A geografia das tradicoes em Niketche Uma historia de poligamia: Mapeamento das tradicoes dentro do livro

May 22, 2017 | Autor: Miriam Matias | Categoria: Mulher, Literatura Moçambicana, Paulina Chiziane
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Miriam Andrea Matías Martínez A geografia das tradições em Niketche: Uma história de poligamia: Mapeamento das tradições dentro do livro Os poetas têm sobre o comum dos mortais a grande vantagem de cultivar, na sua grande lavra de palavras, passados intactos que visitam e tratam para depois distribuir por pequenos trabalhos que nos devolvem a um mundo mais-do que perfeito e entretanto perdido. -Paula Tavares-

Paulina “Pouli” Chiziane nasceu em Manjacaze, no sul de Moçambique, no ano 1955. Ela fez estúdios de linguística na Universidade de Eduardo Modlane, porém, não concluiu o curso. Foi participante ativa do Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO); ela deixou a militância devido à sua desilusão com as ideias do partido depois da revolução. Assim, no ano 1990, estreou o seu primeiro romance, Balada de amor ao vento, no qual trata o tema da mulher numa sociedade poligâmica onde é a rainha, mas, depois, ela trai o rei e é condenada a uma vida de prostituição, doenças e tristezas. Posteriormente, ela publicou mais dois livros, Ventos do apocalipse e O sétimo juramento, nos anos 1993 e 2000, respetivamente. Assim, no ano 2003, lança o livro Niketche: Uma história de poligamia, pelo qual ganha o prêmio José Craveirinha no mesmo ano de publicação, conjuntamente com Mia Couto. Chiziane foi uma das primeiras mulheres em escrever romances em Moçambique, continuando a tradição da escritura feminina da poetisa Noémia de Sousa. Juntamente com Lília Momplé, é uma das autoras mais importantes do cenário literário do país africano. O seu terceiro livro, Niketche, tem sido estudado, sobre tudo, na perspectiva dos estudos de género, especialmente no olhar feminino. Este fato não causa nenhuma surpresa no espetador, já que a história narra a vida de Rami; mulher que mora numa cidade do país, quase com certeza Maputo, mesmo que não é especificado no livro, e que é obrigada a viver baixo o jugo do seu marido infiel. O romance está relatado pela própria Rami, o que faz uma narração do tipo intra-homodiegética, e na qual podemos saber tudo o que se passa na cabeça da nossa protagonista. Este tipo de narrador dá uma especial focalização dos fatos, já que podemos saber tudo o que ela pensa, sente, experimenta e interioriza dos acontecimentos que vão se presentando no livro. Assim, o relato de Rami é o caminho que 1

ela percorre para ganhar de novo o seu marido “polígamo”, junto com a sua luta com as outras mulheres, com a tradição, com a sociedade moçambicana e com os seus mesmos paradigmas. O romance aprofunda sobre a mulher e o seu papel na cultura de Moçambique, assim como também na forma em que ela reage perante as mudanças e as influências dos outros povos. Quais são estas influências que marcaram a história de Moçambique e de que forma se representam dentro do romance? Os primeiros povos que chegaram a Moçambique foram os árabes e os suaílis; eles instalaram uma rede de comércio para poder transportar mercadorias. Tempo depois, cerca de 1500, os portugueses apoderaram-se desses pontos comercias e estabeleceram povoações dentro do território moçambicano. Se bem durante este período a hegemonia dos portugueses é clara, houve algumas interferências dos ingleses e os franceses dentro do aspecto comercial do país. Assim passaram mais ou menos 480 anos, onde houve escravidão, desigualdade e problemas sociais, tentativas de independência, até que, no dia 25 de junho de 1975, conseguiram a sua libertação nacional graças ao movimento do Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), que foi o mais importante dentro do país. Após a proclamação da independência, Samora Machel foi o primeiro presidente do país, o qual adotou princípios marxistas e socialistas, como a maioria dos países lusófonos recémlibertados. Porém, essa paz durou pouco, estalou logo uma guerra civil que iria ter uma duração de dezessete anos, de 1977 até 1994. O principal conflitou foi justamente entre os partidos FRELIMO, de tendências socialistas, e a sua contraparte, a Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), com influências capitalistas. O sucessor de Machel, Joaquim Chissano, o qual tomou o poder no ano 1986, mudou completamente as políticas que o precedente tinha estabelecido, edificando assim um país mais inclinado para as tendências globais monetárias e culturais do capitalismo. Dentro do âmbito literário, não foi senão até 1946 que podemos referir-nos a uma literatura nacional, inaugurada por O livro da dor de José Albasini. No período de 1945-48 até 1963 é o que o estudioso da cultura africana, Pires Laranjeira, chama de período de formação da literatura moçambicana; onde se podem observar as influências do neorrealismo e da negritude, movimento que foi herdado pela África francófona aos seus pares lusófonos. Assim é neste período que começa a restauração das tradições africanas 2

dentro das letras, isto como o aponta Laura Cavalcante, é o resultado da tentaiva de contraarrestar a imposição das culturas europeias: “What has resulted is that the ancient tradition is used as means of subverting the aesthetic traditions of imposed European cultures” 1. Este recurso parecia tentar plantar uma semente para criar um novo futuro dentro, não só da literatura, mas também na sociedade: “the past is invoked as a kind of seed planted to help grow the present and the future”2. Essa característica é muito mais marcada no período que Laranjeira assinala como o período de desenvolvimento, que abrange do ano 1964 até 1975; representado pela luta de libertação. Nessa época existia o desejo de recuperar a história e as tradições gloriosos de um povo que queria ser independente: “There exists a kind of desire to return to the locale of the culture, perceived as the aglutinating force capable of promoting the histotical liberation movement”3. Esta ideia de voltar para o passado não foi somente nesses primeiros períodos da literatura, esse é um tema até agora constante na maioria das obras da lusofonia africana. Os escritores da atual Moçambique ainda preocupam-se por esse passado puramente africano que perderam após a colonização e a guerra civil, como bem aponta Laura Cavalcante: “the greatest concerns of writers [...] is to stage the lives that lend vitality to the spaces and to the myths and rites that sustain existence”4, porém eles têm de incluir o que acontece agora na realidade africana, o que muda completamente a sua percepção da sociedade. Esta sociedade está caracterizada pelas diferentes influências que provêm da história do país, de acordo com Stuart Hill [apud Laura Cavalcante], esta nova sociedade parecia ser uma massa sem forma que representa uma pobreza social, degradando a situação com as influências dos demais países: what appear on the present-day scene, are forms of destroyed subsistence with the masses structurally adjusted to a devastating, contemporary poverty [...] Such a state of affairs is infinitely aggravated by those systematic attacks and by the greed of new imperialisms for which the natural resources of these new countries are the object of predatory behavior and the source of avarice, and this without minimizing issues generated by their own correlations of internal forces5.

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Laura Cavalcante Padilha, “Tradition and the Effects of the New in Modern African Fictional Cartography” in Research in African Literatures, 38: 1, (2007), p. 106. 2 Ibidem, p. 107. 3 Ibidem, p. 108. 4 Ibidem, p. 111. 5 Ibidem, p. 110.

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Como também aponta Josina Vasco Quive na sua tese de dissertação: “A literatura africana, em particular a moçambicana, tem procurado reflectir [sic] sobre as convergências e as contradições, as tensões e os conflitos que marcam o xadrez social”6. É dentro desta literatura e sociedade que se coloca a escrita de Paulina Chiziane. Dentro da sua narrativa, ela incorpora esta tradição dos povos moçambicanos que representam ao país: “Chiziane persists, by means of the narrations of her fictional characters, especially the females’ one, in nurturing her works with remembrances from the past”7. Mas, também conjunta o presente que estas mulheres, e os povos em geral, têm de afrontar numa realidade bombardeada por referentes externos e internos: “we encounter the imagistic representation of the deep crisis of the historical subjects’ cultural identity [...] with respect to the [...] Mozambican and womanish versions of that society’s distinctiveness”8. Dentro de Niketche, representam-se as diferentes tradições do país moçambicano: “Niketche apresenta-nos a riqueza e a diversidade de Moçambique”9, tudo isto através dos olhos das personagens femininas: “O universo moçambicano aparece, portanto, apresentado através da descrição e convivência feita pelas personagens femininas, revelando, assim a construção e o conflito permanentes dos diversos tempos históricos”10. Primordialmente há dois eixos que dominam o livro: a região norte e a região sul. As tradições podem ser compreendidas como “os padrões de crenças, valores, significados, formas de comportamento, conhecimento e saber, passados de geração em geração pelo processo de socialização”11. As tradições têm de ser entendidas como um “mapa”, um “repertório de significados” que não pode ser considerado um conjunto estático e que não pode ser mudado, e que ainda implicam um elemento de significado e significação12. Assim, o mapa do romance divide-se principalmente nos dois mencionados paralelos. A passagem que exemplifica melhor as duas forças do país é quando Rami consulta a conselheira do amor. Ela é uma mulher originária do norte do país, especificamente do 6

Josina Vasco Quive, A representação da poligamia em Niketche: Um pretexto para o questionamento da tradição e modernidade moçambicanas, Dissertação de licenciatura inédita, Universidade Eduardo Modlane, 2005, p. 12. 7 Laura Cavalcante, op. cit., p. 113. 8 Ibidem, p. 114. 9 Josina Vasco Quive, op. cit., p. 17 10 Idem. 11 Ibidem, p. 12. 12 Laura Cavalcante, op. cit., p. 106.

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povo macua, e diz saber tudo sobre o amor. Assim podemos saber um pouco mais dos dois polos do país. Primeiramente, a protagonista faz uma espécie de enumeração das artes que ela teve de aprender aos quinze anos, começando com o enxoval até os cursos de cozinha e tricô. Depois, Rami narra como foram os preparativos para o seu casamento (rituais do sul): “—Tinha aulas na igreja, com os padres e as freiras. Acendi muitas velas e fiz muitas rezas”13. Nesta passagem podem observar que a voz pareceria ser poética, parece ter certo ritmo e rima que dão ao diálogo de Rami um tom de cântico e parece apelar não só a vista, mas também ao ouvido do leitor, tudo isto graças às assonâncias e os ecos das terminações “-as” de “aulas”, “freiras”, “velas”, “muitas” e “rezas”. Assim, foi-lhe inculcado o valor da obediência dentro do matrimônio. Ato seguido, a conselheira a questiona sobre os ensinamentos de amor e sexo, porém, Rami responde que ela nunca teve nenhuma dessas instruções. Na cultura do norte, como bem o aponta a macua, a personagem principal é considerada uma criança, já que não aprendeu sobre a matéria: “— Então não és mulher — diz-me com desdém —, és ainda criança. Como queres tu ser feliz no casamento, se a vida a dois é feita de amor e sexo e nada te ensinaram sobre a matéria?”14. Dentro da conversa, principiam as comparações e as enumerações do norte e do sul do país, sobretudo nas diferentes concepções sobre a mulher e o matrimônio. A seguir apresento uma lista que surgiu do mesmo texto para contrastar as visões dos dois territórios15: Norte

Sul

Homem diz: querido amigo, em honra da Homem diz: a mulher é meu gado, minha nossa amizade e para estreitar os laços da fortuna. Deve ser pastada e conduzida com nossa fraternidade, dorme com a minha vara curta. mulher esta noite. As mulheres enfeitem-se, cuidam-se.

As mulheres vestem cores tristes, pesadas.

A mulher é luz e deve ser luz ao mundo.

As mulheres têm o rosto sempre zangado, cansado, e falam aos gritos, imitando os estrondos da trovoada.

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Paulina Chiziane, Niketche: uma história de poligamia, Lisboa: Caminho, 3ª ed., 2004, p. 37. (Versão eletrônica) 14 Idem. 15 Ibidem, p. 38. Todas as referencias da listagem aparecem nesta mesma página, pelo qual não serão assinaladas com nota de roda pé.

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As mulheres são leves e voam.

As mulheres usam lenço na cabeça sem arte nem beleza, como quem amarra um feixe de lenha. Vestem-se porque não podem andar nuas. Sem gosto, sem jeito, sem arte.

Porém, existem ainda mais aspetos que diferenciam o sul do norte. A arte de sedução é diferente: no norte utilizam-se as cores, a natureza, os sentidos e os olhos para prender ao homem, juntamente com a cozinha e a cama; no sul, os homens são seduzidos pela pele rugosa e pela obediência e preparação das mulheres para o casamento. Esses ensinamentos, no norte, não se limitam às mulheres, os homens também recebem lições de como tratar à mulher: A primeira filosofia é: trata a mulher como a tua própria mãe. No momento em que fechares os olhos e mergulhares no seu voo, ela se transforma na tua criadora, a verdadeira mãe de todo o universo. Toda a mulher é a personificação da mãe, quer seja esposa, a concubina, até mesmo uma mulher de programa. O homem deve agradecer a Deus toda a cor e luz que a mulher dá, porque sem ela a vida não existiria. Um homem de verdade não bate na sua mãe, na sua deusa, na sua criadora16.

Neste diálogo da conselheira, podem-se observar marcas da linguagem e da oralidade do texto, como o uso de frase, “Toda a mulher”, no lugar de “Toda mulher”, que seria o uso prescritivo. Também se presenta o uso de metáforas para ressaltar a importância e a simbologia que tem a mulher para o homem do sul. Há, então, dois pilares que rijem cada uma das zonas: para o norte, os ritos de iniciação; para o sul, o lobolo. Na primeira região, se as pessoas não têm esses ritos, elas não são gente, essa tradição equivale ao baptismo cristão17. Na segunda, se o homem não lobola a mulher, ele perde os seus direitos18. Essas duas instituições são as que [r]esistiram ao colonialismo[,] [a]o cristianismo e ao islamismo[,] [r]existiram à tirania revolucionária. Resistirão sempre. Porque são a essência do povo, a alma do povo. Através delas há um povo que se afirma perante o mundo e mostra que quer viver do seu jeito19.

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Ibidem, p. 42. Ibidem, p. 48. 18 Idem. 19 Ibidem, p. 49. 17

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Além desta cena do livro, podemos encontrar nas amantes as distinções entre o norte e o sul. Todas as amantes, com exceção de Julieta, ou pelo menos nunca é mencionado no livro, são do norte do país. Luísa é de Zambézia, um povoado no norte de Moçambique; Saly é maconde, povo localizado no nordeste; e Maúa Sualé é macua, igual que a conselheira. Aspecto enfatizado sobre tudo na figura da Luísa. Rami imediatamente depois de vê-la, sabe que é xingondo (do norte do país), pela forma em que ela veste e as suas expressões: Ela tem uma voz meiga, um sorriso de lua. Tem os cabelos desfrisados como todas as mulheres pretas de bom estatuto. Tem as unhas pintadas de vermelho-tomate. O vestido dela é de seda e tem cor de açafrão e de colorau, cores de mulheres nortenhas. Ela deve ser xingondo. A sua pele tem o perfume do caju ou do jambalau. No mover dos lábios a doçura do beijo. Voz de flauta, de brisa, canto de cotovia. Gestos suaves como passos de gato. Como ela é bela, meu Deus, como é elegante. O homem, sexo fraco nas coisas da carne, perde-se diante de tamanha formosura20.

Rami utiliza metáforas como “um sorriso de lua” ou “voz de flauta” para destacar que Luísa é uma mulher doce, com uma beleza incomparável, e mostrar também certo respeito, ou inveja, da rival. Quando a amante conversa com Rami, ela expõe a realidade do lugar de onde ela vem. Ela disse que na sua terra não há homens novos, só velhos e crianças 21, a sua mãe nunca conseguiu um marido só para ela; lá, homem é pão, é hóstia, fogueira no meio de fêmeas, para as mulheres, quando elas têm um filho com o homem, consolida-se o matrimônio; poligamia é o mesmo que partilhar recursos escassos, pois deixar outras mulheres sem cobertura é crime que nem Deus perdoa. Assim, podemos observar qual é o conceito de poligamia para as mulheres do norte. Em contraste, no capítulo que conta a história da Tia Maria, podemos observar como é a poligamia para o sul. Ela foi encomendada ao rei antes de nascer, devido às dívidas do pai. Assim, aos dez anos, casou-se pela primeira vez. Ela descreve que foi a vigésima quinta mulher do rei e que a organização poligâmica era regida pela democracia e a ordem. Todas as mulheres tinham os mesmos direitos, tanto nas propriedades como na vida sexual e amorosa. Tema que é também tratado no capítulo 11 do livro, onde Rami 20 21

Ibidem, p. 55. Ibidem, p. 57. A seguir, todo ao que se faz referência está nesta mesma página.

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reflexiona sobre se converter o seu lar “pseudo-poligámico” para a “real” poligamia. Ela faz a comparação de como, no passado, no norte, especificamente os macuas, não eram polígamos, mas com a chegada do islamismo, eles converteram-se. Lado oposto, no sul, existia a poligamia, porém, com a inspiração do cristianismo, viraram monógamos: Conheço um povo sem poligamia: o povo macua. Este povo deixou as suas raízes e apoligamou-se por influência da religião. Islamizou-se. Os homens deste povo aproveitaram a ocasião e converteram-se de imediato. Porque poligamia é poder, porque é bom ser patriarca e dominar. Conheço um povo com tradição poligâmica: o meu, do sul do meu país. Inspirado no papa, nos padres e nos santos, disse não à poligamia. Cristianizou-se. Jurou deixar os costumes bárbaros de casar com muitas mulheres para tornar-se monógamo ou celibatório22. Dentro do discurso de Rami, se pode observar um polissíndeto com a frase “Conheço um povo”, que ajuda à comparação dos dois polos e destacar as suas diferenças. Também podemos observar as influências do cristianismo e o islamismo, mas isso será tratado no texto um pouco mais para frente. Esta rivalidade é constante durante todo o texto, destacando sempre o que é o sul e o que é o norte, e como as mulheres de cada uma das regiões percebem às outras: Homem do sul quando vê mulher do norte perde a cabeça. Porque ela é linda, mthiana orera. Porque sabe amar, sabe sorrir e sabe agradar. Mulher do norte quando vê homem do sul perde a cabeça porque tem muita garra e tem dinheiro. O homem do norte também se encanta com a mulher do sul, porque é servil. A mulher do sul encanta-se com o homem do norte porque é mais suave, mais sensível, não agride. A mulher do sul é económica, não gasta nada, compra um vestido novo por ano. A nortenha gasta muito com rendas, com panos, com ouro, com cremes, porque tem que estar sempre bela. É a história da eterna inveja. O norte admirando o sul, o sul admirando o norte. Lógico. A voz popular diz que a mulher do vizinho é sempre melhor que a minha23.

Se bem fica claro que há uma marcada distinção entre as crenças e tradições do sul e o norte, é importante assinalar que existem rasgos característicos das duas regiões respeito ao homem. Estes são colocados no texto na cena da conselheira, no momento em que elas conversam sobre as tradições de cada região. Enumeram-se aqui todas as características e comportamentos similares das duas zonas24: 22

Ibidem, p. 94. Ibidem, pp. 38-39. 24 Ibidem, p. 37-38. Todos os trechos são dos diálogos das personagens. 23

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os tabus da menstruação existem em todo o território;



o ovo não pode ser comido pelas mulheres porque senão nascem filhos carecas;



os mitos que aproximam as meninas do trabalho doméstico e afastam os homens do pilão, do fogo e da cozinha para não apanharem doenças sexuais, como esterilidade e impotência;



os hábitos alimentares que obrigam as mulheres a servir aos maridos os melhores nacos de carne, ficando para elas os ossos, as patas, as asas e o pescoço;



as mulheres são culpadas de todos os infortúnios da natureza; quando não chove, é culpa delas, quando a cheias, é culpa delas, quando há pragas e doenças, é culpa delas.

Assim, se pode ver que as tradições e atitudes que são comuns em todo o território, sobre tudo aquelas relacionadas com a superioridade do homem. Todas estas tradições derivam-se das mesmas crenças africanas, mas também estão presentes outras influências externas e internas: o cristianismo, trazido pelos portugueses; o islamismo, derivado dos árabes; a ocidentalização, ocasionada pela introdução do capitalismo no país; as mesmas tradições africanas, sem serem especificamente do norte o do sul; e, em certa medida, a guerra, consequência do passado. Irene Marques, num estudo de género, assinala que: The novel also offers a profound denouncement of foreign cultural values that are detrimental to Mozambican women’s condition, values that have been brought by the Portuguese or Islamic colonizers and the different postcolonial orders, be they the socialist Frelimo government or the neoliberalism adopted after 1994. Just like many Mozambican traditions, Western traditions are accused of having “constructed” the woman as an inferior being, a being dependent on and descendent from men, a being that cannot (should not) enjoy her sexuality the same way men do, a being who must restrain the “life” of her body. Rami frequently names the Bible as an intensely patriarchal document that “naturalizes” women’s inferiority and accuses the traditional Christian monogamist traditions of being unjust, for they discriminate against children born out of wedlock by denying them fatherhood and considering them social outcasts. If at times the narrator of the novel seems to associate the pronounced patriarchy of Southern Mozambique with colonization and Christianity a great deal, she nuances it with the detailed description of

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precolonial (precapitalist) Southern African (Mozambican) traditions that are also very oppressive to women25.

As influências cristãs podem ser denotadas no discurso de Rami desde quase o começo do romance pela frase “Só o corpo de cristo é que se espreme em gotas do amanho do mundo para saciar o universo de crentes na comunhão de sangue”26. Rami também pede a Deus que a ajude com o problema que enfrenta com o marido: “Deus meu, socorre-me. Aconselha-me. Protege-me. Diz-me que é o amor segundo a tua doutrina”27, a referência ao Deus cristã é recorrente dentro de toda a narração. De igual forma, de novo no trecho da conselheira podemos observar estas outras tradições; o pai da protagonista acredita no cristianismo, “o meu pai é um cristão ferrenho, de resto a pressão do regime colonial foi muito mais forte no sul do que no norte”28. O que, mais uma vez, denota as diferenças do sul e do norte, agora, respeito às influências das ideias externas. Também se faz uma referência, no capítulo 9, para a Bíblia e a poligamia, assinalando que os grandes patriarcas do Antigo Testamento também possuíam mais duma esposa: “Abraão, Isac, Jacob, foram polígamos”29. De fato, Rami quer escrever uma nova bíblia com um Adão e muitas Evas e ter uma deusa que escute as orações das suas filhas, o que já descreve uma reinvenção das tradições. Há também a influência do islamismo, que já foi assinalado com anterioridade no contraste das poligamias nas diferentes regiões. Mas, também é destacado pelo uso da palavra “harém” em diferentes passagens: “Rainha dentro de um harém, Tia Maria? — pergunto arrepiada imaginando os haréns das mil e uma noites, com restrições, eunucos e essas coisas”30. Assinalando também a influência do orientalismo desse livro em especial; que é tratado de novo no capítulo 13, quando fazem referência a Ali Babá e os quarenta ladrões. A ocidentalização é destacada em bastantes ideias sobre o amor, como quando Rami diz que pelo amor se luta31; quando ela explica que “dou golpes tão valentes como os dos

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Irene Marques, “Confused ‘Slaves’ of Many Traditions: The Search for the Freedom Dance in Chiziane's Niketche: A Tale of Polygamy” In Research in African Literatures, 41: 2, (2010), p. 142. 26 Paulina Chiziane, op. cit., p. 21. 27 Ibidem, p. 33. 28 Ibidem, p. 39. 29 Ibidem, p. 74. 30 Ibidem, p. 73. 31 Ibidem, p. 21.

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filmes de kung-fu”32, que evidencia que a protagonista assiste esse tipo de filmes, ou pelo menos conhece a referência; o gosto pelas peles claras, exemplificado pela fixação de Tony com Eva, a nova mulher mulata; e a mesma mudança dos valores virados para a importância de possuir dinheiro e estatuto. As tradições africanas, sem especificar a origem, são colocadas no livro com o canto e dança de Rami, as superstições de mau augúrio da quebra do vidro por Betinho, as crenças das vizinhas nos mudjiwas, espíritos que perseguem as esposas e os maridos mesmo que estejam mortos, o uso do xitique, poupança tradicional, e quando ela vai com o mercador de sortes a procurar uma magia que a ajude com o problema do marido. E, no final, a guerra é mencionada muito pouco, especificamente no começo do livro na referência: “Um estrondo ouve-se do lado de lá. Uma bomba. Mina antipessoal, Deve ser a guerra a regressar outra vez”33, e quando Tony serviu na guerra. Porém há de apontar que existem outras influências dentro do texto, como a das seitas religiosas de John Malanga, na qual Rami incorpora-se no capítulo 8, e a do feminismo, que além de ser implícitas na mudança das mulheres participes do texto, é explícita quando colocam a frase de Simone de Beauvior no seguinte trecho: “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”34. Todas as influências aqui listadas têm uma importante consequência dentro do texto, especificamente em Rami, que sofre uma transformação depois de coletar todas estas informações sobre o que há espalhado dentro do território, como o assinala Irene Marques: Rami demonstrates a complex and multilayered view of the many historical aspects affecting women’s conditions in her country. She is fair in the attribution of guilt when it comes to patriarchy. And indeed it must be acknowledged that if colonization did worsen African women’s situation in many ways, it also brought some benefits, and furthermore, that patriarchy was already the norm in Southern African societies.35

Porém, este fato não só significam benefícios, mas também causam uma confusão dentro do que é a sociedade moçambicana, “Here we see how the invading order imposes a value system that profoundly destabilizes the existing Mozambican familial, gender, and social dynamics”36. Isso pode observar-se justamente no trecho quando Rami mistura as

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Ibidem, p. 24. Ibidem, p. 11. 34 Ibidem, p. 37. 35 Irene Marques, op. cit., p. 142. 36 Idem. 33

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tradições cristãs com a poligamia e quando quer criar uma deusa, companheira do Deus cristã, para as mulheres, ou na “recriação” da poligamia pela sogra e as tias velhas. Assim, reinventam-se as tradições e criam um sincretismo que junta um pouco de cada influência: What we can also see here is that traditions are re-invented at times of distress, they are invoked by the family women, who even though they do not remember them well, try to “rescue” them from a distant past. These traditions are not in fact the original traditions but rather traditions remembered/rescued (recreated) through the “eye” of the collective memory, and very important, also traditions that have been suppressed by foreign invading cultural orders and now re-emerge as an affirmation of a people’s unique identity and culture—because it is one thing to embrace something by one’s own will and quite another to be forced to embrace it and to be told that one’s own ways of life are barbaric and inferior and must thus be replaced by the “proper” ones, which is what the various invading orders did in Mozambique37.

Assim, a sociedade no romance presenta-se como uma nuvem de barulhos que se originam de diferentes frentes: “aimed at denouncing the corrosion of the history of the former colony and of the postcolonial construction of a nationality in the utopian clef originally conceived of in revolutionary times”38. Porém, não todo é negativo dentro desta nuvem, há figuras que assimilam estas mudanças para criarem novas identidades, exemplificadas nas personagens de Vitor, o amante de Rami e Luísa, e Eva, a nova amante de Tony. Vitor é o símbolo do homem “renovado” depois de ter uma má experiência com a sua antiga esposa, ele agora é carinhoso e preocupa-se com o bem-estar da mulher, sem importar que é um homem do sul. Eva, por outra parte, é a representação da nova mulher moçambicana; ela é mulata, tem dinheiro e tem um emprego onde é chefe de homens. Portanto, o romance, como define Josina Vaco Quive, “trata-se de uma obra que faz a descrição de uma dicotomia coexistente no mesmo mundo, ou seja a tradição e modernidade que funcionam como uma arena entrelaçada que descreve a interacção [sic] dos fenómenos culturais da sociedade moçambicana”39. Como conclusão, se pode assinalar que essa mistura de tradições sim cria uma confusão e uma crise dentro da realidade moçambicana, mas, é assim agora tarefa dessa sociedade assimilar o passado com o presente para poder criar um novo futuro com uma sociedade definida com as suas próprias tradições, sejam externas ou internas; não sem 37

Ibidem, p. 146. Laura Cavalcante, op. cit., p. 114. 39 Josina Vasco Quive, op. cit., p. 28; 38

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destacar que todas essas características externas e internas fazem a uma nação muito mais rica e pluricultural. Esta mudança sendo muita parecida com o que a mesma personagem de Rami fez no seu processo de compenetração com as outras tradições.

Bibliografia direta: CHIZIANE, Paulina. Niketche: uma história de poligamia, Lisboa: Caminho, 3ª ed., 2004. (Versão eletrônica) MARQUES, Irene. “Confused ‘Slaves’ of Many Traditions: The Search for the Freedom Dance in Chiziane's Niketche: A Tale of Polygamy” In Research in African Literatures, 41: 2, (2010), p. 133-159. PADILHA, Laura Cavalcante. “Tradition and the Effects of the New in Modern African Fictional Cartography” in Research in African Literatures, 38: 1, (2007), p. 106 –118. QUIVE, Josina Vasco. A representação da poligamia em Niketche: Um pretexto para o questionamento da tradição e modernidade moçambicanas, dissertação de licenciatura inédita, Universidade Eduardo Modlane, 2005. Bibliografia indireta: PIRES, Laranjeira. Literaturas Africanas de expressão portuguesa, Luanda: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1989. Moçambique,

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