A GÊNESE DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE Cidadania e democracia na conformação das atribuições do judiciário no marco de um Estado de Direito

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A gênese do controle difuso de constitucionalidade

A GÊNESE DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE Cidadania e democracia na conformação das atribuições do Judiciário no marco de um Estado de Direito Revista de Processo | vol. 229/2014 | p. 433 | Mar / 2014 DTR\2014\700 Georges Abboud Doutor e Mestre em direitos difusos e coletivos pela PUC-SP. Professor do programa de pós-graduação stricto sensu, mestrado e doutorado da Fadisp. Advogado. Rafael Tomaz de Oliveira Doutor e Mestre em Direito Público pela Unisinos-RS. Advogado. Área do Direito: Constitucional; Processual Resumo: As presentes reflexões pretendem reconstruir a gênese do controle difuso de constitucionalidade no contexto de suas duas referências históricas: o caso Bonham, na Inglaterra e o caso Marbury vs Madison, nos Estados Unidos. A finalidade é demonstrar o papel absolutamente fundamental desempenhado por essa técnica de limitação do poder político num contexto de Estado Constitucional de Direito, apresentando-o como um instrumento de defesa da cidadania. Por outro lado, a argumentação pretende, também, oferecer as bases para uma aproximação crítica com relação às recentes posturas que são cada vez mais frequentes e volumosas no direito brasileiro e que tendem a defender uma objetivação do controle difuso de constitucionalidade. Palavras-chave: Controle de constitucionalidade - Democracia - Cidadania - Estado de Direito. Abstract: Abstract: The present considerations are intended to reconstruct genesis of the judicial review in the context of its two historical references: Bonham case in the UK and Marbury vs Madison case in the USA. The objective is to demonstrate the fundamental role performed by this limitation of political power in a context of Rule of Law, presenting it as an instrument for the defense of citizenship. On the contrary, this assertion intends, as well, to offer the basis for a critical approach relating to recent postures even more frequent and voluminous in the Brazilian Law, which tends to secure objectivism of the judicial review. Keywords: Judicial Review - Democracy - Citizenship - Rule of Law. Sumário: - 1.Notas introdutórias - 2.Sir. Edward Coke e a sua majestade: o common law - 3.John Marshall e a solução de uma intrincada disputa política: a formação do precedente da judicial review na aurora da “democracia americana” - 4.À guisa de conclusão

Recebido em: 25.09.2013 Aprovado em: 17.12.2013 1. Notas introdutórias Nos últimos anos, começou a tomar corpo, no âmbito do direito processual constitucional brasileiro, a tese de que o nosso sistema de controle de constitucionalidade possui uma “tendência à abstratalização”. Trata-se de uma tese que procura enquadrar a situação a partir de uma análise das diversas reformas a que foram submetidas tanto a Constituição quanto a legislação infraconstitucional, e que autorizariam afirmar que, tanto o constituinte derivado quanto o legislador infraconstitucional, estariam a apontar para uma modificação nas bases de nosso sistema de controle jurisdicional de constitucionalidade – que, desde 1988, é marcadamente misto, congregando o modelo difuso com o concentrado – levando a uma prevalência do controle concentrado sobre o difuso. Na verdade, mecanismos como a repercussão geral e as súmulas vinculantes – introduzidos pela reforma constitucional 45/2004 – representariam a demonstração definitiva de que, entre nós, o controle difuso, exercido de forma concreta, incidenter tantum, estaria em vias de abstratalização. Página 1

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Esse debate assume contornos sistêmicos na polêmica a ser enfrentada pelo STF no julgamento da Rcl 4.335/AC, no interior da qual os ministros discutem qual o papel do Senado Federal com relação às leis declaradas inconstitucionais – de forma definitiva – pelo STF no exercício do controle difuso de constitucionalidade. Novamente, também neste caso, há uma tendência em revestir a decisão do Supremo Tribunal de eficácia erga omnes, conferindo-lhe, no fundo, efeitos de decisão tomada no âmbito do controle concentrado. Ao Senado caberia, tão somente, dar publicidade do ato declarado inconstitucional pelo STF, na fórmula prescrita pelo ex-ministro Eros Grau em voto proferido na referida reclamação. Esse artigo, todavia, pretende-se como um estudo científico apto a demonstrar os equívocos que estão nas raízes das posturas objetificadoras e/ou abstratalizantes. Na verdade, a partir de um esforço histórico – para demarcar a gênese conceitual do controle difuso de constitucionalidade –, pretendemos demonstrar o caráter democrático e de defesa dos direitos individuais que apenas o controle difuso pode realizar em todo o seu esplendor. O controle difuso reveste-se, assim, de um perfil de garantidor da cidadania. Jürgen Habermas que contemporaneamente se apresenta, talvez, como o mais importante crítico da atividade da jurisdição constitucional, já se manifestou no sentido de defender o controle difuso como “o mais democrático entre os modelos jurisdicionais de constitucionalidade”. E essa afirmação, sem dúvida, faz todo o sentido. Na gênese de tal modelo, ainda na Inglaterra seiscentista, naquele que ficou conhecido como Bonham’s case, já se encontra presente a fórmula – na lapidar decisão de Sir. Edward Coke – que se manifesta como um instrumento de defesa do cidadão contra os excessos cometidos por aqueles que exercem o poder político. Transpondo o atlântico e chegando aos Estados Unidos, temos que o surgimento do precedente que até hoje sustenta a judicial review – o caso Marbury vs Madison – está envolvido em uma situação política abertamente tumultuada e que poderia, com facilidade, levar a infante nação a uma debacle. A estrutura do presente artigo tem exatamente essa conformação: por um lado, reconstrói os antecedentes do caso e os argumentos da decisão de Coke no Bonham’s case; por outro, procura desvendar os meandros políticos que se encontravam subjacentes à decisão de John Marshall no caso Marbury vs Madison. Se é certo que os motivos que levaram a decisão de Marshall não são tão nobres quanto aqueles que se encontram subjacentes à decisão de Coke, também o é que o Aresto de Marshall em Marbury vs Madison, possibilitou estabilidade para uma democracia que, naquele momento, enfrentava uma profunda crise. Portanto, é imperioso antecipar aqui aquela que seria a principal conclusão deste artigo: o controle difuso de constitucionalidade representa, de forma mais bem acabada, um instrumento de limitação do poder político. Sua criação representa, sem sombra de dúvida, a maior contribuição da ciência constitucional do século XIX ao direito constitucional contemporâneo. Diante disso, esse texto pode ser visto também como uma primeira parte de um manifesto que, por um lado, é introduzido de forma crítica com relação às propostas de objetificação e/ou abstratalização do controle difuso de constitucionalidade, e que, por outro, procura recuperar a dignidade deste que é um verdadeiro instrumento de defesa das liberdades, da constitucionalidade das instituições e da cidadania. 2. Sir. Edward Coke e a sua majestade: o common law Em obra específica sobre jurisdição constitucional, já tivemos oportunidade de esquadrinhar as razões pelas quais consideramos o caso Bonham como o principal antecedente para criação da judicial review.1 A sua descrição e análise neste item será utilizada para confrontá-lo com o caso Marbury vs Madison, a fim de expor com maior clareza a gênese do controle difuso de constitucionalidade. Página 2

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É possível afirmar que o controle de constitucionalidade tem sua origem no processo Bonham. Esse processo, que teve Coke como seu protagonista, muito provavelmente contém uma das mais famosas e discutidas sentenças judiciais, uma vez que ela constitui precedente da moderna instituição conhecida como controle de constitucionalidade.2 O caso Bonham (Bonham’s case – The College of Physicians vs Dr. Thomas Bonham)3 figura entre os casos mais importantes em que atuou Sir. Edward Coke. Esse caso é considerado o antecedente mais importante para a formação e consolidação da técnica da judicial review consagrada no caso Marbury vs Madison. Além da judicial review, o caso Bonham também traria os antecedentes históricos necessários para a estruturação do preceito judicial da razoabilidade.4 Antes de se examinar o que foi decidido no caso Bonham, é imprescindível examinar seu antecedente histórico que é a doutrina Jenkins (Jenkins Doctrine).5 Tanto o caso Jenkins quanto o Bonham são oriundos de conflitos judiciais envolvendo o Colégio de Médicos da Inglaterra, instituição criada pelo Lord Canciller Card Wolsey, em 1518, sob o reinado de Enrique VIII. O Colégio de Médicos era a instituição responsável pela concessão de licença para a prática da medicina. Em 1540, foi promulgada pelo Parlamento inglês a lei (Act of Parliament) que concedeu amplos poderes para o Colégio. A partir dela, o Colégio de Médicos, além de admitir e expulsar sócios, passou a poder apenar com prisão os infratores que praticassem medicina sem licença ou fizessem mau uso dela, mantendo-os presos durante o tempo que considerasse oportuno.6 O Colégio de Médicos era uma instituição que não possuía vínculo com nenhuma Universidade e durante o século XVI utilizou de seus generosos poderes, conferidos pelo Act of Parliament de 1540, para perseguir diversos médicos. Um desses médicos foi Roger Jenkins, que havia recusado se submeter à autoridade do Colégio, o qual, imediatamente, determinou sua prisão. Em seguida, Jenkins impetrou habeas corpus, a fim de obter sua liberdade provisional para o tribunal (Common Pleas). O mérito do habeas corpus foi julgado pelo Chief Justice Popham que decidiu a favor do Colégio de Médicos, afirmando que ele teria competência suficiente para decretar a prisão dos infratores, afirmando, ainda, que os tribunais não poderiam decidir sobre a liberdade dos infratores, mas tão somente apreciar as formalidades da decisão do Colégio dos Médicos.7 Desse modo, antes de surgir o caso Bonham, o tribunal (Common Pleas) já havia corroborado a autoridade regulatória e sancionatória do Colégio de Médicos de Londres. Tal situação mudará radicalmente com o caso Bonham. No ano de 1605, o médico Thomas Bonham, que havia estudado medicina em Cambridge, submeteu ao Colégio petição solicitando o direito de administrar medicamentos. O Colégio de Médicos negou o pedido. Em seguida, Thomas Bonham quando convocado, apresentou respostas que foram consideradas impertinentes pelo Colégio e exerceu a medicina por algum tempo, sem a devida autorização para tanto. A atitude de Bonham lhe rendeu multas impostas pelo Colégio de Médicos. Além das multas, após comparecer perante o presidente do Colégio (Henry Atkins), Bonham contestou a autoridade do Colégio e afirmou que essa instituição não teria poder contra os universitários graduados em medicina. Em seguida, Bonham foi preso por desacato em Newgate. Após a prisão, em menos de uma semana, o advogado de Bonham conseguiu obter habeas corpus no tribunal (Common Pleas), presidido agora pelo chefe de justiça, Edward Coke. Entretanto, a concessão desse habeas corpus contrariava o que havia sido estabelecido na Jenkins Doctrine. O Colégio de Médicos, após consultar comitê seleto de juízes e por estar plenamente confiante no precedente Jenkins, resolveu levar o assunto para os tribunais do common law.8 A lide travada entre Bonham e o Colégio de Médicos foi instaurada no tribunal (Common Pleas) com a presidência de Coke. Nesse processo, Bonham reclamava cem libras a título de danos particulares em razão de false imprisonment por parte do Colégio de Médicos. Ocorre que o texto da Lei de 1540 era claro em estabelecer possibilidade de o Colégio de Médicos apenar quem exercesse medicina sem licença (prática ilícita) ou fizesse mau uso dela (malpraxis). A lei também outorgava ao Colégio a possibilidade de realizar prisões. Por sua vez, Bonham defendia seu ponto de vista com fundamento no espírito da lei. Afirmava que a Página 3

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lei tinha a intenção de prevenir práticas medicas incorretas que seriam as realizadas por impostores. Todavia, ele era médico formado na Universidade de Cambridge e, por possuir título universitário, estaria isento da jurisdição e fiscalização do Colégio de Médicos. Paralelamente ao julgamento no tribunal do common law, o caso foi decidido pelo tribunal do King’s Bench no dia 03.02.1609. Bonham foi condenado por prática ilícita de medicina e condenado a pagar sessenta libras. Por não ter essa quantia, foi decretada sua prisão. Após um ano, o caso foi decidido a favor de Thomas Bonham pelo tribunal (Common Pleas). A votação foi por maioria, três votos favoráveis e dois contras.9 Sendo assim, foi modificada a Jenkins Doctrine. Esse ponto é importante para evidenciar a flexibilidade interpretativa inerente ao common law. Diferentemente do que diversos setores da doutrina imaginam, no common law, mesmo no séculos XIX e XX, quando efetivamente se estrutura o sistema de precedentes, não há uma inexorável vinculação jurisprudencial. A existência de uma prévia decisão judicial paradigma (precedente) impõe que suas razões sejam analisadas nas decisões futuras perscrutando o que efetivamente deve ser levado em conta para os casos futuros. Contudo, ela não impõe uma vinculação pretendendo trazer a solução pronta e acabada para resolução de multiplicidade de casos futuros. Isso porque não há caso paradigma, lei ou súmula – por mais vinculantes que queiramos que elas sejam – aptas a trazer em si uma tutela antecipada de sentido para permitir a solução de multiplicidade de casos futuros. Edward Coke, nos idos de 1600, já sabia que todo caso possui uma especificidade que lhe é inerente. Sorte do Dr. Bonham que teve sua pena cassada e sorte nossa que, a partir dessa decisão, herdamos o democrático instituto do controle difuso de constitucionalidade das leis, justamente para não esquecermos que todo caso concreto demanda atividade interpretativa para sua resolução, do mesmo modo que todo texto normativo abstrato, ainda que dotado de efeito vinculante, pode ser afastado quando sua incidência se apresentar inconstitucional no caso concreto. Ou seja, é a judicial review que nos ensinou ser possível ao juiz, em hipóteses excepcionais, se afastar da lei no caso concreto para se aproximar da Constituição. Não é a toa que Justice Marshall lia Coke. A tese favorável a Bonham prevaleceu em virtude da sofisticada decisão proferida por Edward Coke. A decisão de Coke começa com premissa de que a autoridade concedida pelo rei ao Colégio de Médicos concedia dois poderes distintos com fundamento em duas cláusulas distintas. A primeira referia-se à prática ilícita, que permitia ao Colégio multar quem exercesse a medicina sem sua licença. A segunda, dizia respeito ao exercício da má (errônea) prática médica que poderia ser apenada com a prisão.10 Para Coke, não era lícito ao Colégio apenar com prisão quem praticasse a medicina sem a licença do colégio, mas, de maneira adequada. Contudo, essa conduta somente poderia ser multada. Coke afirmava que existiria grande diferença entre praticar a medicina sem licença e a praticá-la de maneira incorreta. Fernando Rey Martinez, ao interpretar a decisão de Coke, afirma que ela teria realizado uma distinção entre infração administrativa (exercer medicina sem licença) e infração penal (exercer medicina de forma incorreta). A segunda infração, tendo em vista a gravidade do dano que poderia provocar, seria a única que poderia acarretar pena de prisão.11 Nesse sentido, além da importância para a construção da judicial review, Coke teria antecipado princípios fundamentais do direito sancionador no Estado de Direito, e.g., o direito penal figurar como a última ratio para o Estado agir e a obrigatoriedade de se examinar a proporcionalidade (razoabilidade) das penas e principalmente a possibilidade de se examinar mérito de ato administrativo quando violador da legalidade vigente. Vale dizer, Coke não se submeteu aos argumentos trazidos pelo Colégio de Médicos de que lhe seria vedado analisar a multa imposta, mas tão somente as formalidades que lhe seriam subjacentes. Na realidade, não seria nenhum exagero afirmar que, nessa perspectiva, a decisão de Coke era mais sofisticada do que diversas linhas decisórias da contemporaneidade que apregoam um self-restraint exacerbado em face da análise da legalidade e inconstitucionalidade dos atos administrativos.12 Página 4

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A questão constitucional, ínsita ao Bonham’s case, não constitui o núcleo dessa decisão, caracterizando-se como obiter dictum. Coke realiza sua argumentação afirmando que a cláusula que permitia ao Colégio apenar a prática de medicina sem licença consistiria em cláusula contraditória e absurda (repugnant),13 uma vez que permitiria que o Colégio de Médicos fosse, ao mesmo tempo, juiz e parte no processo.14 Desse modo, a lei que permitia ao Colégio de Médicos a um só tempo sancionar o exercício de medicina sem licença por meio de procedimento no qual ele seria simultaneamente parte (acusadora e beneficiária de eventual sanção) e juiz seria contraditória, absurda (repugnant), porque iria contra o preceito já consolidado no common law de que ninguém pode ser concomitantemente juiz e parte no mesmo processo.15 Assim, Coke, ainda que de maneira marginal (dictum), admite a correção e a limitação da legislação vigente com fundamento em preceitos jurídicos consagrados historicamente pelo common law.16 No mesmo diapasão, Nicola Mateucci destaca que a interpretação exata do caso Bonham pode ser controvertida, contudo, é inegável que tanto para a Inglaterra quanto para os Estados Unidos, o Bonham’s case constitui o início do desenvolvimento da máxima que admite a revisão da lei pelo Poder Judiciário, qual seja, o próprio controle de constitucionalidade das leis.17 Na referida decisão, Coke destacou que o common law regula e controla os atos do Parlamento, e, em certas ocasiões, julga-os todos nulos e sem eficácia, uma vez que, quando um ato do Parlamento é contrário ao direito e à razão comum, o common law fará seu controle e julgá-lo-á nulo e sem eficácia. Coke destaca a existência de um direito superior à lei do Parlamento e que estaria contido na própria historicidade, dado que uma lei tem validade formal quando deriva do Parlamento. Contudo, esta somente adquire validade substancial, quando é racional, e o controle de seu conteúdo corresponde aos juízes do common law.18 O racional referido por Coke pode ser entendido como o estar de acordo com a historicidade. Com efeito, ao Judiciário caberia exercer o controle dos demais atos de poder público que fossem violadores dos direitos fundamentais historicamente, assegurados aos cidadãos, ainda que parte desses atos estivesse em consonância com a legislação vigente, mas em confronto com a historicidade (common law). Desse modo, faz-se evidente, a partir das assertivas de Coke – e do desenvolvimento posterior dessa tecnologia pelo constitucionalismo estadunidense –, a importância da judicial review (controle difuso de constitucionalidade) como direito fundamental do cidadão. Da mesma maneira que a atividade do Parlamento impõe limites ao poder real, a supremacia dele não pode ser interpretada como absoluta soberania. Assim, o Judiciário, principalmente por meio da judicial review, tem a função primordial de limitar os dois outros poderes, buscando resguardar os direitos fundamentais dos cidadãos. 3. John Marshall e a solução de uma intrincada disputa política: a formação do precedente da judicial review na aurora da “democracia americana” O leading case que estabeleceu a judicial review estadunidense (que, entre nós, ficou conhecida como controle difuso de constitucionalidade) completou, em fevereiro de 2013, 210 anos. Trata-se do caso Marbury vs Madison. A maioria dos manuais e teses que são produzidas no Brasil sobre o tema do controle de constitucionalidade e da interpretação da Constituição fazem menção e, nalguns casos, reconstroem o contexto histórico que deu origem à demanda de Willian Marbury. Sem embargo, nem sempre se joga luz em todo o esplendor político-jurídico que se projeta do caso. É preciso ter presente, de saída, que este case teve um colorido político muito forte. Os Estados Unidos haviam acabado de sair da revolução que culminou na proclamação da independência e a instituição da federação. Por outro lado, iniciava-se o mandato apenas do terceiro presidente norte-americano, o democrata-republicano Thomas Jefferson, que havia derrotado nas eleições de 1800 John Adams, do partido federalista.19 Nesta eleição, a disputa entre o partido democrata-republicano e o partido federalista foi muito intensa. Depois da derrota, Adams continuou no governo por alguns meses juntamente com o Congresso com o qual governou os seus últimos dois anos de mandato (período conhecido como lame-duck session). Nesse ínterim, ele promoveu uma série de reformas. Entre tais reformas, podemos citar o Página 5

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estabelecimento de 10 novas cortes distritais e aumento do número de tribunais federais de três para seis, criando novos cargos de juízes em cada um deles. Além disso, deu ao presidente, com a aprovação do Congresso, o poder de nomear juízes federais e juízes de paz. Por fim, reduziu o número de juízes da Suprema Corte de seis para cinco, retirando a possibilidade de nomeação de um novo juiz por parte do novo presidente. A manobra, epitetada Midnight Judges Act, teve um claro intuito de preservar a influência do partido federalista nos estados, através da ocupação de cargos estratégicos do Poder Judiciário.20 Um desses juízes nomeados com base no Midnight Judges Act era Willian Marbury. Marbury fora nomeado juiz de paz no Distrito de Columbia. Mas, no curto espaço de tempo que teve para formalizar todas as nomeações, o secretário de justiça de Adams, John Marshall, não conseguiu emitir o diploma de nomeação de Marbury antes de deixar o governo. Na verdade, John Marshall também havia se beneficiado do “testamento político” deixado por Adams que, nesse mesmo período, o indicou para a função de juiz da Suprema Corte.21 Desse modo, sem a formalização de sua nomeação, Marbury entrou no governo democrata-republicano de Thomas Jefferson em situação precária: havia a nomeação do presidente, mas o diploma, que dava atributos jurídicos à sua nomeação, não havia sido lavrado pela autoridade competente, no caso o secretário de justiça. Assim, com base em um ato do congresso (uma lei, poderíamos dizer) de 1789, o Judiciary Act, Marbury impetrou uma ação judicial, diretamente na Suprema Corte, chamada writ of mandamus, pedindo para que lhe fosse entregue o devido diploma de nomeação, que lhe dava direito ao exercício do cargo, uma vez que o secretário de estado de Thomas Jefferson, James Madison, recusava-se a fazê-lo. A referida ação foi proposta em dezembro de 1801. A deflagração desse processo foi como atear fogo em um barril de pólvora. Já no início 1802, o novo Congresso, agora com maioria republicana, mobilizou-se para promover um ato para revogar o Midnight Judges Act. A aprovação de uma Repeal Bill, que alterasse as disposições votadas em 1801, foi objeto de intenso debate, tanto no Senado quanto na Câmara, tendo o caso Mabury vs Madison (ainda pendente de julgamento) como ponto de estofo.22 O ato de revisão, que alterou o Midnight Judges, foi definitivamente aprovado no curso do primeiro semestre de 1802. Duas são as consequências desse novo Judiciary Act: Em primeiro lugar, reorganizou a composição dos distritos, retirando as vantagens partidárias que os federalistas haviam criado em seu ato de 1801 (por óbvio que, tal alteração, colocou no lugar uma estrutura que interessasse mais aos democratas-republicanos). Em segundo lugar, com o fito de evitar questionamentos judiciais sobre essa nova manobra política, o Congresso criou dificuldades para o desenvolvimento da sessão da Suprema Corte durante o ano de 1802 até fevereiro de 1803.23 Quando voltou a se reunir, em janeiro de 1803, a Corte – presidida por John Marshall – teve de decidir, de bate-pronto, o caso da nomeação do juiz de paz Willian Marbury. A situação política era, portanto, deveras dramática para uma república recém-nascida. Por um lado, o juiz responsável por conduzir o julgamento pertencia ao grupo político de Adams e, sendo assim, tinha lá seus interesses na nomeação; por outro, o presidente Jefferson dava demonstrações públicas de que, se lhe fosse determinada a entrega de atos de investidura, não cumpriria a decisão do Judiciário. De outra banda, havia ainda um certo “terror” pairando sobre os juízes federalistas. Com efeito, em 1802, a Câmara deflagrou um processo de impeachment contra um juiz federal vinculado ao partido federalista. Havia certo temor de que a mesma manobra pudesse ser estendida aos juízes da Suprema Corte. Tudo isso junto, a derreter em altas temperaturas no cadinho político norte-americano, dava contornos dramáticos ao julgamento. Em seu aresto, Marshall cravou o argumento que viria a transformar o direito constitucional e a própria teoria do direito: afirmou que a garantia de que a Constituição era revestida de supremacia, se apresentando como uma espécie de “lei das leis”, como a paramount law, implicava na conclusão lógica de que o Poder Judiciário teria o poder de fiscalizar os atos do Congresso que fossem editados em contrariedade aos seus ditames. A saída de Marshall para a decisão do caso Marbury vs Madison foi pela via de uma questão preliminar, não do mérito. Ele reconheceu o acerto do writ of Página 6

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mandamus impetrado por Marbury. Entendeu que tal ação era adequada para a tutela do direito em discussão. Porém, afirmou que a Suprema Corte, não poderia julgar o mérito daquela ação em face de uma inconstitucionalidade que viciava, desde a origem, o Judiciary Act de 1789. No caso, este ato do Congresso, conferia uma competência originária para a Suprema Corte que estava fora das atribuições que lhe foram asseguradas pela Constituição. Nesse sentido, se ao Congresso fosse autorizado modificar a Constituição do mesmo modo que se altera uma lei ordinária, a sua supremacia seria, então, uma grande ficção. A Constituição seria, assim, uma vã tentativa dos homens de limitar um poder que, ao final, sempre se mostra como ilimitado. A partir de então, ficou assentada a possibilidade de o Judiciário rever os atos do Congresso que fossem contrários à Constituição, inaugurando a Judicial Review of legislation. 3.1 Uma manifestação contrária à possibilidade da judicial review: a desconfiança de Thomas Jefferson A discussão sobre a legitimidade de tal fiscalização, porém, continuou a existir, envolvendo ilustres interlocutores. A possibilidade de o Judiciário dizer por último qual a interpretação adequada da Constituição sempre foi alvo das críticas e da desconfiança de Thomas Jefferson. Já em 1820, em carta enviada ao colega de partido, Willian C. Jarvis, Jefferson demonstrava uma preocupação com o tamanho do poder conferido ao Judiciário pela Judicial Review. Com efeito, comentando o texto de Jarvis, The Republican – que viria a ser publicado em 1823 –, Jefferson alerta o colega para aquilo que ele entende ser um erro em seus argumentos: “Você parece cogitar, nas páginas 84 e 148, que os juízes são os últimos árbitros para as questões constitucionais. De fato, esta é uma doutrina muito perigosa e que nos coloca sob o despotismo de uma oligarquia. Nossos juízes são tão honestos quanto quaisquer outros homens e nada mais. Eles possuem, como qualquer outro, as mesmas paixões por partidos, poder, e privilégios de suas corporações. (…) Seu poder é perigoso porque passam a vida em escritórios e não são responsáveis diante do eleitor, como outros funcionários são.”24 A preocupação com o excesso de poder atribuído ao judiciário nos Estados Unidos aparece também em outras cartas de Jefferson. Em 1819, ele escreve ao juiz Roane que a Constituição, nas hipóteses de aceitação da revisão judicial, é um mero artefato de cera nas mãos do Poder Judiciário, que pode ser torcido e moldado na forma que seus integrantes quiserem.25 Muito embora o pessimismo de Thomas Jefferson, o constitucionalismo estadunidense acabou por criar uma nova modalidade de limitação do poder. 3.2 Judicial review e limitação do poder político Jon Elster propõe um modo bastante elucidativo para compreender essas estratégias limitadoras desenvolvidas nesse período. O autor estabelece uma sequência de três estágios, que podem ser visualizados de modo distinto nos três modelos constitucionais (ING, FRA e EUA): “No primeiro, há uma forte monarquia que é percebida como arbitrária e tirânica. No segundo, esta é substituída por um regime parlamentar sem restrições. No terceiro, quando se descobre que o parlamento pode ser tão tirânico e arbitrário quanto o rei, são introduzidos freios e contrapesos.”26 O que a teoria constitucional nos ensina é que a grande inovação oferecida pelo direito constitucional norte-americano se deu com a construção de instrumentos que procuram travar a “vontade” das maiorias eventuais – prevenindo um possível governo arbitrário por parte destas maiorias, uma vez que os representantes eleitos pelo voto majoritário poderiam se tornar um tipo de “aristocracia de fato” 27 – a partir da garantia dos direitos da minoria. Estratégia justificada na desconfiança de Madison formulada no seguinte enunciado: “em todos os casos em que a maioria está unida por um interesse ou paixão comum, os direitos da minoria estão em perigo”. Estas características permitem visualizar o caráter de pré-compromisso de que se reveste a Constituição, a partir dos contornos que lhe dá o constitucionalismo estadunidense. Ou seja, com Stockton, é possível dizer que “Constituições são correntes com as quais os homens se amarram em seus momentos de sanidade para que não morram por uma mão suicida em seu dia de frenesi”. São, portanto, restrições que os próprios autores políticos estabelecem para si e para as gerações futuras, para garantir um governo que esteja sob o direito e não sobre ele. Como assevera Cass Sunstein: Página 7

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“as estratégias de pré-compromisso constitucionais poderiam servir para superar a miopia ou a fraqueza da vontade da coletividade”.28 Desse modo, a jurisdição constitucional – no caso em análise, o exercício do judicial review – é a garantia de que esse pré-compromisso será devidamente cumprido. E isso é consequência da verdadeira soberania da lei; mas não de qualquer lei, mas daquela que passa a ser entendida como a lei das leis, a paramount law, dotada de supremacia e rigidez: a Constituição. Nas palavras de Matteucci: “em lugar da velha lei consuetudinária, uma Constituição escrita, que contém os direitos garantidos aos cidadãos por um juiz, que fixa e declara a lei”.29 Vejamos, então, os contornos que essa jurisdição – constituidora deste elo pré-compromissório – receberá na formação da federação americana. De tudo o que foi dito, sem embargo de todo o problema político no interior do qual a questão estava envolvida, a decisão de Marshall no leading case Marbury vs Madison é mais um ponto de chegada do que um ponto de partida. Ou seja, nesta decisão, a Suprema Corte afirmou um mecanismo que já vinha se sedimentando no interior da construção histórica do constitucionalismo e que encontrou as condições adequadas para seu desenvolvimento em solo norte-americano. É importante lembrar que nos debates sobre a unificação das treze colônias e na redação da Constituição em 178830 já estavam desenhados os contornos de um necessário controle dos atos do Parlamento e do executivo com relação à Constituição Federal (LGL\1988\3). Isso se dá, como ressaltamos no item anterior, a partir da ideia de pré-compromissos constitucionais. Como lembra Matteucci, a consagração da judicial review pelo Chief of Justice John Marshall representa o acabamento da construção constitucional norte-americana. Sem ele, o modelo de freios e contrapesos que, com Elster, podemos dizer que caracteriza do constitucionalismo estadunidense, não estaria completo. Nesse sentido, são ilustrativas as palavras do próprio Matteucci: “A construção constitucional não estava acabada: faltava uma instituição que permitisse um governo limitado e que impedisse perigosas tensões no Estado federal; faltava, portanto, um juiz sobre a terra. A exigência antevista por James Otis em 1761, segundo a qual ‘uma lei contrária a constituição é nula’ e logo repetida em numerosos panfletos e na Circular letter de Massachusetts (1768), tardou a afirmar-se institucionalmente, embora estivesse em plena sintonia com toda a orientação política da revolta das colônias americanas contra a onipotência do Parlamento inglês. (…) Esse complexo de coisas confiado ao Poder Judiciário através de um correto funcionamento do sistema constitucional, estava bem claro para os americanos que escreveram a Constituição. Contudo, a Constituição não previa expressamente o judicial review, a revisão das leis por meio de um juízo judicial de constitucionalidade, muito embora os artigos 3, seção II e 6, seção II, constituíssem um pressuposto necessário. Foi a mesma jurisprudência da Suprema Corte que deu corpo e realidade a este princípio; e o mérito corresponde a seu presidente, John Marshall (…) cujas sentenças formaram um corpus imponente, que teve grande influência no desenvolvimento do direito americano”. Destarte, pode-se afirmar que, a partir de 1803, toma-se por construída a ideia da Constituição como regra jurídica (de se salientar que os modelos de direito próximos à Europa continental, somente conhecerão o conceito de constituição como regra jurídica a partir do segundo pós-guerra). Portanto, o caso Marbury vs Madison tem como grande inovação selar a Constituição com o caráter da normatividade.31 3.3 A descrição das atribuições do Poder Judiciário estadunidense por Tocqueville Agora, é preciso ter presente que as intuições de Jefferson com relação ao excesso de poder atribuído ao judiciário não era despropositada. O lugar ocupado pela Suprema Corte, em especial, e pelo Poder Judiciário, de um modo geral, foi ganhando território desde 1803. Essa questão fica claramente explicada em Tocqueville que, analisando a estrutura judicial estadunidense da década de 30 dos oitocentos, escreve o seguinte: “No momento em que a Constituição federal foi elaborada, já havia nos Estados Unidos treze cortes de justiça julgando sem apelação. Hoje são vinte e quatro. Como admitir que um Estado possa subsistir se suas leis fundamentais podem ser aplicadas de vinte e quatro maneiras diferentes ao mesmo tempo? (…) Os legisladores da América convieram pois em criar um Poder Judiciário federal, para aplicar as leis da União e decidir certas questões de interesse geral, que foram previamente definidas com cuidado. Todo Poder Judiciário da União foi concentrado num só tribunal, chamado Corte Suprema dos Estados Unidos. Mas, para facilitar a tramitação das causas, foram-lhe Página 8

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agregados tribunais inferiores, encarregados de julgar causas pouco importantes ou estatuir, em primeira instância, sobre contestações mais graves.”32 Em arremate, o autor esclarece, ainda, quais funções são desempenhadas pela Corte, tendo como pano de fundo o exercício constante da afirmação da Constituição. In verbis: “Nas mãos dos sete juízes federais repousam incessantemente a paz, a prosperidade, a própria existência da União. Sem eles, a Constituição é obra morta; é a eles que recorre o Poder Executivo para resistir às intromissões do corpo legislativo; a legislatura, para se defender das empreitadas do poder executivo; a União para se fazer obedecer pelos Estados; os Estados, para repelir as pretensões exageradas da União; o interesse público contra o interesse privado; o espírito de conservação contra a instabilidade democrática. Seu poder é imenso, mas é um poder de opinião. Eles são onipotentes enquanto povo aceitar e obedecer a lei; nada podem quando ele a despreza. Ora, a força de opinião é a mais difícil de empregar, porque é impossível dizer exatamente onde estão seus limites. Costuma ser tão perigoso ficar aquém deles, quanto ultrapassá-los.”33 Todo esse poder conferido ao Judiciário, como já foi dito e reiterado, não se apresenta isento de problemas. Se era necessária a criação de um mecanismo de controle dos pré-compromissos constitucionais, também é certo que os limites dessa atividade de controle passam a ser um problema. No livro de Christopher Wolfe, The rise of modern judicial review, o autor coloca com precisão esse problema, ao alertar que, com o passar dos anos, o papel desempenhado pela suprema corte foi significativamente alterado, de modo que – de intérprete privilegiado da constituição – o tribunal passou a agir como uma variante do poder legislativo. 4. À guisa de conclusão O interessante é notar que todo esse debate que vai das estruturas para a questão da interpretação constitucional poucas vezes está pautado no desenvolvimento de uma fórmula mágica apta a reduzir a “liberdade de conformação” dos juízes no momento de interpretar concretamente a Constituição. A obra daquele que talvez seja o mais importante teórico do direito estadunidense dos últimos 30 anos, Ronald Dworkin, demonstra de forma exaustiva que o problema da interpretação do direito – em especial do direito constitucional – não pode ser resolvido com a aplicação de uma fórmula ou de um método que garanta o resultado da decisão que será tomada pelo Poder Judiciário. Os dois casos analisados neste artigo (Marbury vs Madison e Bonham’s case) nos mostram, até hoje, como as questões relativas à interpretação constitucional são polêmicas e controvertidas. A grande riqueza da obra de um autor como Dworkin é tentar apresentar uma saída desse problema que enfrente de forma frontal a controvérsia, não um modelo formal, despistador da questão principal. Há autores no Brasil que continuam a entender, de forma enviesada, as propostas interpretativas de Dworkin. Continuam a achar que a “falha da teoria” é não fornecer um procedimento ou um método de trabalho que garanta a redução da discricionariedade judicial.34 Esse é um ponto que deve ser debatido – mas esse solilóquio ficará para uma próxima oportunidade. Na realidade, o estudo teórico perquirindo por uma redução da discricionariedade judicial é a etapa mais contemporânea do estudo do próprio constitucionalismo que, historicamente, se apresenta como elemento de limitação do Poder Público. Essa faceta do constitucionalismo que demonstramos neste artigo mediante análise da decisão de Coke e de Marshall. Mais precisamente, o constitucionalismo, em si, na qualidade de movimento político-jurídico, estruturou-se como elemento para assegurar a proteção dos direitos fundamentais e a consequente racionalização e limitação do poder. A única forma de se compreender historicamente o constitucionalismo é como instrumento civilizatório de limitação de poder. Se o poder é absoluto, o constitucionalismo perde sentido, tudo se torna decisão política, imergimos no decisionismo de Carl Schmitt.35 O constitucionalismo surge como fenômeno histórico-político, cuja função consiste em limitar e racionalizar o poder político, estabelecendo todas as regras normativas a partir das quais o Estado Página 9

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pode agir. Ademais, é o constitucionalismo que impõe limites ao poder soberano, mediante a divisão de poderes, estabelecendo como valores primordiais da sociedade a liberdade, igualdade e a preservação dos direitos fundamentais.36 Nessa perspectiva se insere nossa preocupação com as vertentes teóricas contemporâneas que pretendem suprimir o controle difuso de constitucionalidade, uma vez que essa modalidade de fiscalização configura direito fundamental do cidadão. Vale dizer, diante de restrições aos direitos fundamentais do cidadão por algum ato do Poder Público formalmente legal, somente por meio da judicial review seria possível ao particular corrigir a ilegalidade e preservar seu direito fundamental. Ou seja, sem a existência da judicial review, o direito de ação (acesso à justiça) fica seriamente prejudicado. É mister frisar que a atribuição de status de direito fundamental à judicial review tem por escopo impedir que essa garantia fundamental do cidadão (controle difuso de constitucionalidade) seja suplantada pelo próprio Judiciário, principalmente pelo recrudescimento das decisões de efeito vinculante do STF.37 Ademais, a defesa do controle difuso de constitucionalidade, enquanto garantia fundamental do cidadão, justifica-se, principalmente, porque é a judicial review que permite a observância das particularidades de cada caso concreto, ou seja, sem o controle difuso de constitucionalidade o acesso à Justiça (art. 5.º, XXXV, da CF/1988 (LGL\1988\3)) não seria concretizado em sua plenitude. Consideramos incompreensível a cruzada feita por parcela da doutrina e dos julgadores contra o controle difuso de constitucionalidade. Trata-se da forma de controle judicial mais democrática apresentada historicamente, seja por sua legitimidade, seja pela possibilidade de ser provocada por qualquer cidadão. Nessa perspectiva, o escopo do artigo foi resgatar os casos que remontam a gênese do controle difuso de constitucionalidade com o intuito de lançar luzes para o conhecimento desse instituto tão caro ao constitucionalismo, a fim de permitir melhor reflexão sobre dois pontos: (a) a quem interessa suprimir o controle difuso de constitucionalidade?; e (b) quem tem medo do controle difuso de constitucionalidade?

1 Georges Abboud. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Ed. RT, 2011. n. 5.4.3.1, p. 343 et seq. 2 Admitindo ser esse o precedente da judicial review, ver Nicola Matteucci. Organización del poder y libertad: história del constitucionalismo moderno. Madrid: Editorial Trotta, 1998. n. 4, p. 91. Sobre a evolução histórica e procedimental da judicial review, ver: John Anthony Jolowicz. El controle judicial de las leyes en el Reino Unido. La ciência del derecho procesal constitucional. Estudios en homenaje a Héctor Fix-Zamudio en sus cincuenta años como investigador del derecho. Mexico: Marcial Pons, 2008. n. IV, vol. I, p. 798-799. 3 Para consultar a decisão do caso Bonham, ver: John Henry Thomas e John Farquhar Fraser (orgs.). The reports of Sir Edward Coke in thirteen parties. London: Joseph Butterworth and Son, 1826. n. 107a-121a, vol. IV, p. 355-383. Christopher Wolfe destaca que o caso Bonham teve maior influência fora da Inglaterra do que em seu país de origem. Christopher Wolfe. The rise of modern judicial review: from constitutional interpretation to judge-made law. Boston: Littlefield Adams Quality Paperbacks, 1994. n. 4, p. 90-91. 4 Comentando o caso Bonham, ver: Fernando Rey Martínez. Una relectura der Dr. Bonham’s case y de la aportación de Sir Edward Coke a la creación de la judicial review. In: Eduardo Ferrer Mac-Gregor e Arturo Zaldivar Lelo de Larrea (orgs.). La ciencia del derecho procesal constitucional. Estudios en homenaje a Héctor Fix-Zamudio. Mexico: Marcial Pons, 2008. p. 847-866. Nicola Matteucci. Organización del poder y libertad cit., n. 4, p. 91 et seq. Ver ainda: Nicola Matteucci. Breve storia del costituzionalismo. Brescia: Morcelliana, 2010. cap. 3, p. 58. 5 Para uma exposição da doutrina Jenkins, conferir: Fernando Rey Martínez. Una relectura der Dr. Bonham’s case y de la aportación de Sir Edward Coke a la creación de la judicial review cit., n. II, p. Página 10

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852-854. 6 Para maiores detalhes, ver. Fernando Rey Martínez. Una relectura der Dr. Bonham’s case y de la aportación de Sir Edward Coke a la creación de la judicial review cit., n. II, p. 852. 7 Fernando Rey Martínez. Una relectura der Dr. Bonham’s case y de la aportación de Sir Edward Coke a la creación de la judicial review cit., n. II, p. 853. 8 Para relato mais detalhado do caso ver: Fernando Rey Martínez. Una relectura der Dr. Bonham’s case y de la aportación de Sir Edward Coke a la creación de la judicial review cit., n. III, p. 854-855. 9 Fernando Rey Martínez. Una relectura der Dr. Bonham’s case y de la aportación de Sir Edward Coke a la creación de la judicial review cit., n. III, p. 857. 10 Nas exatas palavras de Coke: “The first reason was, that these two absolute, perfect and distinct clauses, and as parallels and therefore the one did not extend to the other; for the second begins, praeterea voluit et concessilv, & c. and the branch concerning fine and imprisonment is parcel of the second clause. 2. The first clause prohibiting the practice of physic, &. Comprefends four certainties: – 1. Certainty of the thing prohibited, sc, practice of physic. 2. Certainty of the time, sc. Practice for one month. 3. Certainty of penalty, sc. 51. 4. Certainty in distribution, sc. One moiety to the King, and the other moiety to the college; and this penalty he who practices physic in London incurs, although be practices and uses physic well, and profitable for the body of man; and on this branch the information was exhibited in the King’s Bench. But the clause to punish delicta in non bene exequendo, &c. on which branch the case the case at bar stands, is altogether uncertain, for the hurt which may come thereby may be little or great, lexe vel grave, excessive or small, &c. and therefore the King and the makers of the act could not, for an offence so uncertain, impose a certaint of the fine, or time of imprisonment, but leave it to the censors to punish such offences, secundum quantilatem delicti, which is in included in these words, per fines, amerciamenta, imprisonamenta corporum suorum, et per alias vias rationabiles et congruas”. John Henry Thomas e John Farquhar Fraser (orgs.). The reports of Sir Edward Coke in thirteen parties. cit., n. 117b, vol. IV, p. 374-375. Fernando Rey Martínez. Una relectura der Dr. Bonham’s case y de la aportación de Sir Edward Coke a la creación de la judicial review cit., n. III, p. 858. 11 Fernando Rey Martínez. Una relectura der Dr. Bonham’s case y de la aportación de Sir Edward Coke a la creación de la judicial review cit., n. III, p. 859. 12 Fernando Rey Martínez. Una relectura der Dr. Bonham’s case y de la aportación de Sir Edward Coke a la creación de la judicial review cit., n. III, p. 859. Ver: Georges Abboud. Discricionariedade: alcance da atuação administrativa e judicial no Estado Constitucional. Tese de doutorado, São Paulo, PUC, 2013. p. 208-210. 13 A definição de repugnant, em dicionário consagrado, é a seguinte: “adj. Inconsistent or irreconcilable with; contrary or contradictory to ‘the court’s interpretation was repugnant to the express wording of the statute’”. Bryan A. Garner (org.). Black’s law dictionary. 7. ed. St. Paul: west Group, 1999. verbete: repugnant. p. 1306. 14 Fernando Rey Martínez. Una relectura der Dr. Bonham’s case y de la aportación de Sir Edward Coke a la creación de la judicial review cit., n. IV, p. 860. 15 Coke destaca que a lei seria contrária à common law, por consequência, deve ser controlada. Verbis: “And it appears in our books, that in many cases, the common law Will (d) controul acts of parliament, and sometimes adjudge them to be utterly void: for when an act of parliament is against common right and reason, or repugnant, or impossible to be performed, the common law Will controul it, and adjudge such act to be void”. John Henry Thomas e John Farquhar Fraser (orgs.). The reports of Sir Edward Coke in thirteen parties cit., n. 118a, vol. IV, p. 375. Fernando Rey Martínez. Una relectura der Dr. Bonham’s case y de la aportación de Sir Edward Coke a la creación de la judicial review cit., n. IV, p. 861. 16 Essa é a leitura que fazemos do caso Bonham. Nicola Matteucci também visualiza nesse caso a origem da judicial review que se formou nos Estados Unidos. Cf. Nicola Matteucci. Organización del Página 11

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poder y libertad cit., n. 4, p. 91 et seq. Em posição intermediária, ver Fernando Rey Martínez. Una relectura der Dr. Bonham’s case y de la aportación de Sir Edward Coke a la creación de la judicial review cit., n. IV, p. 865. 17 Cf. Nicola Matteucci. Breve storia del costituzionalismo cit., cap. 3, p. 59. 18 Nicola Matteucci. Organización del poder y libertad cit., n. 4, p. 91. Ver. John Henry Thomas e John Farquhar Fraser (orgs.). The reports of Sir Edward Coke in thirteen parties cit., n. 118a, vol. IV, p. 375. 19 De se consignar que, entre o final do século XVIII e o início do século XIX, a conformação partidária do sistema político estadunidense era distinta daquela que prevalece na atualidade, baseada na bipolaridade partido democrata – partido republicano. Na verdade, a bipolaridade atual nasce de uma cisão operada exatamente no partido de Jefferson que, naquele tempo, era chamado de partido democrata-republicano. 20 Como relatam Cliff Sloan e David Mckean em The great decision: Jefferson, Adams, Marshall and the battle of the Supreme Court. New York: Public Affairs, Kindle edition. p. 53. “During February 1801, his last month in office, Adams submitted a staggering total of 217 nominations to the Senate, an average of more then 7 per day, every day of that momentous month. The appointments included 93 judicial and legal offices, 53 of which were for the District of Columbia, and 106 military naval positions. Adams was determined to make every possible federal appointment in his final days and hours in office. The ‘Burden upon me in nominating Judges and Consuls and other offices… is and will be heavy’, Adams reported to Abigail. ‘My time will be taken up”. 21 Sobre a relação entre Marshall e Adams, Sloan e Mckean afirmam o seguinte: “Adams relied on one man most of all to help him with this burden [The Midnight Judges – acrescentei] – Secretary of State, an now the newly installed Chief Justice, John Marshall. Marshall was in the thick of the last-minute appointments. Job-seekers and their patrons flooded Marshall with letters as Adams’s representative. Marshall was extraordinarily busy overseeing the logistics of nominations – writing to nominees, preparing an submitting the actual nominations, formalizing the appointments with official commissions, having the commissions delivered to the new office holders” (Cliff Sloan e David Mckean. The great decision: Jefferson, Adams, Marshall and the battle of the Supreme Court, op. cit., p. 53). 22 Sobre o assunto, consultar Cliff Sloan e David Mckean. The great decision: Jefferson, Adams, Marshall and the battle of the Supreme Court, op. cit., em especial o capítulo VIII, sugestivamente intitulado The Firestorm. 23 Federal Judicial History, The judiciary act of 1802 – Historical note 2 Stat. 156. Cf., também, Cliff Sloan e David Mckean. The great decision: Jefferson, Adams, Marshall and the battle of the Supreme Court, op. cit., p. 113-114. Segundo os autores, “the second bill concerning circuit-riding and the Supreme Court schedule (suspending the Supreme Court sessions until the following year)”. 24 Thomas Jefferson. Writings of Thomas Jefferson. Nova York: Derby and Jackson, 1854. p. 178. Disponível on-line, em texto integral. 25 Thomas Jefferson. Memoir, correspondence, and miscellanies, from the papers of Thomas Jefferson. Kindle edition, vol. 4, pos. 30938. 26 Cf. Jon Elster. Ulisses Liberto. Estudos sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições. São Paulo: Unesp, 2009. p. 167. 27 A expressão é de Mirabeu e utilizada por Elster (Cf. Jon Elster. Op. cit., p. 169). 28 Ambos citados por Elster (Cf. Jon Elster. Op. cit., p. 120). Aliás, é importante anotar, que foi Elster quem melhor trabalhou a aproximação entre a ideia de pré-compromisso que aparece na Odisseia de Homero e as modernas Constituições, principalmente aquela que representa a consagração do constitucionalismo norte-americano. Com efeito, no épico de Homero, Ulisses, durante seu regresso a Ítaca, sabia que enfrentaria provações de toda sorte. A mais conhecida destas provações é o Página 12

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“canto das sereias” que, por seu efeito encantador, desviava os homens de seus objetivos e os conduzia a caminhos tortuosos, dos quais dificilmente seria possível voltar. Ocorre que, sabedor do efeito encantador do canto das sereias, Ulisses ordena aos seus subordinados que o acorrentem ao mastro do navio e que, em hipótese alguma, obedeçam qualquer ordem de soltura que ele venha a emitir posteriormente. Ou seja, Ulisses sabia que não resistiria e, por isso, cria uma autorrestrição para não sucumbir depois. Do mesmo modo, as Constituições poderiam ser vistas como as correntes de Ulisses, através das quais o corpo político estabelece algumas restrições para não sucumbir ao despotismo das futuras maiorias (parlamentares ou monocráticas). Todavia, Elster revisitou essa sua construção e a entende, atualmente, apenas parcialmente correta. Isso por uma série de questões que não cabem serem aqui analisadas. Para efeitos do que aqui pretendo encaminhar, entendo continuar correta a ideia de pré-compromissos constitucionais tal qual Elster havia descrito em Ulisses and the Sirens. 29 Cf. Nicola Matteucci. Organización del poder y libertad. Historia del constitucionalismo moderno. Madrid: Trotta, 1998. p. 169. 30 De se lembrar que, com a independência das treze colônias, colocou-se em pauta o debate pela união ou separação de cada um dos territórios. Evidentemente que o problema passava pela afirmação de uma autonomia administrativa de cada uma das colônias. É em 1778, com a ratificação da Constituição pela maioria dos Estados, que se culmina o processo histórico de unificação, ou melhor, de federação das colônias, que fora iniciado desde o congresso de Albany em 1754. 31 Para análise histórica e contemporânea acerca da importância da judicial review em diversos ordenamentos jurídicos, ver: Mauro Cappelletti. The significance of judicial review of legislation in the conteporary world. Ius privatum gentium: Festschrift füt Max Rheinstein zum 70. Geburtstag am 5. Juli 1969. Band I – Rechtsmethodik und internationales recht. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1969. p. 147-164. 32 Cf. Alexis de Tocqueville. A democracia na América. Livro 1. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 159. 33 Cf. Alexis de Tocqueville. Op. cit., p. 169-170. 34 Por todos, Cf. Cláudio Pereira Souza Neto e Daniel Sarmento. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2013. Kindle edition. 35 Ver: Carl Schmitt. Teoría de la Constitución. Madrid: Alianza Editorial, 2006. § 3.º, p. 46-47. 36 Georges Abboud. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais cit., n. 10, p. 473. Maurizio Fioravanti. Constitución de la antigüedad a nuestros días. Madrid: Editorial Trotta, 2007. n. 3.5, p. 132 et seq. Sobre o constitucionalismo como mecanismo de limitação do poder, conferir: Nicola Matteucci. Organización del poder y libertad: história del constitucionalismo moderno. Madrid: Editorial Trotta, 1998. 37 Georges Abboud. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais cit., n. 5.4.3.3, p. 351.

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