A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E SEUS DESAFIOS NAS SUPREMAS CORTES DE JUSTIÇA DO BRASIL E DA ARGENTINA 1

June 6, 2017 | Autor: K. Gonçalves Ferr... | Categoria: Property Law, Derecho constitucional, Direito Civil, Função Social da Propriedade
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A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E SEUS DESAFIOS NAS SUPREMAS CORTES DE JUSTIÇA DO BRASIL E DA ARGENTINA1

Kisleu Ferreira2

Resumo: Este trabalho faz uma breve evolução do conceito da função social da propriedade, concebida especialmente como meio de produção dE riquezas (terra) e forma de acesso ao poder. Estabelecida a premissa, faz um apanhado dos casos já julgados envolvendo o tema nas Cortes Supremas do Brasil e da Argentina, demonstrando o quanto há distância entre os conceitos e a aplicação prática do instituto. A reflexão final é a necessidade de se dar maior amplitude ao conceito e rigor à exigência de cumprimento da função social pelos detentores das riquezas (propriedade). Abstract: This paper makes a brief evolution of the concept of the social function of property, especially conceived as a means of production of wealth (land) and forms of access to power. Established the premise, provides an overview of cases involving already judged the issue in the Supreme Courts of Brazil and Argentina. A final reflection is the need to give greater rigor to the requirement to comply with the social function by holders of wealth (property). PALAVRAS-CHAVE: função social da propriedade – casos – Suprema Corte – Brasil - Argentina KEY-WORDS: social function of property - cases – Supreme Court - Brazil - Argentina SUMÁRIO: 1. Evolução da noção de função social da propriedade com função social; 2. A aplicação prática da funcionalização da propriedade nas cortes supremas; 3. Conclusão; 4. Bibliografia.

1 – Evolução da noção de propriedade com função social Como anota EDUARDO CORDERO QUINZACARA3, todo intento de “tratar de condensar y sistematizar lo que se ha dicho en torno al derecho de propiedad es una empresa desmesurada y , quizás, hasta imposible para cualquier persona . En tal sentido , nada más 1

Texto elaborado para conclusão do curso de “Derechos Reales” ministrado pelo professor Carlos Clerc no programa de doutoramento em Direito Civil da Universidade de Buenos Aires, em janeiro de 2013. 2 Advogado em Goiás. www.kisleucom.br, [email protected]. 3 QUINZACARA, Eduardo Cordero, “De la propiedad a las propriedades , la evolución de la concepción liberal de la propiedad” , Revista de Derecho de la Pontificia Universidad Católica de Valparaiś o , vol. XXXI, Valparaíso/Chile, 2º Semestre de 2008, pp. 493 – 525.

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acertadas son las palabras de Mariano Peset cuando afirmaba que: „[...] a la propiedad, en su conjunto, sólo se le puede dedicar un ensayo o la vida entera ”. Seguindo estes rumos que nos atrevemos a traçar algumas palavras sobre a evolução da propriedade como fenômeno obrigatoriamente vinculado a papéis sociais e à ressonância desta ideia nas Cortes Supremas do Brasil e da Argentina. A primeira reflexão para seguir este itinerário é ter presente que a noção de propriedade precede à de direito. Como registra THAIS LUZIA COLAÇO4, amparada em MARIA CRISTINA BOHN MARTINS5, as comunidades indígenas americanas pre-coloniais cultivavam o conceito de propriedade individual, mas apenas para pertences pessoais (armas, adornos, máscaras, rede)... A propriedade coletiva [a casa, por exemplo] era a mais importante e a mais abrangente, iniciando-se com a ocupação do território . A terra era considerada um bem sagrado, indispensável para a sobrevivência do grupo.” Desta regressão bem se percebe que a noção de propriedade, como fato e poder de uso, gozo e disposição de bens corpóreos parece ser inerente à própria natureza humana, tal como já defendia Santo Tomás de Aquino. Ao mesmo tempo, parece surgir desta pequena digressão o fato de que os bens ligados à produção (a terra), na sua primeira concepção, sempre estiveram ligados automaticamente à sua significação e importância para a comunidade, não para o indivíduo. Não cabia, pois, ao Estado dar contornos a esta função da propriedade, embora modernamente assim possa se defender. Conforme CHASE-SARDI6, o "etnocentrismo jurídico", que condiciona o direito à existência do Estado (Marx, Engels, Kelsen e RadcliffeBrown), não sobrevive mais às pesquisas antropológicas. O direito, está bastante evidenciado, é um pré-requisito da existência social do homem e existiu mesmo antes da invenção da escrita, sendo desta era muitas instituições atuais como "o casamento, o poder paterno e ou materno sobre os filhos, a propriedade (pelo menos mobiliária), a sucessaõ , a doação, 4

COLAÇO, Thais Luzia, “O sistema de propriedade indígena pre-colonial”, WACHOWICZ, Marcos; MATIAS, João Luis Nogueira. Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009, p. 20. 5 MARTINS, Maria Cristina Bohn, Os Guarani e a economia da reciprocidade, São Leopoldo: Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 1991, Dissertação (Mestrado em História - Estudos Ibero-Americanos). 6 Apud COLAÇO, Thais Luzia, “O sistema de propriedade indígena pre-colonial”, in WACHOWI, Marcos; MATIACZ, S, João Luis Nogueira. Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009, p. 15.

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diversos contratos tais como o emprés timo”7. Assim, as regras de direito sempre estiveram fundadas no princípio da reciprocidade, nas vantagens coletivas para os que as aceita, não no medo do castigo imposto por um “Estado”8. Por isto, a definição do que era a propriedade e o seu papel nunca estiveram, nas mais primitivas organizações sociais, na sua base, fixados pelo direito ou pelo Estado, mas sim pelo princípio geral da reciprocidade – ação e reação. Ou seja, a sua inclinação a cumprir papéis sociais vem da sua primeira concepção como fenômeno jurídico. Saltando extraordináriamente o tempo, para os registros iniciais da civilização romana, base de quase todos sistemas jurídicos modernos9, vê-se que em muitas passagens esta ideia ainda prevalecia. Apesar da feição absoluta da propriedade quando se via a divisão do mancipium em manus (mulher), patria potestas (filhos), dominica potestas (escravos) e dominium (coisas) – pluripropriedade - oponível a todos, quando se voltava para a terra, mais importante meio de produção e maior fonte de poder, sabia-se que, ao lado dos poderes inerentes à proprietas, havia limitações claras em função de interesses coletivos. Como pontua FRANCISCO AMARAL10, depois de grande influência do direito canônico, o Digesto trazia normas limitativas da propriedade imóvel sobre “contaminação das águas e de cisternas, despejos industriais, instalação de lavadouros, proteção de aquedutos, rios, mares, instalações hidráulicas, obras de limpeza e depuração das fontes e das cloacas visando garantir a pureza das águas can alizadas, proibição do corte ilícito de árvores , assim como de outros danos à flora, além de disposi ções gerais sobre a cons

equente responsabilidade civil. (...)

Se

ultrapassassem os limites estabelecidos, podia o prejudicado usar o interdito uti possidetis, e se o dono do prédio causador da emissaõ alegasse o direito a produzi

-la, uma ação

negatória”.11 Note-se, portanto, que o espírito limitador da propriedade em função de interesses coletivos seguia o mesmo, ainda naquele tempo, especialmente quando referente 7

GILISSEN, John, Introdução histórica ao direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, p. 49. MALINOWSKI, Bronislaw. Crimen y costumbre en la sociedad salvaje. Barcelona: Ariel, 1978, p. 71. 9 RABINOVICHK-BECKMAN, Derecho Romano… 10 “A propriedade no Brasil colônia, império e no Código Civil de 1916”, in WACHOWI, Marcos; MATIACZ, S, João Luis Nogueira. Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009, p. 26. 11 OSENBRUGGEN, Hermanos Kriegel, Herman y, Cuerpo del Derecho Civil Romano, a doble texto, traducido al castellano del latino, tomo III, Barcelona: Kriegel, Hermann y Osenbruggen, 1897, p. 146. “Digesto, livro 39, 1, 5, “§11. Si alguno quisiera reparar o limpiar canales o cloacas, con razón se prohibirá la denuncia de obra nueva, porque le importa à la salud y à la seguridad públicas que se limpien las cloacas y los canales.” 8

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aos meios de produção (propriedade imóvel). Aliás, tal não é novidade, sendo esta característica, de há muito e para muitos autores, um requisito para a própria existência do fenômeno. Este caráter, todavia, sofreu sério enfraquecimento com o declínio da nação romana pelas invasões bárbaras, ficando obscuro até o século XIII quando redescoberto. Neste intervalo, como destaca JOÃ O LUIS NOGUEIRA MATIAS 12, houve “grande confusaõ entre propriedade e posse, muito em razaõ do instituto germânico da Gewere, em que a propriedade não é separada da posse , que a faz presumir. Esta é a tônica d a matéria até o redescobrimento do direito romano”. Em reação à fragilização secular do instituto, volta-se novamente a concepção bipartida posse e propriedade, criando-se os diversos institutos que permitiriam a exploração da terra de uns poucos por terceiros durante vários anos, como eram o “censo, o feudo, a enfiteuse e o fideicomisso . A propriedade fundiária foi levada ao extremo

.”13 A

função social dos meios de produção (terra), por isto, neste período, continuou completamente obscurecida. Com o liberalismo mercantilista dos próximos séculos, impulsionado pelo fortalecimento da burguesia urbana reagindo à distribuição por castas da terra baixo vontade soberana, exigiu-se garantias individuais e queda dos privilégios: “À l`État la souveraineté, au citoyen la propriété”

Neste contexto, reforçou-se ainda mais a proteção da propriedade

individual contra quaisquer ingerências externas, especialmente vindas do Estado, tendo sua expressão máxima na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadaõ

de 1789, repetida

pelo Código Civil de Napoleão em 1804, no clássico verbete do artigo 544: “La propriété est le droit de jouir et disposer des choses de la manière la plus absolue, pourvu qu'on n'en fasse pas un usage prohibé par les lois ou par les règlements”. Obedecendo à mesma regra de causa e efeitos, anos mais adiante gera-se, igualmente, uma forte reação aos novos paradigmas de apropriação das riquezas (propriedade). E desta vez bem mais rápido. Em menos de um século, os benefícios desta corrente individualista, do 12

“O fundamento econômico e as novas formas de propriedade”, in WACHOWI, Marcos; MATIACZ, S, João Luis Nogueira. Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009, p. 94. 13 Id., ibidem, p.99.

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poder absoluto sobre as coisas, não pareceu ser maiores que seus malefícios. A Revolução Industrial provou que este absolutismo para tratar dos meios de produção gerava um ciclo inverso, colocando a liberdade duramente perseguida nos vários séculos anteriores sob severas ameaças, reduzindo o homem despossuído a mero combustível de máquinas e de poucos detentores das riquezas, ainda que sob o título de livres. A resposta, por isto, não tardou. Aliás, já vinha sendo cunhada longe da Europa. A forte inspiração romana do direito (Partidas) trazido para tratar o ineditismo encontrado pela colonização espanhola da América Latina (particularismo do direito indiano), aliada sempre aos princípios cristãos, já dava indícios de que este modelo de exploração dos meios de produção (propriedade) gerava um conflito insustentável na sociedade. Já em 151114, o sermão do frei Antônio de Montesinos denunciava, do púlpito de uma igreja de “Isla La Española” (Haiti e Republica Dominicana hoje) “a mantança dos indígenas pelo ouro de cada dia”15 e prenunciava que daquela região sairia a primeira inspiração constitucional para se frear as consequências do absolutismo da propriedade. Talvez desta fagulha tenha brotado o art. 27, § 3º, da Constituição Mexicana de 05/02/1917, que inaugurou a nível constitucional uma nova corrente de tratamento da propriedade privada. Dizia: “la nación tendrá em todo tiempo el derecho de imponer a la propriedad privada las modalidades que dicte el interés publico”. Bastaram-se dois anos para a Constituição Alemã de 1919 repetir o preceito (art. 153) repercutindo a tendência mundial para a queda definitiva do paradigma do liberalismo burguês. Em terras brasileiras, tais ecos demoraram a eclodir. Os napoleônicos conceitos do Código Civil de 191616 só foram fortemente abrandados pela Constituição de 196917, embora

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LEVAGGI, Abelardo, “Derecho indiano (d), do capítulo VIII (Período Moderno)”, Manual de historia del derecho argentino – castellano – indiano/nacional, 2ª ed., Buenos Aires: De palma, 1998, p. 149/184. 15 RABINOVICH-BERKAMAN, Ricardo D., “Direito Latinoamericano”, Princípios gerais de direito latinoamericano, Buenos Aires: Astrea de Alfredo Y Ricardo Depalma, 2006, p. 189/260. 16 “Art. 527. O domínio presume-se exclusivo e ilimitado, até prova em contrário.” 17 “art. 153, § 34. A lei disporá sôbre a aquisição da propriedade rural por brasileiro e estrangeiro residente no país, assim com por pessoa natural ou jurídica, estabelecendo condições, restrições, limitações e demais exigências, para a defesa da integridade do território, a segurança do Estado e justa distribuição da propriedade.”

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houvessem referências à limitação do direito de propriedade desde constituição de 193418, mas sem quase nenhum efeito prático. Nas margens do Rio da Prata, igualmente, somente a Constituição Argentina (ou Reforma) de 194919 trouxe a função social da propriedade para o cenário jurídico, como uma nova ideologia20 (se comparada com a de 1853) destinada a romper com os preceitos do Código Civil de 1871 (“art. 38. “La propiedad privada tiene una función social y , en consecuencia , estará sometida a las obligaciones que establezca la ley con fines de bien común...”). A doutrina, todavia, estava há alguns anos à frente, repercutindo na jurisprudência da Corte Suprema desde 1922 a importância da função social da propriedade privada21. Da Constituição do México em diante, o tema da funcionalização da propriedade passou a ser comum e reiterado nos textos constitucionais, sendo sua tradução para o plano real o novo desafio da aclamada social-democracia que substituiu a ideologia individualista pós revolução francesa, especialmente depois da segunda guerra. A Constituição Brasileira de 1988, por exemplo, fez ampla abordagem do tema sob diferentes aspectos22, sendo sua mais efetiva ferramenta para concretizar, verdadeiramente, este instituto a previsão do usucapião urbano especial (art. 182), com prazo de apenas 5 anos para áreas de até 250m², e a afirmação de que (Art. 184) será desapropriado “por interesse social, para fins de reforma agrária, o

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“art. 113-A. 17) É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado o direito à indenização ulterior.” 19 “Art. 38 - La propiedad privada tiene una función social y, en consecuencia, estará sometida a las obligaciones que establezca la ley con fines de bien común…” 20 RAMELLA, Susana T., Propiedad en función social en la constitución de 1949, Una “mentalidad” del Antiguo Régimen representada en el constitucionalismo social de la época” , Revista de Historia del Derecho, Núm. 35, 2007, pp. 297-354. 21 Id., ibdem, p. 340: “Por ejemplo, el fallo „Agustín Ercolano v. / Julieta Lanteri Rens- haw” (1922), le sustrae la absolutez al dominio en estos términos: ni el derecho de usar y disponer de la propiedad, ni ningún otro derecho reconocido por la Constitución, reviste el carácter de absoluto . Un derecho ilimitado sería una concepción antisocial. La reglamentación o limitación del ejercicio de los derechos individuales es una necesidad derivada de la convivencia social. Reglamentar ese derecho es limi - tarlo, es hacerlo compatible con el derecho de los demás dentro de la comunidad y con los intereses superiores de esta última‟.” 22 “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: II - propriedade privada; III - função social da propriedade;”

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imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social”23. Entretanto, talvez deixando revelar a verdadeira ideologia que permeava os constituintes da época, deixou no vazio das terminologias jurídicas quase tudo, a ponto de dizer que por “cumprir a função social” significa (art. 186) “ I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.” O que é adequado? Esta timidez também é vista na Constituição Argentina, passível até de certo retrocesso. O texto de 1949, dizendo que a (art. 38) “La propiedad privada tiene una función social y, en consecuencia, estará sometida a las obligaciones que establezca la ley con fines de bien común...”, desaparece do texto revisado em 1994. Hoje, só se vê um (art.17) arroubo de reconhecimento da interdependência social na expressão “La expropiación por causa de utilidad pública, debe ser calificada por ley y previamente indemnizada”, caminho inverso do que hoje se chama constitucionalização do direito civil. A percepção geral do que até agora explanado, ainda que por ângulos muito restritos, deixa claro que, embora bastante alardeada, a queda do paradigma instalado pelo liberalismo, da propriedade absoluta e individualista, está apenas colocada sob mera suspeita pelas legislações, especialmente no círculo territorial que delimitamos inicialmente. Demonstrar esta afirmação, é o propósito do próximo item, trazendo à luz a aplicação efetiva que as Cortes Supremas tem dado aos preceitos flexibilizadores da propriedade impostos pelas nova ordem social-democrata.

2 – A FUNCIONALIZAÇÃO DA PROPRIEDADE NAS CORTES SUPREMAS BRASILEIRA E ARGENTINA O Supremo Tribunal Federal (www.stf.jus.br) brasileiro, órgão de cúpula do Poder 23

Em outros pontos a Constituição estabelece que: “Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária: I - a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra; II - a propriedade produtiva”.

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Judiciário, depois de 1988 teve sua competência atrelada à matéria meramente constitucional (em

tese),

diferentemente

da

Corte

Suprema

de

Justiça

da

Nação

Argentina

(www.csjn.gov.ar), que acumula também a competência recursal geral de última instância. Mesmo assim, realizamos uma pesquisa generalista nos bancos de dados de decisões das duas casas, visando objetivar e restringir a pesquisa ao panorama pretendido por este trabalho: função social da propriedade. Colacionamos casos que representam, ao nosso ver, o pensamento das Cortes sobre os aspectos do instituto da função social da propriedade, ainda que eles sejam repetidos por inúmeros outros julgados em igual sentido ou com alguma variação. Vamos a eles então. Um apanhado nos anais das duas Supremas Cortes, sem a profundidade que mereceria uma investigação com objetivos maiores do que a presente, revela que o tema da “função social da propriedade” não recebe controvérsias ou soluções em que se discute seu aspecto fundamental, de rompimento com a concepção individualista dos meios de produção ou como mola propulsora dos desafios mais modernos, talvez como sugerido nas entrelinhas do próprio texto constitucional. O aspecto mais recorrente no sodalício brasileiro, por exemplo, sobre o grande tema da função social da propriedade aparece atrelado à cobrança de impostos pelos Municípios com alíquotas progressivas ou diferentes para prédios urbanos, em face da destinação econômica dos imóveis (edificados ou não edificados), da sua localização (expansão em locais super povoados) ou do seu impacto na organização da cidade (taxa de solo criado, RE 387047, Julgamento: 06/03/2008). O Supremo entende que “A Constituição Federal de 1988, ao delinear o esquema normativo pertinente ao IPTU, contemplou a possibilidade de essa espécie tributária ser progressiva, em ordem a assegurar o cumprimento da função social da propriedade (CF, art. 156, § 1º, e art. 182, §§ 2º e 4º, II)” (RE 590360, Julgamento: 31/05/2011)24. Relacionado a este tema também aparece inúmeros julgados declarando a constitucionalidade de inúmeras leis que fixam alíquotas diferentes para imóveis residenciais ou comerciais, adaptando a capacidade contributiva de cada proprietário à destinação social 24

O assunto foi sumulado em 2003: “súmula 668 é inconstitucional a lei municipal que tenha estabelecido, antes da emenda constitucional 29/2000, alíquotas progressivas para o iptu, salvo se destinada a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana”.

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do bem: “Surge legítima, sob o ângulo constitucional, lei a prever alíquotas diversas presentes imóveis residenciais e comerciais, uma vez editada após a Emenda Constitucional nº 29/2000” (RE 423768, julgado em 01/12/2010). Dentro também do tema da função social da propriedade urbana, é recorrente os julgamentos que tratam da impenhorabilidade do bem de família. Com certo retrocesso, a Suprema Corte Brasileira pacificou sua jurisprudência para reconhecer a constitucionalidade da Lei do Inquilinato quando admite a penhora do único imóvel residencial do fiador para pagamento de dívidas do locatário (mesmo a moradia sendo um direito social previsto no art. 7º da Constituição) não permitindo, porém, a penhora do imóvel do próprio devedor (RE 612360, julgado em 13/08/2010). A matéria, contudo, tem encontrado resistência na doutrina e nas instâncias inferiores em face da constitucionalização do direito à moradia (2º TAC-SP, Apelação com revisão 593.812-0/1). Outro subtema recorrente é o da desapropriação por “interesse social”. A Corte é sempre chamada para dirimir controvérsias relativas à insatisfação de proprietários rurais declarados descumpridores da função social do imóvel que possuem. Neste assunto, se tem visto efetividade rígida do preceito, mesmo diante da elasticidade dos conceitos adotados na Carta Magna anteriormente citados. Veja-se alguns exemplos: “A existência de condomínio sobre o imóvel rural não impede a desapropriação-sanção do art. 184 da Constituição do Brasil, cujo alvo é o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social.” (MS 26129/DF, Julgamento: 14/06/2007); “A desapropriação para fins de reforma agrária não esgota os instrumentos de que dispõe a União para promover o „estabelecimento e a manutenção de colônias ou cooperativas de povoamento e trabalho agrícola‟. Com efeito, a desapropriação por interesse, necessidade ou utilidade pública dissociada de eventual violação da função social da propriedade rural pode ser utilizada no âmbito fundiário” (MS 26192/PB, Julgamento: 11/05/2011). Merece destaque ainda a tendência do Supremo, quanto à desapropriação em que o interesse social é revelado após invasão de propriedade particular por movimentos sociais “movimento dos sem-terra”, organização social formada por agricultores que aguardam

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reforma agrária. A posição da Corte privilegia a interpretação do princípio da função social contra o texto da lei que rege a matéria25, superando posicionamento antigo. Considera que “a ínfima extensão de área invadida, não justifica a improdutividade de imóvel” (MS 24764, julgado em 06/10/2005). Anos antes desta decisão, a Corte também tinha se manifestado no sentido de que o tema do cumprimento da função social da propriedade era de alta relevância e urgência, apto inclusive a autorizar o Poder Executivo editar medidas provisórias com força de lei para tratar a matéria no plano das reiteradas invasões de prédios públicos e privados no ano de 2002 (ADI 2213/DF, Julgamento: 04/04/2002). A posição do Supremo, nesta seara, todavia, pode ser taxada de bastante conservadora. Já se vê na jurisprudência decisões judiciais, inclusive de segundo grau, dando verdadeira força cogente ao princípio da função social quando envolve a função social da propriedade rural. Exemplo mais conhecido é o caso da Fazenda Primavera, no Rio Grande do Sul, em que o Tribunal de Justiça reformou a decisão de primeiro que tinha reconhecido a ilegalidade da sua invasão em face da sua produtividade prática, pelo fato da mesma, não cumprir “sua função social, circunstancia esta demonstrada pelos débitos fiscais que a empresa proprietária tem perante a união” (Agravo de Instrumento Nº 598360402, Julgado em 06/10/1998). Ao revés, no Supremo, tem se dito que “A garantia da função social da propriedade (art. 5º, XXIII da Constituição) não afeta as normas de composição de conflito de vizinhança insertas no Código Civil (art. 573 e seus parágrafos), para impor gratuitamente, ao proprietário, a ingerência de outro particular em seu poder de uso, pela circunstância de exercer este último atividade reconhecida como de utilidade pública” (RE 211385, julgado em 20/04/1999). Neste caso, há nítida valorização do individualismo da propriedade privada definido no Código Civil, restringindo o conceito constitucional. A questão da propriedade indígena também já reclamou análise do instituto pelo Supremo em vários julgamentos. Sob o aspecto do papel social, especialmente para os não índios, o enfrentamento mais abrangente se deu no julgamento sobre a terra “Raposa Serra do 25

Lei 8629/93: art. 2, “§ 6o O imóvel rural de domínio público ou particular objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo, em caso de reincidência; e deverá ser apurada a responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas vedações.”

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Sol” (Ação Popular nº 3388, Julgamento: 19/03/2009) em que se ventilou, durante o julgamento, da necessidade de alteração de alguns critérios para demarcação das terras indígenas e suas formas de exploração. Definiu-se neste julgamento que “Terra indígena, no imaginário coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia. ... O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse um heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil”. Sobre o usucapião, embora o tema tenha recebido bastante evolução na Constituição de 88, por conta da previsão de hipóteses destinadas às classes sociais despossuídas, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal nada avançou. Neste campo, sempre é chamada para dizer da impossibilidade de prescrição aquisitiva de bens públicos: “São insusceptíveis de usucapião os bens públicos ainda os dominicais” (RE 10039, julgado em 06/06/1950). O alcance da norma constitucional26 ainda não foi abordado mesmo que já brote inúmeras discussões afirmando que, para se dar efetividade real ao instituto, é necessário reconhecer que o texto maior permite o destacamento dos 250m² do imóvel possuído, ainda que sua posse seja em área maior27. Atravessando para a outra margem do Rio Paraná, o que se percebe é que, embora a Constituição Federal Argentina seja mais tímida nas suas disposições sobre a função social da propriedade, as discussões enfrentadas sobre o tema ocupa a jurisprudência suprema há muitos anos e sempre pelo ângulo da existência incondicional de tal limitação, já no Código Civil positivada de maneira acanhada28. Todavia, assuntos de grande repercussão para a verdadeira aplicação da teoria da funcionalização da propriedade são muito pontuais, 26

Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. 27 “(...) O fato da área possuída pelo usucapiente estar inserida em terreno de área superior a 250 m² não impede a aquisição da propriedade pela modalidade de usucapião em comento contanto que a posse seja sobre espaço inferior à metragem anteriormente mencionada. (...)” (Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Apelação Cível 1.0027.01.014037-7/001, julgamento em 01/08/2006). 28 Art. 2.513. Es inherente a la propiedad el derecho de poseer la cosa, disponer o servirse de ella, usarla y gozarla conforme a un ejercicio regular. Art. 2.514. El ejercicio de estas facultades no puede ser restringido en tanto no fuere abusivo, aunque privare a terceros de ventajas o comodidades. (Artículos sustituidos por art. 1° de la Ley N° 17.711 B.O. 26/4/1968. Vigencia: a partir del 1° de julio de 1968.)

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especialmente após a reforma do texto do art. 39 da Constituição, incluído pela emenda de 1949. Uma pesquisa efetuada nos mesmos moldes da feita na Corte Suprema Brasileira, revelou que a Suprema Corte Nacional de Justiça Argentina debate este tema há muito mais tempo e sob um aspecto muito mais amplo. Todavia, a visão fortemente napoleônica do Código Civil argentino parece ser um limite intransponível para os julgadores. Poucos são os avanços tendendo a quebrar o paradigma absolutista, ainda que a Constituição de 1949 tenha declarado expressamente a função social que carrega a propriedade das riquezas. Às vésperas da reforma de 1949, houve entusiasmo com a constitucionalização do assunto. “Las cláusulas de la Constitución Nacional que reprimen el abusó de los derechos art. 35-, consagran la función social de la propiedad privada -art. 38-, someten el capital al servicio de la economía nacional, con miras al bienestar social -art. 39- e impiden el aumento usurario de los beneficios a la iniciativa privada -art. 40-, constituyen directivas trascendentales para la inteligencia del derecho positivo vigente, de las que los jueces no pueden desentenderse. No hay ejercicio abusivo sino estricto de su ministerio, en la ulterior inteligencia de los textos legales a la luz de los nuevos principios. La prescindencia de las soluciones impuestas por éstos, fundada solamente en el alcance literal de un precepto legal, puede llegar a constituir una interpretación inconstitucional” (Staudt y Cía., S.A. Comercial c/ Padua, Emilio, y otros, 1954, T. 229, P. 368). Todavia, poucos anos depois já não se via a mesma força no instituto. As resistência às concepções mais arrojadas de León Duguit (Les transformations générales du Droit privé depuis le Code Napoléon )29 eram abertamente declaradas: “El art. 38 de la Constitución 29

Segundo assinala Eduardo Cordero Quinzacara, op. cit., p. 510, “Duguit trató de los profundos cambios experimentados por el sistema de Derecho civil , que se había construido en la Europa del siglo XX sobre las bases del modelo francés surgido de la revolución (Declaración de los Derechos del hombre y del ciudadano de 1789 y el Código Civil de 1804). Después de explicar las bases de este sistema individualista o subjetivista del Derecho (libertad individual , derecho subjetivo , autonomía de la voluntad , la personalidad y la capacidad jurídica de los sujetos de De recho, la inviolabilidad de la propiedad , etc.), Duguit señala que la consecuencia más grave de esta construcción se manifiesta en el derecho de propiedad , ya que su titular tiene no sólo el derecho de usar, gozar y disponer de la cosa, sino que también el derecho de no usar, no gozar y no disponer, es decir, de hacer un ejercicio antisocial o , por lo menos , asocial del mismo . Sin embargo , la institución de la propiedad privada no es ajena a los cambios económicos y sociales , los que exigen una mayor solidaridad o

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Nacional no establece que la propiedad es una función social. La propiedad, como derecho individual, está expresamente reconocida y asegurada en su uso y disposición conforme con las leyes que, sin alterar ese derecho, reglamenten su ejercicio. La asignación de una función social a la propiedad privada sólo tiene el alcance de ¨someterla a las obligaciones que establezca la ley con fines de bien común¨, sin abatir los poderes de usar y disponer de ella” (Caillard de O'Neill, Magdalena E. M. c/ Heguiabehere, Gerónimo, 1956, T. 234, P. 384). Mesmo assim, alguns avanços pontuais em temas variados permaneceram constantes, ainda que lentamente. O tema relacionado à função social da propriedade urbana, já em 1974, por exemplo, se despontava. Dizia-se que “Si un propietario pretende autorización administrativa municipal para subdividir, con fines de urbanización, una fracción de tierra, la exigencia de ¨cesión gratuita¨ de una parte de ella con destino a calles u otro uso público constituye una carga u obligación legal impuesta por el Estado como condición necesaria para la efectivización del negocio de loteo. Ello es aplicación concreta de la función social de la propiedad y de las obligaciones que de ella derivan con fines del interés público” (Brunella Vda. de Weiser, Edda Leonor c/ Dirección General Impositiva, 1974, T. 289, P. 67). Sobre o cumprimento da função social em relação a normas de planejamento urbano, a Corte tem antigo posicionamento em favor da prevalência das regras comunitárias em relação ao direito de propriedade particular. O caso foi catalogado por HECTOR JOSE NANZI30, com a observação de que os imóveis eram “ubicados entre las calles Tronador, Carvajal, Estomba y Los Incas de la Capital, destinados por el demandado a plantar verduras” e que “ en la Corte se reiteró la doctrina de que las leyes debían interpretarse en función de las directivas impuestas por las normas constitucionales y la ley que había aprobado el 2º Plan Quinquenal. Por ello las exigencias urbanas obligaban a interpretar la función social en

interdependencia social... Esto no significa un cuestionamiento de la institución de la propiedad privada , ni del sistema económico en que se traduce . La clave en la mutación de la noción jurídica de propiedad se encuentra en que su función legitimadora no opera desde el exterior del derecho – como se venía diciendo respecto de las mentadas limitaciones–, sino que integra el contenido material del derecho.” 30 TANZI, Héctor José, “Historia Ideológica de la Corte Suprema de Justicia de la Nación 1947-1955”, IUSHISTORIA Revista Electrónica, Nº 2 – Octubre de 2005, Buenos Aires, Argentina, p. 34, disponível em www.salvador.edu.ar/juri/reih/index.htm, acesso em 06/02/2013.

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favor del reclamo” (“Torrá c/ Blas Montecchi”, del 23 de junio de 1955, en F. 232-134). A ligação do tema com as desapropriações também foi bastante analisada, valorizando-se conclusões vindas das instâncias inferiores. Colhe-se neste sentido um interessante precedente a respeito da relação entre o valor da indenização pela desapropriação e a função social do imóvel, que para a Corte Nacional não “hay error en fijar „el precio objetivamente considerado y no de acuerdo al concepto de función social de la propiedad dentro de los principios de la Constitución que nos rige‟, toda vez que no se ve en qué puede consistir, pues no se explica por qué y de qué modo influye en este caso lo segundo en lo primero” (Nación c/ Vido, José Andrés, 1950, T. 218, P. 64). No tema de locação, firmou-se posição assaz reacionária à doutrina clássica, excluindo-se a controvérsia do direito de preferência do campo das limitações ao direito de propriedade. Para a Corte Suprema Nacional, “El derecho preferencial de compra que diversas leyes de locaciones han consagrado en favor del inquilino no constituye una prerrogativa de raigambre constitucional ni resulta una limitación propia a la función social que debe cumplir la propiedad inmueble, habida cuenta que sólo responde a razones de política legislativa y de emergencia” (Olmedo, Rolando c/ G. de González, Aurora Bartolomé y otros, 1977
 T. 298, P. 412). A vinculação do tema com a tributação imóvel também foi recorrente. Firmou-se importante posição no sentido de que a extrafiscalidade poderia ser fixada de acordo com a “capacidad productiva de la tierra, criterio que se aviene bien a la función social que posee la propiedad del campo como instrumento de producción” (Acuña Hnos. y Cía., S.R.L. c/ Nación, 1973, T. 286, P. 166). Na mesma senda, há precedentes afirmando que “Si bien la inconstitucionalidad de los impuestos por su monto procedería cuando aniquilasen la propiedad o su renta en su sustancia, el control de constitucionalidad en el punto, aunque debe preservar el derecho de propiedad en sentido lato, encuentra fundamento en la relación en que tal derecho -cuya función social se ha de tener presente- se halla con la medida de la obligación de contribuir a las necesidades comunes que puede imponerse a sus titulares por el hecho de serlo” (De Lafuente, Mariana y otros c/ Provincia de Buenos Aires s/ Amparo

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SENTENCIA del 29 de Agosto de 2007)31

3 – CONCLUSÃO A análise, ainda que tão breve, em torno do surgimento e do desenvolvimento do instituto da função social da propriedade, especialmente a imobiliária, e considerando os universos parcos da consulta às Cortes Supremas do Brasil e da Argentina, não pode autorizar conclusões objetivas, mas reflexões. Como já ressaltado, o tema é fruto de uma discussão que ultrapassa milênios e desafiou os maiores gênios da história. A primeira meditação permitida é que o instituto reclama ousadia para ser realmente traduzido para o mundo real. Sua afirmação, ainda que constitucional, não é suficiente, especialmente quando se escamoteia atrás de conceitos vagos, sem qualquer objetividade, doutrinas apenas populistas e, por que não, ideologicamente vinculadas ao antigo absolutismo do capital. No caso do Brasil, considera-se sim ousada a redução para 5 anos do usucapião urbano de áreas até 250m² , todavia não se pode retirar eficácia da norma por interpretações restritivas (v.g. não permitindo a configuração do instituto quando a posse for um pouco maior32, quando obviamente pode ser reduzida). É fundamental que o dever de se atender à função social da propriedade venha descrito com mais detalhe nas leis fundamentais e nos Códigos Civis, como defende GUILLERME ALLENDE33, não na Constituição, como apenas diretriz. A par disto, os desafios maiores não passam pela simples funcionalização legislativa da propriedade. É preciso distinguir que esta ideia, como ressalta LUCIANO BENETI TIM e

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http://www.infojus.gov.ar/index.php?kk_seccion=documento®istro=SUMARIOS&docid=B0094006 “Apelação Cível. Ação De Imissão De Posse. Exceção De Usucapião Especial. Imóvel Urbano. Terreno Foreiro. Propriedade Do Autor. Área Total Do Imóvel Superior A 250 Metros Quadrados. Requisito Legal. Prescrição Aquisitiva Não Operada. Procedência Do Pedido. Sucumbência Invertida. Provida A Apelação. Unânime.” (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível Nº 70049984503, Julgado em 09/08/2012) 33 Panorama de derechos reales, Buenos Aires: La Ley, 1967, p. 373. 32

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RENATO VIERIA CAOVILLA34, implica no “risco da politização do Direito ou

, na

linguagem de Luhmann (Luhmann, 1988, p.244) - e, talvez, também, na de Weber e na de Parsons -, a tentativa da dominação da racionalidade jurídica pela racionalidade política” . O verdadeiro desafio, como defendem os autores retro citados amparados nas visões de HERNANDO DE SOTO35, está em em fixar a “propriedade como ativo capaz de ser convertido em capital ... para incluir os 4 bilhões de habitantes do mundo que se encontram à margem do sistema formal e legal de trocas, vale dizer, da economia de mercado , justamente pelo fato de naõ gozarem de direitos de propriedade . A inclusaõ (essa é a verdadeira fun ção social da propriedade ) será de forma mais eficiente ao se conferir direitos de propriedade àqueles que naõ os tê m [reforma urbana e agrária], sem radicalmente relativizar, em nome de objetivos evanescentes, os direitos daqueles que produzem”. Esta ideia passa tanto pela exigência rigorosa do cumprimento do papel social que cada riqueza representa em sua comunidade, quanto, ao mesmo tempo, pela defesa estatal delas e dos seus possuidores, para que as conserve e as alimente, gerando e distribuindo mais riqueza. A anotação claríssima do eminente professor GUILLERMO L ALLENDE36, enfim, feita há quase cinquenta anos, é a melhor para atingir este ideário: “?Qué se entende por función social de la propiedad? Sintetizaremos la pregunta transcribiendo un párrafo del próprio Duguit: „En cuanto a la propiedad, no es ya en el derecho moderno el derecho intengible, absoluto, que el hombre que posse riqueza tiene sobre ella. Ella es y ella debe ser; es la condición indispensable de al prosperidade y la grandeza 34

“PROPRIEDADE E DESENVOLVIMENTO : análise pragmática da func ̧ão social” , in WACHOWICZ, Marcos; MATIAS, João Luis Nogueira. Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009, p. 184. 35 Op. Cit., p. 173: “O economista Hernando De Soto, Presidente do Institute for Liberty and Democracy, sediado em Lima , no Peru, assevera que em projeto que neste paí s realizou, com o intuito de fazer com os que indivíduos pobres tivessem acesso à propriedade , a ativos e ao capital, constatou que nas residências que estavam formalmente registradas , ou seja, de cuja propriedade as pessoas eram titulares , havia, no mí nimo, duas fontes de renda (e, por conseguinte, as pessoas gozavam de maior bem-estar), ao passo que nas residências sobre as quais naõ se reconheciam direitos de propriedade , havia, tão-somente, uma única fonte de renda (Soto, 2004). Por quê? A resposta, embora simples , assume larga dimensaõ . As pessoas que têm certeza de que a sua propriedade estará protegida e será respeitada naõ necessitam deixar alguém (o marido deixar a mulher, ou o inverso) tomando conta da casa enquanto trabalham. A partir do momento em que tal certeza se esvai, a melhor opção é deixar alguém tomando conta da propriedade , o que reduz as possibilidades de trabalho desta pessoa encarregada. Destarte, as pessoas podem alocar mais tempo e recursos na atividade produtiva e, ainda assim , terem os seus ativos protegidos . Fora de dúvida que uma pessoa a mais trabalhando faz com que a renda da família recrudesça.” 36 Op. cit., p. 372.

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de las sociedades y las doctrinas colectivistas son una vuelta a la barbárie. Pero la propiedad no es un derecho; és una función social. El propietario, es decir, el poseedor de una riqueza tiene, por el hecho de poseer esta riqueza, una función social que cumplir; mientras cumpla esta misión, sus actos de propietario están protegidos. Si no la cumple o la cumple mal, si por ejemplo no cultiva la tierra, o deja arruinarse su casa, la intervención de los governantes es legítima para obligarle a cumplir su función social de propietario, que consiste en assegurar el empleo de las riquezas que posee conforme a su destino‟.” Este é verdadeiro desafio, ainda que plantado há mais de um século. Para vencê-lo é preciso ter a mesma ousadia e coragem de quem o plantou naquela época, já que tecnologia e criatividade parecem já estar suficientemente avançadas para tanto.

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