A funcionalidade como valor no tratado \'Sobre a Marcha dos Animais\' de Aristóteles

June 6, 2017 | Autor: Matheus Damião | Categoria: Aristotle, Ancient Greek Philosophy, Aristotle's philosophy of biology, Aristoteles
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A FUNCIONALIDADE COMO VALOR NO TRATADO SOBRE A MARCHA DOS ANIMAIS 1

Introdução:

A atual pesquisa visa analisar o grau valorativo da funcionalidade no De Incessu Animalium (Marcha dos Animais), texto do corpus biológico de Aristóteles. Neste tratado Aristóteles parece estabelecer a localização das dimensões espaciais, refiro-me a direita e esquerda, alto e baixo, frente e traseira, tomando por base não uma localização geográfica-espacial no corpo do animal, mas sim o ponto específico da localização do princípio de uma função. Assim, a funcionalidade surge como critério definitório tanto para a posição das partes espaciais no corpo do animal quanto para a própria existência ou não destas dimensões, isto é, onde se inicia uma determinada função, inicia-se uma dimensão espacial.

Motivação para o trabalho:

Tipton (2006) sustenta que os tratados biológicos de Aristóteles foram praticamente ignorados pelos estudiosos por séculos, que teriam privilegiado quase que exclusivamente as obras que focavam temas mais canônicos da filosofia. O mesmo autor, porém, afirma que houve uma retomada dos estudos biológicos do corpus aristolelicum nas últimas décadas por dois grupos distintos. De um lado os biólogos trouxeram seus olhos novamente às análises empíricas de Aristóteles, por outro os filósofos retomaram este corpus com o intuito de se aprofundar na filosofia do Estagirita. Foram propostas, então, relações entre a biologia aristotélica e temas de cabedal importância para o pensamento do Estagirita, tais como a teleologia e problemas de definição. Porém, mesmo com esse ressurgimento, pouco tem sido produzido acerca do texto que esta pesquisa tem como corpus, a saber, o De incessu animalium. Outro fator motivador foi a grande importância da teleologia no pensamento de Aristóteles, tópico muito presente nas descrições dos animais nos textos do filósofo.

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Texto apresentado por Matheus Damião, graduando em Letras-Grego, na Jornada de Iniciação Científica da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2015.

Objetivos:

Desejamos analisar como Aristóteles procede na descrição das localizações espaciais no corpo dos animais e do homem. Pretendemos, portanto, entender quais são os critérios e fundamentos utilizados pelo filósofo nas divisões entre esquerda e direita, cima e baixo, frente e traseira nos seres vivos. Um dos objetivos de nossa pesquisa também é produzir uma tradução comentada do tratado em questão, inexistente em língua portuguesa.

Desenvolvimento:

Primeiramente, para entendermos o grau de importância da funcionalidade no De Incessu Animalium é necessário que entendamos, mesmo que de um modo geral, como esta se apresenta na filosofia aristotélica. A funcionalidade das coisas é de extrema importância no pensamento do Estagirita. Entre as quatro causas do ser, a causa final se destaca por ser o ponto de partida das mudanças e movimentos que algo faz para obter sua completude, seu télos. De fato, não podemos nem é nosso intuíto entendê-la como único princípio de movimento dos corpos, porém, como bem nos aponta o filósofo no início da Ética a Nicômaco, “Toda arte e toda investigação, bem como toda ação e toda escolha, visam a um bem qualquer”. Isto é, todas as ações tem por fim seu próprio bem, são direcionadas e impulsionadas por ele. Mas qual é o bem de cada coisa? Logo em seguinte, no capítulo 7 do mesmo livro, Aristóteles, ao investigar qual seria a função natural e, ao mesmo tempo, diferenciadora do homem, relaciona o bem de algo com sua funcionalidade, com sua atividade natural:

Pois, da mesma maneira como para um flautista, um escultor ou um outro artista, e em geral para tudo que têm uma função ou atividade, considera-se o bem e a perfeição residem na função (…)

Assim, fica claro como o bem reside na função específica de cada coisa, naquilo que move cada coisa a ser o que é. Um flautista só é flautista enquanto tocar flauta, ao exercer sua função por excelência, que lhe caracteriza como ser.

E é na esteira desta valorização do bem, entendido como a função específica de algo para a constituição de seu ser próprio, que Aristóteles inicia a obra que é o foco de nossa pesquisa.

O De incessu animalium estabelece em seu segundo capítulo duas premissas (hypotheménoi) que, segundo o próprio texto, são frequentemente usadas no estudo para a natureza e que, portanto, se apresentam em todos as atividades (érga) da natureza. A primeira é que (i) ela faz nada em vão e a segunda é que (ii) há seis dimensões (diastáseis) de grandeza (megéthous), divididas em três pares: uma é o alto e o baixo, a segunda é a frente e a traseira, e a terceira é a direita e a esquerda. A partir disso, fica claro a importância tanto da teleologia das atividades naturais no tratado em análise quanto o grau de premissa que Aristóteles confere às seis dimensões. O filósofo as toma claramente como fundamentação (hypotheménoi) para a análise que irá propor. Que a causa final é de suma importância na filosofia aristotélica e perpassa quase todos seus textos nos é fato conhecido, porém a presença destas seis dimensões nos causa surpresa. Como veremos adiante, não é a fortuito que o filósofo apresenta estas duas premissas juntas, pois a conceituação de tais dimensões está intrinsecamente ligada à causa final, à atividade realizada por ela.

Voltando ao assunto das dimensões no capítulo 4, o filósofo explica como elas são distinguidas: “distinguidas no exercício (érgô), e não na posição sozinha em relação à terra e o céu”. Este ponto é muito esclarecedor acerca das dimensões, pois aponta para uma maior importância da funcionalidade em detrimento da localização geográfica em si mesma. Isso significa dizer que para se distinguir alto de baixo, por exemplo, não devemos recorrer aos nossos parâmetros espaciais, mas sim à atividade distinta que cada um deles exerce no animal. Ou seja, ser o alto em um ser vivo significa ser o ponto espacial que é o princípio da atividade, da função, que caracteriza esta dimensão, independente de qual seja sua posição geográfica no corpo.

A funcionalidade é o ponto referencial para a localização do princípio. E onde inicia a função, inicia o princípio, e, então, inicia uma grandeza espacial, como a frente, o alto ou a direita.

Três são as funções presentes em três princípios claramente distintos no homem: o movimento local, o crescimento e a percepção. O movimento local se origina na direita, o crescimento no alto, e a percepção na frente. Porém, como fica bem esclarecido no De Caelo II 2, estas distinções espaciais não estão presentes nos próprios corpos dos seres vivos, nós é que escolhemos chamar certa parte de direita, ou esquerda, e assim por diante.

Somos nós mesmos o referencial para isso. Quando falamos de acima e abaixo, ou direito e esquerdo relativamente a essas coisas, a referência pode

ser à nossa própria mão direita, como com aqueles que pronunciam oráculos, ou por analogia com nossa ṕrópria configuração corpórea e como quando falamos da direita da estátua; ou podemos preferir a ordem espacial oposta, chamando de direito aquilo que está à nossa esquerda, e de esquerdo o que está à nossa direita. Distinção alguma, porém, é percebida por nós nas próprias coisas; realmente, se são giradas, as partes opostos passam a ser designadas por nós de direita e esquerdo, acima e abaixo, ou dianteiro e traseiro.

Com esta passagem fica clara a utilização do homem como ponto de referência para as distinções entre os opostos. Porém, como já apontado anteriormente, o princípio da função que é, primeiramente, o determinante acerca da localização de determinada dimensão. Entretanto, o homem é usado como referência, pois nele os princípios das funções são mais divididos que nos outros seres vivos e, por isso, ele se torna, secundariamente, o ponto de partida para as distinções espaciais. De fato, é no alto que se localiza o órgão de alimentação e é na frente que estão os olhos, órgãos da percepção sensorial. Já em relação à direita, Aristóteles utiliza de três exemplos (humanos) para sustentá-la como princípio do movimento: (1) os homens carregam os fardos sobre a esquerda, (2) recuam com o pé esquerdo e (3) se defendem com os membros direitos. No capítulo IV do De Incessu, Aristóteles afirma que os homens “são muito mais segundo a natureza do que os animais”. E, por fim, diz “também nos homens os princípios são mais divididos e mais segundo a natureza (...) ”. Esta constante afirmação no De Incessu de que o homem é mais segundo a natureza, pois seus membros assim o são parece carregar mais valor moral do que propriamente fisiológico. Lloyd fala de uma espécie de ideal, “to which the animal kingdom aspires, but which is most fully exemplified in man.” E é devida a essa clara distinção entre os três princípios que o filósofo sustenta que o homem é o ser mais segundo a natureza. Há, por exemplo, animais que possuem o alto e a frente em idêntica posição, os quadrúpedes, por exemplo, pois seu crescimento se dá na mesma direção em que ocorre o princípio da percepção, isto é, a frente. É baseado no fato de haver uma distinção entre os princípios da frente e do alto que Aristóteles define os bípedes em oposição aos de muitas patas: aqueles são animais que possuem a parte superior distinguida da frente.

Conclusão:

A funcionalidade rege a localização da dimensão corporal. As causas finais das funções definem a existência ou não das dimensões espaciais no corpo: se não há causa (aitia) para uma funcionalidade, não há tal dimensão corporal no animal. Assim, os dois princípios estabelecidos no segundo capítulo se completam, pois (i) a natureza não produz algo, uma dimensão, uma parte (méros), sem que ela tenha uma função, e o conjunto máximo de todas as funções corporais se resume (ii) às seis dimensões espaciais, as quais somente o homem, superior a todos os outros seres, possui em completude.

Passos futuros

Até o momento nossa pesquisa se restringiu à análise das dimensões espaciais no De Incessu Animalium, utilizando do De Caelo como chave de leitura para melhor entendermos o primeiro. Porém, a grande valoração que Aristóteles atribui aos pares opositivos no corpus aristotélico nos encaminha para o estudo dos valores deles no imaginário Grego, que como bem aponta Lloyd (1962), parece estar presente nos textos do Estagirita.

Partindo de Balme (1987) que sustenta que a Historia Animalium foi escrito possivelmente na última fase do pensamento do filósofo, em oposição aos tratados menores, como o De Incessu que foram produzidos ainda em Atenas, pretendemos fazer uma análise comparativa entre como se dão as descrições acerca dos pares opositivos de espaço no De Incessu e no H .A.

Bibliografia

A.GOTTHELF and J.G. LENNOX(eds) Philosophical Issues in Aristotle's Biology . Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1987. A. GOTTHELF (eds). Aristotle on Nature and Living things: Philosophical and Historical studies presented to David M. Balme on his seventieth birthday . Mathesis Pubns, 1985 ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução de Giovanni Reale. São Paulo: Edições Loyola, 2005. __________. Do céu . tradução, textos adicionais e notas Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2014 ARISTOTLE. On the Gait of Animals , translated by A. S. L. Farquharson, Oxford, 1912 __________. ON THE MOTION OF ANIMALS, translated by A. S. L. Farquharson, Adelaide. __________. On the Parts of Animals IIV, translated by J.G. Lennox (Clarendon Aristotle Series) Oxford University Press, 2002 __________. De Partibus Animalium I and De Generatione Animalium I. (trans. Balme). Oxford University Press, 1992

ARISTOTE. Traités des Parties des Animaux e de la Marche des Animaux d'Aristote (Barthélemy SaintHilaire, J.) . Paris, Hachette, 1885. HERTZ, R. Death and The Right Hand (trans. Rodney and Claudia Needham). London: Cohen and West, 1960 LLOYD, G. E. R.. Right and Left in Greek Philosophy . The Journal of Hellenic Studies, 82, pp 5666.1962. TIPTON, James. The case of the kobios and phucis . In: Perspectives in Biology and Medicine. Volume 49, Number 3, Summer 2006. pp. 369383

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