. São Paulo: Globo, 2006, p. 485. 396

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colocavam suas esperanças nos ídolos, mas porque a honra que é a elas dirigida volta-se para os modelos que representam [...].”398

Entretanto, ainda segundo os decretos, os abusos cometidos na realização das imagens deveriam ser extirpados, justamente para não confundir as pessoas simples que aprendiam por meio de tais imagens. “Se em tais observâncias santas e salutares insinuarem-se abusos, o Santo Sínodo deseja ardentemente aboli-los por completo, de tal forma que não se exiba nenhuma imagem de um dogma falso e que possa dar ensejo a um erro perigoso par os incultos.” 399 No que diz respeito ao uso das imagens, os decretos do Concílio de Trento são breves, porém seus argumentos se aprofundam e ganham destaque nos escritos de teólogos e teóricos da pintura como, por exemplo, no Discurso sobre as Imagens, tratado de 1582, escrito pelo Cardeal Gabriele Paleotti que havia participado ativamente das sessões do Concílio de Trento. Paleotti retoma a fórmula do Papa Gregório e enfatiza, principalmente, a função didática da pintura mostrando a sua importância como instrumento para ensinar aos menos instruídos os artigos da fé. Certamente, é por meio das pinturas que a santa Igreja, em toda a cristandade, normalmente manda ajuda aos necessitados, pois uma vez entendidos os artigos da fé, ainda que toscamente, eles podem em seguida, por meio das pinturas, assimilá-los com mais facilidade e retê-los na memória; do contrário, eles continuariam privados dos meios de gozar os santos sacramentos.400

Jan Meulen, chamado de Johannes Molanus, um erudito holandês que viveu na Itália, também ressalta o caráter didático da pintura sacra no seu tratado História das imagens e pinturas sagradas, de 1570. Também atualizando o argumento de Gregório, Molanus diz que “As pinturas são chamadas de livros dos leigos e iletrados; para os que não sabem ler, elas são o mesmo que os livros para os doutos”401. Os escritos de Molanus e Paleotti gozavam de autoridade e tiveram grande alcance entre os tratadistas da pintura pós-tridentinos, inclusive no Mundo Ibérico. Assim, esse contexto intelectual de debate sobre as funções da imagem sacra é absorvido por Gutierrez e Nunes nos tratados Notícia General (1600) e Arte da Pintura (1615).

DECRETO SOBRE A INVOCAÇÃO, A VENERAÇÃO E AS RELÍQUIAS DOS SANTOS In: LICHTENSTEIN, Jacqueline (org). A Pintura: Textos Essenciais vol. 2 A Teologia da Imagem e o Estatuto da Pintura. São Paulo: Ed. 34, 2004, p. 68. 399 DECRETO SOBRE A INVOCAÇÃO, A VENERAÇÃO E AS RELÍQUIAS DOS SANTOS, p. 68. 400 PALEOTTI, Gabriele. Discurso sobre as imagens. (1582). In: LICHTENSTEIN, Jacqueline (org). A Pintura: Textos Essenciais vol. 2 A Teologia da Imagem e o Estatuto da Pintura. São Paulo: Ed. 34, 2004, p.p 77-78. 401 JAN MEULEN. História das imagens e pinturas sagradas. (1570). In: LICHTENSTEIN, Jacqueline (org). A Pintura: Textos Essenciais vol. 2 A Teologia da Imagem e o Estatuto da Pintura. São Paulo: Ed. 34, 2004, p. 71 398

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Os tratados em questão foram escritos no período no qual Portugal estava sob domínio filipino. Filipe III (II de Portugal) havia assumido o trono de seu pai em 1598. De acordo com a pesquisadora Ana Paula Megiani402, a dinastia filipina foi responsável por proporcionar em Portugal, uma cultura impressa, movida principalmente pela ausência da figura do Rei, tanto quanto pelo desincentivo contra as publicações protestantes que chegavam de forma clandestina na península. A tipografia teve em Portugal um incremento a partir da União Ibérica, segundo dados quantitativos analisados por Macedo, atestando que Filipe II e, principalmente, Filipe III seriam os reis-mecenas da impressão, tanto em língua portuguesa como em castelhana, utilizando os impressos como mecanismo de exaltação da corte e da realeza.403

Devido às deliberações do Concílio de Trento e ao Tribunal da Inquisição, havia um rigoroso sistema de censura, os livreiros recebiam visitas dos inquisidores em busca de livros que eram proibidos. Como estratégia e incentivo à “ordem”, alguns livreiros começaram a receber o título de editor régio. antes de qualquer publicação havia um habilidoso exercício de censura, aplicado através de uma política de privilégios seletivos que envolvia a inspeção prévia do conteúdo dos manuscritos e a recompensa aos editores que, em troca da sua cooperação com a ordem estabelecida, desfrutavam as vantagens do monopólio.404

É nesse ambiente social e político, diretamente herdeiro das questões contrarreformistas, que Gutiérrez de los Rios e Filippe Nunes publicaram seus tratados sobre a arte da pintura. É necessário, também, entender o status do qual a pintura gozava na Península Ibérica durante o período em questão. Considerada como arte mecânica, estava subjugada aos regimentos de tais atividades, assim os pintores eram obrigados a pagar taxas e impostos para que fossem autorizados a exercer seu ofício. O desejo de se libertarem do pagamento de tais taxas e obterem certa autonomia foram algumas motivações da luta pela liberalidade da pintura nos territórios ibéricos através do uso de argumentos filosóficos, jurídicos e artísticos que encontramos na maioria dos tratados sobre pintura de tal contexto. Tal debate sobre a liberalidade da pintura é herdeiro da tratadística renascentista italiana que teve como seu marco inicial o tratado de Leon Batista Alberti. Javier Portús afirma que MEGIANI, Ana Paula Torres. O rei ausente: festa e cultura política nas visitas dos Filipes a Portugal (1581 e 1619). São Paulo: Alameda, 2004. 403 MEGIANI, Ana Paula Torres. O rei ausente: festa e cultura política nas visitas dos Filipes a Portugal (1581 e 1619). São Paulo: Alameda, 2004, p. 215. 404 ROCHE, 1996, apud MEGIANI, Ana Paula Torres. O rei ausente: festa e cultura política nas visitas dos Filipes a Portugal (1581 e 1619). São Paulo: Alameda, 2004, p.212. 402

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“demonstrar o carácter nobre e liberal da pintura, que foi o tema central da [literatura artística espanhola] seguindo a tradição teórica renascentista que tenha talvez seu pivô mais persistente em Alberti” 405. Portús também demonstra que a construção do convento El Escorial atraiu para Madri muitos artistas italianos, fato que promoveu um intercâmbio entre os artistas espanhóis e italianos; fomentando uma ascensão no debate teórico sobre a pintura406. Talvez a mais característica diferença esteja no fato de que nos territórios italianos essa batalha era motivada por razões ideológicas, enquanto na Península Ibérica a demanda pelo fim dos impostos era uma realidade concreta. O primeiro texto a trabalhar com essas noções no território ibérico foi Noticia general para la estimación de las artes y la manera en que se conocen las liberales de las que son mecánicas y serviles, publicado em 1600 pelo espanhol Gaspaz Gutiérrez de los Rios. O tratado é organizado em quatro livros: Del origen de las artes, segun nuestra religion Christiana (Livro Primeiro), Em que se trata em general de las artes liberales y mecânicas [...] (Livro Segundo), Em que se defiende que las artes del dibuxo son liberales y no mecânicas (Livro Terceiro) e, por fim, En que se refieren los antiguos para llamar a la Agricultura arte liberal (Livro Quarto). A defesa pela liberalidade da pintura é o argumento central de todo o texto. Em sua defesa, Gutiérrez se apoia, principalmente, na antiga comparação entre pintura e poesia, que desde a Antiguidade gozava do status de arte liberal. Gutiérrez, assim como Alberti, também associa a pintura – devido à aplicação da proporção e perspectiva –, à geometria e aritmética que também detinham o status de artes liberais. Seguindo essa estratégia, Gutiérrez compara às artes do desenho a diversas outras atividades consideradas liberais, até mesmo com a medicina. Gutiérrez também afirma que a pintura é liberal por possuir “três nobrezas”: a nobreza natural, a política e a teológica, que nos é interessante aqui. De acordo com Raquel Pifano407, a noção das três nobrezas da pintura foi assimilada do tratado do Cardeal Paleotti, já abordado anteriormente como uma das possíveis fontes de Gutiérrez. No que diz respeito à nobreza teológica da pintura Gutiérrez afirma “Pela nobreza Teológica, são também artes nobres porque

Tradução livre do trecho:"la demostración del carácter noble y liberal de la pintura, que fue el tema central de nuestra literatura artística siguiendo la tradición teórica renacentista que quizá tiene su pivote más persistente en Alberti.” PORTÚS, Javier. Los orígenes: 1600-1724. In.: El concepto de pintura española. historia de un problema. Madrid: Editora Verbum, 2011, p. 19. 406 _______. Los orígenes: 1600-1724. In.: El concepto de pintura española. historia de un problema. Madrid: Editora Verbum, 2011. P.p. 17-86. 407 PIFANO, Raquel Quinet A. Gutierrez de Los Rios e o Elogio da Pintura de Philipe Nunes. In.: MORENO, Patrícia; NASCIF, Rose (org.) Literatura em Língua Espanhola e Artes Visuais. Juiz de Fora: EdUFJF, 2016 (no prelo). 405

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produzem efeitos sobrenaturais, e divinos, de piedade, caridade, e religião, segundo se tem dito. Por serem suas obras milagrosas, se chamam os artífices divinos”408. Ainda no que diz respeito à esfera teológica da imagem, no Capítulo XI (competencia que tienen estas artes del dibuxo con la historia) do Livro III, Gutiérrez atesta que uma das funções da pintura é contar uma história, não menos do que a poesia e, inclusive, com maior propriedade. Revivendo o argumento da importância pedagógica da imagem, Gutiérrez afirma que a imagem serve para eternizar na memória as histórias e atinge um público que a palavra escrita não é capaz de atingir como os “rústicos” e “idiotas”, ou seja, aqueles que não são letrados. “O rústico e outros pobres idiotas, e os mudos, como se recordariam de Deus e de seus santos, se não vissem pintadas suas imagens nos templos?”409. Ele ainda diz que “[...] as histórias pintadas [...] vencem as escritas na facilidade e rapidez em que são entendidas [...]”410. Fazendo referência aos princípios da retórica antiga assimilados sob a luz da religiosidade contrarreformista. Gutiérrez também diz que a imagem bem pintada “deleita os olhos, recria a memória, aguça e aviva o entendimento, apacenta o animo, incita a vontade, e finalmente acende esse desejo, vendo os valores e virtudes de outros para imitálos, tanto e às vezes até mais do que pelas histórias escritas”411. Estima-se que Noticia general para la estimación de las artes tenha sido uma das maiores fontes para a escrita de Arte da Pintura de Filippe Nunes. Os dois tratados possuem inúmeras similaridades. De modo geral, ambos estão inseridos em um contexto comum no que diz respeito aos aspectos

Tradução livre do trecho: “Por la nobleza Teologica, son tambiẽ artes nobles, porque producen efectos sobrenaturales, y divinos, de piedad, caridad, y religión, según se ha dicho”. GUTIERREZ DE LOS RIOS, Gaspar. Noticia general para la estimación de las artes, y de la manera en que se conocen las liberales de las que son Mecanicas y serviles, con una exortacion a la honra de la virtud y del trabajo contra los ociosos, y otras particulares para las personas de todos estados. Madrid: Pedro Madrigal, 1600. Fol. 214. Disponível em: . Acesso em 30 de março de 2016. 409 Tradução livre do trecho: “El rústico y otros pobres ydiotas, y los mudos, como se acordarían de Dios y de sus santos, sino vierse pintadas sus imagene, e historias en los templos?”. GUTIERREZ DE LOS RIOS, Gaspar. Noticia general para la estimación de las artes, y de la manera en que se conocen las liberales de las que son Mecanicas y serviles, con una exortacion a la honra de la virtud y del trabajo contra los ociosos, y otras particulares para las personas de todos estados. Madrid: Pedro Madrigal, 1600. Fol. 166. Disponível em: . Acesso em 30 de março de 2016. 410 Tradução livre do trecho: “[...] las historias pintadas [...] vencen a las escritas em la facilidad y presteza de darse a entender[...]”. GUTIERREZ DE LOS RIOS, Gaspar. Noticia general para la estimación de las artes, y de la manera en que se conocen las liberales de las que son Mecanicas y serviles, con una exortacion a la honra de la virtud y del trabajo contra los ociosos, y otras particulares para las personas de todos estados. Madrid: Pedro Madrigal, 1600. Fol. 167. Disponível em: . Acesso em 30 de março de 2016. 411 Tradução livre do trecho: “Con las bien pintadas y releuadas se deleytan los ojos, se recrea la memoria, se aguza y abiua el entendimento, se apacienta el animo, se incita la voluntad, y se esta finalmente encendiẽdo el desseo, viẽdo los valores y virtudes de otros para imitarlos, tanto y aun algunas vezes mas q por las historias escritas.” GUTIERREZ DE LOS RIOS, Gaspar. Noticia general para la estimación de las artes, y de la manera en que se conocen las liberales de las que son Mecanicas y serviles, con una exortacion a la honra de la virtud y del trabajo contra los ociosos, y otras particulares para las personas de todos estados. Madrid: Pedro Madrigal, 1600. Fol. 167-168. Disponível em: . Acesso em 30 de março de 2016. 408

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sociais, políticos e religiosos, capazes de contribuir com o ensino da prática da pintura, além de se inserirem no diálogo pela sua valorização e liberalização em terras ibéricas. Arte poética, e da pintura, e symmetria, com princípios da perspectiva412, foi o primeiro tratado sobre arte da pintura publicado em Portugal, em 1615. Seu autor Filippe Nunes, foi um português nascido em Vila Real, que ingressou em idade madura na ordem dos dominicanos, no ano de 1591. O tratado Arte da pintura, symmetria e Perspectiva é dividido em três partes, Prólogo aos pintores – na qual o autor argumenta suas intenções com o tratado e apresenta a quem está dedicado, no caso, dedica a obra aos jovens e aprendizes das artes; Louvores da pintura – nessa seção Nunes evoca e referencia pintores e teóricos da arte da pintura, também apresenta argumentações sobre a pintura como arte liberal; e Arte da pintura – apresenta a perspectiva, a simetria dentre outras técnicas do ofício. O presente texto terá como foco principal a seção Louvores da pintura. É possível observar diferentes passagens em Louvores da pintura, nas quais Nunes faz uma defesa da pintura como arte liberal. Nessa seção, o tratadista faz referência e, por vezes, traduz muitas das questões apresentadas em Noticia general de Gutierrez de los Rios. Como recurso, Nunes também cita diversos exemplos da antiguidade clássica, como a história do pintor Zeuxis, com o objetivo de afirmar o status do artista e as funções da imagem. Nunes também se utiliza de autoridades cristãs como S. Gregorio Nisseno, por exemplo, na passagem que escreve: E S. Gregorio Nisseno [...] diz de si que muytas vezes pòs os olhos em hum paynel em que estava pintado o Sacrificio de Abrahão, & que jamais o vio sem lagrimas lembrando-se da historia verdadeyra. 413

Ao analisar a passagem é possível verificar claramente a importância da imagem no contexto tridentino. A pintura, principalmente a pintura religiosa, possui um papel moral e estrutural, ela ensina o fiel, o comove e o faz lembrar-se dos ensinamentos. Assim como aconteceu com S. Gregorio Nisseno, o fiel ao observar a imagem se recordará da passagem a que ela se refere. Traduzindo um trecho do tratado de Gutierrez, Nunes enfatiza que a pintura “Não sò deleyta, & agrada a os olhos (...), mas faz fresca a memoria de muytas cousas passadas, & nos mostra diante

Arte poética, e da pintura, e symmetria, com princípios da perspectiva, publicado em 1615 é um códice dividido entre arte poética e arte da pintura. Em 1767, o tratado recebe uma segunda edição, apenas da parte dedicada a arte da pintura, com o título Arte da pintura, symmetria e perspectiva. 413 NUNES, Philippe Nunes. Arte da pintura, symmetria e perspectiva. Lisboa, 1615. In.: NUNES, Philippe. Arte da pintura e symmetria, e perspectiva. Porto: Paisagem, 1982. (Ed. Fac-simile de 1615, com estudo introdutório de Leontina Ventura), p.71. 412

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dos olhos as historias muyto tempo há acontecidas”414, reforçando mais uma vez o papel educativo da imagem. Assim como no discurso de Gutiérrez, a pintura é considerada, por vezes, mais eficiente que a palavra escrita, porque possibilita ao cristão recordar os ensinamentos, comove e faz mover. O dominicano apresenta dessa forma diversos exemplos enfatizando também a legitimidade da pintura. Em sua conclusão afirma que: Logo se prova bem que he contada entre as liberais, & que se seja nobre não há divida nenhũa, porq o he portodas as três nobrezas: pela natural, porque produz grandes efeitos de virtude (porque quem há, que vendo hũ Christo crucificado, se não compunya? O q esta provado assima de S. Gregorio Nisseno) pela nobreza Theologica & divina, porque produz efeitos sobrenaturais, & divinos de piedade, caridade & religião415

De acordo com Raquel Pifano, a defesa da imagem em Nunes tem um teor de defesa da fé cristã. Em Arte da Pintura, o tratadista enfatiza a função pedagógica da imagem. A utilidade da imagem, no caso a pintura, no reforço da fé cristã, como meio de memorização e difusão da doutrina católica é mensagem lida claramente na sua obra. A pintura, além de agradar, deveria tornar fresca a memória de coisas passadas e ao representar os grandes feitos, incitar os observadores a seguir o exemplo pintado.416

De acordo com Leontina Ventura “[...] é-nos materialmente impossível comprovar o domínio que tem Nunes das suas fontes”417, sendo muitas delas, provavelmente, de segunda ou terceira mão. Entretanto, é provável que tenha tido um contato muito próximo com o texto de Gutierrez devido ao número de passagens nas quais o dominicano promove uma tradução praticamente literal de Noticia general. Raquel Pifano lembra que É sabido que o Convento de São Domingos em Lisboa possuía uma vasta biblioteca, entretanto não podemos ainda afirmar o que exatamente o frade teria lido durante sua permanência no local. Entretanto, o texto de Gaspar Gutierrez de los Rios parece ter sido leitura certa. Além da facilidade de acesso de Nunes ao tratado do “conterrâneo”, pois Portugal encontrava-se sob domínio espanhol,

NUNES, Philippe Nunes. Arte da pintura, symmetria e perspectiva. Lisboa, 1615. In.: NUNES, Philippe. Arte da pintura e symmetria, e perspectiva. Porto: Paisagem, 1982. (Ed. Fac-simile de 1615, com estudo introdutório de Leontina Ventura) p.70. 415 _______. Arte da pintura, symmetria e perspectiva. Lisboa, 1615. In.: NUNES, Philippe. Arte da pintura e symmetria, e perspectiva. Porto: Paisagem, 1982. (Ed. Fac-simile de 1615, com estudo introdutório de Leontina Ventura) p.77. 416 PIFANO, Raquel Q. Arte e catequese: a escultura devocional de Aleijadinho. In: Cultura Visual, n. 16, dezembro/2011, Salvador: EDUFBA, p. 14. 417 VENTURA, Leontina. Estudo Introdutório. In.: NUNES, Philippe. Arte da Pintura e Symmetria, e Perspectiva. Porto: Paisagem, 1982. (Ed. Fac-simile de 1615, com estudo introdutório de Leontina Ventura). p.37. 414

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e da familiaridade da língua, é possível encontrar no tratado do dominicano passagens idênticas às do texto espanhol.418

Conforme demonstrado, em diversos momentos Nunes não apenas afirma a legitimidade da pintura como também a põe a serviço dos valores tridentinos. Nunes expõe fontes de autoridade e legitimidade tridentinas, tais como santos padres como S. Gregorio Nisseno e outros como Mons. Daniele Barbaro419, que se configuram como autoridades não apenas religiosas como também em questões referentes à pintura. Observa-se também a utilização dos autores clássicos em favor dos discursos tridentinos, sobre isso Leontina Ventura afirma que Filipe Nunes é, antes de tudo, um apologista do catolicismo para quem o factor decisivo, na hora de eleger materiais com que possa ilustrar sua obra, é a perfeita adequação ao propósito didático e não a autenticidade. Os antigos são adaptados às suas exigências, o apelo às fontes culturais e de exegese, a busca da autoridade de graves e famosos autores serve para externar suas convicções e sustentar seus princípios [...]420

Apresentar fontes de autoridade pagãs para uma defesa de valores cristãos é uma prática presente em muitos discursos tridentinos. De acordo com Baumgarten421, teólogos como Paleotti e Bellarmino, por exemplo, apoiam seus argumentos não apenas em fontes de autoridade cristãs, como a própria Bíblia, mas também em autores pagãos como Platão e Aristóteles. Baumgarten argumenta que “[...] para a justificação das imagens por sua associação com os textos, Paleotti cita tanto autores pagãos quanto cristãos, de Plínio a Gregório, o Grande, e de Estrabão a João Damasceno”422. É possível verificar o mesmo discurso nos tratados de Gutierrez e Nunes, que ao evocarem os autores clássicos afrontam “[...] os escritos da Antiguidade tal como haviam feito os primeiros Padres, no sentido de mobilizar as letras profanas ao serviço das sagradas [...]”.423 Devido às similaridades e traduções diretas do texto de Gutierrez de Los Rios, alguns autores contestam a erudição de Nunes e sua capacidade de argumentação, consideram por vezes que o dominicano teria produzido apenas uma cópia servil. Entretanto é essencial que consideremos algumas questões a respeito do período e da tratadística portuguesa. Primeiramente, como afirma PIFANO, Raquel Quinet A. Gutierrez de Los Rios e o Elogio da Pintura de Philipe Nunes. In.: MORENO, Patrícia; NASCIF, Rose (org.) Literatura em Língua Espanhola e Artes Visuais. Juiz de Fora: EdUFJF, 2016 (no prelo). 419 Mons. Daniele Barbaro (1514-1570) foi um humanista veneziano, patriarca de Aquileia, participou de algumas seções do Concílio de Trento, foi tradutor de Vitrúvio e produziu um tratado sobre perspectiva. Barbaro também foi mecenas de artistas como Paolo Veronese e Andrea Palladio. 420 VENTURA, Leontina. Estudo Introdutório. In.: NUNES, Philippe. Arte da Pintura e Symmetria, e Perspectiva. Porto: Paisagem, 1982. (Ed. Fac-simile de 1615, com estudo introdutório de Leontina Ventura), p.39. 421 BAUMGARTEN, Jens. A teologia pós-tridentina da visibilitas e o Laocoonte. In.: MARQUES, Luiz (org). A fábrica do antigo. Campinas: Editora da Unicamp, 2008. (coleção Palavra da arte), p.p. 205-219. 422 ________. A teologia pós-tridentina da visibilitas e o Laocoonte. In.: MARQUES, Luiz (org). A fábrica do antigo. Campinas: Editora da Unicamp, 2008 (coleção Palavra da arte), p. 208. 423 VENTURA, Leontina. Estudo Introdutório. In.: NUNES, Philippe. Arte da Pintura e Symmetria, e Perspectiva. Porto: Paisagem, 1982. (Ed. Fac-simile de 1615, com estudo introdutório de Leontina Ventura), p.44. 418

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Leontina Ventura “A noção de plágio não existe na época, os autores copiam-se, não há lugar para a inovação, apensas uma exploração dos achados dos predecessores”424. Outro fator importante se encontra em relação à tradução, naquele momento Portugal e Espanha encontravam-se sob domínio de uma mesma autoridade, mesmo assim, Nunes escreveu seu tratado em português, traduzindo, muitas das passagens do tratado de Gutierrez, que por sua vez configura-se, sem dúvida, em um compilado de muitas outras informações encontradas principalmente nos escritos de autoridades como Paleotti, Bellarmino entre outros. Essas traduções possibilitaram de alguma forma o acesso e o conhecimento de tais informações a um número mais abrangente de leitores. Não se faz necessário para o presente texto uma argumentação sobre a história da leitura, entretanto é importante lembrar que por muitos anos existiu o hábito da leitura oral, sendo um texto em língua vernácula mais compreensível que um texto em latim ou em uma língua estrangeira. Pertence a Gutiérrez de los Rios e a Filippe Nunes um papel importante no que diz respeito à literatura sobre pintura. Como os primeiros tratados sobre arte da pintura publicados na Península Ibérica, Notícia General e Arte da Pintura possuíam um sentido muito particular em relação aos interesses monárquicos e cristãos. Ambos os textos tiveram grande importância no debate pela liberalização da pintura que, em solo ibérico ainda detinha status de atividade mecânica, e na defesa da pintura sacra como atividade legitima frente às acusações protestantes, evocando para isso autoridades da antiguidade clássica – interpretadas à luz da teologia tridentina –, os santos padres da Igreja, e tratadistas e teólogos contrarreformistas.

VENTURA, Leontina. Estudo Introdutório. In.: NUNES, Philippe. Arte da Pintura e Symmetria, e Perspectiva. Porto: Paisagem, 1982. (Ed. Fac-simile de 1615, com estudo introdutório de Leontina Ventura), p.45. 424

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