A Geografia no Tempo de novos conhecimentos

July 19, 2017 | Autor: D. Silva | Categoria: Geography
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Descrição do Produto

Terra Livre

A Geografia no Tempo de Novos Conhecimentos

associação dos geográfos brasileiros

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Associação dos Geógrafos Brasileiros Diretoria Executiva Nacional Gestão 2006/2008

Presidente Edvaldo César Moretti (AGB - Dourados/MS)

Vice Presidente Manoel Calaça (AGB - Goiânia/GO)

Primeiro Secretário Jones Dari Goettert (AGB - Dourados/MS)

Segundo Secretário Zeno Soares Crocetti (AGB - Curitiba/PR)

Primeiro Tesoureiro Alexandre Bergamin Vieira (AGB - Presidente Prudente/SP)

Segundo Tesoureiro Victor A. de Souza Junior (AGB - João Pessoa/PB)

Coordenação de Publicações Antonio Thomaz Junior (AGB - Presidente Prudente /SP) Ana Paula Maia Jansen (AGB - Rio Branco/AC) José Alves (AGB - Rio Branco/AC) José Messias Bastos (AGB - Florianópolis/SC) Sônia M. R. P. Tomasoni (AGB - Salvador/BA)

Representação junto ao Sistema CONFEA/CREA Titular: Rodrigo Martins dos Santos (AGB - São Paulo/SP) Suplente: Cristiano Silva da Rocha (AGB - Porto Alegre/RS)

Representação junto ao Conselho das Cidades Arlete Moyses Rodrigues (AGB - São Paulo/SP)

Correio eletrônico: [email protected] Página na internet: http://www.agb.org.br

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ISSN 0102-8030

Terra Livre

Publicação semestral da Associação dos Geógrafos Brasileiros

ANO 23 – Vol. 2 NÚMERO 29

Terra Livre

Presidente Prudente Ano 23, v. 2, n. 29

p. 1-326

Ago-Dez/2007

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TERRA LIVRE Conselho Editorial Adauto de Oliveira Souza (UFGD) Ailton Luchiari (USP) Aldomar Arnaldo Rückert (UFRGS) Alexandrina da Luz (UFS) Álvaro Luiz Heidrich (UFRGS) Ana Fani Alessandri Carlos (USP) Ângela Massumi Katuta (UEL) Antonio Carlos Vitte (UNICAMP) Antonio Nivaldo Hespanhol (UNESP/Pres. Prudente) Arlete Moysés Rodrigues (UNICAMP) Arthur Magon Whitacker (UNESP/Pres. Prudente) Beatriz Ribeiro Soares (UFU) Bernadete C. Castro Oliveira (IGCE/UNESP) Bernardo Mançano Fernandes (UNESP/Pres. Prudente) Charlei Aparecido da Silva (UFGD) Diamantino Alves Correia Pereira (PUC/SP) Dirce Maria Antunes Suertegaray (UFRGS) Douglas Santos (PUC/SP) Eliseu Saverio Sposito (UNESP/Pres. Prudente) Flaviana Gasparotti Nunes (UFGD) Francisco Mendonça (UFPR) Horácio Capel Sáez (Universidade Barcelona/Espanha) João Cleps Júnior (UFU) João Edmilson Fabrini (UNIOESTE/M. C. Rondon)

Jones Dari Goettert (UFGD) Jorge Montenegro Gómez (UFPR) José Daniel Gómez (Universidade de Alicante/Espanha) Larissa Mies Bombardi (USP) Marcelino Andrade Gonçalves (UFMS/Nova Andradina) Marcelo Dornelis Carvalhal (UNIOESTE/M. C. Rondon) Marcelo Rodrigues Mendonça (UFG/Catalão) Márcio Cataia (IG/UNICAMP) Marcos Bernardino de Carvalho (PUC/SP) Maria Franco García (UFPB) Maurício A. de Abreu (UFRJ) Mirian Cláudia Lourenção Simonetti (UNESP/Marília) Paulo Roberto Raposo Alentejano (UERJ/São Gonçalo) Pedro Costa Guedes Vianna (UFPB) Regina Célia Bega dos Santos (IG/UNICAMP) Ricardo Antunes (UNICAMP) Rogério Haesbaert da Costa (UFF) Selma Simões de Castro (UFG) Sérgio Luiz Miranda (UFU) Silvio Simione da Silva (UFAC) Valéria De Marcos (USP) Virgínia Elisabeta Etges (UNISC) Wiliam Rosa Alves (UFMG) Xosé Santos Solla (Univ. Santiago de Compostela/Espanha)

Colaboradores Alexandre Bergamin Vieira (UNESP - Presidente Prudente/SP) Edvaldo Cesar Moretti (UFGD - Dourados/MS) Editor responsável e editoração: Antonio Thomaz Júnior (UNESP/ Pres. Prudente/SP) Co-Editor: Gilson Kleber Lomba (AGB - Dourados/MS) Formatação eletrônica: Alexandre Aldo Neves (UFGD – Dourados/MS) Revisão de Espanhol: Jorge Montenegro Gómez (UFRP - Curitiba/PR) Revisão de Inglês: Jarbas Francisco Alves Arte da capa: Gilson Kleber Lomba Tiragem: 1.000 Impressão: Copy Set (Av. Cel. José Soares Marcondes, n. 798, Presidente Prudente-SP [email protected]) Endereço para Correspondência: Associação dos Geógrafos Brasileiros (DEN) Av. Prof. Lineu Prestes, 332 - Edifício Geografia e História - Cidade Universitária CEP: 05508-900 - São Paulo / SP - Brasil - Tel. (0xx11) 3091 - 3758 ou Caixa Postal 64.525 - 05402-970 - São Paulo / SP e-mail: [email protected] Ficha Catalográfica Terra Livre, ano 1, n. 1, São Paulo, 1986. São Paulo, 1986 – v. ils. Histórico 1992/93 – 11/12 (editada em 1996) 1994/95/96 – interrompida 1986 – ano 1, v. 1 1997 – n. 13 1987 – n. 2 1998 – interrompida 1988 – n. 3, n. 4, n. 5 1999 – n. 14 1989 – n. 6 2000 – n. 15 1990 – n. 7 2001 – n. 16, n. 17 10. Geografia – Periódicos 2002 – Ano 18, v.1, n. 18; v.2, n. 19 10. AGB. Diretoria Nacional 2003 – Ano 19, v.1, n. 20; v. 2, n. 21 2004 – Ano 20, v.1, n. 22; v. 2, n. 23 1991 – n. 8, n. 9 2005 – Ano 21, v.1, n. 24 1992 – N. 10 2005 – Ano 21, v. 2, n. 25 Revista Indexada em Geodados 2006 – Ano 22, v. 1, n. 26 2006 – Ano 22, v. 2, n. 27 www.geodados.uem.br 2007 – Ano 23, v. 1, n. 28 CDU – 91 (05) ISSN 0102-8030 2007 – Ano 23, v. 2, n. 29 Solicita-se permuta / Se solicita intercambio / We ask for echange

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Sumário EDITORIAL

ARTIGOS DESAFIOS

À ANÁLISE DO ESPAÇO URBANO: INTERPRETANDO

TEXTOS MARGINAIS DO DISCURSO GEOGRÁFICO

15-28

Almir Nabozny Joseli Maria Silva Marcio José Ornat

O ESTUDO GEOGRÁFICO DOS ELEMENTOS CULTURAIS CONSIDERAÇÕES PARA ALÉM DA GEOGRAFIA CULTURAL

29-50

Cláudio Benito Oliveira Ferraz

ESTUDOS MIGRATÓRIOS NA MODERNIDADE E NA PÓSMODERNIDADE: DO ECONÔMICO AO CULTURAL?

51-74

Marcos Leandro Mondardo

AS DOENÇAS COMO OBJETO DE ESTUDO NO CONTEXTO GEOGRÁFICO: LONDRINA 1932/1943

75-94

Márcia S. de Carvalho

O CAMPO BRASILEIRO NO CENÁRIO DA MATRIZ ENERGÉTICA RENOVÁVEL: NOTAS PARA UM DEBATE

95-114

Eliane Tomiasi Paulino

DESENVOLVIMENTO LOCAL COMO SIMULACRO DO ENVOLVIMENTO: O NOVO-VELHO SENTIDO DO DESENVOLVIMENTO E SUA FUNCIONALIDADE PARA O SISTEMA DO CAPITAL

115-132

Josefa Bispo de Lisboa Alexandrina Luz Conceição

A ESCALA GEOGRÁFICA: NOÇÃO, CONCEITO OU TEORIA?

133-142

Everaldo Santos Melazzo Cloves Alexandre Castro

POSSIBILIDADES EPSTEMOLÓGICAS E PEDAGÓGICAS DA GEOGRAFIA HUMANA EM SEU TRONCO HUMANÍSTICO-CULTURAL

143-162

Marcos Antonio Correia

IDENTIDADE TERRITORIAL QUILOMBOLA - UMA ABORDAGEM GEOGRÁFICA A PARTIR DA COMUNIDADE CAÇANDOCA (UBATUBA/SP )

163-180

Mária Tereza Paes Luchiari Isabel Araujo Isoldi

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APROPRIAÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO E TERRITORIALIDADE: O DESEJO E A ESPERANÇA PELOS INTERSTÍCIOS

181-206

Ulysses da Cunha Baggio

VERTENTES ÉTICAS E REGÊNCIA DE OUTRA ORDEM TERRITORIAL

207-230

Claudio Ubiratan Gonçalves

O ‘LUGAR’ NÃO É MAIS O MESMO: ARTICULAÇÃO DOS MÚLTIPLOS ESPAÇOS-TEMPOS COTIDIANOS NAS PRÁTICAS ESCOLARES

231-246

Amanda Regina Gonçalves Rosângela Doin de Almeida

A CLIMATOLOGIA PRODUZIDA NO INTERIOR DA CIÊNCIA GEOGRÁFICA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DE TESES E DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS EM PROGRAMAS DE PÓS GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

247-264

Deise Fabiana Ely

POR UMA GEOGRAFIA DO PASSADO DISTANTE - MARCAS PRETÉITAS NA PAISAGEM COMO MEMÓRIA SOCIAL DAS SOCIEDADES AUTÓCTONES

265-292

Sérgio Almeida Loiola

RESENHA OS ESTABELECIDOS E OS OUTSIDES

295-298

Alexandre Bergamin Vieira

NORMAS Normas para publicação

301-306

COMPÊNDIO Compêndio dos números anteriores

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309-324

Summary/Sumario FOREWORD/EDITORIAL

ARTICLES/ ARTÍCULOS CHALLENGES TO THE ANALYSIS OF URBAN SPACE: INTERPRETING MARGINAL TEXTS OF GEOGRAPHICAL DISCOURSE DESAFÍOS PARA LA ANÁLISIS DEL ESPACIO URBANO: INTERPRETANDO TEXTOS MARGINALES EN EL DISCURSO GEOGRÁFICO

15- 28

Almir Nabozny Joseli Maria Silva Marcio José Ornat

THE GEOGRAPHICAL STUDY OF THE CULTURAL ELEMENTS CONSIDERATIONS FOR BESIDES CULTURAL GEOGRAPHY

EL ESTUDIO GEOGRÁFICO DE LOS ELEMENTOS CULTURALES - CONSIDERACIONES PARA ADEMÁS DE LA GEOGRAFÍA CULTURAL

29- 50

Cláudio Benito Oliveira Ferraz

STUDIES MIGRATÓRIOS NA MODERNIDADE AND THE POSTMODERNIDADE: THE ECONOMIC THE CULTURAL? ESTUDIOS MIGRATÓRIOS NA MODERNIDAD Y DE LA POSMODERNIDAD: EL ECONÓMICO CULTURAL?

51-74

Marcos Leandro Mondardo

ILLNESSES AS OBJECT OF STUDY IN THE GEOGRAPHIC CONTEXT: LONDRINA - 1932/1943 LAS ENFERMEDADES COMO OBJETO DE ESTUDIO EN EL CONTEXTO GEOGRÁFICO LONDRINA - 1932 /1943

75-94

Márcia S. de Carvalho

THE BRAZILIAN FIELD ON THE RENEWABLE ENERGETIC MATRIX SCENE: NOTES FOR A DEBATE EL CAMPO BRASILEÑO EN LO ESCENARIO DE LA MATRIZ ENERGÉTICA RENOVABLE: NOTAS PARA UNA DISCUSIÓN Eliane Tomiasi Paulino

95-114

LOCAL DEVELOPMENT AS SIMULATION OF INVOLVEMENT: THE NEW-OLD MEANING THE DEVELOPMENT AND ITS FUNCTIONALITY TO THE SYSTEM OF CAPITAL

EL DESARROLLO LOCAL COMO SIMULACIÓN DE PARTICIPACIÓN: EL NUEVO SIGNIFICADO DE EDAD EL DESARROLLO Y SU FUNCIONALIDAD AL SISTEMA DE CAPITALES

115-132

Josefa Bispo de Lisboa Alexandrina Luz Conceição

T HE GEOGRAPHIC SCALE : NOTION , CONCEPT OR TEORY ? L A E SCALA GEOGRÁFICA : NOCIÓN , CONCEPTO Ó TEORÍA ?

133-142

Everaldo Santos Melazzo Cloves Alexandre Castro

EPISTEMOLOGICAL AND PEDAGOGICAL POSSIBILITIES OF HUMAN GEOGRAPHY IN ITS HUMANISTIC AND CULTURAL TRUNK LAS POSSIBILIDADES EPISTEMOLÓGICAS Y PEDAGÓGICAS DE LA GEOGRAFIA HUMANA EM SU TRONCO HUMANISTICOCULTURAL

143-162

Marcos Antonio Correia

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TERRITORIAL IDENTITY QUILOMBOLA – A GEOGRAPHY BOARDING FROM THE COMUNIDADE CAÇANDOCA (UBATUBA/SP) IDENTIDAD TERRITORIAL QUILOMBOLA - EL SUBIR GEOGRÁFICO DE LA COMUNIDADE CAÇANDOCA (UBATUBA/SP)

163-180

Maria Tereza Paes Luchiari Isabel Araujo Isoldi

SOCIAL APROPRIATION OF THE URBAN SPACE AND TERRITORIALITY: THE DESIRE AND HOPE FOR THE INTERSTICES

APROPRIACIÓN SOCIAL DEL ESPACIO URBANO Y TERRITORIALIDAD: EL DESEO Y LA ESPERANZA POR LOS INTERSTÍCIOS

181-206

Ulysses da Cunha Baggio

SLOPES ETHICS & GOVERNING OF ANOTHER ORDER TERRITORIAL VERTIENTES ETICAS Y REGENCIA DE OTRA ORDEN TERRITORIAL

207-230

Cláudio Ubiratan Gonçalves THE ‘PLACE’ IS NOT THE SAME: ARTICULATIONS OF THE MULTIPLES EVERYDAY SPACES-TIMES IN THE SCHOLARS PRACTICES EL ‘LUGAR’ NO ES MÁS EL MISMO: ARTICULACIONES DE LOS MÚLTIPLES ESPACIOS-TIEMPOS COTIDIANOS EN LAS PRÁCTICAS ESCOLARES

231-246

Amanda Regina Gonçalves Rosângela Doin de Almeida

LA CLIMATOLOGÍA PRODUCIDA EN EL INTERIOR DE LA CIENCIA GEOGRÁFICA BRASILEÑA: UN ANÁLISIS DE TESIS Y DISERTACIONES DEFENDIDAS EN PROGRAMAS DE POSTGRADO EN GEOGRAFÍA CLIMATOLOGY RAISED WITHIN BRAZILIAN GEOGRAPHIC SCIENCE: A STUDY ON THE ACCOMPLISHMENT OF GRADUATED PROGRAMS IN

GEOGRAPHY

247-264

Deise Fabiana Ely

PARA UNA GEOGRAFÍA DEL PASADO DISTANTE - MARCAS DEL PASADO EN EL PAISAJE COMO MEMORIA ESPACIAL DE LAS SOCIEDADES AUTOCTONOS BY A GEOGRAPHY OF THE PAST DISTANT - PRETERITS’S MARKS IN THE LANDSCAPE AS AUTOCHTHONOUS SOCIETIES’S SPACE MEMORY

265-292

Sérgio Almeida Loiola

RESENHA El conjunto y las exteriores The set and the outsides

295-298

NORMAS Submission guindelinesa Normas para publicación

301-306

COMPÊNDIO Compendium of the previus numbers Compendio de números anteriores

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309-324

EDITORIAL

Acreditar que é possível manter a qualidade, expandir o raio de interlocução e ampliar a potência do debate teórico tem sido uma constante por parte da editoria da Revista Terra Livre. A geografia brasileira ganha com isso, ganha os geógrafos e ganha todos aqueles que estão se empenhando para manter a Terra Livre como um veículo de divulgação privilegiado sobre o que de melhor se pensa e se produz. Se não tivéssemos o mandato para levar adiante os princípios defendidos pelos agebeanos e referendados na Assembléia de Rio Branco, em julho de 2006, não poderíamos sequer estar tendo a chance de colocar em prática os anseios da comunidade que quer e requer transparência e a disponibilização de textos de qualidade irreparável, capazes de promover a ascensão de idéias, inquietações e polêmicas para o centro das diferentes convivências, seja nas escolas, nas universidades, nos eventos, nas ruas, junto às comunidades, aos trabalhadores, à sociedade organizada etc. Pretensões à parte, o que estamos tentando garantir é que a Terra Livre, seja a Revista de todos(as) os (os) geógrafos(as) brasileiros(as), indistintamente das posturas ideológicas, das correntes do pensamento geográfico e das opções temáticas. Garantir que a Terra Livre possa estimular o debate e nutrir o convício saudável das idéias, eis o que nos põe atentos á edificação de uma AGB também disposta ao debate, à defesa de posicionamentos que garantam o livre acesso às informações e à liberdade de pensamento entre suas centenas de milhares de associados e de toda a comunidade geográfica (estudantes, professores, profissionais de toda ordem). O que esperar desse número 29? A riqueza dos assuntos e dos recortes temáticas mantém uma constante e é uma das principais recomendações da nossa comunidade. Então, se com as atenções para assuntos mais ligados às questões teórico-metodológicas, ou de cariz epistemológico ou ontológico, se para os assuntos voltadas à matriz energética, ou para os rumores da modernidade, ou os exemplos regressivos da migração, ou ainda para as marcas do passado enfim, o 9

que se espera é que mais do que as emoções sobrevivam, desejamos que a Terra Livre possa fomentar, efetivamente, os exercícios auto-críticos, tão necessários e em desuso nesses tempos do século XXI.

OS EDITORES

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FOREWORD

Believe that is possible mantain the quality, expand the range of interlocution and amplify the potency of the theoretician discussion have been a constant by the side of the publishing house of the Magazine Terra Livre. The brazilian geography earns with this, the geographers earn and earn all that are doing efforts to mantain Terra Livre as a mean of communication privileged about the best of what is thinked and produced. If we didn’t have the mandate to continue with the principles defend by the agebeanos and referended in the Meeting of Rio Branco, in July 2006, we cannot even have the chance to put in pratice the longing of the community which want and require transparency and publication of text of irreparable quality, capable of promote the ascension of ideas, inquietude and controversy to the centre. What we are trying to guarantee is that Terra Livre, be the Magazine of all the brazilians geographers, indistinctly the religious belive, the ideologic position and thematics options. Guarantee that the Terra Livre can estimulate the discussion and sustain the healthy companionship of ideas, that is the question which put us attentive to a edifying of a AGB, which is also disposed to the discussion, the defense of positions that guarantee the free access to informations, and the freedom of thinking between yours hundreds of thousands of associateds and of all the geographic community. What expect of this edition 29? The riches of theme and tematic retails mantain a constant and is one of the main reccomendation of our community. So, if attentions to themes related to questions “theoretical-methodological”, or of roots ontologic and epistemologic, if to themes related to energetic matrix, or to rummors of modernity, or to examples regressives of migration, or even to scars of the pass so, what is expected is that more than the emotions, we want that Terra Livre can foment, effectively, the exercises so necessary of self-criticism, which is in disuse in this century of XXI THE EDITORS

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ARTIGOS

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DESAFIOS À ANÁLISE DO ESPAÇO URBANO: INTERPRETANDO TEXTOS MARGINAIS DO DISCURSO GEOGRÁFICO CHALLENGES TO THE ANALYSIS OF URBAN SPACE: INTERPRETING MARGINAL TEXTS OF GEOGRAPHICAL DISCOURSE

DESAFÍOS PARA LA ANÁLISIS DEL ESPACIO URBANO: INTERPRETANDO TEXTOS MARGINALES EN EL DISCURSO GEOGRÁFICO

ALMIR NABOZNY [email protected] JOSELI MARIA SILVA [email protected] MARCIO JOSÉ ORNAT [email protected] UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA - UEPG

* Pesquisadores do Grupo de Estudos Territoriais (GETE)

T e rr a Li vre

Resumo: Este trabalho tem por objetivo apresentar os desafios teórico-metodológicos enfrentados pelo Grupo de Estudos Territoriais no desenvolvimento de pesquisas atreladas às relações entre sexualidade e espaço urbano. Primeiramente, apresentamos o posicionamento teórico do grupo fundamentado na perspectiva da nova geografia cultural, o qual entende que os sujeitos criam interpretações espaciais plurais e isso permite uma pluriversalidade da realidade estudada. Num segundo momento, evidenciamos, através dos relatos de nossa trajetória de pesquisa, uma reflexão sobre a posicionalidade do sujeito pesquisador no processo de construção do conhecimento geográfico. Palavras – chave: espaço urbano, intertextualidades, posicionalidade do pesquisador. Abstract: This article has the objective of presenting the methodological and theoretical challenges faced by the Grupo de Estudos Territoriais (GETE – group of territorial studies) in the development of researches related to sexuality and urban space. A presentation of the theorical position of the Group, that is based on the new cultural geography. In this perspective the subjects create plural spacial interpretations what allows a pluriversality of the studied reality. After, from relates in our research trajectory, a reflection about the positionality of the researcher subject in the process of geographical knowledge construction. Key Words: urban space, intertextuality, researcher positionality. Resumen: Este trabajo tiene por objetivo presentar los desafios teórico-metológicos del Grupo de Estudos Territoriais (GETE – grupo de estudios territoriales) en el desarollo de investigaciones relacionadas a la sexualidad y el espacio urbano. En un primer momento, se presenta la postura teórica del grupo, apoyada en la perspectiva de la nueva geografía cultural. La misma entiende que los sujetos crean interpretaciones espaciales múltiplas y eso permite uma pluriversalidad de la realidad estudiada. Luego se evidencian los relatos de nuestra história de investigación. Una reflexión sobre la posicionalidad del sujeto investigador en el proceso de construcción del conocimiento geográfico. Palabras - clave: espacio urbano, intertextualidades, posicionalidades del investigador.

Pre sid e n te P ru d e n te

An o 23, v. 2, n . 29

p . 15-28

Ag o -D e z / 2007

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NABOZNY, A; SILVA, J. M; ORNAT, M. J. URBANO...

DESAFIOS À ANÁLISE DO ESTUDO

Introdução Este texto é fruto das reflexões em torno dos desafios teórico-metodológicos enfrentados pelo Grupo de Estudos Territoriais (GETE) em mais de um ano de condução de pesquisas originadas através da parceria estabelecida com a Organização Não Governamental Renascer, em Ponta Grossa – PR. Esta instituição atua na luta pelos direitos humanos e realiza ações para combater e prevenir doenças sexualmente transmissíveis junto às profissionais do sexo, gays, lésbicas, travestis, bissexuais e transexuais. Dentre as várias atividades desenvolvidas na parceria efetivada, foram viabilizadas três investigações que sustentam os argumentos aqui apresentados. Embora cada uma destas pesquisas seja guiada por objetivos específicos, elas se desenvolvem de maneira articulada e, em vários momentos se sobrepõem, o que tem possibilitado ao grupo de pesquisadores o debate e a análise crítica de vários procedimentos investigativos. Dois aspectos comuns das investigações se destacam. Um deles é a abordagem da sexualidade interdita e sua dimensão espacial e o outro é a exploração de grupos sociais inexpressivos no campo de interesse da pesquisa geográfica brasileira como as meninas prostituídas e os transgêneros. Essa opção nos levou ao desafio de construir a visibilidade de suas experiências espaciais no campo científico da geografia. Entretanto, nossas construções metodológicas, até então calcadas no apego à dimensão material do fenômeno e aos procedimentos formais da pesquisa documental, foram insuficientes para compreender fenômenos marginais e complexos que as pesquisas abordavam. Sendo assim, este texto explora as escolhas do arcabouço analítico da ciência geográfica que puderam produzir a visibilidade científica dos fenômenos explorados e por nós intencionada. A pluriversalidade da cidade texto A nova geografia cultural e seus desdobramentos constituem possibilidades ilimitadas para a criatividade dos geógrafos (as) no desenvolvimento de suas análises espaciais. Corrêa (2003), ao analisar a compreensão da cultura e o espaço, alerta que a geografia contempla tanto os componentes materiais como sociais, intelectuais e simbólicos. Os elementos visíveis e a materialidade das formas espaciais foram, durante muito tempo, privilegiados pelos geógrafos, enfatizando técnicas que os homens utilizavam para dominar o meio e concebendo a paisagem como produto desta relação, tal qual Sauer (1996). A ênfase aos elementos materiais da paisagem privilegiava os objetos de estudo que apresentavam maior visibilidade, cuja diferença estava nítida, palpável, e tal ênfase relegou a um segundo plano outras dimensões sociais e psicológicas da existência humana que, por sua vez, também determinam a materialidade. A intensiva abordagem de objetos em que a diferença estava materialmente visível limitou o campo de estudo da geografia do mundo contemporâneo durante muito tempo, já que as paisagens tornaram-se mais uniformes, e as sociedades fechadas e homogêneas

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internamente, mais raras. Entre as muitas questões que emergem de tal perspectiva de pesquisa, uma delas diz respeito à impossibilidade da geografia explorar a sociedade complexa da qual fazemos parte e encontrar as diferenças em espaços que, aparentemente, são repetitivos. Outras críticas às concepções de Sauer e seus seguidores estavam centradas na importância secundária do sujeito na construção dos significados da paisagem e a negligência do homem como ser ativo na construção simbólica como em Cosgrove (1998) e em Berque (1998). Contudo, é a contribuição de James Duncan (1990), em sua obra “The city as text”, que gostaríamos de destacar como fundamental inspiração para dar continuidade às nossas proposições teóricas e metodológicas. A paisagem de Duncan (1990) faz referências para muito além da materialidade. Ele a considera como um sistema de significados que, tal qual a linguagem expressa em texto, a paisagem é depositária e transmissora de informações. A “paisagem/texto” é um discurso, uma estrutura social de inteligibilidade dentro da qual todas as práticas são comunicadas, negociadas e desafiadas. Assim, os discursos estão sempre permitindo recursos e limites dentro de certas direções de pensamentos e ações que “aparentemente” são naturais. A pretensa naturalidade da ordem do mundo e, portanto, da dimensão espacial da sociedade, para James Duncan, é resultante de vários embates e lutas entre os grupos sociais. As interpretações das informações dependem dos sujeitos que atuam no processo de recepção e interiorização da informação que, por sua vez, é determinado e determinante dos valores culturais. Duncan (1990) nos oferece a compreensão de uma trama de relações em vários sentidos na análise da paisagem e privilegia o ato criativo dos sujeitos sociais através de sua leitura e interpretação, evidenciando tanto as interações entre diversos grupos, quanto a grande dificuldade de interação interpretativa da paisagem entre grupos que não participavam dos mesmos códigos culturais. Esse autor cria uma abordagem política da paisagem e afirma que esta deve servir como parte constitutiva da análise de como a vida social é organizada e de como as relações de força que a compõem são constituídas, reproduzidas e contestadas. Importante, ao nosso ver, é o conceito de “intertextualidade” que denota as interrelações de textos que se entrecruzam, instituintes e instituídos da “cidade texto”. Além disso, para o propósito desse trabalho, é fundamental evidenciar as condições gerais de produção do texto/paisagem hegemônicos e como eles se impregnam de forma naturalizada na sociedade. Assim, a cidade texto de James Duncan (1990) define-se numa dinâmica relacional e processual entre sistema de significados e práticas que se transformam mutuamente ao longo do tempo. Os seres humanos são tanto agentes de mudança social e, portanto, espacial, quanto seus produtos. Ao considerar o aspecto da intertextualidade, o autor incorpora a construção de diferentes significados de um mesmo objeto, assim como apresenta seus contrastes e assimilações e, além disso, admite que há uma conjugação

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NABOZNY, A; SILVA, J. M; ORNAT, M. J. URBANO...

DESAFIOS À ANÁLISE DO ESTUDO

de forças que age sobre a produção simbólica do espaço, considerada enquanto forma de conhecimento que orienta as ações cotidianas. A geografia proposta por Duncan (1990) e seus pares da Nova Geografia Cultural é uma abordagem aberta aos paradoxos, à pluralidade e, em certa medida, provoca a ‘desordem’ do discurso geográfico calcado na objetividade material do espaço e nas interpretações hegemônicas. O rico contexto de efervescência imaginativa da Nova Geografia Cultural potencializou as produções geográficas feministas que emergem a partir de ‘fissuras’ do pensamento hegemônico desde a década de 70. Mas é no contexto recente, a partir dos anos 90, que esta corrente ‘científico-política’ realiza importantes críticas à postura repetitiva da geografia, enquanto disciplina acadêmica, sua instrumentalização na manutenção e reprodução do poder e invisibilidade de vários grupos que compõem o espaço. A obra do geógrafo James Duncan (1990), “The city as text”, é forte inspiração para nossas pesquisas, pois na medida em que a cidade é um texto, produzido por ‘intertextualidades’, podemos tornar visíveis outros textos que não sejam hegemônicos, produzindo, através do trabalho científico a visibilidade de grupos tradicionalmente inexpressivos na geografia. Nesta perspectiva adotamos o argumento de que não se deve imaginar um mundo do discurso dividido entre o discurso admitido e o discurso excluído, ou entre o discurso dominante e o dominado; mas, ao contrário, como uma multiplicidade de elementos discursivos que podem entrar em estratégias diferentes. É essa distribuição que é preciso recompor, com o que admite em coisas ditas e ocultas, em enunciações exigidas e interditas; com o que supõe de variantes e de efeitos diferentes segundo quem fala, sua posição de poder, o contexto institucional em que se encontra; com o que comporta de deslocamentos e de reutilizações de fórmulas idênticas para objetivos opostos. Os discursos, como os silêncios, nem são submetidos de uma vez por todas ao poder, nem opostos a ele. (FOUCAULT, 1988, p. 111)

Nesse mesmo sentido, a geógrafa Gillian Rose (1993), em Feminism & Geography. The limits of Geographical Knowledge, constrói a perspectiva do ‘espaço paradoxal’ na qual chama a atenção às configurações de poder que se estabelecem entre o centro e a margem da configuração, assim como a plurilocalização dos (as) sujeitos (as). Para esta autora há uma simultaneidade entre poder e resistência na composição espacial. Assim, é preciso compreender tanto o que é ‘visível’ quanto o que é ‘invisível’ já que ambos fazem parte da mesma realidade espacial que é contraditória e complementar simultaneamente. Duncan (1990), por sua vez, ao demonstrar que a paisagem da cidade de Kandy no Sri Lanka era interpretada e vivida de formas diferentes por vários grupos sociais, evidencia, magistralmente que é a condição paradoxal dos vários textos interseccionados

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que possibilita a hegemonia. Afinal, o discurso veicula e produz poder, reforça-o mas também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo. Da mesma forma, o silêncio e o segredo dão guarida ao poder, fixam suas interdições; mas, também, afrouxam seus laços e dão margem a tolerâncias mais ou menos obscuras (FOUCAULT, 1988, p. 112).

Compreendendo a cidade como uma rica trama discursiva ou textual, para utilizar as palavras de James Duncan (1990), o Grupo de Estudos Territoriais tem optado por construir a visibilidade de textos que emergem das fissuras e interdições do poder hegemônico das instituições formais. Diante dessa configuração estabelecemos no grupo ampla discussão em torno da posicionalidade do pesquisador frente aos desafios metodológicos a serem desenvolvidos no processo de pesquisa que serão objeto da próxima seção. A posicionalidade do pesquisador e a produção do conhecimento sobre o espaço urbano A geógrafa Rose (1997) tem chamado a atenção para as perspectivas de posicionalidade e reflexibilidade do (a) pesquisador (a) em relação à produção do conhecimento, pois os resultados das nossas investigações são obtidos pela influência de vários elementos interconectados. Ou seja, aquilo que obtemos como pesquisadores reflete complexas relações entre o sujeito investigador, os sujeitos investigados e o contexto de produção dos dados da pesquisa. Assim, não produzimos verdades sobre os fenômenos que analisamos, mas versões localizadas e é nesse sentido que emerge a importância da reflexão em torno daquilo que criamos e consideramos como dados de pesquisa. Não podemos perder de vista, portanto, que o conhecimento sobre determinada realidade expressa versões parciais, já que os elementos envolvidos estão diferentemente posicionados em relação ao fenômeno e também possuem interesses próprios e pontos de vista diversos que são acionados na inevitável presença relacional entre sujeito pesquisador e sujeito pesquisado. A autora alerta que tudo que produzimos enquanto conhecimento geográfico, ou seja, aquilo que criamos através de nossas pesquisas, passa a fazer parte da realidade estudada assim como a realidade faz parte do conhecimento científico. Desta forma uma investigação científica se dá num processo de conhecimento permeado por relações de poder que são produtos de posicionamentos que geram capacidades diferenciadas na produção de uma determinada versão da realidade e, nesse sentido, o próprio conhecimento também produz as hierarquias nas quais os sujeitos estão posicionados. Refletir sobre os atos investigativos na produção de versões da realidade, que também produzem a própria realidade, requer uma atitude ética e um claro

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DESAFIOS À ANÁLISE DO ESTUDO

compromisso político na implicação de nossos resultados de pesquisa na realidade investigada, pois o imaginário mundo das idéias é real e o real é também imaginado. As idéias discutidas por Gillian Rose em “Situating knowledges: positionality, reflexities and other tactics” ultrapassam os meros posicionamentos metodológicos de construção do conhecimento científico, elas são argumentos firmes de que a realidade sócio-espacial também se constrói a partir das relações de poder que se fundam nos enunciados científicos e na posição de quem os pronuncia. Nesse sentido, é muito importante atentar para a versão da realidade que uma investigação se propõe a produzir e a partir de qual ponto de vista. Partindo da idéia de que a realidade é pluriversal e que os saberes jogam num campo de forças no qual se produz o invisível, o indizível, o ausente e o silêncio, voltamos nossos olhares para os sujeitos silenciados, adotando uma postura desconstrucionista da ciência geográfica e passamos a questionar os conceitos que utilizávamos, assim como nossos procedimentos de pesquisa no contato direto com os grupos sociais focos de nossas investigações. Há um ano e meio realizamos um trabalho voluntário junto à Organização Não-Governamental Grupo Renascer, desenvolvendo atividades de visitas aos locais de prostituição, distribuição de preservativos, encaminhamentos de exames e orientações para evitar as doenças sexualmente transmissíveis. Durante essas atividades pudemos nos aproximar dos ‘outros’ que investigávamos e ouvir suas versões que, por sua vez, transformaram as nossas ‘versões científicas’. Meninas que a sociedade torna mulheres e a infância negada Gostaríamos de resgatar, primeiramente, a experiência sobre a exploração sexual infanto-juvenil feminina produzida a partir do olhar que contrapõe versões sobre o fenômeno. Influenciados pelos procedimentos formais e pelo ‘status científico’ que possui a análise documental oficial e o levantamento das ações institucionais, passamos a explorar os vários órgãos que atuavam na coibição da prática sexual comercial com crianças, como o Conselho Municipal da Criança e do Adolescente, os Conselhos Tutelares, a Vara da Infância e da Juventude e vários outros órgãos, todos pautados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei Federal n° 8.069, de 13 de julho de 1990). Os contatos com estes diversos órgãos foram frustrantes para a equipe. Os responsáveis nos ouviam com atenção, animavam-se com nossa disposição de pesquisar sobre o tema, pois consideramno de vital importância, mas, pouco ou quase nada conseguiam nos ajudar, sobretudo pela precariedade dos registros e ausência de dados sistematizados. O que mais nos impressiona é o fato de que todos afirmavam a existência do fenômeno, mas nenhum destes órgãos estava preparado para enfrentá-lo. Dentre todas as aproximações realizadas a experiência que nos despertou especial interesse foi a do Conselho Tutelar pela sua atuação direta com o grupo focal e pela reação contraditoriamente aversiva que as meninas prostituídas desenvolviam em relação a esse órgão, criado justamente para proteger seus direitos.

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Os Conselhos Tutelares são responsáveis diretamente pelas denúncias de infrações aos direitos das crianças e adolescentes e a Vara da Infância e Juventude delibera as medidas judiciais cabíveis. O discurso do Estado torna-se nítido na ação que se desenvolve através da mobilização da força para traçar estratégias no combate à exploração sexual comercial infanto-juvenil feminina. Uma das ações principais de coibição das práticas das meninas são as blitze que ocorrem numa parceira entre o Conselho Tutelar e a Policia Rodoviária Federal. A prática tem como referência fundamental a espacialidade fenomenal a partir de locais e horários já conhecidos da prostituição adulta, como rodovias, boates, locais públicos e bares. Acredita-se que nestes locais podem ser flagradas as meninas menores em situação de “prostituição”, juntamente com aliciadores, clientes ou facilitadores da exploração. Não há um controle sistemático no registro das ações por parte do Conselho Tutelar, as informações são de uma periodicidade mensal ou, algumas vezes, determinada pelo número acumulado de denúncias. As práticas das blitze têm registrado no Conselho Tutelar Oeste números inexpressivos. De fevereiro a setembro de 2003 foram realizadas oito operações, nas quais não houve nenhum caso registrado. No ano de 2004, há uma intervenção, em 14 de abril, resultando na presença de três adolescentes em local indevido. Uma menina de dezessete anos encontrada em uma boate e um menino de quinze anos em outra. Além destes, há o registro de uma menor de dezesseis anos num posto de gasolina. Todos estes casos envolvem estabelecimentos localizados na Rodovia BR 373. Em 2005, há registro de três blitze. Uma em 17 de maio em que foi verificada a presença de uma adolescente de quatorze anos em frente a um antigo posto de gasolina. No dia seguinte foram localizados dois meninos de quinze e treze anos, respectivamente, cuidando de carros no pátio de uma churrascaria próxima a Br 373. A última blitz registrada em 2005 ocorreu em 12 de outubro e não houve autuações. Portanto, num total de doze intervenções do Estado foram encontrados seis menores de idade em locais e horários impróprios. A exploração dos arquivos e registros existentes nestes órgãos evidenciou que os procedimentos realizados pelos órgãos competentes de Estado apresentam debilidades na atuação de combate à exploração sexual comercial infanto-juvenil, já que promovem a invisibilidade de um fenômeno presente na sociedade. A prática da blitz realizada pela parceria entre o Conselho e a Polícia tem apresentado números inexpressivos da atividade em tela. O enquadramento do caso torna-se difícil já que, geralmente, há negação por parte da menina menor de estar sendo prostituída. Além disso, a dificuldade torna-se ainda maior pelo fato de que é pouco provável a ocorrência de um flagrante do programa que ocorre entre as meninas e o cliente. Nesse sentido, os registros são enquadrados como “menores encontradas em locais e horários impróprios”. A invisibilidade é também promovida pela forma de registro que o Conselho Tutelar Oeste tem desenvolvido. Nos itens de possíveis enquadramentos não se contempla a exploração sexual comercial ou crianças prostituídas, por exemplo. Os itens de enquadramento possíveis são: a violência sexual, anotações relacionadas aos atos

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atentatórios à cidadania como aliciamento, mendicância, crianças em lugares e horários indevidos. Assim, há uma dificuldade em dar visibilidade a uma prática em que, num contexto de toda ordem de carências, há uma atitude ativa por parte da menor para fazer o programa, pois ela recebe compensações para realizar o ato, diferentemente do abuso ou do estupro, por exemplo. Frente às dificuldades documentais enfrentadas no trabalho exploratório e, em contrapartida, provocados pela evidência do fenômeno presenciado cotidianamente nos espaços de pobreza, optamos por incluir os depoimentos de assistentes sociais que realizavam as sindicâncias para instrumentar os processos. Mesmo que a denúncia não tivesse o teor da exploração sexual comercial, em alguns casos estes profissionais detectavam sua existência e o registravam no processo de forma paralela. Com base nestas pistas recorremos aos arquivos do PEMSE (Programa de Execução de Medidas Sócio Educativa em Meio Aberto de Ponta Grossa), os quais abriram novas alternativas de pesquisa já que estávamos convencidos de que a falta de visibilidade do fenômeno no Estado não correspondia à realidade do campo que explorávamos. Assim, foram levantados os processos oriundos do resgate da memória das assistentes sociais do Conselho Tutelar Oeste, da Vara da Infância e da Juventude, do Programa PEMSE e das Instituições de Abrigo Casa Santa Luiza de Marillac e Associação de Promoção à Menina (APAM). De posse dos casos rememorados foi realizado então o levantamento e a análise dos processos gerados. Foram vinte e nove processos analisados, dos quais quinze provenientes de indicações do Conselho, nove oriundos do PEMSE e cinco processos de meninas institucionalizadas em abrigos. Com exceção a esses últimos, os demais vinte e quatro haviam sido apontados por Conselheiros Tutelares ou pela Assistência Social do PEMSE como casos em que havia suspeita de exploração sexual comercial infanto-juvenil feminina. Mesmo assim, para nossa surpresa, em apenas 16,6% dos processos analisados a exploração sexual aparece como primeira notificação. Nos 83,4% restantes a exploração é escamoteada dos processos num primeiro momento. Ao explorarmos os processos da Vara da Infância e da Juventude observamos que, nos relatórios de visitas das assistentes sociais e nos depoimentos das pessoas envolvidas, a exploração sexual comercial se evidenciava. Entretanto, vinculada e camuflada em outras situações como a ausência prolongada de casa, atos violentos, desobediências às regras familiares, furtos, uso de drogas. Durante nossas explorações evidenciamos que a ação do Estado tem sido resignificada pelas meninas menores envolvidas nas práticas sexuais comerciais, as quais desenvolvem táticas desconstrucionistas do discurso social hegemônico. O forte tensionamento entre o discurso de Estado sobre a infância e a adolescência, baseado em condições de vida pequeno-burguesas, e as práticas cotidianas da periferia se revela no insucesso da coibição do fenômeno estudado e na instituição de novas e complexas espacialidades promovidas pelas meninas a fim de manter sua versão da realidade. As

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restrições às práticas comerciais sexuais em que as meninas se encontram têm sido concebidas por uma pretensa universalidade de direitos dos sujeitos menores de idade, confundida com a homogeneidade de concepções e práticas relativas às características dos grupos sociais envolvidos no processo de exploração. A realidade sócio-espacial da periferia impõe os fundamentos da vivência da infância e a construção de uma versão específica de sua experiência. Várias condutas consideradas ilegais a partir do marco estatal são naturalizadas pela sua existência cotidiana. É comum na periferia o trabalho infantil complementar à renda do adulto, o trabalho doméstico, o cuidado dos irmãos menores, o acompanhamento das figuras femininas de referência identitária, como mães, tias, avós no exercício da prestação do serviço sexual. As experiências diárias são por elas naturalizadas e, em geral, contraditórias com o marco legal que as enquadra fora do padrão de infância concebido pela sociedade. São meninas que a sociedade torna mulheres, negando-lhes o direito de serem crianças. A vivência nos espaços de periferia impõe aos corpos infantis o desempenho de tarefas adultas e isso modifica radicalmente a temporalidade das etapas de suas vidas. As meninas que fizeram parte desta pesquisa possuem diferentes idades. 69% tinham entre 11-15 anos de idade no início dos processos. 17% encontravam-se com 05-10 anos e 14% delas estavam com 16-17 anos. Nos processos analisados a manifestação da exploração sexual comercial infantojuvenil feminina se dá nas ruas e nas estradas em 62% e em apenas 15% dos processos estão relacionadas às boates. Em 8% dos processos as meninas dormem em casas de terceiros e em 7% elas promovem deslocamentos em direção ao centro da cidade. Embora, as blitze cubram a área das boates e rodovias (BR), a maioria das manifestações ocorre em um constante rearranjo entre as ruas de proximidades da Rodovia, ruas próximas às suas casas, na própria rodovia e também utilizam os chamados telefônicos. Em outras ocorrências há referências às meninas circulando pelas ruas durante o dia, quando são abordadas por homens adultos e deslocam-se para motéis ou estacionamentos de supermercados a fim de realizar o programa. O agenciamento pode também ocorrer por um chamado telefônico realizado por um ‘atravessador’ que recebe pelos agendamentos de clientes. As táticas desenvolvidas pelas meninas menores desafiam a ordem do discurso hegemônico. Na versão das meninas, elas necessitam garantir a sobrevivência, e na versão dos agentes de Estado se faz necessário cumprir a lei. Esta tensão se dá constantemente já que o Estado, ao reprimir a ação das meninas, não lhes dá alternativas. As estratégias de combate à atividade por parte do Estado, no máximo, constatam a presença de menores em locais indevidos, mas não conseguem flagrar a exploração sexual. A imaterialidade do processo e a fluidez das relações espaciais desenvolvidas pelas meninas e a rede de exploração sexual comercial na qual estão inseridas driblam com sucesso as ações de blitze desenvolvidas pelo Estado. As táticas triunfam sobre a

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lógica do Estado que ainda insiste em agir baseado no modelo da prostituição adulta, envolvendo pontos fixos e o período noturno. A influência da família, dos contextos, das ações infere no corpo. O corpo não é um dado pronto, mas resultante de negociações espaciais e históricas. Foucault (1988) argumenta que as regras de conduta moral-sexual fluem segundo idade, sexo, entre outros, mas que as obrigações e interdições não são dispostas a todos da mesma maneira. O espaço geográfico enquanto uma instância social, relacional e processual passa a compor as estruturas de amadurecimento e interiorização da atividade pelas próprias meninas, bem como é um elemento das táticas dos envolvidos na exploração. A desejada exeqüibilidade dos direitos universais das crianças e adolescentes a partir do ECA só é possível quando se contemplar a diversidade espaço-temporal da vivência da infância. Pode-se afirmar que a espacialidade do fenômeno da exploração sexual comercial infanto-juvenil feminina é de alta complexidade e não apresenta um padrão homogêneo. Pelo contrário, sua sobrevivência só é possível pelas múltiplas configurações espaciais nas quais se viabilizam as práticas dos sujeitos envolvidos e, inclusive, da posição do papel repressor do Estado. Ou seja, enquanto as versões desse fenômeno não produzirem um diálogo, Estado e meninas prostituídas trilharão caminhos diversos e, infelizmente, a versão da realidade produzida por estas crianças continuará invisível e silenciada na realidade urbana. Do espaço interdito ao território da prostituição travesti Outra importante contribuição da reflexão do grupo em torno da posicionalidade do pesquisador em relação ao sujeito investigado e suas experiências espaciais foi o rearranjo do conceito de território na exploração do grupo de travestis. O grupo focal é composto de treze pessoas que se auto-identificaram como sendo ‘uma travesti’, utilizando a expressão no feminino. Embora a língua portuguesa classifique a palavra relativa ao sujeito masculino, preservaremos a linguagem utilizada pelo grupo. Duas pesquisas desenvolvidas de forma concomitante eram constantemente confrontadas. Enquanto uma delas evidenciava os espaços interditos às travestis e, portanto, sua invisibilidade, a outra enfocava a única possibilidade socialmente permitida de sobrevivência dessas pessoas, ou seja, os espaços de prostituição. A mesma sociedade heteronormativa que exclui as travestis dos espaços de convivência social e promoção da cidadania durante o dia, possibilita a criação dos territórios da comercialização de práticas sexuais durante a noite. O poder normativo, tal qual proposto por Foucault (1984), não produz a simples contraposição entre dominados e dominantes, mas complexidades existenciais e, portanto, espaciais. Conforme argumentos de Peres (2005), as travestis carregam consigo duas performances corporais na atividade de prostituição, dependendo das preferências do cliente e assim, rompem com as categorias clássicas de masculino e feminino e não se

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enquadram em um dos lados das bipolaridades. Tal qual os geógrafos Jon Binnie e Gill Valentine (1999), compreendemos que o ser travesti se constitui no estar no mundo e isso é essencialmente espacial, pois viver implica ações, práticas, relações que se realizam numa dimensão concreta. Contudo, o estar no mundo significa relacionar-se com outros grupos, fundamentalmente diferentes do ser travesti e, nesse sentido, o poder coloca-se como ponto essencial em nossas pesquisas. Desse ponto de vista, o caminho conceitual seguro para compreender a vivência do grupo de travestis que investigávamos nos levou a adotar o território como ferramenta conceitual. Vários geógrafos têm aprofundado as discussões sobre a potencialidade do território na compreensão da realidade sócio-espacial como Souza (1995), Silva (2000), Haersbaert (2004) e outros. A associação entre território e prostituição também é um caminho seguido por diversos pesquisadores como Mattos e Ribeiro (1996), Ribeiro (1997), Villalobos (1999), Campos (2000) e Silva (2002). Enfim, sem querer nos aprofundar nas diferenças entre as proposições desses autores, ressaltamos que nossa inspiração em relação às suas obras esteve centrada na importância das relações de poder e na apropriação dos espaços a fim de torná-los territórios, sejam eles econômicos, políticos ou culturais e na maleabilidade das variações de limites fronteiriços e temporais. Assim, para analisar a experiência espacial das travestis, adotamos a perspectiva de que os sujeitos, ao desenvolverem práticas de apropriação de determinados espaços do urbano por um período de tempo, impõem condutas consensuadas no grupo e, desta forma, instituem seus territórios frente aos outros grupos, corroborando assim o referencial teórico analisado. Como já explicitado anteriormente, as pesquisas desenvolvidas pelo grupo são constantemente confrontadas, assim como os dados obtidos do campo. É importante lembrar que dois pesquisadores trabalharam com o mesmo grupo focal, entrevistaram as mesmas pessoas com perguntas que se sobrepunham e obtiveram elementos diferentes na exploração do saber desses sujeitos. Isso porque o resultado obtido é fruto de um momento único, jamais reprodutível e o sujeito investigado reage ao pesquisador. Enquanto uma das pesquisas obtinha quase por unanimidade a frase “as travestis não tem espaço para viver na cidade”, a outra pesquisa em andamento nos levava a crer que havia sim um espaço das travestis que lhes é significativo, capaz de dar sentido à sua existência, já que a frase “se aprende a ser travesti na rua” tornou-se paradigmática. O saber sobre o espaço urbano produzido pelas travestis foi confrontado com nosso saber oriundo da ciência geográfica. Nós, enquanto pesquisadores posicionados fora do grupo focal, concebíamos o território numa diferenciação entre o grupo de travestis na atividade de prostituição e os outros que não compartilhavam dos mesmos valores e atividades. Esta posição simplista da manifestação de limites de fronteiras entre grupos e da expressão material do fenômeno da prostituição foi derrubada pelo saber das travestis. Uma expressão comum do grupo é “os mesmos homens que fecham as portas durante o dia são os que abrem as pernas à noite”, o que nos colocava um questionamento sobre a

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constituição das categorias opostas outsider e insider. A relação com o grupo nos possibilitou a compreensão de que é justamente a força da interdição sócio-espacial que possibilita o fortalecimento de seu território, já que este é o único espaço que lhes possibilita reconhecimento social, independentemente de sua valoração moral. Nesse sentido, exclusão e apropriação espacial não se anulam em campos oposicionais, pelo contrário, entrelaçam-se e potencializam-se numa espiral constante e complementar, constituindo um território que é multidimensional. Outro questionamento provocado pelo saber travesti às nossas bases conceituais se relacionava ao poder. Inicialmente, nós concebíamos o poder atrelado às práticas do grupo para a manutenção do território frente a outros grupos no sentido insider X outsider. Entretanto, o território da prostituição travesti existe na medida em que ele contempla a relação da comercialização dos serviços sexuais que se dá entre a travesti e seu cliente. Isso implica uma prática que envolve centro e margem de uma configuração de poder que se apropria do espaço e o torna território. A travesti no território da prostituição representa o centro do poder porque através de suas performances corporais desperta o desejo do cliente representado aqui como margem da configuração do poder, já que ele a procura para viver o prazer interdito pela sociedade heteronormativa. Este cliente faz parte da sociedade que as exclui, mas simultaneamente, compõem o território da prostituição travesti numa situação de subordinação. Além de temer ser identificado vivendo uma sexualidade disparatada, o cliente deve contratar o preço e os serviços que envolvem o programa, embora possua vantagens monetárias. Todavia, depois do contrato firmado, ocorre o deslocamento dos corpos para locais privados onde as travestis deixam a centralidade da configuração de poder e, muitas vezes, tornam-se vítimas da violência de seus clientes. Assim, o deslocamento da mesma configuração para outros espaços reposiciona os sujeitos e, portanto, o espaço segregado a que estão submetidas é, contraditoriamente, um elemento ativo na composição do poder da travesti. Após esta mediação da experiência travesti, passamos a conceber o território composto de um poder multidirecional, intercambiado entre os sujeitos que compõem a configuração que dá sentido à apropriação espacial. Portanto, argumentamos que território se institui de plurilocalizações dos sujeitos que não são fixos em suas posições de centro e margem, mas constantemente tensionados. Depois de um tempo de convivência com o grupo nos foi possível perceber que o território da prostituição travesti, além de lhes garantir a sobrevivência econômica, era um importante elemento fundante de sua identidade. As entrevistas realizadas evidenciam que as ruas em que se desenvolvem as atividades de prostituição em 86% das evocações a seu respeito são importantes para sua existência. Deste percentual de evocações relacionadas ao território da prostituição, 19% delas relacionam-se com o local possível de construção de amizades e redes de solidariedade. Os outros 81% se relacionam com a possibilidade de constituição do ser travesti que envolve tanto a adequação de

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comportamentos aos códigos do grupo quanto a transformação do corpo. É no local de prostituição que se apreendem e se ensaiam as performances de comportamentos, significados lingüísticos, sinais corporais que permitem as provocações, assédios, disputas e rivalidades. Os elementos comuns são a esperteza, a força e a malícia, elementos sempre lembrados e considerados necessários na composição do ser travesti. No processo de aprendizagem é comum a figura da ‘madrinha’ que, geralmente, é uma travesti experiente e de valor moral reconhecido segundo os códigos identitários do grupo. A ‘madrinha’ possibilita um aprendizado mais rápido do ser travesti, além de avalizar seu ingresso no território repleto de conflitos de toda ordem. Afinal, a vivência cotidiana dessas pessoas é marcada por situações de insegurança, ameaças de morte, assaltos, brigas, rivalidades, violência, drogas, doenças e discriminação. É em função destas adversidades sofridas na rua que elas se tornam mais decididas, mais firmes, mais fortes, mais ‘espertas’, criando uma couraça espessa para suportar o sofrimento e a intolerância social. A relação entre o território e as transformações gradativas do corpo para atingir o objetivo do corpo travesti também é comum em suas expressões. É no território que elas observam, apreendem práticas e técnicas corporais, criam maneiras de se vestir, se maquiar, enfim, incorporam os elementos identitários do universo feminino ao corpo biologicamente masculino e realizam a transgressão da norma heterossexual. Estas performances são ações de comunicação próprias do território da prostituição travesti que constituem simultaneamente um espaço de laços afetivos, sociabilidade e identidade. Enfim, foi a partir da frase paradigmática do grupo, “é através do território que as travestis se tornam travestis”, oriunda da compreensão da experiência espacial do grupo focal, que re-articulamos nossas bases conceituais e pudemos afirmar que o território é elemento ativo na constituição da identidade grupal travesti. Assim, território e sujeito constituem uma relação de interdependência. Mais uma vez o saber das travestis nos levou a ultrapassar a concepção de que o território é ‘resultado’ da dinâmica de relações dos sujeitos e, sendo assim, considerado um elemento passivo. Pelo contrário, afirmamos que o território institui a identidade do sujeito travesti assim como é por ela instituído. Considerações Finais Este trabalho explorou os desafios de análise geográfica que o Grupo de Estudos Territoriais vem desenvolvendo em parceria com a ONG Renascer. A análise crítica dos limites teórico-metodológicos e a reflexão em torno da posicionalidade do pesquisador no problema evidenciado em cada uma das pesquisas têm sido um processo que produz a visibilidade de grupos sociais, geralmente escamoteados da análise geográfica, e constrói um conhecimento do qual estes sujeitos são co-participantes. As meninas foco de nossa investigação vivenciam um espaço paradoxal. São sujeitas de direitos, mas invisíveis aos olhos do Estado. Querem manter-se invisíveis, mas, com isso, expandem as possibilidades

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de perpetuação de uma condição perversa de exploração que cabe também à geografia urbana estudar e tornar o fenômeno inteligível. O grupo de travestis que desenvolve atividades de prostituição refutou nossas teorias prévias, desafiou nossas bases explicativas e articulou seu conhecimento ao nosso. Enfim, compartilhar nossos desafios e limites tem sido uma excelente maneira de socializar nossa trajetória a fim de produzir novos debates. Referências Bibliográficas BERQUE, Augustin. Paisagem-Marca, Paisagem-Matriz: elementos da Problemática para uma Geografia Cultural. In: CORRÊA, Roberto Lobato e ROSENDAHL, Zeny (org) Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: Ed UERJ, 1998. p.84-91. BINNIE, Jon and VALENTINE, Gil. Geographies of sexuality- a review of progress. In: Progress in Human Geography. London, v. 23, n.2, p. 175-187. 1999. CAMPOS, Heleniza Ávila. Permanência e Mudança no Quadro de Requalificação Espacial de Cidades Brasileiras: O Caso das Territorialidades do Sexo na Área Central do Recife. In: Revista Território. Rio de Janeiro, Ano V, n. 09, p.09-24 Jul/Dez 2000. CORRÊA, Roberto Lobato.A Geografia Cultural e o Urbano. In: CORRÊA, Roberto Lobato. ROSENDHAL, Zeny (org). Introdução a Geografia Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,2003. p.167-186. COSGROVE, Denis. A geografia está em toda a parte: cultura e simbolismo nas paisagens humanas. In: CORRÊA, Roberto Lobato. e ROSENDAHL, Zeny (orgs.). Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1998. p.92-122. DUNCAN, James Stuart. The city as text: the politics of landscape interpretation in the Kandyan Kingdom. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1984. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. HAERSBAERT, Rogério. O Mito da Desterritorialização: do “Fim dos Territórios” à multiterritorilidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. MATTOS, Rogério B. de; RIBEIRO, Miguel Ângelo C. Territórios da prostituição nos espaços públicos da área central do Rio de Janeiro. Revista Território. Rio de Janeiro, v. 01, n. 1.p.59-76. Jul/ Dez, 1996. PERES, Willian Siqueira. Subjetividade das travestis brasileiras: da vulnerabilidade da estigmatização à construção da cidadania. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, UERJ, Rio de Janeiro, 2005. RIBEIRO, Miguel Ângelo. Prostituição de Rua e Turismo em Copacabana – A Avenida Atlântica e a Procura de Prazer. Revista Território, Rio de Janeiro. Ano II, n. 03.,p.8799 Jul/Dez 1997. SILVA, Jan Carlos da. O Conceito de Território na Geografia e a Territorialidade da Prostituição. In: RIBEIRO, Miguel Ângelo. Território e Prostituição na Metrópole Carioca. São João de Meriti, RJ:Editora Ecomuseu Fluminense, 2002. p.16-56. SILVA, Joseli Maria Silva. Culturas e Territorialidades Urbanas. In: Revista de História Regional, Ponta Grossa - PR, v. 05, n. 02, p.09-37. Inverno, 2000. SOUZA, Marcelo Lopes de. O Território: Sobre Espaço e Poder, Autonomia e Desenvolvimento. In: CASTRO, Iná Elias de; GOMES, Paulo César da Costa.; CORRÊA, Roberto Lobato (org). Geografia: Conceitos e Temas. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. p.77-115. ROSE, Gillian. Feminism & Geography. The limits of Geographical Knowledge. Cambridge: Polity Press, 1993. ROSE, Gillian. Situating knowledges: positionality, reflexities and other tactics. In: Progress in Human Geography, London, v.21, p.305-320,1997. Villalobos, Jorge U. Guerra. Geografia e Sexo: Os Discursos e Práticas no Território Brasileiro. Scripta Nova Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de Barcelona, n. 45 (53). 1º de Agosto de 1999. ISSN 1138-9788 Recebido para publicação dia 10 de Novembro de 2007 Aceito para publicação dia 11 de Fevereiro de 2008

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O ESTUDO GEOGRÁFICO DOS ELEMENTOS CULTURAIS CONSIDERAÇÕES PARA ALÉM DA GEOGRAFIA CULTURAL

THE GEOGRAPHICAL STUDY OF THE CULTURAL ELEMENTS -

Resumo: O processo histórico de formação institucional das ciências modernas gerou uma tendência a especialização do conhecimento que levou a muitos a acreditarem que as denominações dessas especializações expressavam a totalidade da realidade observada. Esse é o caso da chamada Geografia Cultural em que os estudos dos aspectos culturais da realidade social pela visão geográfica, presentes em qualquer abordagem, acabam substituídos por aspectos de catalogação e descrição superficial dos elementos de determinada região. O resgate atual da Geografia Cultural tende a cair em modismos teóricos e apenas ser um novo nome para práticas viciadas de se fazer estudos científicos, não contribuindo para um melhor entendimento da dinâmica espacial da sociedade atual. Palavras-chave: Cultura; Geografia; Ciência, Linguagem, Identidade.

CONSIDERATIONS FOR BESIDES CULTURAL GEOGRAPHY

EL ESTUDIO GEOGRÁFICO DE LOS ELEMENTOS CULTURALESCONSIDERACIONES PARA ADEMÁS DE LA GEOGRAFÍA CULTURAL

CLÁUDIO BENITO OLIVEIRA FERRAZ Professor vínculado ao Departamento de Educação da Universidade Estadual Paulista UNESP (campus de Pres. Prudente/SP) e-mail: [email protected]

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Abstract: The historical process of institutional formation of the modern sciences ended up generating a tendency the specialization of the knowledge that took to many believe that the denominations of those specializations expressed the totality of the observed reality. That is the case of the call Cultural Geography in that the studies of the cultural aspects of the social reality for the geographical vision, present in any approach, tended to be substituted by aspects of cataloguing and superficial description of the elements certain area. The current rescue of the Cultural Geography tends to fall in theoretical posture and just to be a new name for vicious practices of scientific studies, not contributing to a better understanding of the space dynamics of the current society. Keywords: Culture; Geography; Science, Language, Identity. Resumen: El proceso histórico de formación institucional de las ciencias modernas terminó generando una tendencia a la especialización del conocimiento que tomó a muchos creer que las denominaciones de esas especializaciones expresaron la totalidad de la realidad observada. Ése es el caso de la llamada Geografía Cultural en que los estudios de los aspectos culturales de la realidad social para la visión geográfica, presente en cualquier abordaje, cuidó sustituidos por los aspectos de catalogación y descripción superficial de los elementos en cierta área. El rescate actual de la Geografía Cultural tiende a desplomarse en los modismos teóricos y simplemente ser un nuevo nombre para las prácticas viciadas de hacer los estudios científicos, no contribuyendo a un entendimiento de la dinámica espacial de la sociedad actual. Palabras clave: La cultura; la Geografía; la Ciencia, la Lenguage, la Identidad.

Presidente Pru dente

Ano 23, v. 2, n. 29

p. 29-50

Ago-Dez/2007

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Introdução: Este artigo visa apresentar algumas genéricas ponderações quanto às possibilidades do estudo científico da Geografia tecer análises sobre os aspectos culturais da realidade social. Não se objetiva aqui esgotar o assunto, mesmo por que tal pretensão é megalomaniacamente impossível, mas tão somente esboçar certas considerações, de caráter mais didático e introdutório, que a leitura dos fenômenos culturais potencializam na direção de se ampliar o entendimento do discurso científico da Geografia, assim como de também apresentar algumas temáticas e perspectivas teóricas sobre a função social desse ramo do saber humano a partir de nossas pesquisas e reflexões realizadas no interior do Grupo de Pesquisa Linguagens Geográficas. Antes de darmos início às nossas considerações, demarca-se aqui a posição de que, apesar de focarmos a questão cultural, isso não significa que estaremos fazendo a denominada Geografia Cultural. Entendemos que a Geografia se organiza enquanto saber científico a partir de um edifício lingüístico que a demarca e estimula para o diálogo com as demais esferas do conhecimento (arte, cotidiano, místico e outras ciências). É através de sua linguagem própria, a qual está sempre em processo de construção, que o discurso geográfico estabelece sua identidade e significação social. Esse discurso se pauta em certos princípios, habilidades, conceitos e categorias comuns, os quais, apesar de possuírem denominações específicas, sofrem mudanças interpretativas e de sentido conforme as características sócio-espaciais em vigor. Por conseguinte, não devemos confundir os termos e palavras com que denominamos os fenômenos e as manifestações de ordem espacial com a realidade concreta dos mesmos. Sendo a linguagem, e as palavras que a constitui, uma construção sócio-cultural, esta carrega em si todo o jogo de significações e simbologias que as relações humanas produzem em acordo com as condições técnicas, tecnológicas, políticas e ideológicas de cada época e lugar. Diante disso, por exemplo, tomar a palavra “paisagem” como se fosse a expressão exata da realidade de um fenômeno em si, tende a comprometer o próprio entendimento da realidade que se representa através desse conceito, pois não percebe que o termo é fruto de determinados usos e costumes socialmente construídos em lugar e situação específicos, não podendo ser empregado em todas as condições e contextos com o mesmo significado. A simbologia presente em um termo ou idéia toma determinada significação através do jogo de significados que a sociedade, em conformidade às contradições que a organiza com certa singularidade espacial, tende a elaborar. Tal consideração se aplica também aos termos e palavras com que se compartimentam e se especializam os ramos do saber científico, como é o caso da

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Geografia. Muitos não entendem que entre a denominação de uma área do saber e a existência concreta desta, ou sua naturalização enquanto elemento do real, existe uma grande diferença. Achar que o termo Geografia Cultural expressa uma parte da realidade, a qual deve sofrer dos mesmos processos de abordagens das tradicionais análises geográficas para assim ser mais bem mensurada, catalogada e representada teoricamente, é um complicador do discurso geográfico. Não existe Geografia Cultural enquanto tal, assim como não existe Geografia Humana, Física etc., o que existe de fato é a realidade em sua diversidade de manifestações e fenômenos, os quais podem ser interpretados pela organização discursiva e lingüística de cada ciência. Portanto, as manifestações e práticas culturais podem ser estudadas por diversos ramos do saber, incluindo-se aí a Geografia, mas isso não significa que exista uma coisa, uma entidade ou expressão da realidade que seja a “Geografia Cultural”. Essa denominação visa mais atender uma necessidade de especialização e burocratização institucional da pesquisa científica do que delimitar a existência de um fato em si. A Geografia pode auxiliar no melhor entendimento dos elementos culturais a partir de como a sociedade atual os utiliza ou os experimenta no sentido de sua lógica e dinâmica espacial, isso é o que realmente importa e, para tal, torna-se necessário redimensionar o vocabulário geográfico, assim como suas práticas e referenciais, de maneira a melhor contribuir para a interpretação do mundo em sua dinâmica contemporânea. Os fatores e elementos culturais tomam na sociedade atual importância cada vez mais central, tanto no aspecto de congregar o processo de reprodução e acumulação capitalista, assim como de divulgar e propagar os valores, percepções e comportamentos definidores das atuais relações, tanto sociais quanto individuais. O papel das diversas mídias, atrelado às novas tecnologias e técnicas de informação e comunicação, assim como o caráter cada vez mais presente dos referenciais imagéticos e estetizantes delineadores e delineados pelas perspectivas e necessidades humanas, faz com que o complexo cultural possua uma presença espacial nunca antes vista. A Cultura, entendida aqui em seu sentido mais amplo possível, desenvolveu contemporaneamente formas diversas de manifestações, assim como dinamizou as relações de disputa pelo poder e as de construção de identidades sócio-individuais, tanto em nível local quanto global. Perante esses fatos, cobra-se da Geografia a elaboração de parâmetros que permitam uma melhor leitura dessa nova ordem espacial, permitindo estabelecer sentidos de orientação e localização mais próximos das condições de existência do ser humano no interior desse processo. O artigo aqui visa contribuir nessa direção, para tal, sistematiza algumas interpretações pertinentes ao estudo geográfico do conceito e idéia de cultura, assim como apresenta um rápido histórico de como a geografia oficial incorporou e desenvolveu o estudo do universo da cultura no interior da área chamada “Geografia Cultural” e,

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fechando o artigo, propõe alguns temas e abordagens à Geografia a partir de novas formas de abordagens dos referenciais culturais e da construção necessária de um novo fazer científico. Insistimos, estas idéias e sistematizações aqui apresentadas não são únicas nem se encontram acabadas, mas são possíveis e entendemos necessárias para melhor compreendermos as linguagens geográficas que permeiam nosso viver. Cultura e Geografia – pontos de contato e novas possibilidades: O entendimento sobre Cultura nos estudos geográficos tem seu processo de sistematização e institucionalização a partir do século XIX, em decorrência das novas técnicas de registro e transmissão de informações, assim como das necessidades colocadas pelo arranjo capitalista de identificar e mensurar os diversos territórios passíveis de exploração e controle econômico. Nesse sentido, Cultura é inicialmente tomada como uma série de artefatos e práticas (roupas, técnicas de trabalho, alimentação, religião, língua, escrita, os utensílios, a moradia, arquitetura etc.) que possibilitariam caracterizar determinado arranjo sócio-paisagístico, viabilizando certa identidade regional passível de ser mapeada. Essa delimitação territorial permitia identificar a relação dos povos com seus ambientes, estabelecendo o sentido de unidade e a consolidação da desejada identidade regional até a escala do Estado-Nação. A partir da identificação e caracterização de determinado povo com um território devidamente delimitado e mensurado, tornava-se viável organiza-lo ao redor de uma estrutura jurídico-política caracterizada como Estado-Nação, a qual, em nome dos processos civilizatórios e desenvolvimentistas, implementava determinadas práticas de controle social e de administração territorial comuns a todos os povos articulados por esse modelo, ou seja, ao longo da superfície do globo terrestre, o território seria dividido em porções político-administrativas pautadas na mesma estrutura organizacional e ideológica do Estado-Nação, sendo esse o referencial científico que instituía a consolidação da lógica econômica do capital. Formalizava-se assim o modelo único de progresso e organização sócio-territorial dos diversos povos e nações, sendo a cultura o elemento central na caracterização das identidades em cada “porção” do espaço mundializado do capital. Como os veículos de acumulação capitalista ao longo do século XIX se pautavam nos mecanismos de conquistas e domínios territoriais, os aspectos culturais acabavam tomando contornos ideológicos que confundiam os conflitos sociais com os processos de independência territorial e de autonomia do Estado-Nação correspondente. Os estudos culturais tiveram grande importância no período, exatamente por contribuir para a elaboração dessas identidades territoriais e por definirem um projeto evolutivo-desenvolvimentista dessas nações a partir dos referenciais econômicos e culturais das chamadas nações mais civilizadas.

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Contudo, após a consolidação do modelo de gerenciamento territorial do EstadoNação, ao adentrar o século XX, as disputas territoriais desembocaram em conflitos beligerantes entre as grandes nações imperialistas, o que comprometeu o próprio processo de acumulação capitalista em escala ampliada. Paralelo a isso, com as novas técnicas de comunicação e circulação (rádio, telefone, cinema, automóvel, avião etc.) os tradicionais processos de pesquisas, sistematizações e divulgação dos dados ficaram obsoletos em relação aos interesses e necessidades, tanto dos Estados como do conjunto social. O rádio e o cinema, por exemplo, podiam apresentar informações dos diversos lugares do mundo atualizadas cotidianamente e com imagens consideradas reais dos lugares, de maneira mais prazerosa e dinâmica que os textos científicos e didáticos. A forma e a velocidade que os veículos comunicativos apresentavam a diversidade do mundo interferiram nas formas de percepção com que os homens liam e valorizavam o mundo e os lugares. A conseqüência disso para o discurso científico da Geografia foi um distanciamento cada vez maior entre as pesquisas e estudos sobre os aspectos culturais e o conjunto de informações que os Estados imperialistas então cobravam da ciência. As disputas imperialistas por domínios territoriais levaram a duas guerras de caráter mundial, assim como os conflitos sociais desembocaram nos projetos de libertação da classe trabalhadora amalgamados com a autonomia de Estados que se assumiram como Socialistas. Durante a chamada “Guerra Fria” os confrontos imperialistas por domínios territoriais se polarizaram em dois blocos de nações, sendo que os elementos culturais atendiam aos parâmetros dessa disputa. No interior do bloco capitalista o que se colocava era a disputa de uma cultura popular de caráter nacional contra uma cultura dominante de aspecto imperialista internacional. Já nos países do bloco socialista, a questão que se colocava era a criação de uma cultura internacional da classe trabalhadora orquestrada pelo Estado, contudo, esse modelo universal de cultura proletária socialista se conflitava com os elementos das diversas expressões culturais populares no interior de cada “nação”. Nos países da periferia do sistema econômico, com graves problemas sociais, essa disputa geopolítica adquiria um tempero especial em decorrência da adoção do modelo desenvolvimentista capitaneados pelos países centrais, fazendo que o ideal de progresso se travestisse de urbanização acelerada, aumentando ainda mais a disparidade sócioeconômica e ampliando os processos de marginalização e conflitos sociais. Em países como esses, como foi o caso brasileiro, o sentido de cultura estava parametrizado em reforçar o aspecto de atraso cultural das populações rurais, com seus ritmos determinados pelos processos naturais, as grandes distâncias a serem percorridas por veículos e meios de transportes lentos e de baixa tecnologia, assim como a dificuldade que representavam essas camadas populacionais rurais de se inserirem nos mecanismos de consumo e de controle fiscalizatório, tão necessários à reprodução econômica e política

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por parte dos Estados que ansiavam serem “desenvolvidos”. Para reforçar o sentido de identidade territorial a partir da aceitação às regras institucionais e econômicas da ordem capitalista, era necessário concentrar essa população no meio urbano, fazendo com que ela assumisse os valores culturais dessa sociedade mais tecnicista, dinâmica, padronizadora e fiscalizadora. Daí o rápido processo de urbanização que permeou a reordenação espacial da maioria dos países periféricos do sistema econômico, o que levou a fortes conflitos culturais entre gerações e camadas sociais. Os hábitos, leituras e inserção espacial de uma geração nascida no mundo rural são totalmente diferentes de outra geração nascida na espacialidade urbana. O mundo urbano não apresenta horizontes visuais amplos e o processo de localização e orientação se dá através da lógica dos nomes das ruas e números das casas, bem ao contrário do meio rural. A própria compactação das moradias e especialização territorial leva os quintais das casas, quando existirem, não serem para complementar a alimentação, mas apenas lazer, isso contribui com os conflitos de valores entre as gerações, agudizadas com os elementos de consumo e estética de produtos urbanos como roupas, músicas, hábitos alimentares e de entretenimento. O pai de origem rural achava natural criar galinhas no quintal, já o filho nascido na cidade entendia a área do quintal como boa para colocar uma piscina ou construir uma série de apartamentos pequenos e alugá-los. Esse pai aprecia músicas cujas letras fazem referências ao mundo rural, já o filho prefere sons mais urbanos e elétricos, que falam de sexo, automóvel e velocidade. Exemplos como estes expressam a maneira que os elementos fundamentais da lógica determinante do arranjo espacial das novas forças capitalistas durante a guerrafria interferiram no cotidiano de gerações e grupos humanos, o que levou a toda uma mudança de leitura e identificação do cultural como fator congregador das identidades e das leituras sócio-espaciais de então. Quem não se integrava a essa nova lógica urbana e cultural ficava marginalizado ou era eliminado Diante desse mundo urbano, em que os inovadores elementos comunicativos e circulatórios definiam novos padrões culturais, o tradicional discurso cultural da geografia, que buscava identidades entre as populações no interior de fronteiras mais claramente delimitadas, tão facilmente identificáveis num meio espacial hegemonicamente dominado pela lógica do mundo rural, tornava-se cada vez mais distante das condições sócio-espaciais então colocadas pela realidade e velocidade do universo tecno-industrial. Enquanto a Antropologia, a Sociologia, a História, a Filosofia e outras ciências e ramos do saber estavam buscando novas ferramentas teóricas e conceituais para entenderem as transformações que estavam ocorrendo no universo cultural, e as novas características deste a influenciar posturas, comportamentos, idéias e valores sociais, como foi o caso da introdução dos termos “Indústria Cultural”, “Comunicação e Cultura

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de Massa”, “Aldeia Global”, “Mass Mídia” etc., a Geografia se distanciou dessas abordagens, praticamente descartando os fatores culturais de seus estudos e abordagens1 . Com os processos de urbanização e mobilidade cada vez mais dinâmicos e diversificados a gerarem uma maior complexidade das relações sócio-espaciais, subvertendo fronteiras anteriormente mais facilmente identificáveis, além da maior integração de informações por meio da televisão e outros veículos comunicativos, a caracterização cultural como unidade de um agrupamento humano com seu território a partir de elementos singulares e únicos, inerentes a uma determinada região, ficou mais difícil. Após a crise dos países do bloco socialista e o fim da “Guerra Fria”, a globalização dos mecanismos de competitividade e de acumulação capitalista sobre bases pautadas na integração comunicacional das redes computacionais, na flexibilização dos meios produtivos e no rearranjo da divisão territorial e social do trabalho, tornou-se necessário ao Estadonação se readequar às novas funções perante a ordem financeira internacional. A partir de toda uma redefinição da ordem espacial da lógica capitalista, a cultura passou de um fator pautado nos utensílios e hábitos locais, fundamentando o aspecto mais ideológico de identidade sócio-territorial, para um elemento central na lógica de reprodução econômica e simbólica do mercado atual em suas diferentes escalas espaciais de realização. Com os processos de uniformização de produção e consumo em nível mundial, assim como, ao mesmo tempo, a fragmentação e diversificação dos fatores que envolvem a marginalização social e a sobrevivência humana, o sentido de identidade territorial se transformou numa interação de elementos simbólicos cujo significado não se restringe só ao local ou a determinada classe social. Um jovem adolescente morador da periferia marginalizada de uma cidade média, como Dourados (MS), veste-se com roupas semelhantes ao seu ídolo raper norteamericano, adquirindo medalhões com dizeres em inglês, fabricados na China e comprados no “camelódromo”, ao mesmo tempo que torce para o Corinthians com seu “craque” argentino Teves, acompanha o drama da personagem virginal da novela da Globo e acessa a Internet para baixar as imagens em que ela aparece nua juntamente com a atriz espanhola Penélope Cruz. Aos fins de semana vai com os amigos comer pizza com guaraná no Habib’s enquanto reclama do péssimo gosto musical dos pais, que gostam do disco latino do Chitãozinho e Xororó, e almeja “ficar” com a vizinha de frente de seu barraco, principalmente depois que ela tingiu o cabelo de loiro para ficar parecida com a Cristina

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Um exemplo clássico desse distanciamento é encontrado em referência a obra do geógrafo Eric Dardel, que nos anos 50 e 60 do século XX desenvolveu vários estudos sobre a redefinição do sentido de cultura na abordagem geográfica, mas ficou praticamente ignorado, só sendo resgatado anos depois em países como Canadá e, no caso brasileiro, só veio a ser estudado mais efetivamente a partir da década de 90. Os motivos para essa recusa em focar os estudos culturais no período são vários, e pensadores como Claval, Cosgrove, Correa tecem esclarecimentos a respeito, vide bibliografia.

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Aguilera. Esses hábitos, utensílios e valores hoje são comuns a boa parte dos jovens moradores da maioria das cidades do mundo. As diferenças se restringem, enquanto classe social, mais ao aspecto de poder econômico para consumir produtos mais sofisticados, e enquanto diferenças regionais, a aspectos peculiares que não chegam a comprometer o padrão geral, muitas vezes se interagem com esse referencial cosmopolita, dando ao mesmo um tempero especial, como é o caso de fazer fast food de comida baiana, ou ouvir “forró universitário” nas festas de São João na Paraíba. Perante isso, a lógica das identidades culturais não fica tão somente circunscrita aos parâmetros territoriais fixos, delimitados por fronteiras rígidas. O espaço em que se expressava determinada unidade cultural não é mais um palco com sua paisagem secularmente consolidada. A lógica da manifestação cultural atualmente está intrinsecamente relacionada com a interdinâmica escalar do espaço, entre o local e o mundial. A cultura hoje é mais do que utensílios e práticas temporalmente consolidadas, ela é também relações de valorização subjetivas de identidade e significação que se manifestam objetivamente ou simbolicamente no espaço, tanto na concretude dos territórios quanto no imaginário social de cada indivíduo. Diante disso, não cabe mais um termo como Geografia Cultural em si, cuja idéia refere-se a uma prática de estudos regionais passíveis de delimitação física e sob uma herança histórica que funciona como um peso a cristalizar a paisagem quase que imutável dos locais. Hoje, cobra-se do estudo geográfico dos fenômenos culturais um enfoque da dinâmica espacial da sociedade em interação íntima com os aspectos individuais e coletivos no estabelecimento de significação social, tanto em seus determinantes econômicos quanto simbólicos. Diante de todas essas mudanças no sentido econômico e ideológico do papel da cultura no universo capitalista atual, perante a grave crise de identidade e função social que permeou a ciência geográfica a partir dos anos 70, os antigos enfoques geográficos sobre o universo cultural passam a ser resgatados e readaptados às novas condições do mundo, mas como forma de se buscar referenciais condizentes para os estudos científicos deste saber perante as novas condições espaciais então em rápido processo de consolidação. A questão atual é entender os atuais parâmetros de localização e de orientação, de pertencer e se identificar com determinado lugar, sendo que esse lugar não é mais passível de ser tomado isoladamente, pelo contrário, ele é a manifestação do mundo em suas características locais. Ou seja, o que se coloca hoje no estudo geográfico da cultura é de como esta permite o homem se construir enquanto humano no tempo e espaço em que produz territorialmente os sentidos de sua existência. Rápido histórico da abordagem cultural pela geografia:

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Antes de iniciar esse capítulo, esclarecemos que essa abordagem histórica do estudo geográfico dos aspectos culturais trilha o caminho de nossas pesquisas; visa melhor fundamentar nossa leitura de Geografia e Cultura, portanto, é mais uma abordagem e não tem pretensões de ser a redentora da questão. A Geografia, enquanto discurso científico institucionalizado, é um corte e uma delimitação de todo o saber geográfico presente ao longo da história da evolução humana. É um corte para atender determinadas necessidades que ao longo dos séculos XIII e notadamente XIX se tornaram cruciais para a lógica da perpetuação da sociedade industrial e capitalista européia. É no interior dessas necessidades, esboçadas em capítulo anterior, que surge a denominação Geografia Cultural, cuja origem se encontra na própria gênese da Geografia moderna. Foi Friedrich Ratzel, em 1880, após sua viagem de estudos aos EUA, que emprega pela primeira vez o nome Geografia Cultural. Seu trabalho A Geografia Cultural dos Estados Unidos da América do Norte com a Ênfase Especialmente Voltada para as suas Condições Econômicas é um marco, tanto no desenvolvimento de suas idéias posteriores, as quais desembocarão no sentido mais amplo de Antropogeografia, quanto para a Geografia como um todo, pois demarca como o conhecimento geográfico não pode descartar os elementos culturais, assim como as interações entre estes e com os demais aspectos da realidade humana (econômico, político etc.), no processo de entendimento dos diferentes arranjos paisagísticos produzidos. A abordagem geográfica de Ratzel visava levantar as características das relações de determinado meio com o homem que ali habitava, sendo que esse entendimento se dava a partir dos utensílios e práticas empregadas no processo de produção de subsistência do coletivo, como ficava evidente ao se observar as diversas regiões, em grande parte fortemente rurais, isoladas e milenarmente consolidadas, que compunham as várias nações européias do século XIX. Fazendo uso de uma frase retirada de sua Antropogeografia, selecionada por Paul Claval em seu livro sobre Geografia Cultural, temos a confirmação do sentido do estudo geográfico da cultura por parte de Ratzel. “A extensão geográfica ampla, uniforme e pouco contrastada por razões culturais, configura o primeiro objeto da antropogeografia, que pode explicar muito claramente esta extensão sobre a base de relações simples (que estabelecem com o meio ambiente)”.(1999, p. 22).

Com o aumento da dinâmica comunicativa e de circulação de pessoas, mercadorias e informações, tanto na Europa quanto no restante do mundo a partir do século XX, os estudos culturais, por parte da Geografia, com seus enfoques pautados em regiões de forte tradição rural, quase que isoladas, foram sendo solapados, gerando a necessidade

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de se redimensionar as análises geográficas perante as novas necessidades então em voga. Essas mudanças vão gerar estudos mais pragmáticos com forte uso da cartografia e matemática, como ocorreu nos EUA através da famosa escola de Chicago. Em reação a essas abordagens consideradas tecnicistas, que praticamente eliminava o agente humano como construtor ou valorizador das paisagens, surge Carl Sauer, que em 1925 escreve A Morfologia da Paisagem, fundando assim a chamada Geografia Cultural NorteAmericana, ou escola de Berkeley. Sauer desenvolveu toda uma metodologia que permitiu à Geografia Humana ter respaldo frente ao considerado maior rigor dos estudos pragmáticos e sistêmicos da escola de Chicago. O grande avanço de Sauer foi apontar os aspectos subjetivos, já presentes em alguns estudos geográficos anteriores, como inerentes às abordagens estéticas que muito contribuiriam ao estudo científico da Geografia. “A melhor geografia jamais deixou de levar em conta as qualidades estéticas da paisagem, para qual não conhecemos outra abordagem a não ser a subjetiva. A ‘fisionomia’ de Humboldt, a ‘alma’ de Banse, o ‘ritmo’ de Volz, a ‘harmonia’ da paisagem de Grandnann, todas estão além da ciência”.(SAUER. 1998, p. 61).

Contudo, dentro da tradição ratzeliana, seu foco de análise cultural se restringiu aos elementos paisagísticos da superfície da Terra passíveis de serem empiricamente catalogados e descritos. Nessa busca de um entendimento de interação homem/natureza, as condições de análise a partir dos aspectos observáveis pela sensibilidade humana acabaram por restringir os estudos a localidades cujo peso de uma tradição histórica encontrava-se latente, portanto, atendiam mais a uma abordagem estanque das relações culturais e sociais, deixando de lado os elementos simbólicos mais dinâmicos e flexíveis. No entanto, independente disso, os estudos de Sauer são demarcadores de uma outra possibilidade para os enfoques científicos acadêmicos do discurso geográfico, mas acabaram, com o advir da Segunda Guerra, da Guerra Fria e da disputa geopolítica pela consolidação ideológica e econômica do capitalismo frente aos países do socialismo real, sendo eclipsados pela necessidade de abordagens mais voltadas ao planejamento, ao controle técnico e pragmatista do território. Em decorrência das transformações sócio-econômicas após a Segunda Guerra, os graves conflitos ideológicos levaram ao surgimento de um discurso mais dicotomizado politicamente nas ciências humanas, levando a Geografia buscar, de um lado, nos parâmetros tecnicistas e sistêmicos, abordagens mais pragmáticas e técnicas de estudos do território, e por outro, nos referenciais marxistas os parâmetros teóricos que viabilizassem suas análises sociais. Ambas as posturas contribuíram para um desvio do enfoque geográfico em direção

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à economização do espaço, tanto por visar a eficiência do controle e planejamento das potencialidades do território, quanto pela fundamentação lógica para a explicação das matizes e injustiças sócio-espaciais. Isso engendrou um afastamento dos estudos culturais, que foram tomados como acessórios inúteis, por um lado, ou ideológicos, por outro. Mas já nos anos 50 do século XX, Eric Dardel publica O Homem e a Terra, Natureza da Realidade Geográfica, obra que fica praticamente desconhecida na França, ressurgindo só algumas décadas depois e abre espaço para novas abordagens de estudos geográficos sobre os elementos culturais da sociedade moderna. Grandemente influenciado pelas idéias de Heidegger, assim como se definindo por uma abordagem mais fenomenológica, a perspectiva de estudos culturais pela geografia de Dardel não encontrou condições propícias, na época de sua elaboração, no meio acadêmico francês, de forte presença dos referenciais marxistas, e norte-americano, com seu peso maior nas abordagens neo-positivistas. Essas abordagens e tendências geográficas eram, de maneira geral, as hegemônicas nos mais diversos países da época (anos 50, 60 e início dos 70), só vindo a se ampliar o leque de outras abordagens teóricas com o desgaste político e conceitual dessas matrizes teórico-metodológicas, fruto do próprio desenvolvimento da sociedade e das relações capitalistas que, paralelo a introdução dos novos meios de comunicação e informação, permitiram que os fatores culturais ascendessem de importância, tanto no mercado globalizado quanto nos processos de busca de sentido e de leitura do mundo. Ao longo dos anos 80 as atuais condições sócio-espaciais começam a se consolidar, diante desse processo o pensamento dos geógrafos que abordaram a questão cultural, como foi o caso de Dardel, passa a ser resgatado. No caso desse, seus estudos a partir de elementos mais subjetivos e micro-analíticos permitiram abrir à chamada Geografia Cultural outras perspectivas de leitura e estudos do espaço segundo os condicionantes mais próximos do cotidiano existencial humano. A partir daí, notadamente no decorrer dos anos 90, a Geografia mergulha nas análises das experiências individuais ou de agrupamentos humanos, tomando o vivido e suas representações como marcos de identificação geográfica dos lugares. Paulatinamente, portanto, os estudos geográficos do universo cultural deixam de ser restritos a uma definição de identidades regionais estanques e de razoável delimitação a partir das características dos objetos, utensílios e hábitos produzidos em áreas quase que isoladas uma das outras, passando a ser mais de entendimento da construção de identidades, de sentido de localização e orientação em meio a um mundo fragmentado, caótico, dinâmico, multi-escalar e polissensorial. É isso que identificamos, por exemplo, nas obras de novos geógrafos que abordam essa questão, como é o caso de Denis Cosgrove, que parte de uma leitura do espaço geográfico como elemento inerente às condições diversas de vida de cada indivíduo, não reduzindo-o ao meramente empírico e catalogável,

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“...enquanto nossos objetos de pesquisa continuarem exclusivamente empíricos e nossas interpretações da motivação humana resolutamente utilitárias, negamos a nós mesmos uma linguagem para moldar as próprias metas que procuramos: a formação de um mundo melhor...Banidas da geografia estão as paixões inconvenientes, às vezes assustadoramente poderosas, motivadoras da ação humana, entre elas as morais, patrióticas, religiosas, sexuais e políticas. Todos sabemos quão profundamente estas motivações influenciam nosso próprio comportamento diário, quanto elas informam nossas respostas a lugares e cenas...”.(COSGROVE. 1998, p. 95 e 96).

Abordagens como esta de Cosgrove representam um grande avanço para as análises geográficas frente à complexidade do mundo atual, contudo, deve-se ter claro que se essas mudanças ficarem restritas a um novo referencial teórico-metodológico, ou a um novo tema que pode ser incorporado aos estudos geográficos, os velhos vícios do discurso científico de uma geografia carente de poder e a serviço meramente da verborragia acadêmica não serão superados. O problema é que muito do que se coloca como novidade da chamada Geografia Cultural atual se deu a partir dos referenciais tradicionais de concepção de se fazer ciência, apenas com nova roupagem teórica e metodológica. Isso fez com que os novos processos e características sociais fossem formatados pelos novos parâmetros teóricos a partir de tradicionais modelos e vícios de entendimento de como se produzir um estudo científico. Especializam-se os estudos via fracionamento intelectual da realidade. Elege-se competências para se abordar cada especificidade e usam-se dos fenômenos estudados como veículos para comprovar a pertinência do modelo teórico-metodológico empregado. A possibilidade dos estudos dialogarem com os sujeitos humanos na direção de melhor orientação, localização e leitura do mundo para subsidiar práticas e ações, por mais banais que estas sejam, acaba assim limitada a uma conseqüência secundária dos estudos científicos dos processos culturais. Os estudos geográficos dos fenômenos culturais atuais só terão sentido para a melhor compreensão do ser humano enquanto ser cultural se forem voltados à vida dos mesmos, viabilizando um entendimento mais esclarecido enquanto práticas cotidianas dos indivíduos em sociedade, portanto, deve-se pensar em outros parâmetros de se fazer ciência para além dos modismos acadêmicos. Alguns temas necessários a serem aprofundados pela geografia: O estudo geográfico dos fenômenos e elementos culturais cobra do discurso científico da geografia uma abertura para temas e aspectos da realidade que a abordagem institucionalizada desse saber insistiu e insiste em não considerar como pertinentes ao olhar do geógrafo.

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Não importando qual a corrente teórico-metodológica a que o geógrafo vincula seu trabalho, majoritariamente as abordagens geográficas se enclausuraram no interior de um estatuto de concepção de ciência que se pauta nos modelos das ciências naturais, físico-matemáticas do século XIX. São referenciais que concebem como única forma de se produzir conhecimento científico aquela que encontra uma verdade definitiva capaz de padronizar a diversidade do real. Esta forma de entendimento não percebe que entre a concretude de um dado fenômeno no real e a maneira como o representa ou o identifica por meio do emprego rigoroso das palavras há uma profunda diferença e distanciamento re-criativo permeado pelas experiências intelectuais humanas. Esses referenciais não se abrem para as novas condições em que os seres humanos estão produzindo e vivenciando sua espacialidade, pois insistem na perspectiva de um racionalismo fechado em que só existe a não-contradição de uma ordem linear; quando muito, entendem essa não contradição apenas como um jogo de palavras que reforçam a coerência lógica do discurso final elaborado. Não percebem que após a Teoria da Relatividade, do surgimento da Física Quântica, da Geometria Não-Euclidiana de Lobatchevski, da Álgebra de Boole, da nova Termodinâmica e do DNA, os tradicionais modelos rígidos e definidores de uma realidade objetiva e plenamente mensurável, sem improvisações ou fatores aleatórios, que as antigas ciências naturais defendiam, começaram a ser reavaliados em prol de novas formas de entendimento da racionalidade e da objetividade científica. Logicamente que isso não significa que foram eliminados, mas que não podem mais serem tomados como únicos e absolutos em si. Atualmente a Matemática, a Física, a Química e a Biologia, entre outras, tendem a incorporar os aspectos simbólicos e culturais humanos nos seus referenciais de leituras da realidade, mas isso não significa que estes saberes perderam o necessário rigor das análises, simplesmente abriram-se para outros horizontes humanos da realidade. O princípio da não-contradição não se aplica mais em sua inteireza, assim como a idéia de verdade passou a depender também dos elementos simbólicos e imagéticos que a cultura humana produz como referencial pertinente a dar sentido a determinado aspecto da realidade, não se confundindo mais com os fatos que envolvem a realidade objetiva independente da presença humana. Diante disso, a Geografia precisa se abrir para esses enfoques temáticos, possibilitando uma efetiva contribuição de sua análise para as novas necessidades sociais, ao invés de ficar negando, em nome de uma idéia de ciência que, cada vez mais, se distancia das condições em que a vida humana está se dando. A seguir apresentamos alguns temas que podem ser abordados de forma mais constante pela Geografia a partir do enfoque dos elementos culturais. Esses temas não esgotam o universo de possibilidades, mas apontam para novas perspectivas que a Geografia tem condições de contribuir, desde que supere seus vícios academizantes,

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redimensionando o sentido epistemológico-ontológico do seu fazer ciência, ampliando a própria concepção de ciência para além das armadilhas metafísicas que secularmente a aprisionou. A)REDEFINIÇÃO DO SENTIDO DE CIÊNCIA: Desde o século XIX, vários pensadores já apontam para os limites do pensamento científico em sua crença dogmática de desvendar a verdade do universo e dizer para onde que a sociedade humana deve caminhar. Nietzsche, Dilthey, Husserl, Bachelard, Lefebvre, entre tantos outros, das mais diversas formações e opções teóricas e políticas, contribuíram para que o conhecimento científico assuma uma polissemia de sentido e uma atitude mais próxima do viver humano, superando seu vínculo com a exclusividade das necessidades meramente abstratizantes da metafísica em que fundamenta a suposta coerência lógica de seu discurso. As chamadas ciências humanas (sociais para uns, do espírito, para outros), no interior dessa reavalização estatutária, passam a ser o foco das principais análises e críticas, cobrando-se delas uma atitude mais coerente com seus objetos de estudos, de forma que percebam a singularidade de seus referenciais epistêmico-teóricos, tanto a partir de sua base ontológica quanto de sua finalidade social. A Geografia, enquanto corpo teórico de análise dos processos espaciais da sociedade, deve buscar uma elaboração discursiva que seja coerente com sua finalidade social, ao invés de insistir em compartimentações e especializações cientificistas que apenas a distanciam de seu propósito em nome dos supostos interesses do Estado. Ao invés de priorizar a concorrência com profissionais de outras áreas, disputando um mercado de competências meramente técnicas, com especializações tipo geografia humana, geografia física, geografia urbana, geografia rural, geografia cultural etc., o geógrafo deveria se aprofundar na organização de sua linguagem visando elaborar meios mais eficientes de interpretação dos diversos processos espaciais que envolvem a produção de sentidos da vivência humana2 . B)LINGUAGEM E IDENTIDADE: “Os materiais de uma ideologia são a linguagem e seus recortes práticos, denominados ‘discursos’”(SODRÉ. 2004, p.22). A linguagem é uma forma simbólica de comunicação e interação, reflete as condições sociais em que as pessoas vivem, mas pode também “criar” padrões de entendimento do real.

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A busca por processos mais criativos sofre grave resistência por parte da academia, basta ver que até os meios de divulgação e apresentação das reflexões científicas passam por um processo de padronização e delimitação que visa inibir a criatividade, a produção de pensamentos mais originais e as formas de apresentálos. A justificativa para tal é uma suposta idéia de qualidade padronizante de cunho competitivo internacional.

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É através da linguagem socialmente elaborada que a produção de sentido territorial se faz presente no imaginário, na política e nas condições concretas de vida de cada indivíduo em determinado grupo social. Por meio da linguagem, a qual nunca é estanque e sim constantemente construída, que cada ser humano elabora seus referenciais de localização, orientação e produção de sentido sócio-espacial, ou seja, organiza os significados e significantes de identidade entre o corpo humano individual, o corpo social e o território em que os seres humanos materializam física e simbolicamente a vida: “utilizamo-nos da língua e de outros sistemas de significação socialmente construídos para elaborar os significados, as representações que dão sentido à nossa existência. É na linguagem que se constroem as culturas humanas, ou seja, que se constroem as narrativas e os discursos que orientam nossas ações”(FERREIRA & ORRICO. 2002, pg. 8).

Jô Gondar, em seu artigo Linguagem e Construção de Identidades, o qual faz parte do mesmo livro organizado por Ferreira e Orrico, aponta a importância da questão da linguagem para o sentido de identidades territoriais, abrindo todo um universo para os estudos dos elementos culturais à Geografia: “A própria definição de língua...não poderia ser separada de fatores geopolíticos, tais como a consolidação de um determinado território...Existem determinados climas geopolíticos que favorecem construção de algumas identidades: no século XIX, por exemplo, um clima favorável aos nacionalismos; nesta passagem de século, um clima favorável a uma globalização excludente, mas que também da lugar a identidades que resistem a esse projeto homogeneizador”(2002, pg. 114-115).

C)URBANIDADE, JUVENTUDE E ESCOLA: “É no mundo dos jovens urbanos que se fazem visíveis algumas das mudanças mais profundas e desconcertantes de nossas sociedades contemporâneas: os pais já não constituem o padrão dos comportamentos, a escola não é o único lugar legitimado do saber e tampouco o livro é o eixo que articula a cultura”(MARTIN-BARBERO. 2004, p.66).

A juventude, por meio de experiências imagéticas exercitadas pela televisão e outras mídias eletrônicas, melhor se adequou à lógica das imagens, assim como desenvolveu certa facilidade para com os padrões binário-dedutivos da maioria dos jogos eletrônicos, provocando o desenvolvimento de sensibilidades que resistem aos referenciais da cultura letrada, rejeitando os domínios territoriais tradicionais nos quais imperam a linguagem pautada na ordenação das palavras. Daí a produção de novas comunidades territorialmente marginais e complementares

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ao espaço dominante, as quais estão majoritariamente localizadas no espaço da vida urbana, e se pautam em processos comunicativos fincados numa simbologia imagética presente no vestuário, gírias, músicas e ídolos passageiros. Michel Maffesoli (1988) melhor caracteriza essas novas formas de busca de identidades territoriais através do conceito de “tribos”, enxergando nessas tribos urbanas o declínio do sentido de sujeito histórico enquanto indivíduo humano nas sociedades de massa, o que gera uma busca entre os membros desses pequenos agrupamentos sociais e etários por identidades existenciais pautadas em outros sentidos e vivências espaciais. A volatização é marca desse tempo de rápida combustão. A escola e a família, entre outras instituições, não conseguem se posicionar claramente frente a estas novas espacialidades e mobilidades, pois se enraízam em um espaço de duração e ritmo mais constante, pautado numa cultura de referência à linguagem tradicional, da palavra escrita, das tecnologias analógicas. Para superar isso, as instituições que visam a preparação dos indivíduos para a vida social, como é o caso da escola, devem: “interagir com os campos de experiência nos quais se processam hoje as mudanças: hibridações da ciência com a arte, das literaturas escritas e audiovisuais...o intercâmbio e disponibilização de projetos, pesquisas e experimentações estéticas”(Ibidem, p. 67).

A Geografia, por trabalhar com os processos de interação de escalas entre o local e o universal, de maneira a propiciar parâmetros de localização e orientação espacial, desde que estas não fiquem restritas aos elementos matemáticos cartografáveis, pode auxiliar nesse diálogo e “intercâmbio” entre os processos lógicos da análise científica e as “experimetações estéticas”, ou seja, entre aquilo que podemos interpretar dos novos comportamentos sociais e os gostos que cada grupo ou “tribo” desenvolve como referência e identidade sócio-territorial. C)ECONOMIA, LUGAR E ESTÉTICA: “...o espaço econômico de competição mudou de forma e escala no decorrer do tempo...há lutas contínuas sobre a definição dos poderes monopólicos que podem ser atribuídos à localização e a localidades, e que a idéia de ‘cultura’ está cada vez mais entrelaçada com as tentativas de reafirmar tais poderes monopólicos, exatamente porque alegações de singularidade e autenticidade podem ser mais bem articuladas como afirmações culturais distintas”(HARVEY. 2004, p. 148 e 149).

A renda de monopólio baliza outras formas de acúmulo de capital que não só a exploração do trabalho explica. No capitalismo atual, altamente competitivo, com o jogo internacional do mercado e o enfraquecimento das tradicionais fronteiras e barreiras nacionais, uma maneira de propiciar a renda de monopólio é usando dos bens culturais

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únicos como forma de impor um valor monopólico aos seus produtos. É o caso dos quadros de pintores famosos, das cervejas e vinhos de determinadas regiões. O gosto estético pelo único é fruto de toda uma construção histórica e midiática, viabilizando que grandes investimentos sejam feitos em determinadas porções do território e produtos, mesmo que as práticas destas e seus meios sejam contestadores à lógica do sistema global, mas se a singularidade produzir lucros, sejam estes advindos do turismo, da música, do cinema etc., vale o risco de investimento. Eis a nova face da dialética “espaço-lugar”, aquela que se explica pelo capital simbólico coletivo produzido em determinados locais. Por exemplo, caso uma região que busca sua autonomia política e identidade própria possua terras e clima propícios a produzir um bom vinho; toda essa simbologia de autonomia, orgulho regional e sentido de liberdade pode ser utilizada pelo grande capital como fundamento lógico para se investir nessa região, mesmo correndo o risco de convulsões sociais. O interesse visa uma mercadoria carregada dessas significações culturais que servirão como uma espécie de valor agregado ao produto final, o que transformará esse vinho em algo único, portanto, passível de renda de monopólio. Melhor entender como os elementos simbólicos e estéticos dos produtos culturais, a partir das características locais e em acordo com a lógica acumulativa e da divisão internacional do trabalho, acabam contribuindo para os processos de reprodução do capital no interior das atuais condições de competitividade e exploração, é uma frente desafiadora para as interpretações geográficas e de crucial importância à leitura da lógica espacial da sociedade contemporânea. D) O CORPO INDIVUDUAL E O SOCIAL O corpo humano é uma organização físico-biológica, contudo, só pode ser entendido como humano quando encarna elementos subjetivos, emocionais e intelectuais, que muitos chamam fatores espirituais, outros psicológicos e, de forma geral, entendemos como culturais, ou seja, aqueles aspectos que dão sentido peculiar ao espaço corpóreo de cada ser humano. Outro aspecto a destacar é que esse sentido espacial único do corpo humano só toma significado graças a sua interação constante com o corpo social do meio em que vive. Esse é um meio também físico, mas por ser fruto das relações humanas, está carregado de significados, simbologias e experiências que só o ser humano consegue dar sentido, portanto, é um espaço corporal também cultural que, na relação com cada corpo individual, estabelece as condições mais amplas do que é a humanidade. O estudo dessas interações corporais (individual e coletiva, física e cultural), passou a ser fonte de estudos de áreas do saber humano como a Antropologia, a História, a Sociologia, a Psicologia e da Filosofia, que desenvolveram uma série de ferramentas conceituais como os de “fato social total” e “técnicas corporais”3 , que visam melhor

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entender como os corpos individuais desenvolvem determinadas habilidades motoras, intelectuais, emocionais e perceptivas a partir das condições sócio-espaciais produzidas. Outro conceito importante para entender o sentido mais amplo do corpo, tanto individual quanto coletivo, advém do pensamento de Glifford Geertz, o qual introduziu o sentido mais simbólico da relação espacial que cada corpo em particular elabora a partir do contexto cultural em que se encontra, ou seja, cada ser humano produz significados e sentidos para seus gestos e percepções pessoais a partir das interações e experiências simbolicamente elaboradas e interpretadas no meio cultural em que se encontra, portanto, no interior de determinada interação espacial. Além desses, pensadores como Maurice Merleau-Ponty alargaram a discussão dos aspectos mais metafísicos e ontológicos da interação entre corpo e carne como espaços que se complementam e se estranham no complexo jogo de busca de significados existenciais, tanto para os indivíduos quanto para o conjunto social. A geografia, por conseguinte, pode muito contribuir para melhor entender essa dinâmica espacial entre o corpo de cada ser humano com o corpo social, de maneira a produzir leituras mais ricas para estabelecimento de significados frente aos sentidos espaciais que cada homem experimenta com seu próprio corpo. E)PALAVRA E IMAGEM: O mundo hoje está fortemente pautado na imagem como veículo comunicativo e representacional. A imagem, principalmente após as novas técnicas e tecnologias de capitação e reprodução, permite que a percepção humana das formas do real não precise tanto de ser complementada pelas experiências imagéticas que cada indivíduo traz consigo, o que ocorria com as narrativas e descrições pautadas no universo da palavra. Ao mesmo tempo, isso gerou toda uma nova forma de percepção e de estética de apreciação dos objetos e produções humanas. Torna-se extremamente necessário, portanto, desenvolver metodologias e ferramentas que aprimorem a leitura das imagens por meio de palavras, de maneira a enriquecer o vocabulário e permitir que as imagens não fiquem circunscritas ao nível meramente contemplativo. A geografia, por estudar a paisagem, parte das formas imagéticas com que esta se apresenta para, após projetar elementos conceituais relacionados ao universo vocabular, produzidos a partir dos meios intelectuais e do imaginário humano, estabelecer condições de melhor entender a lógica espacial com que determinada paisagem se configura. No estudo das imagens várias técnicas foram desenvolvidas, desde a gestalt com sua “pregnância da forma” via a “harmonia/desarmonia”, “equilíbrio/ desequilíbrio”, “contraste”, “luz”, ‘ritmo”, passando pelas várias semióticas, como as de Greimas com seu “plano conteúdo” e “plano extensão”, ou a de Pierce com

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Esses conceitos foram elaborados por Marcel Mauss, vide bibliografia.

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suas categorias da “primeiridade”, “secundidade” e “terceiridade” e seus signos “icônico” (não figurativo), “indexial” (figurativo) e “simbólico” (codificada), assim como as capacidades representativas, significativas e simbólicas, permitem um exercício do olhar e da leitura das imagens por parte dos geógrafos. Contudo, a melhor e mais rica forma de se dialogar e enriquecer o discurso científico da geografia é trabalhar diretamente com as imagens produzidas, sejam estas as elaboradas pela pintura, pela televisão, fotografia, cinema, jogos virtuais etc., a partir do entendimento estético das mesmas. O aprofundamento na abordagem estética, entendendo esta como forma de interpretar as imagens paralelamente aos processos de apreciação e valorização das mesmas, os quais são edificados socialmente, permitirá que a leitura geográfica use do universo dos referenciais pautados na lógica das palavras, com as quais a estética se instrumentaliza, para interpretar e apreciar a produção imagética. Como vimos, as possibilidades e desafios colocados à Geografia diante da relação palavra/imagem no processo de ampliação de seus referenciais científicos são grandes e altamente estimulantes, mas inerentemente necessários de serem abordados. Considerações finais: O que se coloca atualmente à Geografia é a necessidade de se aproximar mais das áreas que abordam a problemática cultural, tanto as produtoras quanto as que analisam tal esfera, de maneira que uma melhor interpretação da lógica espacial desse universo possa contribuir para um maior entendimento do homem em suas complexas e diversas relações sociais. Com a presença cada vez maior dos aspectos e fatores culturais no interior das relações cotidianas que tendem a naturalizar os elementos de dominação sócio-econômica hegemônicos, os quais parametrizam a lógica macro-estrutural da sociedade em seus parâmetros econômicos, políticos e ideológicos, a congregação de esforços permite buscar por diálogos com outras áreas do saber, assim como contatar os elementos estéticoartísticos, passa a ser fundamental para qualquer ramo científico. A discussão sobre uma Teoria da Cultura não pode cair nas tradicionais armadilhas do pensamento científico institucionalizado, aquele que busca um conceito definitivo, universal e absoluto, fruto das competições teóricas em prol de fama, dinheiro e poder acadêmico, mas deve servir como referencial a conjugar esforços intelectuais e estéticos em favor de uma melhor compreensão das condições atuais de existência, de maneira a contribuir na direção da construção de críticas e respostas mais saudáveis para o ser humano. As críticas atuais feitas ao modelo de ciência que buscava grandes narrativas redentoras da humanidade não podem significar deixar de lado a necessidade que temos de teorias que parametrizem nosso caminhar teórico e político.

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Vive-se atualmente uma complexa relação de caoticidade e fragmentação das estruturas sociais, em que os antigos modelos explicativos e generalizantes deixaram de nos dar a segurança necessária, isso não significa que devemos nos perder em modelos explicativos relativos aos casos particulares em si. O discurso científico deve saber dialogar com os detalhes e compreender seus limites generalizantes, mas deve se assumir como um referencial capaz de contribuir para o melhor entendimento humano; no caso da Geografia, deve elaborar parâmetros que permitam aos homens melhor se orientar e se localizar nesse jogo escalar entre o local e o universal, já que o momento atual parece ser fruto de uma espacialização desintegradora das relações humanas. Nesse aspecto, os elementos culturais, centrais, como aqui tentamos apontar, tanto para a lógica econômica quanto para a produção de identidades sócio-territoriais, devem passar por uma leitura mais adequada e profunda pela perspectiva geográfica, permitindo estabelecer certa unidade de compreensão em meio à diversidade da dialética espaçolugar. Bibliografia: CASTELLS, Manuel. Internet e Sociedade em Redes. In: MORAES, Denis (org.). Por uma Outra Comunicação – mídia, mundialização, cultura e poder. Rio de Janeiro: Record, 2004. CHARTIER, Roger. A História Cultural – entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990. CLAVAL, Paul. Geografia Cultural. Florianópolis: Ed. Da UFSC, 1999. CORREA, Roberto & ROSENDAHL, Zeny (orgs). Geografia Cultural – um século. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998. COSGROVE, Denis. A Geografia está em Toda Parte – cultura e simbolismo nas paisagens humanas. In: CORREA, Roberto & ROSENDAHL, Zeny (orgs). Paisagem, Tempo e Cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998. COUTINHO, Carlos N. Cultura e Sociedade no Brasil – ensaios sobre idéias e formas. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. DAOLIO, Jocimar. Educação Física e o Conceito de Cultura. Campinas, SP: Autores Associados, 2004. EAGLETON, Terry. Depois da Teoria – um olhar sobre os estudos culturais e o pós-modernismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. FERRAZ, Cláudio B. Geografia e Paisagem - entre o olhar e o pensar. Doutorado em Geografia, São Paulo, FFLCH/USP, 2002. FERREIRA, Lucia & ORRICO, Evelyn (orgs.). Linguagem, Identidade e Memória Social – novas fronteiras, novas articulações. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. GEERTZ, CLIFORD. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989. GOMES FILHO, João. Gestalt do Objeto – sistema de leitura visual da forma. São Paulo: Escrituras Editora, 2000. HARVEY, David. A Arte de Lucrar – globalização, monopólio e exploração da cultura. In: MORAES, Denis (org.). Por uma Outra Comunicação – mídia, mundialização, cultura e poder. Rio de Janeiro: Record, 2004. LIMA, Luiz C. (org.). Teoria da Cultura de Massa. São Paulo: Paz e Terra, 2005. MAFFESOLI, Michel. O Tempo das Tribos – o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988.

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MERLEAU-PONTY, MAURICE. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994. MAUSS, MARCEL. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP, 1974. MARTIN-BARBERO, Jesus. Globalização Comunicacional e Transformação Cultural. In: MORAES, Denis (org.). Por uma Outra Comunicação – mídia, mundialização, cultura e poder. Rio de Janeiro: Record, 2004. PIETROFORTE, Antônio. Semiótica Visual – os percursos do olhar. São Paulo: Contexto, 2004. SANTAELLA, Lucia & NÖTH, Winfried. Imagem – cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 1998. SANTOS, Douglas. A Reinvenção do Espaço – diálogos em torno da construção do significado de uma categoria. São Paulo: UNESP, 2002 SAUER, Carl. A Morfologia da Paisagem. In: CORREA, Roberto & ROSENDAHL, Zeny (orgs). Paisgem, Tempo e Cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998. SODRÉ, Muniz. O Globalismo como Neobarbárie. In: MORAES, Denis (org.). Por uma Outra Comunicação – mídia, mundialização, cultura e poder. Rio de Janeiro: Record, 2004. TAYLOR, Roger. Arte, Inimiga do Povo. São Paulo: Conrad, 2005. WERTHEIM, Margaret. Uma História do Espaço – de Dante à internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

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Recebido para publicação dia 12 de Novembro de 2007 Aceito para publicação dia 01 de Fevereiro de 2008

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ESTUDOS

MIGRATÓRIOS NA MODERNIDADE E NA PÓS-MODERNIDADE: DO ECONÔMICO AO CULTURAL?* STUDIES MIGRATÓRIOS NA MODERNIDADE AND THE POSTMODERNIDADE: THE ECONOMIC THE CULTURAL? ESTUDIOS MIGRATÓRIOS NA MODERNIDAD Y DE LA POSMODERNIDAD: EL ECONÓMICO CULTURAL?

MARCOS LEANDRO MONDARDO Mestrando em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal da Grande Dourados; Bolsista CAPES. Endereço: Rua Itapeva, nº 150, Bairro Pinheirinho – Francisco Beltrão – Paraná CEP 85603-010 Correio Eletrônico: [email protected]

* Agradeço as importantes e atentas leituras e as contribuições de Jones Dari Goettert e Flaviana Gasparotti Nunes, do curso de graduação e pósgraduação em Geografia da Universidade Federal da Grande Dourados.

Terra Livre

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar estudos da migração da “modernidade” e da “pós-modernidade”. Na modernidade, os estudos migratórios tenderam a apresentar, no interior de uma racionalidade cientificista, modelos gerais e hegemonicamente com perfil macro-materialista. No contexto pós-moderno, a partir da “crise da modernidade”, aventa-se a possibilidade da incorporação de novos elementos nas análises dos estudos migratórios, tais como da subjetividade, identidade, da relação eu/outro, da memória e das representações, do duo ausência/presença; sobretudo, apresenta maior ênfase sobre os sujeitos apontando para a hegemonia dos estudos culturais. Contudo, modernidade e pós-modernidade devem ser apreendidos como momentos de um mesmo processo. Nesta dialética, é temeroso desconsiderar o elemento cultural em nome de um “objetivismo” economicista; igualmente, corre-se o risco em recusar os elementos conjunturais e estruturais em prol da centralidade “liberal” do indivíduo. A migração, como “fenômeno social completo” e multifacetado, deve ser analisada através de uma perspectiva teórico-metodológica que incorpore elementos culturais e econômicos, portanto, uma totalidade que se faz por entre subjetividade, estrutura e conjuntura. Palavras-chave: Migrações; Modernidade; Pós-modernidade; Econômico; Cultural. Abstract: This article it has for the objectives to examine studies of the migration of “modernity” and “post-modernity”. In modernity, studies migration tended to present, within a rational cientificist, general models and hegemonic with profile macro-materialist. In the post-modern, from the “crisis of modernity”, see the possibility to incorporate new elements in the analysis of studies migration, such as of subjectivity, identity, the relations I/other, and the memory of representations, the duo absence/presence, in particularization, has increased emphasis on the subject pointing to the hegemony of cultural studies. However, modernity and post-modernity should be seized, as moments of the same process. This dialectic is a fear disregard the cultural element in the name of a “objective” economic; also, it is possible to refuse the cyclical and structural elements in favor of the centrality “liberal” the individual. The migration, as “complete social phenomenon” and multifaceted, must be examined through a theoretical and methodological approach that incorporates elements cultural and economic therefore a whole that is by between subjectivity, structure and conjuncture. Key-words: Migration; Modernity, Post-modernity; Economic, Cultural. Resumen: Este artículo tiene por objetivo examinar los estudios de la migración de la “modernidad” y “posmodernidad”. En la modernidad, estudios de la migración tiende a presentar, dentro de un racional cientificista, modelos generales y hegemonicamente con perfil macroeconómico materialista. En el posmoderno, de la “crisis de la modernidad”, de la crisis de la modernidad, aventa la posibilidad de incorporar nuevos elementos en el análisis de los estudios de migración como de la subjetividad, la identidad, la relación yo/otros, y la memoria de las reclamaciones, el dúo ausencia/presencia, en particular, ha aumentado la atención sobre el tema apunta a la hegemonía de los estudios culturales. Sin embargo, la modernidad y la posmodernidad debería aprovecharse en momentos de un mismo proceso. Esta dialéctica es temeroso desprecio cultural elemento en el nombre de un “objetivismo” económica; también, es posible negarse a los elementos cíclicos y estructurales en favor de la centralidad “liberales” la persona. La migración, como “fenómeno social total” y multifacética, debe ser examinado a través de un enfoque teórico y metodológico que incorpora elementos culturales y económicos, por lo tanto, un todo que es por entre la subjetividad, la estructura y coyuntura. Palabras clave: Migración; Modernidad; Posmodernidad; Económicos, Culturales.

Presidente Prudente

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Foi nestes lugares que vim ao mundo, foi daqui, quando ainda não tinha dois anos, que meus pais, migrantes empurrados pela necessidade, me levaram para Lisboa, para outros modos de sentir, pensar e viver, como se nascer eu onde nasci tivesse sido conseqüência de um equívoco do acaso, de uma casual distração do destino, que ainda estivesse nas suas mãos emendar (...) Só eu sabia, sem consciência de que o sabia, que nos legíveis fólios do destino e nos cegos meandros do acaso havia sido escrito que ainda teria de voltar à Azinhaga para acabar de nascer. José Saramago As pequenas memórias

Introdução O passado e o presente (e o futuro, porque não?) das sociedades são marcados pela mobilidade das pessoas. Ontem e hoje, as migrações desafiam pesquisadores em busca de métodos e teorias para compreender o fenômeno. No interior das análises, historicamente, foram apresentadas inúmeras maneiras de se estudar a mobilidade espacial da população, sendo que muitas análises, nesse processo, se tornaram clássicas e referenciais para o estudo. A sociedade, contudo sofre constantes mutações. Mudanças contextuais ocorridas nas últimas décadas, principalmente aquelas vinculadas ao processo de acumulação do modo de produção capitalista, foram marcantes. A transição do sistema de acumulação fordista pelo sistema de acumulação flexível, que se inicia nas décadas de 1970 e 1980, proporcionou “um conturbado período de reestruturação econômica e de ajustamento social e político” (HARVEY, 1994, p. 140), resultando em novas/velhas formas de mobilidade espacial da população. No âmbito dos estudos das migrações, inúmeras transformações ocorreram, resultante da chamada “crise da razão” e/ou do “embate” na ciência da modernidade à pós-modernidade. Nesse sentido, vive-se um período denominado de “pós” em que as incertezas pairam no âmbito das ciências, pela necessidade de romper com esses referenciais para buscar resultados “aceitáveis”, menos dicotômicos e que busquem superar (principalmente no estudo das migrações) a exclusividade do elemento econômico na análise. Assim, aqui se busca analisar, no desenvolvimento histórico dos estudos migratórios, como as questões da modernidade e da pós-modernidade perpassaram e perpassam o desenrolar das pesquisas. Pretende-se verificar o papel do elemento econômico nas migrações (os quais ergueram as bases para o estudo), até a incorporação de novos elementos na análise, principalmente com a maior ênfase do elemento cultural. Dessa forma, estruturamos nosso texto da seguinte maneira: na primeira parte

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buscamos sistematizar alguns dos principais elementos de suporte nas discussões entre modernidade e pós-modernidade; na segunda parte, buscamos analisar os principais troncos teóricos dos estudos da migração – qual a ligação com as questões da modernidade e da pós-modernidade – e quais os novos estudos/elementos incorporados na reflexão sobre a mobilidade espacial. Por fim, apresentamos nossas considerações sobre os estudos das migrações e suas transformações na “crise da modernidade” com a incorporação de novos elementos na análise. Modernidade e Pós-Modernidade A Modernidade Um dos principais atributos da modernidade é a racionalidade (HISSA, 2006, p. 51). A razão é a fonte da ciência moderna. Modelos matemáticos e leis gerais fazem parte, dentre outros elementos, da cientificidade da ciência moderna. Segundo Gomes (1996, p. 25), “A razão é a fonte de toda generalização, da norma, do direito e da verdade. A ordem, o equilíbrio, a civilização, o progresso são noções saídas diretamente deste sistema moderno que se proclama como a única via de acesso a um mundo verdadeiramente humano”. Sousa Santos (2004), concebe a modernidade como um paradigma sócio-cultural que se constitui a partir do século XVI e se consolida entre finais do século XVIII e meados do século XIX. Segundo o autor, os componentes do modernismo seriam “(...) a emancipação social que é concebida como o processo histórico da crescente racionalização da vida social, das instituições, da política e da cultura e do conhecimento com um sentido e uma direção unilineares precisos, condensados no conceito de progresso” (p. 14). Em sua obra Geografia e Modernidade, Paulo César da Costa Gomes, também, entende ser a modernidade construída “(...) sob a forma de um duplo caráter: de um lado, o território da razão, das instituições do saber metódico e normativo; do outro, diversas ‘contracorrentes’, contestando o poder da razão, os modelos e métodos da ciência institucionalizada e o espírito universalizante” (1996, p. 26). A modernidade é considerada como um novo código de valorização que se espraia pelas mais diversas esferas da vida social tomando diferentes formas, “(...) e que possui uma dinâmica espaço-temporal muito complexa para ser objeto de uma precisa localização, ainda que uma época moderna seja facilmente identificada” (1996, p. 28). É como parte do espectro deste processo de reconfiguração dos valores sociais, que a ciência ocupa um destacado papel como discurso fundamental do novo código de valores da modernidade. Hissa afirma que a modernidade refere-se ao “tempo das luzes”: (...) toma-se a modernidade como o tempo das luzes: origens ou marcos pós-medievais; tempo das explorações intercontinentais, da ampliação do conhecimento dos territórios, dos povos e das descobertas; tempo da gênese

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da ciência moderna e dos Estados modernos; tempo da divisão de tarefas, da ampliação da produtividade e da produção; tempo histórico da expectativa do progresso estendido a todos. Para referir-se à ciência, do método, da objetividade da imparcialidade, do rigor, do trabalho científico especializado (HISSA, 2006, p. 62).

Segundo o autor, o moderno é um tempo em constantes transformações, porém, é também um tempo de crise. Tempo de dúvidas e de encruzilhadas, tempo de espaços vagos criados, de expectativas e de ansiedades diante da novidade. Tempo do novo, sempre ostensivo, aparentemente pronto para ocupar espaços vazios. É o tempo que sempre deixa algo prometido e não solucionado para o futuro. Para Haesbaert, a modernidade implanta o novo através do ser moderno: Se ser moderno é “estar de acordo com sua época”, como o senso comum legitimou, também é, como indica a própria raiz do termo, “estar na moda”, acompanhar o momento. Mas viver o presente ignorando o passado é modismo, é seguir constantemente “na crista da onda” que marca o presente, é não se fixar-se enraizar em objetos e idéias, é mutação/“desterritorialização” permanente, velocidade que não pára, só passa – rede/fluxo que pensa a mudança como simples mobilidade, pois mutação que se dá todo tempo acaba se tornando um mudar por mudar, sem atingir mais do que a superfície dos fatos (HAESBAERT, 2002, p. 57, [grifo do autor]).

Assim, a modernidade impõe o mudar por mudar “sem sentido”, o novo que se torna velho ao piscar de olhos. A alta velocidade nos processos de consumo, de produção, da articulação de idéias, na alta produtividade1 . Aliado a isso, Gomes (1996) aventa a hipótese de que a modernidade retém em sua base um duplo caráter fundamental formado pelo par novo/tradicional. Embora sejam noções antigas (novo/tradicional), elas se tornaram um verdadeiro sistema de valores. Para se falar de tradição, por exemplo, há de se referir a um sistema de valores apoiados no “novo”, assim, “(...) são dois sistemas que se opõem, mas que estruturam uma mesma ordem” (p. 29). Por outro lado, o moderno refere-se ao fortalecimento de instituições e de práticas articuladas envolvendo Estado, capital, sociedade e ciência. Nesta perspectiva, Giddens (2002, p. 221) define a modernidade como “a presente fase de desenvolvimento das instituições modernas, marcada pela radicalização e globalização dos traços básicos da modernidade”. Ainda, segundo o autor: A “modernidade” pode ser entendida como aproximadamente equivalente 1

Segundo Haesbaert (2002, p. 57), “Na ânsia pelo novo e no fascínio por essa velocidade de crescimento avassalador, teríamos desembocado no paradoxo lavouiseiriano defendido hoje pelos pós-modernistas: de tanto acelerar sua mudança, o mundo moderno teria caído no ‘nada se cria, tudo se repete’ (ou se copia, se simula).”

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ao “mundo industrializado” desde que se reconheça que o industrialismo não é sua única dimensão institucional. Ele se refere às relações sociais implicadas no uso generalizado da força material e do maquinário nos processos de reprodução. Como tal, é um dos eixos institucionais da modernidade. Uma segunda dimensão é o capitalismo, sistema de produção de mercadorias que envolve tanto mercados competitivos de produtos quanto a mercantilização da força de trabalho (GIDDENS, 2002, p. 21).

Assim, a industrialização, o Estado e a ciência constituem grandes pilares da modernidade. Ainda, Giddens (1991, p. 173-177) afirma que “uma das conseqüências fundamentais da modernidade (...) é a globalização”, “a modernidade é inerentemente globalizante (...), ou seja, à experiência de viver num mundo em que presença e ausência se combinam de maneiras historicamente novas”, entrelaçando-se “concomitantemente”. 2

Bauman (2005), por sua vez, afirma que em nossa época líquido-moderna a mudança obsessiva e compulsiva (chamada de várias maneiras: “modernização”, “progresso”, “aperfeiçoamento”, “desenvolvimento”, “atualização”) é a essência do modo moderno de ser. “Você deixa de ser ‘moderno’ quando pára de ‘modernizar-se’, quando abaixa as mãos e pára de remendar o que você é e o que é o mundo a sua volta” (p. 90). A Pós-Modernidade “Desconfia-se da racionalidade” (HISSA, 2006, p. 52). Para Sousa Santos (2004), a partir de 1980 o mundo desenhado pela razão começa a ser questionado e “rejeitado”. Fala-se de “crise da modernidade”, “envelhecimento da modernidade”, “crise da razão” etc. Pode-se dizer que a “crise da modernidade”, em síntese, resulta da inserção dos indivíduos na sociedade de forma desigual; resulta de promessas não cumpridas, advindas do próprio ambiente histórico da modernidade; resulta da crise da sociedade, sendo também decorrente da crise do capital; é função da crise do Estado e da crise política. Assim: (...) a crise da razão – crise da própria ciência – permite e abre espaço para a discussão de novos formatos de produção do saber, de novos métodos e de posturas alternativas. Discute-se a emergência de novas sensibilidades, também no âmbito da ciência. Por essa ótica, o debate percorre meandros ainda mais tortuosos e reforça novas polêmicas (HISSA, 2006, p. 64).

Segundo Harvey (1994), a pós-modernidade valoriza o pensamento que destaca o caos da vida moderna e a impossibilidade de lidar com ela pela via racional; não sendo possível, assim, por uma metalinguagem, uma metanarrativa ou metateoria revelar uma 2

Giddens (1991, p. 69), afirma que a globalização pode assim “ser definida como a intensificação das relações sociais em escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distancia e vice-versa”.

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conexão entre os fatos, o que significa a inexistência de uma determinada ordem na vida. De acordo com Hissa (2006, p. 92), “os espaços-tempos pós-modernos sugerem uma demarcação cronológica a iniciar-se na ‘era pós-industrial’, por volta dos anos cinqüenta”. Outro aspecto que Harvey (1994) destaca na pós-modernidade diz respeito ao seu lado psicológico; enquanto a modernidade dedica-se à busca do futuro, a pós-modernidade concentra-se nas circunstâncias induzidas pela fragmentação e instabilidade características da vida, de modo que impede o planejamento do futuro. Por sua vez, Sousa Santos (2004) afirma que a idéia da pós-modernidade aponta “(...) para a descrição que a modernidade ocidental fez de si mesma e nessa medida pode ocultar a descrição que dela fizeram os que sofreram a violência com que ela lhes foi imposta. Essa violência matricial teve um nome: o colonialismo” (2004, p. 6-7). Assim, vivemos, de fato, um tempo intelectual complexo que se pode caracterizar desta forma algo paradoxal: “(...) cultura e especificamente a cultura política ocidental é hoje tão indispensável quanto inadequada para compreender e transformar o mundo” (2004, p. 7). Assim, a idéia da “(...) exaustão da modernidade ocidental facilita a revelação do caráter invasivo e destrutivo da sua imposição no mundo moderno, uma revelação cara ao póscolonialismo” (2004, p. 11). Nesse contexto, o autor entende por “pós-colonialismo”: (...) um conjunto de correntes teóricas e analíticas, com forte implantação nos estudos culturais, mas hoje presentes em todas as ciências sociais, que têm em comum darem primazia teórica e política às relações desiguais entre o Norte e o Sul na explicação ou na compreensão do mundo contemporâneo. Tais relações foram construídas historicamente pelo colonialismo e o fim do colonialismo enquanto relação política não acarretou o fim do colonialismo enquanto relação social, enquanto mentalidade e forma de sociabilidade autoritária e discriminatória. Para esta corrente, é problemático saber até que ponto vivemos em sociedade pós-coloniais. Por outro lado, o caráter construtivo do colonialismo na modernidade ocidental faz com que ele seja importante para compreender, não só as sociedades não ocidentais que foram vítimas do colonialismo, mas também as próprias sociedades ocidentais, sobretudo os padrões de discriminação social que nelas vigoram. A perspectiva pós-colonial parte da idéia de que, a partir das margens ou das periferias, as estruturas de poder e de saber são mais visíveis. Daí o interesse desta perspectiva pela geopolítica do conhecimento, ou seja, por problematizar que produz o conhecimento, em que contexto o produz e para quem o produz (SOUSA SANTOS, 2004, p. 9, [grifo nosso]).

Para Hissa (2006), a “crise da modernidade” ou o seu “envelhecimento” se refere: (...) a pós-modernidade não significa a transição espontânea para um momento, ou situação, posterior à modernidade, mas para além da modernidade. O pós-moderno sinaliza uma ruptura que se inicia pelo próprio modernismo, indicando um movimento substancial para além ou longe dele.

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(...) No entanto, a transição se realiza, na esfera do pensamento, como subversão à ordem e às normas instituídas pela modernidade, e não como passagem espontânea e inevitável (HISSA, 2006, p. 95, [grifo nosso]).

A pós-modernidade seria, portanto, uma sinalização de ruptura diante da modernidade em crise. Mas é, sobretudo, uma reflexão (tendência de ruptura) que se constrói através da crítica do moderno. Essa crítica pós-moderna da modernidade traz no seu cerne, segundo Sousa Santos, a: (...) crítica do universalismo e das grandes narrativas sobre a unilinearidade da história traduzida em conceitos como progresso, desenvolvimento ou modernização que funcionam como totalidades hierárquicas; renúncia a projetos coletivos de transformação social, sendo a emancipação social considerada como um mito sem consistência; celebração, por vezes melancólica, do fim da utopia, do cepticismo na política e da paródia na estética; concepção da crítica como desconstrução; relativismo ou sincretismo cultural; ênfase na fragmentação, nas margens ou periferias, na heterogeneidade e na pluralidade (das diferenças, dos agentes, das subjetividades); epistemologia construtivista, não fundacionalista e antiessencialista (SOUSA SANTOS, 2004, p. 9-10).

Harvey (1994, p. 275 -276) assinala que, na “condição pós-moderna”, ocorre a compressão do espaço-tempo que enseja uma mudança nos nossos mapas mentais, nossas atitudes e instituições; porém, esta transformação não ocorre na mesma velocidade das transformações empreendidas no espaço pelo vetor técnico científico, de modo que há uma defasagem que pode trazer sérias conseqüências ao nível de decisões dos mais diversos tipos (ordem financeira, militar, etc.). Logo, essa compressão espaço-tempo, na pós-modernidade, acarretaria em um “novo padrão espacial”, a polarização a nível global (no topo) e a pulverização a nível local, correlato ao novo padrão de acumulação flexível, que traz uma outra maneira de organização espacial. Portanto, os sintomas daquilo que pode ser caracterizado como “crise da modernidade” dizem respeito “à saturação dos grandes mitos da Razão, da Pátria e do Progresso – os grandes valores constitutivos daquilo que ficou conhecido como a Modernidade. É no nível da valorização do cotidiano que são encontrados indícios dessa saturação (...)” (HISSA, 2006, p. 105). Sobre a valorização do cotidiano, Certeau, em A invenção do cotidiano, constrói uma teoria das práticas cotidianas para extrair de seus ruídos as maneiras de fazer que, majoritárias na vida social, não aparecem muitas vezes senão a título de resistência ou de inércia em relação ao desenvolvimento da produção sócio-cultural. Assim, “(...) os relatos cotidianos contam aquilo que, apesar de tudo, se pode aí fabricar e fazer. São feituras de espaço” (CERTEAU, 1994, p. 207). Há, portanto, uma crítica à forma da ciência moderna lidar com os elementos do cotidiano. Desta maneira, Gomes (1993, p. 41), afirma que na pós-modernidade “não há

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exatamente novos paradigmas, trata-se muito mais de um processo de renovação em relação às posições fundadoras da modernidade científica”. Em uma perspectiva muito próxima, Sousa Santos reitera que: A transição pós-moderna é concebida como um trabalho arqueológico de escavação nas ruínas da modernidade ocidental em busca de elementos ou tradições suprimidas ou marginalizadas, representações particularmente incompletas porque menos colonizadas pelo cânone hegemônico da modernidade que nos possam guiar na construção de novos paradigmas de emancipação social. Entre essas representações ou tradições, identifico, no pilar da regulação, o princípio da comunidade, e no pilar da emancipação, a racionalidade estético-expressiva (SOUSA SANTOS, 2004, p. 19).

Portanto, e também segundo Hissa (2006, p. 106), o pós-moderno valorizaria as sensibilidades cotidianas, o que é local, o que é sensível e, em termos gerais, “a ética da estética”, que foram, em certa medida, negligenciados pelo movimento hegemônico da ciência na modernidade. Há, portanto, nesse processo, a valorização dos “(...) habitantes que vivem e constróem o cotidiano dos lugares” (p. 107). Assim, a pós-modernidade resgataria, também, elementos culturais nas análises científicas. Modernidade, Pós-Modernidade e o estudo das Migrações Migrações e Modernidade Pretendemos, a partir de agora, percorrer elementos da trajetória do estudo das migrações no contexto da modernidade. Como analisamos anteriormente, a modernidade se caracteriza pela racionalidade científica, pelos modelos matemáticos, pela sistematização, pelo desenvolvimento e aplicação de conceitos etc. Nesse sentido, pretendemos compreender esse processo racional da ciência no decorrer dos estudos das migrações, principalmente, verificando como o fator econômico (ou, em certos casos economicista) perpassou as pesquisas e os conceitos elaborados. Por esse motivo, percorreremos sumariamente os grandes troncos teóricos através dos quais a migração foi sendo analisada.3 Na análise que se segue, procura-se apresentar brevemente três grandes troncos teóricos nos quais pode ser enquadrada a maior parte da produção teórica sobre as migrações no contexto da modernidade. Também a produção empírica pode ser situada quanto aos mesmos, na medida em que faz uso (por vezes não assumido) de concepções sobre a migração, as quais acabam tendo conseqüências quanto à análise. 3

Troncos teóricos foi uma expressão utilizada, dentre outros, por Salim (1992, p. 122), e, posteriormente também utilizada por Póvoa Neto (1997, p. 15), para designar uma classificação de trabalhos existentes segundo suas filiações teóricas e os aspectos da realidade priorizados.

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Pode-se falar, em primeiro lugar, de um conjunto de autores que faz uso de uma concepção neoclássica do espaço e das migrações. Para tal concepção, as migrações não têm uma expressão apenas demográfica, mas principalmente econômica, representando deslocamentos espaciais de trabalhadores no espaço geográfico. Para Salim (1992, p. 122), “Para este tronco teórico, os movimentos populacionais correspondem à mobilidade geográfica dos trabalhadores. Esta, por sua vez, surge de desequilíbrios espaciais dos ‘fatores de produção’: terra, capital e recursos naturais”. Segundo Póvoa Neto (1997, p. 15) o migrante seria, segundo tal abordagem, um portador de trabalho, fator produtivo que, em combinações adequadas com a terra e o capital, apresenta interesse para os processos de desenvolvimento econômico. O espaço pode ser, para os neoclássicos, “equilibrado” ou “desequilibrado”, conforme a combinação de fatores mais ou menos próxima de um determinado “ótimo”. Vainer (2005), aponta que a análise da migração, nesta perspectiva, apresentaria os seguintes contornos: A migração tem como origem, por um lado, a liberdade e o cálculo racional; por outro lado, sua condição é a existência de desequilíbrios espaciais, desequilíbrios que os deslocamentos de homens (e também de capitais) contribuirão para eliminar, isto é, à homogeneização: na verdade, desequilíbrio e homogeneização são a condição geral (VAINER, 2005, p. 261, [grifo nosso]).

Como conseqüência das diferenças regionais, a migração teria papel decisivo na eliminação dessas mesmas diferenças, atuando como fator corretivo dos desequilíbrios sócio-econômicos no espaço. É o mecanismo que restaura o equilíbrio e, como tal, otimiza a oferta e a procura entre diferentes setores e subespaços, incidindo positivamente nos níveis de produtividade econômica e, principalmente, nos diferenciais regionais quanto às condições de emprego e de renda (SALIM, 1992, p. 123). Para Póvoa Neto (1997, p. 16), “seguida esta perspectiva, pode-se supor que o espaço geográfico caminharia para uma homogeneização”. Desse modo: (...) correspondem à perspectiva neoclássica pelo menos três supostos básicos sobre a migração, ou seja, i) os diferenciais de salário e de oportunidade de emprego entre áreas distintas; ii) o cálculo racional do indivíduo face aos custos e utilidades entre a permanência e a mudança; iii) as correntes migratórias como somatório das decisões individuais (SALIM, 1992, p. 123). Como destaca Gaudemar (1977, p. 173-174), a concepção neoclássica traz implícita, assim, a idéia de recusa da imperfeição causada pela desigualdade estrutural e de aceitação tácita das variações conjunturais, além, é claro, da propensão “natural” da força de trabalho ao movimento, logo que a diferenciação social se manifeste a nível do

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espaço. Ainda, para Salim (1992, p. 123), nessa concepção, “o indivíduo é a unidade da análise, e sua propensão natural ao movimento é um pressuposto”4 . O migrante, como um portador do fator trabalho, busca o máximo retorno para seu “investimento” em um dado ponto do espaço. Conseqüentemente, os diferenciais de salário, na espacialidade heterogênea, configura-se como fator básico da migração. Assim, “Tal imagem se assemelha a uma caricatura da primazia do econômico na análise social” (PÓVOA NETO, 1997, p. 17, [grifo nosso]). Nesse sentido: Tais teorias podem ser qualificadas como “neoclássicas” pela continuidade que representam quanto às preocupações dos economistas ditos “clássicos”, ao lidarem com a questão do equilbrio econômico e a da fundação do trabalho no mesmo. Para os “neoclássicos”, a mobilidade do trabalho deveria ser perfeita, acompanhando a tendência geral da circulação das mercadorias num espaço que tendia á homogeneidade. Todavia, as suas anlises confrontavam-se inevitavelmente com a existência, no espaço econômico europeu dos séculos XVIII e XIX, de evidentes imperfeições nesta mobilidade (PÓVOA NETO, 1997, p. 16, [grifo nosso]).

Assim, a concepção neoclássica implica em considerar o econômico na análise das migrações, através da “vontade” do mercado de trabalho e do indivíduo em buscar melhores condições de vida através de uma melhor remuneração. 5 O segundo tronco teórico a ser analisado é nomeado por diversos autores como concepção histórico-estrutural das migrações. Esta busca enraíza sua análise no solo dos contextos históricos e geográficos específicos. Se a concepção anterior colocava toda a ênfase na decisão soberana do indivíduo inserido na dinâmica do mercado capitalista, o que se tem agora é a análise de grupos e classes sociais a sofrer a força de estruturas sociais e econômicos que explicam a maior ou menor propensão para a migração. Assim: Enraizado no materialismo histórico, este tronco teórico vê a migração não como ato soberano do indivíduo ou soma de escolhas individuais, mas como fenômeno (relação ou processo), social, onde a unidade é a corrente ou fluxo composto por classes sociais ou grupos sócio-econômicos que emanam de estruturas societárias geograficamente delimitadas (SALIM, 1992, p. 125, [grifo nosso]).

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O papel do indivíduo na abordagem neoclássica é denominada por Ferreira (1986, p. 99) de “comportamentalista”, que enfatiza as atitudes possíveis de indivíduos que, ao migrar, atenderiam aos apelos do mercado capitalista. 5

Ainda, segundo Vainer (2005, p. 262), na concepção neoclássica, “O homem que se localiza é o homem que calcula, que faz do cálculo econômico o princípio de seu comportamento e, portanto, só existe na condição de homem livre. O espaço no qual circulam capitais e trabalhadores é espaço abstrato, homogêneo, puro espaço econômico onde se condensam ou dispersam recursos econômicos e capitais de vários tipos” (grifo nosso).

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Para Póvoa Neto (1997, p. 18), na concepção histórico-estrutural prioriza-se a percepção de processos sociais gerais, dentro dos quais a migração ganha sentido e tende a assumir um papel, que implica na saída de trabalhadores anteriormente inseridos e estruturas sociais tradicionais e na sua condução rumo ao mercado de trabalho propriamente capitalista. No Brasil, muitos estudos foram importantes nessa perceptiva, dentre os quais destacamos Economia Política da Urbanização, de Paul Singer6 . Segundo o autor, o “estudo das migrações a partir de um ângulo de classe deve permitir portanto uma análise da contribuição das migrações para a formação de estruturas sociais diferentes e para a constituição de novos segmentos da economia capitalista” (1981, p. 57). Desse modo, segundo Póvoa Neto (1997, p. 18), nos estudos histórico-estruturais existem problemas quanto à conciliação entre níveis macro e micro. A migração é fenômeno social cujos determinantes e conseqüências remetem a outros fenômenos sociais historicamente determinados e que se relacionam a processos de mudança estrutural. O foco de análise é redirecionado para as contradições no âmbito das relações sociais de produção, do desenvolvimento das forças produtivas e dos mecanismos subjacentes de dominação. São utilizados uma variedade de modelos nas análises como a “teoria da dependência”, o “colonialismo”, a relação “centro-periferia” e a “acumulação global”. Para Salim (1992, p. 125), “a abordagem histórico-estrutural enfatiza, antes de tudo, a visão da estrutura como um todo (...) os diferentes movimentos da população são “explicados” pelas mudanças no âmbito da estrutura da produção”. Ocorre a “tendência predominante de dimensionar a migração pelo aspecto econômico – modos de produção, relação de produção, mecanismos de exploração, etc – sem relacioná-la com outros processos macrossociais importantes, como os de natureza social e cultural” (p. 126). Assim, a migração redistribui a força de trabalho segundo as necessidades específicas do processo de acumulação, em contextos históricos concretos. O migrante é concebido simultaneamente como integrante do exército industrial da ativa e da reserva e, via de regra, resulta de transformações nas relações sociais de produção nas áreas de origem da migração (SALIM, 1992, p. 126-127). Desse modo: No modelo estrutural, os indivíduos não fazem escolhas, ou melhor, não são os indivíduos e suas escolhas individuais que explicam os fluxos e a localização da população. No espaço – que não é mais o espaço da liberdade individual, mas o espaço da estrutura capitalista (espaço estrutural ou estruturado) – é o movimento do capital, da expansão ou retração, seu 6

Segundo Singer (1981, p. 38), “Os fatores de expulsão que levam as migrações são de duas ordens: fatores de mudança, que decorrem da introdução de relações de produção capitalistas nestas áreas, a qual acarreta a expropriação de camponeses, a expulsão de agregados, parceiros e outros agricultores não proprietários, tendo por objetivo o aumento da produtividade do trabalho e a conseqüente redução do nível de emprego (....) e fatores de estagnação, que se manifestam sob a forma de uma crescente pressão populacional sobre uma disponibilidade de áreas cultiváveis física de terra aproveitável como pela monopolização de grande parte da mesma pelos grandes proprietários” (grifo nosso).

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deslocamento ou permanência que comandam a mobilidade e a localização do trabalho. Agora, o que se impõe é a relação que submete à lógica e à dinâmica do capital todos os movimentos locacionais e toda a estrutura do espaço (VAINER, 2005, p. 263).

Portanto, na abordagem histórico-estrutural, o desenvolvimento do capitalismo assume a centralidade na análise da mobilidade populacional. A estrutura tem influência dominante na migração, sendo que a estrutura histórica do capitalismo é quem hegemonicamente “desloca” no espaço as pessoas. O econômico é central na análise através do modo de produção capitalista. Dessa maneira, “(...) o modelo estruturalista opõe um sujeito quase inexistente, simples epifenômeno da estrutura” (VAINER, 2005, p. 263). O terceiro tronco teórico a ser analisado baseia-se, principalmente, na teoria marxista do trabalho, e propõe um enfoque apoiado no conceito de mobilidade do trabalho. Passa-se a utilizar a expressão mobilidade da força de trabalho, ao invés de migração. Segundo Póvoa Neto (1997, p. 19), esse tronco teórico busca ressaltar que as migrações não podem ser encaradas fora da realidade do trabalho social, e sim como pressupostos econômicos do mesmo. A atenção às migrações conduz necessariamente, portanto, às condições em que ocorre a produção e se estruturam as relações de trabalho em um determinado espaço. Assim: Temos na ótica da mobilidade da força de trabalho, um novo foco de análise centrado na relação capital/trabalho, produção e reprodução ampliada desta relação. A migração deixa de ser conseqüência ou reflexo do espaço transformado para atuar como agente de transformação, e a dimensão espacial, traduzida como conjunto de relações sociais, é retida para possibilitar a análise de formas concretas de mobilidade da força de trabalho. Na realidade, segmentos da população ou contingentes da força de trabalho deslocam-se no espaço porque este se estrutura de forma a colocá-los em movimento. Significa dizer que existe uma característica adquirida da força de trabalho – a mobilidade - que faculta não apenas o seu movimento, mas também a localização e relocalização espacial do capital, nas diversas esferas de produção (SALIM, 1992, p. 127, [grifo nosso]).

A obra clássica que caracteriza esse tronco teórico é Mobilidade do trabalho e acumulação do capital, de Jean Paul de Gaudemar, na qual realiza-se uma autêntica arqueologia do pensamento econômico resgatando a mobilidade como “noção perdida”, traçando uma genealogia do conceito e, sobretudo, mostrando que, a partir do século XVIII, as formas de mobilidade surgem como fenômenos marcadamente estruturais. A partir da leitura da obra de Marx, Gaudemar concebe o trabalho como forma de trabalho em atividade, e a acumulação de capital como relação social que se desenvolve qualitativa e quantitativamente. Para Salim (1992, p. 128), “Esta seria a condição estrutural da qual emerge a mobilidade. A partir daí, busca um conceito unitário – unidade conceitual, apesar

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da multiplicidade de suas formas -, onde a natureza das relações social de produção tem papel determinante na sua conformação concreta”. Gaudemar concebe a mobilidade do trabalho como elemento do jogo do capitalismo. O trabalhador portador de força de trabalho participa desse “jogo econômico como simples peão no tabuleiro”, como instrumento do capital: Os homens não passam de instrumentos, e a força de trabalho não é mais do que um “continuum móbile”. O trabalhador move-se apenas ao serviço da máquina e do capital que a possui. Num tempo e num espaço de que é desapossado. Peão num tabuleiro, ponto ínfimo nas curvas de crescimento, está sujeito aos movimentos alternativos da expansão do capital (GAUDEMAR, 1977, p. 35).

A análise da obra de Marx leva Gaudemar a designar, como mobilidade do trabalho, a qualidade que permite o uso capitalista dos corpos dos trabalhadores, nas localizações, condições de intensidade e ritmos de produção requeridos para a máxima produção de valor. Não se trata apenas de uma descrição de deslocamentos espaciais de trabalhadores; mais que isso, o conceito marxista de mobilidade do trabalho surge assim como “trave mestra de toda a estratégia de desenvolvimento capitalista” (GAUDEMAR, 1977, p. 51). Segundo Salim (1992, p. 128), a acumulação capitalista e seus corolários, como concentração, centralização, composição orgânica e técnica do capital, por um lado, e a proletarização e a exclusão social, via crescimento do excedente populacional relativo, por outro, não passam de elementos que conformam sua própria contraface, ou seja, a mobilidade da força de trabalho e suas possibilidades concretas. O desenvolvimento do capitalismo seria o motor da mobilidade do trabalho. Para Póvoa Neto (1997, p. 19), nessa concepção, “a migração não é pois mero mecanismo de redistribuição espacial de populações, adaptando-se às solicitações do sistema econômico”. Em estruturas capitalistas marcadas pela rigidez ou expansão de sua morfologia econômica, as formas de mobilidade do trabalho surgem como fenômenos de submissão e não de liberdade, devido à tendência geral do capitalismo de açambarcar todas as formas pretéritas de produção. Nesse sentido, o trabalho e a força de trabalho se tornam uma mercadoria. “Toda estratégia de mobilidade é igualmente estratégia de mobilidade forçada”. (GAUDEMAR, 1977, p. 17, [grifo do autor]). Assim, na concepção da mobilidade do trabalho, a mobilidade se liga à produtividade e à expansão física do capital, apresentando-se como condição e conseqüência do desenvolvimento das forças produtivas. Por seu papel essencial no processo de acumulação, as condições em que ela se manifesta podem retratar a própria natureza do ciclo econômico, na medida em que permite o uso extensivo da força de trabalho pelo capital (SALIM, 1992, p. 128). Dessa maneira, esses são os troncos teóricos que abarcam os estudos das

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migrações e/ou mobilidade do trabalho. Muitas críticas se fazem atualmente a esses modelos teóricos pela sua inconsistência para interpretar, de maneira abrangente a realidade. Salim (1992, p. 131) afirma que “o maior problema desses modelos encontrase, todavia, na passagem do micro para macro (...)”. Já para Póvoa Neto, os problemas são: Torna-se possível, assim, a crítica dos discursos existentes sobre a migração, na medida em que os mesmos podem ser encarados como constituindo um campo de debates sobre os trabalhadores e sua localização espacial. Os problemas detectados quanto a esta localização são, via de regra, problemas referentes à utilização do trabalho e à acumulação do capital (PÓVOA NETO, 1997, p. 20, [grifo do autor]).

Segundo o autor, os modelos teóricos não abarcam a realidade existente, principalmente, pela primazia do econômico, pela utilização do fator trabalho na análise conjunta à acumulação do capital. A realidade se apresenta de maneira complexa e as teorias neoclássicas, estruturalistas e da mobilidade do trabalho não conseguem abarcar esse movimento multifacetado da sociedade. Desse modo: (...) temos uma crise da modernidade e de sua mitologia da liberdade. Os estudos dos processos de deslocamento de população evocam a frustração da promessa de liberdade que a modernidade proclamou (...) Crise, portanto, de teorias que não dão conta dessa dimensão da modernidade madura, mas crise também da própria modernidade e de suas promessas (VAINER, 2005, p. 272).

É dessa forma que as transformações do mundo, e a crise da modernidade estão presentes nos estudos das migrações. Assim como na ciência em geral surgem novas maneiras de interpretar a realidade (com a pós-modernidade), através (como já mencionamos) da valorização do cotidiano, do lugar, das identidades, dos indivíduos etc, nos estudos das migrações surgem, também, nesse movimento, novas maneiras de conceber a migração em um mundo em constante processo de transformação. São essas outras formas de entender e estudar as migrações que evidenciaremos a partir de agora. Migrações e Pós-Modernidade A pós-modernidade, ou o “envelhecimento” da modernidade, traz novos elementos para a análise na ciência. Nas migrações, novos elementos são incorporados nas análises. Tem destaque principalmente os elementos culturais, as relações do eu com o outro, os elementos psicológicos, as identidades etc. Para Menezes (2007, p. 115), a “Pósmodernidade é, sobretudo, uma hiperexposição à alteridade, à capacidade de perceber o

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‘Outro’”; e, também, a “Pós-modernidade é inseparável da psicologia, o que vale dizer, da visão simbólica e poética” (p. 11). Sobre as migrações e a pós-modernidade, Menezes também afirma que: As migrações contribuem nesse cenário de conflito como carreadoras de valores étnicos para outras culturas assim como contribuem, num sentido pós-moderno, para a diversidade, aportando instrumentos de criatividade para sistemas afundados na mesmice diga-se, normalidade (MENEZES, 2007, p. 119).

Dessa forma, a pós-modernidade tem a ver com uma perspectiva diversificadora; interpretações múltiplas para uma infinidade de fenômenos interligados as migrações. Surgem, neste contexto diferentes interpretações do fenômeno como, por exemplo, a análise de Menezes que destaca elementos culturais, através da perda, da identidade e da consciência coletiva: Seja qual for a razão da migração, bem ou mal sucedida há nela uma constante psicologia a ser lembrada: a perda. Perde-se a referência territorial, os valores culturais e as pessoas conhecidas. Perde-se também a identidade – identitas que quer dizer ‘o mesmo’ ou ‘repetição do mesmo’ como em identidem. A identidade do migrante, assim, como a de qualquer indivíduo, é formada nesse momento de crise (crisis é oportunidade), quando se é forçado a escolher o que não se é e o que não se quer ser. É quando se começa a escolher o que não se é e o que não se quer ser. (...) O cerne dessa identidade é, em muito, determinado pelas imagens que lhe aparecem através do Outro, dos seus semelhantes, dos que lhe são importantes, da herança cultural e da consciência coletiva (MENEZES, 2007, p. 120, [grifo do autor]).

A cultura toma uma dimensão importante nos estudos da migração na pósmodernidade. Segundo Bhabha (1998, p. 241), “A dimensão transnacional da transformação cultural – migração, diáspora, deslocamento, relocação – torna o processo de tradução cultural uma forma complexa de significação”, pois: (...) a questão da identificação nunca é a afirmação de uma identidade prédada, nunca uma profecia autocumpridora – é sempre a produção de uma imagem de identidade e a transformação do sujeito – isto é, ser para um Outro – implica a representação do sujeito na ordem diferenciadora da alteridade. A identificação (...) é sempre retorno de uma imagem de identidade que traz a marca da fissura no lugar do Outro de onde ela vem (BHABHA, 1998, p. 77, [grifo do autor]).

A importância da identidade na migração, da identificação do sujeito na mobilidade “intensa” e “desterritorializante” do mundo pós-moderno, é elemento de inúmeras análises.

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Segundo Hall (2004, p. 87), na migração“a identidade e a diferença estão inexplicavelmente articuladas ou entrelaçadas em identidades diferentes, uma nunca anulando completamente a outra”, sempre em processo7 . Segundo o autor, os migrantes das novas diásporas, criadas pelas migrações pós-coloniais, devem “(...) aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a traduzir e a negociar entre elas. As culturas híbridas constituem um dos diversos tipos de identidades distintivamente novos produzidos na era da modernidade tardia” (HALL, 2005, p. 89, [grifo nosso]). Assim, um aspecto da experiência migratória é a redefinição das identidades culturais e nacionais, quando os migrantes deixam uma sociedade e uma cultura e tornamse parte de outra, surgindo, nesse processo, fenômenos como o de aculturação: No caso da migração, indivíduos são socializados em uma cultura e vão morar depois em uma outra. Isto envolve uma seqüência de processos muitas vezes únicos ao fenômeno imigratório, que podem ser compreendidos ao utilizarmos o conceito de aculturação tanto no nível grupal como no nível individual (DEBIAGGI, 2004, p. 17).

Surgem, também, novas formas de compreender o fenômeno migratório com a incorporação de redes sociais. Esta surge como uma crítica à determinação do mercado de trabalho como explicação da mobilidade. Para Ramella (1995, p. 19), “(...) as relações pessoais que constituem canais de transmissão da informação, é que determinam quem terá qual trabalho”. Pois, “São as redes de relações sociais que formam parte, e que constroem e que estruturam as oportunidades. (...) são esses elementos que abrem e fecham o acesso as oportunidades” (p. 21). Dessa forma, as redes de relações dos migrantes influenciam na inserção no mercado de trabalho da sociedade receptora. Ocorre, a partir da incorporação das redes sociais, a crítica ao modelo econômico nas migrações: (...) propiciar a superação do uso débil do conceito de redes na história da emigração é algo muito maior que defender a causa da experimentação de novas metodologias. É uma maneira de transformar nosso estudo setorizado em um campo de investigação capaz de oferecer uma contribuição original a um debate histórico que tem o objetivo de superar as discussões das visões dos enfoques estruturalistas-funcionalistas e economicistas (RAMELLA, 1995, p. 21)

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Como afirma Hall (2004, p. 39), “(...) a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não inato, existe na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo formulada”. (...) A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros” (grifo do autor).

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Outro estudo sobre as migrações que abarca novos elementos para a análise, é do sociólogo Abdelmalek Sayad, especialmente em A imigração ou os paradoxos da alteridade. Nele, o autor analisa a e/imigração de argelinos para a França evidenciando, principalmente, os aspectos sociais dos e/imigrantes argelinos no processo. Utiliza-se para isso de fontes orais, obtidas através de entrevistas, retratando os elementos mais “íntimos” das vidas dos imigrantes, demonstrando as condições cotidianas dos sujeitos pesquisados. Para Sayad, a emigração é um “fato social completo”. Assim, há o “emigrante”, aquele que saiu de sua própria sociedade, e há o “imigrante”, aquele que chegou a uma terra de estranhos: o paradoxal é que ambos são a mesma e única pessoa. No entanto, embora apresentando esses elementos, o autor afirma que a razão do e/ imigrante é o trabalho: Um imigrante é essencialmente uma força de trabalho, e uma força de trabalho provisória, temporária, em trânsito. Em virtude desse princípio, um trabalhador imigrante (sendo que trabalhador e imigrante são, neste caso, quase um pleonasmo), mesmo se nasce para a vida (e para a imigração) na imigração, mesmo se é chamado a trabalhar (como imigrante) durante toda a sua vida no país, mesmo se está destinado a morrer (na imigração), como imigrante, continua sendo um trabalhador definido e tratado como provisório, ou seja, revogável a qualquer momento. A estadia autorizada ao imigrante está inteiramente sujeita ao trabalho, única razão de ser que lhe é reconhecida: ser como imigrante, primeiro, mas também como homem – sua qualidade de homem estando subordinada a sua condição de imigrante (SAYAD, 1998, p. 54-55).

Mesmo, resgatando a importância do trabalho como “razão de ser imigrante”, Sayad aponta para aspectos como a provisoriedade, enfatizando as ausências e presenças na vida do e/imigrante; do par provisório/permanente: característica inerente do imigrante no processo de deslocamento espacial. Assim, sua abordagem também se volta para a dimensão social, cultural e psicológica na análise do e/imigrante. No Brasil, apresentamos dois estudos que entendemos serem singulares nessa nova maneira de compreender o processo migratório. Rogério Haesbaert (1995), analisa em sua tese, intitulada “Gaúchos” no Nordeste: modernidade, des-territorialização e identidade, a diáspora “gaúcha” (sulista) que se difunde pelo interior brasileiro acompanhando, concomitantemente, a “modernização” capitalista, estendendo-se na década de 1980 com a expansão da soja na área de cerrados, até a região Nordeste. Haesbaert toma por base o encontro entre sulistas e nordestinos, buscando analisar na migração sulista a reterritorialização que estes produzem nos cerrados baianos. Busca, principalmente, no sentido cultural e político, analisar aspectos da identidade na migração “gaúcha”, evocando elementos de “tradicionalismos” contraditórios entre sulistas e nordestinos. Desse modo, sua análise da diáspora “gaúcha” é importante porque busca

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compreender o processo migratório a partir de uma perspectiva inovadora, isto é, através do processo de reterritorialização dos sulistas, buscando entender aspectos culturais e políticos desse fenômeno. Já Jones Dari Goettert (2004), em sua tese O espaço e o vento: olhares da migração gaúcha para Mato Grosso de quem partiu e de quem ficou, buscou analisar a migração gaúcha para Mato Grosso vista por quem partiu e por quem ficou, ou seja, buscou compreender o processo de migração nos lugares de origem da migração (por aqueles que ficaram), e nos lugares de destino da migração (através daqueles que migraram). Através de três dimensões - subjetiva, conjuntural e estrutural - busca analisar ambos os lugares e as gentes, cada um com seus jeitos, os jeitos das pessoas dos lugares. Seu elemento central na análise é o lugar e os sujeitos, que através da memória e das representações, compreende o comportamento na migração a partir da presença e da ausência. Busca, a partir da transitoriedade migratória, as lembranças, os desejos e os medos dos migrantes. Sua análise é muitas vezes subjetiva, mas a faz sem deixar de analisar aspectos estruturais e conjunturais na migração, como, por exemplo, dos projetos governamentais de deslocamento populacional, da expansão da fronteira agrícola e da “modernização” da agricultura. Ainda, em outro estudo, Goettert (2003, p. 17), “observando” migrantes em uma viagem de ônibus pelo interior do Brasil, afirma que a busca por melhores condições de vida faz parte das migrações, “mas ao falarem dos lugares onde viveram ou vivem, também outros aspectos participam de suas experiências, como a morte do filho, o estudo das filhas, a tristeza ou a alegria das pessoas, a família e a mulher...”. Desse modo, para o autor, as migrações devem ser entendidas para além do elemento econômico: (...) penso que o diálogo e a problematização daquilo que nos falam as e os migrantes trabalhadores, palavras sobre questões de ordem econômica ou não, podem e devem participar de nosso jeito de fazer uma Geografia das migrações no Brasil, principalmente porque denunciam, mesmo sem o saber, que as gentes dos lugares – daí os próprios lugares – são portadores de humanidades que a coisificação capitalista está longe de destruir (GOETTERT, 2003, p. 17).

Outra forma de analisar a mobilidade na pós-modernidade é realizada por Zygmunt Bauman (1999). Este, afirma que a globalização traz conseqüências ao fenômeno da mobilidade: “Hoje em dia estamos todos em movimento” (p. 85). Segundo o autor, nos movimentamos como “turistas” ou como “vagabundos”. Estas são duas formas extremas da mobilidade na globalização: os “turistas mundiais” buscando caçar emoções e experiências, e os “vagabundos”, que são viajantes que não têm lugar na sociedade, e por isso buscam através da indesejável mobilidade, um lugar (sempre provisório) e melhor para ficar.8 Assim:

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O que se aclama hoje como “globalização” gira em função dos sonhos e desenhos dos turistas. Seu efeito secundário – colateral mais inevitável – é a transformação de muitos outros em vagabundos. Vagabundos são viajantes aos quais se recusa o direito de serem turistas. Não se permite nem que fiquem parados (não há lugar que lhes garanta permanência, um fim para a indesejável mobilidade) nem que procurem um lugar melhor para ficar (BAUMAN, 1999, p. 101).

Assim, sendo a pós-modernidade uma nova sensibilidade, uma nova leitura e uma nova experiência de mundo, diretamente vinculada aos novos paradigmas tecnológicos que balançam as antigas certezas e os antigos laços da sociedade com o espaço, a pósmodernidade denota transformações nas formas de deslocamento espacial das pessoas. Como afirma Haesbaert (2006, p. 238), “(...) o migrante é parcela integrante – ou que está em busca de integração – numa (pós) modernidade marcada pela flexibilização – e precarização – das relações de trabalho”, sendo ligado inclusive ao processo de desterritorialização: Um dos fenômenos mais freqüentemente ligados à desterritorialização diz respeito à crescente mobilidade das pessoas, seja como “novos nômades”, “vagabundos”, viajantes, turistas, imigrantes, refugiados ou como exilados – expressões cujo significado costuma ir muito além de seu sentido literal, ampliando-se como poderosas (ou ambivalentes e, assim, controvertidas) metáforas. Toda uma cultura das viagens e mesmo uma travelling theory passou a se desenhar a partir da crescente mobilidade “pós-moderna” (HAESBAERT, 2006, p. 237, [grifo do autor]).

Com essa pretensa e “intensa” mobilidade pós-moderna, através das viagens dos turistas, dos “vagabundos”, dos imigrantes, dos trabalhadores, há um processo de valorização do lugar. Justamente pela anunciação da pretensa homogeneização do mundo através da globalização, é que o “lugar mostra sua força”, como afirma Santos (2004). Desse modo, a mobilidade: (...) se tornou praticamente uma regra, o movimento se sobrepõe ao repouso. A circulação é mais criadora que a produção. Os homens mudam de lugar, como turistas ou como imigrantes. Mas também os produtos, as mercadorias, as imagens, as idéias. Tudo voa. Daí a idéia de desterritorialização. Desterritorialização é, freqüentemente, uma outra palavra para significar estranhamento, que é, também, desculturização (SANTOS, 2004, p. 328).

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Bauman (1999, p. 103), afirma que nesse processo de mobilidade “Tanto o turista como o vagabundo são consumidores – e os consumidores dos tempos modernos avançados ou pós-modernos são caçadores de emoções e colecionadores de experiências; sua relação com o mundo é primordialmente estética: eles percebem o mundo como alimento para a sensibilidade, uma matriz de possíveis experiências (...)”.

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Santos ainda destaca a valorização da cultura na migração: “Vir a cidade grande é, certamente, deixar para atrás uma cultura herdada para se encontrar com uma outra” (2004, p. 329). Ainda, o autor analisa o papel da memória individual e o papel do novo lugar que realiza transformações na vida do migrante: “O homem de fora é portador de uma memória, espécie de consciência congelada, provinda com ele de um outro lugar. O lugar novo o obriga a um novo aprendizado e a uma nova formulação” (p. 330). Desse modo, sobre a importância do lugar na identificação do migrante, Hall (2004, p. 72) afirma que “O ‘lugar’ é específico, concreto, conhecido, familiar, delimitado: o ponto de práticas sociais específicas que nos moldaram e nos formaram e com as quais nossas identidades são estreitamente ligadas”. Assim, para o autor, “Os lugares permanecem fixos; é neles que temos ‘raízes’” (p. 73). Percebemos, no entanto, que o lugar, a memória e a identidade fazem parte do processo da migração e são imprescindíveis na análise. Zygmunt Bauman, em seu livro Identidade, comenta sobre a sua própria experiência como migrante, reiterando esse processo de reconhecimento entre identidade e lugar: (...) uma vez tendo sido obrigado a me mudar, expulso de algum lugar que pudesse passar pelo meu “habitat natural”, não haveria um espaço a que pudessem considerar-me ajustado, como dizem, cem por cento. Em todo e qualquer lugar eu estava – algumas vezes ligeiramente, outras ostensivamente – “deslocado” (BAUMAN, 2005, p. 18, [grifo do autor]).

Assim, as migrações atualmente estão sendo estudadas por novas matrizes teóricas. Destaca-se a importância dos estudos que apresentam a cultura como elemento principal, justificada através do encontro e contato com inúmeras culturas no processo de mobilidade “intensa” na pós-modernidade. Para Ortiz, isso ocorre porque: Como as culturas entram em contato por meio dos homens, a base referencial deve ser um agrupamento, uma coletividade de indivíduos que se desloca espacialmente. O choque ou a assimilação cultural se faz sempre no seio de um território, a nação, a cidade, o bairro. Dentro deste quadro, o conceito de memória coletiva torna-se fundamental para a análise (...), pois sabemos que as trocas se fazem em detrimento do grupo que parte, para se implantar, em condições adversas, em terras estranhas. (...) Entretanto, para ser vivificada, a memória necessita de uma referência territorial, ela se atualiza no espaço envolvente. (...) Os mecanismos da memória coletiva lhes permite recuperar as lembranças do esquecimento (ORTIZ, 2006, p. 75).

Assim, reconhecemos um movimento que estimula novas formas de compreender a migração. Estudos que demonstram fatores para além do econômico das concepções clássicas da modernidade.

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Considerações Finais: Qual caminho seguir? Através do tempo (e no[s] variado[s] espaço[s]) a análise das migrações sofreu transformações. É claro que as análises clássicas continuam (e devem continuar), sendo referenciais para o estudo das migrações, o que não impossibilita de buscar compreender as migrações com a incorporação de novos elementos e novas formas de análises, como buscamos demonstrar. Desse modo, nossa contribuição se faz na tentativa da sistematização de alguns elementos no estudo da migração no decorrer de sua trajetória na modernidade e na pós-modernidade, destacando o enfoque dos elementos econômicos e culturais que perpassam as análises. Entendemos, desse modo, que as migrações devem ser estudadas de forma multifacetada, como afirma Póvoa Neto (1997). Também, porque devemos buscar: Resgatar modos de vida, desejos e sonhos (perdidos ou realizados), o cotidiano, representações de si e do outro, imagens e discursos, relações de vizinhança, lazer e festas, as relações entre os lugares de origem e os lugares de destino, as condições econômicas de antes e depois, os encontros e desencontros (...) (GOETTERT, 2002, p. 167, [grifo do autor]).

Desse modo, compreendemos que o par novo/velho é interessante para os estudos da migração. O novo elemento que apresentamos no decorrer do texto na pós-modernidade é por nós entendido, enquanto um novo olhar que se dá sobre algo que sempre existiu, ou seja, é sobre a cultura dos sujeitos que passou a se firmar maior ênfase. Mas, então, qual o caminho a seguir? Da modernidade ou da pós-modernidade? Da hegemonia do “velho” elemento econômico e/ou da maior ênfase ao elemento cultural na pós-modernidade? Entendemos ser importante a mescla e/ou a multidimensionalidade dos elementos culturais e econômicos na abordagem na migração. Não se deve esquecer um ou outro; a melhor compreensão dos elementos subjetivos, estruturais e conjunturais é o desafio para uma maior complexificação e melhor apreensão da realidade e/ou do fenômeno estudado. Compreendemos que a pós-modernidade se apresenta como um momento de gestação ou de tendência de ruptura, porém, como afirma Hissa (2006), pela falta de um nome mais adequado, se denominou “pós” esse momento de crises, questionamentos, indagações, e, portanto, de importantes reflexões. Como demonstramos, a modernidade tem por base a razão, os modelos gerais e, sobretudo, o elemento econômico para análise; a pós-modernidade apresenta maior ênfase nos elementos culturais, subjetivos, idiossincráticos, da valorização dos lugares etc. Entendemos que a modernidade e a pósmodernidade apresentam inúmeras contribuições. Apontamos que uma dialética entre elementos modernos e pós-modernos seja imprescindível para uma melhor compreensão da realidade e, em nosso caso, para o estudo da mobilidade espacial da população. O imbricamento entre economia e cultura, subjetividade, estrutura e conjuntura é o desafio

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para a compreensão da migração cada vez mais multifacetada. Desse modo, as transformações que ocorrem no mundo sugerem leituras que abarquem mais elementos na compreensão do fenômeno migratório. As análises resgatando o cotidiano, o lugar, o sujeito, a identidade, a representação do eu e do outro etc, demonstram o complexo “mundo da migração”. Demonstra, também, que as migrações estão para além da realidade modelada pelas teorias clássicas, que pela racionalidade foram apresentadas “ideais” para abarcar a realidade da mobilidade das pessoas. Os desafios se apresentam pela diversidade de motivos e elementos que perpassam a vida dos migrantes, seus lugares, suas relações, suas formas de fazer, ver e ser a e na vida em trânsito. A migração se apresenta, portanto, como fenômeno instigante pela variedade de elementos que podemos compreender, enfocar e analisar. Há a necessidade da incorporação de novas fontes de análise, como a poesia, a música, a literatura etc. São várias as possibilidades para a mobilidade variada de pessoas com seus desejos, seus sonhos, seus objetivos, seus relacionamentos. São pessoas que migram, que levam relações, que levam objetos e outras pessoas, que encontram pessoas e objetos. São imigrantes e emigrantes, com seus dramas e felicidades, vitórias e derrotas. São os lugares e as pessoas dos lugares por onde passam ficam ou deixam, “corroídas” pelo capital e refazendo-se nos dramas e tramas do humano, demasiado humano. Referências Bibliográficas BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. ______. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. DEBIAGGI, Sylvia Dantas. Introdução. In: DEBIAGGI, Sylvia Dantas; PAIVA, Geraldo José de. (orgs.) Psicologia, e/imigração e cultura. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004, pp. 11-25. FERREIRA, Assuéro. “Migrações internas e subdesenvolvimento: uma discussão”. Revista de economia política, v. 6, n.1, 1986. GAUDEMAR, Jean-Paul de. Mobilidade do trabalho e acumulação do capital. Lisboa: Estampa, 1977. GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora da UNESP, 1991. ______. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. GOETTERT, Jones Dari. Lugares Amaldiçoados, Perdidos e Tristes: “Pedaços” de uma Geografia das Migrações no Brasil. Revista Cosmos. Ano I, vol. I, nº 1. Presidente Prudente: FCT – Unesp, 2003, pp. 14-16. ______. Migrantes, trabalho e representações. In: GOETTERT, Jones Dari; FERREIRA, Ivanildo José (orgs.). Migrantes em Rondonópolis: o fazer, o lembrar e o falar. Rondonópolis: Centro de Direitos Humanos Simão Bororo, 2002, pp. 149-169. ______. O espaço e o vento: olhares da migração gaúcha para Mato Grosso de quem partiu e de quem ficou. Tese de Doutorado. Presidente Prudente: Programa de

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Recebido para publicação dia 28 de Novembro de 2007 Aceito para publicação dia 12 de Fevereiro de2008

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AS DOENÇAS COMO OBJETO DE ESTUDO NO CONTEXTO GEOGRÁFICO: LONDRINA 1932/1943* ILLNESSES AS OBJECT OF STUDY IN THE GEOGRAPHIC CONTEXT: LONDRINA - 1932/1943 LAS ENFERMEDADES

COMO O BJETO DE ESTUDIO EN EL CONTEXTO GEOGRÁFICO LONDRINA - 1932 /

1943

MÁRCIA S. DE CATVALHO Docente do Departamento de Geociências da Universidade Estadual de Londrina (Paraná) Endereço eletrônico: [email protected]

*Agradecimentos à Fundação Araucária e ao CNPq pelo financiamento do projeto do qual esse artigo é uma das disseminações, e aos bolsistas de iniciação científica Fernanda Candiani Martins e Joviniano Netto pela digitação dos dados no programa Access (Microsoft).

Terra Livre

Resumo: O artigo trata da análise das doenças mais freqüentes na região de Londrina (Norte do Paraná – Brasil) na sua fase inicial de colonização. A região foi bastante visitada por geógrafos nessa época e em seus trabalhos foram utilizados conceitos chaves para a interpretação do tema insalubridade, doenças e mortes. Foram utilizadas informações através de entrevistas, depoimentos escritos, livros de memórias, reportagens, dados (apesar de incompletos) e documentos públicos. Entre esses, foi montado um banco de dados com as informações do livro de inumação do primeiro cemitério da cidade de Londrina e posteriormente elaborados gráficos e tabelas. Palavras Chave: Doenças, mortes, Londrina, Paraná, Geografia. Abstract: This paper deals with the analysis of the most frequent diseases in the region of Londrina (North of the Paraná - Brazil) in its initial phase of settling. The region was visited frequently by geographers at that time and its works had been used concepts keys for the interpretation about insalubrities, illnesses and deaths. Information was taken through written interviews, observations, books of memories, news articles, data (although incomplete) and public acts. Between these, it was organized a data base with the information of the book of burials of the first cemetery of the city of Londrina and later, graphics and tables. Key Words: Diseases, Deaths, Londrina, Paraná, Geography. Resumen: El artículo se ocupa del análisis de las enfermedades más frecuentes de la región de Londrina (norte del Paraná - Brasil) en su fase inicial de colonización. La región fue visitada suficientemente por geógrafos en aquella época y en sus trabajos habían sido utilizados conceptos llaves para la interpretación sobre insalubridad, enfermedades y muertes. La información fue tomada con entrevistas escritas, deposiciones, libros de memorias, artículos de las noticias, datos (aunque incompletos) y documentos públicos. Entre éstos, fue organizado una base de datos con la información del libro de entierros del primer cementerio de la ciudad de Londrina y más adelante, gráficos y de tablas. Palavras clave: Enfermedades, muertes, Londrina, Paraná, Geografía.

Presidente Prudente

Ano 23, v. 2, n. 29

p. 75-94

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Introdução O interesse dos geógrafos em relação às condições de doenças1 (e de saúde) das populações no espaço geográfico passou por diversas óticas nas tentativas de compreensão e explicação desses fenômenos. A principal característica dessas abordagens é entender as relações entre o meio físico (e sua complexidade) e os processos sociais de intervenção e modificação do espaço natural. Elas estão em contextos epistemológicos cujos conceitos foram criados, transformados e recriados, acompanhando a vida intelectual dos geógrafos e de seus respectivos espaços analisados. Alguns geógrafos aprofundaram suas análises a partir de uma proposta metodológica profunda em relação à ciência geográfica, como exemplo, Pierre Monbeig e Max Sorre, a partir de uma visão “clássica” lablachiana. Alguns conceitos foram representativos, como modo de vida, gênero de vida, frente pioneira, franja pioneira, complexo geográfico, complexo patogênico, aplicados na escala regional de análise ou como método de interpretação da relação entre o meio natural e o espaço construído pelas mãos dos seus diversos participantes. Analisando alguns de Pierre Monbeig podemos concluir que sua produção mais abrangente e que ele teve como referência Samuel Pessoa, pelo que se pode ler no capítulo sobre a Malária na obra Pioneiros e Fazendeiros de São Paulo (MONBEIG, 1984). Sua contribuição ao estudo das doenças que afetavam as zonas pioneiras se desenvolveu a partir do conceito de complexo geográfico em obra publicada em 1951, originalmente em francês, intitulada As estruturas agrárias da faixa pioneira paulista (MONBEIG, 1957). O significado de complexo trazia em si a combinação de fatores, atuais e pretéritos, em ações recíprocas e inseparáveis. A diversidade de paisagens deviase às diferentes combinações dos elementos físicos e biológicos. Era sobre essa base física e biológica que o homem se achava integrado e atuava diretamente na vegetação e solos. A aplicação do conceito de complexo levou à demonstração do mecanismo que unem entre si os agentes formadores desse complexo geográfico.: “Uma região natural é uma parte da superfície da terra no interior da qual os diferentes elementos físicos e biológicos, em ação recíproca e inseparáveis, constituem uma unidade. Esta provém da combinação de fatores que resulta, por sua vez, da situação presente e passada dos elementos. Uma região 1

Os termos doença (dolentia), enfermidade (infirmitas) e moléstia (moléstia) derivam de radicais da língua latina e significam, respectivamente, sentir ou causar dor, debilidade e perda das forças, e incômodo. Em países de língua inglesa são usados termos como disease, illness, morbid condition. Na língua castelhana usase o termo enfermidad. Talvez por influência das obras de língua francesa (maladie) o termo moléstia já foi muito utilizado. Esse último tem sido utilizado para expressar algo que provoca um mal estar, um incômodo. Em resumo, o doente é o que sente dor, sofre e padece; enfermo é o que está debilitado, enfraquecido pela doença. Mais recentemente, no contexto da Geografia da Saúde, na língua inglesa observa-se uma diferença de significado entre illness (uma experiência subjetiva traduzida na sensação de desconforto e alguma dor) e disease (identificação da patologia feita através de diagnose por um médico), ou seja: as pessoas sofrem de illness enquanto o médico identifica a disease (Davey e Seale, 1996, p. 9 apud Gatrell, 2002, p.5). Nos dicionários da língua castelhana o termo dolência (doença) tem como sinônimos indisposición, enfermedad ou alteración de la salud, entretanto é enfermedad o termo técnico utilizado pela Organização Pan-americana de Saúde para classificação internacional e famílias de classificações, assim como para classificar em enfermedades transmissibles e no transmissibles.

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natural, portanto, é um complexo geográfico. Sai individualidade se concretiza na paisagem. Se paisagens vizinhas diferem, é porque há complexos diferentes no interior dos quais a combinação dos elementos físicos e biológicos se efetuou de modo diferente. O homem se acha integrado no conjunto de fatores que constituem o complexo que por sua ação direta sobre a cobertura vegetal e os solos, quer indireta pelas mudanças decorrentes da primeira (evolução do modelado, por exemplo). A pesquisa regional não deve, pois, deter-se na delimitação espacial da região, nem na enumeração e simples descrição dos elementos que formam a região natural. Mais do que isso, deve prender-se à explicação estrutural, isto é, demonstrar o mecanismo que une entre si os agentes formadores desse complexo geográfico (1957-a, p. 127).

Monbeig destacou que o estudo através dos complexos de caráter regional apontava para contribuição original que a Geografia poderia dar às ciências humanas, pois o geógrafo seria capaz de relacionar fatos sociais ao meio físico-biológico (MONBEIG, 1957, p. 153). DANTAS (2005) vinculou a formação e o pensamento de Monbeig à Geografia clássica, após a morte de Vidal de la Blache. O estado da arte da geografia francesa naquela época compreendia a geografia física de DeMartonne e Baulig, a geografia regional de Blanchard e Demangeon e a geografia humana de Brunhes, Demangeon e Sorre. E por este último entendemos a importância do estudo das doenças nas frentes de colonização estudadas e a contribuição sorreana da ampliação do significado de gênero de vida para sociedades urbanas. Representante da geografia regional, Monbeig tinha raízes firmes na elaboração de um inventário do espaço na herança lablachiana de densidade, região, meio, gênero de vida e paisagem. Mais do que uma escala de pesquisa, a análise regional seria aplicada como um método (no qual o conceito de complexo seria de grande importância) para a geografia agrária, urbana, política e até apara a econômica e tropical (DANTAS, 2005. p. 15-17). Munido do instrumental que constava do trabalho de campo, análise regional e análise de situação, verificou que a análise de gêneros de vida (européia) apresentava problemas diante de uma realidade tão diversa no aspecto do ritmo e velocidade das mudanças. Entretanto os elementos básicos estão presentes na produção de Monbeig, como a atenção dada às técnicas, à alimentação, às doenças, à psicologia dos habitantes. Ele foi buscar na idéia norte-americana de front recursos para a análise da dinâmica populacional do território nacional, porém não se contentou com o conceito de frente, trabalhando com zona pioneira (equivalente à fronteira) e desenvolvendo mais tarde o de franja pioneira.2 Tudo isso enfeixado no conceito de complexo regional. Mais conhecido pelos seus livros que trataram do fenômeno da fome, Josué de Castro deu a sua contribuição para a relação Saúde e Doença, através da obra Manual de Geografia Humana, cujas bases lablachianas são claras, ao tratar de três temas: clima 2

DANTAS (2005, p. 68) nos revela que “o Monbeig que escreve em meados da década de 30 já não é o mesmo na década de 40, ainda menos o da década de 60. A mudança de denominação é também uma mudança na forma de ver e de analisar o fenômeno pioneiro”. Eu acrescentaria que nem a região permaneceu a mesma.

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humano, aclimatação e colonização. Embora Castro tenha usado o termo clima humano em obra datada de 1957, ele nos permite agregar conceitos de ampla utilização na Geografia da época estudada. Castro se reporta às ações humanas de criar um abrigo, a habitação, o vestuário, a alimentação adequada – gênero de vida - e daí o homem ter criado “em torno de si um clima até certo ponto diferente do clima natural das várias regiões em que vive, e ao qual podemos dar o nome de clima humano” (CASTRO, 1964, p. 29). Resultado da adaptação técnica humana, ele é produzido pelo gênero de vida formado pelos fatores culturais, entre eles por meio da higiene, saneiam zonas insalubres (CASTRO 1964, p. 31). A transformação do ambiente insalubre, causador de doenças que afetavam os imigrantes do Norte do Paraná, em clima humano é a época que buscamos analisar do ponto de vista da mortalidade: da década de 1930 à metade da década de 1940. Por outro lado, a existência de solos férteis exerceu o papel de atração não só aos futuros produtores rurais, comerciantes e todo tipo de personagens comuns às frentes agrícolas, mas também ao capital internacional que buscava áreas não coloniais para inseri-las como fornecedoras de matérias-primas na economia internacional. O saneamento e a “salubrização regional” foram necessários para colonização de regiões até então consideradas inabitáveis. Outro termo importante para compreendermos a análise geográfica da época é o de aclimatação, isto é, o resultado dos contatos e reajustamentos entre o elemento humano colonizador e o elemento nativo (CASTRO, 1964, p. 73). A região do Norte do Paraná já havia enfrentado o despovoamento e a aglutinação de parcela dos grupos indígenas desde a fundação de dois assentamentos às margens do baixo curso do rio Tibagi: um militar (1850/55 - Jataí) e um aldeamento indígena (1855 - Colônia São Pedro). Nessa fase podemos identificar os dois núcleos de ocupação estratégica brasileira num território ainda demograficamente vazio de população de ascendência européia questionado por castelhanos. Por este fato, ambos os núcleos poderiam ser classificados como colônias de posição. Somente após as duas primeiras décadas do século XX podemos classificar a região no tipo de colônia de enraizamento, com poucos contatos entre a população imigrante e os raros remanescentes indígenas. Contrariamente aos núcleos coloniais de outras áreas dos estados da região sul do Brasil estabelecidos no Império, a corrente migratória que se formou teve a participação de descendentes dos colonos das lavouras de café paulistas e de trabalhadores rurais de outros estados, em especial mineiros e nordestinos. O processo de ocupação da região resultou na produção da paisagem cultural no sentido de ser o produto da ação mútua e das reações conseqüentes entre o meio natural e o grupo humano (CASTRO, 1964, p. 59), ou numa referência à competência da Geografia Humana, como o estudo dos resultados, das vitórias do homem sobre a natureza, concretizadas em manifestações materiais de toda ordem (CASTRO, 1964, p. 79). O grau das relações entre a sociedade e a natureza, nesse sentido, foi o do progressivo aniquilamento da segunda pela primeira. Os fatos da economia destrutiva estiveram presentes desde o início da colonização: a destruição da floresta, a colheita

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natural (devastação vegetal), a caça e a pesca (devastação animal) (CASTRO, 1964, p. 80), substituindo rapidamente a paisagem original por lavouras. Não deve se considerar um atrevimento afirmar que Londrina foi exceção da regra sobre a afirmação de que a estrada de ferro não é o meio de transportes dos pioneiros, dos que vão descobrir terras novas como o fez Castro (1964, p. 119). Embora os trilhos tenham “vivificado” economicamente a região ao possibilitar o escoamento da produção, a chegada do trem na cidade foi rápida, comparada às áreas paulistas que foram incorporadas à cafeicultura. Menos de uma década separou o momento da construção do primeiro rancho de palmeiras da companhia responsável pela colonização em 1929 à chegada do trem em 1938. Embora as cidades sejam influenciadas pelas ferrovias, e o esplendor transitório das cidades localizadas no fim, e que, com o avanço posterior dos trilhos, para mais longe, perdem a sua importância econômica e entram em decadência (CASTRO, 1964, p. 120), não foi esse o destino de Londrina. Cidade “ponta de trilho”, ela recebeu continuamente uma população etnicamente variada. A contribuição dos geógrafos supracitados à compreensão das condições de vida da época podem nos auxiliar à reconstituição das condições de saúde, de salubridade e das doenças. Não se pretende no artigo fazer uma revisão da saúde dos habitantes na época do início da colonização do Norte do Paraná sob a ótica da Geografia da Saúde que conforme Gatrell (2002) incluiriam a poluição industrial das águas e da atmosfera. Mas há condições de verificar problemas relativos à desigualdade do acesso ao serviço público de saúde face à privatização da cura das doenças desde os primórdios pelos médicos contratados no hospital da Companhia de Terras Norte do Paraná. Não foi por acaso o afluxo intenso de médicos recém-formados em busca de pacientes. A precariedade e a insuficiência no atendimento médico resultado do crescimento populacional rápido alimentado pela migração resultaram, na década de 1940, na mobilização dos moradores para a construção da Santa Casa de Misericórdia na cidade. Embora os municípios tivessem um Inspetor de Higiene o atendimento era insuficiente e sujeito às pressões do empreendimento colonizador, como aconteceu ao notificar caso de febre amarela que acarretou na sua demissão. A malária era endêmica e outras doenças epidêmicas. A infra-estrutura básica de água tratada e coleta de esgotos atingiu somente uma pequena parte da cidade de Londrina e também foi promovida pela companhia de colonização. O papel do Estado foi bastante reduzido na instalação das bases infra-estruturais para o projeto de assentamento. O crescimento urbano foi bastante rápido e não teve o acompanhamento dessa infra-estrutura necessária à manutenção de um ambiente salubre. A Geografia Médica, especialidade que usa os conceitos e técnicas da disciplina de geografia para investigar tópicos relacionados à saúde, constrói seu objeto de maneira holística dentro de uma variedade de sistemas culturais e da biosfera (MEADE e EARICKSON, 2000, p. 1-2). No início do século XX a interação entre homem e ambiente natural foi analisada sob o determinismo geográfico, que considerava o último como responsável pelo efeito dominante nos ambientes humanizados, nas atividades

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desenvolvidas e nas condições naturais. O possibilismo ampliou, mas não rompeu totalmente com a influência do ambiente natural sobre o espaço humanizado. Como lablachianos, e consequentemente, possibilistas, podemos entender a referência à malária (e não às outras doenças) feita por Monbeig e à importância dada por Josué de Castro na construção do clima humano como equivalente à eliminação da insalubridade. Pela importância que a Geografia Médica deu às doenças infecto-contagiosas (LEMOS e LIMA, 2002) até que ponto outras doenças não tiveram o merecido destaque na análise geográfica? O objetivo do artigo restringiu-se ao levantamento das obras relativas à região por geógrafos e nelas à identificação da situação relativa às condições de saúde e mortalidade da população nas décadas de 1930 e 1940. A partir dos artigos e textos foi feita a análise de suas bases conceituais e se buscaram dados referentes às mortes e doenças antes da fase da colonização. Para isso foram usados os dados registrados nos livros de inumações, recurso utilizado por historiadores que possibilita aos geógrafos uma aproximação às condições de vida então existentes na região. Insalubridade e colonização no Norte do Paraná O impaludismo no Norte do Paraná tem data anterior à ocupação da frente pioneira na década de 1930. A sua presença já tinha sido detectada desde seus primeiros habitantes e na ocasião da fundação da colônia militar de Jataí pelo Barão de Antonina e do aldeamento São Pedro de Alcântara pelo frei Timóteo de Castelnouvo, as febres dizimaram colonos e indígenas. Seis anos depois foi solicitada a mudança do sítio de ambas para local mais salubre. Mas a doença estava disseminada e após 1900 as correntes migratórias atestaram a sua gravidade ao iniciarem o povoamento da região através da rota que cruzava o rio Paranapanema. (Moreira, 1935) Vários surtos foram detectados nos anos de 1911, 1914, 1917 e 1924 no Norte do Paraná. Em outra fonte as epidemias, iniciadas em 1908, foram mais freqüentes: 1912, 1913, 1914, 1915 e 1917, tendo sido esta última a mais grave (Araújo, 1919, p. 250). Os relatórios elaborados por médicos do Instituto de Manguinhos incluíram uma visita ao estado do Paraná em 1916, constataram a ocorrência de “milhares de vítimas (da malária) no norte do Estado” (IVANO, 2002, p. 61). Em 1917, essa doença teria sido a responsável pelo atraso ou o despovoamento de cidades – em Tomazina o comércio estava paralisado e grande número de casas fechadas. Entre as causas estavam a falta de assistência médica oficial ou privada, as condições de vida dos habitantes no que diz respeito à habitação, vestuário, alimentação e trabalho, o analfabetismo e a falta de hábitos higiênicos, a localização das moradias nas baixadas e nas margens dos rios, a devastação das florestas nas partes altas com reflexos nos mananciais, a má distribuição das águas e o represamento ou desvios para atividades como a movimentação de monjolos ou de tanques para a ceva de porcos. (ARAÚJO, 1919, p. 274). Em 1918, a parte relativa à profilaxia do Regulamento da Directoria Geral de Saúde Pública, previa trabalhos de

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hydrografia sanitária3 . Em 1930, através de decreto n. 1290 (4/7/1930) foi proposta a execução de trabalhos onde existissem focos dos mosquitos transmissores através da desobstrução, limpeza e retificação dos cursos de água, aterro ou drenagem dos pântanos, abertura de valas e canais para facilitar o escoamento das águas e a derrubada de matas, quando necessário, e limpeza geral dos terrenos em torno das construções. No interior do Paraná essa doença ainda ameaçava não apenas a população, mas a economia e os esforços da definição da estrutura fundiária. Entre 1900 e 1929 houve cinco frentes bem definidas atravessando os limites do estado de São Paulo na direção do estado do Paraná. Duas delas nos interessam mais diretamente: a primeira frente seguia na direção oeste, cujo ponto de apoio foi Ourinhos e se espalhou por Cambará, Andirá, Bandeirantes e Cornélio Procópio, principalmente formada por grandes cafeicultores. A segunda veio do sul do estado de São Paulo atravessando o rio Paranapanema e chegando à região formada pela antiga área dos municípios de Sertanópolis, Cornélio Procópio e São Jerônimo. No Paraná, o processo de ocupação se deu de três maneiras. A mais documentada ficou por conta das companhias de colonização. A Colônia Zacarias de Góes que originou as cidades de Primeiro de Maio, Sertanópolis e Santo Inácio (FRESCA, 2004, p. 49), embora outro autor atribua a CORAIN e Cia.4 a fundação da colônia Primeiro de Maio5 , desmembrada da colônia de Limoeiro. Em 1925, famílias portuguesas, inicialmente agricultoras de produtos de subsistência, começaram a povoar as terras localizadas na bacia do ribeirão do Cerne (próxima da atual cidade de Sertanópolis), compradores de lotes da Companhia Colonizadora do Norte do Paraná (CARVALHO, 2002). Outra companhia, a CTNP, adquiriu terras em 1925 e seus funcionários começaram a abertura de clareira em Londrina no ano de 1929. A segunda maneira foi formada por cafeicultores mineiros ou paulistas que compraram terras extremamente baratas e a terceira foi de recém-chegados que se estabeleceram pelo simples apossamento de terras públicas. A criação de porcos desempenhou um papel primordial para os primeiros ocupantes da região. Ela permitia o transporte por áreas em que as vias de comunicação eram estradas precárias, possibilitavam as paradas para o restabelecimento do peso dos animais, além de mercado para os produtos de banha e carne. Mas para isso havia a necessidade de um ambiente minimamente salubre para evitar a transferência de sítios de núcleos urbanos, como ocorreu com São José da Boa Vista em função de numerosos casos de 3

No regulamento do Serviço Sanitário do estado do Paraná, a que se refere a lei n.º 1.791 de 8 de abril de 1918 há um item Da profilaxia específica das moléstias transmissíveis. Os capítulos 157 e 158 tratam especificamente da febre amarela. (Roncalio; Martis e Neuert, 2001). 4

... primeiras concessões de terras situadas ao Norte do Paraná, na margem esquerda do Tibagi, feitas pelo Governo do estado às empresas Corain e Cia. (Primeiro de Maio) e Leopoldo Paula Vieira (Sertanópolis), em 1916, com 50 mil hectares. Lotearam suas concessões em chácaras, sítios e pequenas fazendas (Cardoso,1986. p. 62). 5

O primeiro sítio da cidade, localizado perto da foz do rio Tibagi no Paranapanema, estava numa região tomada pela malária e outras doenças, daí a transferência da ribeirinha Vila de Primeiro de Maio, onde houve uma forte epidemia de malária em 1927, para um novo sítio no espigão em 1936. (Ayres, 2000, p. 115 e 124).

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malária, também na região de Tomazina. Independente da afirmação corrente em entrevistas de que “a malária dava até em pé de árvore” na região do Norte do Paraná, a propaganda de uma das colonizadoras (CTNP) sobre a fertilidade das terras destacava a ausência de saúvas. Entretanto, há uma total ausência das condições sobre a (in) salubridade para os possíveis interessados. Tal fato atrapalharia bastante os negócios na venda de lotes aos estrangeiros e aos nacionais. A assistência médica, inicialmente, foi providenciada pela mesma companhia responsável pela colonização. A instalação de infra-estrutura mínima para a venda dos lotes exigiu providências como a construção de hotel e a transferência dos alojamentos dos trabalhadores da estrada de ferro, das casas dos responsáveis pelo empreendimento colonizador e do pequeno hospital. Este funcionava inicialmente em Cornélio Procópio e foi transferido para Londrina em 1932, prestando atendimentos aos trabalhadores da estrada de ferro e aos compradores de lotes de terras (COUTINHO, 1997. p. 27). Sua atenção foi até o ponto de recorrer à Fundação Rockefeller quando da erupção, em dezembro de 1935, de um surto de febre amarela silvestre. Esta fundação desenvolvia atividades sanitárias nas áreas rurais de países intertropicais afetados por doenças como a malária, a ancilostomose, a febre amarela. Foi feita vacinação em massa da população e providenciou-se a caça de macacos silvestres, considerados infectados, em 1936. Além da necessidade da erradicação das doenças, era vital o estabelecimento de rede de vias de comunicação, não apenas para trazer os migrantes, mas também para transportar os produtos da terra (OBERDIEK, 1997). Se a ampliação dos trilhos da estrada de ferro foi apontada como um dos fatores para o estabelecimento da malária na região pode-se pensar que exatamente foi através deles que a população pode chegar até as áreas onde a os vetores da doença pré-existiam. Há registro que em 1936 o Tibagi era, ou melhor, permanecia um rio maleitoso (PAULA, 1936, p. 46). Essa inversão na interpretação pode ser auxiliada pelo discurso da simultaneidade da expansão da frente pioneira associada às relações diretas com o capital industrial ou agrário. Boca de sertão Entre 1920 e 1940 os movimentos populacionais no estado do Paraná se caracterizavam pelo abandono de núcleos coloniais antigos e êxodo para as cidades (Curitiba e Ponta Grossa) e o crescimento extraordinário nos municípios do norte no contexto de uma frente pioneira a acompanhar os cafezais e os trilhos da ferrovia. Em 1938, Deffontaines (2004. p. 130) classificava Londrina como cidade típica de boca do sertão. Ela era a ponta de linha da estrada ferroviária, uma ponta pioneira, a boca sobre regiões vazias. Sua característica era a de apresentar um aumento populacional vertiginoso. Esse contingente populacional que chegou ao Norte do Paraná foi formado majoritariamente por trabalhadores nacionais que não se transformaram imediatamente em pequenos proprietários. Eles participaram da implantação da colonização nas atividades

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de abertura de estradas, ruas, derrubadas de matas, plantio inicial do café. (OBERDIEK, 1997, p. 58 e 60) A aquisição da terra foi acessível a estes trabalhadores que conseguiram acumular algum excedente. E a crescente produção agrícola e de porcos do Norte do Paraná entre os anos de 1931 e 1934 definiu nitidamente a região nesse período como produtora de alimentos e exportadora de madeiras. Esta última passou de 422 toneladas em 1931 para 10.745 em 1934. Em 1938, toda a madeira transportada pela estrada de ferro das estações de Ibiporã, Londrina, Nova Dantzig (Cambé) e Rolândia no ano de 1938 atingiu a soma de 51.325 toneladas (GOMES, 1938). A forma organizada da colonização baseada em pequenos lotes e a forma de pagamento em várias prestações não deixou a terra ociosa. Monbeig descreve os pequenos pioneiros como famílias de recursos modestos, daí a “construção do rancho próximo de um rio, ao lado da horta, um cercado para os porcos e um pasto (...) as culturas alimentares misturadas com o algodão ou cafeeiros novos, ocupam a parte alta do terreno” (MONBEIG, 1957, p. 116-117). Isto aponta para o ritmo crescente da derrubada de matas e o contato de brasileiros e estrangeiros com vetores de doenças. Além da ferrovia, a rede de rodovias que cortava Londrina em 1938 ligava a cidade a Jataí e a Sertanópolis e se somava às outras estradas que passavam por Arapongas, Itambé, Apucarana, Pirapó, Jandaia e Lovat (GOMES, 1938. p. 73-74) O afluxo de pessoas e as redes de comunicação foram acompanhadas do desmembramento e da criação de novos municípios entre 1930 e 1938. O que esperava essa população, além do sonho de trabalho e terras acessíveis? As residências eram extremamente precárias no início da instalação, feitas de troncos de palmito, chão de terra batida e cobertas por folhas de palmeira (palmito) ou de tabuinhas. Pouco antes ou paralelamente procedia-se à derrubada de matas, queimada e destocamento, este raro. A partir de então se iniciava o plantio de café e de lavouras de produtos de subsistência nas ruas do cafezal. Nessa etapa vários trabalhadores se dedicavam às diversas tarefas. Geralmente eram nordestinos os que se ocupavam do desmatamento. Havia também os especializados em formar o cafezal, mas no caso de trabalhadores e pequenos produtores, a própria família realizava esta tarefa (CARVALHO, 1991). A proximidade entre a mata (e rios) e as lavouras plantadas, a residência ainda precária (quase ranchos) na área agrícola e casas feitas de tronco de palmeiras e de madeira na área urbana próximas das matas nas cidades nascentes impunham às famílias um ambiente hostil. As fontes alimentares inicialmente baseavam-se na oferta natural da mata, como o palmito e a caça6 . A falta de saneamento eficaz e o controle insuficiente de vetores foram os responsáveis pela precariedade da saúde dos imigrantes. Podemos ressalvar os loteamentos onde os pequenos agricultores japoneses construíram suas casas próximas à parte mais alta do lote, afastando-se assim dos mosquitos que transmitiam a leshmaniose (MONBEIG, 1957, p. 121). Mas essa localização não foi a mais comum na região de recém-chegados. Não somente as doenças os atingiam, mas as mortes lhes 6

Dependendo do estágio em que a família se encontrava na nova ocupação o regime alimentar se modificava. Ver CARVALHO, M. S. A Geografia da Alimentação em frente pioneira (Londrina – Paraná). Terra Livre, Goiânia, v. 21, n. 2, p. 95-110, 2005.

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sucediam. Apesar do ritmo de desmatamento pela implantação de lavouras, a proximidade das matas aos núcleos urbanos deve ser vista como pontos de contato entre os habitantes da cidade com vetores de doenças típicas de florestas. Entretanto há várias doenças que não podem ser explicadas por essa interface. A área urbana de Londrina é um exemplo. Inicialmente a área central restringia-se a poucas quadras pertencentes aos terrenos “urbanos” da CTNP. Neles havia alguma infra-estrutura que foi sendo construída para o funcionamento do escritório de vendas e chegou a algumas casas. O local foi sendo ocupado por casas comerciais, estações rodoviária e ferroviária, e os bancos que propiciavam o funcionamento econômico do empreendimento colonizador. As chácaras que foram planejadas para exercerem o papel de “cinturão verde” para a cidade logo se transformaram em loteamentos (“vilas”) fora da área inicialmente considerada urbana. São casos típicos a Vila Agari, datada de 1936, vilas Casoni e Nova Conceição, entre 1937 e 1939 (GOMES, 1938; PRANDINI, 1954, p. 66). Castelnou apresenta uma seqüência com pequenas diferenças: Vila Matarazzo em 1937, Vilas Conceição e Monteiro (ao norte), o Parque Agari (ao sul) em 1938, a Vila Boa Vista em 1939, e a Vila Casoni em 1941 (CASTELNOU, 1996, p. 25). Entre 1944 e 1947 seriam 53 vilas fora do traçado urbanístico inicial apresentando loteamentos com espaços vazios e ocupados, sem infraestrutura de esgoto e água encanada e tratada e somente em 1948 a Prefeitura agiu para frear novos loteamentos através de um decreto (PRANDINI, 1954, p. 66). A ausência de saneamento explicará em parte o que analisaremos a seguir. Doenças e mortes em Londrina A partir de depoimentos de antigos médicos da cidade colhidos pela Associação Médica de Londrina identificamos as doenças mais freqüentes e as mais temidas. Há relatos sobre a substituição do Delegado de Saúde que se “indispusera com os diretores da Companhia de Terras ao denunciar a eclosão de uma epidemia de febre amarela silvestre, dentro da gleba que estava sendo loteada” (GÓIS, 1992, p.128-129). A construção de usina hidrelétrica revelou-se uma atividade bastante insalubre pelo contágio de seus trabalhadores pela malária. O tifo foi bem freqüente e um dos médicos lembrou-se do surto de febre tifóide no verão de 1937/38, quando “as mortes ocorriam às dezenas causadas por peritonite, provocada por perfuração intestinal” (NOGUEIRA e FRANCISCO, s.d, p.20). Outras atividades próprias das atividades de fronteira causavam acidentes: “Na minha parte de cirurgias, eram os acidentes o que mais atendia. Porque havia muito transporte de tora de caminhão, desmatamento, o número de acidentes era incrível e não tinha assistência” (NOGUEIRA e FRANCISCO, s.d, p. 122). Não eram raras as complicações durante o parto “... quando de placenta retida (sic), lesão de colo uterino pós-parto obrigava proceder a curetagem uterina, sem condições de higiene e à luz de vela ou farolete em casebres...” (NOGUEIRA e FRANCISCO, s.d, p. 20). A

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elevada mortalidade infantil e de natimortos também foi causada por tétano (AYRES, 2000). Os abortos se transformavam em casos de infecção, combatida quando havia penicilina. Londrina era buscada em casos de emergência, sendo praticamente o único ponto de apoio médico numa região onde aconteciam conflitos pela terra e desavenças nas áreas urbanas (TRIGUEIROS FILHO, 1979, p.2 e 4). Foram apontadas outras doenças como crianças com desidratação por diarréia, pacientes com doenças respiratórias, cardíacas e circulatórias, casos de ginecologia e obstetrícia, malária, febre tifóide, leishmaniose cutânea ou nasal, acidentes de derrubadas das matas. Os casos de malária vinham todos de locais distantes à beira-rio, como Jataizinho que fica às margens do rio Tibagi, a pouco mais de 20 km de Londrina (NOGUEIRA e FRANCISCO, s.d, p. 62) Uma primeira vista nos dados do livro de inumações do cemitério da cidade – 1932 a abril de 1943 – e já se destaca uma diferença entre o número de mortes durante os meses do ano. Elas eram mais numerosas nos meses de novembro, dezembro e janeiro. As exceções foram os meses de fevereiro de 1936 e outubro de 1940. O aumento das mortes por ano também não obedece a um crescimento linear. Se mais do que duplicam de 1935 para 1936, as mortes dos anos de 1937, 1940 e 1942 diminuíram em relação ao ano antecedente (Tabela 1). A comparação entre o total das mortes das 15 causas mais freqüentes, inclusive as de causas indefinidas e sem atendimento médico desde 1932 até abril de 1943, com a população total do município entre 1933 e 1943 mostra um ritmo de crescimento mais alto da primeira sobre a segunda, apesar de receber um fluxo crescente de novos moradores. Destacam-se nesse período a criação do município de Londrina em 1934, o seu crescimento populacional extremamente rápido e os desmembramentos de parte do seu território pela criação dos municípios de Apucarana e de Rolândia em 19437 (Figura 1). Figura 1.Londrina: Total de mortes* e população - 1933 a abril de 1943 450 400

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Decreto-lei nº. 199, de 30 de dezembro de 1943 pelo interventor Manoel Ribas.

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* 15 maiores causas de mortes. Fonte: Arias Netto, M. 1991. p. 169-170. Prefeitura Municipal de Londrina. Londrina. Livro de Inumações do Cemitério São Pedro. 1943.

Figura 2. Localização dos postos de atendimento e subpostos de tratamento e margens dos rios com elevado índice de impaludismo. (Dr. Julio Moreira, 1935)

Fonte: Moreira, 1935. Atualizado a partir de mapa base - Fonte: Ipardes – 1995 - Base Cartográfica: IAP – 1997.

Tabela 1. Londrina: Distribuição do número de óbitos por mês e ano – 1932 a maio de 1943.

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1932

2 1 0 0 0 3

1933 2 3 6 6 3 0 5 4 9 0 16 17 0 71

1934 13 9 10 10 4 6 3 6 10 9 13 20 0 113

1935 19 16 14 9 2 14 14 11 10 9 14 34 1 167

1936 36 43 26 28 16 13 20 25 16 22 35 44 0 324

1937 25 14 17 14 15 8 9 21 13 13 26 40 0 215

1938 29 16 26 15 17 17 22 20 36 31 33 53 0 315

1939 36 25 28 25 20 26 33 32 31 38 63 55 0 412

1940 35 32 35 24 19 20 36 30 38 50 42 44 0 405

Fonte: Prefeitura Municipal de Londrina. Londrina. Livro de Inumações do Cemitério São Pedro.1943.

1941 46 49 52 43 22 32 30 33 34 44 45 50 0 480

1942 53 37 23 25 30 32 29 33 32 29 38 39 0 400

1943 22 27 28 8 2

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mortes 316 271 265 207 150 168 201 215 229 245 325 396 1 2992

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meses janeiro fevereiro março abril maio junho julho agosto setembro outubro novembro dezembro sem info total

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A comparação entre os relatos de médicos e os dados do livro de inumações confirmaram um surto de febre tifóide no verão de 1937 e mortes por peritonite, causada por perfuração intestinal. Numa análise inicial dos dados referentes aos óbitos entre 1933 e abril de 19438 revelam-se pelo menos cinco surtos graves: febre amarela em 1936, tifo em 1937 e 1940, e malária em 1935 e 1941. Ao separarmos algumas causas de mortes – tifo, perfuração intestinal, peritonite, maleita, febre amarela, malária e impaludismo – os piores anos foram os de 1937 e 1941. Todas elas têm em comum a proximidade de margens de rios ou a contaminação hídrica por fossas e poços localizados próximos nos bairros novos da cidade (Figura 2). Somente em 1942 seria criado o primeiro posto de saúde no município (GOIS, 1992, p. 174). Determinadas doenças comuns na região levavam à morte. A pesquisa realizada por ANDRADE (1998) levantou uma lista bem definida. Em Nova Dantzig (atual Cambé) elas eram a malária, a tuberculose e a febre amarela (ANDRADE, 1998, p. 52). Os casos de óbito por estas doenças constam no livro de inumações do cemitério Cambé (Nova Dantzig) entre outubro de 1936 e 1947, porém foram poucos. Muitas mortes tiveram como causa, considerando esta fonte documental, por moléstias infecto-parasitárias (ANDRADE, 1998, p. 51). A comparação com os óbitos do livro de inumações do cemitério São Pedro (Londrina) que entrou em funcionamento em 1932, apresenta aspectos semelhantes e outros diferentes. Considerando todas as mortes (2.998), 41% não tiveram a causa identificada e/ou não houve assistência médica (Figura 3). Desse total foi feita a análise das dezoito causas mais constantes, totalizando 1.464 óbitos. Essa amostra próxima da metade do universo mantém o destaque da não identificação das causas (571), o que permite intuir a falta de atendimento médico. Outras causas ficam destacadas, como as mortes por colapsos, colapsos cardíacos e insuficiência cardíaca (soma igual a 145) e pneumonia e bronco-pneumonia (107). (Figura 4) Embora as mortes causadas pelas doenças infecto-parasitárias – disenterias, diarréias, intoxicações e toxicose - fossem as mais numerosas (353), houve óbitos por malária (16), tifo (27), e febre tifóide (15) em Londrina entre 1933 e abril de 1942.

Figura 3: Londrina - mortes com causas identificadas e sem assistência médica/ sem causa identificada – 1933 a 1943.

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O primeiro Livro de Inumações do Cemitério S. Pedro, o primeiro da cidade de Londrina, teve 3 inumações no ano de 1932.

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Terra Livre - n. 29 (2): 75-94, 2007 Londrina: Mortes com causa de morte identificada e sem assistência médica/sem causa identificada

1943

35

52

1942

125

1941

Fonte: Livro de Inumações do Cemitério São Pedro. 1942 a 1943. Prefeitura Municipal de Londrina. Londrina.

Figura 4. Principais Causas de Morte – Londrina – 1932 a maio de 1943.

Lon drina: Principais causa d e mortes - 1932 a maio de 1943 sem assistênci a médica disenteria/diarréia

190

pneumonia e broncopneumonia

157 108

toxicose e intox. alimentar colapso cardíaco tifo e febre tifóide malária

104 42 36

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Fonte: Prefeitura Municipal de Londrina. Londrina. Livro de Inumações do Cemitério São Pedro. 1943.

Conclusão A infra-estrutura que não ofertava água tratada suficiente aos novos habitantes, assim como um sistema de coleta de esgotos e tratamento de águas usadas, aliadas à utilização de poços contaminados por fossas na cidade de Londrina e na área rural revelamse pelas doenças e mortes de seus habitantes. Embora existisse em 1935 uma rede de postos e subpostos de tratamento de saúde nas cidades de Sertanópolis, Jataí, Bandeirantes, Cambará, Jacarezinho, Ribeirão Claro, Londrina, Figueira, Joaquim Távora, Assai, Santo Antônio (da Platina), Salto do Itararé, Carlópolis e Barra Bonita (MOREIRA, 1935) eles não comportaram as necessidades crescentes da população. Mas o que encontramos leva à pergunta. Houve a ausência ou procrastinação do governo do estado paranaense no atendimento da saúde pública? O monopólio e a responsabilidade dos serviços públicos - iluminação, comunicações, transportes, fornecimento de água e assistência médica aos funcionários e compradores foram transferidos do Estado do Paraná para a CTNP (ARIAS NETO (1993); TOMAZI (1970) apud. MENDONÇA, 2004. p. 64). Até a abertura de um hospital particular em 1937, somente os médicos contratados pela CTNP tinham acesso ao “hospitalzinho” sendo vedado seu uso aos médicos particulares estabelecidos na região. Esse monopólio levou alguns autores ao questionamento sobre a credibilidade de alguns atestados de óbitos. A análise das causas de morte entre os anos de 1932 a 1942 em Londrina aponta para as más condições de infra-estrutura existentes e a precariedade do atendimento da saúde pública. Água tratada e esgotos foram instalados mais tarde, mesmo na área central da cidade de Londrina. A contaminação da água consumida foi motivo suficiente para as freqüentes mortes causadas por diarréias, disenterias, e possíveis casos classificados como “intoxicação alimentar”, elevando o número de óbitos infantis. Os casos de tifo freqüentes em Londrina e em Rolândia, que levaram a mortes, estão diretamente relacionados com a falta ou precariedade do saneamento básico. Podemos afirmar isso levando em conta reportagem publicada no jornal Folha de Londrina em 21/08/2005. Ela trata da inauguração de um hotel situado ao lado do antigo escritório de vendas, cujo dono afirmava ter um sistema de água tratada e de esgotos particulares, já que a infra-estrutura existente não comportava um edifício moderno no início da década de 1950: “O dia é 29 de novembro de 1952, data da inauguração do Conjunto Arquitetônico Sahão. Os dois blocos foram construídos para ser hotel e uso misto (residencial e comercial). Antes, aquele lugar era ocupado pela casa de Arthur Hugh Miller Thomas, gerente de Terras Norte do Paraná. Para as exigências de um hotel, a construção não seria algo fácil. Não havia na cidade energia elétrica suficiente para movimentar o elevador e nem água e rede de esgoto para garantir o funcionamento do prédio projetado por Roger Henri Weiter. O edifício passou a contar com um serviço de

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esgoto próprio, que usava um caminhão-bomba para esvaziar a fossa, e um gerador Mclaren (movido a diesel) para fornecer luz e movimentar os elevadores do segundo edifício de Londrina.”

O atendimento médico restringiu-se aos serviços do pequeno hospital (para trabalhadores e compradores da CTNP) e aos médicos particulares, até a inauguração da Irmandade Santa Casa de Misericórdia em 1944. A comparação entre as causas de mortes entre Londrina, entre 1932 e 1943, as de mortalidade infantil em Cambé entre 1933 e 1947 (ANDRADE, 1998) e mortalidade geral do patrimônio londrinense do Heimtal entre 1931 e 1947 (ALMEIDA, 1997) aponta para a falta de atendimento médico e para a falha na saúde pública em garantir um bom atendimento às doenças dos trabalhadores urbanos e rurais que se instalaram na região. As mortes, estágio final das doenças não curadas, revelam um pouco das condições de vida dos seus habitantes. As causas não identificadas, as mortes sem atendimento médico e a mortalidade infantil (até 10 anos) eram elevadas na região. No pequeno núcleo urbano londrinense do Heimtal, entre 1931 e 1947, do total de 194 mortes, 67,5% foram de natimortos e de crianças que não atingiram 5 anos de idade, e 106 (54,6%) não tiveram suas causas conhecidas. Entre as causas conhecidas, a mais freqüente foi decorrente de gastrenterites e disenterias(34 ou 17,5%) o que nos leva a considerar que ela atingiu as crianças do pequeno núcleo urbano. De acordo com os dados do cemitério São Pedro (Londrina) os natimortos e as crianças que não completaram 10 anos somaram 67% dos 3000 mortos entre 1932 até abril de 1943. Em Cambé (antiga Nova Dantzig) foram as doenças infecto–parasitárias, a ausência de atendimento médico e natimortos. Em Londrina o cenário não foi diferente. Disenterias somadas às diarréias, pneumonias e bronco-pneumonias, doenças tratáveis mas letais onde há um sistema eficiente de saúde pública e saneamento básico, predominaram entre as causas de óbito (Figura 4) somadas às decorrentes das epidemias de tifo, febre tifóide e paratifo em 1937 e 1940, febre amarela em 1936, e impaludismo (malária) em 1941. Podemos considerar que parte da presença médica aconteceu somente para elaborar o atestado de óbito, necessário para a realização do sepultamento, de acordo com lei municipal. A análise dos dados de Londrina e a comparação com as causas de morte dos cemitérios das cidades vizinhas revelaram um panorama não relatado nos textos de Monbeig. O sistema explicativo do clima humano de Josué de Castro, significando um clima modificado pela atuação humana, terras agricultadas e crescimento de cidades, previa que por meio da higiene os meios insalubres seriam saneados. Nesse contexto o fator cultural seria o principal no conjunto formador dos gêneros de vida. Mas somente isso não é suficiente para explicar os óbitos mais freqüentes. Ao analisarmos as mortes, elas foram mais numerosas entre os natimortos e crianças abaixo de 10 anos de idade, sem considerar a dificuldade enfrentada pelo alto número de óbitos sem causa definida

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ou sem atendimento médico. A criação de um “clima urbano” formado por “vilas” instaladas em chácaras em torno do núcleo central forjou uma nova insalubridade. A malária que tanto foi cara aos geógrafos que estudaram as faixas pioneiras atingiu mortalmente poucos se pensarmos nas faixas etárias maduras ou de mais idade comparando com os óbitos decorrentes dos colapsos ou outras doenças do sistema cardíaco. Talvez porque isso reflita a situação da Geografia Médica que naquela época tinha como objeto de estudo destacado as chamadas “doenças tropicais” e a relação ambiental direta entre locais recém-desbravados e a população migrante que chegava em ondas expressivas. A chamada criação do clima humanizado não havia incluído um sistema de saneamento urbano, além das propostas que se restringiram ao saneamento dos rios. Mortes por diarréias e disenterias, além da nebulosa denominação de toxicose, não podem ser somente atribuídas ao consumo de alimentos contaminados devido ao fator cultural de preparo e técnicas de manipulação dos alimentos. Mas torna-se compreensível a sua alta incidência se considerarmos o consumo de água inadequada. Apesar de pensarmos num imaginário de fronteira onde as mortes por causas externas – quedas de árvores, acidentes de trabalho na lavoura – predominariam e os atingidos fossem majoritariamente adultos, nos defrontamos com alta mortalidade infantil, filhos desses migrantes. Bibliografia ALMEIDA, Ana Maria Chiarotti de. A Morada do Vale: sociabilidade e representações. Um estudo sobre as famílias pioneiras do Heimtal. Londrina: EDUEL. 1997. ANDRADE, Ana Paula de Angeli de. A mortalidade infantil em Cambé - PR 1936/1947. Monografia de especialização em História Social e Ensino de História. Departamento de História. Curso de Especialização em História. Universidade Estadual de Londrina. Londrina: 1998. 83p. ARAUJO, Heraclides C. de Souza. A Profilaxia Rural no Estado do Paraná: esboço de Geographia Medica. Livraria Economia. Curitiba: 1919. ARIAS NETO, J. M. O Eldorado: Londrina e o Norte do Paraná - 1930/1975. Dissertação (Mestrado em História Social) Departamento de História da Universidade de São Paulo. São Paulo: 1993. AYRES, João Dias. Portal da Esperança: crônicas do anteontem. Londrina: Grafipar, 2000. CARVALHO, Manoel Faustino. Os Pioneiros Anônimos. Londrina: Stargraf, 2002. CARVALHO, Márcia Siqueira de. A Pequena Produção de Café no Paraná. Tese de doutoramento. Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo. São Paulo: 1991. CARVALHO, Márcia Siqueira A Geografia da Alimentação em frente pioneira (Londrina – Paraná). Terra Livre, Goiânia, v. 21, n. 2, p. 95-110, 2005. CASTELNOU, Antonio M. N. Panorama geral da arquitetura Londrinense. Relatório final de pesquisa. CESULON, Dep. de Arquitetura e Urbanismo. Londrina: 1996. CASTRO, Josué de. Ensaios de Geografia Humana. 3ª. Ed. São Paulo: Brasiliense, 1964. COUTINHO, Humberto Puiggari. Londrina 25 anos de sua história. 2. ed. Londrina: Autor, 1997. DANTAS, Aldo. Pierre Monbeig: um marco da Geografia Brasileira. Porto Alegre: Sulina, 2005.

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Recebido para publicação dia 30 de Novembro de 2007 Aceito para publicação dia 01 de Fevereiro de2008

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O CAMPO BRASILEIRO NO CENÁRIO DA MATRIZ ENERGÉTICA RENOVÁVEL: NOTAS PARA UM DEBATE

THE BRAZILIAN FIELD ON THE RENEWABLE ENERGETIC MATRIX SCENE: NOTES FOR A DEBATE EL CAMPO BRASILEÑO EN LO ESCENARIO DE LA MATRIZ ENERGÉTICA RENOVABLE: NOTAS PARA UNA DISCUSIÓN

ELIANE TOMIASI PAULINO Professora do Departamento de Geociências da Universidade Estadual de Londrina [email protected]

Resumo: As profundas mudanças ocorridas sob o signo da mundialização do capital não apenas afetaram as relações de produção no campo de forma bastante particular, mas acabaram por se tornar portadoras de novas promessas para a agricultura, considerando a possibilidade de que essa venha a responder, pelo menos em parte, às necessidades de fornecimento de energia ante o cenário de esgotamento do modelo baseado na queima de combustíveis fósseis. No Brasil, apesar de suas condições privilegiadas para responder a esse desafio, surgem inquietações, dadas as perspectivas de que essa seja mais uma ocasião para a exacerbação da concentração fundiária, para a precarização ainda maior das condições de trabalho no campo, bem como para a vulnerabilização da agricultura camponesa, entre outros. A renúncia política em optar por um modelo de produção de energia que seja social e ambientalmente sustentável, tendo o campesinato como protagonista, em prol de um modelo insustentável em ambos os aspectos, encontra respaldo na tese da eficiência produtiva e da superioridade técnica do agronegócio, o que torna imperativa a reflexão sobre argumentos e teorias que lhes dão corpo e que têm orientado alguns estudos agrários no Brasil. Palavras chave: Eficiência produtiva, produção de energia, referenciais teóricos, agronegócio, agricultura camponesa. Abstract: The deep changes which occurred under the capital worldwidening sign not only affected in a very particular way the production relations on the field but also came to carry new promises for agriculture, considering the possibility of it coming to fulfill, at least on parts, the energy supplying necessity, given the fossil fuel burning based model depleting scene. In Brazil, besides the country’s favorable condition to react to this challenge, many worries appear, given the perspectives of this being another occasion for the agrarian concentration exacerbation, for the field work conditions becoming even more precarious, as well as for the agriculture’s peasant becoming more vulnerable. The political disagreeing about choosing an energy production model which is socially and environmentally sustainable and has the field area as a protagonist, looking after an unsustainable model on both aspects, finds endorsement on the agribusiness productive efficiency and technical superiority thesis, what makes imperative the reflection about arguments and theories which give sustentation and guide some agrarian studies in Brazil. Key words: productive efficiency, energy production, theoretical references, agribusiness, field agriculture. Resumen: Los cambios profundos que ocurrieron com la mundialización del capital han afectado no solamente de una manera muy particular las relaciones de producción en el campo, pero también vinieron traer nuevas promesas para la agricultura, en vista de la posibilidad que ella venía satisfacer, por lo menos en parte, las necesidades de energía, dado el agotamiento de el modelo basado en la quema de combustible fósil. En el Brasil, a pesar de sus condiciones favorables para responder a este desafío, algunas inquietuds aparecen, dado las perspectivas de esta ser otra ocasión para la exacerbación de la concentración de la tierra, para precarización de las condiciones del trabajo agrícola, así como para la vulnerablización de la agricultura campesina, entre otros. La renuncia política en optar por un modelo de producción energética social y ambientalmente sustentable con los campesinos en la condición de protagonistas, en favor de un modelo insustentable en ambos los aspectos, encuentra endoso en las tesis de la eficiencia productiva e de la superioridad técnica del negocio agrícola, y qué hace imprescindible la reflexión sobre discusiones y teorías que le dan cuerpo y dirigen algunos estudios agrarios en el Brasil. Palabvras claves: eficiencia productiva, producción energética, referencias teóricas, negocio agrícola, agricultura campesina

Terra Livre

Presidente Prudente

Ano 23, v. 2, n. 29

p. 95-114

Ago-Dez/2007

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PAULINO, E. T.

O CAMPO BRASILEIRO NO CENÁRIO DA MATRIZ ENERGÉTICA

RENOVÁVEL...

Introdução Em tempos de inquietação global, dadas as ameaças que as anunciadas mudanças climáticas impõem ao planeta, a promessa de mudança da matriz energética parece surgir como um alento. Alento tanto maior para nós, brasileiros, porque supostamente essa crise nos trará dividendos, tendo em vista as condições inigualáveis para a produção e aproveitamento da biomassa, capaz de atender uma parte importante da demanda mundial por “energia limpa”. Afora os ufanismos que essa situação desencadeia, o que é perfeitamente compreensível, até porque o povo brasileiro aguarda há séculos o encontro com seu destino grandioso, é imperioso debater estratégias e idéias ora em foco , sob pena de nos omitirmos em mais esse momento paradoxal, em que as oportunidades tanto podem desdobrar-se em inclusões quanto em exclusões acentuadas. Para começar, faz-se necessário transcender a constatação simplista de que o Brasil é o país que, na atualidade, apresenta as condições para melhor responder ao desafio da produção energética renovável, para a qual três fatores são fundamentais: sol, terra e água. Some-se a isso os dois elos necessários ao fechamento da cadeia, respectivamente mão-de-obra e tecnologia. A abundância ímpar destes eliminaria qualquer razão para inquietações, não fosse a forma como essas variáveis tendem a convergir, instituindo arranjos territoriais já conhecidos e que, aliás, estão no âmago da questão agrária brasileira. Certamente esse debate remete a uma questão de método, já que para uma parte da intelectualidade, não há qualquer pertinência em fazê-lo, dado que os impasses da questão agrária supostamente teriam sido eliminados naturalmente, no curso da própria dinâmica socioeconômica das últimas décadas. É, pois, sobre princípios e evidências destes dissensos que iremos nos deter, a fim de analisar o cenário da produção de energia renovável no contexto da questão agrária, suas potencialidades e limites, tendo como eixo condutor o tratamento teórico dispensado ao campesinato, classe que traz em si a possibilidade de responder aos desafios postos de forma includente e pouco predatória, mas que só poderá fazê-lo caso políticas públicas contemplem sua participação, e isso exige debates consistentes, para não falar nos embates. Da crise energética aos estudos agrários Se pudéssemos raciocinar em termos de crises, desconsiderando as contradições de classes, já que as mesmas implicam brechas para a acumulação, nos termos indicados por Harvey (2005), e conseqüente aprofundamento dos mecanismos de extração da mais valia social, resta a constatação de que estamos diante de uma crise energética premente. Antes de incorrermos nessa simplificação, que atende às conveniências da coesão

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social impostas ao conjunto da humanidade, porque faz crer que todos são indistintamente atingidos, é inquestionável o esgotamento do modelo energético baseado na queima de combustíveis fósseis, seja pelo escasseamento das reservas, seja pelas implicações ambientais de sua utilização. Ao que parece, a melhor resposta a ela virá, ou melhor, já está vindo, da agricultura, que se depara com redefinições produtivas e novas possibilidades de auferição da renda da terra. Sendo assim, a aparente posição secundária dessa atividade, em vista do triunfo de um modelo societário amparado pelo que Santos (2005) denomina de meio técnico científico informacional, é modificada, alçando um grau de importância que jamais perdera, contrariamente à percepção socialmente construída a seu respeito, fato com que já se ocupara Marx há mais de um século atrás. [...] todo desenvolvimento do capital tem por base natural a produtividade do trabalho agrícola. Se o ser humano não fosse capaz de produzir num dia de trabalho mais meios de subsistência, ou seja, em sentido estrito, mais produtos agrícolas que os necessários para reproduzir cada trabalhador, se o dispêndio diário de força de trabalho de cada um apenas desse para gerar os meios de subsistência indispensáveis às respectivas necessidades eventuais, não se poderia falar de produto excedente nem de mais-valia. A produtividade do trabalho agrícola excedendo as necessidades individuais do trabalhador é a base de toda a sociedade e sobretudo da produção capitalista, que libera a produção dos meios imediatos de subsistência parte cada vez maior da sociedade, convertendo-a [...] em ‘braços livres’, tornando-a disponível para ser explorada noutros ramos. (MARX, 1974, p. 901)

Se o papel estratégico da agricultura é maior do que se faz crer, é certo que a participação proporcionalmente menor de seus agentes na partilha da riqueza socialmente daí derivada resulta de um confronto de forças próprio da dinâmica capitalista, sobre o qual não iremos nos deter, por extrapolarem os limites da análise aqui proposta. Todavia, não basta apenas considerarmos que o capitalismo não pode prescindir do sustentáculo primordial, a agricultura, pois isso poderia levar a outra generalização indevida, a de que essa se apoiaria em uma base homogênea, o que efetivamente não é o caso, pois diferentes classes concorrem para essa produção . A novidade é que à mera tarefa de suprir as demandas energéticas em termos de consumo humano vital, o de alimentos, soma-se agora o desafio de fornecer energia para mover as engrenagens produtivas da contemporaneidade, fundamentalmente baseadas em arranjos espaciais em que os deslocamentos de pessoas e mercadorias são fundantes. Tais mudanças também trazem implicações aos esquemas teóricos que temos acionado para compreender o campo, particularmente quando se está do lado dos que crêem que o conhecimento deve situar-se no contexto das indagações cujo fim último é a contribuição para a construção de um modelo societário alternativo ao que está posto, e

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isso supõe o debate com outras formas de pensar, instituídas no próprio curso dos conflitos de classes. Entrementes, é bom lembrar que desde a emergência do modo capitalista de produção, a organização das atividades produtivas foram profundamente alteradas, o que por sua vez implicou radicais transformações territoriais, a começar pela expansão das cidades e consolidação de sua centralidade nos processos de controle da produção, inclusive daquela oriunda do campo. A transição de centro administrativo e ou comercial, para centro produtivo privilegiado, com a indústria mediando a produção como um todo, lançou uma incógnita aos pensadores nascidos nos quadros das ciências humanas emergentes, que buscavam respostas para uma sociedade perplexa ante um ritmo de transformações de difícil assimilação. É no interior desse contexto que começam a surgir estudos agrários abrangentes, hoje denominados estudos clássicos, e que se propunham a interpretar o processo de desenvolvimento do capitalismo no campo à luz de referenciais teóricos construídos para entender a indústria e sua conversão em agente primaz das dinâmicas socioterritoriais. Desse cenário, interessa-nos aqueles de cunho marxista, cujas abordagens inicialmente convergem para o pensamento do jovem Marx, que assinalava o caráter progressista do capitalismo ante o modo de produção anterior. Entretanto, a desenvoltura com que se invoca o progresso técnico para incutir um padrão de consumo supostamente gerador de felicidade, ou mesmo para acalentar os que dele não partilham, resulta da visão que institui a centralidade dos processos sociais numa valorização ambivalente, em que as técnicas são sobrepostas às ações humanas que as criam, compreensão que não encontra respaldo no pensamento de Marx, senão vejamos: São grandes os méritos do modo capitalista de produção, o de ter racionalizado a agricultura, capacitando-a pela primeira vez para ser explorada em escala social, e o de ter posto em evidência o absurdo da propriedade fundiária. Comprou esse progresso ao preço de todos os demais: de início reduzindo ao empobrecimento completo os produtores imediatos. (MARX, 1974, p. 709)

Em suas análises, Marx jamais abdicou do princípio da contradição para analisar os paradoxos do desenvolvimento capitalista, mas fragmentos de seu pensamento foram suficientes para disseminar equívocos. Um deles diz respeito à compreensão linear da história, como se as mudanças ocorridas na transição do modo de produção feudal para o capitalista, destacadas pelo próprio Marx com um avanço em relação às formas escravistas e primitivas de produção, pudessem seguir um curso inexorável, culminando no socialismo, a ante-sala para uma sociedade sem amarras, capaz de prescindir de instituições reguladoras, entre elas o Estado, e do próprio trabalho alienado. Como se verá mais adiante, o legado dessa

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interpretação tem ligação direta com os estudos agrários, porque diz respeito ao futuro da classe camponesa no seio da agricultura capitalista. Outro equívoco diz respeito aos atributos conferidos ao próprio capital que, não raro, é tido como ente dotado de personalidade e determinações próprias, desvinculado das ações humanas que lhes dá corpo e forma. Como advertira Marx (1974, p. 936), o capital não é portador de valores intrínsecos, pois nada mais é do que uma relação social de produção. Em outras palavras, a sua “demonização” pelos que almejam a superação das mazelas de nosso tempo, ou a sua exaltação, pelos que compartilham as benesses próprias desse estágio de desenvolvimento das forças produtivas, em nada contribuem para uma perspectiva transformadora da sociedade. Se temos claro que estamos diante do processo social de produção em que as forças sociais e as formas de trabalho convergem para o que chamamos de história, parece mais tangível vislumbrar a névoa mística de que nos falava Marx, expurgando a noção de potência autônoma capaz de sobrepor-se à ação dos sujeitos o que, em síntese, é a essência da alienação. Daí a fragilidade de pressupostos teóricos clássicos que instituíram a primazia da técnica sobre a dinâmica da produção no campo, à medida que propugnaram um cenário em que a difusão de técnicas modernas seria a tônica da racionalidade e da eficiência produtiva; por sua vez, estas estariam devidamente associadas ao empreendimento de larga escala, leia-se capitalista. Desde então, os camponeses passaram, no plano teórico, à condição de classe anacrônica do capitalismo, sujeita à sentença do inexorável desaparecimento. É evidente que desconsiderar a enorme capacidade que os capitalistas têm tido de perpetuar a lógica da acumulação ampliada, o que pressupõe separação dos trabalhadores dos meios de produção, seria um contra-senso. Contudo, ao longo do último século isto não se deu de maneira unidirecional na agricultura, dada sua dinâmica ímpar, a começar pela dependência dos ciclos da natureza, algo que a produção industrial e demais atividades urbanas desconhecem. O próprio Kautsky (1980), que nos legou a teoria do desaparecimento do campesinato, já advertira sobre a necessidade de atentar para os ciclos distintos dessa atividade em relação à lógica da indústria, na qual se pautou para analisar o desenvolvimento do capitalismo na agricultura. Lembrou da pertinência de considerarmos o meio artificial, adaptado às necessidades da produção industrial, como principal triunfo que a agricultura não tem a seu favor. Ademais, em um contexto de deslumbramento ante o aprimoramento do melhoramento genético, da utilização de energia fóssil em detrimento de energia vital, entre outros elementos do progresso técnico, marcou um posicionamento à frente de sua época, advertindo sobre a insustentabilidade das práticas que hoje não apenas se disseminaram ao limite, mas já atingiram um novo patamar, o da biotecnologia, com todas

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as suas incógnitas. Isso não o impediu de render-se às promessas da função arrebatadora das técnicas incorporadas à agricultura, a começar pelos trabalhadores que, a seu ver, seriam alçados da barbárie à humanidade pela transição de camponeses a proletários, considerados superiores, porque partícipes das regras do trabalho social, coisa que não experimentariam enquanto camponeses, pelo caráter individual/familiar de suas atividades. Não obstante, faz-se necessário lembrar que como partidário do socialismo, em um momento ímpar das lutas políticas, a posição de Kautsky era coerente com o princípio de que somente a experiência da proletarização poderia levar os trabalhadores não apenas à renuncia da propriedade individual, mas também à necessária aprendizagem das regras da convivência coletiva. Daí o sentido de proclamar a condição pré-política do campesinato e a necessidade de transição de classe, o que viria com a adesão subalterna às fileiras “revolucionárias” do proletariado. Por outro lado, nasce aí o mito da empresa rural como arrebatadora da miséria no campo e promotora de transformações benéficas à sociedade. Esse esquema interpretativo deixou raízes profundas nos estudos sobre o campo, incluindo-se os de cunho progressista, oriundo de teóricos identificados com a produção de Marx. De acordo com Shanin (1980), teóricos clássicos e contemporâneos adeptos dessa leitura se perderam na radicalização dos preceitos de Marx, porque tomaram o capitalismo como força arrebatadora e irrresistível, negando o princípio da contradição nos recortes analíticos da realidade. Considerando as peculiaridades produtivas da agricultura, seus processos e ritmos, nem sempre a lógica da economia de escala é a que se impõe. Entretanto, é esse corte analítico que tem prevalecido quando se trata de analisar a agricultura contemporânea e os cenários futuros dessa atividade. Dessa maneira, convém buscar as raízes dessa compreensão e o seu sentido na atualidade, sobretudo no caso brasileiro. Lênin (1982) foi um dos teóricos a ocupar-se do estudo da agricultura capitalista a partir do referencial marxista. Para ele, o desenvolvimento técnico definia um caminho inexorável para o campo: o da diferenciação social, porque nesse paradigma produtivo, racionalidade técnica e altos investimentos seriam indissociáveis. Embora pouca atenção tenha sido dada à distinção que Lênin fez entre exploração e extensão da unidade produtiva, e que culminou na tendência de invocar seus estudos para naturalizar a associação entre eficiência produtiva e grande propriedade, para ele era o grau de investimento, e não o tamanho da propriedade, a ser tomado como referência para diferenciar grandes e pequenas explorações. Em outras palavras, um latifúndio seria uma pequena exploração, em vista de parcos investimentos e conseqüente baixa capacidade produtiva, proporcionalmente à área controlada. Por conveniência de uns e descuido de outros, aqui essa distinção parece ter se perdido no tempo, prevalecendo a tese da racionalidade técnica vinculada ao tamanho

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das propriedades. Sendo assim, tornou-se lugar comum associar viabilidade técnicoeconômica à grande propriedade, associação essa que tem implicações ponderáveis quando se trata do Brasil, em geral, e do negócio energético, em particular. É por isso que não se pode tomar a produção de conhecimentos como um esforço coeso rumo à transformação da sociedade, e esse aspecto teórico o confirma, porque foi tomado como instrumento de legitimação em uma sociedade em que os interesses da classe proprietária de terras são hegemônicos, sobretudo a partir da aliança terra - capital. Daí a pertinência de pensar métodos, teorias e conceitos como constructos afinados a concepções filosófico-políticas que apontam para modelos societários divergentes, e que adquirem sentido ante perspectivas de classe. Ao esforço em eleger o agronegócio fundado na grande propriedade e na exploração do trabalho como único setor capaz de responder aos desafios econômicos da mundialização dos mercados, não esteve alheia a academia. Se o fortalecimento dessa classe, via renúncia do Estado em promover uma reforma agrária de fato, pode contar com a máquina pública, até porque essa tende a ser apropriada pelas forças hegemônicas, não menos importante foi a consolidação da tese de que esse é o desdobramento possível no interior do capitalismo, e aí entram as formas como são acionadas as teorias. Das teorias às políticas de gestão do território Considerando a relação conhecimento comum - conhecimento científico, parece haver uma sensação generalizada de que alguns ramos da ciência produzem conhecimentos que darão retorno e outros não. Enquanto poucos duvidam de que os estudos baseados no manuseio de substâncias em tubos de ensaio e em equipamentos imperscrutáveis trarão resultados palpáveis, muitos não conseguem vislumbrar a “utilidade” dos estudos teóricos, sobretudo em ciências humanas, incluindo-se os geográficos. Aliás, pesquisadores iniciantes e até experientes, não raro, expressam o sentimento de que todos seus esforços de pesquisa resultaram inúteis, porque reclusos em relatórios e publicações de baixa circulação. Não se pretende aqui entrar no mérito do pragmatismo em ciência, meta considerada obscena por muitos, entre eles Milton Santos, que em resposta a essa prática disseminada de conhecimento mercantil, conclama à construção de uma “geografia heróica” baseada em uma ética igualmente heróica, já que “ [...] se deve estar preocupado com o espaço social, o espaço de todos, e não com o espaço das empresas, o espaço de alguns [...].” (SANTOS, 2003, p. 34). Pretende-se sim, refletir sobre desdobramentos das teorias, pois constituem-se em referenciais não apenas para as pesquisas, mas sustentam visões de sociedade e orientam a política. Considerando que a política é o exercício do confronto dos diferentes e das diferenças sem o recurso à força, em uma sociedade tão díspar como a capitalista, é

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desse exercício que podem emanar mudanças que favoreçam a diminuição das desigualdades, da mesma forma como emanam ações que as aprofundam. É isso que não comporta a neutralidade em ciência e em suas opções teórico-metodológicas, pois a política alimenta-se do conhecimento, ao mesmo tempo que dela emanam as políticas territoriais que definem quem ficará ou terá acesso a quê. Ao trazermos para o foco dessa reflexão a questão agrária, os impasses e as potencialidades ante a emergência da matriz energética renovável, entendemos que uma teoria em particular, a do desaparecimento do campesinato, pode e tem sido acionada para legitimar políticas territoriais excludentes, em especial aquelas que colocam todos os esforços na viabilização da agricultura de escala. Ora, a premissa de que os camponeses não existem, ou de que não possuem as condições materiais, técnicas ou culturais para recriarem-se como classe no contexto da economia mercantil, contêm uma sentença tácita: a de que não podem ser protagonistas de um modelo alternativo de produção de energia vinculado à atividade agrícola. Esse é um convite à não política, porque o confronto entre alternativas produtivas sequer se anuncia, pavimentando o terreno para a expansão do agronegócio energético fundado na expropriação, na exploração extrema da força de trabalho e na depredação ambiental. Entretanto, não se poderá fazer uma vinculação simplista entre tais desdobramentos e as proposições de Kautsky (1980) e de Lênin (1982), pois as teorias não devem ser estáticas ou refratárias às mudanças que se impõem no curso da realidade. Dito de outro modo, esses teóricos tinham diante de si uma realidade em transição, já que as relações de produção tipicamente capitalistas estavam consolidadas apenas na indústria, enquanto que no campo eram apenas um esboço. Baseados na leitura que Marx fizera do capitalismo, cujo recorte não era e nem poderia ser o campo, acabaram por tomar como válida a projeção de que a agricultura igualmente experimentaria a separação essencial entre capital e trabalho, daí a compreensão de que a proletarização seria o destino inexorável do campesinato. Entretanto, uma análise mais cuidadosa da obra de Marx não permite reafirmar essa sentença, pois seus estudos estão fundados na compreensão de que o capitalismo, embora seja o modo de produção dominante, não se limita a uma estrutura bipolar, constituída exclusivamente pela oposição entre proprietários dos meios de produção e detentores da força de trabalho. Por essa razão, a persistência e as potencialidades da agricultura de pequena escala explicam-se, para além da dinâmica interna do trabalho camponês, pelas necessidades da própria produção capitalista. Isso não implica tomar essa relação como de mão única, nos moldes estruturalistas, mas acatar o princípio da contradição para seu entendimento. Marx nos deu indicações seguras de que é a natureza peculiar de certos setores da produção agrícola que repele o investimento capitalista. É a partir da teoria do valor trabalho que se poderá compreendê-la, já que se considera que o valor de troca de qualquer mercadoria, seja oriunda da forma tipicamente capitalista ou não, é determinado pelo

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tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la, senão vejamos: O tempo de trabalho é sempre tempo de produção, o que é o mesmo que dizer que é um tempo durante o qual o capital é firmemente mantido na esfera da produção. Mas o contrário não é verdadeiro, ou seja, nem todo o tempo em que o capital é mantido no processo de produção é necessariamente tempo de trabalho. O tempo de produção consiste em duas partes, um período em que o trabalho é realmente aplicado na produção e um segundo período, durante o qual a mercadoria ‘inacabada’ deve aguardar a influência de processos naturais, sem se submeter simultaneamente ao processo de trabalho. (MARX, 1974, p. 242)

Sendo assim, o valor e, por conseguinte, a mais-valia, não é igual ao tempo que dura a fase da produção, antes coincide com o tempo de trabalho, materializado e vivo, empregado durante a exata fase da produção. Separando analiticamente o tempo de trabalho do tempo de produção ‘improdutivo’, temos que quanto mais ambos coincidirem, maiores serão a produtividade e a auto-expansão do capital. Dessa maneira, a agricultura tipicamente capitalista expande-se em setores de atividade onde o tempo de produção pode ser reduzido com sucesso, sendo descartados os setores dependentes naturalmente de maior hiato temporal. Por sua vez, situações inversas tendem a repelir os investimentos capitalistas, as brechas de que se aproveita a classe camponesa para se recriar. Cumpre salientar que a circulação é outro elemento que não está dissociada desse princípio, dada a propriedade de igualmente definir a pertinência dos investimentos na agricultura. Sabemos que não é no interior do processo produtivo, mas somente no momento em que a mercadoria assume a sua forma acabada e ingressa no mercado, é que o valor nela contido pode ser realizado. Portanto, quanto mais reduzido for o tempo em que há consumo de energia vital para a produção de um bem, somada à menor quantia de dinheiro imobilizado para que isso ocorra, maior será, comparativamente, a quantia potencial de mais valia a ser extraída, pois os capitalistas poderão inclusive pagar salários recorrendo ao valor criado pelos próprios trabalhadores, já convertido em dinheiro no processo de circulação. Isso lhes permitirá, inclusive, aumentar a quantidade de força de trabalho a seu serviço, ampliando a produção. Por outro lado, quanto mais perecível for uma mercadoria e maior a restrição de seu tempo de circulação, em virtude de suas características naturais, menos adequada será à produção capitalista. Evidente que outras variáveis interferem nessa equação, o que não nos permite uma correlação automática entre alta perecibilidade e baixa rentabilidade e vice-versa. Isso porque produtos agrícolas duráveis, a exemplo dos cereais, têm um complicador quando se considera a dinâmica da circulação: pelo fato de apresentar tempo de produção relativamente longo, requerem uma determinada quantidade de capital-mercadoria, ou

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em outras palavras, quantidades disponíveis, para ser ofertado durante o período que separa uma colheita da subseqüente. Daí decorre a necessidade de estocagem, já que o consumo é ininterrupto ao longo do ano, o que implica imobilização de capital sob a forma de estoques. Sabendo-se o quanto a fluidez de capital na contemporaneidade tem tido como aliada a diminuição dos estoques, mediante a programação da produção conforme o ritmo da demanda, notamos ser esta mais uma das razões pelas quais é necessário repensar os parâmetros clássicos de análise. No limite, é necessário ponderar que tanto produtos agrícolas perecíveis quanto duráveis criam limitações para a circulação monetária, em moldes ideais aos parâmetros capitalistas. Outro ponto a ser destacado diz respeito à noção de que a lógica produtiva nos parâmetros estritamente capitalistas é portadora de uma capacidade ilimitada de instalarse e perpetuar-se. Para Shanin (1980), os teóricos do desaparecimento do campesinato sobreestimaram a força transformadora do capitalismo. Numa analogia que invoca o mito de Midas, que a um simples toque, tudo podia transformar em ouro, explica que a recriação dos camponeses no planeta inteiro, à revelia da sentença de seu desaparecimento, é uma evidência de que isso não se poderá processar em termos de capacidade de conversão ao capitalismo. Contudo, esta premissa continua presente em parte das obras que se ocupam da questão agrária na contemporaneidade, e a supressão do conceito de campesinato o demonstra. Como os sujeitos em questão continuam desafiando essa leitura com sua presença concreta no campo, o caminho tem sido o da desconceituação, a exemplo do que transforma camponeses em agricultores familiares. A nosso ver, subjacente a essa opção teórica há uma destituição das relações sociais implícitas no caráter de classe de que o conceito é prenhe, em favor da conversão do mercado em elemento fundante da produção econômica e, conseqüentemente, da recriação social. Uma evidência disto é a tendência à vinculação do termo agricultor familiar ao conjunto daqueles que desfrutam de uma relação superavitária com o mercado, atribuindo-se aos depauperados o rótulo de camponeses. Entretanto, pensar a contemporaneidade desconsiderando a abrangência da mercadoria é algo fora de propósito, pois a despeito de essa não ser o objetivo primordial do capitalismo, é por meio de sua produção, circulação e consumo que a mais-valia se realiza. Sendo assim, é extemporânea a tese de que camponeses são os que produzem em um circuito de rudimentar autosuficiência e, quando deixam de fazê-lo, igualmente deixam de ser camponeses para tornarem-se agricultores familiares. Por sua vez, revela os limites da rigidez teórica, herdada da sentença fatalista quanto ao destino do campesinato enquanto classe. Lembremos, no entanto, que esta nasceu no contexto em que a degradação e a miséria a que foram submetidos os camponeses expulsos do campo reclamava a elaboração de um projeto político que pudesse agregar forças no sentido da superação da barbárie

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recém instalada. Esse é o sentido das alianças em torno do ideal de construção da sociedade socialista, mas que fora traçado por e para o proletariado, restando aos camponeses aderirem ao projeto na condição de sujeitos pré-políticos. Isso supunha serem tutelados e assim conduzidos às fileiras do proletariado para, passada a provação da expropriação e da sujeição real ao capital, adentrarem em condição de igualdade cultural e política o reinado dos iguais. O problema desse destino manifesto é que os camponeses não puderam nele se reconhecer, porque o sentido de sua liberdade estava no acesso à propriedade privada da terra, mas, diga-se de passagem, em moldes contrários ao princípio da propriedade privada capitalista da terra. De acordo com Marx (1974), a presença ou ausência do trabalho assalariado é o critério fundamental pelo qual a pequena produção de mercadorias será diferenciada da produção capitalista. Desse modo, a transformação da pequena produção em produção capitalista requer a transformação das relações sociais de produção. Dessa maneira, o emprego de máquinas, a especialização da produção, a competição em mercados, a expansão da produção, em si, nada representam em termos de diferenciação, ou seja, não são esses elementos que assinalam a distinção fundamental entre camponeses e capitalistas. Além das relações de trabalho, há uma lógica peculiar a mover os primeiros. O sentido da propriedade capitalista da terra é a sua transformação em equivalente de capital. É o que permite auferir mais valia por meio da exploração direta da força de trabalho empregada nas atividades em seu interior, somada à extração da renda da terra, o tributo que a sociedade inteira paga ao conjunto dos proprietários fundiários. Por outro lado, ainda que o sentido da propriedade privada camponesa da terra seja a extração da renda, por meio da destinação de sua produção ao mercado, ela ingressa na forma de recursos a serem empregados na compra de mercadorias imprescindíveis à reprodução da família. Enganara-se, pois Lênin (1980), ao rotular os camponeses de pequenos agraristas, que em tese se diferenciariam dos latifundiários por uma questão meramente escalar: a quantidade de terras que dispunham. Kautsky (1980) já contestara esse rótulo, ao mostrar que os camponeses necessitam da terra tanto quanto os proletários necessitam de um emprego. Em outras palavras, a terra teria, para os camponeses, a potencialidade de empregar a sua força de trabalho, sendo a renda a remuneração necessária à sobrevivência da família. Enfim, na compreensão de Lênin (1980), haveria um romantismo nos estudos focados nos camponeses, a ser removido em favor de um projeto de socialização pelo trabalho, o que supunha a completa supressão da propriedade individual da terra. Em linhas semelhantes raciocinou Kautsky (1980), que vira nessa classe os bárbaros, os trabalhadores pouco inteligentes, incapazes de incorporar conhecimentos técnicos que

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pudessem revolucionar tecnicamente a agricultura, da qual não se poderia prescindir em estágios societários mais avançados. Desconsiderando a coerência desse arcabouço teórico com o contexto ou mesmo com os propósitos de mobilização transformadora com que se envolveram Kautsky e Lênin, é oportuno lembrar que em uma situação de extrema concentração fundiária e de poder desmesurado dos proprietários, como ocorre no Brasil, tais assertivas constituíramse e ainda constituem-se em instrumento singular de legitimação das ações que orientam as políticas territoriais eminentemente concentracionistas. Embora estejamos no segundo mandato presidencial de um governo que alçou as esferas decisórias do Estado como portador de um projeto que supunha a superação de estruturas nefastas, e a agrária é uma delas, não há no horizonte transformações, sequer mudanças dignas de nota, pois a política de reforma agrária não possui a abrangência necessária, mesmo considerando-se as metas propostas, que estão longe de serem alcançadas, a despeito das maquiagens estatísticas . Portanto, estes são tempos de potenciais avanços dos mecanismos de expropriação, em face da aquiescência do poder público aos novos paradigmas de produção a nos rondar. Daí a pertinência em atentar para os apelos da mídia e para os argumentos de uma parte dos intelectuais de que a grande propriedade é a provedora dos alimentos, matérias primas e santuário da produção energética do país, da qual não se poderá prescindir. Faz-se necessário, então, reafirmar que a concentração da riqueza patrimonial nos níveis verificados no Brasil, e a concentração da terra é o melhor exemplo, é socialmente insustentável, porque exclui uma parcela importante da população do usufruto das riquezas geradas coletivamente. E a melhor forma de fazê-lo é mostrar, por meio dos dados, o quanto são débeis seus resultados econômicos, proporcionalmente à área monopolizada. Faces da produção e renda agrícola no Brasil Ante o reiterado esforço de construção de um consenso sobre a vitalidade do agronegócio e sua suposta capacidade de dinamizar a economia, o que justificaria o acesso privilegiado ao patrimônio fundiário e aos recursos públicos, algumas questões necessitam de uma análise mais cuidadosa. É justamente sobre essa problemática que se lança Oliveira (2003), analisando o campo brasileiro a partir de contradições identificadas a partir de um contraponto entre a modernidade anunciada e a barbárie que emana da estrutura baseada na concentração fundiária. Num esforço respaldado em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), bem como do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), mostra a vinculação equivocada da eficiência produtiva à grande propriedade, ao mesmo tempo que elucida a capacidade proporcionalmente superior da pequena propriedade em produzir alimentos e matérias primas, gerar emprego e renda. Percorramos superficialmente

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os dados, a fim de melhor conhecer o panorama da agricultura brasileira. Considerando que a base de toda produção é o acesso à terra, a agricultura já se defronta aí com uma distorção grave, posto que de acordo com o INCRA (apud Oliveira, 2003, p. 127), 85,2% dos imóveis rurais tem menos de 100 hectares e ocupam apenas 20% das terras no país. Por outro lado, os imóveis com mais de 1.000 hectares, embora numericamente inexpressivos, pois representam 1,6% do total, açambarcam 43,8% das terras. Entretanto, o argumento de que a reforma agrária é uma bandeira anacrônica no Brasil atual tem sido utilizado não apenas por sujeitos e agentes do latifúndio mas, não raro, por intelectuais, senão vejamos: Reformas têm o seu tempo histórico, e a agrária surgiu nos anos 50, quando foi entendida como necessária para constituir o mercado interno que desenvolveria o país. Mas isso não ocorreu, pois após o ‘milagre brasileiro’ o Brasil ressurgiu mais urbano, com sua economia prescindindo da reforma agrária. (Navarro, 2007, p. 3)

Contrapondo tais argumentos com os dados apresentados por Oliveira (2003), com os quais dialogamos nas páginas subseqüentes, somos impelidos a retornar novamente ao pressuposto de que trabalhos científicos podem produzir resultados opostos e inconciliáveis, mesmo em se tratando do mesmo recorte analítico, quando derivados de identidades de classes antagônicas. Poderia discordar o conjunto dos 1,6% dos proprietários, que juntos controlam quase a metade do patrimônio fundiário brasileiro, da tese de que a reforma agrária foi uma necessidade de outros tempos, e que o Brasil superou esse entrave ao se tornar urbano? Mais ainda, conviria aos 27 proprietários, cujas propriedades possuem dimensões equivalentes às do Estado de São Paulo, questionar essa lógica argumentativa? Por outro lado, para ficar só nos que vivem na terra, ou melhor, em nesgas de propriedades cuja área é inferior a 10 hectares, e que somam 1.338.711 proprietários, restaria indagar se eles também julgam inoportuna uma redistribuição fundiária no país.1 É por isso que compreender as contradições da agricultura brasileira supõe a transcendência de fragmentos teóricos transportados e, no debate em questão, nos que versam sobre a indissociabilidade entre racionalidade técnica e grandes extensões de terra. Trata-se de uma questão de método e que, necessariamente, supõe buscar na teoria os elementos que iluminam a realidade que se quer iluminar. A operação inversa, em que a teoria serve para enquadrar a realidade, é um recurso muitas vezes coerente com as conveniências de classe. Como mitos e verdades remetem aos ângulos sob os quais se olha, consideramos oportuno refletir sobre a tão propalada eficiência produtiva que justifica à sociedade a manutenção da estrutura fundiária que ora expomos. 1

Conf. INCRA apud Oliveira, 2003, p. 127

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De acordo com Oliveira (2003, p. 134-136) a pequena propriedade, seja em volume da produção, seja em valor da produção, supera a grande em todas as atividades agropecuárias, excetuando-se a produção de carvão, de madeira e de cana-de-açúcar. Sabendo-se que tanto o carvão quanto a madeira resultam da atividade extrativa predatória que, aliás, tem marcado o ritmo da expansão da fronteira agrícola, via de regra com fins mais especulativos do que produtivos, pouco se pode esperar em termos de contribuição para o efetivo desenvolvimento do país. Restaria a cana-de-açúcar, o carro chefe do agronegócio energético, mas o descumprimento da legislação ambiental e trabalhista, marcantes nessa atividade, torna o cumprimento da função social da terra previsto na Constituição uma quimera. Por mais paradoxal que possa parecer, uma pesquisa coordenada por Maria Aparecida de Moraes Silva identificou nos canaviais do estado de São Paulo condições de trabalho tão degradantes quanto a dos escravos do século XIX, e isso se aplica à expectativa de vida dos cortadores de cana (ZAFALON, 2007). Sendo assim, se poderá falar em crescimento econômico, porém jamais em desenvolvimento vinculado a essa atividade . Outra face perversa da grande propriedade é a ociosidade. Embora seja consenso a idéia de que aí está o locus da pecuária, apenas 21,8% do rebanho bovino encontra-se nelas. Mais surpreendente ainda é saber que a participação do rebanho existente nas pequenas propriedades corresponde a 37,7% do total nacional. Mas haveria ainda o argumento de que o agronegócio majoritariamente se constitui de atividades econômicas intensivas, e a pecuária não seria um referencial válido, pois as práticas extensivas puxariam as médias para baixo. Vejamos então os dados apresentados por Oliveira (2003, p. 135) sobre as fibras têxteis, leguminosas e cereais: No algodão, o volume da produção da grande propriedade corresponde a apenas 27,2% do total produzido pelos pequenos proprietários. Convém lembrar aqui que em termos tecnológicos, não é possível estabelecer parâmetros de comparação, pois entre os pequenos proprietários que o produzem, grande parte são camponeses extremamente empobrecidos, como os do Norte do Paraná, que realizam a atividade de forma itinerante, percorrendo a região em busca de terras arrendáveis para tanto. Assim, se o parâmetro é a eficiência produtiva, os dados falam por si. Em relação ao arroz, o volume da produção oriundo das grandes propriedades corresponde a apenas 47,3% do que é proveniente das pequenas. Tal qual no algodão, discutir eficiência produtiva supõe considerar os recursos de que dispõem os grandes rizicultores, inclusive em termos de crédito público para custeio, e as condições materiais e técnicas com que são conduzidas as lavouras camponesas. Até mesmo na soja a produção oriunda das grandes propriedades corresponde a apenas 63,6% do volume colocado no mercado pelas pequenas propriedades. Por se tratar da cultura de maior projeção em termos de exportação, sobre ela recai a maior fatia de recursos para custeio. Mais à frente demonstraremos como se dá a partilha do

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montante destinado aos financiamentos agrícolas entre grandes e pequenos proprietários. No caso do milho, outra commodity de relevância, a grande propriedade alcança apenas 19,8% do volume colocado no mercado pela pequena propriedade. Se no caso do trigo, a diferença é espantosa: apenas 8,4%, o que não dizer do feijão, pois o volume da produção proveniente das grandes propriedades corresponde a apenas 5,85% do que disponibilizam aos brasileiros as pequenas propriedades. Enfim, em qualquer ordem que se queira elaborar a lista da produção agrícola no Brasil, os números contestarão a tese consagrada da eficiência produtiva da grande propriedade, muitas vezes imposta por discursos que as apresenta à sociedade como responsável pela produção dos alimentos que temos à mesa. Discursos convertidos até em adesivos de potentes caminhonetes circulando nas cidades, sendo comum os dizeres: “Se você se alimentou hoje, agradeça ao produtor rural” Entretanto, essa incapacidade concreta de transformar não apenas chavões, mas sobretudo condições materiais privilegiadas em produção efetiva, em contraposição à capacidade que têm demonstrado os camponeses em driblar as barreiras impostas pela limitação de terra e de recursos, parece não ser motivo de dissuasão, quando está em foco a pertinência de se alterar a estrutura fundiária, senão vejamos: [...] o mundo rural se tornou mais heterogêneo e a produção de alimentos e matérias-primas, ainda nos anos 80, encontrou-se com a demanda. Assim, reforma agrária para garantir oferta de produtos e uma política que precisasse ser uniforme em todo o país também sumiram do mapa dos argumentos. (Navarro, 2007, p. 3)

Resta considerar que há limites estruturais para a resposta produtiva que tem dado a pequena propriedade. A concentração fundiária se mantém e certamente os dados do novo censo agropecuário o confirmarão. Ademais, de acordo com Oliveira (2003, p. 151), o volume da produção de alimentos básicos, como o arroz e o feijão, mantém-se praticamente inalterado desde o início dos anos 1990. Assim, o país que já importa esses alimentos, poderá ter que fazê-lo em escala diretamente proporcional à variação demográfica da população brasileira. Contudo, Navarro (2007, p. 3) afirma que: “A conclusão inevitável é que hoje inexistem razões, sob qualquer ângulo, para a realização desta reforma em todo o Brasil.” Ainda que o mercado mundializado indique não haver razões para o país se preocupar com a segurança alimentar, já que a obtenção de alimentos pode ser assegurada com importações a preços muitas vezes inferiores ao custo da produção interna, há questões estratégicas que não podem ser desconsideradas, a não ser que continuemos tendo como horizonte a ‘utopia do possível’, nos termos do stablishment. Tratemos, pois, da questão da soberania alimentar, inalienável nas políticas estratégicas dos países desenvolvidos e que, aliás, vem determinando os sucessivos fracassos nas tentativas de regulação do comércio internacional, como ocorreu com a

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“Rodada de Doha” de junho de 2007. Nesse caso, fracassaram as negociações porque os países desenvolvidos, embora desejassem a liberalização dos mercados para os produtos industriais, não cederam à pressão para diminuir os subsídios agrícolas, bandeira daqueles países, entre eles o Brasil, que há muito abdicaram da prerrogativa de subsidiar a sua produção como forma de assegurar, em primeiro lugar, o abastecimento, a geração e a retenção interna da renda com equidade. Mesmo que se argumente que a soberania alimentar deve ser considerada como secundária em relação a outras políticas estratégicas, não se poderá perder de vista a questão da renda interna, fato aliás que demarca o nível e a intensidade da economia do país. Nesse sentido, não se equivoca Navarro (2007), quando afirma que a reforma agrária foi uma bandeira vinculada ao anseio de consolidação de um mercado interno como caminho para o desenvolvimento do país. Esquiva-se, contudo, quando não aborda os desdobramentos do reiterado abandono dessa bandeira. De acordo com Furtado (1984), a difusão do progresso técnico e o aumento da produtividade, que indubitavelmente caracterizam setores do agronegócio, entre outros, não eliminou as mazelas sociais, antes as aprofundou, em virtude da introdução de processos produtivos capazes de aumentar a eficiência na utilização de recursos, mas voltados ao atendimento da demanda de apenas uma parcela da população. Basta observar esse quadro para perceber que o sistema industrial brasileiro não poderá derivar das exportações seu principal impulso de crescimento. Ou ele recupera sua vocação de formador do mercado interno ou terá de modificar sua estrutura, renunciando a alcançar a autonomia requerida para auto-sustentar seu próprio crescimento. (FURTADO, 1983, p. 86)

Ensina esse autor que o centro dinâmico da economia de todos os países ditos desenvolvidos está assentado no mercado interno, fato fundamental, de acordo com sua perspectiva, inclusive para o desenvolvimento tecnológico e a respectiva capacidade competitiva. É por essa razão que enquanto alguns propalavam que o tempo da reforma agrária havia passado, esse autor indagava ao país qual o caminho a seguir: o do fortalecimento do mercado interno, baseado na distribuição de renda, ou da inserção subordinada no mercado mundial, mesmo contando com setores competitivos tecnologicamente, porém extensões das empresas multinacionais, que contribuem para o desenvolvimento social do seu país de origem, e não onde instalam suas filiais. Esse é um dos sentidos da reforma agrária. No atual estágio técnico, em que a composição de capital constante do setor produtivo permite um descarte progressivo da força de trabalho, a agricultura é o setor da economia que possui o maior potencial de absorção de mão-de-obra, fator fundamental para a geração de renda, a base do mercado interno que nos fala Furtado. Entretanto, uma ressalva deve ser feita, já que nesse aspecto, é a pequena

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propriedade que poderá fazê-lo. De acordo com Oliveira (2003, p. 129), a pequena propriedade responde por 86,6% de todos os empregos e ocupações no campo. Por outro lado, a grande propriedade, a despeito da área controlada, é responsável por apenas 2,5% deles. Por isso, discordamos de Navarro (2007, p. 3) quando assevera que: Nem mesmo existe uma demanda social digna do nome, cada vez mais raquítica. Quando muito, a reforma agrária concentrada exclusivamente no chamado ‘polígono das secas’ ainda seria justificável, pois reduziria a incidência da pobreza rural.

Diria Prado Júnior (1981) que as disposições contra a reforma agrária somente adiam a constituição de um pacto social que possa alterar o equilíbrio de forças políticas capazes de viabilizar, de fato, políticas públicas aptas ao fomento adequado da pequena produção. Na atualidade, isso não poderia ficar mais patente do que nas formas como vêm sendo geridos os recursos e respectivas dívidas do setor agrícola. [...] em 2003, dez grandes grupos econômicos multinacionais obtiveram R$ 4,3 bilhões do Banco do Brasil, quase o mesmo valor acessado por 1,3 milhão de camponeses (R$ 4,5 bi). Além da proporção desigual, a gestão de recursos voltados à política agrícola é marcada pela concentração e favorecimento ao capital internacional. Segundo a Via Campesina, no ano passado, R$ 4,6 bilhões foram destinados em financiamentos a 27 grandes grupos econômicos. (VALENTE, 2007)

Embora grande parte dos recursos destinados à agricultura acabe nas mãos dos grandes proprietários, é esse segmento que engrossa uma dívida que se arrasta ano a ano. De acordo com Valente (2007), na safra 2004/2005, as grandes propriedades absorveram 39,5 bilhões de reais do crédito agrícola, enquanto as pequenas tiveram a seu dispor sete bilhões. Vimos, contudo, a resposta em termos de produção de ambos os segmentos. Já o plano safra 2007/2008 prevê a disponibilização de 58 bilhões de reais, com uma redução da taxa de juros para 6,75% ao ano. Entretanto, neste ano a dívida dos produtores superou a casa dos 100 bilhões de reais. E como trata-se de uma dívida sistematicamente rolada, novamente os ruralistas mobilizaram-se para garantir novas rolagens e mais crédito em conta. Esse astronômico valor mostra o quanto o setor vem sendo eficiente em não saldar os débitos e ampliar a participação no fundo público. Como a bancada ruralista é, desde sempre, maioria no Congresso Nacional, sistematicamente vem conseguindo impor suas demandas. A partir de uma negociação com o governo de Fernando Henrique Cardoso, no ano de 2000 os grandes produtores conseguiram que as dívidas só começassem a ser

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pagas cinco anos depois de contraídas, obtendo um prazo de até 25 anos para saldarem os compromissos. De acordo com Valente (2007), em 2002, outro acordo estipulou novos subsídios e juros fixos de 3% ao ano, enquanto a taxa Selic, que regula os índices de juros no país, oscilava entre 15 e 20%. A diferença, a chamada equalização de juros, passou a ser bancada pelos cofres públicos e ter o Tesouro Nacional, que nada mais é que a reserva de dividendos formada a partir da arrecadação de impostos da população, como avalista. Ou seja, se os produtores não pagarem a dívida, cabe ao governo fazê-lo. Portanto, essa é uma evidência da estratégia de socialização das perdas por meio do acesso ao fundo público. O rentismo de que nos falam Oliveira (2003) e Martins (1995) tem aí uma de suas melhores expressões, pois a manutenção da grande propriedade tornou-se um dos caminhos privilegiados para o acesso aos recursos públicos. Enquanto não formos capazes de construir, por meio do circuito conhecimento científico - conhecimento comum, um diálogo consistente sobre os fundamentos da questão agrária, prevalecerão assertivas que ocultam o essencial e projetam o que convém aos setores hegemônicos da sociedade, os quais têm na propriedade concentrada da terra um de seus sustentáculos primordiais. O negócio energético promete ser mais uma ocasião para o saque anunciado. Considerações Finais A monopolização da terra semeada nos primórdios da colonização germinou, deitou raízes. E por isso deu frutos, que ora os colhemos. Mas que contrariamente à generosidade dos frutos da terra lavrada, são frutos gerados pela eterna espera. Espera pela justiça social que nos foi negada, pela cidadania que nos foi arrancada, pela segurança que nos foi roubada. Enfim, esperas, que tornam a esperança num país social e ambientalmente sustentável uma utopia. A não ser que esse país se reconcilie com seu povo, e isso supõe o encontro com o território negado pelas estratégias históricas de cerceamento da terra, implementadas pelas oligarquias, travestidas ao gosto de cada época. E que na atualidade vestem a roupagem da eficiência produtiva redentora do agronegócio. Afinal, poderíamos prescindir dele? Não, seria a resposta, se aceitarmos como verdadeiro o pressuposto de que a racionalidade técnica, leia-se maior eficiência produtiva, supõe propriedades extensas. Não, também seria a resposta, se fossem as grandes propriedades as principais responsáveis pela produção agrícola no Brasil. Mas nesse país em que o Presidente da República denomina “heróis” aqueles que extraem dos trabalhadores a energia vital que só os senhores ousaram extrair de seus escravos não pode haver espaço para (in)certezas. Também não pode haver espaço para saudades, pois até escravos temos, e em profusão, invariavelmente vinculados ao agronegócio e predominantemente nas áreas de

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fronteira agrícola, mas não apenas nelas. E no rol de fatos sinistros, a morte grassa, igualmente intensa nas áreas recém incorporadas à agricultura de escala, como demonstraram estudos publicados em 2007, em que ao lado de índices que nem países em guerra exibem, como os 165,3 assassinatos por 100.000 habitantes (Colniza-MT), a prosperidade é maculada pela aliança desmatamento e morte. De acordo com o mapa da violência no Brasil, 61 dos 100 municípios com os maiores índices de desmatamento são também os que apresentam as maiores taxas de assassinatos no país. E não se poderá invocar o fetiche da violência urbana para explicá-las, pois muitos de seus núcleos urbanos são menores que um bairro qualquer de nossas metrópoles, surpreendentemente mais seguras que esses quintais do latifúndio. É por isso que afora a defesa das estruturas agrárias que aí estão, por aqueles que delas se beneficiam ou com elas se identificam, e que certamente recebem como dádiva a demanda ora gerada pela necessidade da humanidade em encontrar fontes renováveis de energia, cabe indagar: Que tipo de Brasil teremos, ante os novos cenários mundiais desenhados pela questão energética? Um Brasil de seres humanos reduzidos a condições de vida similares a dos escravos do século retrasado? Um país acuado pela violência de que é portador o latifúndio, agente da morte nos rincões e da inclusão precária, para não falar em exclusão, no restante do país, e que igualmente reverbera em violência? Por que é gigante por natureza, natureza agora a ser apropriada na perspectiva da energia renovável, o Brasil está diante de mais uma oportunidade histórica de questionar a sustentabilidade do berço esplêndido em que repousa a oligarquia, oculta em diversas máscaras, até porque no Brasil grandes proprietários são também grandes comerciantes, industriais, banqueiros e políticos de carreira. Mais uma vez nos é dada a possibilidade de escolher o caminho da partilha fundiária, viável como nunca, dado o cenário promissor da produção energética. Na lógica camponesa, poderá gerar, além da energia, alimentos, renda, cidadania. No modelo monopolista, mais um capítulo da tragédia agrária brasileira. Referências Bibliográficas FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Brasília: UNB, 1963. ______. Não à recessão e ao desemprego. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. _____. O mito do desenvolvimento econômico. São Paulo: Paz e Terra, 1984. HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005. KAUTSKY, Karl. A questão agrária. 3. ed. São Paulo: Proposta, 1980. LENIN, Vladimir I. Capitalismo e agricultura nos Estados Unidos da América. São Paulo: Brasil Debates, 1980. ______. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. São Paulo: Abril Cultural, 1982. MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1995. MARX, Karl. O capital, livro 3, v. 6. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.

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NAVARRO, Zander. Comédia agrária. In: Folha de S. Paulo, São Paulo, 22 abr. 2007. Tendências e Debates, p. A3. OLIVEIRA, Ariovaldo U. Barbárie e modernidade: as transformações no campo e o agronegócio no Brasil. In: Terra Livre, ano 19, v. 2, n. 21, p. 113-156, jul/dez. 2003. PRADO JÚNIOR, Caio. A questão agrária no Brasil. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1981. PAULINO, Eliane Tomiasi. Por uma geografia dos camponeses. São Paulo: Unesp, 2006. SANTOS, Milton. A natureza do espaço. 4. ed. São Paulo: Edusp, 2004 _____. Economia espacial: críticas e alternativas. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2003. SCOLESE, Eduardo. Crédito rural cresce 16%, para R$ 58 bi. In: Folha de S. Paulo, São Paulo, 29 jun. 2007. Dinheiro, p. B5. SHANIN, Teodor. A definição de camponês: conceituação e desconceituação-o velho e o novo em uma discussão marxista. Estudos Cebrap, Petrópolis, n.26, p.43-79, 1980. VALENTE, Jonas. Movimentos sociais reagem ao “tratoraço” do agronegócio. Disponível em: . Acesso em: 01 jul. 2007. ZAFALON, Mauro. Cortadores de cana têm vida útil de escravo em SP. In: Folha de S. Paulo, São Paulo, 29 abr. 2007. Dinheiro, p. B1.

Recebido para publicação dia 30 de Novembro de 2007 Aceito para publicação dia 14 de Fevereiro de2008

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DESENVOLVIMENTO LOCAL COMO SIMULACRO DO ENVOLVIMENTO: O NOVO-VELHO SENTIDO DO DESENVOLVIMENTO E SUA FUNCIONALIDADE PARA O SISTEMA DO CAPITAL

LOCAL DEVELOPMENT AS SIMULATION OF INVOLVEMENT: THE NEW-OLD MEANING THE DEVELOPMENT AND ITS FUNCTIONALITY TO THE SYSTEM OF CAPITAL

EL DESARROLLO LOCAL COMO SIMULACIÓN DE PARTICIPACIÓN: EL NUEVO SIGNIFICADO DE EDAD EL DESARROLLO Y SU FUNCIONALIDAD AL SISTEMA DE CAPITALES

Josefa Bispo de Lisboa Professora Dra. do Núcleo de Geografia – Universidade Federal de Sergipe - Campus Itabaiana E-mail: [email protected]

Alexandrina Luz Conceição Dra. do Núcleo de PósGraduação em Geografia – Universidade Federal de Sergipe E-mail: [email protected]

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Resumo: Este estudo está centrado na ideologia do discurso do desenvolvimento a ser apreendida nas relações contraditórias do espaço do capital. Compreende-se que o discurso do desenvolvimento a partir dos anos 1980 direcionou uma reflexão sobre o processo histórico-social que faz do Banco Mundial a instituição chave do ajuste estrutural e o seu papel veiculador da ideologia do desenvolvimento local. Engendrada pela mundialização do capital, a dimensão local traz o caráter dinâmico do território, sustentado na idéia de potencialidade latente. Os lugares se tornam interessantes, atrativos e úteis à acumulação e garantem mobilidade ao capital. O discurso do desenvolvimento, longe de ser uma questão da promoção do bem-estar da sociedade, tem um caráter ilusório ao cumprir uma importante função ideológica: a legitimação das relações de produção capitalistas que operam as diferenças, ou, em outras palavras, dirigem a produção da pobreza. Palavras-chave: Território, desenvolvimento regional, desenvolvimento local, desenvolvimento desigual e combinado, Banco Mundial Abstract: This study is centered in the ideologic speech of the implied development apprehended in the contradictory relationships of the capital space. Investigated that understanding of the speech of the development starting from 1980 addressed a reflection on the historical-social process that makes the World Bank the key institution of the structural adjustment and its transmitter paper of the ideology of the maintainable local development expressed in the use of the territory for the capitalist exploration as manifestation of the regional development. Engendered by the mundialization of capital, the local dimension brings the dynamic character of the territory, sustained in the idea of latent potentiality. The places become interesting, attractive and useful to the accumulation and guarantee the capital mobility. The speech of the development, far away from being a subject of the promotion of the well-being of the society, shows its illusory character while accomplishing an important ideological function: the legitimation of capitalist production relationships that operates the differences, or, in other words, drive the poverty production. Geography has, the paper of watching the unequal and combined character of the development, corroborating for the elucidation and overcoming the contradictions. Key-words: Territory, regional development, local development, unequal and combined development, Word Bank Resumen: Este estudio se centra en el discurso de la ideológicos implica el desarrollo detenido en el contradictorias relaciones de la capital espacial. Investigó la comprensión de que el discurso del desarrollo a partir de 1980 dirigió una reflexión sobre el proceso histórico y social que hace el Banco Mundial la clave de la institución de ajuste estructural y su papel de transmisor de la ideología de la mantenible desarrollo local expresado en el uso del territorio para la exploración capitalista como manifestación del desarrollo regional. Engendrado por el mundialization de capital, la dimensión local aporta el carácter dinámico del territorio sostenido en la idea de la potencialidad latente. El convertirse en lugares interesantes, atractivo y útil a la acumulación y la garantía de la movilidad del capital. El discurso del desarrollo, lejos de ser un tema de la promoción del bienestar de la sociedad, muestra su carácter ilusorio en tanto que el cumplimiento de una importante función ideológica: la legitimación de las relaciones de producción capitalista que opera las diferencias, o, en otras palabras, impulsar la producción de la pobreza. Geografía tiene, el papel de mirar del carácter desigual y combinado del desarrollo, corroborante para el esclarecimiento y la superación de las contradicciones. Palabras clave: Território, el desarrollo regional, desarrollo local, desarrollo desigual y combinado, Banco Mundial

Presid ente Prud ente

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Introdução O artigo analisa a ideologia do discurso do desenvolvimento local no Brasil, a partir dos anos 1990, direcionando uma reflexão sobre o processo histórico-social que faz do Banco Mundial uma instituição fundamental para a implementação das modificações que dão conta do ajuste estrutural e do falacioso discurso do desenvolvimento local. Engendrada pela mundialização do capital, a dimensão local traz o caráter dinâmico do território, sustentada na idéia da potencialidade dos lugares, que se tornam interessantes, atrativos e úteis ao movimento do capital. Nesse ponto, interessa mostrar que a face mais visível do declínio do nacionaldesenvolvimentismo no Brasil, durante os anos 1980, foi a crise da dívida, que levou o Estado ao esgotamento financeiro minando sua capacidade de planejamento. Tendo em vista a importância dos investimentos públicos, a repercussão da crise da dívida no Brasil foi decisiva para a estagnação econômica e a conseqüente dificuldade de investimento tanto para o crescimento, quanto para o atendimento social. Este quadro exige a compreensão da crise do capitalismo que se revela em meados dos anos 1970, em um período de transição entre o padrão de acumulação fordista e a inauguração da economia flexível em escala internacional, trazendo desdobramentos para o modelo de desenvolvimento no país. Nesse contexto, a especulação passou a ser acatada como contrapartida à queda da rentabilidade do capital na esfera produtiva, já que sem oportunidades de lucros no setor produtivo, os capitalistas se dirigiram para os investimentos financeiros especulativos (WALERTEIN, 2003). Para Chesnais (2003), à proporção que o aumento nos ganhos de produtividade e o crescimento associaram-se à especulação financeira, a demanda nada mais foi do que uma criação do regime, sustentada no crédito, enquanto os investimentos são mantidos por empresas do setor financeiro, garantindo altas taxas de produtividade e crescimento e, ao mesmo tempo, expressando a instabilidade da financeirização. A mundialização do capital, que se realiza sob a égide do capitalismo financeiro, exerce um poder mundial sem precedentes, provocando o desemprego estrutural, seja em decorrência do declínio nos investimentos produtivos, seja devido aos avanços no campo da informatização, ou pela preferência pela liquidez em curto prazo (as empresas optam por aplicar nos mercados financeiros). As forças econômicas dominantes colocaram um Novo Direito Internacional a seu serviço, elaborado para costurar a defesa das grandes corporações, garantindo-lhes o máximo de proteção e de direitos, e ainda procurando inutilizar os direitos nacionais como, as leis e os regulamentos que garantem a proteção aos consumidores (BOURDIEU, 2001). As instâncias internacionais como o FMI, o Banco Mundial e a OMC administram este denominado Novo Direito Internacional e, de modo invisível, também os governos

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locais. O espaço de decisão permanece desafiado por relações externas e exteriores a ele, são relações que expressam o jogo de forças inerentes aos interesses das novas instituições de poder e aos interesses da sociedade. Não obstante, a atuação predatória da ofensiva neoliberal, ao viabilizar o Novo Direito Internacional, garantiu maior movimento do capital que se tornou mais flexível, nestes termos, fugidio, fugaz, tornando-se ‘virtude’ deste novo tempo histórico. Nesse movimento, o capital se deslocou atrás de garantias de acumulação, apropriando-se de territórios para o seu consumo (CASTELLS, 1999). Nesta conjuntura, dada a rapidez da técnica e da informação, há a redução das barreiras espaciais, assegurando poder de exploração de parcelas do espaço nas suas diferenças em termos de disponibilidade de materiais de qualidades específicas e custos inferiores, infra-estrutura, oferta e controle do trabalho sob condições de acumulação mais flexíveis. As diferenciações de condições de receptividade, conhecimento, técnica, ciência, estratégias de acumulação das elites locais, redes de poder e influência, também são requisitos de valorização do espaço. Nota-se que a produção muda de lugar ou de região e que quanto menores são as barreiras espaciais, mais as variações do lugar se tornam atrativas ao capital (Ibid). Em tais circunstâncias se observa que, embora o mundo tenha se tornado menor, mais curto e mais denso, dado o avanço técnico-informacional, ele se tornou mais complexo, há nele uma centralização do poder, do dinheiro e, prioritariamente, das decisões, tudo isso ignorando as forças sociais. A mundialização do capital revaloriza as vantagens localizacionais, reforçando a competitividade entre os lugares, dessa forma, manifesta sua iminência em todos os lugares. Cada lugar específico se organiza colocando suas vantagens localizacionais a serviço do momento da reprodução. As especificidades que estabelecem a diferenciação entre os lugares resultantes, tanto dos processos da natureza, como dos processos econômicos e sociais, tiveram seu valor relativizado pela mundialização do capital. As redes e fluxos complexificaram os lugares, de modo que a criação e o desfazer dessas parcelas do espaço se processam com enorme rapidez. Novos territórios são construídos e desconstruídos a depender da função que vão assumindo para a reprodução do capital. Para o caso dos países em desenvolvimento que mostraram durante os anos 70, ritmos de crescimento econômico superiores aos do mundo desenvolvido (embora tal desempenho tenha se baseado no modelo primário-exportador e na substituição de importações), o acesso ao financiamento desse desenvolvimento se esgotou nos anos 80, unindo circunstâncias desfavoráveis adversas. Além do endividamento externo e do esgotamento do padrão de crescimento econômico interno, esses países tiveram que enfrentar os desafios da nova revolução tecnológica e organizativa da produção flexível. Este novo modelo alcançou a década de 1980, nos países em desenvolvimento, desvendando as contradições do sistema, à medida que houve uma redução dos empréstimos, em conseqüência ocorreu uma eclosão da crise da dívida nesses países. Os

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novos empréstimos que passaram a ser realizados junto ao FMI (recursos de bancos privados) exigiram dos países tomadores, as Cartas de Intenção, agravando em muito a conjuntura. Assim, a mobilidade geográfica do capital passou a ser central na nova dinâmica do sistema de acumulação e da produção do espaço, expressando sua dinâmica decisiva para a gestão do estilo de desenvolvimento, que passou a ser implantado. Neste contexto, a mudança do discurso do desenvolvimento sob esses novos pressupostos que o capitalismo vem se configuração nas últimas décadas acentua sua lógica destrutiva, que concebe: - a substituição do padrão taylorista e fordista pelas formas produtivas flexibilizadas e desregulamentadas com foco nos territórios; - a desregulação neoliberal privatizante e excludente que vem solapando o modelo de Estado de bem-estar social: Trata-se de uma transição com especificidades que se explicitam nos campos econômico-social, político e ideológico. Demarcando o campo político e econômico-social, a ofensiva foi definida para fomentar a competitividade entre Estados e empresas e gerar consumo, postulados em um modelo de desenvolvimento que privilegia a inserção internacional fundada em operações que se realizam dissociadas das demandas internas. Desenvolvimento é então apreendido como integração econômica mundial e, esta se materializa a partir da espacialização da globalização. A globalização, por sua vez é concebida como um paradigma1 . É como se, de fato, existisse um mundo homogêneo ou em processo de homogeneização econômica e social. No campo ideológico, o neoliberalismo lança mão da crença de que as relações capitalistas são as únicas formas de relações sociais historicamente possíveis, dando ao mercado a força de regulador livre, equilibrador e justo dos interesses e relações sociais. O neoliberalismo soube enfrentar o desafio de inculcar suas fórmulas dispondo das teses de Friedrich Hayek e Milton Friedman que expressam a idéia básica do livre mercado e da intervenção estatal como um risco para a liberdade individual e o caminho mais seguro para a imposição de regimes autoritários. Não obstante, é preciso reconhecer que a aceitação desses seus discursos não se produziu no acaso, mas tomados pela onda privatista, concernente à reestruturação produtiva em curso. A tese da liberdade do mercado é a de que o setor público, ou seja, o Estado pela sua ineficiência é o responsável pela crise2 . 1 Neste domínio, Fiori (1998) examina a globalização como uma apologia ideológica. No dizer de Fiori, o termo globalização mascara uma lógica do desenvolvimento que é, antes de mais nada, não eqüitativo e concentrador, e mostra-o como o orientador do novo tipo de desenvolvimento que precisa acontecer. 2 Nessa direção, durante o Consenso de Washington em 1989, esse discurso consolidou as macro-políticas econômicas e as políticas setoriais que, viabilizariam o programa de estabilização e as reformas para ajustar as economias dos países devedores às condições de pagamento de suas dívidas com credores externos.

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Essa tese, subjacente ao quadro atual do capitalismo contemporâneo tem orientado o debate sobre o futuro dos Estados, obrigando a questionar se na nova ordem mundial haverá lugar para um sistema político global amparado pelos Estados-nacionais. Trata-se de uma conjuntura que impõe mudanças de paradigma técnico econômico e organizativo da produção e adaptações sociais, culturais e institucionais, dentre as quais cabe citar: a reforma e descentralização do Estado; um destaque para o papel destinado ao território como ator do desenvolvimento e, não somente, como espaço ou suporte passivo do desenvolvimento de atividades; e a emergência do desenvolvimento local como cenário econômico, político e social, exigindo um redirecionamento integrado das políticas públicas, voltadas para espaços territoriais. A funcionalidade do Estado na lógica do capital financeiro Uma vez que as relações econômicas são reguladas pelo mercado, a natureza do Estado e a sua função, enquanto instituição reguladora e ‘promotora do bem-estar social’ e econômico muda. Este Estado deve conduzir uma economia de mercado perante o sistema financeiro internacional, com ampla abertura comercial, e privatizações. A inserção dos países nesse processo se realizou de forma assimétrica e hierarquizada e vem se traduzindo em limitações à autonomia das políticas nacionais dos Estados (BELLUZO, 2001). Na busca por novos mercados e pela internacionalização da produção, a redução de fronteiras garantiu a flexibilidade necessária às novas articulações, transformando, principalmente os países menos desenvolvidos, em meros consumidores de produtos industriais e em fontes de matéria-prima e mão-de-obra barata. Esta estratégia, facilitada a partir da queda da guerra fria, da implementação do Novo Direito Internacional, da hegemonia das agências financeiras multilaterais dirigiu uma reestruturação na economia mundial, que passou a ser dominada por investimentos à escala global, processos de produção flexíveis e desregulação das economias nacionais. Nesta conjuntura, as economias nacionais deveriam abrir-se ao mercado mundial adequando seus preços aos preços internacionais; a exportação deveria ser priorizada; as políticas monetárias e fiscais tinham que ser orientadas para a redução da inflação e da dívida pública; a regulação estatal tinha que ser mínima. Os países periféricos tiveram que se submeter a essas exigências como condição de renegociação das dívidas externas com as agências financeiras multilaterais. Esta condição viria garantir o retorno dos investimentos. Para Boaventura de Souza Santos (2002), o Estado Nação parece ter perdido a sua centralidade tradicional enquanto unidade privilegiada de iniciativa econômica, social e política. Observou-se que os Estados, ao buscarem fazer alianças, foram minando sua soberania dentro de uma lógica justificada por meio do argumento da ineficiência do Estado, que além de tudo, se encontrava falido. Tal argumento ia legitimando as medidas

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que levaram à quebra dos monopólios públicos, as privatizações, etc. Os Estados nacionais das economias periféricas absorveram as orientações emanadas de um poder global que toma as decisões, através de instituições e organismos multilaterais (OMC, Banco Mundial, FMI, BID). A própria ONU, considerada a mais abrangente organização multilateral mundial está sendo dominada pela mesma lógica mercantil e de poder. O Novo Direito Internacional, ou seja, a criação de novas regras, para os fluxos de capitais, mercadorias, serviços e informações, política de enxugamento do estado, privatizações, desregulamentações, etc., sustenta a condição do funcionamento do momento atual da reprodução do capital, como observa Pierre Bourdieu é a lógica do campo e a força própria do capital concentrado que impõem relações de força favoráveis aos interesses dos dominantes. Estes detêm os meios de transformar essas relações de força em regras do jogo aparentemente universais através das intervenções falsamente neutras das grandes instâncias internacionais (FMI, OMC) por eles dominadas ou sob o véu das representações da economia e da política que estão em condições de inspirar e de impor e que tinham encontrado sua formulação mais bem acabada no projeto do AMI (Acordo Multilateral de Investimento): essa espécie de utopia de um mundo livre de todas as coerções do Estado e entregue apenas à arbitrariedade dos investidores dá uma idéia do mundo realmente globalizado que a internacional conservadora dos dirigentes e dos executivos das multinacionais industriais e financeiras de todas as nações visa impor ao apoiarem-se no poder político, diplomático e militar de um Estado imperial pouco a pouco reduzido a funções de manutenção da ordem interna e externa (2001, p. 114).

Mas a forte presença dessas organizações, de forma contraditória e combinada, confirma o que a história recente do capitalismo tem demonstrado. Na medida em que os Estados continuam contribuindo decisivamente para o funcionamento do mercado, sobretudo, nos países centrais (onde a atuação dos governos tem sido fundamental para o bom funcionamento dos negócios na esfera dos mercados), eles sustentam um papel decisivo na disputa/manutenção de posições no espaço econômico mundial (SOUZA, 2000)3 . Nas nações dominantes o Estado vem assumindo a defesa dos interesses não só dos seus próprios capitais, mas do capital de origem estrangeira, quer dizer, quando atrai investimentos externos, o estado assegura vantagens em relação a esse capital forâneo, que deve se articular ao fortalecimento do capital local. Entretanto, coisa bem diferente se passa no caso dos estados dos países periféricos. Nestes casos a mundialização do capital tem tido o efeito de reforçar a subordinação aos interesses do capital financeiro 3 Os Estados Nacionais continuam a ocupar papel crucial na defesa dos seus capitalistas no cenário internacional. Eles criam as condições para que os fluxos se realizem e funcionam como mola propulsora, promovendo a abertura das economias nacionais para mercadorias e capitais produtivos e especulativos.

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internacional, dessa forma, se tornando mínimo para as questões nacionais (Ibid). Nas palavras de Mészáros (2003), o sistema do capital não sobreviveria uma única semana sem o forte apoio que recebe do Estado. Destarte, se o Estado capitalista aparece como o ‘comitê executivo’ do mercado (conforme destaca Francisco de Oliveira), do que o árbitro neutro, colocado acima das classes sociais (como em Hobbes e Locke), isto se deve às articulações do capital financeiro dentro de cada estado nacional. Sem as políticas de desregulamentação, de privatização e de liberalização do comércio empreendidas pelos governos nacionais, o capital financeiro e os grupos internacionais não teriam conseguido romper os obstáculos e explorar os recursos existentes e necessários à sua ampliação. Desse modo, a eliminação dos Estados nacionais não é procedente para o atual momento do capitalismo, mas por outro lado, nos países de economia periférica, eles precisam ser desmantelados para abrigar as determinações dos grandes grupos financeiros que operam independentemente da soberania nacional. Para Pierre Bourdieu (Op. cit.), esta operação que leva à globalização não causa uma homogeneização, mas ao contrário, leva à extensão de um pequeno grupo de nações dominantes sobre o conjunto das praças financeiras nacionais. Enquanto para muitos a globalização se coloca como inexorável e irreversível, para outros, a globalização é apenas uma retórica pregada pelos governos que precisam justificar sua submissão ao processo de financeirização da economia. Como principal conseqüência se tem o aumento das desigualdades de oportunidades entre pessoas e entre países ricos e pobres, expressando exatamente o contrário do que propõe o discurso da homogeneização, portanto, “é vão esperar que essa unificação garantida pela ‘harmonização’ das legislações conduza exclusivamente por sua lógica, a uma verdadeira universalização” (Ibid, p. 121). Essa integração na realidade tende a enfraquecer os poderes locais, regionais e nacionais, sendo o dado mais perverso neste plano, o processo de naturalização da exclusão. Essas condições aprofundam a dessocialização do capital e libertam-no dos vínculos sociais que garantiram certa proteção social na fase do Welfare State. Sob o manto da descentralização, o Estado, que se tornava mínimo para a defesa do nacional no Brasil, realizou, durante a década de 1980, reformas políticas importantes, particularmente a retomada das eleições diretas e as deliberações da Constituição Federal de 19884 . A democratização e a descentralização propostas pela Constituição de 1988 legitimam a alteração das bases de autoridade dos governos. Nesse contexto, a descentralização foi compreendida como distribuição das funções administrativas entre os níveis de governo.

4 Considerava-se que a excessiva centralização do regime militar negava a participação da sociedade civil nos processos decisórios que, associada à cultura de corrupção, produzia consenso em torno da emergência de um modelo de descentralização.

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A descentralização viria permitir a introdução de regras de comportamento privado no setor público, de modo a estabelecer maior concorrência no âmbito de cada esfera descentralizada de governo e propiciar condições para a cobrança de serviços públicos eficientes por parte da população. Trata-se de um novo paradigma de organização que pressupõe a eficiência do setor público. No conceito de Benett (1990), a descentralização consiste na redistribuição de recursos, na criação de espaços de decisão e competências, e em atribuições de responsabilidade e de poder político-econômico em cada formação econômico-social específica. Nota-se que o elemento decisivo nesta conceituação é a redistribuição de poder político-econômico. Constitui desse modo, uma resposta do Estado à necessidade de atender à multiplicidade de demandas territorialmente diferenciadas, ou seja, de enfrentar o desafio de articular o geral com as particularidades na gestão pública. Esta redemocratização e/ou descentralização, associada ao contexto da crise do Estado inaugura um período de transição com a ruptura do padrão de financiamento do setor público e a perda por parte do Estado de definir interesses regionais que possam fortalecer as regiões e minimizar suas diferenças. Ao mesmo tempo, fortalece-se o discurso da presença necessária da sociedade civil, esta que é chamada para administrar suas próprias demandas. Surge um novo ordenamento, onde as iniciativas locais devem constituir a expressão da descentralização e, onde a sociedade civil é chamada para ser protagonista. A descentralização emerge como mecanismo de redistribuição do poder político que pode permeabilizar o regime às pressões e à participação dos setores populares. Significa também um instrumento de implementação sobre determinada base territorial de um desenvolvimento em favor das maiorias sociais, mediante a redistribuição espacial de recursos (RIKER, 1987). Na prática, as políticas públicas enquanto ações direcionadas para modificar uma determinada realidade territorial, têm de um lado, a população sendo convidada a definir prioridades, e do outro, as decisões relacionadas a recursos ainda fortemente concentradas. O destaque é para o território enquanto ator do desenvolvimento. Entra em vigência um modelo que visa o uso do território em decorrência dos seus potencias. Trata-se de entender as interconexões entre o local (a comunidade) e o global (o supranacional) trazendo para o centro dos interesses econômicos a valorização do potencial de cada território. Os lugares são tornados territórios pelo capital e passam a apresentar a alternativa encontrada pelo capitalismo para suprir as suas demandas, por sua vez, a descentralização transfere para a sociedade civil (contraditoriamente, retira dela) a responsabilidade pela eficácia desse território. O território como ator do/no desenvolvimento

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O capital produz territórios, à medida que desenvolve práticas espaciais visando sua conquista/apropriação e uso, ou seja, estabelece sua territorialidade quando vai definindo relações sociais e de produção no lugar. Esta idéia de dominação/apropriação, pelo poder do capital, se estabelece no momento que, ao abrir novos espaços para a sua acumulação/reprodução, o capital os torna territórios de uso e exploração em função dos seus fins. Assim, o território se conforma como uma estratégia de política econômica para o crescimento e fortalecimento dos sistemas produtivos locais. O território aparece como o local apropriado para a inovação tecnológica e organizativa e o fortalecimento do tecido produtivo empresarial local. À medida que a crise de financiamento da década de 1980 começa a demandar soluções, exigindo que o Estado procure na potencialidade dos seus territórios a garantia da produção de superávit para pagamento dos juros da dívida interna e externa, impõe-se um redirecionamento no papel das políticas, que devem partir do território. Este deixa de ser apenas um suporte passivo do desenvolvimento e passa a ser ator no processo de desenvolvimento. Ele resulta da apropriação e controle por parte de um determinado agente social. Esta apropriação não está vinculada à propriedade, mas ao controle efetivo, legitimado ou não pela sociedade. Milton Santos adverte que “as configurações territoriais são apenas condições. Sua atualidade, isto é, sua significação real advém das ações realizadas sobre elas” (2001, p. 248) e por isso não é possível pensar o território como base material, pois “deveremos levar em conta a interdependência e a inseparabilidade entre a materialidade, que inclui a natureza, e o seu uso, que inclui a ação humana, isto é, o trabalho e a política” (ibid, p. 247). Ou seja, é o uso do território e não o território em si mesmo que o faz importante. Enquanto existirem vantagens localizacionais nesses territórios, do ponto de vista da reprodução, as empresas têm olhos para seus próprios fins, o que coloca a exclusão como condição inerente à produção capitalista do espaço (MILTON SANTOS, 2001; DAVID HARVEY, 2005 & NEIL SMITH, 1998). Para Marcelo Lopes de Souza (1995), os territórios existem e são construídos e desconstruídos em diferentes escalas, desde a da rua à escala internacional. Quer dizer, sempre que houver homens em interação com um espaço, primeiramente transformando a natureza, criando continuamente valor, ao modificar esta natureza através do trabalho, estar-se-á também diante de um território. As economias locais se recriam diante da articulação mundial: novas formas de organização surgem – redes de pequenas empresas, produção flexível e descentralizada são conectadas às forças do mercado global que enquadram os territórios em redes e viabilizam uma globalização que se realiza pelo interesse dos grupos empresariais detentores do controle das técnicas e da informação5 . 5 A globalização se reveste da oportunidade de inclusão ao permitir que novos lugares manifestem sua especificidade, sua criatividade. O capital abre novos espaços, cujas características empreendedoras passam a representar vantagens localizacionais para o capital.

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Sobre esse aspecto, Milton Santos (1996) salienta que a articulação em redes vem impondo uma união vertical dos lugares, à medida que vão sendo disponibilizados créditos internacionais para os países pobres e nessa união ocorre um acontecer hierárquico ou uma tendência à racionalização das atividades sob o comando do mercado universal e dos governos mundiais. O FMI, o Banco Mundial, o GATT, as organizações internacionais, as Universidades mundiais, as Fundações que estimulam com dinheiro forte e pesquisa fazem parte do governo mundial que pretendem implantar, dando fundamento à globalização perversa e aos ataques que hoje se fazem, na prática e na ideologia, ao Estado Territorial (Ibid, p. 18).

Para Milton Santos (Ibid), a partir dessa realidade se observa que vai emergindo no território, tanto as verticalidades - enquanto normas, regras utilitárias que colocam os lugares no mercado mundial em benefício das relações de mercado, como as horizontalidades, que se constituem na própria forma de organização do território em função dos seus próprios interesses de produção e de consumo. Para esse autor, o território hoje pode ser formado de lugares contíguos e de lugares em rede. Todavia, são os mesmos lugares que formam as redes e que formam o espaço banal. “São os mesmos lugares, os mesmos pontos, mas contendo simultaneamente funcionalizações diferentes, quiçá divergentes ou opostas” (Ibid, p. 16). O lugar neste momento tem (re)surgido impulsionado pela globalização, que se nutre das suas especificidades e dos custos, quer sejam de mão-de-obra, quer sejam de matérias-primas ou ainda, vantagens fiscais. A reconstrução do lugar o coloca em evidência de uma forma diferente. O lugar ganha uma capa diferente dando a impressão de ser um campo aberto para especulações. Passa a adotar uma imagem de território dinâmico, empreendedor, apto para receber investimentos externos. Concentram-se os esforços em apresentar um potencial de atração de recursos com base na imagem, nas capacidades de gerar relações positivas em torno de suas características ambientais específicas, os atores sociais e sua mobilização, as estratégias e projetos para o desenvolvimento produtivo local. Aparecem os discursos do empreendedorismo, de autonomia e participação, com a adoção de políticas públicas ditas descentralizadoras. Estas políticas racionalizam recursos, pois se o território tem seu potencial e as comunidades, o conhecimento para lidar com a produção - então os investimentos podem ser abreviados em função das vantagens ali alocadas. Para Marcelo Lopes de Souza (Op. cit), a questão primordial que deve preocupar, não está nas características geoecológicas, nem nos recursos naturais de certa área, nem mesmo nas ligações afetivas e de identidade entre o grupo social e seu espaço, pois os

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territórios podem ter um caráter permanente ou uma existência periódica. Para o autor, tudo depende dos interesses do capital num dado momento da reprodução, o que importa é perceber como se estabeleceram a apropriação, o controle, a vulnerabilidade e flexibilidade as quais os territórios estão submetidos. Neste ponto, é importante salientar o caráter empreendedor dos Estados, cujos esforços no sentido de se tornarem chamarizes dos investimentos do capital, os transformam em gabinetes para viabilização de estratégias de atração de empreendimentos, pois dificilmente, na contemporaneidade, “desenvolvimento algum em larga escala acontece sem que o governo local (ou a coalizão mais ampla de forças que constitui a governança local) ofereça como estímulo, um pacote substancial de ajuda e assistência” (HARVEY, 2005, p. 175). Promove-se um pseudo-poder de decisão para as esferas administrativas mais próximas do cidadão. A retórica da autonomia do lugar, do respeito à gestão do e pelo lugar torna as cidades ou os municípios atrativos6 . Os atores locais ganham maior destaque, na medida em que conhecem melhor as suas potencialidades (circunstâncias ambientais, econômicas, culturais e políticas) concretas. Dessa forma, o que se nota é que as políticas neoliberais, não apenas procuram explorar as eventuais potencialidades dos territórios, como buscam o corte de custos por parte dos estados nacionais, para que esses optem por acertos nos balanços de pagamento, de modo a garantir superávit (imprescindível à remuneração dos juros da dívida interna e externa). Pode-se ver como a reestruturação econômica impõe adaptações pondo em evidência a interação entre os âmbitos local e global, considerando que é o nível local que dispõe do ambiente propício à inovação. Nestes termos, os gestores públicos são convocados a estimular as iniciativas de desenvolvimento local com intervenções na reestruturação dos seus sistemas produtivos, de modo que esta orientação do desenvolvimento possa promover a revanche ao caos provocado pela globalização. Esta possibilidade de correção dos desajustes oriundos da reestruturação produtiva não é a mesma daquela apresentada por Milton Santos (Op. cit) quando se referia ao espaço banal. Para Santos (Ibid), o espaço banal é o espaço de todos e este é elaborado pelas horizontalidades, ou seja, quando o território se articula como espaço de luta dos trabalhadores oprimidos para estabelecer a sua revanche à força das redes verticais. A iminência do desenvolvimento local no cenário econômico, político e social O desenvolvimento local no Brasil, como temática de estudo ganhou maior significado na segunda metade da década de 80, com as reflexões sobre as primeiras experiências de descentralização de políticas públicas durante o debate em torno da formulação da 6 No caso do espaço urbano, segundo Harvey (2005), os investimentos enfocam a qualidade de vida. A valorização de áreas urbanas degradadas, inovação cultural e melhoria da estrutura urbana servem de atrações para que esses espaços possam ser consumidos.

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Constituição Federal. No entanto, o local - visto sob a perspectiva de um novo enfoque de construção do desenvolvimento, ou como base de uma nova visão de desenvolvimento, somente surgiu na década de 1990, quando foram exercitadas diversas experiências apoiadas por organismos internacionais, governamentais e não governamentais7 . Atualmente, o processo de mudança em curso torna atual a reflexão sobre o local como cenário revestido de significado, constituindo-se palco das estratégias e políticas de desenvolvimento voltadas para a melhoria da qualidade de vida das populações. O desenvolvimento local se coloca como uma resposta endógena às conseqüências da crise econômica e, ao mesmo tempo, como reflexo da descentralização econômica, política e social. A dimensão local engendrada pelos processos concomitantes de mundialização do capital, descentralização e mudanças no papel do Estado vem sendo interpretada como uma comunidade de atores públicos e privados, que oferece um potencial de recursos humanos, infra-estruturas educativas e institucionais, na qual a mobilização e a valorização geram idéias e projetos de desenvolvimento alternativo (PRÉVOST, 1996). Daí por que se considera que o que estrutura o local, ou seja, os relacionamentos, as redes que ligam o pequeno mundo territorial com o mundo cultural, político, econômico e social, se constitui o contraponto à globalização (Ibid). Para muitos autores, a globalização questiona o padrão anterior de desenvolvimento apoiado no Estado Nacional, o que a faz ampliar as possibilidades de desenvolvimento local, pois as condições da globalização na dinâmica dos sistemas produtivos “ha favorecido las vinculaciones entre los elementos funcionales y territoriales, lo que impulsa al encuentro de las estratégias de desarrollo endógeno y de desarrollo exógeno” (VÁZQUEZ BARQUERO, 1998, p. 23). Segundo Barquero, o desenvolvimento econômico local se define como um processo “de crescimiento y cambio estructural que mediante la utilización del potencial de desarrollo existente en el território conduce a la mejora del bienestar de la población de una localidad o un território” (Ibid, p. 16). Ao contrário da visão do desenvolvimento exógeno de caráter redistributivo, que incentiva a atração de capitais e empresas externas para impulsionar o desenvolvimento das localidades periféricas, o novo paradigma do desenvolvimento endógeno ou local considera como espaço preferencial, economias de regiões e cidades, que possam crescer utilizando o potencial de desenvolvimento presente no território. Tem a ver com o estreitamento das articulações entre o sistema produtivo e a sociedade, conforme as orientações emanadas na lógica do ajuste estrutural. É uma interpretação “orientada para a ação, na qual os atores locais determinam o caminho de crescimento da economia local através de suas decisões de investimento e de suas iniciativas” [...] (Ibid, 2001, p. 93). 7 Merece destaque, a iniciativa do Projeto de Cooperação entre o Banco do Nordeste e o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) que em 1995 deu início a um Programa de Apoio ao Desenvolvimento Local.

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A teoria do desenvolvimento local refere-se a organizações produtivas imersas “em entornos que permitam formar coalizões entre atores locais – de modo a impulsionar a inovação — bem como remete a mudanças estruturais e ao desenvolvimento local” (ibid). Em documento produzido para a Conferência de Istambul, J. Borja e Manuel Castells (1997) observam que na relação global/local, o local se constitui o lócus de gestão do global, dada a sua importância no tocante à produtividade e competitividade econômicas, a possibilidade de integração sociocultural e da representação e gestão das políticas públicas. De acordo com o documento, pretende-se dar um poder superior aos governos locais que poderão desenvolver seus empreendedorismos locais, de modo a atrair capital e ampliar sua competitividade, os governos locais dispõem de duas importantes vantagens comparativas com respeito a seus tutores nacionais. De um lado, gozam de uma maior capacidade de representação e legitimidade com relação a seus representados; são agentes institucionais de integração social e cultural de comunidades territoriais. De outro, gozam de muita flexibilidade, adaptabilidade e capacidade de manobra em um mundo de fluxos entrelaçados, demandas e ofertas cambiantes e sistemas tecnológicos descentralizados e interativos (BORJA & CASTELLS, 1997, apud BOURDIEU, 2001, p. 19).

O local adquire um sentido mais soberano e incorpora o poder da representatividade legítima, tanto do pensar a comunidade, quanto do fazer para a comunidade. Reitera-se que nas estratégias de desenvolvimento, a sociedade local não se comporta passivamente aos processos de transformação em curso, ela desenvolve iniciativas a partir de suas particularidades territoriais conforme os planos econômico, social, cultural e político. O local como resultado da nova espacialidade imposta pelas condições da dinâmica capitalista alia cooperação e concorrência, incorpora trabalhadores informais (como saldo da crise estrutural), famílias, e empresas. Combina especialização com flexibilidade e trás como elemento central a organização territorial do sistema produtivo baseado em micro, pequenas e médias unidades. Estas devem desenvolver vantagens e produzir um ambiente favorável a mudanças (CRUZ, 2004). A expectativa da geração de trabalho, emprego e renda é central na perspectiva do desenvolvimento local. Nesse campo entram as políticas públicas, que têm por objetivo promover o desenvolvimento econômico à escala local e regional, dentro das novas condições concorrenciais do capitalismo. Conforme assinala Cruz (Ibid), os elementos sociais e culturais, como cooperação ou espírito comunitário, solidariedade, tornam-se fatores de produção ou se combinam para produzir vantagens competitivas de elevada performance. Para ele, esses elementos acabam por produzir capacidade de realizar um processo efetivo de democratização dentro das comunidades.

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Nesse aspecto, as diferenças de enfoque em relação ao modelo anterior podem ser percebidas no quadro abaixo:

ENFOQUE ALTERNATIVO

ENFOQUE CONVENCIONAL i.

Crescimento quantitativo como guia: maximização da taxa de crescimento do produto interno bruto; · · · ·

ii.

Desenvolvimento polarizado; Crescimento hierarquizado e cantralizado; Controle exercido pelas classes economicamente dominantes; Intervenções setoriais: pólos de crescimento, polígonos industriais, zonas francas;

Estratégia baseada no apoio externo: investimentos estrangeiros, ajuda exterior;

iii. Tese do transbordamento ou difusão do crescimento a partir dos núcleos centrais: tese da locomotiva: os países centrais arrastam os países em desenvolvimento;

i.

Maior preocupação para: · melhorar distribuição de renda; · assegurar a sustentabilidade ambiental; · elevar a qualidade de vida; · melhorar as relações trabalhistas; · satisfazer as necessidades básicas da população;

ii.

Potencialização próprios: · · ·

dos

recursos

articulação do tecido produtivo territorial; maior vinculação do tecido empresarial local; mais controle do processo de desenvolvimento

iii. Estímulo de iniciativas de desenvolvimento local; iv. Desenvolvimento territorialmente mais equilibrado; v. Criação de ambiente institucional que impulsione o desenvolvimento do potencial local; vi. Controle exercido pelas comunidades locais;

Quadro 1 - Diferenças de Enfoque de Modelo de Desenvolvimento. Fonte: Adaptado de: ALBUQUERQUE, Francisco. Fortaleza: BNB, 1998.

Como se pode observar, na busca do equilíbrio do desenvolvimento se supõe um potencial de desenvolvimento endógeno, que deve ser identificado e se manter articulado à estrutura social e política. Os gestores locais devem atuar promovendo a criação dos espaços de intervenção, que por sua vez, devem definir uma agenda de atuação que envolva o conjunto da sociedade organizada. Verifica-se nesta formulação, que é o fator endógeno quem deverá transformar o crescimento em desenvolvimento através da organização da região e, ao mesmo tempo, a capacidade de inclusão social. Contudo, para delimitar com maior precisão o conceito de desenvolvimento local ou endógeno é necessário diferenciá-lo do mero crescimento econômico. A presença de novas atividades numa região, num estado ou município pode elevar os seus níveis de

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produção e renda, sem que, entretanto, ocorra um processo de desenvolvimento econômico e social. Para Boisier (1993), o processo de desenvolvimento de uma região depende fundamentalmente da sua capacidade de organização social que se associa ao aumento da autonomia regional para tomada de decisões, ao aumento da capacidade de reter e reinvestir o excedente econômico gerado pelo processo de crescimento, a um crescente processo de inclusão social e a um processo de permanente conservação e preservação do ecossistema regional (Ibid, p. 53).

A noção de poder local aparece fundamentada na presença de uma rede de atores locais e das relações que configuram o sistema produtivo no qual, os agentes econômicos, sociais, políticos e institucionais se organizam com sua cultura própria e geram uma dinâmica de aprendizagem coletiva. Juntos, exercem a cooperação para inovar e competir, resultando “que el desarrollo regional jamás puede ser exógeno; el atributo de la ‘endogeneidad’ és condición sine qua non del desarrollo, pero no necesariamente del crescimiento” (VÁZQUEZ BARQUERO, 1998, p. 20). Não é demais assinalar os aspectos mais substantivos da nova formulação:

Impulso de estratégias Formas de Nova formulação de Avanço da dedesenvolvimento desenvolvimento políticas de descentralização local difuso (sistemas locais desenvolvimento

de empresas local

Crise do modelo pósfordista

Figura 5 – Transição para o Modelo de Economia Flexível. FONTE: Adaptado de: ALBUQUERQUE, Francisco. Fortaleza: BNB, 1998.

Trata-se de uma estratégia que deve impulsionar mecanismos de ações para a comunidade local, a valorização do seu potencial inovador e os seus valores culturais, em um processo de articulação produtiva entre os atores locais e os agentes do desenvolvimento. Naturalmente, o que se faz é uma transferência de competências e de poder, num contexto de descentralização político-territorial. Para tal realização deve ocorrer um processo de negociação estratégica de agentes territoriais, o apoio político administrativo dos gestores públicos locais, além da incorporação

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de inovações tecnológicas no tecido produtivo local. Nesta perspectiva, o território socialmente organizado e suas peculiaridades culturais são aspectos importantes. Observa-se, no entanto, que a heterogeneidade econômico-regional das diferentes nações, somada às transformações estruturais pelas quais a economia mundo vem passando resulta na falta de correspondência entre o discurso presente nos projetos que são elaborados para o local e as práticas espaciais desenvolvidas. Uma evidência empírica desta prática territorial pôde ser analisada em pesquisa de campo, realizada no município de Barreira, no estado do Ceará, durante o mês de julho do ano de 2006. O território apropriado pelo capital vem tendo seu uso regulado para fins de um bom aproveitamento. Um aproveitamento em estreita correspondência com padrões adequados aos interesses do mercado. Essa prática envolve não só atores privados empresariais e a sociedade civil em seu conjunto, mas gestores públicos, alertando para que o desenvolvimento pretendido não é resultado exclusivo de ações empresariais, mas depende, fundamentalmente da forma como o conjunto da comunidade organiza as condições da produção. O espaço territorial, dado o seu potencial, é concebido como agente no processo de adequação das condições pretendidas pela lógica de desenvolvimento que se institui. Esse contexto indica a emergência do território e do seu caráter empreendedor, da autogestão, participação e poder local, como pressupostos da sustentabilidade do/no desenvolvimento. Um conjunto de conceitos, cujos conteúdos revestem-se (seja no plano do ‘empreendedorismo destacado’8 , seja no plano das políticas de redução da pobreza) do clichê da valorização cultural, que impulsiona a otimização da eficiência e dos resultados. Para Alexandrina Luz Conceição, partidos e sindicatos perdem espaço enquanto agentes de mudanças para associações filantrópicas, organizações comunitárias e nãogovernamentais. A sociedade civil é convocada, em nome do princípio da cidadania, para assumir o dever cívico de substituição dos poderes políticos ‘corrompidos’. Papel exacerbado, a partir de valores estigmatizados na responsabilidade da representação da cidadania, arregimentados nos novos pilares sociais da mediação das esferas pública e privada, tendo a família como signo da necessidade do amor, do respeito e da disciplina, e a comunidade como signo da necessidade da manutenção da solidariedade, da negação da violência (CONCEIÇÃO, 2005, p. 167).

Tudo em nome da soberania absoluta do mercado que, via de regra, demanda a ampliação da exploração dos recursos e dos homens. Supõe uma mudança de paradigma

8 David Harvey, no livro A Produção Capitalista do Espaço, destaca que o novo empreendedorismo se apóia na parceria público-privada, por meio da construção especulativa do lugar, em vez da melhoria das condições num território específico, enquanto seu objeto econômico imediato (ainda que não exclusivo) (2001).

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de gestão, que responde às necessidades de todos, à justiça social. A idéia de desenvolvimento local trás um conteúdo de assunção pela sociedade civil do controle de suas atividades de produção, de sua vida cotidiana e das decisões públicas, isso tudo para dar sentido a um modelo ideal de desenvolvimento, que procura escamotear o caráter contraditório do capitalismo (LOWY, 2000). O discurso do desenvolvimento local trás a vantagem de possibilitar, de maneira tranqüila, uma das formas mais perspicazes de dominação de grupos e pessoas. Em nome de todos, dos interesses da humanidade, ultrapassa-se os direitos mais primários das nações. Mas, se na leitura crítica o desenvolvimento local se constitui apenas um fetiche, ele é atrativo e artificioso e o seu caráter falaz faz com que os governos responsáveis pela espacialização de políticas públicas, o utilize, de maneira a tornar suas propostas consensuais, sobremodo, entre as populações carentes. Conclui-se que, a exaltação a uma prática que reifica o local, por que atribui à comunidade local as determinações do sucesso ou do insucesso das políticas públicas ou programas de desenvolvimento, não admite a imersão dos lugares na competição do capital transnacional, e nem a sua obediência aos parâmetros de exploração próprios do modelo de acumulação que se estabelece pela subjugação ao mercado. O discurso do desenvolvimento local com justiça social ignora a lógica da competição e do lucro sempre crescente. Ao assumir esta leitura, observa-se que a produção do lucro pela apropriação dos lugares é a forma da produção da pobreza, confirmando a tese de que o domínio do espaço se realiza de forma perversamente desigual e combinadamente contraditória, o que inviabiliza a possibilidade de um modelo de desenvolvimento mais justo. REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE, Francisco. Desenvolvimento econômico local e distribuição do progresso técnico: uma resposta às exigências do ajuste estrutural. Fortaleza: BNB, 1998. BELLUZZO, L. G. M. Crescimento para Garantir o Pleno Emprego: as Condições Macroeconômicas. In: Carlos Lessa [et al]. O Rio Pensa O Brasil. Rio de Janeiro: Sermograf, 2001, v. 1, p. 111-118. BENNET, Robert. J. Decentralizatión Local Governements, and Markets – Towards a Post – Welfare Agenda. New York. Oxford University Press, 1990 BOURDIEU, Pierre. Contrafogos 2: por um movimento social europeu. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001 CASTELLS, A Sociedade em Rede - A Era da Informação: economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e Terra, 1999. CHESNAIS, François. A “Nova Economia”: uma conjuntura própria à potência econômica estadunidense. In: CHESNAIS, F. [et al.]. Uma Nova Fase do Capitalismo. São Paulo: Xamã, 2003 CONCEIÇÃO, Alexandrina Luz. A Geografia do Espaço da Miséria. In: Revista Scientia Plena, vol. 01, no. 06, Aracaju, 2005, pp. 166 – 170. ______. A Insustentabilidade do Desenvolvimento Sustentável. In: Revista Esforia:

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Recebido para publicação dia 29 de Novembro de 2007 Aceito para publicação dia 12 de Fevereiro de2008

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A ESCALA GEOGRÁFICA: NOÇÃO, CONCEITO OU TEORIA? T HE G EOGRAPHIC S CALE : NOTION , CONCEPT OR TEORY? L A E SCALA G EOGRÁFICA : NOCIÓN , CONCEPTO Ó TEORÍA ?

EVERALDO SANTOS MELAZZO Docente do Departamento de Planejamento, Urbanismo e Ambiente da FCT/UNESP, Presidente Prudente E-mail: [email protected]

CLOVES ALEXANDRE CASTRO Doutorandoem Geografia no Instituto de Geociências da UNICAMP, Campinas. Bolsista CAPES E-mail: [email protected]

T e rr a L iv re

Resumo: A escala é um poderoso recurso metodológico à disposição da geografia. Porém, pequena ainda é a discussão e problematização da escala geográfica como um objeto teórico que exige elaboração mais profunda. Na verdade, a escala geográfica não é um a priori ou uma mera questão de escolha do analista quando delimita suas estratégias investigadoras. A definição da escala geográfica condiciona a própria maneira de apreender e lidar com o objeto da análise. Nesta perspectiva, este texto problematiza a escala como noção e como conceito a partir da literatura surgida sobre o tema nos últimos anos e aponta para a necessidade de construção de uma teoria da escala geográfica, principalmente do ponto de vista de uma Geografia Política. Palavras-chave: Escala geográfica; Geografia Política; Pensamento Geográfico. Abstract: The scale is a powerful metodological resource to the geographers. However, the reduced problematization of the geographic scale as a theoretical object demands more elaboration. In fact, the geographic scale is not a a priori one or a mere question of choice of the analyst when circumscribes his investigating strategies. The definition of the geographic scale conditions the proper way to apprehend and to deal with the object of the analysis. In this perspective, this text deals with the scale as notion and as a concept from the literature appeared in recent years and points the necessity of a construction of a theory of the geographic scale, mainly of the point of view of a political geography. Key-Words: Geographic scale; Political geography; Geographic thought R e s u m é n : La escala es un recurso de gran alcance metodológico a la disposición de la geografía. Sin embargo, aún nos es suficiente la elaboración de la escala geográfica como objeto teórico lo que requiere seguir en su investigación. En realidad, la escala geográfica no es a un a priori o simplemente una cuestión de elección del analista cuando empieza sus estrategias de investigación. La definición de la escala geográfica condiciona la manera apropiada de ocuparse del objeto del análisis. En esta perspectiva, el texto pone en discusión la escala como noción y como concepto desde la literatura especializada de los últimos años, cuestionando y proponiendo la elaboración necesaria de una teoría de la escala geográfica, principalmente desde el punto de vista de una Geografía Política. Palabras-Clave: Escala geográfica; Geografía Política; Pensamiento Geográfico

P re sid e n t e P ru d e n t e A n o 2 3 , v .2 , n . 2 9

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1. Introdução A escala, de maneira mais ou menos visível, tem se constituído em um poderoso recurso metodológico à disposição dos geógrafos. Porém, é possível afirmar que se está presente desde sempre na análise geográfica, ela quase sempre também comparece como um a priori, ou como um dado ontológico (isto é, como se fosse um receptáculo de cada processo, antecedendo-os). Isto fez da escala geográfica uma noção não problemática, não sujeita a investigações mais rigorosas na medida em que se constituía, sempre, em fronteiras hierarquizadas de espaços de diferentes “dimensões”, conduzindo segundo Castro (2001) a um ‘uso acomodado do termo’. Ainda deste ponto de vista, é possível afirmar que a escolha da escala da análise restringe-se às preferências do investigador, sendo que cada qual pode escolher, com anterioridade, qual a melhor escala (e não a escala apropriada) para sua investigação. Só muito recentemente esta discussão tem recebido a atenção dos geógrafos tornando a escala geográfica um objeto em particular, como uma realidade que precisa ser investigada por si mesma. Ou seja, é recente o debate que traz para a análise a escala como um objeto teórico, tal como nos propõe o já citado texto de Castro (2001), Neil Smith a partir de 1984 e os desdobramentos desta discussão, no que poderíamos denominar de uma nova abordagem da Geografia Política, desde então. A que se deve este interesse atual pela escala geográfica? Seria possível mapear este percurso de retomada da discussão das escalas na Geografia? Quais as contribuições que esta discussão vem aportando ao debate e ao conhecimento da realidade? Podemos nos referir a uma teoria da escala geográfica ou estaríamos frente apenas a uma noção ou, mais além, frente a um conceito? Antecipando uma possível conclusão (ainda precária), a escala geográfica pode ser considerada ao mesmo tempo como uma noção, um conceito e uma teoria (ainda que em construção). Assim, a forma como a discussão das escalas será apropriada, compreendida e utilizada dependerá da construção teórica que as ciências sociais em geral, ou a Geografia em particular, lhe darão. O contexto mais amplo para a problematização desta discussão é o debate sobre o papel do espaço na teoria social e, mais particularmente o que é o espaço e como pode ser compreendido. Ele é necessário e inerente aos processos sociais ou ele é contingente? É abstrato ou concreto? As diferenças espaciais são um dado da realidade ou são formas de apreensão desta realidade, ou melhor, elas somente ganhariam sentido se organizadas a partir de uma leitura teórica da realidade? Estas questões não admitem respostas fáceis. Na verdade, as clivagens

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presentes entre os analistas e suas abordagens decorrem justamente das diferentes respostas que dão a estas questões. Enquanto para alguns o espaço é meramente o recipiente que contém os processos sociais ou o palco onde se desenrolam, para outros o espaço comparece como a fôrma que modela tais processos sociais, determinando-os. Colocado desta maneira simplista é possível presumir que o espaço é algo dado, objetivamente observável. Ele existe. E por existir, jogaria algum papel (mais ou menos relevante) nos processos sociais. Porém, a simplificação do debate desta maneira acaba por deixar de fora as contribuições teóricas que afirmam a necessidade de que espaço e diferenças espaciais são constructos imprescindíveis para a apropriação da realidade social, uma vez que ‘apreender o modo de existência espacial das sociedades’ implica em tomar o espaço ao mesmo tempo em que produto das relações sociais concretas e também como produtor de relações sociais historicamente determinadas. No interior deste debate que remonta às origens da Geografia moderna, marcada por um objetivismo que procura a compreensão de fatos que seriam geográficos por que inscritos no espaço ou produzidos em um território, são observadas diferentes posturas metodológicas tributárias de distintas correntes filosóficas. Dadas as indagações apontadas, dividimos este texto em 4 itens, além desta Introdução. No item 2, a seguir, iniciamos a discussão da escala tomandoa como uma noção para, em seguida, no item 3 analisar sua construção enquanto um conceito geográfico. Acreditamos que esta passagem de noção a conceito pode ser apreendida através da proposta de Neil Smith, em um conjunto de textos produzidos originalmente nos anos 80, isto é, datados historicamente e no interior de um processo de ampliação das possibilidades da análise geográfica. Em seguida, e ainda apoiados em Neil Smith a partir de uma produção mais recente (anos 90), são anotados e comentados conceitos articuladores de uma teoria da escala geográfica. Por fim, à guisa de considerações finais, procuramos apontar o debate sobre uma teoria da escala geográfica enquanto uma teoria política das escalas geográficas. 2. A Escala como Noção Como uma noção, ou seja, uma idéia utilizada em diferentes matrizes científicas discursivas, a escala encontra-se associada a uma representação: o elemento que tecnicamente permite representar a realidade, ampla, complexa ou mesmo grande, de maneira a ser apreendida, visualizada, manejável. É neste sentido que o termo aparece na Enciclopédia dos Iluministas, tal

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como na passagem a seguir, citada por PETIT (1998: 89). “Na geografia ou na arquitetura, uma escala é uma linha dividida em partes iguais e colocada no rodapé de um mapa, de um desenho ou de uma planta, para servir de medida comum a todas as partes de um edifício ou então a todas as distâncias e a todos os lugares de um mapa” (Encyclopédie, 1755).

A escala aparece, aqui, como um recurso a ser utilizado por geógrafos e arquitetos para conhecerem o mundo. Este recurso é a medida. A medida comum a todas as partes. A medida capaz de um duplo propósito: de um lado, estabelece a proporção entre as coisas (o distante e o próximo, o grande e o pequeno, o micro e o macro) e, de outro, estabelece a homologia entre a realidade e as coisas (neste sentido, a escala nos aparece como uma relação apropriada para as representações entre um mapa e a medida real no local). Neste último sentido, a escala aparece, ainda, como uma estratégia de reprodução de uma realidade anterior e já dada, restando a quem a mapeia a tarefa de reproduzi-la. Trata-se, aqui, de tomar a escala enquanto uma escala cartográfica, como medida matemática, como “... uma fração que indica a relação entre as medidas do real e aquelas da representação gráfica.” (CASTRO: 2001, p.117). Mais que isto, uma realidade dada, penetra de maneira furtiva aqui a noção de que a realidade seria também imutável. Ou seja, caberia ao analista a tarefa de representá-la. Portanto, a Geografia ao tomar emprestada a noção cartográfica de escala responde a uma visão de espaço geométrico, como um dado a ser apreendido. É interessante observar, como o faz o historiador Bernard Lepetit (1998, p.90) que: “Por trás da operação cartográfica figura um realismo. A escala do geógrafo associa um representante, o mapa, e um referente, o território cuja configuração está dada e precede a operação intelectual que é a realização do mapa”.

Porém, em que pese a riqueza da análise deste historiador que lança mão desta discussão de maneira singular e fecunda para enfrentar o debate historiográfico que se estabelece entre a micro e macro história (debate este que toma conta desta ciência na década dos 80), não há como simplificar o debate da escala no seio da Geografia às contribuições da cartografia. Na verdade, e o próprio Lepetit reconhece, se é certo que a escala nos remete ao debate da cartografia, remete também ao debate sobre os

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“fenômenos” e suas organizações espaciais, ou seja, à compreensão sobre a estruturação do mundo e à complexidade do social. Nesta perspectiva, o debate tem dado conta de que mudando a escala, mudamos também a ótica e o nível da informação. Ou seja, cada processo social deve ser analisado segundo sua própria escala e esta deve ser selecionada de maneira coerente ao objeto a ser estudado. Castro (2001), ao rever alguns geógrafos que se lançaram neste debate (Lacoste, Grataloup, dentre outros), reconhece que paulatinamente a Geografia vem tentando se debruçar sobre a questão e que pouco a pouco novos aportes têm sugerido que, mais do que uma noção, a escala deve receber um tratamento conceitual específico na Geografia. As interrogações colocadas, de maneira a encaminhar o debate, poderiam ser assim sumariadas: os fenômenos, processos e estruturas mudam se mudamos a ótica e/ou nível de informação? Para cada processo existiria uma e apenas uma escala de análise possível? Ou, pelo contrário, seria possível apreender o mesmo processo segundo diversas escalas? As disjuntivas acima são epistemológicas e metodológicas e dizem respeito ao como conhecer a realidade, se esta realidade está previamente organizada em relação ao ato de apreendê-la ou se a organização é conferida pelo ato de pensá-la. 3. A Escala como Conceito Geográfico Exploremos um pouco mais este caminho. Se a cada processo corresponde uma escala específica de análise para sua apreensão, novas questões se colocam: como conciliar o caráter discreto das escalas (apreendidas aqui como fronteiras) à continuidade fundamental e concreta do mundo real? Como ter certeza da existência de um processo, se não temos antes a certeza de que escolhemos a escala correta que fornece sua interpretação ou representação? Como a variação da escala pode dar conta da complexidade do real, que é uno e contínuo? As respostas a estas questões somente podem ser dadas se escaparmos de um debate que reduz as escalas a proporções (às medidas, do verbete iluminista, plenas de conteúdos geométricos e aritméticos), pensando as escalas como oposições, como fronteiras, como conceito que define os limites de cada processo social. Devemos então nos lançar na discussão da escala como relação, ou melhor, como correlação entre o que é e o que não o é, pois a representação do mapa, enquanto representação é uma abstração de algo. Tal relação, segundo Castro (2001) envolve basicamente quatro elementos: o referente, a percepção, a concepção e a representação. O referente trata do sujeito, o olhar não neutro de quem investiga a

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realidade e a fragmenta para compreendê-la. A percepção aparece como primeira mediação entre o conhecimento e a realidade. A concepção, tomada aqui como entendimento, como decodificação e, portanto, conhecimento. E, por fim, a representação entendida como maneira específica de apreensão da realidade. Não é nossa intenção aqui problematizar esta concepção da realidade como representação. Basta-nos, neste momento, apontar que submetida ao jogo das representações, a escala se transforma em estratégia de revelar ou ocultar determinadas facetas somente apreensíveis a partir da escolha deliberada do sujeito cognoscente. Por fim, e antes de prosseguirmos na elaboração conceitual da escala geográfica, vale lembrar que esta é “... artifício analítico que dá visibilidade ao real” (CASTRO: 2001, p.133), isto é, frente a complexidade do espaço, produto e produtor de relações entre os homens, a escala confere sentido aos fenômenos, além de se constituir em si mesma um objeto de análise.

3.1. A escala geográfica no pensamento de Neil Smith Mais recentemente, a maior parte dos autores que discutem e se utilizam da escala geográfica em suas análises remetem o início desta problematização à obra de Neil Smith, publicada originalmente em 1984: “Desenvolvimento desigual. Natureza, capital e a produção do espaço”. Retornemos a esta obra para situarmos de que maneira a discussão das escalas aí comparecem. O fio condutor do livro de Smith é a discussão da Geografia do capitalismo e para isto constrói uma teoria do desenvolvimento desigual. Este, por sua vez, é a maneira própria através da qual o capital produz o espaço e para tanto não há como repetir a fórmula de que o espaço é simplesmente o palco onde se desenrolam as atividades humanas, isto é, tomando o espaço como separado da sociedade. Também seria claramente insuficiente para Smith tratar o desenvolvimento desigual de uma forma a-histórica, como se sempre, todo e qualquer desenvolvimento fosse desigual ou com o princípio de que ‘... tudo se desenvolve desigualmente’. A questão, situada historicamente é a seguinte: o modo de produção capitalista tem, em seu centro, a produção do espaço de uma maneira específica e necessária à sua própria dinâmica, expressando geograficamente suas contradições mais fundamentais: entre valor de uso e valor de troca, entre sociedade e natureza, entre se fixar para concretamente produzir e se mobilizar para circular, como valor abstrato. É em busca da unidade destas contradições que parte Smith para construir

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uma teoria do desenvolvimento onde o espaço é introjetado na análise do capital. Mas o próprio autor alerta já no prefácio a edição brasileira (de 1988) que: “O nível de abstração nesse trabalho expõe tanto o entusiasmo como as frustrações. O entusiasmo advém das perspectivas emocionantes sobre o amálgama das paisagens sociais, políticas e geográficas expostas à visão profunda composta pelas abstrações abrangentes invocadas em uma teoria do desenvolvimento desigual. A frustração baseia-se no fato de que essa teoria do desenvolvimento desigual necessariamente se restringe a uma escala geral de análise. Colocando diferentemente, tentei desenvolver conceitos e uma estrutura para análise que nos levariam a ver o ‘grande cenário’.” (Smith: 1988 p.11).

Tal constatação já nos permite afirmar que se o autor nos alerta para sua escala geral de análise, ou para o “grande cenário”, existe no mínimo uma escala específica de análise, ou “pequenos cenários”, nos quais a produção do espaço se dá pelo capital. Ou, utilizando de suas palavras: “Uma teoria do desenvolvimento desigual deve integrar o processo espacial e social em vários níveis... (...). Pois o capital não somente produz o espaço em geral, mas também produz as reais escalas espaciais que dão ao desenvolvimento desigual a sua coerência” (Smith: 1988 p.19).

As escalas deixam de ser uma noção cartográfica ou um conceito operacional que dá conta dos limites entre espaços diferenciados e fragmentados (como em um mosaico) e passa a ser um conceito integrado a uma teoria (a do desenvolvimento desigual) que procura dar coerência à produção do espaço em diferentes níveis, entendendo-o sempre como espaço organizado e hierarquizado. Ou seja, a dinâmica do capital cria um espaço-economia cada vez mais integrado e organizado e esta integração e organização só pode ser compreendida através das escalas geográficas. As escalas são assim, produtos do capital, instâncias de concretização e de negação de seus movimentos internos. São diferenciações do espaço produzidas e necessárias ao capital para superar momentaneamente suas contradições. Para Smith, as escalas seriam hierarquizadas e estariam “... contidas na estrutura do capital”, integrando os diferentes processos de produção e de circulação do capital. Por isto mesmo, não seriam fixas, mas mudariam dinamicamente à medida que se alterariam as próprias condições de produção e circulação. Resumindo, as escalas geográficas aparecem aqui simultaneamente como conceito e como realidade produzida pelo capital. Como conceito, a escala

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geográfica nada mais é que a apreenção das contradições geográficas do capital em seu movimento. Como realidade produzida, as escalas expressam a diferenciação do espaço geográfico, que nada mais é que a diferenciação social produzida pelo capital. 3.2. Uma teoria das escalas geográficas? Em outro momento de sua produção, Neil Smith procura avançar na construção da escala geográfica. Tomemos agora um texto publicado originalmente em 1997 (Contours of a spatialized politics: Homeless vehicles and the production of geographical scale”(Revista American Studies, Kansas, Universidade do Kansas, 55-81) e traduzido no Brasil em 2000 (Smith, 2000). Neste texto, a propósito de analisar a experiência da construção de um veículo para os sem teto de Nova York, na década de 80, o autor aponta explicitamente para a necessidade de se elaborar “... uma teoria esquemática da produção da escala” (p.133). Seguindo os passos já apontados no texto anterior, Smith reafirma a escala geográfica como produzida socialmente, rompendo com uma tradição que toma o espaço como algo absoluto ou natural, submetido ao tempo e por isto autoevidente, não problemático. A escala, como produção social, aparece como estratégia de produção da diferenciação espacial, como instrumento teórico para se apreender as diferenças espaciais e como lugar da luta política. Em nossa avaliação, o principal elemento que pré configura um avanço na discussão da escala geográfica é o fato de se ampliar sua produção para a esfera da arena política e não apenas, como anteriormente citado, pelo capital. O que temos são processos em suas dimensões escalares e as escalas são produzidas nos processos. Ou como afirma Smith (2000, 143): “A construção da escala não é apenas uma solidificação ou materialização espacial de forças e processos sociais contestados; o corolário também é válido. A escala é um progenitor ativo de processos sociais específicos”.

Ainda, segundo Smith (2000), uma investigação a respeito da produção da escala geográfica deveria considerar quatro elementos: a identidade da escala (aquilo que a diferenciaria de outras escalas); suas diferenças interiores (ou seja, os processos que constituem como tal); as fronteiras com outras escalas (na medida em que a diferença pressupõe limites, mesmo que não sejam rígidos e estáticos) e suas articulações com outras escalas (o que confere a possibilidade de pensarmos em uma hierarquia ou em um encaixe entre escalas

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interconectadas). A estes quatro elementos, outros poderão/deverão ser desenvolvidos, como por exemplo, os saltos escalares ou mesmo as aproximações escalares que, fugindo ao escopo deste trabalho aprofundam tais conceituações e, ambos, poderiam estar se referindo as certas particulares de articulações entre escalas. 4. À guisa de considerações finais: A Teoria Políticas das Escalas. Finalizando, faz-se necessário afirmar que tais contribuições apontam para uma teoria da política das escalas, seja enquanto recurso analítico, ou enquanto recurso para a ação. Como indica Vainer (1995) sendo o espaço não apenas um resultado da reprodução da vida social, mas também ele mesmo um pressuposto para tal reprodução, as escalas são também produtoras de relações de poder. Portanto: “... as escalas não estão dadas, mas são, elas mesmas, objeto de confronto, como também é objeto de confronto a definição das escalas prioritárias onde os embates centrais se darão.” (VAINER; 1995, 146)

O domínio da escala da ação de cada sujeito, em suas estratégias espaciais, coloca em discussão o poder e a política de sua definição. Os grupos sociais em suas assimétricas relações sociais, econômicas, culturais etc. disputam não apenas a possibilidade de dominar as escalas, mas também a definição das escalas mais adequadas a sua ação, incluindo-se, aí, a possibilidade de articular escalas. As anotações feitas até o momento, indicam que a escala geográfica admite, assim, um estatuto teórico próprio como um objeto sobre o qual devemos nos debruçar. Uma teoria da escala geográfica seria assim uma teoria da estruturação do espaço, onde as diferenças espaciais poderiam ser apreendidas como resultados de disputas e de relações de poder; deveria atentar para os diferentes níveis de abstração que cada escala comporta; poderia sistematizar âmbitos ainda pouco explorados da vida social e explicitar as articulações uni ou pluriescalares de diferentes grupos sociais.

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Recebido para publicação dia 30 de Novembro de 2007 Aceito para publicação dia 13 de Fevereiro de 2008

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POSSIBILIDADES EPSTEMOLÓGICAS E PEDAGÓGICAS DA GEOGRAFIA HUMANA EM SEU TRONCO HUMANÍSTICOCULTURAL EPISTEMOLOGICAL AND PEDAGOGICAL POSSIBILITIES OF HUMAN GEOGRAPHY IN ITS HUMANISTIC AND CULTURAL TRUNK LAS POSSIBILIDADES EPISTEMOLÓGICAS Y PEDAGÓGICAS DE LA GEOGRAFIA HUMANA EM SU TRONCO HUMANISTICO-CULTURAL

MARCOS ANTONIO CORREIA Professor do Departamento de Geografia da FAFI-PR Discente do Programa de Mestrado/Doutorado da UFPR E-mail: [email protected]

T erra Livre

Resumo: As possibilidades epistemológicas e pedagógicas da geografia cultural humanista revelam ações fenomenológicas como instrumento na elaboração e disseminação do conhecimento humano em sua ordem científica. Para esse intento, posicionam-se, de forma sucinta, os saberes epistemológicos da ciência em geral e da geografia em particular, em sua contemporaneidade. Com isso pontua-se a necessidade de adaptação do projeto humano em ambiente epistêmico e pedagógico, ressaltando que o positivismo, assim como o mecanicismo que formou uma alma-racional e um corpo-mecânico devem contar também com os sentimentos mais puros da alma humana. O artigo ressalta que a geografia, pela sua estrutura epistêmica, dentro do humanismo, pode sustentar instrumentalmente, mediante descrição subjetiva, em contexto situacional e intencional, devidamente suspenso, as elucubrações idiossincráticas, ônticas e dialógicas do ser humano. O artigo busca refletir as mudanças socioculturais e científicas e as adaptações que a geografia fenomenológica, seu método e seu caráter pedagógico podem oferecer ao desenvolvimento humano. Palavras-chave: Epistemologia, Geografia Humanista, Fenomenologia, Pedagogia. Abstract: The epistemological and geographical possibilities of the humanist and cultural Geography reveals phenomenological as a tool in the preparation and dissemination and spreading of the human knowledge in its scientific order. To this intent, stand up, briefly, the epistemological knowledge of science in general and in particular geography, in its contemporaneity. With all these, is shown the need of adaptation of the positivism, as well as the mechanism which formed one rational soul and one mechanic body, must trust the most pure feelings of the human soul. The article emphasizes that, when well suspended, the Geography by its epistemological structure, inside the humanism, can sustain instrumentally by the subjective description in situational and intentional context the idiosyncratic lucubration, ontological and dialogical of human being. The article searches for the reflection of social-cultural and scientific changes, as much as the adaptations that phenomenological Geography and its methodology and pedagogical characteristic can offer to the human development. Keywords: Epistemology, Geography Humanist, Phenomenology, Pedagogy. Resumen: Las posibilidades epistemológicas y geográfica de la humanista y cultural de Geografía revela acciones fenomenológica como na instrumiento en la elaboración y difusión de los conocimientos humanos en su orden científico. Con este propósito, de pie, brevemente, el conocimiento epistemológico de la ciencia en general y, en particular, la geografía, en su contemporaneidad. Con, se muestra la necesidad de adaptación del positivismo, así como el mecanismo que forma un alma racional y Un órgano mecánico, debe confiar en los sentimientos más puros del alma humana. El artículo hace hincapié en que, cuando así suspendido, la Geografía en su estructura epistemológica, en el interior del humanismo, puede sostener instrumentalmente por la descripción subjetiva de la situación y el contexto intencional idiosincrásicas lucubracion, ontológica y dialógica del ser humano. El artículo busca el reflejo de la social-cultural y científico cambios, tanto como las adaptaciones que fenomenológica Geografía y su metodología pedagógica y característica puede ofrecer para el desarrollo humano. Palabras clave: Epistemología, Geografía Humanista, Fenomenología, Pedagogía.

Presid en te Pru d ente

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POSSIBILIDADES EPISTEMOLÓGICAS E PEDAGÓGICAS DA

Introdução A sociedade atual busca alternativas ao seu projeto, que vigora desde o renascimento, marcando a construção da ciência e seu respectivo espírito científico, o qual direciona e sustenta o desenvolvimento da sociedade moderna até o presente momento. Uma nova realidade se apresenta no horizonte dos saberes da humanidade, porém essa nova maneira de ver as coisas não condena a produção humana até o momento, mas sinaliza outras possibilidades a serem consideradas, e introduzidas, como maior aproximação do ser humano de sua essência ôntica, envolvido por elementos físicos e naturais que lhe atribuem sentido de existência. Isso pode mudar a elaboração dos saberes, principalmente, em seu caráter científico, pois evidencia o particular, o subjetivo, o intersubjetivo, o estético, a arte, o holístico, o único, o sagrado e várias outras facetas humanas não contempladas no conhecimento científico moderno. O artigo busca refletir essas mudanças no projeto humano, assim como vislumbrar a possível integração da ciência geográfica, em sua vertente cultural humanista, no tocante a elaboração epistêmico-metodológica, nesta nova fase do processo de reavaliação e reconstrução dos feitos do homem durante sua estada no mundo, assim como suas novas investidas no universo ou nos vários universos, como pensam alguns. Nesse sentido, a geografia como saber sistematizado e estruturado, abordando conceitos da natureza e do homem, poderá contribuir nessa empreitada, principalmente seguindo opção fenomenológica, pois ela resgata o ser humano como ponto de partida e como ponto de chegada na edificação e disseminação do conhecimento, partindo-se do emocional e do criativo, indicando, assim, possibilidades mais seguras e condizentes ao ser humano na procura de sua plenitude. Na busca de uma estrutura sintética para o artigo que trata das possibilidades epistemológicas e pedagógicas da geografia humana em sua configuração cultural humanista de feição fenomenológica, optou-se por seguir pensamentos de estudiosos, filósofos e geógrafos como: Gomes (1996), Capra (1982), Demangeon (1985), Claval (1997), Holzer (1997), Tuan (1980 e1983), Buttimer e Lowenthal, In Christofoletti (1985) e outros, numa primeira parte, subdividida em duas outras que tratam do posicionamento epistemológico dos saberes na atualidade e da situação epistemológica da geografia humana no redimensionamento dos saberes e, na seqüência, a última parte aborda, sucintamente, a possibilidade teórico-pedagógica da utilização da fenomenologia na geografia cultural humanista. Nessa última parte, observaram-se principalmente as reflexões realizadas por: Bachelard (1996), Bakhtin (2000), Galeffi, (1986), Bicudo (1999), Husserl (2001) e (Coelho, 1999), os quais com suas idéias sustentam o artigo. Sendo assim, é fundamental assinalar o posicionamento dos saberes na atualidade e a situação da geografia na contemporaneidade, pois esses atuam como antecedentes no conjunto das idéias básicas deste texto, o qual busca identificar a forma

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de condução epistêmica da geografia, nos períodos denominados modernidade e a pósmodernidade1 , assim como refletir a alteração do projeto da sociedade atual em relação aos saberes produzidos, e a interligação existente entre o homem e o espaço. Pois o universo é visto como um todo harmonioso e a consciência sobre isso é muito importante para as próximas ações da humanidade. Nesse mesmo foco, destaca-se a geografia como uma disciplina que pode contribuir na combinação da ciência com o espírito humano criativo. Para tanto, faz menção a Demangeon e Claval, quando eles se referem à geografia humana e à geografia cultural respectivamente, as quais tem incumbências antropológicas e socias, na elaboração dos saberes. A seguir vários estudiosos, já mencionados, destacam a fenomenologia, que não condena radicalmente o cartesianismo e o positivismo, mas aproxima-se dos ideais pósmodernos, abrindo caminho ao desmembramento de outras teorizações e categorias na ciência geográfica, como: lugar e espaço vivido, estudados por meio da percepção fenomenológica do espaço geográfico. Já, quando se traz à baila a pedagogia, principalmente numa visão fenomenológica dentro da geografia, procura-se identificar formas de se apropriar do conhecimento geográfico e, ao mesmo tempo, disseminá-lo por meio da educação. Nesse momento fazse menção à geografia escolar, a qual o processo de ensino-aprendizagem, poderá incluir elementos fundamentais ao próprio conhecimento como: a emoção, o subjetivo e o intersubjetivo. Sugere-se assim, a introdução desses elementos fenomenológicos no que diz respeito, principalmente, à educação formal na qual a geografia se insere. Essas novas manifestações dos saberes no presente momento da sociedade sugerem a possibilidade de união entre racional e emocional, pois tanto a natureza intelectual como a criativa, a opinativa e imaginária, através da subjetividade, podem renovar a produção dos saberes, por sua vez, dinamizando também, o conhecimento geográfico e posterior disseminação do mesmo. A geografia escolar para experimentar as abordagens sugeridas, no que diz respeito a utilização de conteúdo emocional, no processo ensino-aprendizagem, poderá se servir, epistemologicamente, da descrição subjetiva de gênese husserliana e merleau-pontyana.2 Pois a descrição – instrumento metodológico recorrente na produção da ciência geográfica — dos elementos da natureza, assim como as realizações humanas em seus determinados espaços sempre se constituíram em formas epistemológicas imprescindíveis à elaboração da ciência geográfica. Por outro lado, no campo educacional, algumas intervenções teóricas podem oferecer aporte às atividades pedagógicas, que por sua vez podem ser aplicadas no ensino de geografia, como os trabalhos de Wallon, destacando a emoção na 1 De acordo com o Dicionário de Filosofia de Japiassu e Marcondes, o termo modernidade exalta a razão, valorizada a partir do Renascimento e o termo pós-modernidade seria a superação dessa razão alcançada por meio da valorização do sentimento, da arte e da criatividade. 2

Nesse caso a descrição deve ser entendida como forma imanente (partindo do interior do ser) de perceber o objeto e eventos em si. Para a geografia esta forma de descrição poderá abrir perspectivas inovadoras, principalmente, em ambiente didático-pedagógico.

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aprendizagem, o estudo da inteligência emocional de Goleman e os estudos das inteligências múltiplas de Gardner. A descrição, independente de sua natureza, evidencia necessariamente o texto, que pode ser manifestado de várias formas. Uma delas estrutura-se em Bakhtin, em que nas ciências humanas e, por conseguinte, na geografia, o uso da linguagem textual e análise do discurso, estão sempre presentes, os quais são captados e estruturados em determinados contextos. No caso da geografia escolar e mesmo da geografia acadêmica3 a descrição clássica, ou convencional (usada como instrumento metodológico na apreensão e elaboração do objeto de estudo da geografia) associada à descrição subjetiva, coloca o indivíduo como ponto de partida e de chegada nos fazeres científico e pedagógico, pois, acredita-se que, o ser sente e percebe seu derredor espacial, compartilhando-o com seus semelhantes. Posicionamento Epistemológico dos Saberes na Atualidade O novo milênio, iniciado no século XXI, apresenta tendência à transição, reestruturação e evidente metamorfose no projeto arquitetado pela sociedade, desde os séculos XV e XVI até o presente momento. Essas mudanças levaram o homem a repensar toda a sua produção nos diversos saberes. A geografia compartilha e pode contribuir nessas alterações no projeto da sociedade, no sentido de repensar e adequar sua estrutura teórico-metodológica às necessidades presentes. A esse respeito (Gomes, l996, p.19-21) diz que o pós-modermo, na visão de alguns estudiosos, inicia-se nos anos setenta do século XX, por meio de uma nova preocupação estética, — presente na ciência, técnica e artes — a qual não deixa de lado o monumentalismo4 , suas respectivas técnicas e materiais consagrados pelo modernismo.5 Entretanto o pós-modernismo, nas palavras de Gomes (1996), exalta o relativismo e a emoção nas manifestações dos saberes, afastando-se assim do universalismo e das generalizações que embasaram e embasam o modernismo, pois estabelece outras formas de legitimidade, diferenciando-se da racionalidade que não valorizou algumas facetas humanas como: o sentimento, a intuição ilativa; a indefinição, a polimorfologia, a polissemia. Esses caminhos fogem das unificações generalizadas e evitam a razão totalizante, promovendo a transposição do moderno ao pós-moderno. Essas novas concepções estéticas passam pelos diversos saberes modificando as

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Voltada à pesquisa buscando a elaboração do conhecimento geográfico. Diferente da geografia escolar que se concentra, prioritariamente, na disseminação dos conhecimentos geográficos. 4 O monumentalismo, em Gomes (1996), refere-se a estética e a criatividade da arquitetura moderna que sofreu grandes modificações, mas não deixou de usar as técnicas e os materiais do modernismo. 5 Nos relatos de Gomes (1996), o modernismo está ligado a racionalidade, universalidade e generalizações. Esse, tem seu momento derradeiro no monumentalismo, que renova a estética — de início na arquitetura, depois em outras áreas — e traz à tona o relativismo, próprio do pós-modernismo.

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estruturas teóricas e metodológicas das mesmas. Nesse sentido (Gomes, 1996 p.21-23), diz essas concepções inauguram visões diferenciadas de espaço e tempo, tornando-se relativas e mutáveis, constituindo-se em renovadas “Unidades Fenomenológicas”, mais perceptíveis nas manifestações artísticas. Já nos saberes científicos, isto não ocorre com tanta visibilidade, ao mesmo tempo em que avança de forma mais lenta, no entanto não menos efetiva. Na ciência, a iniciativa mais evidente é a da teoria anarquista de Feyerabend, dizendo que os instrumentos metodológicos convencionais são inconsistentes e a hegemonia da razão e o mito equiparam-se na sua condição epistemológica, valorizando o particular e o único, advindo do sujeito e seu mundo. Por outro lado, (Capra 1982, p.14-23), diz que, atualmente o mundo apresenta conexão entre fenômenos naturais, sociais e psicológico, interligado e interdependentes. Sendo assim, as elaborações sistêmicas e cartesianas não estão dando conta de satisfazer o equilíbrio individual e social. Pois nas últimas décadas é estabelecida uma condição de profunda crise mundial, afetando todos os segmentos da sociedade, delineando crises das mais profundas, interferindo nas manifestações morais, intelectuais e espirituais do ser humano, inclusive desencadeando perspectivas iminentes e realísticas de extinção do gênero humano e dos demais seres vivos do planeta. Na tentativa de situar essas mudanças paradigmáticas, é importante assinalar que, a institucionalização da razão efetivou-se no último quartel do século XVII e, segundo (Gomes, 1996, p.25-26), o conhecimento científico seguindo princípios e modelos galileanos evocou o racional e a generalização na organização e elaboração dos saberes, constituindose como único caminho para se chegar à conquista do modelo moderno de ciência, firmandose em via válida ao conhecimento humano, no período chamado modernismo. Por outro lado, nesse tempo, ocorreram manifestações diferenciadas as quais não tiveram guarida. Hoje, porém, ocorrem oposições a essa superestrutura de conhecimento, por meio de posições anarquistas, místicas e outras, caracterizadas como “Contracorrentes”,6 contestando o poder da razão, do espírito científico e a hegemonia da estrutura dos saberes ora institucionalizadas. No que concerne ao pensamento de (Capra, 1999, p.35-37), a razão e a intuição são maneiras indissociáveis no funcionamento do cérebro humano. A primeira é concentrada, analítica e linear. Já, a intuição parte da realidade, do vivido, do nãopensamento, privilegiando a percepção consciente. A cisão entre matéria e espírito, levou a um pensamento mecanicista, reduzindo e separando os elementos, assim como seccionando a natureza. Essa mesma cisão estende-se aos organismos vivos, caracterizados como máquinas formadas por peças disjuntas. Isso ainda ocorre na estrutura básica da maior parte das ciências, exercendo grande influência em nossa vida, provocando, também, separação das disciplinas acadêmicas, assim como visões fragmentadas de política de governo e de entidades responsáveis pelo meio ambiente. 6 As “contracorrentes” sugerem áreas dos saberes como: filosofia da natureza, romantismo, hermenêutica e fenomenologia, como teorias importantes nas elaborações epistemológicas e metodológicas aplicáveis aos conhecimentos geográficos.

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Como reflete (Capra, 1982, p.44), a maior parte dos ramos científicos seguem os princípios da física clássica, aceitando o reducionismo e o mecanicismo dessa ciência. Mesmo os economistas, psicólogos e sociólogos acabam aderindo, quase naturalmente à física newtoniana, na tentativa de tornar científicas suas respectivas teorias. Mas no último século a visão mecanicista da física passa por grandes modificações, pois, sustenta a existência de estrutura orgânica e ecológica, aproximando-se do holismo e de certo misticismo. O universo é visto como um todo harmonioso e indissociável, promovendo ligações dinâmicas e complexas, unindo todos os objetos, elementos e fenômenos que se interconectam ao ser humano e sua consciência essencial. Na realidade retomam-se alguns conceitos de alguns pensadores, como diz (Capra, 1999, p.53-54), que antigamente conceituavam a Terra como mãe nutriente. Esse conceito sofre alterações nos relatos de Bacon, desintegrando-se por completo na revolução científica, que optou pela concepção do mundo como máquina, em detrimento de idéias orgânicas. Esse enfoque foi de grande importância para o assentamento da sociedade moderna ocidental, arquitetada por dois personagens: Descartes e Newton. O primeiro, com sua conhecida premissa, “Cogito, Ergo Sum”, “Penso Logo Existo”, deduz que a essência humana está no pensamento e que o conhecimento correto é adquirido pela intuição e dedução, caracterizando-se em instrumentos imprescindíveis à edificação do pensamento e conhecimento humano. Seguindo o pensamento capreano (1999, p.56-58), o universo material para Descartes constituía-se, simplesmente, em uma máquina, desprovida de espiritualidade ou vida, funcionando por meio de leis mecânicas explicadas por intermédio dos movimentos de suas partes. Com esse pensamento mecanicista, ele tenta constituir parâmetros para uma completa ciência natural, estendendo essa concepção aos organismos vivos. Plantas e animais são considerados máquinas e o ser humano, possuidor de alma racional, ligada ao corpo pela glândula pineal, e tido como animal-máquina. Newton praticamente continua o pensamento de Descartes, concretizando seu projeto, matematizando a concepção mecanicista da natureza, sintetizando, inclusive, além de Descartes, as obras de Copérnico, Kepler; Bacon e Galileu. Situação Epistemológica da Geografia Humana na Contemporaneidade Os instrumentos teórico-metodológicos são difusos e insuficientes para se fazer uma avaliação analítica das perspectivas epistemológicas, filosóficas, técnicas e científicas da sociedade atual. Devido a isso, o que se percebe é um grande hiato transitivo no projeto humano contemporâneo, pois, como anuncia (Capra, 1982, p.77), a probabilidade e o aspecto dual da matéria acabam com a clássica noção de objetos sólidos, que, em seu nível subatômico, podem ser dissolvidos em ondas padronizadas de probabilidades, promovendo as interconexões entre as “coisas”, em sua construção subatômica. Isso se insere na teoria quântica, no caso das interconexões. Por outro lado, Einstein não aceitava

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a constituição de conexões não-locais e a essência fundamental da probabilidade, o que não o afastou do cartesianismo. A geografia humana clássica insere-se na estrutura geral da ciência, desenvolvendose, como indica (Demangeon, 1985, p.49), a partir do quarto quartel do século XVIII, assentada nos modos de vida dos seres humanos na litosfera terrestre e sua forma de grupamentos. Materializa seu estudo mediante descrição simples e direta, relatando o viver cotidiano e diferentes maneiras de ser dos povos. Esses relatos subsidiavam os viajantes em suas incursões, pois eram narrações românticas, despertando a imaginação em seus observadores. Seus recortes enumeravam lugares em vários aspectos, desde distâncias, informações econômicas, históricas, arqueológicas, estatísticas e outras. Sem entrar no mérito da geografia clássica, diz-se que ela é a base da geografia humanista, pois ela retira seus conceitos de teorias advindas da física, biologia e sociologia e fundamenta-se na ciência de tradição moderna. Nesse viés pode-se lembrar as palavras de (Claval, 1997, p.89-90), que ressaltam as manifestações humanas na Terra, associandoas a geografia cultural, relacionando os elementos da natureza e do ambiente com as produções humanas, de acordo com seus gostos e sentimentos, respondendo às suas necessidades e aspirações, em busca de realização. Há também os pensamentos de Eric Dardel, que foi o primeiro a destacar e batalhar pela concepção legitimamente humana da geografia, as quais levaram cerca de vinte anos até seu reconhecimento. Essa geografia humana sublinha o social e o cultural: como já evidenciado por Vidal de La Blache, por meio dos gêneros de vida, destacando sua dimensão cultural. Como diz Paul Claval (1997, p.55), a geografia cultural, sofre renovação a partir dos anos setenta, juntamente com o conjunto das ciências. Ela toma corpo, em várias instâncias, da mesma maneira: os lugares são diversos e não possuem as mesmas características, formas e cores, assim como uma funcionalidade racional e econômica. As pessoas que os habitam e os freqüentam estão ligadas por sentimentos e emoções em relação a eles. Nesse aspecto os pesquisadores que estudam as percepções do espaço, espaço vivido e meio ambiente, aproximam-se de outros estudiosos, principalmente de psicólogos, tornando os estudos mais proveitosos. Mesmo o romance pode transformarse em documento: a intuição do romancista nos ajuda a perceber o espaço pelas emoções das personagens. A cultura só existe através dos indivíduos aos quais é transferida, e que, por sua vez, a utilizam, a enriquecem, a transformam e a difundem. A cultura é indispensável ao indivíduo no plano de sua existência material. Ela permite sua inserção no tecido social. Dá uma significação à sua existência e à dos seres que a circundam e formam a sociedade da qual se sente membro. Ela não desempenha o mesmo papel nos diversos momentos da vida. (Claval, 1999, p.89). A imaginação leva o espírito além do alcance da vista: o viajante antecipa o que descobrirá, assim que a linha do horizonte for ultrapassada. A criança

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amante dos mapas e dos selos habita os países construídos por sua fantasia. O crente aspira à felicidade eterna do paraíso, evita a prova do purgatório e teme o castigo definitivo do inferno. O espaço freqüentado pelos homens não se limita jamais àquele revelado pela observação. (Claval, 1999, p.140).

A geografia humanista, já revisada por alguns autores no que concerne, principalmente, à geografia cultural, propõe a emergência do indivíduo, sua intenção, vontade, sentimento e emoção em relação a sua subjacência pessoal e interpessoal, montada na intencionalidade7 do vivido, percebido por ele, consubstancializando-se em objeto e sujeito do fenômeno em questão, como já prevera Husserl e como declara (Holzer, 1997, p.17). Após trazer as idéias de vários geógrafos humanistas e simpatizantes da fenomenologia, Holzer diz que, esse caminho coaduna-se com o pós-modernismo, pois alarga e, em alguns momentos, foge do cartesianismo e do positivismo, ao mesmo tempo em que não ressalta, nem coteja tanto o sujeito ou o objeto, mas vasculham métodos alternativos, valorizando o ser e sua espacialidade humanizada, sintonizando-se com a produção cultural e o momento relacional do indivíduo, seu corpo, sensação e percepção com o seu ambiente de vivência. A geografia humanista, nas palavras de (Tuan, 1985, p.159-160), relata que ela exerce papel fundamental para o conhecimento científico, pois pode revelar materiais que o cientista, concentrado em sua própria estrutura conceitual, pode estar insensível ao seu derredor. Esse material contempla a natureza e a totalidade das experiências e reflexões humanas, assim como, determina “a qualidade e a intensidade de uma emoção, ambivalência e a ambigüidade dos valores e atitudes, a natureza e o poder do símbolo e as características dos eventos, das intenções e das aspirações humanas”. Para (Buttimer, 1985, p.192-93), o método fenomenológico na geografia humanista pode unir o objetivismo ao subjetivismo, mesmo sobre as críticas mais ferrenhas advindas de outras áreas do conhecimento, mesmo de alguns setores da própria geografia. Por outro lado, esse método amplia os caminhos pretendidos pela geografia. Pois já está na hora de quebrar com a atitude conservadora da prática intelectual ocidental em relação ao conhecimento científico. Por isso ela diz que, essas manifestações podem “transcender as barreiras artificiais que nossa herança intelectual ocidental tem colocado entre a mente e o ser, entre o intelectual e o moral, entre a verdade e a bondade, em nossos mundos vividos”. Aproximando-se dessa idéia, observa-se o pensamento de (Lowenthal, 1985, 137), quando relata que todo conhecimento pode ser concomitantemente subjetivo e objetivo, pois os “delineamentos do mundo que são puramente materiais e factuais ordinariamente parecem muito áridos e inanimados para assimilar; somente a cor e o sentido conduzem à verossimilhança”. Atrás dos costumeiros acontecimentos e fatos, necessitamos de experiências inusitadas, de primeira mão, que favoreçam opiniões e preconceitos 7

Conceito central da fenomenologia. Em Husserl ela é manifestada por meio da descrição após se realizar a epoché, ou seja, a suspensão do juízo (o mundo colocado entre parênteses).

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individuais. Cada imagem e idéia sobre o mundo é composta, então, de experiência pessoal, aprendizado, imaginação e memória. Os lugares em que vivemos, aqueles que visitamos e percorremos, os mundos sobre os quais lemos e vemos em trabalhos de arte, e os domínios da imaginação e de cada fantasia contribuem para as nossas imagens da natureza e do homem. Todos os tipos de experiência, desde os mais estreitamente ligados com o nosso mundo diário até aqueles que parecem remotamente distanciados, vêem juntos compor o nosso quadro individual da realidade. A superfície da terra é elaborada para cada pessoa pela refração através de lentes culturais e pessoais, de costume e fantasias. Todos nós somos artistas e arquitetos de paisagens, criando ordem e organizando espaços, tempo e causalidade, de acordo com nossas percepções e predileções. (Lowenthal, 1985, 137).

Percebe-se que a geografia humana, ancorada no social e cultural, busca efetivar sua contribuição no estatuto científico atual. Nesse sentido, apresenta a geografia humanista cultural e a fenomenologia como aportes indicados a esse intento. A abrangência cultural, antropológica e psicológica almejada pela sociedade atual, faz emergir o sujeito e sua individualidade, acompanhada de sua vontade, imaginação, memória, sentimento e emoção. A cultura é imprescindível ao indivíduo no plano de sua existência material e imaterial, bem como a consciência de seu corpo por meio de sensação e percepção, com o seu ambiente de vivência pois o espaço freqüentado pelos homens não se limita jamais àquele identificado na observação. De acordo com (Correia, 2006, p. 69), a fenomenologia discute o percebido, o vivido, através do sentido e subjetivamente concebido. Pode-se depreender que estes fundamentos – já identificados por alguns geógrafos humanistas, fenomenológicos e da percepção — podem enriquecer a construção epistemológica e metodológica da geografia, principalmente no que diz respeito a categorias como lugar, espaço vivido e paisagem, dinamizando até outros fundamentos e categorias da ciência geográfica.

Algumas Ações Epistêmico-Pedagógicas da Geografia Humana no Redimensionamento dos Saberes O ser humano é naturalmente um fator de interiorização privilegiado. Parece que o homem pode sentir e conhecer diretamente as propriedades íntimas de seu físico. A obscuridade do eu sinto predomina sobre a clareza do eu vejo. O homem tem consciência de ser, por seu corpo tomado de um vago sentimento, uma substância. (Bachelard, 1996, p. 159).

Segundo (Bachelard, 1996, p.23-24), os educadores de ciências acreditam que o espírito inicia-se com uma aula, pois a educação desconhece a idéia de obstáculo

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pedagógico. Acreditam que é sempre possível reconstituir os procedimentos pela repetição da lição, mesmo ela possuindo conceitos falhos. Não consideram que o jovem já possui algum tipo de conhecimento: portanto não se trata de conseguir uma cultura experimental, mas de alterar a sua cultura, formada pelo seu cotidiano. Mas a cultura científica deveria passar por uma purificação intelectual e afetiva, pois ela é pré-requisito ao avanço do espírito científico, assim como da ciência em geral, fazendo sua mobilização, abertura e dinamicidade. As ciências exatas são uma forma monológica de conhecimento: o intelecto contempla uma coisa e pronuncia-se sobre ela. Há um único sujeito: aquela que pratica o ato de cognição (de contemplação) e fala (pronuncia-se). Diante dele, há a coisa muda. Qualquer objeto do conhecimento (incluindo o homem) pode ser percebido e conhecido a título de coisa. Mas o sujeito como tal não pode ser percebido e estudado a título de coisa porque, como sujeito, não pode, permanecendo sujeito, ficar mudo; conseqüentemente, o conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico. (Bakhtin, 2000, p.403) Tratando das matérias que se deverão ensinar, Kant sustenta ser oportuno que as línguas vivas sejam ministradas pelo uso e pelo léxico mais do que mediante exercício de memória, através de leitura de autores. Ele reputa danosas, em geral, as leituras dos romances: com efeito, julga conveniente começar a instrução com a geografia (...). O ensino científico deve visar, enfim, a converter em saber exato um simples opinar. (Galeffi, 1986, p. 267).

Seguindo os pensamentos bakhtiniano e kantiano em relação à elaboração e disseminação do conhecimento, torna-se pertinente reforçar as idéias de (Bakhtin 2000, p.401-402) em relação às ciências humanas, que oportunamente poderão aproximar-se da geografia humana, que diz: as coisas estão eivadas de sentido e são desveladas pelas palavras ligadas aos fenômenos, que estão submersos no caos das manifestações primárias da existência. Portanto, uma intervenção dos sentidos pode não ser categorizada como científica em sua concepção clássica, mas ela é inerente às coisas e imprescindível ao conhecimento e seu respectivo processo de ensino-aprendizagem. Na estrutura bakhtiniana, o mesmo autor (2000, p.404) reporta-se às ciências humanas, dizendo que elas se aproximam do espírito e das letras, destacando a palavra como condutora na elaboração do conhecimento. O texto surge como método para apreensão e propagação cognitiva, que parte do indivíduo inserido em um contexto. Essa dinâmica leva a outros indivíduos que também produzem seus textos nos mesmos contextos, permitindo permutas cognitivas, portanto promovendo uma dialogicidade analítica, acionada pela comunicação, divulgação e comparação das idéias. Esse cotejamento leva à compreensão e a novos textos e contextos, iluminando o momento do contato deles e promovendo perspectivas animadoras às novas elaborações e compreensões nas relações fenomenais humanas e mundanas. Nesse instante ocorre uma cientificidade diferenciada,

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pois suas formas de compreensão, cognição e consciência científica fazem do mundo um acontecimento inacabado, que sempre deve ser revisto. A geografia humana muito pode contribuir neste contemporâneo status dos saberes científicos, tanto na sua elaboração quanto em sua disseminação. Ela, nesse modelo dialógico, rompe com o anterior, monológico, da ciência clássica, destacando o ser humano na sua existência e toda a sua capacidade de sentir, de se emocionar e criar o seu saber com seu semelhante. O meu eu e o outro fazem parte do mesmo momento, o qual contextualizado e devidamente comunicado por instrumentos, essencial e verdadeiramente humanos, criam na sua interface seus respectivos textos e contextos, que, devidamente cotejados, remodelam e refazem o conhecimento, partindo de suas necessidades individuais, portanto subjetivas e intersubjetivas. Subjacente ao exposto, pode-se sublinhar algumas práticas na ciência geográfica, como: as viagens, observações no campo, caracterização de determinado espaço (região, paisagem, lugar) e outras atividades socioespaciais, envolvendo a percepção espacial. Nesse contexto, pode-se fazer uso da descrição desses fenômenos, não da forma tradicional, — usada como método desde os primórdios da institucionalização da ciência geográfica, até hoje — mas de maneira reformulada, como uma descrição subjetiva de cunho fenomenológico-hermenêutico, para usar a expressão de (Spósito, 2004, p.38-39) que diz: “(...) o método fenomenológico-hermenêutico contém a redução fenomenológica8 e a intencionalidade, indo além do subjetivo através da consciência.” Portanto, dessa forma, as descrições podem e devem transformar-se em criação de conhecimentos geográficos dinamizados e diferenciados, provocando mudanças, excepcionalmente no ensino da geografia . A estrutura epistêmico-metodológica desse conhecimento poderá alicerçar-se na fenomenologia, principalmente husserliana e merlo-pontyniana, pois os acontecimentos e fenômenos geográficos poderão ser determinados intencionalmente, antes de passarem por esse processo. Nesse sentido pode-se dizer: A vida cotidiana, para seus fins variáveis e relativos, pode contentar-se com evidencias e verdades relativas. Já a ciência quer verdades válidas (...) Em conseqüência, do ponto de vista da intenção final, a idéia de ciência e de filosofia implica uma ordem de conhecimentos anteriores em si, relacionados a outros, em si posteriores, e, no final das contas, um começo e um progresso, começo e progresso não fortuitos, mas, ao contrário, fundamentados “na natureza das próprias coisas”. (Husserl, 2001, p. 30). A novidade da fenomenologia não é negar a unidade da experiência mas fundá-la de outra maneira que o racionalismo clássico. Pois os atos objetivantes não são representações. O espaço natural e primordial não é o espaço geométrico e, correlativamente, a unidade da experiência não é garantida por um pensador universal que exporia diante de mim os conteúdos 8

De acordo com o Dicionário de Filosofia de Japiassu e Marcondes, a redução fenomenológica é a concentração da atenção nas coisas mesmas e não nas teorias.

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da experiência e me asseguraria, em relação a eles, toda a ciência e toda a potência. (Merleau-Ponty, 1999, p.394).

De acordo com (Lencioni, 2003, p 149-52), o método fenomenológico husserliano considera os objetos como fenômenos, os quais devem ser analisados como aparecem na consciência, priorizando a percepção, entendendo que as idéias prévias, em relação a natureza dos objetos deve ser abolida. Nesse sentido afirma que o mundo vivido apresenta possibilidade de viver a experiência sensível, ao mesmo tempo pode pensá-lo de forma racional. Contudo acrescenta que, no pensamento merleau-pontyana, o centro da discussão relaciona-se entre natureza e consciência, constituída pela percepção. Ela diz que a geografia fenomenológica apresenta discussão relativa às representações que as pessoas fazem do mundo. Pois, “ao mesmo tempo que o espaço é vivido e percebido de maneira diferente pelos indivíduos, uma das questões decisivas da análise geográfica que se coloca diz respeito às representações que os indivíduos fazem do espaço.”

Possibilidade Teórico-Pedagógica da Utilização da Fenomenologia na Geografia Cultural Humanista Em relação à contribuição da fenomenologia à educação, pode-se dizer que: Como procedimento didático-pedagógico, ela contribui na medida em que o seu fazer é caracterizado pela busca do sentido e pela atribuição de significados, tornando-se um excelente modo de trabalho na realidade escolar. Trabalha com o real tal como ele é vivido no cotidiano, o que significa que não parte de proposições lógicas ou de teorizações sobre o aluno, a escola, a atividade docente e a aprendizagem mais toma alunos e professores no modo como estão em uma escola específica. (...). A fenomenologia se mostra apropriada à educação, pois ela não traz consigo a imposição de uma verdade teórica ou ideológica preestabelecida, mas trabalha no real vivido, buscando a compreensão disso que somos e que fazemos – cada um de nós e todos em conjunto. Buscando sentido e o significado mundano das teorias e das ideologias e das expressões culturais e históricas. (Bicudo, 1999, p.12-3).

De acordo com (Husserl, 2001, p. 37-38), de certa forma, o mundo em uma atitude reflexiva para o ser está sempre ali, ele é notado como antes mediante manifestações ocorridas em cada momento. Mas, em contrapartida, mesmo sabendo que os elementos objetivos e concretos sempre estão presentes, ao se trazer a atitude filosófica, não se compartilha mais a confiabilidade no existencial da experiência natural. Ela não é tida mais como crença válida, mesmo sendo captada de forma empírica. Nesse sentido, eles são considerados “simples fenômenos”, pois, ao que parece, perderam, na transfiguração de seus valores, sua validação. O mundo objetivo invalidado universalmente, ou ao menos

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inibido em suas manifestações, é colocado em suspensão ou entre parênteses, para que possa ser observado de forma diferenciada na busca da apreensão ou percepção do manifestado. Essa configuração mundana existe para mim em dimensão espacial e temporal, portanto experenciada, percebida, pensada, julgada e desejada (por mim e pelo outro) subjetivamente. Como diz Edmund Husserl (2001, p.44), é por meio da fenomenologia que subtraio meu eu humano natural e minha condição psíquica – abrangência interna —, meu âmbito transcendental e fenomenológico. Todo o meu existir constrói-se no mundo objetivo, existente em mim, o qual parte de mim, sai e volta para mim, valorizando meu sentimento existencial revelado pela fenomenologia transcendental. Nesse sentido é bom dizer: o mundano e seus elementos naturais, não o meu ser na realidade, assim como o eu reduzido, não é fração do mundo. Portanto nossas experiências, representações, idéias, juízo de valor e atitudes, é que dão e direcionam nossa relação com o mundo, promovendo a transcendência que é inerente ao mundano, ainda que não possa ser redimensionado por nós mesmos. De acordo com (Bicudo, 1999, p.39-40) — inspirado por Husserl – existe uma conexão indissolúvel entre as pessoas e seus mundos, os quais se substanciam no temporal e no mundano. Cada homem se projeta no seu cotidiano como uma psique envolvida por psiques, que se relacionam e se equalizam entre si. Portanto a realidade psíquica é assentada na intersubjetividade. A redução vai ao encontro da intersubjetividade, onde acontece intercâmbio entre pessoas e suas apreensões em nível mais elevados, cindidas pelo espírito em sua seara natural e/ou cultural. Nesse caminho o ego é elaborado e constitui o outro. Outras culturas são colocadas em oposição ao mundo familiar e sociocultural do indivíduo. Isso determina relação peculiar entre o mundo físico e muitos mundos culturais, que são compreendidos por meio da própria cultura de cada um e sua relação com os mundos estranhos. Segundo (Coelho, 1999, p.89), é pela imaginação que o ser humano exprime sua liberdade e diminui os determinismos do mundo. Assim como a educação, sendo uma atividade intencional, oferece várias possibilidades, no ensino-aprendizagem, à humanidade. Mas para tanto ela teria que oferecer outras abordagens pedagógicas, além das praticadas até o presente momento, como: a intelectual, apreensões lógico-matemáticas e linguagem verbal. Seria adequado, além destas últimas, outras como: música, literatura, artes, poesia, informática, filosofia e outras, pois auxiliam a ver e a ouvir a natureza, o mundo, o outro, a sociedade, o próprio aluno, seu professor e tudo o que os envolve. Ao afirmar a intencionalidade como estrutura fundamental de toda consciência, a fenomenologia contesta a naturalização da consciência, das idéias e dos processos sócio-históricos. Recupera a especificidade da consciência frente ao mundo dos objetos e das ciências sociais e humanas e, portanto, das ciências da educação, diante das ciências exatas e naturais, recusando a transposição dos conceitos e métodos das ciências da natureza

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para o campo das ciências humanas. (...). Ensina-nos a distinguir o que, na vida pessoal, na existência social e na educação, é de fato significativo. Recupera a natureza e a identidade do real, do psíquico, da existência e do fazer humanos, da educação, da escola, das teorias e da prática, do saber, do ensinar, do aprender, do tempo próprio da pesquisa, do ensino e da aprendizagem, “des-velando” seu verdadeiro sentido. Aliás, a fenomenologia ajuda-nos a compreender a questão do tempo, tão importante na educação, mostrando-nos que, embora real, o tempo da educação, da escola, da pesquisa, do ensino e da aprendizagem segue uma outra lógica, se desenvolve em outro ritmo e com outros fins. Sendo diferente do tempo do mercado, da produtividade, da eficiência e do lucro, não pode a este ser reduzido. (Coelho, p.90-1).

Ainda em (Coelho 1999, p.108-9), não existe ser humano e mundo: existe homemno-mundo. Haja vista sua capacidade de adaptação ao mundo em que ele se faz presente, e que o modifica e pode ser modificado por ele. Sendo assim, nessa interação homem/ mundo, a ciência não pode partir precipuamente de objetos aprioristicamente dados. Mas são percebidos em íntima relação, em que se abandona questão da neutralidade científica. O mundo não é algo acabado, determinado. Portanto é percebido em determinados momentos por algumas pessoas, em determinados lugares. Devido a isso pode-se argumentar que a captação do indivíduo é subjetiva, mas as compreensões são intersubjetivas, mediadas na relação homem/mundo, por componentes históricos, pela cultura, pela linguagem, movidos pela afetividade, entendimento/interpretação e comunicação. Apanhado pelas coisas, o ser humano manifesta seu íntimo ontológico, entende-as e analisa-as para comunicá-las e compartilhá-las com pessoas que estejam na mesma situação. Mediante o exposto, percebe-se que as necessidades epistêmico-metodológicas da geografia cultural humanista poderiam acompanhar os métodos, ou como preferem alguns, a atitude fenomenológica. Sem falar dela no ensino-aprendizagem e sua contribuição na disseminação dos saberes, principalmente de ordem científica. Essa elaboração da ciência humana e/ou da geografia humana concreta-se sobre a comunicação intra e inter indivíduos e seus respectivos grupos, assentados em ambientes culturais diferenciados, que manifestam situações do cotidiano, vivendo e experienciando cenas intencionalizadas. 9 Nos últimos anos a geografia coaduna-se afinadamente com o novo projeto da humanidade, que coloca, de forma contundente, o homem no centro dos interesses mundanos, até porque, apenas para lembrar, essa ciência está classificada, pela maior parte da academia, como ciência social, que trabalha a organização espacial advinda do humano. Nesse sentido, no contexto fenomenológico, existe uma conexidade imprescindível entre as pessoas e seus mundos. Cada um com seu corpo e sua mente constrói, por meio de suas vivências, mundos imaginários e reais, que se podem fundir 9

No sentido fenomenológico husserliano.

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com a soma e comparações de vivências percebidas por outros em determinado contexto. A geografia, para ser inserida nesta abordagem fenomenológica, teria que realizar alguns ajustes, não em relação ao que estudar, mas em relação ao como estudar. Pois sabendo-se que a natureza, substrato de existência do homem e de suas ações, não deveriam ser previamente teorizadas, pois o mundo objetivo, previamente esquematizado, não oferece subsídios necessários às observações fenomenológicas. Por outro lado, devese voltar às coisas que desencadeiam no humano uma forma de desvelar o fenômeno, mediante apreensões afetivas e intuitivas, proporcionando movimentações qualitativas em determinadas situações. A descrição é outro instrumento metodológico imprescindível para a fenomenologia, assim como para a geografia. Na geografia ela foi importante; em determinada época, talvez pela forma como era feita, foi criticada. Mas se for usada nos moldes fenomenológicos, ela se transforma e adquire nova postura, acreditando-se ser de grande magnitude as elaborações geográficas em sua vertente cultural humanista. Essa forma é de grande importância, pois parte do indivíduo que descreve as coisas e, para tanto, deve estar em contexto que determina um texto, organizado pelas palavras, associadas aos signos e significações, contextualizadas por meio de várias idéias de outros, comunicando suas percepções, divulgando publicamente suas experiências, mediante linguagem desenvolvida culturalmente pelo grupo, que a usa na educação de forma didáticopedagógica, para a apreensão e divulgação dos saberes. Analisando o lado pedagógico e didático da geografia humanista cultural, fica mais fácil de entender e até de justificar a subjetividade em relação ao conhecimento e sua disseminação. Nesse caso pode-se citar as palavras de (Kozel, 2002, p.228), quando diz que para se perceber a subjetividade das pessoas, tem-se que remontar as representações mundanas das mesmas. Portanto as representações tornam-se fundamento das ações, as quais pressupõem conhecimentos e não somente um processo de aprendizagem. A mesma estudiosa, em outro momento, ressalta o papel fundamental dos mapas mentais e das representações na produção dos conhecimentos geográficos e também na geografia enquanto disciplina escolar. Recordando o exposto, a subjetividade e a emoção fazem parte da natureza humana, mas não tiveram muito espaço na produção do conhecimento. Por outro lado, no campo educacional suas colaborações são constantemente solicitadas. Alguns estudos a esse respeito estão sendo realizados, mas ainda são insipientes. Esse texto apresenta algumas idéias que futuramente possam ser inseridas em elaborações mais densas e contundentes na construção teórica e pedagógica, aplicáveis, também, ao ensino de geografia. Sendo assim coloca a idéia oriunda da psicologia genética walloniana, à qual leva a emoção em seu core. Isso está presente nessa colocação: “a emoção é, então, o ponto de partida do psiquismo, (...) afirma que as emoções são a exteriorização da afetividade” (Bastos, 2003, p.48).

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A teoria psicológica walloniana pode ser aplica na educação, pois ela “deve, obrigatoriamente integrar à sua prática e aos seus objetivos, essas duas dimensões, a social e a individual: deve, portanto, atender simultaneamente à formação do indivíduo e à da sociedade” (Galvão, 1999, p.91). Nesse sentido, ela vem de encontro as teorias geográficas, quando se aproximam da linguagem e da questão mental, à saber: A linguagem, ao substituir a coisa, oferece a representação mental o meio de evocar objetos ausentes e de confrontá-los entre si. Os objetos e situações concretos passam a ter equivalentes em imagens e símbolos, podendo, assim, ser operados no plano mental de forma cada vez mais desvinculada da experiência pessoal e imediata. (Galvão, 1999, p.91)

No ensino-aprendizagem, algumas iniciativas podem ser assinaladas, o que ocorre em (Campbell; Campbell; Dickinson, 2000, p.21-4), destacando que cada educando é único e cada indivíduo contribui para o enriquecimento cultural da humanidade. Portanto tem-se que ter cuidado para não reduzir os programas educacionais somente para questões predominantemente de inteligências lingüísticas e lógico-matemáticas. Por outro lado, defensores de outras formas de apreensões cognitivas, destacam a inteligência emocional, como (Goleman, 1995, p.305-7), a qual, mesmo em seu estágio inicial de estudos, pode contribuir, pois destaca que a emoção possui uma lógica que lhe é própria e nesse sentido é muito mais rápida que a mente racional. A mente emocional se utiliza de elementos semiológicos (signos, símbolos e simbologias) para caracterizar determinada realidade. Portando necessita da percepção do indivíduo, impregnada de emoção e sentimentos, isso se apresenta como passo inicial na busca de representações mais complexas e objetivas (a serem usadas nos conhecimentos geográficos.) 10 Já que a mente racional demora mais para registrar e reagir aos fatos do que a mente emocional, o primeiro impulso, em circunstâncias emotivas, não vem da cabeça, mas do coração. Há um outro tipo de reação emocional que não é tão rápido – fervilha e fermenta no pensamento antes de se configurar como sentimento. (...) No processo de resposta rápida, ao contrário, o sentimento precede ou é simultâneo ao pensamento. Essa reação emocional do tipo jogo rápido assume o comando em situação com urgência da sobrevivência primal. (Goleman, 1995, p.305).

Ampliando a questão de teorias educacionais, colocam-se as idéias de (Gardner, 2007) quando de sua entrevista à revista Pátio – Ed. Artes Médicas ressaltando as Múltiplas Inteligências, dizendo que cada indivíduo é singular e em se tratando de inteligências cada um tem a sua e estas são diferenciadas. Ele relata que no caso da educação a teoria das inteligências múltiplas, implica no seguinte: “todos nós temos tipos diferentes de mente, e o bom professor tenta se dirigir à mente de cada criança de forma mais direta e pessoal 10

Grifo nosso — buscando associar essas teorias de ensino-aprendizagem ao ensino de geografia

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possível (...) mais crianças sentem que suas forças pessoais estão sendo reconhecidas”. Gardner (2007), em sua entrevista diz que, a maior dificuldade é conhecer cada educando como ele realmente é; saber o que ele é capaz de fazer e centrar a capacidade nos interesses de cada um deles. Por outro lado, diz que, o professor é um antropólogo que estuda cada aluno cuidadosamente, e um orientador que ajuda o educando a atingir seus próprios objetivos e os objetivos idealizados pela sociedade através da escola. Portando formas criativas e inovadoras devem passar pela educação, subsidiando educadores e educandos renovando, dinamizando e disseminando o processo ensino-aprendizagem. Conclusão O ser humano é um eterno aprendiz; os diversos movimentos que realiza no ato de aprender e a própria consumação da aprendizagem podem, na medida de sua vontade, ambição e sonhos, transformarem-se em ensino, portanto não contrariando o dialogismo ou multilogismo inerentes ao homem. Não se pode excluir desse processo o conhecimento científico que substanciou o projeto da sociedade moderna, até o presente momento. Ocorre que a sociedade, inspirada por sua faceta política, acaba optando pelo racional em detrimento do emocional. Tudo de gênese material ou física prevalece, inclusive na elaboração dos saberes, principalmente de ordem científica. Isso deixa a sociedade manca, e de certa forma engessa algumas partes de seu todo. Isso leva o homem a ser extremamente objetivo, técnico, frio, autômato, “exato” e outras características que o fazem afastar-se de sua essência humana. Portanto o homem perde sua capacidade de imaginar e criar, por meio de seu sentir e segue o caminho de ser e pensar, que o conduziu a grandes avanços em alguns setores do conhecimento, os que serviram pelo menos para parte da humanidade em determinado momento, aos quais hoje já não satisfazem a seus anseios. Inclusive esse modo de vida causa desconforto e insatisfação na maioria dos mais de seis bilhões de pessoas que vivem no planeta, sem falar do desgaste dos elementos naturais nele existentes, que serviram de base para a satisfação das necessidades e também das não necessidades dos habitantes da Terra. Diante do exposto, torna-se visível a necessidade de uma reestruturação dos ideais humanos, partindo-se de uma reeducação de seus saberes e uma revisão de suas capacidades e possibilidades que atendam a essas necessidades, que não são tão novas assim, mas ficam subjugadas e proteladas, como já dito, por parte da sociedade, que talvez não levou em consideração todas a facetas do ser humano na execução de seu projeto de vida. Analisando algumas passagens da geografia humana na ciência como um todo e da geografia cultural humanista, principalmente de cunho fenomenológico, vislumbramse algumas possibilidades, principalmente no viés metodológico e pedagógico, que contemple a sociedade, a ciência e sua produção cultural, pela exaltação da percepção

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fenomenológica, pois esta apresenta alternativas que auxiliam na apreensão e divulgação do conhecimento, principalmente em ordem científica, como é o caso da geografia. Ela respalda-se, como diz (Bicudo, 1999, p.21), na objetividade do mundo natural, e nesse sentido não contrária a filosofia cartesiana e parte como esta, em busca de idéias palpáveis e distintas para em seguida tentar compreender o objeto observado. Nesse sentido, o ponto de partida é determinado pelo indivíduo que busca descrever a parte e a sua totalidade em determinado contexto. Visto que a fenomenologia traz em si uma pedagogia alternativa, parte-se, segundo modelos husserlianos, de uma suspensão intencional e situacional dos eventos, para posterior, se necessária, comparação e construção de formas e visões diferenciadas. Isso acaba se materializando nos conhecimentos geográficos por meio da descrição, inicialmente subjetiva e, na seqüência, intersubjetiva dos seres, em seus mundos e vidas. Contudo se faz pertinente salientar que existe uma intersubjetividade prévia, que de certa forma prescreve e intencionalizam as incursões ao conhecimento, daí a importância da abordagem da geografia cultural humanista e de seu aporte fenomenológico na busca do conhecimento geográfico contemporâneo.

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DEMANGEON, Alber. Uma Definição da Geografia Humana. In: CRISTOFOLETTI, Antonio. Perspectivas da Geografia. 2. ed. Rio Claro SP: Editora Difel, 1985. p. 49-57 GALVÃO, Izabel. Henri Wallon: uma concepção dialética do desenvolvimento infantil. 5ª ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1999. GALEFFI, Romano. A Filosofia de Immanuel Kant. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1986. GARDNER, Howard. Entrevista sobre: Inteligências Múltiplas. Entrevista cedida pela revista Pátio – Editora Artes Médicas. Disponível em: Acesso em: 06 de dezembro de 2007. GASTON, Bachelard. Formação do Espírito Científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. (Trad.) Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 1996. GOLEMAN, Daniel. Inteligência Emocional. (Trad.) Marcos Santarrita. 77ª ed. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1995. GOMES, Paulo César da Costa Gomes; CORRÊA, Roberto Lobato (Org.). Explorações Geográficas: percursos no fim do século. Rio de Janeiro: Editora Bertrand. 1997. p.89-117 GOMES, P. C. da C. Geografia e Modernidade. Rio de Janeiro: Editora Bertrand, 1996. HOLZER, Werther. A geografia humanista: uma revisão. Revista Espaço e Cultura (NEPEC). Rio de Janeiro, n.3, 1997. HUSSERL, Edmund. Meditações cartesianas: introdução à fenomenologia. (Trad.) Frank de Oliveira. São Paulo: Editora Madras, 2001. KOZEL, S. As representações no geográfico. In: MENDNÇA, F.; KOZEL, S. (Org.). Elementos de epistemologia da geografia contemporânea. Curitiba: Contexto, 2002. p. 215-232 LENCIONI, Sandra. Região e Geografia. São Paulo: Editora EDUSP, 2003.

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POSSIBILIDADES EPISTEMOLÓGICAS E PEDAGÓGICAS DA

Recebido para publicação dia 15 de Novembro de 2007 Aceito para publicação dia 01 de Fevereiro de 2008

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IDENTIDADE TERRITORIAL QUILOMBOLA - UMA ABORDAGEM GEOGRÁFICA A PARTIR DA COMUNIDADE CAÇANDOCA

(UBATUBA/SP)*

TERRITORIAL IDENTITY QUILOMBOLA – A GEOGRAPHY BOARDING FROM THE COMUNIDADE CAÇANDOCA (UBATUBA/SP) IDENTIDAD TERRITORIAL QUILOMBOLA - EL SUBIR GEOGRÁFICO DE LA COMUNIDADE CAÇANDOCA (UBATUBA/SP)

MARIA TEREZA DUARTE PAES LUCHIARI Professora do Depto de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas UNICAMP E-mail: [email protected]

ISABEL ARAUJO ISOLDI Mestranda em Geografia Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP E-mail: [email protected]

* Artigo escrito a partir do trabalho: Identidades territoriais quilombolas – a Comunidade da Caçandoca, Ubatuba/SP. Campinas, Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas, 2005. 61p. (Monografia em Geografia).

Terra Livre

Resumo: O direito à titulação coletiva de terras pertencentes às comunidades rurais de negros, concedido pelo Estado brasileiro desde 1988, impulsionou uma série de processos e articulações sociais em prol do reconhecimento identitário quilombola. Diversos grupos negros rurais se inseriram no sistema jurídico-político do Estado-nação brasileiro, transformando e tornando híbridos seus usos tradicionais do espaço. As territorialidades destes grupos, formadas no passado como uma conseqüência à exclusão sócio-espacial historicamente vivenciada pelos negros explorados pelo sistema escravista, vem sendo afirmadas e resignificadas através da posse territorial como um marco identitário. O presente texto propõe uma análise destes processos a partir da realidade da Comunidade da Caçandoca, Ubatuba/SP. Palavras-chave: identidade territorial; uso e ocupação do espaço; titulação de terras; comunidades quilombolas; território nacional. Abstract: The right of the land titling of agricultural black communities granted in Brazilian Constituition, which secure the right of property for quilombo lands, has stimulated processes and social articulations for a identitary reconigtion of quilombo lands in Brazil. Under the light of this process, black country groups were insered in this Brazilian juridicpolitical system, which has transformed and hybridizated the traditional uses of space. The territorialities of these groups which were formed in the past by the social, spacial and racial segregation - lived by those exploited people since slaverly system – have been affirmed and resignificated through the territorial ownership as a identity landmark. The present text considers an analysis of these processes from the reality of the Community of the Caçandoca, Ubatuba/SP. Key-words: territorial identity; use and occupation of the space; land titling; quilombolas communities; domestic territory. Resumen: El derecho de titulación de las tierras para las comunidades negras campesinas, concedidas para el gobierno brasileño desde 1988, estimuló una serie de procesos y articulaciones sociales en busca del reconocimiento identitario quilombola (remanecientes de esclavos fugitivos). Este sistema legal-político del Estado-nación brasileño engloba diversos grupo negros campesinos que pasan por transformar y hibridizar sus usos tradicionales del espacio. Las territoriedades de estos grupos, formadas en el pasado a través de la exclusión social y espacial vivienciadas históricamente por la explotación de los negros durante la esclavitud, están en proceso de afirmación e resignificación a través de la propiedad territorial como un marco identitario. El actual texto considera un análisis de estos procesos de la realidad de la comunidad del Caçandoca, Ubatuba/SP. Palabras claves: identidad territorial; uso y ocupación del espacio; titulación de tierras; comunidades quilombolas; territorio nacional.

Presidente Prudente

Ano 23, v. 2, n. 29

p. 163-180

Ago-Dez/2007

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LUCHIARI, M. T. D. P; ISOLDI, I. A.

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Introdução O uso do espaço no território nacional é marcado por relações sociais de poder que expressam heranças culturais de um passado colonial e escravista, ainda presente nas questões raciais vivenciadas no cotidiano pela população negra no Brasil. Ainda que o mito fundador da nação brasileira considere que três principais raças – o branco europeu, o índio nativo, e o negro africano – deram origem a um povo mestiço e livre de preconceitos, cuja diversidade cultural é motivo de riqueza, esta suposta democracia racial camufla o racismo, fortemente presente na sociedade. Para Guimarães (2002, p.119): “Conquanto a pequena presença demográfica européia, ante a população de origem indígena e africana, tenha acabado por fazer predominar no país uma população biologicamente mestiça, ela nunca pôs em cheque o caráter europeu da civilização brasileira, nem de suas classes dominantes, nem mesmo a cor branca da maioria da sua população”.

As relações de poder no espaço são evidenciadas por processos dinâmicos de opressão e resistência que, durante a história da formação da nação brasileira, resultaram em diversas formas de relações sociais. Os quilombos são um importante exemplo da resistência negra em relação ao uso capitalista do território, enquanto formações territoriais baseadas em outra racionalidade, pautada em valores de uso comum da terra e dos recursos, coletivizados e não geradores de lucro. Segundo Alfredo Wagner, “tradicional é uma maneira de ser, uma maneira de existir, é uma maneira de demandar, de ter identidade coletiva”. (ALMEIDA, 2006, p.67). Ocorre que este longo processo de uso e ocupação do território brasileiro pelos negros, que remete ao passado colonial e passa por uma série de acontecimentos históricos, adquire mais uma faceta a partir do fim da década de 1980, quando se finda o período da ditadura militar e uma nova Constituição Federal é votada. São instituídos instrumentos legais para que os povos formadores da nação brasileira adentrem a condição de cidadania. Os artigos 215 e 216 da Constituição de 1988 garantem proteção estatal aos grupos participantes do processo civilizatório nacional, bem como aos patrimônios materiais e imateriais que façam referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. (ALMEIDA, 1999). Além disso, o artigo 68 garante às comunidades negras rurais que comprovarem suas origens enquanto remanescentes de quilombo, a possuir o título de seus territórios: Artigo 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. (Constituição Federal de 1988)1

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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicaocentração

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Neste processo, os territórios étnicos negros são reconhecidos pelo Estado em um processo supostamente contrário à exclusão sócio-espacial a que os negros estão submetidos desde o início da formação do Brasil. No processo de reconhecimento e titulação de terras quilombolas, a identidade cultural destes grupos é resignificada, uma vez que a comunidade se afirma entre si e perante a sociedade enquanto um grupo cuja herança histórica constitui um patrimônio nacional. O acesso à terra, garantido por lei, exige a mobilização política das comunidades e lhes garante legitimidade enquanto grupo formador da sociedade, da qual estiveram historicamente excluídos. A partir dos anos de 1960 foram desencadeadas intensas mudanças econômicas e sócio-espaciais, desarticuladoras de antigas ordens locais, tais como os processos produtivos da sociedade urbano-industrial, orientadas por uma mesma lógica e em sobreposição aos usos do território pelas comunidades tradicionais e com a supressão de paisagens construídas ao longo do tempo. A modernização do território nacional, foi responsável por vetores que criaram momentos de ruptura em sistemas comunitários estruturados, muitas vezes, por mais de um século. A questão acaba por assumir um caráter de embate cultural e de sobreposição de poderes. A terra, principal recurso das comunidades tradicionais, tornou-se alvo de uma disputa entre o Estado-nação, cujo intuito era modernizar e integrar o território nacional, as empresas privadas, que se utilizam do território para expandir os investimentos e reproduzir seus bens, e as populações tradicionais, que se utilizam da terra enquanto recurso fundamental para a reprodução da vida. Para Becker (1996, p.11), nesse período, “sociedade e natureza foram tratados como estoques, cujos fluxos deveriam ser dinamizados através do incremento de mobilidade do trabalho, de incorporação de novas terras e de extração em larga escala dos recursos minerais e energéticos”. Os vetores impostos pelos dois grandes agentes, o Estado nacional e as empresas privadas, criaram rupturas e instabilidade entre as populações tradicionais. Sem estabilidade no território e impossibilitados de prosseguir com o modo de vida tradicional, os moradores são impulsionados a admitir um modelo de vida similar ao urbano. No entanto, a falta de recursos como energia elétrica, asfalto, escolas e postos de saúde, impossibilitam a inclusão destes enquanto cidadãos. Ficaram a meio caminho, distanciados de sua realidade anterior ligada às tradições do passado, e distantes da realidade do modo de vida moderno, urbano e capitalista, pelas impossibilidades de acesso ou ascensão social. Cabe ressaltar que, ao generalizar um processo tão amplo, corre-se o risco de uma simplificação. Ao se considerar os casos de regulamentação dos quilombos que ocorrem por todo o território nacional, muita variedade será encontrada. Por isso, as situações de conflito necessitam de uma análise mais aprofundada, já que o panorama notado à primeira vista certamente será complexizado à medida que mais elementos constitutivos dos processos sejam reconhecidos. É neste viés que o estudo da Comunidade da Caçandoca, em Ubatuba, no Litoral Norte Paulista, pretende contribuir com a reflexão aqui apresentada.

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LUCHIARI, M. T. D. P; ISOLDI, I. A.

IDENTIDADE TERRITORIAL QUILOMBOLA...

Espaço geográfico e identidade territorial O valor do espaço é determinado a partir do uso que dele é feito. Por meio de sua apropriação demarcam-se territórios que, enquanto porções do espaço, são socialmente construídos e ocupados. Essa apropriação do espaço, concreta ou abstrata, permite a territorialização de formas, impressas de poder (Raffestin, 1993). Os territórios nacionais são um exemplo claro de demarcação de fronteiras enquanto posse de uma porção do espaço, cuja afirmação de identidade e unidade da nação, legitimam uma soberania nacional. Cada território desenvolve sistemas territoriais próprios, que asseguram o controle, impõem ordens e permitem realizar a integração e a coesão. Segundo Raffestin (1993, p.150), estes sistemas são constituídos por sistemas de malhas, nós e redes que possibilitam a circulação e comunicação, fundamentais para as dinâmicas territoriais. E é nesse sentido que cada território desenvolve uma dinâmica singular, que o difere dos demais. Essa singularidade também se aplica, ainda que em outra escala, aos lugares. O lugar é a categoria do espaço geográfico onde a realidade acontece. Ao passo que o mundo nos é estranho, o lugar nos é próximo, nele estão superpostos os tempos externos das escalas superiores e os tempos internos, da coexistência, onde as noções e as realidades de espaço e tempo se fundem. (SANTOS, 2004). É a partir da escala do lugar que o mundo se concretiza por meio de sistemas de objetos e ações, deixando de ser uma abstração. O espaço é amplo e abstrato, ele apenas se torna real no lugar, onde ordens globais se materializam. Dessa forma, o lugar não é somente uma parte do mundo, mas o próprio mundo localizado. (LUCHIARI, 1999, p.10). Desta maneira, é nos lugares que a vida social se recria. As relações sociais e territoriais ali se dão enquanto realidade palpável. E, como os lugares e o mundo formam uma totalidade dinâmica, as identidades dos lugares são produzidas constantemente, não são apenas cristalizações do passado, heranças do vivido, mas representações do mundo no lugar e do lugar no mundo. Assim podemos pensar em um espaço social híbrido, onde novos e velhos usos do território coexistem como um motor de dinâmica do lugar. Os sistemas territoriais são responsáveis tanto pelas relações de convergência, através das redes, quanto pelas relações de rupturas e disjunções. Cada sistema segrega uma territorialidade própria, que é vivida pelos indivíduos e pela sociedade. A territorialidade se manifesta em todas as escalas espaciais e sociais. Para a análise das territorialidades é necessária a apreensão das relações reais recolocadas no seu contexto sócio-histórico e espaço-temporal. (RAFFESTIN, 1993). Como formas de expressão da singularidade dos lugares, as territorialidades denotam as formas de apropriação do espaço, exclusivas a cada localidade. Segundo SOJA, a territorialidade seria composta de três elementos, o senso de identidade espacial, o senso de exclusividade e a compartimentação da ação humana no espaço. Ela reflete a multidimensionalidade do ‘vivido’ territorial pelos membros de uma coletividade e pelas

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sociedades em geral. Trata-se de “um fenômeno de comportamento associado à organização do espaço em esferas de influências ou em territórios nitidamente diferenciados, considerados distintos e exclusivos, ao menos parcialmente, por seus ocupantes ou pelos que os definem”. (SOJA, E. W. The Political Organization of Space. Washington, D.C., Association of American Geographers, 1971 apud RAFFESTIN, 1993, p. 159). “A territorialidade mediatiza a relação entre os homens, e a destes com a natureza. Assim, podemos dizer que a apropriação da natureza, de certa forma, exterioriza a dominação entre os homens. A análise da territorialidade rompe com a dicotomia clássica entre Homem e o Meio, pois, ao traçarem territorialidades, os homens conjugam as relações com a natureza e as próprias relações de poder”. (LUCHIARI, 1999, p.31).

Dessa forma, a territorialidade evidencia e caracteriza a maneira como uma sociedade se apropria do território, a partir de concepções e racionalidades próprias que muitas vezes se colocam em oposição ou em contradição a outros grupos sociais ou sociedades. Neste processo, há de se levar em conta os lugares como motor e suporte da formação de identidades culturais. O lugar é constituinte da vida dos indivíduos e dos grupos, e por isso influencia e até mesmo produz, tanto subjetivamente como objetivamente, identidades culturais e sociais. (BOSSÉ, 2004). O uso e a ocupação de determinado território são fundamentais na formação da identidade cultural. A construção da identidade passa também pela consideração de uma herança e pela preservação de um patrimônio sócio-histórico. A capacidade de recordar, preservar e perpetuar um passado faz parte de um sentimento identitário. Desse modo, a ocupação de lugares, com o decorrer do tempo, permite o enraizamento e a criação do sentimento de pertencimento. Além da importância do processo histórico na formação de identidades culturais, é importante considerar as práticas que consolidam o cotidiano; “o território identitário não é apenas ritual e simbólico; é também o local de práticas ativas e atuais, por intermédio das quais se afirmam e vivem as identidades”. (BOSSÉ, 2004, p.169). Desse modo, as práticas sociais constitutivas de uma territorialidade simbólica, legitimam o sentido de pertencimento por meio do qual os grupos afirmam e reivindicam sua identidade cultural e política em relação ao seu próprio lugar. A identidade territorial está diretamente ligada aos significados do território na construção do imaginário social. A noção de pertencimento ao lugar é construída a partir da vivência e das práticas sociais, e passa a ser constituinte da própria noção de ser. “Produto e produtor de identidade, o território não é apenas um ‘ter’, mediador de relações de poder (político-econômico) onde o domínio sobre parcelas concretas do espaço é sua dimensão mais visível. O território

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compõe também o ‘ser’ de cada grupo social, por mais que a sua cartografia seja reticulada, sobreposta e/ou descontínua”. (HAESBAERT, 1999, p.186).

A formação da identidade local, assim como o cotidiano dos lugares, se desenvolve a partir da interação de vetores de diferentes escalas. Os contextos externos ao lugar criam constantemente relações espaciais que o afetam reciprocamente. É desse modo que os lugares não podem ser considerados como recipientes identitários fixos e voltados para eles mesmos, mas como ‘redes porosas, abertas às relações sociais’ que situam toda a efervescência identitária local em um contexto de fluxos relacionais mais amplos. (BOSSÉ, 2004, p.171). Assim, a análise de identidades territoriais deve levar em conta o processo histórico de formação do lugar enquanto uma herança cultural e material, as práticas cotidianas do grupo identitário e as relações entre o lugar, a região e o mundo que incidem neste cotidiano vivido no lugar. Territorialidades quilombola e Estado nacional As territorialidades próprias das terras de quilombo só começaram a ser discutidas cem anos após a abolição da Escravatura, devido à promulgação do artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias de 1988. O artigo garante a posse da terra aos remanescentes de quilombo e acaba por trazer à tona uma série de questões acerca do tema, desde questões mais pragmáticas de como reconhecer e titular os quilombos, até as questões referentes à identidade, ao pertencimento e à dívida nacional em relação a estas populações. As origens do negro na sociedade brasileira remontam ao trabalho escravo. Devido à colonização portuguesa no Brasil, muitos africanos e seus descendentes foram feitos escravos e “inseridos no sistema de exploração do homem pelo homem, enquanto instrumento de trabalho e capital”. (BASTIDE & FERNANDES, 1971). A marca desta opressão não se diluiu com a abolição da escravatura, ao contrário disso, a libertação dos escravos apresentou uma faceta cruel, pois se tratou de um momento no qual o negro, em vez de adentrar ao sistema produtivo enquanto trabalhador livre foi substituído pelo trabalhador branco e posto à margem da sociedade. Uma vez exclusos do sistema econômico vigente, os negros, ex-escravos, foram condenados à exclusão do acesso legal à terra. A ideologia que tratava o negro como uma raça inferior, aliada à tentativa de embranquecimento da população, deixou de lado contingentes populacionais negros, outrora extremamente usados como força de trabalho. Segregados dos modos produtivos formais, diversos grupos prosseguiram em suas práticas sociais, sustentados, sobretudo, pelo modo de vida rural, criando territorialidades próprias. A posse da terra pelos negros não obedecia a uma formalização legal; suas terras lhes pertenciam de acordo com o uso e não com a titulação formal, legalizada em cartórios. Durante mais de um século, essas localidades permaneceram praticamente exclusas

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do reconhecimento da sociedade, devido à pobreza das comunidades, à distância dos centros urbanos e às dificuldades de acesso. Porém, a partir da década de 1960, diversos vetores passaram a atingir bruscamente essas localidades. A modernização do território promovida pelo governo militar e também a expansão do capital urbano atingiram diretamente o modo de vida de comunidades tradicionais em geral, incluindo caiçaras, ribeirinhos, seringueiros, quilombolas, entre outras. Diversos são os exemplos de intervenções no espaço, objetos do planejamento territorial do Estado, ou dos interesses privados, como a implementação de rodovias, barragens, áreas de conservação ambiental, urbanização e especulação imobiliária (LUCHIARI, 2002, p.31-32). As terras de posse de comunidades rurais, cujas documentações eram basicamente inexistentes, passaram a ser alvo de outros interesses, cujo poder permitiu a expulsão dos moradores tradicionais. Essas ações tornaram as décadas de 1960 e 1970 um marco de ruptura das antigas ordens vigentes e das territorialidades vivenciadas pelas populações tradicionais. Muitos saíram de suas terras, outros deixaram de plantar, pescar, caçar e se utilizar dos recursos naturais por conta de uma normatização do território visando a preservação ambiental. Tornou-se necessário adentrar o modelo produtivo capitalista como meio de sobreviver às transformações. A questão da terra tornou-se uma grave problemática, uma vez que expulsões estavam tornando-se comuns no cenário das populações tradicionais. Com o fim do período militar, as lutas de movimentos sociais, entre eles o Movimento Negro, pode ter uma voz mais ativa na exigência de direitos. Em 1988, durante a elaboração do texto constitucional, a participação popular foi às ruas recolher assinaturas para emendas populares elaboradas nos sindicatos patronais e dos trabalhadores, associações comunitárias, movimentos indígenas, feministas, estudantis, empresariais, entre outros. Segundo SILVA (1997, p.13): “O que consta hoje no texto constitucional é o resultante desse caldo reivindicatório que legitimou a Constituição Federal de 1988 como cidadã e democrática, exatamente porque exprime a cara de seu povo, e mais, busca alterar uma realidade extremamente perversa que viola direitos da grande maioria da população”.

Devido às pressões populares, o governo se deparou com a necessidade de uma reclassificação dos imóveis rurais. Através do INCRA e do IBGE iniciou-se um processo de reconhecimento de propriedades rurais que estavam fora dos padrões reconhecidos usualmente, uma vez que apresentavam uma forma coletiva de ocupação do território. Essas propriedades foram definidas como Ocupações Especiais. “Essas ocupações especiais contemplaram as chamadas terras de uso comum, que não correspondem a ‘terras coletivas’, no sentido de intervenções deliberadas de aparatos de poder, e tampouco correspondem a ‘terras comunais’, no sentido emprestado pela feudalidade. Compreendem uma constelação de situações de apropriação de recursos naturais (solo,

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hídricos e florestais) utilizando-os segundo uma diversidade de formas e com inúmeras combinações diferenciadas entre o ‘uso privado’ e o ‘comum’, per passadas por fatores étnicos, de parentesco e sucessão, por fatores históricos, político-organizativos e econômicos, consoante as práticas e representações própria.”.(ALMEIDA, 1999, p. 11)

As terras consideradas como Ocupações Especiais, se referiam às terras de pretos, de santos, de índios, de caiçaras, enfim, das populações tradicionais cujas territorialidades diferem do padrão da sociedade urbano-industrial. Com a denominação de Ocupações Especiais, o Cadastro de Glebas deu a entender que contemplaria estas situações, mas não houve nenhum desdobramento. Em 1987 ocorreu um refluxo da pressão dos movimentos sociais e os termos de negociação dos conflitos revelaram mediadores debilitados com as mal sucedidas e anti-democráticas Comissões Agrárias. (ALMEIDA, 1999). Apresentou-se, neste processo, uma grande dificuldade de reconhecimento das terras de negros. Ainda que o debate tenha culminando no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias de 1988, o desdobramento foi restritivo e limitante devido à concepção de quilombo utilizada pela legislação, mais voltada “para o passado e para o que idealmente teria ‘sobrevivido’ sob a designação formal de ‘remanescentes das comunidades de quilombo’ ”. (ALMEIDA, 1999, p.11). Segundo Silva (1997), entre os congressistas de 1988 imperou a frágil concepção do senso comum, de que as comunidades negras remanescentes de quilombo remontam ao passado, representando resquícios insignificantes de uma história que deve ser esquecida. Os quilombolas são tidos neste viés como populações fadadas ao desaparecimento, ou mesmo inexistentes. Porém, a história da escravidão no Brasil, encarada sob outro aspecto que não o oficial e submetida a uma análise detida da conflituosa realidade fundiária urbana e rural brasileira, autoriza um outro tipo de compreensão do problema. Os quilombos foram uma importantíssima forma de oposição à escravidão “que em termos históricos é recente e aflige contemporaneamente as consciências comprometidas com os valores da liberdade e da igualdade enquanto direitos historicamente construídos pela humanidade”. (SILVA, 1997, p.17). O reconhecimento do valor desta luta é uma obrigação do governo e da sociedade, uma vez que existe uma dívida da nação brasileira como um todo para com os afro-brasileiros. Neste contexto, o artigo 68 do ADCT seria: “um tipo de operação jurídico-constitucional de compensação, aprovada no texto legal maior pelo Estado brasileiro, em razão do regime da escravidão, e fator mais grave, pelo abandono e exclusão do acesso à terra a que foram sentenciado contingentes populacionais negros em virtude do perverso processo político-jurídico da abolição, firmado em lei simplória que deu fim formal ao regime escravocrata”. (SILVA, 1997, p.17).

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O texto constitucional redigido após o período autoritário, propõe a proteção, por parte do Estado, às manifestações populares indígenas e afro-brasileiras; e deixa clara a intenção governamental de tornar patrimônio brasileiro as culturas das populações historicamente excluídas. É importante ressaltar que, segundo Raffestin (1993), a discriminação racial conduz a desequilíbrios internos que determinam tensões políticas muito perigosas para a coesão do Estado. Dessa forma, a inclusão das minorias interessa ao fortalecimento e unidade do Estado nacional. O artigo 68 acaba por normatizar a identidade quilombola, uma vez que para a obtenção da titulação da terra é necessário que a comunidade requerente prove a veracidade de sua identidade e se enquadre no conceito de quilombo adotado pela legislação. Ainda que a maioria das reivindicações por titulações de terras de quilombos seja precedida por conflitos fundiários e não por inquietações em relação à identidade, as comunidades, muitas vezes, visando articular estratégias políticas para reivindicar seus direitos, retomam símbolos e valores já esquecidos, que confirmem o seu passado e o seu pertencimento àquela terra. Além disso, é necessário que os comunitários apreendam as maneiras de adentrar o sistema jurídico e político do Estado-nação para participar dos processos de luta por suas terras. Dessa maneira se dá uma intensa hibridização entre grupos tradicionais e a modernidade. O termo quilombola, adotado inicialmente de forma política, devido aos conflitos fundiários que envolvem muitas comunidades, acaba por ganhar sentidos singulares na medida em que se torna próprio a cada situação de processos em curso. São comuns os exemplos de pessoas que não queriam ser tratadas por quilombolas por remeterem o termo à escravidão, uma referência identitária estigmatizada que se pretendia que fosse esquecida, porém com a apreensão do termo e o consenso da necessidade da titulação da terra, permitiram que este fosse aceito e revisto. (ISOLDI, 2005). No contexto brasileiro, ainda que de fora do sistema econômico vigente, do sistema de trabalho e consumo, grupos sociais como as populações negras formadoras de quilombos, estiveram durante o processo histórico, construindo e reconstruindo vias alternativas de pertencimento ao território. Com a atual possibilidade de titulação, as comunidades passam a existir legalmente perante a sociedade; a institucionalização destes grupos tradicionais corresponde a um processo de modernização, enquanto uma possibilidade de inclusão na cidadania. A Comunidade Quilombola da Caçandoca (Ubatuba/SP) – territorialidades e mudanças As transformações nos usos do espaço no litoral norte paulista, marcados pela urbanização turística (LUCHIARI, 2000), e pela implantação de unidades de conservação, sobretudo pela normatização do Parque Estadual da Serra do Mar, de 1977 2 , desestruturaram as territorialidades das comunidades litorâneas, de modo que o sistema

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comunitário de uso de recursos naturais e da produção e troca de alimentos, foi desorganizado. Tornou-se necessário ingressar no mercado de trabalho capitalista, na sociedade de consumo e no sistema de propriedade privada. As territorialidades tradicionais de posse comum da terra e uso dos recursos naturais entraram em choque com as ordens impostas pela expansão do capital e da técnica. É neste contexto que a Comunidade Quilombola da Caçandoca, localizada no sul do município de Ubatuba, Litoral Norte do Estado de São Paulo, em uma planície costeira típica deste trecho do litoral, onde encontramos importantes remanescentes de Mata Atlântica, tem seu modo de vida tradicional desestruturado e se vê diante da necessidade de transformação, como possibilidade para a sua sobrevivência enquanto grupo. A situação conflituosa na qual a Comunidade da Caçandoca foi inserida é muito semelhante às situações de outras comunidades tradicionais brasileiras, cujas territorialidades foram suplantadas pelos sistemas técnicos da sociedade urbano-industrial. As origens desta comunidade remontam a uma fazenda de café, de propriedade de José Antunes de Sá, desde 1858. A fazenda produzia sob o regime escravagista e era administrada em três núcleos, sendo eles Caçandoca, Saco da Banana e Saco da Raposa, cuidados por cada um dos filhos do proprietário, Isídio, Marcolino e Simphonio. (SCHIMITT, 2000, p. 16). No fim do século XIX, a produção de café no litoral entrou em decadência; o solo e o clima da região desfavoreciam a produção, que foi intensificada no interior do estado de São Paulo. Por conta disso, diversas fazendas do litoral paulista entraram em decadência no mesmo período. O desmembramento da fazenda Caçandoca se deu em 1881, com o abandono por parte do proprietário e a substituição da produção de café pelo cultivo de banana e mandioca, que eram trocados ou vendidos entre comunidades vizinhas. Com o dinheiro comprava-se sal, querosene e roupas. Além disso, os moradores plantavam roças para consumo próprio, pescavam, caçavam e extraiam matéria-prima das matas. (SCHIMITT, 2000). Neste núcleo estabeleceu-se uma comunidade de remanescentes de escravos e os descendentes gerados entre estes e os filhos do antigo proprietário. Os núcleos administrativos deram lugar a bairros rurais, onde as festividades, o cultivo da terra, a pesca e as intrincadas teias de parentesco marcavam uma vida comunitária. A relação com as localidades de fora da comunidade ocorria nas ocasiões de venda de banana e farinha de mandioca, compra de alguns produtos e também das festividades. O modo de vida, similar ao caiçara, perdurou por muitos anos, do começo do século até meados da década de 1960, quando novos processos de uso do território desestruturaram uma antiga ordem vigente. A memória do grupo enquanto descendentes de escravos é viva na comunidade; vários moradores da Caçandoca têm lembranças de seus avós ou bisavós que foram 2 O decreto estadual n° 10.251 de 30 de Agosto de 1977, institucionalizou uma área de 315.390 ha como área de preservação

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cativos e trabalharam na antiga fazenda de café. A convivência da comunidade era ‘muito gostosa’, segundo a senhora Marciana dos Santos3 , 62 anos, moradora da Caçandoca. De acordo com os depoimentos dos moradores com mais de 50 anos, não havia maldade entre as pessoas e estas eram mais ingênuas. A educação dada aos filhos era mais rígida e os filhos respeitavam muito mais os pais, pediam a benção e ouviam seus conselhos. Estes moradores relatam o passado como um tempo de trabalho em conjunto, de festas, de fartura alimentícia e cultural - um tempo que ainda povoa a memória. Estima-se que, na década de 1960, a população total da comunidade da Caçandoca era de cerca de 70 famílias, somando 800 pessoas. Esse número diminuiu consideravelmente após as diversas expulsões em função dos conflitos envolvendo suas terras. Várias das famílias que tiveram de deixar a Caçandoca residem em cidades próximas do litoral e do Vale do Paraíba Paulista, e mantêm contato com os que permaneceram na comunidade, atualmente composta por 19 famílias. (SCHIMITT, 2000). A educação é precariamente oferecida para a comunidade. As duas escolas municipais que existiam na Caçandoca foram fechadas na década de noventa, sendo alegado pela prefeitura de Ubatuba a quantidade insuficiente de alunos para a permanência das atividades. Para ter acesso ao ensino é necessário que os alunos se locomovam para a Maranduba, com um ônibus municipal. No entanto, em dias de chuva o ônibus não chega até a comunidade, já que a estrada que os liga até a BR 101 não é asfaltada. Além disso, alguns alunos ao chegar da escola de noite, sentem medo de andar no escuro na Caçandoca, pois o ônibus os deixa na praia do Pulso, sendo necessário andar cerca de 1,5 a 2 km para estar em casa. Além das dificuldades estruturais, existem outros problemas. Os professores da Maranduba não estão preparados para tratar da realidade dos alunos da Caçandoca. Eles reclamam que seus professores ‘nem sabem o que é quilombo’. Em sala de aula não são tratados os temas referentes à realidade local, como a história do quilombo, o significado da resistência e da posse da terra ancestral. A existência de uma escola dentro da Comunidade, cujos professores façam parte da realidade local e estejam preparados para tratar dos temas relevantes as situações da Caçandoca e da população negra em geral, é fundamental. Tal ação fortificaria a identidade e o sentimento de pertencimento da comunidade, uma vez que a coesão entre o grupo seria intensificada e valorizada. Atualmente, poucas são as atividades que integram os moradores. Desde que as atividades tradicionais foram suplantadas, ações coletivas como plantios, festas e mutirões de construção não ocorreram mais. A ausência de atividades cotidianas realizadas em conjunto determina um afastamento e uma perda do sentido comunitário. O passado como referência é um marco muito presente na memória e no cotidiano dos moradores; os mais velhos, que vivenciaram a vida em comunidade, se referem ‘àqueles tempos’ como um período bom e que deveria voltar. Os mais jovens, que não conheceram tal 3

Entrevistas realizadas em janeiro de 2006, entre os moradores da Comunidade Quilombola Caçandoca.

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situação, anseiam por recursos que tornem a Caçandoca mais habitada, com luz elétrica, asfalto e escola. A principal atividade tradicional da população era a roça, proibida hoje em dia pela legislação ambiental. Ao entrevistar os moradores, muitas referências foram feitas à vontade e à saudade de plantar, principalmente entre os mais velhos. O processo de abandono da atividade agrícola, induzido pelas leis ambientais e pela especulação imobiliária, foi generalizado no Litoral Norte Paulista. Esta perda para as populações tradicionais induziu transformações nas bases econômicas e culturais, e desestruturou as comunidades locais, indígenas, caiçaras e quilombolas. Os moradores da Caçandoca acreditam na importância do retorno das atividades agrícolas como uma maneira de retomar a antiga estrutura social, da qual foram apartados. Tal feito garantiria a alimentação de uma maneira mais saudável e econômica, além de os arraigar à terra. Atualmente os moradores precisam ir à cidade para comprar alimentos, que nutricionalmente, são muito inferiores ao cardápio degustado por seus pais e avós no tempo em que a Caçandoca se sustentava a partir de seus recursos. Com o distanciamento da atividade agrícola, o conhecimento acerca das espécies e dos modos de plantio torna-se desvalorizado. As crianças e jovens não se interessam em aprender sobre nome de plantas, função das espécies, modos de plantar baseado nas luas, os segredos das ervas medicinais e suas aplicações, ou seja, o ajuste ecológico vivido por essas populações, a lida com a terra e o uso dos recursos naturais como modo de vida, torna-se uma referência do passado. A pesca é realizada ainda, assim como a coleta de mariscos e a produção e venda de bananas. Porém, em sua maioria, as pessoas trabalham fora da comunidade. Grande parte das mulheres trabalha como empregada doméstica nas casas do condomínio da Praia do Pulso, ou em vendas no centro urbano de Ubatuba ou Caraguatatuba. Na época de temporada, o trabalho na praia é o mais procurado; as pessoas trabalham em quiosques ou como vendedores ambulantes. O uso dos recursos naturais, tão abundantes no território quilombola, é limitado devido à instabilidade que enfrentam em relação ao direito de uso e posse da terra, pelas proibições das leis ambientais e pela mudança de racionalidade já introduzida nos moradores. Os jovens cresceram em outro ambiente, com referências urbanas, de forma que o trabalho na terra não lhes é habitual. Devido à falta de recursos dentro da Comunidade, a circulação para centros urbanos próximos é freqüente. As pessoas precisam sair da Caçandoca para fazer compras de alimentos e outros gêneros, ir à escola, ao médico ou dentista, visitar parentes e por vezes, trabalhar. Praticamente todos os moradores possuem parentes que não moram na Caçandoca. O período presente é separado do passado a partir de fins da década de 1960 e início da década de 1970, quando a comunidade passa a enfrentar sérios conflitos e transformações em seu modo de vida. Essa data é considerada como uma ruptura entre

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o modo de vida antigo e o atual. Este marco é muito significativo, pois diferencia um período passado de suposta fartura e união, quando os moradores tinham seu modo de vida diretamente ligado ao uso da terra comunitária e dos recursos naturais, de outro de instabilidade com relação à posse da terra e pobreza, uma vez que os recursos já não mais asseguram o excedente necessário para a reprodução da vida na Comunidade. O trecho da BR 101 que passa por Ubatuba foi construído no ano de 1974. O município, antes praticamente isolado, passou a ser alvo de especuladores imobiliários, entusiasmados com a valorização das terras propiciada principalmente pela facilidade de acesso ao local e pela exuberância das paisagens. Por conta disso, várias famílias caiçaras e quilombolas foram pressionadas a abandonarem suas posses no intervalo de poucos meses. Nos relatos feitos pelos moradores, as primeiras mudanças citadas se referem à saída dos homens para trabalhar na pesca em Santos, e na construção civil do Guarujá, como é o caso da história de vida da moradora da Caçandoca, Bárbara Sumara, 25 anos, cujo pai foi pescar em Santos e o avô foi um ‘desbravador’ do Guarujá, na década de 1970. Mas a situação é formada por um conjunto de fatores. A implantação da rodovia desorganizou o sistema de trocas entre comunidades. Antes da BR101 ser construída, o comércio local era realizado pela navegação de cabotagem entre as comunidades vizinhas. Com a construção da rodovia, a estrada substituiu o mar na circulação de mercadorias. Devido aos moradores da Caçandoca não terem acesso à rodovia por estrada, nem a possibilidade de comprar barcos de cabotagem, o comércio tornou-se inviável para a grande maioria, levando muitas pessoas a optaram pelo trabalho fora da comunidade. (SCHIMITT, 2000). Outro marco que acentua a transformação do modo de vida tradicional da Caçandoca, foi a implantação do Parque Estadual da Serra do Mar (PESM). O núcleo Picinguaba, localizado no município de Ubatuba, engloba uma área de 10.000 ha de Mata Atlântica, sendo metade da área regularizada e a outra metade formada por posses, terrenos escriturados, em litígio e de domínio particular. (DIEGUES&VIANNA, 1995). A necessidade de preservação, como conseqüência da exploração dos recursos naturais de maneira insustentável, surge na sociedade urbano-industrial. Escolhem-se áreas que ainda apresentam fauna e flora abundantes para serem locais de preservação. No entanto, estas áreas só permaneceram com alta biodiversidade devido ao modo não predatório com que os habitantes utilizam os recursos naturais. “Os quilombos estão em áreas de preservação ambiental porque é exatamente nessas regiões que sobrou parte da vegetação. O sistema de trabalho dos quilombolas facilita a conservação das áreas verdes. Mas quem veio na frente, a unidade de preservação ou a comunidade quilombola?” (Benedito Alves da Silva, o Ditão, quilombola da comunidade de Ivaporanduva no

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Vale do Ribeira, em entrevista para Carta Maior, 30/06/2005).

A área da Comunidade da Caçandoca não se encontra circunscrita ao PESM, porém, com a implantação do Parque, a fiscalização se tornou muito mais presente. As leis ambientais que passaram a serem cumpridas após a implementação do PESM, tornaram ilegal diversas atividades realizadas pelos quilombolas, desde seus ancestrais. As queimadas e derrubadas de áreas, atividades que precedem o plantio das roças, tornaramse ilegais. Assim, a atividade agrícola que garantia a alimentação da comunidade, deixou de ser exercida e a população teve de se vincular ao comércio urbano de Caraguatatuba ou de Ubatuba para a obtenção de alimentos e demais produtos. Contudo, o principal marco da transformação da vida na Comunidade é o conflito fundiário de disputa pela posse da terra, entre os moradores e a empresa imobiliária Urbanizadora Continental. O processo da especulação imobiliária incidiu a partir da década de 1970, não somente na Caçandoca, mas em todo município de Ubatuba e outros municípios do litoral. As atividades turísticas voltadas para os locais de natureza exuberante, fizeram com que grileiros invadissem terras de populações tradicionais, como quilombolas e caiçaras, pagando preços baixíssimos ou os expulsando, a fim de construírem condomínios, hotéis e demais opções para o turismo.4 A empresa Urbanizadora Continental chegou a Caçandoca num período em que muitos homens estavam fora, trabalhando para empresas de pesca. Encontraram então uma maioria de mulheres e crianças, trabalhando nas roças. Casas foram vendidas e não foram pagas, outras foram queimadas e as famílias postas para fora. As marcas desse período ainda estão presentes na memória dos moradores e na paisagem. Uma batalha judicial entre essa empresa e a comunidade quilombola estende-se desde 1975. O interesse da empresa era a construção de um condomínio fechado, com acesso às cinco praias da terra quilombola. Diante da violência da ação da empresa Urbanizadora Continental, muitos moradores deixaram suas terras. Segundo os relatos de moradores da comunidade, a negociação com os agentes imobiliários era marcada pela pressão e pela coerção. Os valores pagos às posses, quando pagos, eram muito baixos. Além disso, eram constantes as ameaças e violências àqueles que não aceitassem as propostas e se recusassem a sair das terras. Nos anos de luta, muitas são as marcas da violência; famílias expulsas, casas e plantações queimadas, ameaças à integridade das mulheres, circulação restringida, violência moral e física. A empresa tentou demolir a igreja localizada na Praia da Caçandoca, considerada um patrimônio coletivo da comunidade quilombola, mas, a comunidade reagiu e formou, em 1987, a Associação para Melhoramentos da Caçandoca, para reabrir a igreja, fechada pela Urbanizadora Continental. Ao resistir em entregar a Igreja, a população afirmou sua posse da terra através de um marco territorial. 4 Sobre a desestruturação de comunidades tradicionais ver especialmente: DIEGUES, A.C. MOREIRA, A.C.C.(orgs)Espaços e recursos naturais de uso comum. São Paulo: NUPAUB, 2001. LUCHIARI, M.T.P.D. Caiçaras, migrantes e turistas: a trajetória da apropriação do litoral norte paulista. IFCH, UNICAMP, 1992.

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Em 1998 foi fundada a Associação da Comunidade dos Remanescentes do Quilombo da Caçandoca, para que o Instituto de Terras do Estado de São Paulo “José Gomes da Silva” (ITESP), desse início ao processo de regularização fundiária da área requerida. A comunidade foi reconhecida como Remanescente de Quilombo no ano de 2000, com uma área de 890 hectares. Desses, 210 hectares estavam ocupados pela Urbanizadora Continental. Em maio de 2001 cerca de 30 famílias retornaram para uma pequena faixa de terra localizada ao longo da estrada vicinal que liga Caçandoca à rodovia BR 101. Desta vez contaram com o apoio do Ministério Público Federal, que solicitou ao juiz de Ubatuba que fosse revogada a liminar de reintegração de posse anteriormente concedida à Urbanizadora Continental. As famílias permaneceram na área, mas vivendo em condições precárias, em barracos de lona e sem qualquer infra-estrutura. Em outubro do mesmo ano, mais cinco famílias retornaram a uma nova área, deixando os conflitos na região ainda mais tensos. Por seis vezes a Urbanizadora Continental teve a causa ganha e, com a reintegração de posse ordenada, pretendeu expulsar os moradores da área que declara de sua posse. Essas reintegrações foram sempre revogadas e a empresa teve seus intentos adiados. O último caso de perigo de despejo da comunidade aconteceu em maio de 2005, quando uma juíza de Ubatuba cedeu a reintegração de posse para a Urbanizadora Continental. Porém, devido à articulação política, a ameaça de despejo chamou a atenção de vários atores envolvidos, como outras associações de quilombos e entidades do Movimento Negro, que entregaram uma carta, em 13 de maio de 2005, para a Secretaria Estadual de Justiça. A resposta veio no dia 1º de junho de 2005, quando o Tribunal de Justiça de São Paulo suspendeu a liminar de reintegração de posse da área de Caçandoca. No mesmo dia, o Incra reconheceu as terras como pertencentes aos quilombolas, e abriu caminho para o longo processo que levou à desapropriação. Em 27 de outubro de 2006, a União decretou os 210 hectares como área de interesse social, desapropriando a empresa. Apesar dessa vitória, a Comunidade da Caçandoca ainda não tem a titulação de seus 890 hectares de terra reconhecidos e garantidos por lei. Este caso da Comunidade Quilombola da Caçandoca, que apresenta especificidades, mas está longe de ser o único no território brasileiro, impõe uma reflexão importante: a conquista dos direitos dessas comunidades tradicionais só se legitima pela afirmação de uma identidade coletiva particular, pela regularização da posse da terra, e pela organização econômica e política de uma coletividade que, até então, viveu à margem da sociedade em geral. São estas as reflexões que abrem a possibilidade de elaborar uma abordagem geográfica da identidade territorial quilombola no Brasil. Considerações finais

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A luta da comunidade da Caçandoca pela terra não é uma luta exclusiva. Em todo o Brasil a luta pela terra é cotidiana e faz parte da realidade de muitos grupos excluídos, como indígenas e trabalhadores rurais. Ainda que o acesso à terra para os remanescentes de quilombos esteja garantido por lei desde a Constituição de 1988, na prática trata-se de uma conquista árdua, que exige articulação política e uma longa espera. Em verdade, trata-se de uma luta pelo direito à cidadania. Os negros estiveram excluídos do processo de formação da nação e buscam hoje sua inserção. O Estadonação brasileiro, novo e em crise, propõe formalmente esta inclusão, mas cabe às comunidades a organização política dos grupos, a aceitação da identidade negra como símbolo de distinção social, e a recuperação permanente, assim como a criação, de territorialidades quilombolas . Referências bibliográficas ALMEIDA, Alfredo Wagner. Os quilombos e as novas etnias em Direitos territoriais das comunidades negras rurais Aspectos jurídicos e antropológicos São Paulo: Documentos do Isa nº5, p.11- 47, 1999. _________________________. Identidades, territórios e movimentos sociais na PanAmazônia. In: MARIN, Rosa E.A., ALMEIDA, Alfredo W. Populações Tradicionais: Questões de terra na Pan-Amazônia. Belém: Associação de Universidades Amazônicas, 2006. 104p. BASTIDE, Roger. FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo: ensaio sociológico sobre aspectos da formação, manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971. BECKER, Bertha. Espaço e meio ambiente no Brasil. Texto apresentado no Seminário de preparação da Associação Brasileira de Estudos de População/ABEP, 19 pg., Campinas, 1996. BOSSÉ, Mathias Le. As questões de identidades em geografia cultural - algumas concepções contemporâneas. In: CORREA, R.L. ROSENDAHL, Z. (orgs.) Paisagens, textos e identidade.Rio de Janeiro: Ed UERJ, 2004, p. 157-179. DIEGUES, Antonio Carlos Diegues, VIANNA, Lucila Pinsard. Conflitos entre populações humanas e áreas naturais protegidas na Mata Atlântica. São Paulo, NUPAUB, USP, 1995. FERNANDES, Florestan. Integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: USP, 1964. GUIMARÃES, Antonio Sergio A. Classes, raça e democracia. São Paulo: Ed. 34, 2002. HAESBAERT, Rogério. Identidades Territoriais. In: CORREA, R.L. ROSENDAHL, Z. (orgs). Manifestações da Cultura no Espaço. Rio de Janeiro: UERJ, 1999, p.169-190. ISOLDI, Isabel Araujo. Identidades territoriais quilombolas – a Comunidade da Caçandoca, Ubatuba/SP. Campinas, Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas, 2005. 61p. (Monografia em Geografia). HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre a origem das mudanças culturais. São Paulo: Loyola, 1998. LUCHIARI, M. T. D. P. O lugar no mundo contemporâneo: turismo e urbanização em Ubatuba. Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, 1999. 218p. (Tese de doutorado em Ciências Sociais)

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Terra Livre - n. 29 (2): 163-180, 2007

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LUCHIARI, M. T. D. P; ISOLDI, I. A.

IDENTIDADE TERRITORIAL QUILOMBOLA...

Recebido para publicação dia 30 de Novembro de 2007 Aceito para publicação dia 01 de Fevereiro de 2008

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APROPRIAÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO E

TERRITORIALIDADE: O DESEJO E A ESPERANÇA PELOS INTERSTÍCIOS* SOCIAL APROPRIATION OF THE URBAN SPACE AND TERRITORIALITY: THE DESIRE AND

Resumo: O artigo procura desenvolver uma reflexão crítica acerca do planejamento urbano sob os imperativos da racionalidade capitalista e do mundo da mercadoria, na perspectiva de uma condição mais democrática e favorável a uma efetiva apropriação social do espaço, envolvendo a discussão dos limites e das possibilidades deste percurso. Apresenta-se como um estudo de caso o bairro de Santa Tereza, localizado na Região Leste da cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais. Palavras-chave: planejamento urbano; apropriação do espaço; território; territorialidade; bairro de Santa Tereza; Belo Horizonte, Minas Gerais.

HOPE FOR THE INTERSTICES

APROPRIACIÓN SOCIAL DEL ESPACIO URBANO Y TERRITORIALIDAD: EL DESEO Y LA ESPERANZA POR LOS INTERSTÍCIOS

ULYSSES DA CUNHA BAGGIO Professor do Curso de Geografia do Departamento de Artes e Humanidades da Universidade Federal de Viçosa; Doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo E-mail: [email protected]

Abstract: This article intends to develop a critical reflection concerning the urban planning under the imperatives of the capitalist rationality and the world of the merchandise, in the perspective of a condition more democratic and favorable to an effective social appropriation of the space, involving the debate of the limits and the possibilities of this course. The quarter of Santa Tereza is presented as a case study, located in the East Side of the city of Belo Horizonte, Minas Gerais. Key words: urban planning; appropriation of the space; territory; territoriality; quarter of Santa Tereza; Belo Horizonte, Minas Gerais. Resumen: El artículo se propone desarrollar una reflexión crítica referente al planeamiento urbano sus los imperativos de la racionalidad capitalista y del mundo de la mercancia, en la perspectiva de una condición más democrática y favorable a una efectiva apropriación social del espacio, implicando la discusión de los limites y las posibilidades de este curso. Presenta un estúdio de caso del barrio de Santa Tereza, situado em la Región Este de la ciudad de Belo Horizonte, Minas Gerais. Palabras clave: Planeamiento urbano; apropriación del espacio; território; territorialidad; barrio de Santa Tereza; Belo Horizonte, Minas Gerais.

* Este texto, com diversas modificações e adendos, integra partes da minha tese de doutorado intitulada A luminosidade do lugar – circunscrições intersticiais do uso de espaço em Belo Horizonte: apropriação e territorialidade no bairro de Santa Tereza, defendida junto ao Programa de Pós-graduação em Geografia Humana da USP, em novembro de 2005. Ele também se vincula a um projeto autônomo de pesquisa que ora desenvolvo no Departamento de Artes e Humanidades da UFV, intitulado Território e sociedade no horizonte de uma geografia libertária: percursos de uma epistemologia do desejo.

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Presidente Prudente

Ano 23, v. 2, n. 29

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Introdução Diferentemente de uma perspectiva teleológica, projetando no futuro a redenção dos problemas do presente, partimos da idéia que uma concepção democrática de planejamento urbano envolve um trabalho político-técnico concebido e realizado de modo democraticamente compartilhado entre Estado e sociedade urbana, pelo qual ele deve se orientar ao desenvolvimento sócio-espacial presente e futuro, de modo a proporcionar à urbe condições favoráveis à formação de um espaço de vivência e de reprodução social em patamares dignos, melhorando continua e progressivamente a qualidade de vida dos citadinos e a justiça social. Desse modo, tal concepção se pautaria por preceitos éticos e por um explícito e sólido senso de responsabilidade sócio-ambiental. Neste sentido, ela não se identificaria e muito menos compactuaria com uma visão estritamente mercantil do espaço urbano, ou ainda como uma forma de tratamento da cidade que a tomasse como um negócio. Vale lembrar que o tratamento mercantil da cidade, forma bastante difundida nas políticas de planejamento urbano na contemporaneidade, figura como uma variável robusta dentre aquelas que conformam a crise urbana, que, por sua vez, se revela mais propriamente como uma crise do trabalho e do mundo do trabalho. Esta condição tem motivado os debates em torno das possibilidades e dos limites às ações devotadas aos problemas urbanos (emprego, educação, saúde, moradia, transporte, meio-ambiente etc.) e à vida dos citadinos de modo geral. Trata-se, portanto, de uma empreitada a demandar a ação conjunta de sujeitos sociais (poder público, organizações não-governamentais e sociedade organizada), em que pese a urgência reativa diante de um quadro de desfiguração do homem e dos seus respectivos espaços de vivência e reprodução social, principalmente nas grandes aglomerações. Considerandose que a urbanização - sobretudo sob as condições atuais de desenvolvimento da globalização - encerra dinamismos que dificilmente poderiam ser contidos, adrede o avanço da polarização social, urge pensar o seu redirecionamento em bases mais aceitáveis. Vale dizer que a urbanização no Brasil ainda leva a marca da concentração da população urbana em poucas metrópoles, ao mesmo passo em que se aprofundam as desigualdades sociais e a segregação espacial, com o crescimento dos bolsões de pobreza e miséria. E o instrumento representado pelo planejamento urbano no país tem se mostrado ao longo dos tempos um ingrediente de peso a colaborar, desgraçadamente, mais na formação de exclusão social e, ou de inserção precária1 de segmentos sociais na cidade e na economia urbana, do que na diminuição das desigualdades e na melhoria das condições de reprodução social. Isto não significa que o planejamento seja um instrumento a ser “condenado” ou deixado de lado, pois ele ainda representa uma opção importante no tratamento de diversos problemas que afligem a vida nas nossas cidades, que estão submetidas a grandes transformações nessa fase de desenvolvimento acelerado da globalização. Neste sentido, 1

Pode-se falar aqui de inserção precária ou perversa de segmentos sociais na cidade e na economia urbana, os quais não estariam propriamente excluídos. Sobre o assunto ver Martins, 2004.

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ele se mostra uma opção efetivamente válida desde que opere pautado nos princípios da gestão participativa, da continuidade das ações e da flexibilidade de sua realização. Planejamento urbano e racionalidade capitalista: limites e possibilidades Ao refletir sobre o significado e o verdadeiro sentido do planejamento, Luis Boada (1991, p.13 e 14) oferece-nos uma contribuição valiosa, quando nos diz que: O planejamento não inclui em sua base unicamente valores de troca, portanto não deve pautar-se com os parâmetros eleitos pela economia. Ao contrário, essa ampliação do âmbito dos valores considerados deve permitir-lhe reconhecer que seu objeto caracteriza-se pela abundância e até pelo excesso, que é a forma que podem adotar os desequilíbrios produzidos pela abundância. Desse modo, o objetivo do planejamento será o conhecimento, o reconhecimento, a ordenação, a regulamentação da abundância e a correção do excesso. Portanto, frente ao planejamento defensivo ou terapêutico que considera apenas os valores de troca, terá de afirmar-se um planejamento criativo. Esse planejamento criativo pode ser visto como uma verdadeira economia, literalmente “construção” e “administração”, dos organismos naturais: o mundo e o ser humano. Isso significa que o planejamento pode possibilitar o conhecimento, o reconhecimento e, sobretudo, a administração e recriação não apenas dos valores de troca, mas da abundância natural do mundo e do ser humano, transformando-a em valor essencial, uma vez que ela é de fato constitutiva de sua essência.

Este entendimento remete ao fato de que as ações públicas locais, voltadas à transformação das estruturas de decisão e gestão da cidade demandam, para serem melhores sucedidas, uma ampliação do conceito de urbano na sua base, ou seja, que na busca da qualidade de vida efetiva dos moradores da cidade se garanta, para além da incorporação da participação popular na gestão pública, a participação na própria economia, sem a qual aquela não se sustenta. Fazê-lo significaria introduzir outros assuntos como objeto da política pública local: o emprego e outras formas de realização do trabalho, a remuneração dos fatores produtivos possuídos pelos setores populares e o fornecimento de bens e serviços, dos quais os serviços “urbanos” são uma parte, aquela eleita pelos urbanólogos como própria de seu campo profissional. (...) As políticas urbanas (dirigidas a reformar a vida urbana) devem centrar-se na economia urbana e suas possibilidades de desenvolvimento. Sem essa consideração, nem o ordenamento territorial, nem a distribuição de serviços, nem a própria possibilidade de avançar para uma democracia sustentável podem formular-se ou resolver-se adequadamente. Ademais, centrar a análise no econômico responderia às prioridades manifestadas pelos próprios setores populares, em geral mais interessados em conseguir uma renda

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estável que um melhor acesso aos “serviços urbanos”. (Coraggio, 1994, p.222-224).

O debate em torno da questão do planejamento e de suas possibilidades colocanos, ainda, uma questão importante: seria possível a um Estado capitalista desenvolver formas de gestão que contrariam preceitos capitalistas? Ou ainda, poderia o Estado realizar um planejamento efetivamente democrático sob a racionalidade hegemônica do capitalismo? O problema encerra dificuldades no seu equacionamento, sobretudo ao considerarse na análise as relações estreitas entre Estado e capital ou ainda Estado e mercado, particularmente no que tange às designadas economias em desenvolvimento. Nestas se evidencia o uso do intervencionismo estatal como um recurso de traço basicamente “corretivo”, de modo a dotar o território, e a economia nele inscrita, de condições materiais e infra-estruturais (técnicas e sociais) para viabilizar a reprodução ampliada do capital. (Schimidt, 1983). Neste sentido, O Estado [...] desenvolve estratégias que orientam e asseguram a reprodução das relações no espaço inteiro (elemento que se encontra na base da construção de sua racionalidade). Assim, o espaço se revela como instrumento político intencionalmente organizado, e manipulado pelo Estado; é, portanto, meio e poder nas mãos de uma classe dominante que diz representar a sociedade, sem abdicar de objetivos próprios de dominação. (Carlos, 2001, p.31).

Longe de quaisquer idealismos ou mesmo de interpretações de cunho tecnocrático, argumenta-se que embora esta racionalidade e as relações que a fundamentam sejam dominantes, e se consubstanciem como um poder 2 , elas não são, contudo, únicas, absolutas e definitivas, colocando-se sempre a possibilidade de se forjar algo novo, de se criar outras possibilidades. Vale pensarmos, acerca disso, sobre o sentido das palavras de Hannah Arendt (1981, p.190-191): Com a criação do homem, veio ao mundo o próprio preceito de início; e isto, naturalmente, é apenas outra maneira de dizer que o preceito de liberdade foi criado ao mesmo tempo, e não antes, que o homem. É da natureza do início que se comece algo novo, algo que não pode ser previsto a partir de coisa alguma que tenha ocorrido antes. Este cunho de surpreendente imprevisibilidade é inerente a todo início e a toda origem. [...] O novo sempre acontece à revelia da esmagadora força das leis estatísticas e de sua probabilidade que, para fins práticos e cotidianos, equivale à certeza; assim, o novo sempre surge sob o disfarce do milagre. O fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável. E isto, 2 Emprego o sentido que lhe atribui Claude Raffestin (1993, p.52-53), para o qual “o poder é parte intrínseca de toda relação”, sendo ele “um processo de troca ou de comunicação”.

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por sua vez, só é possível porque cada homem é singularmente novo. Desse alguém que é singular pode-se dizer, com certeza, que antes dele não havia ninguém.

Essa racionalidade é crítica, sendo ela uma criação humana e como tal sujeita às suas próprias interferências e ações. Não há Estado sem contra-Estado e poder sem contrapoder. Os contrapoderes insinuam-se como um conjunto de forças e ações variadas capazes de perturbar e até mesmo ameaçar o Estado e sua racionalidade. Não há racionalidade em si mesma, e tampouco pode existir racionalidade absoluta; o que se mostra racional hoje pode não sê-lo amanhã, e o racional de uma dada sociedade pode ser tomado como o irracional de outra (Santos, 1993, p.53). Desde os anos 60 do século XX ocorre um recrudescimento dos contrapoderes na esteira da crise/redefinição do Estado, quando as empresas transnacionais encarregamse, de modo proeminente, do crescimento econômico. Eles emergem das regiões, das periferias dos grandes centros urbanos, das diferenças. Não se quer dizer com isso que eles estejam orientados para uma dissolução do Estado, para a sua superação, mas mais propriamente sinalizando virtualidades políticas importantes quanto à possibilidade de um percurso rumo a uma condição mais democrática.3 Conforma-se, assim, um campo de relações dialéticas, dinâmicas e conflituosas entre contrapoderes e poder político existente (Lefebvre, 1976). Os termos dessa interpretação sugerem que a racionalidade capitalista não necessariamente elimina a possibilidade do percurso democrático, até por que a própria democracia se revela como uma construção, sempre uma construção, não se mostrando como uma condição plena, definitiva e acabada4 ; condição que, aliás, também vale ao próprio capitalismo. É próprio da natureza humana, e do próprio homem, agir, de um modo ou de outro, em busca de melhores condições à sua existência - conquanto o inverso também seja verdadeiro... A racionalidade capitalista não é maior do que as essenciais e indissolúveis necessidades humanas.5 Os movimentos sociais, bem como outras formas de insurgência, encerram virtualidades nesse sentido. Esta racionalidade encerra contradições que se agudizam nos tempos hodiernos com o aprofundamento da crise do processo civilizatório capitalista, fazendo da crise um vetor de dinamismo e, desse modo, estimulando iniciativas e ações reativas de matizes diversos, nos mais variados setores, segmentos sociais e lugares, tanto em países de capitalismo avançado como em países semiperiféricos (como é o caso do Brasil) e países pobres.

3 De acordo com Demétrio Magnoli, a democracia não se limita ao horizonte estreito da eleição, mas se apresenta mais propriamente como “[...] o produto de uma teia de instituições e leis que limitam o poder dos governantes, escrutinam os atos do poder, resguardam os direitos dos cidadãos e protegem a expressão da minoria”. (Folha de São Paulo, Opinião, 8 de dezembro de 2005, p. A2). 4 Acerca disso Henri Lefebvre nos diz que: “A democracia consiste, essencialmente, em uma luta pela democracia. Jamais completamente vitoriosa, porque, em virtude de suas contradições, a democracia pode sempre avançar e regredir” (1979, p.101). 5 Não estamos considerando aqui às “necessidades” artificialmente criadas pelos veículos de publicidade a serviço das empresas e do consumismo desenfreado.

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Um outro problema, certamente, poderia ainda ser destacado como um robusto fator de constrangimento à implementação de uma forma de planejamento urbano democrático e participativo, isto é a ampliação e a difusão sócio-espaciais do tráfico de drogas, uma vez que as quadrilhas de traficantes incrustadas nas favelas impõem enormes restrições aos movimentos associativos, intimidando-os, cooptando lideranças e até mesmo neutralizando suas ações. (Souza, 2000). Mudar a cidade, sobretudo em condições de profundas desigualdades, não é efetivamente uma tarefa inexeqüível, ainda mais no curto prazo, tornando-se um tanto que nebuloso vislumbrar no horizonte do drama social os efetivos protagonistas deste processo e seus avanços. A mudança da cidade para uma condição sócio-espacial digna e democrática, com justiça social instaurada, implicaria uma longa e difícil construção, demandando tanto o trabalho coletivo e participativo (com participação de agentes variados e de múltiplas identidades), como também modificações nas próprias subjetividades. Esta condição requereria, seguramente, o direito e a liberdade de se determinar a(s) forma(s) do nosso meio ambiente, ou ainda dos modos de sua organização, o que pressupõe o exercício da responsabilidade ao que é comum a todos. O que vale dizer que nenhum programa social poderá alcançar a condição democrática à revelia do espaço, do mesmo modo que a realização eficiente de uma dada prática social implica na apropriação efetiva de um espaço. A consecução deste percurso significaria, portanto, a amplificação da política e de sua necessária invenção a fim de repor os dissensos, estimular a autonomia e, com isso, favorecer as iniciativas de caráter autogestionário para além do ambiente das empresas, que são fundamentais à consolidação de uma verdadeira condição democrática. A instauração processual de uma democracia avançada, com a ampliação do exercício da democracia direta 6 , enfrenta certamente dificuldades em sociedades progressivamente urbanas, perpassadas por múltiplas clivagens e hierarquias, principalmente em macro aglomerações, como é o caso das metrópoles. Mas isso não significa a sua impossibilidade, haja vista as possibilidades oferecidas pelas políticas de descentralização territorial, pelo artifício da delegação, pelas novas tecnologias de comunicação e tratamento da informação (Souza, 2002, p.330-33). De modo geral, as restrições parecem ser substancialmente maiores em países não avançados ou não desenvolvidos, como é o caso do Brasil. Elas se colocam em parte nos limites da própria racionalidade capitalista, mas também para além dela, e isto em razão dos problemas e dificuldades inerentes a uma condição de ingente concentração urbana, marcada pela diversidade e pela diferença. Ademais, as desigualdades sociais e econômicas afetam negativamente as instituições democráticas, afetando, desse modo, a participação e o 6 Por democracia direta compreende-se uma situação (ou regime político) na qual as demandas e os problemas sociais não apresentam como mediação única o Estado e seus representantes, mas, para além deles, outros agentes da sociedade civil, a exemplo de movimentos sociais diversos que atuam numa perspectiva mais independente e de caráter autogestionário, de modo que os indivíduos atuem mais diretamente nos processos decisórios, o que modernamente implicaria no emprego do recurso da delegação e da descentralização políticoterritorial.

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consenso, embora o direito à participação esteja garantido. E a não participação pode ser atribuída ao fato de que os custos desta participação não condizem com as condições dos possíveis interessados. Vale lembrar que as próprias intervenções estatais impactam fortemente esta condição metropolitana, produzindo sensíveis constrangimentos à democracia urbana. Acerca disso, Ana Fani A. Carlos observa que O Estado, com seus instrumentos legais, produz grandes transformações nos usos e funções dos lugares da cidade, reproduzindo a hierarquia desses lugares no conjunto do espaço metropolitano. Mas, ao direcionar-se os investimentos em infra-estrutura, aprofundam-se as desigualdades na metrópole, interferindo de modo profundo nas formas de apropriação do espaço à medida que produzem, com sua intervenção, um processo de valorização diferencial do solo urbano. (Carlos, 2001, p.27).

Como já observado, avança no mundo e no Brasil uma forma de tratamento da cidade norteada por critérios explicitamente mercadológicos sob o patrocínio do Estado. Esta orientação expõe o sentido e os fundamentos de um processo de reprodução e reestruturação espacial marcado pela proeminência sócio-esopacial do valor de troca, submetendo o valor de uso. Tal primado do valor de troca significa objetivamente [...] um conflito entre interesses organizados em torno do espaço social, enquanto local dos valores sociais de uso e do desdobramento de relações comunais no espaço, e interesses em torno do espaço abstrato, enquanto espaço de desenvolvimento imobiliário e administração governamental – a articulação combinada entre modo político e modo econômico de dominação. (Gottdiener, 1993, p.164-165).

Contudo, é preciso acautelar-se quanto ao cálculo das potencialidades e da extensão da proeminência do valor de troca na totalidade espaço-temporal. Superestimá-las significaria praticamente suprimir do horizonte de análise as virtualidades e possibilidades do uso, com seus nichos de insurgência e resistência, malgrado se reconheça o amplo dinamismo espacial do valor de troca. Há que se considerar a diversidade e as potencialidades de insurgências e práticas sócio-espaciais de resistência que emergem mais propriamente no universo do espaço social. Trata-se de práticas que, de modo geral, provêm de baixo para cima. Elas são protagonizadas, sobretudo, nos interstícios da sociedade e da cidade, cujas respectivas conformações político-territoriais não raro são obnubiladas pela versão ideologizada da cidade oficial, e não da cidade real. Daí o alerta importante de Ermínia Maricato (2000, p.186), quando nos diz que Na sociedade brasileira, podemos dizer que a realidade é subversiva ao pensamento conservador. Daí o potencial de uma ação pedagógica sobre o reconhecimento da cidade real, em especial da “cidade oculta”.

A transformação da cidade e a apropriação do espaço urbano

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Esse panorama remete à questão da democratização do Estado e da sociedade e, portanto, da própria cidade. Imaginar uma sociedade sem poderes instituídos é uma ficção. A transformação da cidade envolve tanto a atuação do Estado no tratamento dos problemas urbanos como da sociedade na sua diversidade. A título de exemplificação, podem-se destacar os programas de orçamento participativo. Afora as críticas que recaem sobre as formas de gestão participativa e, em especial, do orçamento participativo, envolvendo a discussão acerca dos seus próprios limites, tais programas constituem instrumentos importantes a serem aperfeiçoados para a democratização da gestão das cidades. Eles representam a possibilidade da sociedade civil propor e introduzir modificações na vida política e melhorar políticas voltadas ao atendimento de demandas dos segmentos sociais de baixa renda. Acerca dos limites à proposta do Orçamento Participativo, Leonardo Avritzer (2002, p.37) aponta dois deles que “parecem bastante claros”. O primeiro seria a “pouca democratização na relação entre os próprios atores sociais e a incapacidade de estender o OP para áreas sociais nas quais o que está em jogo são alternativas de políticas públicas”. Entretanto, adverte para o fato de que embora o OP pareça constituir um importante instrumento de democratização entre Estado e Sociedade, há evidências no âmbito interno das comunidades que indicariam certa restrição desta condição, uma vez que se constata uma “relação hierárquica e pouco democrática” nas mesmas. O segundo limite está na proeminência representada pela questão da distribuição de recursos materiais, chamando a atenção para o fato de

que, “até o momento, a maior parte das decisões do OP diz respeito a questões materiais”. Oferecem-se como exemplos7 os casos de Porto Alegre (a partir de 1989) e Belo Horizonte (a partir de 1993), embora nestas duas cidades o associativismo comunitário seja anterior ao OP, porém apresentando perfis distintos. Porto Alegre tem uma formação histórica mais ativa, com mais participação, menos relação com mediadores políticos e mais mobilização dos próprios atores comunitários. Belo Horizonte tem uma formação histórica mais conservadora, com menos mobilização e maior presença dos mediadores políticos. Tal tradição só mudou mais recentemente. (Avritzer, 2002, p.37). Essas experiências, entre outras, comparecem com certo destaque no percurso da luta pela democratização no Brasil. Ela tem se desenvolvido fundamentalmente em âmbito local, haja vista o fato de que as cidades, sobretudo os grandes centros, terem sido o núcleo-base de construção, e sustentação, do projeto autoritário no país na esteira da modernização conservadora, de modo a promover o crescimento industrial sobre as bases de uma urbanização permanente (Davidovich, 1995). Em diferentes níveis e expressões a sociedade civil expõe uma atuação política auspiciosa de uma variedade de movimentos sociais e ONGs, capazes de desempenhar ações complementares de grande relevância à 7

Embora estas sejam experiências bastante conhecidas, no Brasil a prática do orçamento participativo começou no final da década de 70, em pleno regime militar, em Lages (SC). A partir daí dezenas de programas de pressuposto participativo se seguiram pelo Brasil, despontando como experiências tanto nacional como internacionalmente conhecidas os casos de Porto Alegre (RS) e Belo Horizonte (MG), que se tornaram referências inspiradoras a outros governos municipais.

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atividade estatal, em diversas áreas e setores: moradia, meio-ambiente, educação, saúde, lazer, etc. O fato de que muitas decisões e soluções repousam sobre os ombros da sociedade civil (embora a dinâmica da sociedade civil possa ser positivamente influenciada ou catalisada pelo Estado sob circunstâncias especiais) obriga os planejadores críticos a abdicarem do hábito usual de superenfatizar discussões sobre instrumentos em detrimento do debate em torno dos (possíveis ou potenciais) protagonistas, seus valores e sua dinâmica. Por outro lado, isso não constitui qualquer perda ou concessão: a sociedade civil [...] pode ser essencial como complemento para a ação estatal, além de poder (e deve) ser pensada e valorizada independentemente do Estado e, mesmo, contra o Estado. Caso contrário, o risco de reproduzir o estadocentrismo e o racionalismo tecnocrático, ainda que mitigados e envolvidos por uma roupagem alternativa (“tecnocratismo de esquerda”) é total. Lidar com a dinâmica social, em vez de circunscrever-se a uma discussão técnica sobre instrumentos, está longe de ser, meramente, um desafio analítico, ainda que também o seja; o desafio é, igualmente, práticopolítico, e reside no fato de que a cultura (valores, cultura política) e a psicologia social dificilmente podem ser influenciadas por ações planejadas, a não ser, quiçá, no longo prazo. De toda maneira, certamente não serão influenciadas de modo “controlável” e monitorável: não se concebe aqui, um tratamento à la “engenharia social”. (Souza, 2002, p.523).

Diante disso, vale dizer que a história nos mostra que as situações de crise - com a decorrente queda da taxa média de lucro e da mais-valia - constituem um fator de dinamismo, de reações, de inovações, de insurgências, condição na qual o novo pode ser engendrado, não necessariamente para melhor, é bem verdade, mas inclusive. O mundo nos apresenta, em variados lugares e situações, uma diversidade de práticas sócioespaciais que indicariam a possibilidade de alternativas factíveis 8 , reveladoras de melhores possibilidades ao homem e aos seus respectivos espaços de vivência. Se a cidade, e o território de modo geral se inserem nos circuitos de valorização, não se pode perder de vista que esse movimento não é uma via de mão única, pois encerra uma dinâmica conflituosa permanente, e agora mais recrudescida, entre a propriedade e a apropriação. E não sem razão é que Odette Seabra (1996, p.71) nos diz que “[...] a história bem que poderia ser lida, contada, interpretada pelo movimento conflituoso entre a apropriação e a propriedade”, na qual a primeira, segundo a autora, está “referenciada a aspectos qualitativos, a atributos”, ao passo que a segunda “a quantidades, a comparações quantitativas, igualações formais, ao dinheiro (que delimitando o uso tende a restringi-lo)” 8 Pode-se oferecer, a título de exemplificação, o projeto de desenvolvimento urbano realizado na cidade de Bogotá, na Colômbia, que viabilizou a conexão da periferia com o centro da cidade, proporcionando ganhos em termos de qualidade de vida aos seus moradores, sobretudo nos locais envolvidos por esta conexão. Ademais, emergem na América Latina e, em específico, no Brasil, movimentos urbanos, de variados matizes, de música, arte, literatura, que ao lado de outros movimentos sociais, como os de luta pela terra, moradia, meio ambiente, entre outros, reivindicam a condição cidadã e um espaço mais digno. Pode-se recomendar ainda a leitura do importante livro organizado por Santos, B., 2002.

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Ela situa essa tensão entre os momentos racionais e os da apropriação, e explica: Esse conflito traduz-se numa luta pelo uso, pela apropriação, que absolutamente não é nem poderia ser entendida como marginal, à parte do todo, fora da sociedade e do social. Nesses termos, se o uso se insurge e ganha visibilidade, restabelece a dialética da propriedade em outros termos, em outros planos. É um processo que pressupõe atos práticos. (1996, p.76).

Pensar a cidade, a forma como ela é apropriada e transformada pressupõe uma concepção mais ampliada de território, o que se aplica também a alguns de seus atributos. Parte-se do pressuposto que o território revela a complexa totalidade do universo social e suas múltiplas formas de relações. Isto vale dizer que ele é tanto produzido pela dinâmica social como é por ela modelado, de modo a representar o universo geográfico de um complexo sistema de relações sociais diversificadas. Para além da acepção que o qualifica como um construto essencialmente material e econômico, ele também se qualifica como um valor simbólico na arena das relações sociais. Desse modo, ele envolve a valorização de práticas históricas e culturais empreendidas pelos sujeitos sociais e de suas relações com o espaço vivido. Nessa perspectiva, Rogério Haesbaert observa que O território é o produto de uma relação desigual de forças, envolvendo o domínio ou o controle político-econômico do espaço e sua apropriação simbólica, ora conjugados e mutuamente reforçados, ora desconectados e contraditoriamente articulados. Esta relação varia muito, por exemplo, conforme as classes sociais, os grupos culturais e as escalas geográficas que estivermos analisando. Como no mundo contemporâneo vive-se concomitantemente uma multiplicidade de escalas, numa simultaneidade atroz de eventos, vivenciam-se também, ao mesmo tempo, múltiplos territórios. (2002, p.121).

Assim, o território se desvela mais que um simples conjunto de objetos, por meio dos quais se realiza o trabalho social, a circulação e a moradia, mas também como um dado simbólico, ou ainda o produto de uma apropriação simbólica. Assim, ele compreende a identificação que os diversos grupos sociais têm ou realizam com os seus respectivos espaços de vivência. E aqui é importante ter clareza quanto ao fato de que A função do símbolo não é apenas instituir uma classificação, mas também introduzir valores, modelando os comportamentos individuais e coletivos e indicando as possibilidades de êxito dos seus empreendimentos. Os mais estáveis dos símbolos estão ancorados em necessidades profundas e acabam por se tornar uma razão de existir e agir para os indivíduos e para os grupos sociais. Os sistemas simbólicos em que assenta e através do qual opera o imaginário social são construídos a partir da experiência dos agentes sociais, mas também a partir dos seus desejos, aspirações e motivações.

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Qualquer campo de experiências sociais está rodeado por um horizonte de expectativas e de recusas, de temores e de esperanças. (Baczko, 1985, p.296-332).

Portanto, enquanto um dado simbólico o território é valorizado pelos investimentos afetivos nele realizados e vivenciados cotidianamente, investimentos estes que se inscrevem no uso do espaço. Daí poder-se dizer que um dado lugar pode alcançar certas condições que favoreçam os anseios e demandas de sua comunidade a partir do momento em que se formam laços afetivos (simbólicos) com o lugar. Por outro lado, o esvaziamento, ou ainda a destituição de significações valorativas do território conformaria uma condição de alienação territorial, podendo-se mesmo falar de um território alienado, estranho ao espírito e à razão. Compreende-se, então, que as experiências vividas no espaço fazem dele um espaço conhecido, familiar, dotado de certa personalidade, atributos pelos quais ele se consubstancia em lugar. Para YI-Fu Tuam, “quando o espaço nos é inteiramente familiar, torna-se lugar”, que se revela como “um mundo de significado organizado”. (Tuam, 1983, p.83). Num sentido mais amplo, Ana Fani A. Carlos observa que o lugar é [...] a porção do espaço apropriável para a vida, revelando o plano da microescala: o bairro, a praça, a rua, o pequeno e restrito comércio que pipoca na metrópole, aproximando seus moradores, que podem ser mais do que pontos de troca de mercadorias, pois criam possibilidades de encontro e guardam uma significação como elementos de sociabilidade. A análise da vida cotidiana envolve o uso do espaço pelo corpo, o espaço imediato da vida das relações cotidianas mais finas: as relações de vizinhança, o ato de ir às compras, o caminhar, o encontro, os jogos, as brincadeiras, o percurso reconhecido de uma prática vivida/reconhecida em pequenos atos corriqueiros e aparentemente sem sentido que criam laços profundos de identidade, habitante-habitante e habitante-lugar, marcada pela presença. São, portanto, os lugares que o homem habita dentro da cidade e que dizem respeito a sua vida cotidiana, lugares como condição da vida, que vão ganhando o significado dado pelo uso (em suas possibilidades e limites). Trata-se, portanto, de um espaço palpável, real e concreto – a extensão exterior, o que é exterior a nós, e ao mesmo tempo interior. São as relações que criam o sentido dos “lugares” da metrópole. Isto porque o lugar só pode ser compreendido em suas referências, que não são específicas de uma função ou de uma forma, mas produzidas por um conjunto de sentidos, impressos pelo uso. É assim que os percursos realizados pelos habitantes ligam o lugar de domicilio aos lugares de lazer, de trabalho, de comunicação, ordenados segundo as propriedades do tempo vivido. Nesse processo se desvenda a base da reprodução da vida passível de ser analisada pela relação habitante-lugar (pela mediação do uso), como produtora de identidade do indivíduo. A construção da cidade, hoje, revela a dupla tendência entre a imposição de um “espaço que se quer moderno”, logo homogêneo e monumental, definido, ou melhor, “desenhado” como espaço que abriga construções em altura associadas a uma rede de comunicação densa e rápida, e de outro “as condições de possibilidade”, que se referem

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à realização da vida (que se acham à espreita, de modo contestatório), revelando uma luta intensa em torno dos modos de apropriação do espaço e do tempo na metrópole – um processo que ocorre de modo profundamente desigual, revelando-se em seus fragmentos. (2001, p.35-36).

Uso, apropriação e territorialidade: o bairro de Santa Tereza, Belo Horizonte, MG À luz destas considerações oferecemos, a título de exemplificação, um caso estudado em nossa tese de doutorado (Baggio, 2005) a fim de pensar as possibilidades ao uso e à apropriação social do espaço. Trata-se de uma prática político-territorial matizada pela resistência a certas medidas urbanísticas tomadas pelo Estado, acolitada pelas sanhas do capital imobiliário, ávido por negócios lucrativos na cidade. A práxis sócio-espacial em tela traduz ainda uma significativa valorização simbólica local, o que nos levou a refletir sobre a formação de uma efetiva territorialidade em torno das condições de apropriação do espaço, mais especificamente do bairro de Santa Tereza, localizado na porção leste da cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, sobre o qual discorreremos a partir de agora. Embora Santa Tereza tenha nascido com a cidade planejada de Belo Horizonte, estando a sua área prevista na zona suburbana da nova capital, com seus traçados projetados desde a fundação da cidade em 1897, com indicação de ruas e suas respectivas designações, este lugar não se configurou, entretanto, como um espaço rigidamente planejado, tal como se deu com a zona Central de Belo Horizonte. Esta área correspondia ao que hoje é a extensão compreendida entre a Avenida Silviano Brandão, as ruas Salinas e Conselheiro Rocha, e a Avenida do Contorno. Naquela época, tal área constituía parte da Sétima Seção Suburbana. Registre-se que os terrenos desta seção foram, em parte, doados ao funcionalismo público e aos militares, e outra parte disponibilizada para a venda a particulares. A planta desta área só seria aprovada em 1926 (com a aprovação da segunda Planta geral da cidade). Esclareça-se que o levantamento de todas as áreas pertencentes à margem esquerda do Ribeirão Arrudas (Carlos Prates, Lagoinha, Floresta, Américo Werneck, Imigração) foi motivado pela necessidade de se iniciar o projeto do reservatório do Menezes e outros trabalhos infra-estruturais, empreitada que envolveu grandes dificuldades, à medida que os técnicos se ressentiam da inexistência de marcos de alinhamentos feitos pela Comissão Construtora para toda a região externa à Avenida do Contorno. Desse modo, em 1923 são descritos os trabalhos de campo para a região designada Imigração, onde hoje está Santa Tereza, para a qual foi confeccionado o cadastro completo do terreno, figurando, ainda, no desenho da planta a conformação topográfica do solo através de curvas de nível com intervalos de um metro. Até o final dos anos 10, a comunidade ainda não contava com ruas abertas, o que se daria mais efetivamente a partir dos anos 20, quando diversas obras de terraplanagem e calçamento foram realizadas no local, assim como a dotação de alguma infra-estrutura de esgoto e rede de água. Parte destes construtos ainda pontua na paisagem do bairro até

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os dias hoje, podendo-se destacar a conhecida praça central de Santa Tereza (Praça Duque de Caxias). Esta praça comparece na história do bairro como uma conquista da comunidade local junto ao poder público, fruto de suas reivindicações. Sua inauguração deu-se em 1937, sofrendo diversas reformas ao longo do tempo, a última delas na gestão do prefeito Célio de Castro (gestão 01/01/1997 a 27/03/2003)9 , que em 30/06/2000 a reinaugurou, passando a contar com uma área maior, pisos novos, canteiros e anfiteatro para shows. Por enquanto, ela é o principal local do bairro para a realização de eventos públicos de maior monta. Até os anos 30 a maior parte das ruas do bairro apresentava-se em precário estado de conservação e com baixo índice de pavimentação, ruas que praticamente ficavam intransitáveis em situações de maior incidência pluviométrica. O bairro só teria suas principais ruas calçadas e iluminadas na década de 1940, quando começou a ganhar alguma projeção em jornais e folhetins da cidade como um “bairro novo” e “agradável”, embora seus moradores continuadamente reclamassem das suas deficiências infraestruturais. Nestes tempos a Praça de Santa Tereza afirmava-se como o principal lugar de encontro da comunidade, local de realização de festividades e do footing, sobretudo nos finais de semana. Na Rua Mármore, bem ao lado dela, realizava-se o levantamento das duas torres da igreja matriz, que é considerada pelos moradores do bairro um dos seus principais ícones identitários. Vista à distância - como, por exemplo, da Avenida dos Andradas -, suas imponentes torres destacam-se na paisagem, servindo como uma clara referência ao bairro. A praça, até o momento, é o lugar de maior atração e concentração de pessoas do bairro, sobretudo às noites, quando se converte no “epicentro da boemia” deste lugar10 , destacando-se no universo da sua vida cotidiana e da sua sociabilidade. Desde o início das obras de construção da matriz em 1931 até a sua inauguração oficial em 01/05/1962, transcorreram-se, portanto, 31 anos de trabalho coletivo, o que certamente contribuiu para afirmá-la no imaginário dos moradores do bairro. E tudo leva a crer que a edificação da igreja matriz bem como a construção do antigo coreto da Praça Duque de Caxias, e os jardins que ali foram construídos, consolidaram este lugar como a área central de Santa Tereza. Nas narrativas de seus moradores a praça e a igreja comparecem como os dois principais ícones identitários do lugar. Na década de 1950 já se podia observar, com maior clareza, o predomínio de construções de uso residencial no bairro, quando começaram a surgir construções de pequenos edifícios. Vale dizer que o período compreendido entre o final dos anos 40 e aproximadamente meados dos anos 50 é caracterizado em Belo Horizonte como uma fase na qual o mercado expõe um traço predominantemente especulativo, quando então

9 Cumpre observar que o prefeito Célio de Castro foi reeleito para o período de 01/01/2001 a 31/12/2004. Contudo, por motivos de saúde, foi licenciado em 31/12/2002 e aposentado em 27/03/2003. 10 Esta condição da Praça Duque de Caxias e seu entorno, com a presença de bares e restaurantes, mereceu uma matéria de duas páginas no jornal “O Tempo”, com o título “Santa Tereza reafirma a cada dia sua vocação notívaga”. Cf. Jornal O Tempo, 2001, p.10-11.

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operou uma enorme oferta de lotes, sinalizando para a abertura de novas frentes do processo de expansão urbana por meio do loteamento de grandes áreas. Nestas, apenas se fazia a abertura de ruas, sem qualquer dotação de infra-estrutura básica, conduzindo à formação de bairros cada vez mais longínquos, o que consolidou a expansão periférica e a conurbação, precipitando desse modo a metropolização de Belo Horizonte. (Plano Diretor de Belo Horizonte, 1995). Os avanços da industrialização e da urbanização representaram para o bairro o recrudescimento dos empreendimentos imobiliários, principalmente a partir dos anos 80, como evidencia a construção de pequenos conjuntos habitacionais na época. O adensamento populacional e a expansão da área construída desencadearam a formação de uma teia de conflitos entre a apropriação da rua para o desfrute dos moradores e o recrudescimento do tráfego, em detrimento da primeira. Entretanto, este movimento não representou uma ampla supressão de práticas de uso no local, sendo ainda observáveis nos seus interstícios (sobretudo nas ruas de menor tráfego) bem como na Praça Duque de Caxias. Estas áreas não estão, obviamente, incólumes aos problemas sociais e seus agravos, com ocorrências esporádicas de pequenos furtos, agressões, roubos, uso miúdo de drogas, etc. As obras de infra-estrutura na região onde se localiza o bairro de Santa Tereza tornaram esse bairro bem mais vulnerável aos empreendimentos imobiliários de maior monta, quando já se podia constatar a expansão do uso comercial e da construção de edifícios. Pode-se destacar, por exemplo, a verticalização permitida pelo zoneamento ZR-4 (criada para a área em torno do centro da cidade), que induz a ocupação residencial multifamiliar vertical. (Plano Diretor de Belo Horizonte, 1995). Foi nesse contexto que emergiu em 1996 se não a maior uma das maiores mobilizações dos moradores na defesa do bairro frente às ameaças representadas pela voracidade dos capitais imobiliários, episódio que precipitou a resistência da comunidade local face à mudança de padrão de ocupação estabelecida pelo poder público municipal. O evento mais marcante desta mobilização foi, indubitavelmente, o ato público ocorrido em 21 de abril de 1996, quando os seus participantes fizeram um “abraço simbólico” em torno da Praça Duque de Caxias. Este acontecimento é o que melhor simboliza o percurso da resistência local, explicitando para a comunidade do bairro e para a cidade de Belo Horizonte os motivos desta luta e o seu sentido, evidenciando a determinação de seus moradores quanto à importância de se preservar a identidade do bairro. Esta ação efetivamente teve fortes ressonâncias junto ao poder público, conduzindo à aprovação do artigo 83 da Lei 7.166/96, mais precisamente em 14/06/1996 pela Câmara dos Vereadores, que resguarda o bairro de comprometimentos ao seu patrimônio arquitetônico-urbanístico. Desta ação resultou uma das emendas acatadas pela Comissão que analisou o Plano Diretor de Belo Horizonte de 1995, pela qual o bairro passou a ser considerado uma ADE (Área de Diretrizes Especiais)11 . O parágrafo primeiro deste 11

A ADE (Área de Diretrizes Especiais) é definida como uma área que, em função das características ambientais e da ocupação histórico-cultural, demanda a adoção de medidas especiais para proteger e manter o uso predominantemente residencial.

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artigo prevê ainda mecanismos de participação da comunidade e na gestão da região. O parágrafo segundo estabelece que além de uso residencial, somente é permitido na ADE Santa Tereza o funcionamento das atividades relativas aos usos do Grupo I, isto é, prédios com até três andares e com altura máxima de 15 metros e para os casos que não impliquem a demolição das edificações hoje existentes. Desse modo, o novo Plano Diretor da Cidade (aprovado no final de 1996 e com vigência a partir de 1997), estabeleceu diretrizes especiais para construção e implantação de atividades no bairro, dificultando a construção de espigões. Vale dizer que a área construída de Santa Tereza expõe um expressivo percentual de casas, pouco mais de 70%, e os quase 30% restantes de prédios de apartamentos. Entretanto, se estas medidas impuseram restrições à construção de “arranha-céus” no bairro, elas não têm conseguido conter de forma ampla a construção de prédios de menor porte. Percorrendo-se as ruas do bairro, pode-se observar a presença destes edifícios em vários pontos. Porém, não ainda a ponto de entabular uma ampla e profunda descaracterização do bairro. Acrescente-se, ainda, que além do impedimento à verticalização de maior volumetria, outro fator de ameaça e constrangimento que a regulamentação da ADE pretende evitar, é o atravessamento do bairro pelo chamado tráfego de passagem. Esta ação de resistência à descaracterização do bairro, conducente à sua transformação em ADE (a primeira a ser criada em Belo Horizonte), ocorreu logo após a descoberta, por um grupo de moradores, de que o bairro de Santa Tereza tinha sido incluído no novo Plano Diretor de 1995, como Zona de Adensamento Preferencial (ZAP). Este fato precipitou a formação do Movimento Salve Santa Tereza - tido como o principal responsável por esta conquista -, de modo a barrar uma desfiguração maior que já se manifestava em alguns pontos, como, por exemplo, na Rua Hermílio Alves, que já apresentava prédios de 12 andares.12 Este movimento emergiu, portanto, na eminência efetiva desta ameaça representada pela nova legislação urbana de Belo Horizonte. A pressão exercida pelo Movimento se deu no sentido de modificar o projeto do Plano, mais especificamente da lei de parcelamento, ocupação e uso do solo urbano. Desse modo, diante da verticalização e da flexibilização permitidas na proposta do Plano Diretor (rejeitadas pelo Movimento), afirma-se o desejo da comunidade do bairro pela manutenção das suas características locais, tendo em vista o resguardo de certa tranqüilidade, da qualidade de vida e da sua sociabilidade. De um pequeno grupo de pessoas, o então embrionário movimento se alarga, angariando apoios importantes pela cidade como, por exemplo, do IAB e da OAB. A proximidade de Santa Tereza à zona central de Belo Horizonte, à região hospitalar e ao bairro Savassi (áreas já há algum tempo saturadas), conferiu-lhe grande vulnerabilidade às sanhas do capital imobiliário, condição reforçada com a classificação de ZAP (Zona 12

Segundo diagnóstico feito pelas secretarias municipais de Planejamento e Atividades Urbanas, até 1998, Santa Tereza apresentava 5 edifícios com mais de 11pavimentos (sendo um deles com três blocos), 7 entre 8 e 10 pavimentos, 14 entre 5 e 7 pavimentos, e mais de 3 mil edificações com até quatro pavimentos. In: Hoje em Dia, Belo Horizonte, 13 de outubro de 1998. p.5.

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de Adensamento Preferencial) proposta inicialmente pelo Plano Diretor. Após todo um trabalho de convencimento junto aos vereadores e à opinião pública, no sentido de se chamar a atenção para a relevância da região do bairro e, mais especificamente, de Santa Tereza à cidade de Belo Horizonte (o que contou com uma boa divulgação pela mídia) o resultado foi a criação da ADE. Não fosse essa mobilização de resistência dos moradores, e os apoios que o movimento recebeu de várias instituições, poder-se-ia prever, como um dos cenários mais prováveis (sem a criação da ADE), uma rápida e efetiva descaracterização do bairro pelo capital imobiliário. Isto seguramente acarretaria sérios comprometimentos aos seus espaços de convívio (ainda existentes e insinuantes), assim como ao seu acervo arquitetônico e urbanístico (que ainda guarda um expressivo casario do início do século XX, sobretudo dos anos 20 e 30) pela substituição progressiva do patrimônio edificado. Ademais, o recrudescimento da verticalização levaria a sobrecargas na infra-estrutura de água, de esgoto e de trânsito. Pelo nosso entendimento, esse percurso de mobilização e resistência expõe a conformação de uma situação espacial em Santa Tereza, na qual os moradores decidiram conscientemente acerca do lugar de moradia, vivência e existência. O questionamento diante do prescrito, da situação indesejada de descaracterização representada pelas normas urbanísticas inicialmente propostas pelo Plano Diretor, suscitou uma “tomada de consciência”. Tal condição sugeriria uma perspectiva oposta a uma reificação sócioespacial, uma vez que esta práxis territorial de resistência encerra (e está pautada por) sentimentos, afetividade entre as pessoas e destas com o lugar de vivência, aspectos que se inscrevem na historicidade topofílica do bairro, política e socialmente valorizada. Conquanto o bairro ocupe atualmente uma área correspondente a 84,292 km2, delimitada ao norte pela Rua Pouso Alegre, ao sul e a leste pela Rua Conselheiro Rocha, e mais a oeste pela av. Flávio dos Santos e av. do Contorno, com uma população estimada (dados de 2000) em 12.122 habitantes13 (entre eles, muitos moradores antigos, estudantes universitários, professores, artistas plásticos, músicos, ceramistas, poetas etc.14 ), Santa Tereza conformou-se como um bairro predominantemente residencial, evidenciando-se no contexto sócio-espacial de Belo Horizonte pela sua vida boêmia, festiva e artística.

13 Esclareça-se que a estimativa se fez a partir de dados disponibilizados no Censo do IBGE de 1991 para os bairros de Santa Tereza e Floresta (respectivamente com 10.761 e 18.852 habitantes) para o ano 2000, quando então os dados não são apresentados por bairro nem pelo IBGE (que opera com setores censitários) e nem pela Prefeitura de Belo Horizonte (que trabalha com Unidades de Planejamento). Assim sendo, levantei no Anuário Estatístico de Belo Horizonte (2001) os dados da Unidade de Planejamento Floresta/Santa Tereza de 2000 (que indica apenas a população de forma agregada, no caso de 33.357 habitantes) para fazer esta estimativa. Trabalhando-se os dados destes dois períodos (1991 e 2000), pode-se constatar, de forma aproximada, que a população de Santa Tereza e da Floresta em 2000 perfaziam, respectivamente, 12.122 e 21.235, muito embora não seja prudente e nem razoável afirmar que estes bairros tenham crescido na mesma proporção. Trata-se, portanto, de uma aproximação. 14 Cumpre observar, acerca disso, que a literatura sobre valorização do espaço, que atravessa a geografia econômica, fala dessa presença social “alternativa” que tem “certa cultura” e pode ser intermediária – no tempo da capitalização possível – de outros usos e moradores.

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Esta tríade é uma de suas características mais marcantes. Ela representa um traço forte nas suas práticas sócio-espaciais e, desse modo, na sua identidade e territorialidade. O que faz deste lugar um espaço de atração e de “philia”, de procura constante por moradores de diversas partes de Belo Horizonte e mesmo de outras cidades, inclusive do exterior. É um traço historicamente constituído no bairro, consolidado e inscrito no universo da festa, do encontro, da afetividade e, portanto, do uso (concomitantemente do tempo e do espaço). Eis o que lhe é proeminente, éter que o envolve e matiza a sua singularidade. Vejamos, acerca disso, alguns depoimentos de moradores: Escolhi Santa Tereza, que me chamava atenção por ser mais parecida ainda com cidade do interior, mais família. Cheguei no bairro há 10 anos e os vizinhos me procuram, uma coisa que na capital, na cidade grande, não existe, esse cuidado dos vizinhos, que vem e procuram, que quer saber, saber o que é que faz. E isso me atrai muito, me sinto muito à vontade com essa coisa de ser uma grande família. Me sinto mais segura, de não ser tão anônima na grande cidade. [...]. Aqui tem ainda muita casa. Quis morar num bairro com mais casas do que prédios. A gente batalhou pra ter leis que protegessem o bairro. A comunidade é unida, eles discutem, cobram. [...] A grande diferença é a semelhança com o interior. Aqui se conhece todo mundo. Há dez anos que estou aqui e as pessoas são assim, não apenas os vizinhos. [...] Há um afeto entre os moradores.15

Um outro morador, que reside a 51 anos em Santa Tereza acredita que o bairro seja [...] um dos melhores bairros para se morar da cidade. A vida aqui é mais tranqüila. [...] É difícil alguém não conhecer a outra pessoa. [...] Aqui tem muitas famílias antigas. Permaneço até hoje no bairro porque tenho relações de amizade antigas.16

Em depoimento de outra moradora, que vive no bairro há 36 anos, e que diz adorar a cidade de Belo Horizonte, Santa Tereza comparece como o lugar preferido da capital mineira, no qual tem a maior parte de seus familiares. Embora identifique no bairro um relativo avanço da violência e uma insuficiência do policiamento, o bairro, mesmo assim, é considerado “um bom lugar para se viver”. E explica: [...] talvez porque tenha ainda muita residência, menos edifícios, o povo ser mais socialmente amigo. A gente sai aqui, todo mundo sai se cumprimentando como se fosse uma cidade do interior. [...] Todo mundo te cumprimenta; de início pergunta as coisas, conversa, sai andando, fazendo uma compra, conversando, como se fossem conhecidos; mas, às vezes, se conhecem só de vista, pouco se sabe da pessoa.17 15

A entrevistada é artista plástica e tem 60 anos (entrevista realizada em 01 de maio de 2004). Técnico de contabilidade e tem 66 anos (entrevista realizada em 04 de agosto de 2004). 17 Aposentada, tem 76 anos (entrevista realizada em 05 de agosto de 2004). 16

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Perguntado sobre as suas impressões sobre Santa Tereza, um outro entrevistado respondeu o seguinte: As melhores possíveis. Um bairro bom de morar porque não é superpopuloso. Apresenta uma infra-estrutura urbana razoável ou fácil acesso a equipamentos urbanos. Não passou por processo de verticalização como Floresta, Sagrada Família e Santa Efigênia. Apesar de alguns relatos dando notícias de roubos e assaltos, tenho a impressão de segurança, de conforto ao caminhar ou percorrer de carro as ruas do bairro, que são bastante simpáticas.18

Embora as relações entre os moradores revelem-se diversificadas, o bairro, como se viu, ainda guarda relações estreitas de vizinhança (de boa vizinhança), fato que pode ser atribuído, de um lado, à presença e permanência de moradores antigos nas suas dependências, cuja longa convivência proporciona um conhecimento mútuo e íntimo dos seus hábitos; de outro, pelo relativo “insulamento” do bairro em relação ao centro e demais áreas de maior dinamismo da cidade, resguardando-se, até certo ponto, de uma efetiva elitização sócio-econômica, aspecto pelo qual ele ainda se apresenta como um bairro predominantemente de segmentos de renda média e baixa. Como mencionado a pouco, a constituição deste quadro sócio-espacial mais “particularizado” ao longo dos tempos pode ser atribuída ao relativo isolamento geográfico que o lugar experimentou durante um bom tempo em relação ao seu entorno. Historicamente, o bairro se encontrava “fora” da zona urbana, demarcando, assim, uma descontinuidade espacial no processo mais geral de formação da cidade. Mas esta descontinuidade não se reduz apenas à dimensão territorial, mas se estende aos modos territoriais de vivência no/do bairro. O fato do bairro não ter sido drenado por grandes artérias de circulação, contribuiu significativamente para um relativo resguardo dessa conformação sócio-espacial. Santa Tereza afirmou-se no interior da metrópole como um lugar em que seus moradores o reconhecem como seu, evidenciando interações observáveis entre as formas físicas e as formas sociais, pelas quais se forma o vínculo entre preservação e comunidade. Portanto, seu percurso de formação sugere a constituição de uma outra sociabilidade, que não foi forjada pelos imperativos da racionalidade geométrica. A própria conformação das suas ruas - caracterizada, entre outras formas, também pela presença de becos, ruas estreitas e tortuosas -, favorece a aproximação e o encontro entre as pessoas, o contato direto, ainda favorecendo uma maior aproximação entre as pessoas. Pode-se dizer que Santa Tereza se afirma no movimento mais amplo de estruturação e evolução da metrópole interiorana (Belo Horizonte) como um lugar histórica e geograficamente vivenciado pela comunidade que nele se inscreve. Enquanto um espaço 18 Morador do bairro há alguns anos, o entrevistado tem 36 anos, é historiador e professor universitário (entrevista realizada em 20 de abril de 2004).

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vivido, e não simplesmente um espaço visto, condição pela qual se realiza historicamente a ação e a exploração do indivíduo no espaço, o bairro se insinua no conjunto da cidade como um lugar diferenciado, dotado de certa singularidade - e cada lugar é, à sua maneira, o mundo... Para tal singularidade há que se levarem em conta seus modos territoriais de vivência, que se manifestam, sobretudo, na sua musicalidade, na vida boêmia, nas rodas de “bate-papos” (principalmente nos bares e restaurantes), na vida religiosa da Paróquia de Santa Tereza, na mobilização política em torno da preservação do bairro, nas feiras, etc. Eles representam efetivos vetores de socialização no bairro, à medida que entabula o compartilhamento coletivo (por grupos) e individual em diversos lugares, conferindo-

lhe, assim, um sentido locacional de presença e co-existência. Vinculando-se a esses modos territoriais de vivência, a formação sócio-espacial de Santa Tereza expõe ainda a existência de uma territorialidade insinuante, que é matizada essencialmente pela valorização simbólica e afetiva do lugar por seus moradores e, de forma correlacionada, pela politização em relação às questões que envolvem a sua preservação. Sendo a territorialidade compreendida como uma categoria relacional espaçosociedade, ela “[...] corresponde ao conjunto das relações que permitem aos diversos grupos fazer valer seus interesses no espaço, tornado lugar de vida”. (Bailly; Beguin, 1998, p.16). Neste sentido, ela se traduz e se inscreve como um fenômeno existencial, uma experiência possível manifesta no tempo e no espaço. É por meio dela que um dado grupo social ou mesmo o indivíduo adquirem consciência do seu espaço de vida. Desse modo, a territorialidade assume um valor bem particular, uma vez que reflete a multidimensionalidade do “vivido” territorial pelos membros da coletividade, pelas sociedades em geral. (Raffestin, 1993, p.158). Para o autor, a territorialidade sempre apresenta em sua base [...] uma relação, mesmo que diferenciada, com os outros atores. Cada sistema territorial segrega sua própria territorialidade, que os indivíduos e as sociedades vivem. A territorialidade se manifesta em todas as escalas espaciais e sociais; ela é consubstancial a todas as relações e seria possível dizer que, de certa forma, é a “face vivida” da “face agida” do poder. (1983, p.161-162).

É preciso esclarecer que não se trata de uma simples relação com o espaço, ou mesmo como uma suposta admissão da idéia pela qual a forma determina o conteúdo, haja vista que as formas espaciais, por si mesmas, são insuficientes para explicar a sociedade no seu estatuto ontológico. Todavia, não se postula aqui a inversão da situação através da negligência para com o espaço, o qual não se expressa tão somente como um mero reflexo da sociedade, mas simultaneamente como o terreno onde as práticas sociais se exercem, sendo, concomitantemente, [...] “a condição necessária para que elas existam e o quadro que as delimita e lhes dá sentido”. (Gomes, 2002, p.172).

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Considerando-se que a territorialidade encerra uma dinâmica, em que seus fatores constitutivos são passíveis de modificações espaço-temporais, postula-se que a territorialidade de Santa Tereza se inscreveria, mais especificamente, no universo relacional entre “uma territorialidade estável” e “uma territorialidade instável” (Raffestin, 1983, p.162). De acordo com Raffestin, na “territorialidade estável [...] nenhum dos elementos sofre mudanças sensíveis a longo prazo”, enquanto na “territorialidade instável [...] os elementos sofrem mudanças a longo prazo”. (1983, p.162). É plausível admitir, então, que Santa Tereza se apresentaria, ao menos por enquanto, como um construto sócio-espacial dotado de uma territorialidade híbrida, assentada em relações de troca e/ou comunicação, na qual parte dos seus elementos constitutivos pode mudar e outra permanecer estável. Esta interpretação remete à dimensão da vida cotidiana na modelação do bairro, uma vez que é nela que se inscrevem os chamados “benefícios simbólicos”. Segundo Pierre Mayol (1997, p.39), Esses benefícios deitam suas raízes na tradição cultural do usuário, não se acham totalmente presentes à sua consciência. Aparecem de maneira parcial, fragmentada, no modo como caminha, ou, de maneira geral, através do modo como “consome” o espaço público. Pode-se também elucidá-lo através do discurso de sentido pelo qual o usuário relata a quase totalidade de suas iniciativas. O bairro aparece assim como o lugar onde se manifesta um “engajamento” social ou, noutros termos: uma arte de conviver com parceiros (vizinhos, comerciantes) que estão ligados a você pelo fato concreto, mas essencial, da proximidade e da repetição. (grifo do autor).

Portanto, o bairro comparece no universo da metrópole (que só parcialmente pode ser vivida) como um espaço dotado de uma dimensão relacional entre os sujeitos e o território, entabulando uma prática cotidiana que, [...] introduz um pouco de gratuidade no lugar da necessidade; ela favorece uma utilização do espaço urbano não finalizado pelo seu uso somente funcional. No limite, visa conceder o máximo de tempo a um mínimo de espaço para liberar possibilidades de deambulação. [...] O bairro é, no sentido forte do termo, um objeto de consumo do qual se apropria o usuário no modo da privatização do espaço público (Mayol, 1997, p.44-45).

Este percurso nos leva, assim, a uma reflexão sobre a apropriação social do espaço. Estando a apropriação vinculada diretamente ao uso habitual do espaço, pelo qual ele localmente se insere num circuito relacional mais imediato e próximo do usuário, o espaço se torna, então, uma espécie de extensão do espaço residencial mais particular, que é a casa. O que vale dizer que a apropriação, tal qual a territorialidade, se inscreve no universo da moradia, relacionando-se com a ambiência sócio-espacial urbana. A fixidez do habitat do usuário associada ao uso cotidiano do bairro faz com que ele, gradativamente, se insira numa esfera privada pelos investimentos regulares que o citadino realiza no seu ambiente,

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capturando e introduzindo-o no seu universo existencial. Isto estabelece no lugar uma relação de aproximação e envolvimento. O sentido desta esfera privada do espaço não está referenciado propriamente pela propriedade, mas no seu uso cotidiano, através do qual ele é apropriado por agentes sociais que trazem em suas vidas a experiência de uma esfera privada íntima, que de certo modo se exterioriza pelos domínios do espaço público. Trata-se de uma apropriação em que o corpo, com sua relação mais imediata e efetiva com o lugar, opera um papel primordial, dado que esta apropriação traduz a dimensão do espaço enquanto espaço vivido, com fluxos e ritmos referenciados ao humano, que não necessariamente se anula em função da velocidade da técnica e das dinâmicas do capital frequentemente a ela associadas, podendo mesmo “escapar” delas. Neste sentido, Ana Fani A. Carlos (1996, p.22) observa que Os percursos realizados pelos habitantes ligam o lugar de domicílio aos lugares de lazer, de comunicação, mas o importante é que essas mediações espaciais são ordenadas segundo as propriedades do tempo vivido. Um mesmo trajeto convoca o privado e o público, o individual e o coletivo, o necessário e o gratuito. Enfim o ato de caminhar é intermediário e parece banal – é uma prática preciosa porque pouco ocultada pelas representações abstratas; ela deixa ver como a vida do habitante é petrificada de sensações muito imediatas e de ações interrompidas. São as relações que criam o sentido dos “lugares” da metrópole. Isto porque o lugar só pode ser compreendido em suas referências, que não são específicas de uma função ou de uma forma, mas produzidas por um conjunto de sentidos, impressos pelo uso.

As áreas demarcadas por relações mais diretas e regulares com o lugar, e pelo lugar, circunscreveriam uma relação inseparável entre apropriação do espaço e territorialidade. Há, sem dúvida, limites ou restrições à apropriação espacial, porém as noções de limite e restrição relativas a ela não significam a sua impossibilidade, a sua não-realização absoluta, conquanto as contradições potencializadas do capitalismo em crise açulam novos dinamismos e transformações na relação sociedade/espaço. Ademais, a questão relativa à apropriação do espaço e à formação da(s) territorialidade(s) envolve dificuldades e questionamentos, entre os quais a da ambigüidade entre o real e a sua representação. O próprio significado de representação é alvo de debates, oscilando desde interpretações que a consideram uma ilusão, isto é, uma expressão descolada do real, até leituras que a qualificam como parte integrante e formativa do próprio real, havendo ainda compreensões menos polarizadas que a situa num universo intermediário, um misto de real e de sua figuração. Buscamos aqui trabalhar com a categoria da representação numa perspectiva geográfica, pelo aporte da territorialidade. Enquanto uma práxis inscrita no social, a apropriação e a formação da territorialidade - embora restringidas no curso do desenvolvimento da modernidade – encerram potencialidades que indagam sua dimensão e seu alcance na contemporaneidade, sobretudo

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potencialidades de práxis de caráter inventivo, que não devem ser confundidas com práxis estritamente repetitivas. (Lefebvre, 1958). Se no âmbito do social engendram-se fronteiras e limites, estes limites não são automáticos e absolutos, uma vez que o social é, por excelência, o universo relacional e comunicacional em que emergem proposições de novas possibilidades e ações. Assim, o social compreenderia mais propriamente Um espaço em que Eu e Outro se encontram, exploram identidades, constroem símbolos e expressam afetos. Nesse sentido, o social é também um espaço para transcender fronteiras institucionalizadas e para instituir novas fronteiras. A teoria das representações sociais deve ser explícita em sua concepção do social – ele não é uma variável independente; não é uma estrutura externa, não é uma influência. O social é a arena própria que constitui a dimensão objetiva e a dimensão subjetiva do fenômeno das representações sociais. O jogo entre o subjetivo e o objetivo, e entre a ação e a reprodução, que constituem o social está no centro do processo de formação das representações sociais. (Jovchelovitch, 2000, p.180-181).

Admitindo-se que a territorialidade se circunscreva no âmbito da representação, portanto do discurso e da narrativa, é necessário levar em conta que elas estão referenciadas no e pelo real, uma vez que o imaginário social não resulta do nada. Contudo, cabe evocar o alerta cautelar de Ítalo Calvino, para o qual “[...] jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve. Contudo, existe uma ligação entre eles”. (Calvino, 1997, p.59). À medida que o imaginário emerge e se constitui no plano das chamadas realidades intersubjetivas, a territorialidade revelar-se-ia então como uma expressão espacial intelectualmente construída a partir de referências da realidade. Nesse sentido poder-seia dizer que as ações humanas sofrem influências das representações, podendo estas modelar comportamentos e práticas sociais. Portanto, a territorialidade estaria circunscrita aos limites de uma “realidade ilusória”, confinada tão somente ao universo mental, intelectual? A media que ela se integra à esfera existencial, portanto da vida, a territorialidade enquanto representação não seria ela própria parte da realidade? Afora polêmicas em torno da questão, compreendemos que o procedimento de apartá-las do real, ou tomá-las como uma espécie de “real distorcido” sugere uma concepção científica (ou, talvez, cientificista) de objetividade, que condena o investigador a um tratamento cognitivo do objeto de conhecimento que faz dele uma expressão vazia e destituída de subjetividade. Neste sentido, As coisas objetivamente consideradas podem ter peso, volume, estrutura atômica e tudo aquilo que os instrumentos científicos conseguirão medir. Mas a subjetividade humana é soberana em seus domínios e não cede as suas prerrogativas. [...] A luminosidade vivida não reflete a luminosidade medida. Ninguém, é verdade, enxerga no escuro. Mas a luz que de fato importa e a luminosidade das coisas vistas [...] dependem muito do estado

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mental de quem vê. (Giannetti, 1997, p.86). Assim, a formação da territorialidade implica também o nível da representação, estando esta amalgamada àquela. O sentimento de pertencimento, bem como o de compartilhamento a um dado lugar (ingredientes importantes na formação da territorialidade), como vimos no caso de Santa Tereza, envolve fatores diversos, bem como são diversas as formas pelas quais eles se realizam. Mas é no plano da experiência sócio-espacial efetiva – real - que eles são forjados. Fazemos ainda um último adendo no debate em torno do significado de apropriação, que se enriquece com a contribuição de Rogério Haesbaert (2002), fundamentado nas idéias de Henri Lefebvre, de modo a apresentar uma distinção entre apropriação e dominação do espaço. Haesbaert observa que Lefebvre faz uma advertência para o fato de que embora estas expressões sócio-espaciais devessem aparecer associadas, juntas, elas também se tornaram separadas e contraditórias com o desenvolvimento do capitalismo e do processo de acumulação. Com eles, a posse, no sentido da propriedade, serviu concomitantemente como uma “condição” e um “desvio” da atividade de apropriação do espaço, em razão das demandas e possibilidades dos diversos grupos que a realizam. Nesta perspectiva, o conceito de apropriação de Lefebvre, segundo Haesbaert, comportaria fundamentalmente duas dimensões, quais sejam: Um processo efetivo de territorialização, que reúne uma dimensão concreta, de caráter predominantemente “funcional”, e uma dimensão simbólica e afetiva. A dominação tende a originar territórios puramente utilitários e funcionais, sem que um verdadeiro sentido socialmente compartilhado e/ ou uma relação de identidade com o espaço possa ter lugar. Assim, associar ao controle físico ou à dominação “objetiva” do espaço uma apropriação simbólica, mais subjetiva, implica discutir o território enquanto espaço simultaneamente dominado e apropriado, ou seja, sobre o qual se constrói não apenas um controle físico, mas também laços de identidade social. Simplificadamente podemos dizer que, enquanto a dominação do espaço por um grupo ou classe traz como conseqüência um fortalecimento das desigualdades sociais, a apropriação e construção de identidades territoriais resultam num fortalecimento das diferenças entre grupos, o que, por sua vez, pode desencadear tanto uma segregação maior quanto um diálogo mais fecundo e enriquecedor. (Haesbaert, 2002, p.120121).

Considerações finais Malgrado os impactos que a modernidade capitalista provoca no território e, mais especificamente, nas relações de solidariedade e de sociabilidade num dado lugar, isto não autoriza, contudo, afirmações apressadas de que elas necessariamente desapareçam

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ou se transmutem em relações alienadas, circunscritas a uma “cidadania caricatural” conquanto se admita as dificuldades de realização da cidadania sob a condição capitalista atual. Diante disso é que se reitera a necessidade de um olhar mais cuidadoso em relação ao presente, de modo a valorizar certas conquistas e avanços auspiciosos da práxis social, evitando-se generalizações e posturas totalizantes e pretensamente certas, não raro tendentes a um certo niilismo. O primado do valor de troca no universo espaço-temporal não é suficiente a ponto de estabelecer um território árido no qual a esperança e os desejos, bem como o uso e as territorialidades a ele vinculadas sejam banidos do mundo sensível, ou mesmo qualificados como expressões da alienação. Sinaliza-se, assim, para os limites deste movimento e as brechas que se abrem às possibilidades do uso e da apropriação social do espaço. Avanços quanto à constituição de uma condição sócio-espacial mais aceitável podem, até certo ponto, ocorrer mesmo sob o capitalismo, de modo a se valorizar as possibilidades do presente e a urgência de ações social e ambientalmente desejáveis e conseqüentes19 . No entanto, mudanças mais profundas certamente requereriam transformações nas bases da sociedade, o que se colocaria como um projeto de longo prazo. O que nos leva a asseverar que não haveria um protagonista exclusivo ou principal no processo de transformação do espaço e da cidade, sendo mais razoável se pensar num ator coletivo eficaz, social e politicamente reconhecido, cujo dimensionamento não se fizesse pela somatória de suas partes (ou agentes), mas por sua efetiva capacidade de articulação e integração em prol da melhoria das condições sócio-espaciais e, assim, da reprodução social e da existência presente e futura. Conquanto as condições sócio-espaciais da contemporaneidade encerrem dificuldades e imponham certos limites a uma efetiva democratização do espaço, ainda assim estão lançadas no horizonte a possibilidade efetiva de um maior envolvimento e participação renovada das pessoas naquilo que afeta mais diretamente as suas vidas, constituindo no seu conjunto formas de atuação e operacionalização mais refratárias a dirigismos e cooptações do Estado. Dado que o poder político é um fenômeno histórico, os diversos grupos sociais que compõem a sociedade têm revelado, e deverão continuar a revelar, novas e imprevisíveis formas de organização e ação, tanto nos interstícios das estruturas burocráticas como à margem delas. Neste sentido, as práticas sócio-espaciais de caráter mais autonomista delineiam não apenas novos arranjos político-territoriais, 19

Não sendo o propósito deste trabalho arrolar pormenorizadamente possibilidades de caminhos e estratégias alternativas, pode-se, ao menos, chamar a atenção, concordando com Ermínia Maricato, para a necessidade de se produzir e se disseminar para a sociedade, as lideranças comunitárias e os administradores públicos o conhecimento sistemático e fidedigno sobre a “cidade real” (que não se confunde com a “oficial”), de modo a estimular o debate democrático e a desconstrução de mitos, reduzindo substancialmente a grande desinformação reinante e imprimindo maior transparência às práticas administrativas. Podem-se mencionar também as diversas experiências de administração participativa, com práticas relativamente bem-sucedidas de orçamento participativo. Além disso, vale lembrar também a criação do Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 2001), que envolve a definição da “função social” da propriedade, prevista na constituição de 1988, e que institui a obrigatoriedade de Planos Diretores para municípios com mais de 20 mil habitantes. Cf. Maricato, 2000; Maricato, 2001. E, não menos importante, caberia ainda levar a cabo uma profunda e conseqüente reflexão acerca da ação das mídias, e o embotamento da imaginação e do pensamento que a multiplicação imagética e ideológica que ela veicula acarreta.

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como também conferem à escala do lugar a condição de lócus privilegiado de uma geopolítica não institucional estatal. Elas se revelam como formas localizadas de ação política coletiva que, dadas as novas possibilidades comunicacionais engendradas pela globalização, se encontram sensivelmente estimuladas agora, desafiando e redimensionando o poder do Estado. Sendo portadoras de um novo sentido e de uma nova espacialidade à política, é preciso, pois, avaliar de forma sistêmica os seus vetores de transformação quanto às condições objetivas e subjetivas da vida social. Embora o Estado seja, por enquanto, o principal agente político na organização do espaço, cumpre, pois, dar visibilidade política a elas. É preciso observar ainda que a percepção clara do perigo que nos assombra e a magnitude bruta dos seus impactos não se revelam como uma derivação puramente lógico-mental, mas como objetivações da condição humana na contemporaneidade, integrando, portanto, o mundo prático-sensível. Trata-se da formação ampliada de uma condição em que os homens perdem o controle de suas vidas pela afirmação do fetichismo da mercadoria, exercendo constrangimentos e reduzindo sobremaneira o exercício da autodeterminação e da crítica, conducente à constituição de um campo privilegiado ao triunfo do valor de troca e do seu mundo de equivalências, reino da uniformidade do pensamento único. Esta condição-limite suscita a possibilidade de se forjar outros caminhos e estratégias que sejam capazes de reverter essa trajetória indesejável e preocupante de degradação sócio-espacial que se anuncia a passos largos. O que nos leva a pensar que o homem continua sendo, mais do que nunca, um projeto social, projeto que para além de encerrar preocupações com a sua sobrevivência física mais imediata, perquira a integridade de sua essência. Urge, portanto, repensar crítica e radicalmente a economia capitalista e a cultura contemporânea por ela modelada, para além do reino do valor de troca. Isto pressupõe a efetiva assimilação de um desejo profundo pela liberdade, tanto quanto ela seja possível, de modo a se pensar num anti-valor, mais propriamente num valor calcado na afetividade entre os homens. Eis o sentido maior dessa crítica radical. Bibliografia: Anuário Estatístico de Belo Horizonte 2000. Belo Horizonte: Prefeitura de Belo Horizonte, 2001. ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense-Universitária/ Salamandra/Editora da Universidade de São Paulo, 1981. AVRITZER, Leonardo. O orçamento participativo: as experiências de Porto Alegre e Belo Horizonte. In: DAGNINO, Evelina (org.). Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002. p.17-45. BACZKO, Bronislaw. ”Imaginação social”. In: Enciclopédia Einaudi, vol.5, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1985. p.296-332. BAGGIO, Ulysses da C. A Luminosidade do lugar - circunscrições intersticiais do uso de espaço em Belo Horizonte: apropriação e territorialidade no bairro de Santa Tereza. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2005. (Tese de doutorado em geografia humana).

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VERTENTES ÉTICAS E REGÊNCIA DE OUTRA ORDEM TERRITORIAL* SLOPES ETHICS & GOVERNING OF ANOTHER ORDER TERRITORIAL VERTIENTES ETICAS Y REGENCIA DE OTRA ORDEN TERRITORIAL

CLÁUDIO UBIRATAN GONÇALVES Professor Adjunto da Universidade Federal de Sergipe – Campus Prof. Alberto Carvalho Grupo de Trabalho de Geografia Agrária da Associação dos Geógrafos Brasileiros – seções Niterói e Aracaju. E-mail: [email protected]

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Este artigo é parte da tese de doutorado do autor defendida no PPGEO/UFF em 2005 sob a orientação do Prof. Dr. Jacob Binsztok. Sou grato as substanciais criticas e observações de: Ruy Moreira e Jorge Luiz Barbosa (UFF), Levi Furtado Sampaio (UFC) e Regina Ângela Landim Bruno (UFRRJ).

T erra Livre

Resumo: Este artigo pretende trazer à discussão temas próximos ao debate geográfico e que ainda foram pouco apropriados e estudados pelos pesquisadores geógrafos, tais como: ética, comunidade, solidariedade dentre outros. Nesse sentido, busca-se uma articulação com o conceito de região, chamando atenção para as dimensões política, econômica e ambiental. Além disso, focamos o debate ético em quatro conjuntos que consideramos fundamentais para a compreensão do tema proposto: a ética do pensamento complexo, com a religação da cultura humanista e científica; a ética da alteridade, com ênfase na relação do Eu com o Outro; a ética armorial, com sinergia entre tradição e evolução social; e a ética capitalista, com destaque para a racionalização da vida social segundo fins e valores. Assim, as reflexões sobre região e ética são inscritas como possibilidade de entendimento do funcionamento da sociedade contemporânea. Palavras-chave: Ética – ordem territorial – região – comunidade – meio ambiente. Abstract: This article intends to broach subjects close to geographic debate and little appropriated and studied by geographers as: ethics, community, solidarity. We look for an articulation with region concept, specifically on the political, economic and environmental dimensions. We focus the debate on ethics considering four essential groups to the comprehension of that subject: complex thinking ethics, with the link of human and scientific culture; alterity ethics, with emphasis on the relation between myself and the other; armorial ethics, with synergy between tradition and social evolution; and capitalist ethics, with emphasis on rationalization of social life according to values and goals. The reflections about region and ethics are registered as a possibility of understanding the contemporary society. Keywords: Ethics – territorial order – region – community – environment. Resumen: Este artículo pretende discutir temas próximos al debate geográfico y que todavía fueron poco apropiados y estudiados por los pesquisadores geógrafos como: ética, comunidad, solidaridad entre otros. En este sentido, se busca una articulación con el concepto de región llamando la atención para las dimensiones política, económica, y ambiental. Además de eso, enfocamos el debate ético en cuatro grupos que consideramos fundamentales para la comprensión del tema propuesto: la ética del pensamiento complejo, con la unión de la cultura humanista y científica; la ética de la alteridad, con énfasis en la relación del Yo con el Otro; la ética armorial, con sinergia entre tradición y evolución social; la ética capitalista, con destaque para la racionalización de la vida social según fines y valores. Así, las reflexiones sobre la región y ética son inscritas como posibilidad de entendimiento del funcionamiento de la sociedad contemporánea. Palabras-clave: Ética-orden territorial-región-comunidad-medio ambiente.

Presid en te Pru d en te

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Considerações iniciais Ao longo das últimas décadas e, sobretudo, nos últimos anos do século XX e início deste século XXI, constatamos um interesse crescente pela questão ética. Seja nas instâncias responsáveis pela elaboração e pela formulação de políticas públicas como o Estado e as Organizações Não-Governamentais, ou mesmo, no espaço acadêmico responsável por reflexões e experimentações acerca do uso conceitual e da delimitação metodológica da ética, o termo tem logrado importância estratégica nas decisões políticas da sociedade moderna. No caso da Geografia não tem sido diferente. Os constantes debates acerca do modelo de desenvolvimento desigual capitalista têm se aprofundado sobre as exigências éticas relacionadas com a justiça social, a interação humana com a natureza e os aspectos culturais em contextos específicos. Na verdade, as questões normativas suscitadas na esteira do debate ético na Geografia estão carregadas de ambivalência de sentidos e de disputas políticas. Para isto, analisaremos as principais vertentes que tratam a ética correlacionandoa com o debate conceitual de região, focando processos e formas no Cariri Cearense, lugar que abrigou nosso estudo para tese de doutoramento. Nesse aspecto da tentativa de busca de respostas ou pelo menos de pistas sobre a existência de um novo Cariri, referenciado na diferenciação interna do trabalho, nos debruçamos sobre os valores que as pessoas e as instituições reconheciam como fundamentais na identificação da região do Cariri. O passo seguinte foi identificar de onde partiam os feixes articuladores do processo de modernização e os atores que detinham o discurso modernizador da região. Partimos então na direção de Crato e Juazeiro do Norte, municípios que concentram de forma mais expressiva os feixes econômicos (artesãos, Estado, ONGs, setor informal), administrativos (Estado) e Institucionais (Igreja, Estado) irradiadores do desenvolvimento regional. Ética e Região: o possível diálogo Nesse aspecto, é necessário ultrapassar a superfície das palavras e de seus prefixos, visando identificar as permanências do que é essencial na apreensão dos sentidos e na possibilidade de explicação dos eventos e processos geográficos. Com isso, ressaltamos os fundamentos da idéia de região a partir da compreensão de espaço social de Lefebvre (1986), tendo em vista o espaço vivido e sua correlação com os elementos essenciais do imperativo ético. Lefebvre parte de uma concepção disciplinar do espaço que abarca as formas de apropriação e dominação através do poder para entender a gênese da sociedade. O espaço social não deve ser pensado de forma reducionista como um objeto concreto; ele é, na verdade, uma relação de práticas e representações sociais.

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O espaço social atravessa as relações da vida partindo da escala local até a global, contendo as relações sociais de produção juntamente com a organização da família. A imbricação da família, da força-de-trabalho e das relações de produção constitui as três esferas fundamentais que são a base do pensamento lefebvriano. Tornando ainda mais complexa esta situação na perspectiva da totalidade, o espaço contém representações desta tripla interferência de produção e reprodução sociais. Pelas representações simbólicas, ele se mantém em estado dinâmico de coexistência e coesão. De acordo com o autor, figura uma triplicidade sobre a qual se retorna a muitas retomadas: a) Prática espacial: engloba produção e reprodução, lugares específicos e conjuntos espaciais próprios a cada formação social que assegure coesão. A coesão implica o espaço social e a relação ao espaço de cada indivíduo de tal sociedade e, por sua vez, uma competência certa e uma certa performance; b) As representações do espaço: ligado às relações de (formalização da vida) de produção, à ordem que as impõe e, assim, à dos conhecimentos, dos signos, dos códigos, das relações frontais; c) Os espaços de representação: presença dos simbolismos complexos, ligados ao lado clandestino ou subterrâneo da vida social, e também na arte, que poderia eventualmente ser definido não como código do espaço, mas como o código do espaço de representação (Idem, 1986). Convém notar que as práticas espaciais, numa interação dialética, estão ligadas à reprodução das relações de produção. Elas destilam o espaço de dada sociedade e de cada individuo, revelando funções e formas. A prática espacial corporifica o espaço percebido que, por sua vez, realiza a mediação entre o espaço concebido e o espaço vivido. As representações do espaço, ou espaço concebido, constituem o espaço dominante de uma sociedade (um modo de produção). As concepções do espaço tenderiam para um sistema de signos verbais elaborados a partir do saber (misto de conhecimento e ideologia). O espaço concebido envolve a prática social e política entre os objetos e os sujeitos e representa uma lógica que não se submete à coerência. O espaço de representação está ligado às formas de apropriação das imagens e dos símbolos do espaço físico. É o espaço dos habitantes e dos usuários, nele se vive e se fala, ele contém os lugares da paixão e da ação. É o espaço dominado, e nele se faz de fato a combinação prática de coisas, relações e concepções. Coexistência de relações sociais de tempos históricos diferentes. Não obstante, o discurso dos sujeitos sociais no âmbito do espaço vivido apresenta elementos que reforçam a performance e a coesão da comunidade e de seu pertencimento a partir das formas de apropriação e uso da natureza. O pertencimento e a exaltação de valores, nem sempre coerentes, constituem a organização do trabalho no espaço regional. No percurso de gênese e consolidação do pensamento geográfico, a região

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desempenhou, e ainda continua desempenhando, um papel chave no rol das noções centrais da ciência espacial, a despeito de mortes e ressurgimentos (Lacoste, 1993; Thrift, 1996; Haesbaert, 2002b). Seja pelo seu caráter de complexidade e pela dificuldade em precisar o termo, ou mesmo pelo cultivo da ambigüidade que o perpassa, o fato é que todas as vertentes teóricas da geografia fizeram uso político-ideológico do conceito, de acordo com as circunstâncias e interesses predominantes em cada momento. Elas o usaram para ressaltar características do funcionamento da natureza, aspectos do desenvolvimento desigual das sociedades ou para fortalecer a intervenção e a organização do Estado. Assim ocorreu com as concepções de região da geografia clássica, pragmática-quantitativa, radical ou humanista. Todavia, a região ainda conserva sua perspectiva instrumental de ordenamento dos objetos no território. Objeto entendido aqui como resultado do trabalho, produto de uma elaboração social (Santos, 1999:52). Na verdade, permanecem em disputa todas as formas e tentativas de compreensão dos objetos e regionalização do espaço, a colocação da ordem no território através da regulação social e da identificação de seus habitantes. Estado, organizações nãogovernamentais, corporações privadas e movimentos sociais, entre outras instituições, disputam o controle na ordenação dos objetos no território. Nessa perspectiva, prevalece a região concebida pelo Estado como um dado manipulável que sofre transformações em seus elementos constituintes. Os estudos que perseguem o planejamento regional e de políticas públicas se debruçam sobre os dados dinâmicos e internos do arranjo territorial, preocupados com os princípios de unidade e homogeneidade, ignorando, porém, as contradições existentes. A unidade regional é exaltada ora pelo critério de uniformidade e coesão, ora pelo critério da diversidade e da noção de contradição. Nesse sentido, é importante perceber os riscos que se corre com a possibilidade de mecanizar as ações dos sujeitos no espaço na justificativa de definir uma região qualquer de modo mais objetivo e racional. Os princípios de uniformidade e coesão não devem ser tratados de forma hermética e linear. Quando enquadrados sob o prisma da alteridade, valoriza-se a experiência existencial e moral dos sujeitos, a relação com o contraditório. Acrescentando novos elementos à compreensão dos processos de unidade/complexidade e da unidade/diversidade regional. A idéia de valorização dos sujeitos a partir da perspectiva humana apresenta o pensamento da alteridade e da complexidade como busca do diálogo possível, do respeito mútuo e da tolerância entre pessoas e culturas diferentes, baseada na consciência histórica e no espírito de universalidade. É um sistema formado por elementos distintos em interdependência. Esse conceito molecular, nem rígido demais, nem flexível demais, implica simultaneamente a unidade orgânica e a diversidade dos elementos que o constituem (Pena-Vega et al., 2003). A constatação do processo de complexidade da questão e da interdependência nas

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relações humanas ressalta o aspecto da responsabilidade nas decisões que envolvem o Eu e os Outros. A manifestação da subjetividade ocorre com a condição de ser refém do outro, de apreender o rosto do outro como interpelação de justiça social. A região permanece como um conceito relevante tanto no espaço concreto quanto no espaço teórico. Na verdade, não há totalmente uma negação do papel exercido pela região, mediadora entre o lugar e o global. Ocorre uma mudança na arrumação das categorias constitutivas do discurso e do fazer geográfico, e a região não está à margem desse processo de transformação. Combinação Regional e Laços de Solidariedade Entretanto, outra vertente teórica considera a região como um espaço-equilíbrio. Equilíbrio nas regulações entre o número e a coerência. Equilíbrio na hierarquia das combinações. Equilíbrio entre as relações superiores, nacionais ou internacionais e as relações de produção e de trocas elementares. Equilíbrio entre o domínio do familiar e do conhecido e o do estranho, do excepcional. Quando se trata da região, o conceito de escala permite compreender a intensidade dos acontecimentos e dos fenômenos. As diferenças de escala determinam constituições em diversas formas, uma muito extensa e distendida, a outra reduzida e coerente. Entre estes extremos, o próprio da região é provavelmente ser média e, por conseguinte, o equilíbrio: suficientemente vasta para englobar populações numerosas em relações horizontais múltiplas, suficientemente reduzidas para conservar uma forte coerência no cimento das relações verticais. A região aparece assim como a unidade essencial da regulação espacial. O método geográfico da Combinação Regional, sugerido por Frèmont (1980), conjuga a estrutura, as inter-relações, a dinâmica e a imagem de uma região em questão. Desse modo, a região é uma estrutura: um conjunto, uma combinação de relações que caracteriza uma parte do espaço terrestre. Para analisar a estrutura que forma a combinação regional, podemos enumerar os seus componentes nas inter-relações, que traduz melhor a reciprocidade das influências. Temos inter-relações ecológicas que regulam as relações entre os homens e os meios em que vivem. Em seguida temos as inter-relações sócio-econômicas que se estabelecem em conformidade com as relações de produção que distinguem os grupos e as classes. As inter-relações sócio-culturais dão aos homens uma imagem de si próprios e do mundo. Formalizam-se através de jogos de signos: línguas, informações escritas, expressões visualizadas e paisagens. Por fim, as inter-relações sócio-demográficas regulam o número e a repartição numérica dos homens no interior de um grupo ou entre grupos. Os três ou quatro feixes principais de inter-relações também desenvolvem movimento de intercruzamento entre eles. O conjunto assim soldado é o que constitui a combinação regional. A dinâmica da cadeia das inter-relações é tal que não pode mudar

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um componente sem que daí resultem conseqüências para o conjunto do sistema (Frèmont, 107:1980). Interessante atentar que, para uma transformação ser adotada e desdobrada no interior da combinação, é preciso que seja conhecida e reconhecida como economicamente proveitosa e considerada culturalmente aceitável pelo grupo ou grupos sociais envolvidos. A resistência local - regional realiza uma filtragem das contribuições exteriores e uma assimilação da inovação aos seus próprios valores. Outra noção que visa apreender a materialidade espacial completando, em certo sentido, a noção desenvolvida anteriormente, propõe a região como campo de ações concomitantes de intensidades variáveis mais do que a inscrição espacial precisa de equilíbrio fundamental. Os limites regionais são múltiplos, dinâmicos; agindo tanto como freios quanto como forças, eles contêm em si mesmos sua própria superação (Kaiser, 1966). Nessa perspectiva, a metodologia do estudo regional compreende a população nos aspectos sócio-demográficos, os recursos e sua utilização, o consumo, as relações exteriores e a estrutura geográfica. Não podemos deixar de lado o desigual desenvolvimento sócio-econômico das regiões. As condições naturais e humanas diferentes que o observador encontra são os primeiros fatores de uma inevitável diferenciação geográfica. Na tipologia do autor, interessa o aspecto do laço de solidariedade existente entre os habitantes. Tais laços englobam as relações e os caracteres comuns fornecendo uma coesão e imprimindo no espaço uma certa homogeneidade. A evolução da organização econômica e social que produz a região funciona através de um movimento em torno de um pólo. Se excluirmos os fatores do meio natural e humano, a estrutura social e as heranças da história, restará a questão da produtividade do espaço através dos homens que o habitam. Na verdade, os traços dialéticos que vivificam a região tornando-a mais dinâmica e em estado de movimento trazem em seu bojo as exigências de maior precisão teórica na definição de seus próprios contornos. É nesse sentido que as escalas intermediárias assumem relevância no desvendamento da estruturação do poder e no modo da organização política da sociedade. Outra perspectiva que contribui para o esclarecimento e a análise da realidade regional pensada a partir do entrelaçamento das relações políticas e no contexto da dependência econômica é evidenciada por Oliveira (1993). De acordo com esta concepção, o econômico e o político se imbricam dialeticamente na região, assumindo formas de bloqueios ou aberturas no produto social da economia nacional. Regiões com desníveis econômicos sofrem uma espécie de colonização interna por outras regiões mais desenvolvidas. Nesse contexto, é necessária a intervenção do Estado, incentivando e estimulando políticas de desenvolvimento econômico. As relações de contradição da reprodução do capital e da divisão do trabalho subordinam as regiões situando-as em consonância com os estágios de desenvolvimento.

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No contexto dado pelas formas diferenciadas de reprodução do capital e das relações de produção, o planejamento emerge como instrumento de intervenção do Estado para a necessária integração nacional. Outro aspecto que merece destaque no contexto da dependência regional e das formas do desenvolvimento capitalista é a questão da natureza. De forma geral podemos simplificar a título de compreensão didática as inúmeras variações contemporâneas a respeito da interação com a natureza e afirmar que está em jogo o embate político de dois campos opostos de poder. A natureza como um bem é vista por um campo estritamente como mercadoria que, na perspectiva utilitarista, deve satisfazer de todas as formas as necessidades do modelo vigente de desenvolvimento. Outro campo de poder observa a natureza como um patrimônio e tem como valor ético fundamental o respeito em relação aos processos vitais e aos limites da capacidade de regeneração e suporte. Aqui, juntamente com uma ética, se delineiam também uma racionalidade ambiental e um sujeito ecológico que se afirmam contra uma ética dos benefícios imediatos e uma racionalidade instrumental utilitarista que rege o homo oeconomicus e a acumulação nas sociedades capitalistas. O campo ambiental, portanto, busca afirmar-se na esfera das relações conflituosas entre éticas e racionalidades que organizam a vida em sociedade, buscando influir numa certa direção sobre a maneira como a sociedade dispõe da natureza e produz determinadas condições ambientais (Carvalho, 2001:37).

O conflito entre os princípios éticos na demarcação da forma de usufruto e apropriação do meio ambiente coloca em evidência a relação sociedade – natureza. Na dinâmica conflituosa da disputa de legitimidade social, um campo visa ampliar a capacidade de influência de seus princípios sobre o outro campo. Aspecto que confirma a constatação de Lefebvre (1986): a natureza não é mais que a matéria primeira sobre a qual operam as forças produtivas das sociedades diversas para a produção de seus espaços, uma matéria resistente e infinita em profundidade, porém vencida, porque em curso de evacuação e de destruição. Assim, as vertentes que dão sentido à idéia de região também reforçam seu desenvolvimento enquanto algo concreto, com possibilidade de intervenções. Ou seja, a idéia de região pressupõe uma intervenção intencional a partir dos instrumentos técnicos disponíveis para a adequação do espaço geográfico aos moldes exigidos pela solidariedade de seus habitantes e pela mobilização comunitária. Portanto, todos os argumentos desenvolvidos anteriormente acerca do conceito de região contribuem, de alguma forma, com nossa idéia de análise regional com base na comunidade. A região como relação de práticas e de representações espaciais sinaliza para o discurso e o sentimento de pertencimento de seus habitantes. A região se torna sujeito corporificando imagens e símbolos a partir do trabalho elaborado no contexto da diversidade das ordens econômicas existentes internamente.

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Assim, a formação social do Cariri está ligada às várias formas de uso e de apropriação do território de acordo com o recorte temporal que queremos realizar. Nesse aspecto, nos interessa o discurso produzido a partir da relação de conflito e de solidariedade estabelecidos no contexto da combinação das dimensões ecológicas, sociais, políticas, econômicas, demográficas e da organização do trabalho. Diversidade ética e ordem territorial-ambiental A seguir levantaremos algumas perspectivas em torno da questão ética e do conteúdo que fundamenta o seu sentido. As diferentes visões, resgatadas num leque relativamente vasto existente sobre a temática, traduzem sua importância crescente e chamam a atenção para o retorno, hoje, da investigação sobre a ética como pressuposto do desenvolvimento. Desenvolvimento que, numa dada vertente, pode ser econômico e político e que, em outra, assume facetas do cultural, ambiental e comunitário. No fundo, a questão que se evidencia é a ética conjugada enquanto projeto do desenvolvimento humano e material. Por conseguinte, trazemos a visão sobre éticas sob diferentes prismas. O do pensamento da complexidade, o subjetivo à luz da alteridade, o estético-armorial e o do espírito capitalista. No quadro abaixo esboçamos de forma sintética as principais idéiasforça que caracterizam suas propostas, ethos e visão de comunidade e de natureza a partir de cada proposta conceitual. As diferentes propostas sugeridas nesse quadro suscitam, a partir do ethos – modo de proceder individual ou coletivo –, questões que são reflexos da relação com os aspectos da natureza e da própria interação na vida comunitária. Com isso, constatamos que quanto maior é a diversidade ética maiores são as chances de apresentação de um rico repertório que envolva a representação social e a reprodução material de valores que orientam as ações sociais de desenvolvimento humano. Na verdade, a riqueza reside no permanente processo de complementação e confronto entre as propostas conceituais, não permitindo a hegemonia completa de uma sobre as demais e possibilitando, com isso, maior abrangência da totalidade do ser. Quando abordamos os campos éticos, destacamos a ética da complexidade como um esforço de compreensão multidimensional de recusa da simplificação, exaltando, por outro lado, a totalidade integrativa da existência humana. Enquanto a ética da alteridade resgata na subjetividade a interpelação ética que acontece na epifania do rosto do outro, a ética armorial vem carregada do trágico e da arte da vida e se traduz na fusão do real com o imaginário através dos espaços estéticos do político e do religioso. O espírito da ética capitalista se manifesta no espaço racional da disciplina e no estabelecimento de rígidos parâmetros de controle dos aspectos subjetivos e objetivos. A seguir, analisamos minuciosamente, um a um, os aspectos das respectivas éticas. Assim, consideramos de grande importância a idéia sobre ética tratada por Morin. Afirma ele: Parece que a exigência de ética que se manifesta um pouco em toda parte

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nesse momento está ligada a uma tomada de consciência do desgaste, e mesmo da dissolução das éticas tradicionais em uma sociedade fortemente individualizada (2003:39). Nesta visão é proposta o uso da auto-ética explicada pela fé acerca do valor do conhecimento. Para além da ética da liberdade, é preciso a fé na fraternidade, no amor e na comunidade. Nessa concepção, fraternidade, amor e comunidade são fontes de energia para alimentar a fé da concretização da auto-ética. Quadro 1 - CONCEITOS BÁSICOS DA ÉTICA: UMA PROPOSTA DE SISTEMATIZAÇÃO CONCEITO Ética do Pensamento Complexo

PROPOSTA

- Religação da - Contradição cultura humanista e científica - Cuidado planetário

Ética da Alteridade

ETHOS

COMUNIDADE - Apelo à fraternidade;

- Incerteza e Fé - Destino comum

NATUREZA - Integrada ao homem

PRINCIPAIS AUTORES - Edgar Morin

- Idéia do todo

- Relação do Eu - Acolhimento - Responsabilidade - Dinâmica própria com o Outro com o Outro

- A. Sidekum

- Respeito à diferença

- M. Pelizzoli

- Engajamento - Caridade

- Transcendental

- E. Lévinas Ética Armorial - Sinergia entre - Contemplação - Imagem como Tradição e instrumento de Evolução Social sociabilidade - Estetização do - Valorização de social ritos e alegorias

- Fonte imaginária

- A. Suassuna

- Reino de mistérios e encantamentos

- C. Leitão

- Emoção partilhada Ética Capitalista - Racionalização - Devotamento da vida social ao trabalho segundo fins e valores - Ênfase na parcimônia, esforço, sacrifício e retidão

- Apoio nos - Reserva de recursos - Max Weber fundamentos materiais afetivos, emotivos e tradicionais - Fragmentada/dominada

Organizado por Cláudio Ubiratan, 2005.

Longe de ser simplesmente mais uma alternativa de abordagem da realidade, a fé do paradigma da complexidade manifesta-se quando transcendemos a idéia de fraternidade, invocando alguma coisa anterior, que é o espírito/mito da maternidade. Na verdade, esta perspectiva nos desperta para o sentimento que temos em relação à mesma origem maternal e a mesma identidade e amor pela mãe, não perdendo a consciência de

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comunidade e do todo (Morin, 2003:41). Morin chama atenção não só para a necessidade de revisão de todos os princípios culturais e políticos estabelecidos, como propõe o enfrentamento do que denomina problemas da Era Planetária. As contradições, as incertezas de toda ordem e a necessidade de mergulho profundo no próprio Eu são aspectos que compõem a outra face da natureza esquecida. O despertar para o respeito com a Terra-Mãe remete à descoberta da árvore da vida. Mais que uma simples metáfora, trata-se da possibilidade concreta de entendimento da dinâmica das interações humanas, tendo em vista a colaboração com a solidariedade ecológica, ao invés da opção do auto-exílio. Nesse sentido, o percurso sugerido para se chegar à auto-ética requer passar antes pelo processo de contradição, incerteza e convicção do Eu. As contradições éticas residem na tarefa de decidir quem são os próximos. O imperativo ético existe em nós, por isso é preciso estar consciente da ética da responsabilidade como prolongamento e consolidação, e não como algo virtual. O risco constitui o problema das contradições éticas. As incertezas éticas estão relacionadas ao assumir a liberdade como risco de incerteza quanto aos resultados de nossa ação. Por fim, o autor trabalha o micro-universo do indivíduo, quando aponta para o processo do Eu em relação a si mesmo ou convicção a respeito de si. Relaciona-se com as virtudes da sinceridade e autenticidade. Quando examinamos a convicção, percebemos a mentira ou o engano a respeito de si mesmo. Dessa maneira: (...) O pensamento complexo tenta dar conta daquilo que os tipos de pensamento mutilantes se desfaz, excluindo o que eu chamo de simplificadores e por isso ele luta, não contra a incompletude, mas contra a mutilação. Por exemplo, se tentamos pensar no fato de que somos seres ao mesmo tempo físicos, biológicos, sociais, culturais, psíquicos e espirituais, é evidente que a complexidade é aquilo que tenta conceber a articulação, a identidade e a diferença de todos esses aspectos, enquanto o pensamento simplificante separa esses diferentes aspectos, ou unifica-os por uma redução mutilante. Portanto, nesse sentido, é evidente que a ambição da complexidade é prestar contas das articulações despedaçadas pelos cortes entre disciplinas, entre categorias cognitivas e entre tipos de conhecimento. De fato, a aspiração à complexidade tende para o conhecimento multidimensional. Ela não quer dar todas as informações sobre um fenômeno estudado, mas respeitar suas diversas dimensões. (...) Ao aspirar à multidimensionalidade, o pensamento complexo comporta em seu interior um principio de incompletude e de incerteza (Morin, 1998:177).

O complexo é o que está tecido junto, é a busca da superação da mutilação do saber pela sua incompletude, é o desenvolver de forma compartilhada o conhecimento com competência para juntar as articulações despedaçadas. Portanto, o imperativo da complexidade inclui o pensar e o agir de forma organizacional e de forma extremamente

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elaborada, de modo a atender as exigências da relação entre as partes e o todo. Por sua vez, Emmanuel Lévinas (1997), aborda a vertente da alteridade ética delineando nova postura pelo foco da antropologia filosófica. Nesse sentido, pensar uma ética da alteridade pressupõe pensar a ética como filosofia primeira. Ou seja, a inteligibilidade ética junto da ontologia e da metafísica do próprio ser, antecedendo a cosmologia, a epistemologia do conhecimento verdadeiro e do domínio do mundo por ele, e ainda antecedendo o interesse econômico produtivista que exalta o individualismo. O nível ético aponta para o sentido da subjetividade como “para outrem”. Ou seja, eu só tenho sentido se me encontro com outrem no nível da maturidade e responsabilidade. Não vendo o humano somente como objeto e resultado das necessidades do EU, mas como desejo do outro como OUTRO. O ser humano só é verdadeiramente humano se realiza o potencial ético e de relação de alteridade que recebe enquanto criatura, vivendo cada momento, enquanto um ser grandioso e capaz, mas ao mesmo tempo altamente vulnerável, sensível, sujeito da afecção, ou seja, precisando demais de outrem e acolhendo outrem para dar sentido à vida (Lévinas, 1997). A compreensão da ética do outro lhe confere significação a partir da interpelação do Ser. Compreendo o outro por meio de sua história, do seu meio, de seus hábitos e do seu rosto. O rosto do outro convoca minha responsabilidade sobre o próximo. Responsabilidade entendida não como privação do saber da compreensão e da captação, mas como a excelência da proximidade ética na sua sociabilidade, no seu amor sem concupiscência. Nesse aspecto, quando há uma inversão humana do “em si e do para si”, do “cada um por si”, em um Eu ético, ocorre uma re-volta radical que produz o encontro com o rosto do Outro. É na relação pessoal do Eu com o Outro que o acontecimento ético, da caridade e da misericórdia, da generosidade, e também do conflito, conduzem na direção de uma mudança de postura do ser. As categorias bíblicas, o órfão, o pobre, a viúva e o estrangeiro, utilizadas na filosofia de Lévinas, recebem uma significação concreta e um destino na filosofia da libertação. O outro é o oprimido, que se chama de índio, de camponês sem terra, de marginalizado nas periferias dos grandes centros urbanos, de desempregado, de pobre do povo, que clamam por justiça. A revelação desse outro exige uma correspondente práxis libertadora. Esse outro não poderá ser negado nem desconsiderado, uma vez que ele se encontra justamente fora da dimensão do jogo do meu eu. O outro que vem ao meu encontro, que clama por justiça em sua interpelação, rompe com o sistema da opressão, com a ideologia ou ilusão, ele rompe com o egoísmo do eu (Sidekum, 2002: 155).

A filosofia da libertação materializa o outro subjetivado, nomeando os sujeitos sociais que lutam contra a opressão do individualismo e a favor da utopia concreta. Neste sentido, a libertação é uma reação da dimensão comunitária do ser humano e expressão

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histórica da solidariedade transformadora na busca da justiça. Desse modo, a solidariedade e a comunidade são aspectos apresentados como elementos fundamentais na experiência da responsabilidade com o outro. A partir da interpelação do rosto do outro ocorre a transcendência do eu, que se manifesta na exterioridade das relações, que desencadeia a busca da libertação ética em comunidade numa relação social de solidariedade. Numa espiritualidade que eu defino por esta responsabilidade por outrem – para a qual o eu é eleito, ou condenado, chamado a responder pelo outro (e talvez seja propriamente isto misericórdia e caridade) – é preciso doravante que eu compare; que eu compare os incomparáveis, os únicos. Não há retorno ao “para si de cada um”. Mas é preciso julgar os outros. No encontro do rosto, não foi preciso julgar: o outro, o único não suporta julgamento, ele passa diretamente à minha frente, estou com obrigações de fidelidade para com ele. É preciso julgamento e justiça, logo que aparece o terceiro. Em nome precisamente dos deveres absolutos para com o próximo, é preciso um certo abandono da obrigação absoluta que ele postula. Eis o problema de uma nova ordem para a qual se faz mister haver instituições e uma política, todo o aparelho do Estado (Lévinas, 1997:270).

A virtude da caridade é ressaltada como instrumento de justiça social no amor que move a vontade individual de busca efetiva do bem de outrem. A perspectiva pietista de transcendência na responsabilidade pelo outro apresenta limitações quando na relação de fidelidade e de dever do Eu para com o Outro, aparece o terceiro. O problema consiste na necessidade de julgamento e de justiça por parte do Eu, e de abandono da obrigação absoluta do outro. Desse modo, na relação de comunidade do eu com o outro e o terceiro é preciso a mediação institucional do Estado na regulação das obrigações e dos deveres. A ética da alteridade recupera o lado humano da singularidade, da solidariedade e da pluralidade que habita o Eu e que é, na verdade, reflexo da relação na diferença com o outro (Pelizzoli, 2002). O outro que é descoberto como uma interação humana e não como um obstáculo a ser ultrapassado. Esta postura compõe-se como uma crítica conjugada ao questionamento das conseqüências éticas das diversas teorias influenciadas pelo pensamento do Ocidente, consubstanciada a partir de uma crítica ético-epistemológica. De fato, Lévinas elabora uma crítica ao imperativo ético, que está ligado no fio do tempo ao caminho da tradição aristotélica valorizadora da ética da felicidade, da alegria e da virtude como o fim da vida política. Outro aspecto alvo da crítica seria o da tradição kantiana da ética do dever, entendendo a virtude como conformidade do querer com o dever. Nesta última, os impasses são mais sublinhados, enquanto que na primeira enfatizase a concepção de prudência como virtude da reta decisão humana. Desse modo: A ética de Aristóteles é, sem dúvida, social, e a sua política é ética. Na ética,

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não se esquece que o homem individual é essencialmente um membro da sociedade. Nem, na Política, que a virtude do Estado está conforme a virtude dos seus cidadãos (Ross, 1987:193).

A epistemologia da racionalidade do ser de Aristóteles, da busca da felicidade e do bem-estar da existência humana possibilita perceber a relação entre seus princípios éticos e a noção de virtude como conduta. A ética se encontra imersa nas circunstâncias da conduta e no modo como ela é concebida a partir do exercício do caráter em sociedade. Na ética capitalista, Weber (2003) aborda a influência de idéias religiosas na formação do espírito econômico, ou do ethos de um sistema econômico. Na verdade, se trata da ligação da economia capitalista com a ética racional moderna disseminada a partir de valores e da disciplina religiosa tendo como fim a questão do trabalho. Nesse aspecto, as atitudes morais de orientação de vida do empreendedor capitalista estão embasadas nas virtudes da honestidade, nas relações sociais, na pontualidade e no devotamento ao trabalho árduo e parcimônia como forma de segurança no empreendimento. (...) trata-se do racionalismo específico e peculiar da cultura ocidental. Ora, por essa conclusão, pode-se entender coisas muito diferentes. Há, por exemplo, as racionalizações da contemplação mística, ou seja, em um contexto que, considerado de outras perspectivas, é especificamente irracional, da mesma forma que há racionalizações da vida econômica, da técnica, da pesquisa científica, do treinamento militar, do direito e da administração. Cada um desses campos pode ser racionalizado segundo fins e valores muito diferentes, e o que de um ponto de vista parece racional, poderá ser irracional de um outro. As racionalizações dos mais variados aspectos têm existido nos mais diversos setores da vida e em todas as áreas culturais. Para caracterizar sua diferença do ponto de vista da história da cultura, deve-se analisar primeiro qual setor é racionalizado e em que âmbito (Weber, 2003:13).

Neste aspecto, a racionalização da contemplação mística exerceu importante papel nos primórdios da organização material do sistema produtivo dominante, pois trouxe à tona seus pontos de vulnerabilidade e superação. De um lado, o pietismo enfatizava a forte intensidade emocional do desejo de separar o eleito do mundo para viver um tipo de vida comunitária monástica de caráter semicomunista (Weber, 2003). De outro, o elemento racional e ascético do pietismo superou o emocional e o trabalho passou a ser exercido como vocação dentro de um campo de organização técnica e econômica. A ética do capitalismo moderno, gestado inicialmente em oposição ao mundo tradicional do camponês, consiste no uso da força a partir das estruturas racionais do direito e da administração. Neste ambiente onde se cultiva o cálculo e a contabilidade, a falta de racionalidade se apresenta como um grave obstáculo no desenvolvimento dos ideais éticos da materialidade e da produção capitalista (Weber, 2003).

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Assim, a responsabilidade dentro desse ponto de vista é totalmente diferente das perspectivas éticas apresentadas anteriormente. O homem responsável não é simplesmente aquele que considera o universo do Outro ou preocupa-se em cuidar da terra como espaço comunitário de todos. Pelo contrário, o empreendedor responsável é aquele que observa a norma competitiva aplicada ao trabalho. Ou seja, a racionalização dos campos da vida ocorre segundo fins e valores estabelecidos a partir dos interesses econômicos. Seu trabalho se coloca a serviço de uma organização racional para o abastecimento da humanidade em bens materiais nas mais diversas áreas culturais. O racionalismo econômico, embora dependa parcialmente da técnica e do direito racional, é determinado pela capacidade e pela disposição dos homens em adotar certos tipos de conduta racional. Onde esses tipos foram obstruídos por obstáculos espirituais, o desenvolvimento de uma conduta econômica também tem encontrado uma séria resistência interna. As forças mágicas e religiosas e os ideais éticos de dever decorrentes sempre estiveram no passado entre os mais importantes elementos formadores da conduta (Weber, 2003:14).

Segundo o autor, no mundo moderno, a ética do trabalho se desligou das paixões religiosas que lhe deram origem e hoje faz parte do capitalismo racional baseado na ciência. A valorização do próprio trabalho mais que seus resultados abalou fortemente a antiga doutrina aristotélico-cristã de que uma pessoa só deveria obter riquezas suficientes para viver e fazer o bem. Com isso, a teoria econômica burguesa associou o empreendimento ao conceito de risco, ou seja, a possibilidade da ruína é a justificação moral do lucro e os riscos constituem o caminho para o sucesso ou fracasso da estrutura econômica. Neste aspecto, as éticas da complexidade, da alteridade e da racionalidade capitalista quando correlacionadas a partir da perspectiva da natureza e da comunidade apresentam contradições e complementaridades de fundamental importância na elucidação da diferenciação interna do trabalho na ordem territorial. Neste sentido, enfatizamos o sujeito armorial pelo viés da comunidade, tendo como fonte de referência o lúdico e o trágico no ambiente sertanejo. A obra intitulada “Por um ética da estética” (Leitão,1997) apresenta uma reflexão acerca da chamada ética armorial nordestina e sua importância na constituição de laços sociais e formação da comunidade, tendo como área de estudo o município de Jardim no Cariri Cearense. A nós interessaria estabelecer um pensamento crítico sobre a ética, distante de tentações moralizadoras ao mesmo tempo que atento à relatividade e ao pluralismo das relações sociais no final deste século. Num mundo que se “tribaliza”, que se fragmenta em pequenas comunidades renegando a utopia das nações, a proliferação ética não passa de uma expressão amoral de resistência do homem a uma ratio que não mais lhe convém (Leitão, 1997:44).

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Inegavelmente, a obra sublinha a importância real dos valores morais por meio das representações sociais, colocando em questão a lógica moralista que estamos acostumados a aplicar e impor aos fatos sociais. A partir do denominado mundo imaginal, se enfatiza um modo contemplativo da ambiência da arte. A emoção partilhada do sentimento coletivo é o ethos social que se estabelece entre a ética e a estética da vida sertaneja. (...) Nestes “pequenos mundos”, onde as éticas libertas de seus pudores morais adequam-se à diversidade do ideal comunitário, o mundo do sertão nos interessa particularmente. De um lado, ele confirma o renascimento do ideal comunitário após o declínio do ideário moderno simbolizado pelo mito do Estado-Nação; de outro, ele exprime a “ética imagética” de seus habitantes, cuja socialidade se fundamenta a partir de imagens religiosas e políticas. A “armorialidade” da ética sertaneja se situa no modo como o homem do sertão trata comunitária, trágica e ludicamente os espaços do político e do religioso em sua vida. A ética armorial do sertanejo seria, portanto, a sua capacidade de fusionar o real e o imaginário, através desses espaços, transformando-os em bons “álibis” para festejar a efemeridade de sua vida e de seu destino. Nesta perspectiva, a vida se torna uma forma de arte quando exprime de forma ritual a tragédia da existência humana, quando almeja, através do fenômeno da festa, dominar, ainda que momentaneamente, o tempo e o espaço (Leitão, 1997: 170).

De acordo com esse olhar, os habitantes do sertão ritualizam cotidianamente os atos mais banais e fazem da vida uma forma de arte quando vivenciam, através de imagens, suas diversas origens, provocando a fusão dos diversos mundos, diversos reinos e a junção do bem e do mal. O ideal de nação se subdivide em pequenos ideais que dão origem a pequenos grupos cujas éticas estão desvinculadas de uma moral absoluta. A relatividade que sugere a ética armorial demonstra a pluralidade de costumes, a miscigenação de raças, a profusão de sangues, culturas e imagens. A ética moderna que por todos os meios suprimiu a diversidade da vida social na intenção de preservar sua coerência, reduziu as várias expressões do social simplesmente a um único modelo. Inúmeras éticas a uma só ética. Ora, o saber ético acabará em choque com os próprios valores no momento em que desdenhar a vida ética, e, embora competente na distinção entre moral e direito, o pensamento sistemático moderno fracassará face à ética, sempre confundida com princípios de ordem moral (Idem, 1997). A ética pressupõe a convivência pacífica entre os diferentes e dos diferentes com o meio. Quando o convívio ocorre considerando as contradições e os conflitos inerentes às diferentes maneiras de relacionamento humano e às diferentes formas de interações com o meio, a convivência ultrapassa o signo da intolerância apontando na direção dos laços de coesão e solidariedade. Os espaços do sagrado e do profano se fundem no mesmo território, não como palco de conflito, mas como forma de resistência. Desse modo, a unidade regional decorrente desse processo de desenvolvimento não deve ser exclusivamente mensurada pela manipulação tendenciosa de números,

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privilegiando-se a vertente economicista das relações sócio-espaciais. A ênfase deve ser dada essencialmente ao desenvolvimento humano e comunitário considerando o rosto do outro e os pequenos agrupamentos sociais dispersos territorialmente. O desafio consiste exatamente na conjugação da diversidade cultural com a unidade político-administrativa. Na realidade, a ética é considerada como um conjunto de valores que disciplinam o território usado por indivíduos que convivem numa sociedade ditada pelas normas do produtivismo e do consumo. Tal dogma está em evidência e começa a ser questionado na sua capacidade de garantia e suporte de bem estar social e de sustentabilidade econômica universais. O ethos (Weber, 2003; Morin, 1998; Sidekum, 2002; Leitão, 1997) entendido aqui como modo de proceder, hábitos, costumes e funcionamento das instituições, referindose à forma de morada e à organização do povo caririense, passa a ser reformulado em sua essência. A territorialidade do homem caririense, junto à elaboração de uma nova ordem ética, ocupa o centro dos debates. Por outro lado, a temática da ética e da moral gradativamente preenche um vazio existente na ciência geográfica. É possível encontrar algumas publicações nas últimas décadas, sobretudo na Europa Ocidental e EUA (ver Harvey, 1980; Tuan, 1989; Smith, 2000). Assuntos como justiça social territorial, aspectos morais da interação humana com a natureza e do desenvolvimento, diferenças culturais em contextos específicos são parte de um corpo que adquire forma. Smith (2000) chama atenção para o envolvimento contemporâneo dos geógrafos com questões normativas. Ele o associa com a crise moral que vem cercando as sociedades carregadas de abundante desigualdade e despreocupadas em relação aos excluídos dos benefícios do desenvolvimento capitalista. Identifica discursos éticos na geografia apontando para a necessidade de uma definição aperfeiçoada nos campos de investigação da nova face interdisciplinar com a filosofia. Algumas indagações – qual o lugar da ética na geografia? E qual o lugar da geografia na ética? - ajudam na identificação de tensões entre os pares particularidade/universalidade, empírico /teórico e geográfico/ abstrato. Buscando ultrapassar esse conjunto de idéias, a observação do comportamento moral em contextos particulares pode contribuir para o desenvolvimento ou refinamento da ética como teoria moral. Nessa circunstância, novas questões vêm à tela sobre o significado moral da proximidade entre comunidade e localidade, e propõem, a partir do diálogo com a filosofia, uma revisão das leituras morais de paisagem e lugar – conceitos chaves na geografia. Torna-se urgente apontar os elementos mais significantes de uma outra possível ordem ética do território, pensada a partir do modo de vida comunitário. Já é possível perceber uma ética que protesta mudanças nos rumos do desenvolvimento capitalista e exige uma revisão do sentido da norma e da convivência coletiva que contemple a lógica organizativa dos pequenos ou dos grupos sociais que vivenciam diversificadas experiências

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de comunidade. A ética comunitária dos pequenos pode ser vista sob diferenciados ângulos, nosso olhar privilegia, entretanto, a dimensão política que inspira a aproximação entre os sujeitos sociais e a natureza a partir da divisão dos bens materiais e do poder de dominação. Sobre o ethos e modo de produção da ética dos pequenos ver os seguintes trabalhos: Barros & Peregrino (1996); Leitão (1997); Woortmann & Woortmann (1997). Por uma Ética do Desenvolvimento Solidário. Dessa forma, ética e região, a nosso ver, são abstrações que assumem concretude a partir da relação dos elementos que compõem a sociedade – natureza, como, por exemplo, os aspectos ecológicos, sócio-econômicos, sócio-culturais e demográficos. Assim, nossa observação recai sobre o Cariri em sua totalidade territorial, embora nossa atenção esteja principalmente voltada para os núcleos mais populosos como Crato, Juazeiro e Barbalha que, segundo o IBGE (2000), concentram juntas 363.081 habitantes. No tempo presente, o Cariri, através da articulação de suas instituições do Estado e da sociedade civil, passa por uma dinâmica e salutar efervescência nos movimentos sociais reivindicatórios, no rearranjo da estrutura religiosa hegemônica e na proposta de novo modo de interação e aproveitamento dos recursos naturais. Tais acontecimentos ocorrem dentro de um contexto macro estrutural, de acordos coletivos e revisão histórica de ações políticas, que desempenharam papel fulcral no ordenamento sócio-territorial do passado recente. Nessa ótica de reatualização das ações que visam melhorias na qualidade de vida dos cidadãos e desenvolvimento do Sul Cearense é fundamental não só o uso do termo, como a vivência de determinado(s) tipo(s) de ética(s) que sejam adequadas à região. Nesse sentido, o caminho de aproximação entre ética e etnia pode esclarecer novas pistas e preciosos significados no entendimento da construção da região e na ruptura de seu secular atraso. É preciso considerar as subjetivações culturais das margens do espaço regional expressas nas bandas cabaçais, folia de reis, manero pau, artesãos, romeiros e piquizeiros, enquanto manifestação de grupo social portador de um projeto de maior abrangência e de mudança social. No Cariri, não existe apenas uma ordem econômica interna. Há uma diferenciação interna que também é cultural devido às várias formas de uso e de apropriação do território. Apesar de pontuais, são perceptíveis as mobilizações políticas nas ruas, experiências de êxito nas ações afirmativas de inúmeras associações e organizações não governamentais (ONG’s), sem falar nos indicativos visíveis de mudanças na máquina administrativa e na postura das instituições religiosas e estatais. Porém, esse projeto de convivência e desenvolvimento na região somente será viável à medida que ocorrer confluência e negociação das propostas éticas dos distintos grupos sociais envolvidos. Quando trazemos para o primeiro plano as dimensões ambiental, religiosa e política

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da ética, estamos propondo um outro olhar para a região do Cariri Cearense. As populações tradicionais que habitam e sobrevivem nos meandros dos vales e serras do Araripe não podem continuar figurando em segundo plano, pois são eles que detêm o saber herdado dos nativos que coabitavam anteriormente de forma menos impactante com a natureza. Esse saber, considerado durante muito tempo como portador de arcaísmos e retrocessos, é hoje re-valorizado em razão de sua possibilidade de acrescentar novas questões à reflexão e práticas sobre os bloqueios que a vida moderna impôs. Podemos denominar este saber vivenciado em comunidade de ética da diferenciação interna do trabalho. Nesse aspecto, a comunidade é uma relação social quando a atitude na ação social inspira-se no sentimento subjetivo afetivo ou tradicional dos partícipes da constituição de um todo. Por outro lado, a sociedade consiste na busca por uma compensação de interesses por motivos racionais de fins ou valores e uma união de interesses com idêntica motivação (Weber, 1973:140). Dessa forma, a diferença tem como base a atribuição de valores ideológicos para a comunidade e a sociedade. Enquanto a primeira se apresenta carregada de subjetividade e domínio da tradição, a segunda é marcada pela idéia do moderno e de objetividade. O conceito amplo de comunidade denota, em nosso caso, enquanto relação e estrutura de socialização entre as mesmas pessoas, uma ordem territorial solidária que prioriza os valores e fundamentos de afetividade, emoção, tradição e justiça social. Comunidade só existe propriamente quando, sobre a base desse sentimento, a ação está reciprocamente referida – não bastando a ação de todos e de cada um deles frente à mesma circunstância – e na medida em que esta referência traduz o sentimento de formar um todo (Weber, 1973:142).

Desse modo, o aparecimento de contrastes conscientes em relação a outros grupos ou comunidades pode criar o conteúdo de sentido das relações sociais. No sentimento comunitário, aspectos tais como os costumes, a lingüística ou até mesmo a conduta fundamentam a consciência social acerca da existência da comunidade e de seu reconhecimento. Os laços de solidariedade social referenciados nas ações de reciprocidade onde ninguém sai em desvantagem e toda a comunidade se plenifica com o ganho. A segunda idéia fundamental no esboço de outra ordem territorial está relacionada com a vivência complexa da comunidade de destino. Há uma real comunidade de origem dos seres humanos próximos de suas raízes, próxima de um destino comum que ultrapassa o limite de nação e pátria chegando ao que concerne ao planeta. Nesse aspecto, a liberdade e a solidariedade são os dois lados da mesma moeda que funcionam como amálgama da complexificação da sociedade. A liberdade existe e significa que os indivíduos são livres para desenvolver suas aptidões e criatividades. A solidariedade é o sentimento de fraternidade, de pertencer a alguma coisa que une e dá coesão social. A solidariedade – o fato de se unir – pressupõe a própria ética mesma da

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complexidade humana. E, ao inverso, a complexidade humana requer a ética da solidariedade. É a solidariedade que permite que a liberdade não seja criminosa, que cada um não se entregue livremente à agressão, à dominação do outro (Pena-Vega et al, 2003:50).

O processo de complexidade absoluta significa em certo sentido a desintegração da sociedade, visto que não haveria nenhuma obrigação ou vínculo social inspirado na autoridade e na proibição. No aspecto da comunidade de destino terrestre todos os humanos partilham o destino da perdição, ou seja, todos os humanos estão ameaçados pela morte nuclear e a morte ecológica, os humanos vivem a situação agônica da transição do milênio. A exigência ética da tomada de consciência da perdição da comunidade de destino é o salto necessário de acolhida ao rosto do outro, numa ordem que se deseje mais humana por meio das ações de revisão dos valores éticos vigentes. Este chamamento de minha responsabilidade pelo rosto que me convoca e reclama mais humanidade aponta na direção do território, da manifestação do concreto como ideal possível de realização. Quando identificamos a emergência de outra ordem territorial, não estamos tratando de dar ênfase ou revalorização ao modelo urbano-industrial ou, por outro lado, de retornar aos princípios de uma ordem agrário-camponesa. A questão ética avança na contribuição quando dá visibilidade à organização social dos “de baixo”. E quem são os “de baixo?” Quem são “os pequenos”? São aqueles que se organizam em ambiente de conflito e de tensão, que se solidarizam em torno da criatividade e inventividade no enfrentamento das incertezas e dos riscos como instrumento de mudança. Portanto, a contribuição ética dos artesãos, dos extrativistas e das comunidades tradicionais do Cariri não deve ser desconsiderada diante da construção de um possível caminho de superação da ética capitalista vigente. Na criação dos espaços de esperanças, eles detêm um modo de vida singular, diverso e não linear, não programado e não completamente preso ao racional quando comparado com o mundo capitalista moderno. Nesse sentido, invocamos Leff et al. (2002), que afirma ser complexo denominar, através de uma forma geral, as comunidades fundadas em múltiplas matrizes de racionalidade. Dizer que são não ocidentais significa falar do que elas não são, e não delas próprias. Chamar de tradicionais implica reconhecer os riscos da idéia de oposição e aceitar uma distinção que só tem sentido para as sociedades modernas. As significações induzem essas classificações: hierarquizações, discriminações e desqualificações. Diegues (1996) ressalta a existência de uma ambigüidade quanto ao significado dos termos populações nativas, tribais, indígenas e tradicionais. Por trás das classificações simplificadoras reside um continuum entre uma e outra categoria, cujo equilíbrio entre as populações humanas e o ambiente não é mantido por decisões conscientes, mas por um conjunto complexo de padrões de comportamento, fortemente marcados por valores éticos, religiosos e por pressão social.

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Partilhamos da visão de cultura tradicional para o Cariri desse autor que entende como padrões de comportamento transmitidos socialmente os modelos mentais usados para perceber, relatar e interpretar o mundo com seus símbolos e significados, além de seus produtos materiais. Desse modo, realiza uma caracterização da população tradicional a partir de um conjunto de critérios fundamentais descritos abaixo: a) dependência e até simbiose com a natureza, os ciclos naturais e os recursos naturais a partir dos quais se constrói um modo de vida; b) conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos que se reflete na elaboração de estratégias de uso e de manejo dos recursos naturais. Esse conhecimento é transferido de geração em geração por via oral; c) noção de território ou espaço onde o grupo social se reproduz econômica e socialmente; d) moradia e ocupação desse território por várias gerações, ainda que alguns membros individuais possam se ter deslocado para os centros urbanos e voltado para a terra de seus antepassados; e) importância das atividades de subsistência, ainda que a produção de mercadorias possa estar mais ou menos desenvolvida, o que implica uma relação com o mercado; f) reduzida acumulação de capital; g) importância dada à unidade familiar, doméstica ou comunal e às relações de parentesco ou compadrio para o exercício das atividades econômicas, sociais e culturais; h) importância das simbologias, mitos e rituais associados à caça, à pesca e às atividades extrativistas; i) tecnologia utilizada relativamente simples, de impacto limitado sobre meio ambiente. Há uma reduzida divisão técnica e social do trabalho, sobressaindo o artesanal, cujo produtor (e sua família) domina o processo de trabalho até o produto final; j) fraco poder político que, em geral, pertence aos grupos de poder dos centros urbanos; k) auto-identificação ou identificação pelos outros de pertencer a uma cultura distinta das outras (Diegues, 1996:88). Complementando essa lógica de organização social da produção da população tradicional, Altieri (2000) salienta que o conhecimento do agricultor sobre os ecossistemas geralmente resulta em estratégias produtivas multidimensionais de uso da terra. Considera que, através da agricultura tradicional, informações importantes podem ser utilizadas no desenvolvimento de estratégias agrícolas apropriadas, adequadas às necessidades, preferências e base de recursos de grupos específicos de agricultores e de agroecossistemas regionais.

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Assim, preservam e repassam informações de geração a geração por meios orais ou empíricos. Preservam a biodiversidade não somente nas áreas cultivadas, mas também naquelas sem cultivos. Mantêm áreas cobertas por florestas e pastagens no interior ou em áreas adjacentes aos seus campos de cultivos, suprindo-se assim de produtos úteis, como alimentos, materiais de construção, medicamentos, fertilizantes orgânicos, combustíveis, artigos religiosos e alimentos para o gado e para o consumo humano (Altieri, 2000). É importante ressaltar que não há consenso firmado acerca do termo “população tradicional”, o que torna o conceito aberto a novos acréscimos de critérios, tendo em vista, a transversalidade da questão. Por outro lado, a nova categoria está sendo ocupada pelos sujeitos sociais, dispostos a lhe dotar de sentido político por meio de pactos e práticas de troca de benefícios, como o direito à territorialidade, aspecto vital para a conservação do seu modo de vida (Xavier, 2004). Portanto, o desafio que se coloca é maior que a polarização entre as racionalidades opostas, moderno-tradicionais. É preciso trazer a questão à superfície assumindo todos os riscos, evidenciando os princípios éticos do padrão produtivo do que entendemos aqui por população tradicional. Considerações Finais A solidariedade não pode ser entendida de modo isolado. Nesse contexto, é essencial trazer juntamente com os laços solidários dos indivíduos a questão do conflito. Não há, na comunidade, a eliminação da categoria conflito, pois o conflito se manifesta no momento de ver o outro, de desenvolver algum tipo de relação social com o outro. O conflito se faz presente quando tenho que admitir que o outro existe e não é igual a mim. Então trabalhamos com níveis de solidariedade e níveis de conflitos para entender a ética na comunidade. O que para nós é relevante é a idéia do conflito como algo que não é estanque e não deve ser separado da solidariedade, na verdade, se complementam. A própria comunidade tem uma necessidade de conflito, de se organizar contra/com algo para permanecer existindo. Quando há a organização da comunidade, há a mobilização na reivindicação contra alguma coisa que lhe é antagônica, e com alguma coisa que lhe é próxima, mas não comunga dos mesmos valores. A solidariedade por si só é insuficiente, a ética da comunidade tem seus conflitos. Sem embargo, é no espaço social que atravessam as relações da vida contendo as relações dos espaços vivido, concebido e percebido, e que identificamos as práticas espaciais das formas de apropriação das imagens e dos símbolos do espaço físico. Nesse aspecto, a unidade regional é objetivada no critério da diversidade e da noção de contradição onde a alteridade dos sujeitos e a interdependência das relações sociais, políticas, econômicas e ecológicas são amplamente consideradas. O espaço regional pressupõe vontade política e uma intervenção intencional a partir do instrumental técnico disponível para mudar a materialidade ética dentro de uma lógica mediadora no âmbito da negociação. Materialidade

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ética que aponta para a adequação do espaço geográfico aos moldes exigidos pela mobilização comunitária e pela solidariedade de seus habitantes. Bibliografia

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Recebido para publicação dia 12 de Novembro de 2007 Aceito para publicação dia 10 de fevereiro de 2008

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O ‘LUGAR’ NÃO É MAIS O MESMO: ARTICULAÇÃO DOS MÚLTIPLOSLOS ESPAÇOS-TEMPOS COTIDIANOS NAS PRÁTICAS ESCOLARES

AMANDA REGINA GONÇALVES Doutora em Geografia, Professora Substituta do Curso de Geografia, Departamento de Educação, UNESP, Campus de Rio Claro-SP. E-mail: [email protected]

ROSÂNGELA DOIN DE ALMEIDA Professora Adjunta (voluntária) do Programa de Pós-Graduação em Geografia, IGCE/ UNESP, Campus de Rio Claro-SP. E-mail: [email protected]

Resumo: Ao pensarmos os saberes e fazeres presentes no cotidiano escolar a partir da compreensão do currículo não apenas como uma lista de conteúdos a serem ministrados, mas como criação cotidiana daqueles que “fazem as aulas”, nos deparamos com uma prática que envolve tanto os saberes e processos interativos do trabalho pedagógico quanto os múltiplos conhecimentos e práticas desenvolvidos fora das atividades escolares, nos espaços-tempos da vida cotidiana que, em permanente articulação a espaços-tempos mais amplos, permeiam todo o nosso estar no mundo e que nos constituem. Nesta perspectiva, foram investigados neste trabalho os sentidos particulares atribuídos ao “lugar” nos currículos praticados por professores do sistema público de ensino básico. Palavras-chave: Geografia Escolar, lugar, espaços-tempos cotidianos, currículo praticado. Abstract: When thinking knowledge and practices presents in the school’s everyday from the understanding of curriculum not only like a list of contents to be given, but like daily creation by who “make the classes”, to appear us with a practice that involves such the knowledge and interactive processes of the pedagogical work, whatever to the multiple knowledge and practices developed out of the school activities, that is to say, in the spaces-times of the everyday life that - in permanent articulation at wider spacestimes ampler - they permeate all our being in the world and that constitutes us. In this perspective, we researched the attributed particular meaning to the “place” in the curriculum practiced by teachers from Brazilian public system of basic education were investigated in this work. Key-words: Scholl Geography, place, everyday spaces-times, curriculum practiced. Resumen: Al pensar los saberes y haceres presentes en el cotidiano escolar desde la comprensión del currículo no sólo como una lista de contenidos a ser suministrados, sino como creación cotidiana de aquellos que “hacen las clases”, nos deparamos con una práctica que involucra tanto los saberes y procesos interactivos del trabajo pedagógico, cuanto a los múltiples conocimientos y prácticas desarrollados fuera de las actividades escolares, es decir, en los espacios-tiempos de la vida cotidiana que – en permanente articulación a espaciostiempos más amplios – permean todo nuestro estar en el mundo y que nos constituyen. En esta perspectiva, fueran investigados en esto trabajo los sentidos particulares atribuidos al “lugar” en los currículos practicados por profesores del sistema público brasileño de enseñanza básica. Palabras-claves: Geografía Escolar, lugar, espacios-tiempos cotidianos, currículo practicado.

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Presidente Prudente

Ano 23, v. 2, n. 29

p. 231-246

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Introdução As atuais categorias curriculares – como território, região, paisagem e lugar – são constituídas em distintos contextos da institucionalização da Geografia Escolar, nas quais foram e são gestadas diversas concepções que professores, alunos atribuem à geografia e à pertinência do conhecimento de seus temas. Conotações, ampliações, estrangulamentos dados aos sistemas de idéias construídos sobre estas categorias têm implicado em “finalidades plurais na escola, pois cada discurso do pensamento geográfico traz inscrições conceituais diferenciadas” (Tonini, 2003, p. 13), a maioria prescrita nos textos didáticos e nos textos oficiais; resultando formações discursivas e práticas distintas. No entanto, mesmo relevando a importância dos “saberes a serem ensinados” na prática cotidiana docente, a centralidade deste texto está situada menos na constituição desses saberes e mais nos “saberes ensinados”, ou ainda no que André Chervel (1990) chama de “cultura escolar”, por serem estes verdadeiros constituintes do currículo praticado da geografia escolar, o que nos animou a investigar o “ensino do lugar” a partir de um estudo da sua representação em textos oficiais e textos didáticos, bem como em fazer um mergulho em práticas cotidianas de ensino. Desta forma, vamos tratar os currículos praticados sobre o “lugar” não como o ensino de um conceito transposto da Geografia, mas como saberes e práticas sobre elementos dos espaços cotidianos dos alunos e professores alinhavados aos de outros espaços, percebidos através do que evidenciamos no tecido das aulas como efeitos zoom. Isto por que é a partir daí que podemos compreender o conhecimento escolar nos seus aspectos metodológicos de construção e insistirmos numa direção de currículo e de formação docente que tenha como referência o trabalho de professores. A investigação da importância do “lugar” nos currículos praticados se deu junto a professores das séries iniciais do Ensino Fundamental da rede pública municipal de Rio Claro (SP), envolvidos num projeto que buscou integrar universidade e escola por meio de uma pesquisa colaborativa1 , reunindo, durante dois anos, professores da universidade, professores da rede de ensino básico municipal e graduandos em Geografia, preocupados com o ensino da localidade e o uso do Atlas Municipal Escolar de Rio Claro. O “lugar curricular”: o conceito nos textos oficiais e didáticos A partir da década de 1990, depois de um período de elaboração de políticas curriculares, se ensejou a proposição dos Parâmetros Curriculares Nacional (PCN), 1 A pesquisa intitulada “Integrando Universidade e Escola por meio de uma Pesquisa em Colaboração: Atlas Municipais Escolares - Fase II” foi desenvolvida ao longo de dois anos na UNESP (Campus Rio Claro), financiada pela FAPESP (modalidade Ensino Público) e concluída em julho de 2003. Em pesquisa anterior, foram produzidos Atlas Municipais Escolares (para os municípios paulistas de Rio Claro, Limeira e Ipeúna), também por meio de uma pesquisa em colaboração (financiamento FAPESP, 1997-1999); ambas coordenadas por Rosângela Doin de Almeida. Os Atlas, hoje publicados pelas respectivas prefeituras, destinam-se a alunos de 3a a 6a séries do Ensino Fundamental.

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“significando uma assunção federal da política curricular brasileira” (Sposito, 1999). Assim, o Brasil conhece uma reforma educacional – profundamente embasada na Reforma Curricular Construtivista Espanhola de 1987 – advinda com a apresentação dos PCN como “baliza” curricular para o Ensino Fundamental e Médio2 . Alguns aportes de concepções humanísticas aparecem sob formas restritas e enunciativas nos PCN, prevendo que os conteúdos a serem abordados em sala de aula devem permitir discussões a respeito das “dimensões subjetivas do espaço geográfico e as representações simbólicas que os alunos fazem dele” (Brasil, 1998, p. 61). No entanto, embora muitos autores concordem com o fato dos PCN terem avançado ao acrescentar a subjetividade aliada à objetividade no estudo da Geografia, os conteúdos que dizem respeito ao ensino do lugar, um dos mais próximos desta tal subjetividade, não se consolidam claramente nos parâmetros. Na tentativa de aliar a teoria à vivência “concreta” dos professores, alguns exemplos poderiam ser inseridos nos PCNs sobre espaços concretos ou sobre problemas vivenciados pelas sociedades no Brasil e no Mundo (Pontuschka, 1999, p. 17).

Os textos dos PCN privilegiam acentuadamente o conceito de paisagem, somente a partir do qual o lugar aparece, ainda com importância secundária; o que pode ser evidenciado quando apresentam esses dois conceitos da seguinte forma: O estudo de uma totalidade, isto é, da paisagem como síntese de múltiplos espaços e tempos deve considerar o espaço topológico – o espaço vivido e percebido – e o espaço produzido economicamente como algumas das noções de espaço dentre as tantas que povoam o discurso da Geografia (Brasil, 1997, p. 110).

Observa-se ainda que, embora coloquem como importante considerar as percepções, vivências e memórias dos alunos, esta consideração aparece não para que se pense nas contradições, diferenças, questões étnicas, de classe, de raça ou de gênero, mas limita-se a uma “constituição do saber geográfico”. Também o lugar aparece como uma etapa cognitiva a ser alcançada e não como intrínseco a qualquer sujeito. Isso ocorre pela visão cognitivista que fundamenta os PCN, que salienta as relações entre as etapas de escolaridade e o nível de desenvolvimento cognitivo dos alunos e os processos de ensino-aprendizagem dos conceitos fundamentais da Ciência Geográfica. Desse modo, a escola ensina um sistema, ou melhor, “uma combinação de conceitos mais ou menos encadeados entre si” (Chervel, 1990, p. 181). Entre as noções para “aprender e ensinar geografia no Ensino Fundamental” consta 2 Estes documentos foram elaborados pelo Ministério da Educação e do Desporto (MEC), sob consultoria de um grupo de pesquisadores espanhóis liderados por César Coll, que se fundamentam na teoria construtivista de educação.

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a seguinte enunciação: “a paisagem local, o espaço vivido pelos alunos deve ser o objeto de estudo ao longo dos dois primeiros ciclos” (Brasil, 1997, p. 116), explorada de uma maneira que vivifica a idéia de uma Geografia ainda aprisionada no localismo geográfico: “inicia-se, assim, um processo de compreensão mais ampla das noções de posição, sítio, fronteira e extensão, que caracterizam a paisagem local e as paisagens de forma geral” (Brasil, 1997, p. 127). Quando trata do lugar como espaço de experiência cotidiana vivida, os objetivos de ensino não encontram muito sentido, a não ser nos “critérios de avaliação” que sancionam a promoção dos alunos pelo currículo seqüenciado ao longo da escolaridade; por exemplo, ao apresentar o tema “O lugar e a paisagem” como um bloco temático, o documento defende que: Esses blocos temáticos contemplam conteúdos de diferentes dimensões: conceituais, procedimentais, atitudinais que, segundo esta proposta de ensino, são considerados como fundamentais para atingir as capacidades definidas para este segmento da escolaridade (Brasil, 1997, p. 134).

A leitura dos conteúdos sobre o lugar que os PCN apresentam revela indícios de como os sistemas escolares foram e continuam sendo uns dos mais intencionalmente capturados e usados para difusão dos processos de racionalização, sistematização e controle social, a fim da manutenção das metas e padrões hegemonicamente pré-definidos. Como mais um instrumento deste sistema, os PCN projetam demandas e conseqüências várias e contraditórias sobre os sistemas educativos. São, ao mesmo tempo, requisitados tanto para servir à lógica dominante e globalizante quanto resistir a ela. Além dos textos oficiais, os textos didáticos fazem parte de maneira intensa de uma das bases do conjunto de significados que carregam os conceitos de “geografia” e de “lugar” e funcionam, em sua maioria, como “tradutores” deles à prática docente. Como já mencionamos, André Chervel (1990)3 considera que a história das disciplinas escolares não é equivalente à história das ciências de referência, dado que aquelas são construções próprias encarregadas de veicular uma cultura particular, o que o autor denomina de “cultura escolar”, e que está constituída por um conjunto de conhecimentos, competências, atitudes e valores que a escola se encarrega de transmitir explicita ou implicitamente aos estudantes como bagagem cultural e patrimônio comum para todos os cidadãos. Segundo Chervel (1990, p. 187) “a história dos conteúdos é evidentemente seu componente central, o pivô ao redor do qual ela se constitui”. Sendo assim, na forma como é considerado pela Geografia, o “lugar” é um conteúdo dessa disciplina e, mais que isso, é um componente central, visto que foi também colocado como categoria analítica dela. 3 No contexto da sociologia crítica da educação, uma importante vertente voltou-se para a investigação sobre o processo de constituição do conhecimento escolar, o que deu origem ao campo de estudos História das Disciplinas Escolares, no qual se destacam os trabalhos do francês André Chervel e dos ingleses Basil Bersntein e Ivor Goodson.

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Esta indicação implica para Ivor Goodson (1990, p. 235) uma perspectiva que vê a disciplina escolar não subjugada às matrizes acadêmicas, especialmente a Geografia Escolar que “precede cronologicamente suas disciplinas-mãe” e causa a criação de uma base universitária. Por conseguinte, podemos entender a matéria escolar como uma comunidade de sujeitos escolares, em competição e colaboração entre si, buscando suas fronteiras e identidades, o que permite o poder de produção própria, dos próprios sujeitos envolvidos no processo de construção de conhecimento. O “lugar”, fazendo parte dos conteúdos historicamente presentes nos currículos de geografia aparece, em geral, nos documentos oficiais e livros didáticos como incursões genéricas, descontextualizadas ou exemplificadas com lugares mais conhecidos (mais veiculados na mídia ou em outros livros didáticos) e, são estas incursões que, correntemente, são usadas nas escolas para explicar “os ‘lugares’ dos alunos”. Lança-se mão nas aulas de comparações e analogias nem sempre pertinentes. Os livros didáticos por também fazerem parte dos saberes a serem ensinados, muitas vezes influenciam e “dão forma” ao conhecimento produzido na sala de aula, já que neles não estão contidos somente o que, mas como ensinar determinado conteúdo, através da seleção, classificação, ordenamento, modo de apresentação, linguagens utilizadas ao apresentar os conteúdos. Rodríguez Lestegás (2000, p. 57, tradução nossa) descreve os saberes a serem ensinados da seguinte forma: Constitui uma mediação indubitável entre o saber erudito e o saber ensinado. Está definido por quem tem poder de decisão sobre o sistema educativo e se expressa principalmente através do conjunto de disposições oficiais (orientações e instruções, programas). Em todo caso, o habitual é que os livros didáticos sejam os artefatos encarregados de fazer chegar e apresentar o saber a ser ensinado tanto para professores como para alunos.

Estas considerações ficam evidentes em livros didáticos em que predominam verbos imperativos, situações operacionais de conhecimento com etapas graduadas a serem seguidas, cujos exercícios mais próximos da escala local apresentados são geralmente relacionados a um lugar imaginário ou ao Estado, com preocupações de localização e nomeação. Alguns textos didáticos, por exemplo, justificam a causa da diferença entre determinados lugares nas diferenças comportamentais ali permitidas, mesclando discursos que informam ao leitor o significado dos lugares com discursos que oferecem uma explicação com base comportamental para cada tipo de lugar, correndo o risco de racionalizarem seus discursos à obediência a regras e comportamentos de alguns grupos sociais. Remeter-se a lugares generalizantes (as capitais estaduais, por exemplo) ou a lugares imaginários (o que permite as fugas perante problemáticas reais de qualquer lugar), são outros modos com que se generalizam os lugares através de grandes narrativas

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e de que a configuração e as regras para os mais diferentes lugares são as mesmas, às quais nos subordinamos. Outro modo de abordagem é aquele que se baseia em atividades de simulações e relações de pertencimento de um lugar situado em mapas de diferentes escalas ou figuras com níveis ou dimensões graduais (casa, bairro, município). Nesta abordagem, embora fundada em importantes princípios articuladores entre espaços, parte, geralmente, de um bairro de uma cidade desconhecidos pela criança e uma correspondência deste bairro em outros mapas de escalas municipal, regional, nacional, continental e mundial. O lugar é discutido, portanto, privilegiando-se as divisões político-administrativas e a localização geográfica de um “lugar-exemplo”, mas desvinculado de uma discussão sobre como se configura o lugar dos alunos a quem se ensina. Assim, as noções são desenvolvidas por meio de conceitos, como espaço geográfico, o que acaba por distanciar ou abstrair o espaço pensado do espaço de ação. Enfim, mesmo considerando a importância dos textos oficiais e didáticos no ensino de Geografia, é nos saberes e fazeres dos sujeitos escolares, espacialmente situados, onde acreditamos estar e ser constituído o sentido do estudo do lugar. Como nos alerta Inês Barbosa de Oliveira (2003, p.69), nos “currículos praticados e nos mais distintos espaços de formação dos sujeitos são redesenhadas as prescrições”, através do enredamento de valores, saberes e possibilidades de intervenção, experiências e criação, potencializando aprendizagens múltiplas e articuladas que vão muito além do previsto e do suposto oficialmente. Aos currículos praticados é trazido um sem-número de outros saberes que, articulados aos conteúdos formais, criam os efetivos processos de aprendizagem dos alunos, constituídos na interface entre a pequena e a grande escala, entre as raízes e as opções, entre as normas e as realidades. As formas próprias dos espaços-tempos cotidianos nos currículos praticados Foram nas aulas, como espaços de cruzamento e produção de representações, que fomos encontrar os aspectos constituintes do “lugar” que investigávamos. Á priori, faz-se necessário ressaltar que a apreensão do conceito de “lugar” através de uma aproximação prévia com literatura geográfica acadêmica fez da nossa investigação nas salas de aulas uma constante busca de fios que alimentassem a trama de significados tecidos ao longo do processo de disciplinarização do campo de conhecimento da Geografia. Fundamentos prévios nos alertavam quanto às diversas lógicas de funcionamento do “lugar”, historicamente estruturadas em intensas discussões teórico-epistemológicas de distintos grupos de especialistas. Por exemplo, fundamentos fenomenológicos que, diferenciando-se dos caminhos positivistas, vinculam o estudo da Geografia ao conceito de “paisagem cultural”, incorporando a subjetividade que estava implícita à concepção de lugar (Sauer, 1983).

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Ou ainda, fazendo parte do repertório analítico das correntes fundadas na chamada Geografia Crítica, o “lugar” recebe atenção inserido no processo de globalização, de maneira que ela passa a não ser mais passível de entendimento se analisado de forma isolada do mundo. Assim, ora o lugar é compreendido como produto e condição para a reprodução da vida, podendo ser analisado pela tríade “habitante-identidade-lugar” (Carlos, 1996, p. 26), numa proposta lefebvriana de se “incorporar ao espaço a crítica da vida cotidiana, que põe o acento na reprodução das relações sociais” (Damiani, 2005, p. 161). Ora como parte de uma teoria que busca entender o mundo contemporâneo através das “formações sócio-espaciais”, que traz ao debate a questão das “especificidades dos lugares”, ao entender que “os modos de produção tornam-se concretos sobre uma base territorial historicamente determinada”, na qual co-existem solidariedades organizacionais e orgânicas, verticais e horizontais (Santos, 1997). Como dissemos, apreensões como estas, a priori, nos mobilizaram a buscar nas práticas educativas elementos (explícitos ou implícitos) nos quais reconhecêssemos conjecturas como essas tramadas no universo acadêmico ou aquelas curricularmente difundidas em textos didáticos e oficiais. No entanto, os fios que fazem parte da tessitura da aula, em sua maioria, não são puxados destas lógicas estabelecidas nos ensaios de geógrafos ou outros teóricos. Constatamos na origem dos fios que tecem as aulas, representações de saberes e práticas sócio-espaciais cotidianos tanto dos professores como dos alunos. Sendo estes os fios da meada, a partir deles é que são estabelecidas relações entre as ações e os usos dos espaços mais amplos e abstratos, como os sediados nas mais distintas escalas geográficas. Ao mergulharmos nas práticas curriculares cotidianas, entendemos que o currículo não consiste apenas numa lista de conteúdos a serem ministrados, mas sim numa “criação cotidiana daqueles que fazem a escola” e como “prática que envolve todos os saberes e processos interativos realizados entre professores e alunos, e os saberes que permeiam todo nosso estar no mundo e que nos constituem” (Oliveira, 2003). Consequentemente as situações de interlocução com os alunos observadas nos conduziram à ampliação da noção de conhecimento, reconhecendo-o sob a estética de uma tessitura, cujos fios podiam estar numa experiência, numa prática que podia estar situada no banal do cotidiano, na esfera acadêmica, escolar ou familiar, na mídia, nos lugares de lazer, de consumo, de trabalho, ou seja, nos lugares abarrotados de representações, conflitos, simbologias, relações de poder, de raça, gênero, classe, diferença... Portanto, o conhecimento não é privilégio de nenhuma cultura em particular, seja ela determinada pelo status acadêmico, pela classe social, pela condição de gênero ou etnia; sendo uma rede, ele perde seu caráter hierarquizante, para ganhar a horizontalidade de sua condição de existência, uma vez que se admite como conhecimento tudo o que é referenciado na prática social. A seguir, são apresentadas práticas curriculares em sala de aula, das quais destacaremos dois conjuntos de onde emergem modos singulares de criação e reinvenção

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do que chamamos até aqui de “lugar”, situações estas centradas por um lado nos critérios de delimitação sócio-espacial e, por outro, no fenômeno da mobilidade social, como apresentaremos a seguir. Observemos uma atividade de ensino desenvolvida pela professora Marina, em que os alunos de uma escola municipal de Rio Claro trouxeram fotos antigas de bairros, para que pudessem compará-las com as paisagens atuais, através de visita a esses lugares. Professora Marina: As fotografias podem mostrar como eram as pessoas, os lugares, as construções, os terrenos. Como era o terreno da escola? Aluno: Não tinha nada. Aluno: Minha irmã me contou que só depois que colocaram os postes de luz que começaram a construir a escola. Professora: Estas mudanças no bairro estão ligadas às mudanças na nossa cidade, em? Alunos: Rio Claro. Aluno Adalberto: Santa Gertrudes. Professora: O nosso município, que nosso bairro faz parte é Rio Claro. Que está no Estado de? Alunos: São Paulo. Aluno Adalberto: Mas é que eu vou para Santa Gertrudes de bicicleta com minha mãe todo dia depois da aula. Aluno William: Professora, sabia que esse bairro (o fotografado) é o Pé no Chão, é perto do Conduta, mas é o Pé no Chão?! Professora: A é? Aluno William: O Pé no Chão é só pedra, não tem asfalto, o prefeito não asfaltou ainda. Professora: Uma parte do Pé no Chão não foi asfaltado ainda? É isso? Aluno William: O Pé no Chão inteiro (não é asfaltado), tem só até a casa do Lucas, que é o Conduta, que só vai até ali o asfalto, depois é o Pé no Chão. Aluno: É tipo de um cascalho que tem lá. Professora: Depois nós vamos discutir mais sobre isso, lá na visita. Lá no fundo (mostra o segundo plano da foto), o que mais que vocês podem ver? A mercearia que vocês falaram que estava construindo. Que ano? Quando foi tirada esta foto?

A interlocução registrada traz uma diversidade de representações. A princípio, cabe ressaltar que a definição espacial de “lugar”, ou seja, o que lhe dá sentido não é, necessariamente, o bairro, o município ou espaços delimitados por critérios políticoadministrativos (como os limites municipais), pois estes limites muitas vezes não definem os espaços cotidianos com que mantêm suas relações, uma vez que vivem numa zona limítrofe com o pequeno município de Santa Gertrudes, mais conhecido pelos alunos que o próprio município de Rio Claro, e onde referenciam grande parte das intervenções que trazem para a sala de aula. Por outro lado, podemos observar que a professora atribuiu maior importância ao

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registro das paisagens, pois justifica o estudo das fotos por meio de indícios que lhes atribuem significado curricular como representação do lugar: data da foto, objetos nelas registrados (terreno da escola, mercearia); vai além, estabelecendo uma relação direta entre elementos da paisagem com o conceito de limite político-administrativo (P: Lá no fundo, o que mais que vocês podem ver? ... O nosso município, que nosso bairro faz parte é Rio Claro. Que está no Estado de?). Este modo de estabelecer relação entre o que havia nas fotos com situações atuais parecia não estar fazendo sentido para os alunos, que respondiam paulatinamente as perguntas da professora; porém outras relações sócio-espaciais podiam ser identificadas nas falas dos alunos (A: Sabia que esse bairro é o Pé no Chão?), demonstrando sentidos particulares àquelas relações que a professora buscava fazer. Um novo sentido foi atribuído ao “lugar”, não mais como área instituída formalmente, mas como espaço percorrido cotidianamente (A: Mas é que eu vou para Santa Gertrudes de bicicleta com minha mãe todo dia depois da aula.). Um outro sentido ao “lugar” é dado quando os alunos reforçam fazer-se necessária a separação entre dois pequenos bairros vizinhos, localizados próximos à escola (vistos pelas professoras como “o bairro Conduta, lugar de procedência da maioria de seus alunos”). Assim, os alunos incluem o bairro Pé no Chão nas relações espaciais que vinham realizando, trazendo a constatação de que, embora o Pé no Chão seja visto e conhecido como parte do Jardim Conduta, ele consiste em outro lugar claramente delimitado pelas diferenças de infra-estrutura entre estes dois bairros, que marca a desigual atenção pública a ambos (A: ... é perto do Conduta, mas é Pé no Chão?!/ A: ... só vai até ali o asfalto, depois é o Pé no Chão./A: É tipo de um cascalho que tem lá.)4 . Enfim, ressaltamos que o trabalho com fotos antigas do bairro provocou uma tensão no estudo do lugar, pois por dizer respeito a lugares e pessoas comuns aos alunos, possibilitou aos mesmos a apresentação de seus conhecimentos sobre o tema em estudo, extrapolando o sentido atribuído àquelas fotos pela professora, tendendo a uma horizontalização da autoridade de posse do conhecimento, geralmente atribuído à professora ou à informação dos livros didáticos. Isto seria dificultado se o material usado para esta aula dissesse respeito a lugares distantes, desconhecidos ou imaginários. Observamos também que a paisagem pareceu ser considerada como uma primeira aproximação do lugar, uma chave inicial para apreender as diversas determinações desse lugar. Como analisa Lana Cavalcanti (1998, p. 100), “é pela paisagem, vista em seus determinantes e em suas dimensões, que se vivencia empiricamente um primeiro nível de identificação com o lugar”. A tessitura com os alunos de compreensões espaciais utilizando-se do tão aclamado “partir do lugar” nas propostas metodológicas de ensino de geografia, consiste não somente em tratar elementos do espaço imediato, mas tratar de múltiplos fragmentos espaços4

O bairro Pé no Chão faz parte de um projeto do governo municipal de assentamento urbano através de loteamento de terrenos públicos. No caso deste bairro, ainda que municipalmente reconhecido, foi assentado em área de várzea, sujeito a constantes alagamentos.

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temporais, com suas relações de poder, seus nós, fronteiras, continuidades e descontinuidades, seus domínios materiais e não materiais. Isto porque os alunos, assim como nós todos, para realizarmos atividades cotidianas as fazemos por meio de fragmentos reconhecidos nos referenciais espaciais que temos tanto no tempo-espaço presente como na memória (da qual também participam conteúdos oriundos da mídia), sendo que as cenas cotidianas são carregadas de elementos simbólicos multitemporais e espaciais. Outro conjunto de práticas curriculares cotidianas que se destacaram nas observações a uma problemática em torno do sentido de “lugar”, que vem se intensificando nas salas de aula e impondo novos desafios à esfera educacional, àquela que resulta de um fenômeno em escala mundial, mas que, especialmente no Brasil, país de extensa dimensão territorial, o tem de maneira expressiva dentro de suas fronteiras internas5 : o fenômeno da mobilidade humana. Destacamos a seguir três recortes dos registros das aulas do professor Vitor. A escola em que trabalha está situada na periferia da cidade de Rio Claro6 e atende alunos dos bairros populares localizados em seu entorno. Ainda que não hajam discussões diretamente referenciadas à esta temática nas situações registradas, ela aparece como emergente em distintos momentos. Este primeiro recorte traz uma aula centrada na questão das atividades urbanas e rurais. Quando o professor destacava num mapa do município de Rio Claro (SP) a área urbana e rural, um aluno conta: Quando eu era pequeno e minha mãe me levava para a roça, lá no Paraná, daí para a onça não me comer ela fazia um buracão no chão, colocava eu lá e tampava. Professor: Vocês vieram de um lugar, de uma realidade diferente, onde tem mais trabalhos rurais. Será que aqui em Rio Claro tem muitas oportunidades para trabalhar no campo? Alunos: Não. Professor: Então onde as pessoas acabam trabalhando? As: Nas fábricas Professor: Agora seu pai trabalha na “Tigre” (indústria instalada em Rio Claro), junto com os pais de vários colegas, né? Aluno: Mas parece que a Tigre vai sair de Rio Claro, vai lá para o Sul.

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No Brasil, o fenômeno da migração historicamente abrage distintos fluxos migratórios: de imigrantes estrangeiros na formação inicial de seu território; entre as populações das regiões brasileiras; e também, mais atualmente, o fluxo de emigração internacional do país, incluindo-se no chamado “fenômeno migratório transnacional”. 6 Do total da população residente no município de Rio Claro (168.218 hab.), 25.905 (15%) provêm de outros estados, em sua maioria dos estados de Minas Gerais, Paraná, Bahia e Ceará (IBGE, 2000). Estas são pessoas que passaram a fazer parte da configuração da sociedade multicultural de Rio Claro, onde a escola é um lugar de encontro de suas crianças.

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Em outra aula quando se discutiam textos sobre modos de vida, escritos pelos alunos com ajuda dos pais e avós, um aluno diz: Minha mãe me contou que no Ceará meu avô comprou uma tela que colocava na frente da televisão e ela mudava de cor, mas a gente não trouxe esta televisão pra Rio Claro, compramos uma colorida aqui. (...) No Ceará, minha avó tinha uma rempa de filho, mas meus tios ficaram todos lá, eu nem vi mais eles. Outro aluno diz: Eu sei que o dono do canavial do Paraná era muito rico, tinha usina e tudo, mas nem eu nem minha mãe conhecemos ele.

Numa discussão sobre meios de transporte, um aluno diz: Mas o meio de transporte em Araponga (MG) é o caminhão, a minha mãe sempre pegava carona para ir para a cidade. Só quando eu mudei para Rio Claro que a gente anda de ônibus e moto.

Estes se tornam eventos cada vez mais presentes nas escolas, porque quando se ensinava sobre o lugar há anos atrás, o espaço e o lugar eram amplamente coincidentes, uma vez que as dimensões espaciais da vida da criança eram dominadas por sua vida social, pelos espaços presentes, por atividades localizadas, pois há de se considerar que as imagens e informações sobre os lugares eram mais selecionadas e mais facilmente controladas, até mesmo pelas características das densidades técnicas da época, pela relativa lentidão e acesso restrito aos meios de comunicação. Hoje, os locais são fortemente contaminados por influências sócio-espaciais bastante distantes deles. O sociólogo inglês Stuart Hall (2003, p. 72) diz que “o que estrutura o local não é simplesmente aquilo que está presente na cena, a “forma visível” do local oculta as relações distanciadas que determinam sua natureza”. Isto nos leva a mais uma parcela de elucidação do sentido atribuído ao “lugar” nos modos particulares em que aparecem em sala de aula: o sentido do “lugar”, se como já vimos, às vezes, não se refere a um espaço de controle político-administrativo, por vezes também não se refere a um espaço contínuo ou de “contigüidade espacial”, como propõe Santos (1997). Diz respeito sim a um mosaico de locais e memórias que uma vez já fizeram parte das experiências prático-teóricas dos sujeitos ao longo de suas vidas, ou seja, aos espaços-tempos de fazeres e conhecimentos dos sujeitos. Aqui pode estar uma das diferenças entre local e lugar. A diferença de que os locais e os tempos são variados, mas ainda assim eles podem ser “georeferenciados” e periodizados, enquanto que o sentido de “lugar” pode ser um só, o de “espaços-tempos cotidianos, em permanente e dinâmica articulação com outros espaços-tempos, onde e sobre os quais tecemos e retecemos conhecimentos e práticas sociais” (GONÇALVES, 2006). É para esta dinâmica e diversidade de espaços-tempos (e não só às relações de permanência ou continuidade) que os professores são chamados a promover a interlocução em sala de aula, articulando as aprendizagens sobre as normas e regularidades do sistema social e espacial com outras, fruto de vivências e experiências nos pequenos espaços e

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circunstâncias da vida cotidiana. Nas observações e registros, por exemplo, percebemos que a maioria das falas em que os alunos trouxeram experiências vividas em outros lugares (que não somente nas aulas anteriores de geografia) aconteceu em atividades que permitiam algum tipo de participação aberta deles ou em atividades que os remetiam a diálogos com os pais, avós e vizinhos, ou ao uso de materiais produzidos localmente como jornais, folhetos, fotos e mapas locais ou de lugares que faziam parte de suas memórias sócio-espaciais. Por um lado, este é um processo de articulação – o que passamos a denominar de efeitos zoom – que passa a dar sentido às práticas e aos conhecimentos que os alunos desenvolveram em seus variados espaços-tempos ao longo de suas vidas, assim como pode dar sentido a lugares comuns e relações de contigüidade (“solidariedade orgânica”) que podem estar sendo - ou vir a ser - compartilhados por eles como, por exemplo, a indústria que emprega a maioria dos pais dos alunos ou o ônibus urbano que compartilham diariamente. Por outro lado, o enredamento passa a dar sentido àqueles espaços de “solidariedade organizacional” e às ações de agentes hegemônicos (Santos, 1997), que atuam segundo seus interesses e se colocam distantes de outros sujeitos, como o provável latifundiário do canavial em que trabalhava a mãe de um aluno (A: ... nem eu nem minha mãe conhecemos ele.); um distanciamento que tem em sua finalidade a exclusão mesma de alguns, um apartamento que tenta ofuscar o quanto estes agentes necessitam estar ligados, imbricados com estes sujeitos, para conseguir manter suas relações de poder e “incluí-los na exclusão”. Nestas descobertas o espaço é um dado fundamental, por que é nele que se dão os conflitos, as negociações e as relações de solidariedade, onde uma ordem espacial é permanentemente recriada. Este encontro de uma lógica e um sentido próprio construídos nas redes de espaços-tempos constitui a configuração de identidades e pertencimento, ou ainda, da territorialidade. E é desta territorialidade que os alunos têm que se munir para orientar-se quando se depararem novas paisagens e os novos espaços-tempos, de uma maneira que seu repertório histórico e espacial não tenha que ser anulado e lhes sirva de referência e parâmetro na constituição de suas identidades. Dando continuidade às contraposições e resistências que são criadas no lugar e nele co-existem e se articulam com outras lógicas e espaços, trazemos o enredamento como definidor das identidades individuais e sociais e de seus fragmentos e dinamismos. Neste sentido, a Geografia pode ter um papel relevante, se vista como um componente curricular integrador de outros espaços e tempos, de outros modelos culturais, cujo conhecimento favoreça o intercâmbio, o enriquecimento cultural e o fortalecimento das articulações espaços-temporais na produção das novas identidades sócio-espaciais. A configuração do lugar, tal como o apresentamos acima, tem função fundamental, uma vez que ele faz a mediação entre referenciais locais e de alhures, num entendimento do território como um mosaico desenhado pelas múltiplas experiências e memórias sócioespaciais e pelas relações de poder reconhecidas nelas.

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Neste contexto, a escola destaca-se como instituição aglutinadora da diversidade cultural. Sendo assim, sua função socializadora pode se centrar na busca pelas diferentes formas de se construir dinâmicas sociais mais justas e participativas. Por isso pensamos que a escola – e também o ensino de geografia – podem se tornar marcos de referência na construção da identidade social e espacial dos alunos. No entanto, o poder disciplinar está preocupado, com a regulação - a vigilância é o governo da espécie humana ou de populações inteiras; preocupa-se com a “regulação do indivíduo, do corpo” (Oliveira, 2003). Um exercício que contribui, antes de tudo, com o isolamento, a individualização e a competitividade entre os sujeitos. Mas, utilizando-nos da metáfora das “escalas” da “cartografia simbólica” que Boaventura de Souza Santos (1995) usa para compreensão das relações sociais e referências espaciais com a quais as sociedades imaginam todos os aspectos da realidade – são nas minudências das ações sociais que uma educação inter-cultural pode promover relações de igualdade e respeito entre os sujeitos, ao mesmo tempo em que a chave para o alcance de desafios maiores está no reconhecimento destas ações da grande escala para que subsidiem mudanças na orientação curricular. Uma mudança que exige que se supere o “disciplinamento” em que se encontra imerso o Currículo e conte com uma fundamentação prático-teórica escolar que considere a percepção da territorialidade dos sujeitos na construção da cidadania. Uma Geografia Escolar com este enfoque requer mais que uma mera introdução de unidades temáticas sobre “Pluralidade Cultural” (Brasil, 1997), atividades isoladas ou limitadas às datas comemorativas. É no sentido de superar reducionismos como estes que vimos ressaltando a importância das práticas curriculares que buscam enredamentos dos saberes e das práticas desenvolvidas nos ou sobre os espaços-tempos cotidianos dos sujeitos escolares. Currículos praticados por meio da consideração das representações espaços-temporais e de seu entrelaçamento tanto com as lógicas estruturais do espaço mais amplo, quanto com a configuração territorial do lugar de contigüidade. Também práticas de sala de aula com uma visão da mobilidade humana não como um problema, mas como algo provocador de novas identidades, das solidariedades étnicas ou culturais até as solidariedades sociais e profissionais. Os recortes de aula que destacamos trazem à tona questões que envolvem o deslocamento da população em busca de melhores condições de trabalho e de qualidade de vida em locais onde as chances de sobrevivência são maiores (P: ... pessoas que trabalharam na zona rural e agora seu pai trabalha na Tigre. ... Eles vêm de um lugar onde tem mais trabalhos rurais. Será que aqui em Rio Claro tem muitas oportunidades para trabalhar no campo? Então onde as pessoas acabam trabalhando?). São amplos os motivos em que se fundam as decisões dos movimentos migratórios entre as fronteiras dos territórios na atualidade. Como nos lembra Stuart Hall (2003) sobre os fatores da migração, ela é impulsionada pela pobreza, pela seca, pela fome, pelo

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subdesenvolvimento econômico, por colheitas fracassadas, pela guerra civil, pelos distúrbios políticos, pelos conflitos regionais, pelas mudanças arbitrárias de regimes políticos, pela dívida externa acumulada de seus governos para os bancos centrais. Indícios de condições precárias de trabalho no campo em suas cidades de origem são colocados pelos alunos, através da apresentação de situações específicas e marcantes na construção de suas identidades, constituídas dos fazeres e conhecimentos em espaços experienciados em suas histórias de vida (A: ... minha mãe me levava para a roça, lá no Paraná, daí para a onça não me comer ela fazia um buracão no chão, colocava eu lá e tampava. / A: Uma vez eles estavam roçando a floresta para fazer plantação de banana, e eles faziam barraca.). Além de problemáticas estruturais que envolvem o desemprego, as más condições de trabalho, a desigualdade social, a concentração de terras e de renda, outro dos principais impactos do fenômeno migratório é que ele resulta no que Hall (1992) chama de “mix cultural”. Junto com as novas tecnologias da informação e comunicação, os imigrantes trazem de forma mais latente para os lugares a mistura, a diversidade, as descontinuidades históricas e a não coincidência de sua história de vida com a história de configuração territorial do novo lugar onde ele passa a viver. Nas falas dos alunos, por exemplo, aparecem elementos que não fazem parte do cotidiano social e espacial da cidade de Rio Claro na atualidade (um cotidiano que historicamente compartilham os que têm gerações de familiares aqui enraizadas), como onças, jaguatiricas, plantação de banana, buraco em subsolo para proteger-se de animais, “caronas” em caminhões, telas para colorir imagens da televisão, entre muitos outros que não elencamos aqui. Estes são exemplos de elementos constitutivos do repertório cultural dos alunos e são inerentes às referências que delimitam suas ações sócio-espaciais, as quais podem se deparar com barreiras sociais, políticas, econômicas preocupadas em reconstruírem identidades purificadas para que se restaure a coesão e o fechamento frente à diversidade, podendo tornar o lugar a sede de uma vigorosa alienação, que marginaliza os que não detém seus códigos, como a maioria dos migrantes (Santos, 1997); podem também se deparar com ações sociais, políticas, econômicas voltadas para a produção de novas identidades que vêm se formando nos “novos lugares”, o que pode ser facilitado e promovido na escola a partir das articulações dos repertórios culturais sócio-espaciais dos alunos aos processos locais e aos mais amplos e globais dando origem a formas inusitadas de conhecimentos e práticas. Eventos estes que mostram como a intensidade do fenômeno migratório e a influência dos meios de comunicação vêm pondo em questão o mundo de fronteiras, de continuidades e as velhas certezas e hierarquias das identidades locais. Diante, por exemplo, daquelas experiências espaciais cotidianas na cidade de Santa Gertrudes dos alunos de Marina ou desta mistura de repertórios culturais dos alunos de Vitor, o que significa ser rio-clarense hoje?

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Considerações finais: tecendo arremates e nós Os episódios das aulas de Marina e de Vitor nos levaram a refletir sobre o modelo de organização política e social que temos e, mais especificamente, sobre o desenho curricular em que se ampara a educação. Estes alunos emergem como um exemplo do caráter político e posicional das novas identidades, demonstrando uma formação em e para tempos e lugares específicos, mas ao mesmo tempo um modo de como a identidade está articulada ou entrelaçada em identidades múltiplas, em espaços-tempos múltiplos, nunca um anulando o outro. A análise nos mostra que a rapidez e intensidade que vêm assumindo os fluxos migratórios, bem como as novas formas de experimentação do tempo e do espaço que caracterizam o período atual vêm transformando os modos das pessoas realizarem suas vidas. Porém ainda vêm acompanhadas de respostas contraditórias dadas pelos âmbitos público e privado, onde são desconsideradas suas potencialidades de enriquecimento cultural e político, mantendo-os como minorias étnicas, migrantes, pobres, discriminados. Portanto, entende-se que para permitir o desenvolvimento das potencialidades dos sujeitos, há de se considerar que as identidades não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação, no conjunto de significados que tem por base uma variedade de conhecimentos e de práticas referenciados num entrelaçado de espaços e de tempos. E se estamos preocupados com o papel do ensino dos espaços-tempos cotidianos na construção destas identidades, é importante oferecer condições para que as relações híbridas se constituam, contribuindo para que o aluno possa alargar seu entendimento de si, de seu entorno e do mundo em sua multiplicidade e dinamismo, no passo em que possa questionar a naturalidade do que lhe chega e apropriar-se criticamente dos conhecimentos que os cercam; que possa criar perspectivas de pensar e construir um futuro mais plural e menos desigual, uma vez que, como diz o sociólogo português Boaventura de Souza Santos (2005) “todo mundo tem direito à igualdade quando a diferença discrimina e todo mundo tem direito à diferença quando a igualdade descaracteriza”. Os currículos praticados, como os aqui investigados, ensinam às pesquisas de Didática e Currículo da Geografia Escolar, que apresentar o conceito de lugar como uma construção social da realidade, e não como a própria realidade, significa demonstrar o caráter relativo do conceito. Assim, se grande parte dos limites à efetivação destas perspectivas vêm de teorizações circunscritas à pequena escala, às autoridades educacionais, que muitas vezes desenham o sistema educativo e as propostas curriculares em função das “raízes” normativas e gerais sem levar em consideração as “opções” que as práticas cotidianas realizam (Oliveira, 2003), exaltamos aqui as orientações curriculares que se apropriam daquilo que é particular no modo de produção de conhecimento no trabalho cotidiano docente.

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GONÇALVES, A. R.; ALMEIDA, R. D. DE MESMO...

O ‘LUGAR’ NÃO É

MAIS O

Bibliografia BRASIL, Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: História, Geografia. Brasília: MEC/SEF, 1997. 166p. ______. Parâmetros curriculares nacionais: Geografia (5ª a 8ª séries). Brasília: MEC/SEF, 1998. 156p. ______. Parâmetros curriculares nacionais: pluralidade cultural, orientação sexual. Brasília: MEC/SEF, 1997. 164p. CARLOS, Ana Fani Alessandri. O lugar no/do mundo. São Paulo: Hucitec, 1996. 150p. CAVALCANTI, Lana de Souza. Geografia, escola e construção de conhecimentos. 3.ed. Campinas-SP: Papirus, 1998. 192p. CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, v. 2, 1990. p. 177-229. DAMIANI, Amélia. O lugar e a produção do cotidiano. In: CARLOS, Ana Fani A. (org). Novos caminhos da geografia. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2005. p. 161-172. GOODSON, Ivor. Tornando-se uma matéria acadêmica: padrões de explicação e evolução. Teoria & Educação. (Tradução de Tomaz Tadeu da Silva) N. 2, 1990. p. 230-254. GONÇALVES, Amanda Regina. Os espaços-tempos cotidianos na Geografia Escolar: do currículo oficial e do currículo praticado. Rio Claro-SP: Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista, 2006. 200p. (Tese, doutorado em Geografia). HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. (Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro). Rio de Janeiro: DP&A, 2003. 102p. OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Currículos praticados: entre a regulação e a emancipação. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. 152p. PONTUSCHKA, Nídia Nacib. Parâmetros Curriculares Nacionais: tensão entre Estado e escola. In: CARLOS, Ana Fani Alexandre; OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de (Org.). Reformas no mundo da educação: parâmetros curriculares e geografia. São Paulo: Contexto, 1999. p. 11-18. RODRÍGUEZ LESTEGÁS, Francisco. La elaboración del conocimiento geográfico escolar: ¿de la ciencia geográfica a la geografía que se enseña o viceversa? Íber: Didáctica de las Ciencias Sociales, Geografía e Historia. Barcelona, n. 24, 2000. p. 107-116.

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Recebido para publicação dia 02 de Novembro de 2007 Aceito para publicação dia 08 de Fevereiro 2008

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A CLIMATOLOGIA PRODUZIDA NO INTERIOR DA CIÊNCIA GEOGRÁFICA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE DE TESES E DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS EM PROGRAMAS DE PÓSGRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA*

Climatology Raised Within Brazilian Geographic Science: a study on the accomplishment of graduated programs in Geography La Climatología Producida en el Interior de la Ciencia Geográfica Brasileña: un análisis de tesis y disertaciones defendidas en programas de postgrado en Geografía

DEISE FABIANA ELY Professora Doutora do Departamento de Geociências da Universidade Estadual de Londrina – UEL. Rodovia Celso Garcia Cid (PR 445), Km 380, Caixa Postal 6001 – Fone (43) 3371-4246, Fax (43) 3371-4216. E-mail: [email protected]

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O texto apresentado constitui parte das reflexões desenvolvidas em Tese de Doutorado, defendida junto ao Programa de pós-graduação em Geografia da FCT/UNESP – Campus de Presidente Prudente / SP.

Terra Livre

Resumo: As discussões constantes nesse artigo objetivam apresentar o processo de produção e constituição da especialidade científica identificada como climatologia geográfica a partir da análise de teses e dissertações produzidas em seis programas brasileiros de pós-graduação em Geografia, defendidas no período de 1944 a 2003, bem como contribuir para o debate acerca do papel desempenhado pelo fenômeno climático na ordenação dos espaços pela sociedade. Foi constatado que as orientações teórico-metodológicas propostas pelo professor Dr. Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro propiciaram a formação de uma escola de climatologia geográfica brasileira, subsidiada na análise rítmica e episódica e no estudo do clima urbano, além de outros quatro eixos temáticos: variabilidade pluvial, o clima na análise ambiental e da paisagem, modelagem estatística em climatologia e teoria e método da climatologia. Mas, também, foi identificado que essa produção apresenta uma escassez de análises sobre as questões epistemológicas da Geografia, dificultando a apreensão da espacialidade do clima na composição das novas territorialidades. Palavras-chave: Climatologia geográfica brasileira, clima, espacialidade, sociedade. Abstract: This paper surveys and analyses the thesis and scientific outcomes achieved by six Brazilian M.A. and PhD programs in Geography, from 1944 to 2003, in order to outline the process of institution of Geographic Climatology as a scientific specialty, and to contribute to the debate about the role of climate on the spatial arrangement of a given society. It was verified the importance of Professor Dr. Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro’s theoretical and methodological accomplishments to the settlement of Brazilian School of Geographic Climatology, mainly on the basis of rhythm and episodic analysis, and of urban climate, besides pluvial variability, the climate on the environmental and landscape analysis, statistical modeling in climatology and climatology methodology. However, it was also verified that the Brazilian School lacks a deep concern for epistemological problems of Geography, a gap wich makes difficult to understand the role of climate spatiality in the making of new territorialities. Key words: Brazilian Geographic Climatology, climate, spatiality, society. Resumen: Las discusiones constantes en ese artículo objetivan presentar el proceso de producción y constitución de la especialidad científica identificada como climatología geográfica a partir del análisis de tesis y disertaciones producidas en seis programas brasileños de postgrado en Geografía, leídas en el período de 1944 hasta 2003, así como contribuir para la discusión acerca del papel desempeñado por el fenómeno climático en la ordenación de los espacios por la sociedad. Fue constatado que las orientaciones teórico metodológicas propuestas por el profesor Dr. Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro propiciaran la formación de una escuela de climatología geográfica brasileña, subsidiada en el análisis rítmico y episódico y en el estudio del clima urbano, además de otros cuatro ejes temáticos: variabilidad pluvial, el clima en el análisis ambiental y del paisaje, paradigma estadístico en climatología y teoría y método de la climatología. Pero, además de eso, fue identificado que esa producción presenta una escasez del análisis sobre las cuestiones epistemológicas de la Geografía, dificultando la aprehensión de la espacialidad del clima en la composición de las nuevas territorialidades. Palabras clave: Climatología geográfica brasileña, clima, espacialidad, sociedad.

Presidente Prudente

Ano 23, v. 2, n. 29

p. 247-264

Ago-Dez/2007

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A CLIMATOLOGIA PRODUZIDA NO INTERIOR DA CIÊNCIA GEOGRÁFICA...

Introdução As questões epistemológicas da ciência geográfica, assim como da ciência em geral, constituem um contínuo e amplo debate e proporciona um repensar sobre as formas de análise da realidade espacial. Entretanto, no Brasil, tais discussões são mais marcantes nos discursos dos geógrafos que se dedicam às questões humanas da Geografia e são poucos os geógrafos formados na tradição da chamada geografia física que se interessam pela reflexão epistemológica, como bem demonstrou o levantamento feito por Jesus (1995, p. 19 – 24), constatando que os manuais e periódicos que abordam temas da climatologia utilizados no Brasil apresentam escassas discussões epistemológicas e metodológicas sobre o estudo geográfico do fenômeno climático. Diante dessas considerações, o presente texto procura analisar o processo de produção da especialidade científica da climatologia geográfica brasileira, quais os seus vínculos teóricos e suas principais características de ordenação metodológica, feita a partir de um recorte, ou seja, das teses e dissertações produzidas em alguns dos programas brasileiros de pós-graduação em geografia. A escolha desse universo de análise é justificada pelo fato de que no processo de pós-graduação as tendências teórico-metodológicas tornam-se mais evidentes na prática dos pesquisadores, além das instituições que ofertam tais cursos congregarem profissionais que contribuem para a disseminação e expansão do conhecimento acerca da climatologia geográfica no país.

As contribuições científicas sobre o clima advindas de algumas instituições brasileiras A institucionalização das universidades no Brasil foi um processo tardio, concretizado no decorrer da década de 1930. Até então, parte do conhecimento científico produzido no Brasil era efetivado no interior de algumas instituições, entretanto nosso território era fonte de pesquisas para viajantes, naturalistas e pesquisadores estrangeiros que, em suas expedições, produziam estudos pautados em variados postulados teóricos procedentes da efervescência do pensamento científico europeu. Em nossas terras eram escassos profissionais com formação específica nos variados campos do saber, principalmente naqueles que se dedicavam ao reconhecimento, mapeamento e análise do território, bem como aos estudos do clima. As análises com esse caráter eram desenvolvidas por diferentes estudiosos ou profissionais oriundos de instituições e universidades européias, que procuravam descrever e enumerar os arranjos espaciais que caracterizavam nosso território. Os estudos referentes aos climas do Brasil eram publicados no interior das

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descrições narrativas e, conforme Sant´Anna Neto (2001), reproduziam os fundamentos de duas correntes clássicas do pensamento geográfico: aquela derivada do romantismo alemão e embasada na concepção de paisagem natural de Humboldt, que analisava conjuntamente as características do quadro natural, dentre elas os aspectos climáticos; e outra, em que predominava a visão determinista e fatalista do clima sobre a sociedade, enaltecendo as correlações das altas temperaturas e umidade tropicais com a lassidão, a preguiça e a ociosidade dos habitantes dessas áreas, limitadores do progresso dessas sociedades e utilizada como justificativa para a reafirmação da superioridade dos brancos e dos povos europeus. Segundo Moreira (2006), na Europa, na segunda metade do século XIX, a ciência estava redirecionando seus postulados filosóficos. Era o período de emergência do método positivo que tinha como preocupação fundamental a delimitação de leis gerais que permitiriam ao cientista a definição das regularidades dos fenômenos naturais e sociais, considerando o homem como um ser evoluído, superior e externo à natureza, essa última entendida como física e inorgânica e seu conhecimento requeria, essencialmente, a coleta, a manutenção e a análise de dados quantitativos. O princípio da valorização dos dados quantitativos enquanto sinônimo de conhecimento cientificamente comprovado demandava pelo estabelecimento de redes de postos de coleta de dados climatológicos, bem como sua publicação, visando à elaboração da catalogação das características dos climas brasileiros buscando o entendimento de sua regularidade e dos eventos extremos. A coleta de dados meteorológicos acontecia de forma esparsa em algumas localidades do Brasil, entretanto os arquivos do Observatório Nacional, junto a Repartição Central Meteorológica da Marinha e aqueles do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro merecem destaque por constituírem o registro das primeiras estações meteorológicas do país. (PEREIRA, 1980) Nesses dois institutos, além da coleta e do tratamento estatístico dos dados climatológicos, procurava-se estabelecer as possibilidades da geografia para a administração estatal com a divulgação de documentos e mapeamentos em todas as suas áreas correlatas, realizando o levantamento topográfico, geológico, geográfico e as possibilidades da agricultura, tendo, também, como foco de interesse a região nordestina assolada pelas constantes secas. A coleta de dados meteorológicos propiciou a elaboração de análises sobre o regime e a variabilidade climática, proporcionando também a confecção de uma classificação dos climas do Brasil, desenvolvida por Henrique Morize, no início do século XX; além do estabelecimento das primeiras regras para a previsão do tempo em nosso território. Nesse período também foi promovida a unificação dos serviços meteorológicos brasileiros com a criação da Diretoria de Meteorologia e Astronomia, dedicada ao estudo das secas, do regime das estiagens e cheias de alguns rios e à previsão do tempo, já que os procedimentos de coleta e arquivamento dos dados climáticos estavam sendo padronizados pela mesma. Em 1921, a referida diretoria foi desmembrada em dois institutos, sendo que o de

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Meteorologia ficou a cargo de Sampaio Ferraz, que procurou incentivar a vinda de alguns técnicos estrangeiros para auxiliar na instalação de novos serviços e na formação de uma escola de meteorologia. Mesmo com diferenças de objetivos e de metodologias, a climatologia e a meteorologia eram trabalhadas pelos técnicos do respectivo instituto. A atividade agrícola, a navegação e o transporte aéreo impulsionaram os trabalhos de cunho meteorológico, influenciados pelos avanços da física da atmosfera. Assim, meteorologistas e geógrafos trabalhavam em cooperação. De tal modo que ao mesmo tempo em que a Geografia fornecia valiosas contribuições em termos da fisiologia das paisagens, de caráter mais regional, os meteorologistas se empenhavam na compreensão dos mecanismos da circulação atmosférica – superior e secundária, possibilitando uma análise de interfácie entre os fenômenos atmosféricos e suas relações com a superfície terrestre, em termos de organização do espaço. (SANT’ANNA NETO, 2001, p. 119)

Esse trabalho conjunto propiciava a produção de conhecimentos de bases científicas sobre o clima no Brasil seguindo os preceitos teóricos divulgados pela Física e pela Geografia de então, tendo-se como referência o manual de climatologia sistematizado por Hann (“Handbuch der klimatologie”) que abordava, didaticamente, as bases gerais da climatologia e a descrição dos climas regionais e apresentava as primeiras definições para os termos clima e tempo, designando o primeiro como “[...] o conjunto dos fenômenos meteorológicos que caracterizam a condição média da atmosfera sobre cada lugar da Terra” (HANN, 1882 apud MONTEIRO, 1976, p. 22). E o segundo destacado como uma fração da sucessão daqueles fenômenos, reproduzindo-se com maior ou menor regularidade no ciclo anual (SANT’ANNA NETO, 2001, p. 82). Uma outra menção presente nos estudos climáticos do período era a idéia de tipos de tempo formadores dos climas proposta por Köppen e sua classificação climática regional que, até hoje, é largamente utilizada, bem como suas observações meteorológicas e o exercício de correlação entre dados de pressão do ar e ventos e suas indicações sobre a possibilidade de análise do caráter dinâmico das condições atmosféricas. As contribuições de Hann e Köppen constituíram os primeiros passos para a construção de um projeto que elevasse os estudos climatológicos ao status de conhecimento científico em termos positivistas, pois preconizavam a observação dos elementos climáticos, posteriormente transpostos para a linguagem matemática (dados) visando o estabelecimento das leis gerais de sua regulamentação, universalizando o conhecimento dos mecanismos de funcionamento desses fatos, tornando-os coisas passíveis de mapeamento e classificação em suas manifestações absolutas, vislumbrando a continuidade do progresso do conhecimento coeso e da sociedade. Esses pressupostos foram claramente discutidos por De Martonne na segunda

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parte do volume I de sua coletânea “Panorama da Geografia” (1953), apresentando um verdadeiro manual de estudo do clima e seus elementos e finalizando-o com sua proposta de classificação climática, comumente aludido nos estudos climáticos produzidos no Brasil. As intensas atividades do Instituto de Meteorologia foram abaladas durante a década de 1930 em função dos problemas políticos brasileiros, da mudança de governo e da redução no repasse de recursos financeiros, prejudicando a publicação das séries meteorológicas. Após a deflagração da Segunda Guerra Mundial, voltou-se a valorizar as séries de dados e os estudos meteorológicos, pois esses passaram a ser constantemente requisitados para as possíveis investidas das missões militares. Entretanto, a pesquisa em climatologia mantinha-se no Conselho Nacional de Geografia, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística implantado na década de 1930 e dava-se início as pesquisas sediadas na Universidade de São Paulo (USP) e na Faculdade de Filosofia ou Universidade do Brasil, institucionalizadas no mesmo período.

A climatologia produzida no interior da ciência geográfica brasileira Monteiro (1980, p. 10) salienta que a geografia produzida pelo Conselho Nacional de Geografia possuía um caráter político e comprometido com o poder estatal, que para a sua afirmação necessitava da determinação das divisões territoriais nacionais vislumbrando o estabelecimento das regiões geográficas administrativas que possibilitariam a otimização de suas ações. As atividades desse Conselho, durante muito tempo, foram organizadas por pesquisadores estrangeiros. A admissão de profissionais brasileiros somente foi possível após a instalação dos cursos de geografia junto às universidades nacionais e que contribuíram para a ampliação dos conhecimentos dos tipos climáticos e para o desenvolvimento de uma climatologia regional, baseada nos pressupostos da geografia lablacheana e associada às monografias explicativas e interpretativas de Emmanuel De Martonne, além da influência de Hartshorne na composição de uma geografia científica. Os estudos climatológicos e meteorológicos eram desenvolvidos pelos profissionais dessas instituições e os seus resultados, inclusive aqueles efetivados pelos meteorologistas do Instituto de Meteorologia, eram divulgados por meio dos canais de publicação da geografia, ou seja, a Revista Brasileira de Geografia, publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística / IBGE e os congressos e anais dos encontros promovidos pela Associação dos Geógrafos Brasileiros / AGB. Nesse período, merecem destaque os trabalhos de climatologia geográfica de Ary França, que se graduou em Geografia na França e desenvolveu a primeira tese de doutorado dedicada aos temas da climatologia geográfica. Em seus trabalhos discutiu as idéias de Max Sorre e de Jean Tricart, referências trazidas daquele país e que possibilitou inovar os estudos de climatologia, trazendo importantes contribuições metodológicas,

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principalmente, quando se referia ao conceito de clima. Para ele deveríamos “[...] adotar a definição de ambiência atmosférica, no sentido de incorporar a noção de ocorrência de tipos de tempo na sua sucessão habitual”. (SANT’ANNA NETO, 2001, p. 130) Sob os auspícios sorreanos, Ary França salientava uma análise climática comprometida com a geografia, preocupando-se com as camadas de ar que recobrem imediatamente a superfície de um lugar, enquanto que a meteorologia nos subsidiaria com o estudo das massas de ar pautado na Física moderna. Interpretações teóricas que

impulsionaram outros rumos para a climatologia brasileira. Enquanto que os trabalhos de cunho meteorológico se aprofundavam nos postulados da termodinâmica e nas inovações tecnológicas (balões, satélites meteorológicos e, bem mais tarde, os super-computadores) direcionando-se para o aperfeiçoamento das previsões do tempo, culminando com a implantação de cursos de graduação em Meteorologia e do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC), junto ao Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). A procura pela origem dos processos atmosféricos já vinha sendo realizada no Brasil, a partir dos trabalhos de Serra e Ratisbonna e de França. As contribuições desses autores, associadas às perspectivas teóricas e metodológicas da análise sistêmica e as inovações provocadas pela absorção do conceito de clima de Sorre, motivaram Monteiro no estabelecimento de estudos sobre a organização climática do Brasil. Inicialmente, ele procurou enaltecer a estratégia descritiva, desenvolvida por Emmanuel De Martonne que aglutinava grandes grupos climáticos por afinidades de regimes (comportamento qualitativo), correlacionando-a com a classificação genética dos climas de Strahler, baseada na dinâmica das massas de ar. O enfoque dinâmico desenvolvido a partir das teorias da circulação atmosférica e da perspectiva sorreana, permitiu uma explicação da gênese do desencadeamento rítmico dos estados do tempo, configurando-se Monteiro como o grande incentivador brasileiro para os estudos de climatologia sob o referido conceito, salientando a importância da consideração das noções de sucessão habitual dos tipos de tempo e de movimento para a configuração climática dos lugares, justificando o caráter dinâmico do clima através do desvendamento do seu ritmo. Para Monteiro (2001, p. 148) o ritmo compreende uma ordem do movimento que “[...] Pode ser tido também como uma alteração de elementos contrastantes. Associando movimento e contraste, aparece a condição sine qua non do ritmo que é a periodicidade, uma configuração de movimentos não recorrentes”; filiando a origem etimológica desse termo aos pressupostos filosóficos de Platão. O referido autor destaca que o conceito de ritmo, enquanto o encadeamento sucessivo de tipos de tempo (meteorológico) sobre um determinado lugar, constitui o paradigma que propicia uma análise geográfica do clima. O ritmo é a estratégia espacial e temporal que Monteiro propõe para entender o clima no cotidiano da sociedade, esclarecendo que: “Quando enunciamos que o clima de um lugar (espaço) é a resultante

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do comportamento dinâmico mais habitual ou recorrente da atmosfera cronologicamente desenvolvido (tempo) sobre aquele dado lugar, teremos o problema de definir que lugar é este”. (MONTEIRO, 1999, p. 10) Assim, é salientada a necessidade de se constituírem análises climáticas considerando a dinâmica da atmosfera e a sua espacialidade (MOREIRA, 2004, p. 193), ou seja, ao estudo do clima de um lugar, onde é produzida uma relação espacial específica entre a radiação solar incidente, a atmosfera e os atributos sociais e geográficos. Em seu artigo “Da necessidade de um caráter genético à classificação climática (algumas considerações metodológicas a propósito do estudo do Brasil Meridional)”, publicado na Revista Geográfica em 1962, defende a necessidade da adoção da abordagem dinâmica da meteorologia que introduz a análise do complexo atmosférico por meio das massas de ar e seus conflitos frontológicos e a discussão do encadeamento das diferentes escalas do clima, esclarecendo que “[...] não poderemos alcançar o clima local sem o prévio estudo da circulação atmosférica regional a qual, sob a influência dos fatores geográficos dentro da região, vai possibilitar a definição dos climas locais” (MONTEIRO, 1962, p. 30) e a conseqüente identificação do ritmo climático. Para o reconhecimento do ritmo ressalta a utilização de dados climáticos diários e das seqüências das cartas sinóticas do tempo numa análise associativa e qualitativa, permitindo também a análise quantitativa por meio do cálculo da freqüência da atuação das massas de ar e a obtenção de índices percentuais, rompendo com a rigidez abstrata dos valores médios comumente empregados nos estudos da meteorologia analítica. Assim, a análise climática deve atentar para a disponibilidade das séries de dados, podendo ser menor que os 30 anos de registros exigidos pela meteorologia analítica, mas que sejam de fontes confiáveis e permitam representar as variações anuais e mensais dos elementos climáticos, possibilitando a verificação de episódios mensais recorrentes em vários anos e a definição do seu regime. Ou seja, são identificados anos representativos do padrão habitual e dos extremos. A verificação do regime climático ou dos anos padrão conduz para a procura do ritmo temporal e de sua distribuição espacial que só é atingida na decomposição diária dos estados atmosféricos, para a qual Monteiro propôs a confecção do gráfico de análise rítmica, que consiste na representação simultânea dos elementos climáticos básicos e dos mecanismos da circulação secundária, ensejando a definição dos tipos de tempo. Na elaboração desse gráfico dois elementos são fundamentais: 1- a radiação solar que incide sobre a atmosfera e responde pelo estabelecimento e variações dos componentes climáticos verticais em função da latitude e 2- a circulação atmosférica regional que reflete as componentes horizontais do clima. Há uma ênfase na escala regional justificada na dinâmica da circulação atmosférica que sofre a influência dos fatores geográficos e expressam diferentes climas regionais, analisados qualitativamente. Por meio da análise rítmica tais climas são decompostos, revelando um refinamento escalar (os climas locais) que faculta a análise quantitativa

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(graus de aquecimento, de resfriamento, totais pluviométricos, etc.) estabelecida conforme os objetivos que o pesquisador pretende atingir. Dentre as várias aplicações de sua metodologia para a concretização de estudos com temáticas e objetivos variados, Monteiro se propôs a investigar o clima urbano (clima local, considerado um sistema singular, produto da co-participação da natureza e do homem), culminando na publicação, em 1976, de sua tese de livre docência intitulada “Teoria e Clima Urbano”, em que discute, dentre muitos conceitos, aqueles de sistema, organismo, organização e teorias advindas da Biologia e da Termodinâmica, concluindo com uma proposta metodológica para o estudo do Sistema Clima Urbano. No que tange aos aspectos teóricos que subsidiam Monteiro, está a Teoria Geral de Sistemas, desenvolvida por Berthalanffy, vista com poder explicativo para os vários campos do saber, desde a natureza até a sociedade, pois a análise científica é possibilitada tanto pelo método indutivo quanto pelo dedutivo. Segundo Monteiro (1973, p. 5) essa teoria se configura em um instrumento formal da lógica de análise do clima. Esse passa a ser considerado um todo, um verdadeiro sistema dinâmico, aberto, cujo caráter está além da simples adição de seus elementos e introduz “[...] novas propriedades intensivas, tais como tempo – tipos de tempo, cadeias de tipos de tempo – ritmo [...]”. Essa teoria originada na Biologia adentrou a Geografia por meio dos conceitos de organismo e de ecossistema, realçando os aspectos da organização, da estrutura e dinâmica funcional dos sistemas, que Monteiro aplicou ao entendimento das escalas do clima. Para Monteiro a organização climática está vinculada ao conceito de hierarquia, não como idéia de grandeza ou de distribuição espacial, mas sim a uma árvore viva, um multinivelado, estratificado e esgalhado padrão de organização, conforme escreveu Koestler (apud MONTEIRO, 1976). Essa proposição escalar do clima, pautado na idéia de árvore, é defendida por Monteiro pelo fato de ser considerada mais dinâmica, revela as partes e suas ligações (hólons) e, principalmente, admite a noção de crescimento e evolução do sistema. Monteiro utilizou, ainda, o termo hólon, estabelecido por Koestler (apud MONTEIRO, 1976, p. 112), para a análise climática. Conforme esse último autor, hólon designa “[...] formas intermediárias de organização que participam tanto das propriedades autônomas do todo quanto das propriedades dependentes das partes”. Ou seja, as noções de todo e de partes são superpostas e revelando-se estruturas intermediárias, os nós da árvore, os hólons, que contém as partes e estão contidos no todo. Numa transposição dessas idéias de Koestler para o estudo do clima urbano, Monteiro (1976, p. 115) escreveu: “Os elos de ligação e afinidades espaciais estariam para ser encontrados, portanto, no ritmo, no modo de variação e no quantum expresso pelos elementos discretos em que se pode reduzir o tempo ou condições atmosféricas”; ligações essas que devem ser investigadas no entrelaçamento dos planos verticais e horizontais em que o fenômeno climático ocorre. Monteiro procurou evidenciar a possibilidade de caracterização do clima dos lugares

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através de sua manifestação sobre as atividades humanas e sobre a organização espacial, indo de encontro com a idéia de clima preconizada por Leslie Curry (1952), considerada enquanto abstração que se realiza e se manifesta através das atividades econômicas estabelecidas pela sociedade. Para Monteiro, a consideração do conceito de clima como uma abstração teórica se configura em uma possibilidade de generalização estabelecida pela razão humana, permitindo a elaboração de classificações climáticas que podem resultar da aplicação de cálculos matemáticos, da consideração de parâmetros qualitativos ou da associação de ambos; salienta ainda, a importância das noções de sucessão habitual dos tipos de tempo e de movimento para a configuração climática dos lugares, justificando o caráter dinâmico do clima através do desvendamento do seu ritmo em conjunto com as possibilidades apresentadas pelos novos métodos advindos da Física moderna. Monteiro (1991 e 2001) contribui com a climatologia geográfica brasileira procurando esclarecer filosoficamente as bases da consideração da atmosfera como um fluido extremamente dinâmico que, em cada momento cronológico e num determinado espaço possui uma configuração correlativa de seus elementos, ou seja, discute a possibilidade de existência de uma pulsação essencial que desencadeia o ritmo dos tipos de tempo. Também incorpora em sua análise rítmica as noções de movimento e de equilíbrio como estado provável da atmosfera preconizadas pelos estudos da termodinâmica, interpretando a sucessão dos tipos de tempo como a possibilidade de permanência ou recorrência dos sistemas atmosféricos sobre os lugares e permitindo a verificação da ocorrência de uma provável ordenação. Monteiro anteviu o caráter relacional da análise geográfica do fato climático a partir do conceito de clima proposto por Sorre, destacando que o clima é o produto do encadeamento espacial do ritmo climático e quando sua análise se dá isolada de sua espacialidade não tem significado geográfico. Concordamos com a perspectiva acenada por Monteiro para o estudo geográfico do clima, a partir da qual é constatada a especificidade da climatologia geográfica que se dedica ao estudo do clima de um lugar, ou seja, quais as implicações espaciais do ritmo atmosférico; distinguindo-se da abordagem meteorológica do clima. Essa abordagem da climatologia subsidia a Geografia que, em nossa concepção, procura compreender como as sociedades se organizam em suas relações com o espaço, contribuindo com o desvendamento da lógica espacial da realidade enquanto produto da relação sociedade / natureza, pressupondo uma análise minuciosa dos variados fatores que entram nessa relação, sejam eles materiais ou não materiais. Nada na realidade localiza-se aleatoriamente, havendo uma razão para as coisas estarem onde elas estão e a Geografia tem o papel de discutir essa espacialidade, na qual o fator climático está inserido. Para uma análise geográfica do clima, entende-se que não é suficiente a indicação de onde e por que é mais quente, mais frio, mais úmido ou mais seco, mas faz-se necessário o estudo de quais as implicações do clima sobre a ordenação

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espacial da sociedade. Feitas essas considerações acerca do estudo geográfico do clima no Brasil, discutido a partir das proposições metodológicas de Monteiro para uma climatologia geográfica, parte-se para a investigação de como essa perspectiva foi incorporada pelas análises climáticas efetivadas pelos autores de teses e dissertações defendidas junto a alguns programas brasileiros de pós-graduação em Geografia, no período de 1944 a 2003. A climatologia geográfica brasileira analisada a partir de teses e dissertações defendidas junto a alguns programas de pós-graduação em geografia A análise das teses e dissertações defendidas nos programas brasileiros de pósgraduação em geografia é justificada pelo fato das universidades, no Brasil, congregarem a maior parte dos profissionais que contribuem para a disseminação e expansão do conhecimento acerca da climatologia geográfica no país e porque tais trabalhos apresentam pormenorizadamente as metodologias e as variadas formas de abordar o fenômeno climático, além da disponibilidade nas bibliotecas facilitar o acesso a esse acervo de dados. Na consulta dos acervos das respectivas bibliotecas, in loco ou por meio da rede mundial de computadores (WEB), foram identificados 150 trabalhos que tratam de temas relativos à climatologia geográfica, defendidos no período de 1944 a 2003 junto aos programas de pós-graduação em Geografia de seis universidades brasileiras. A análise abordou 103 títulos, compostos por 65% de dissertações e 35% de teses, subsidiada no estudo elaborado por Gamboa (1987). A grande maioria dos trabalhos analisados (68%) foi produzida no programa de pós-graduação em geografia física da Universidade de São Paulo (USP). Os trabalhos elaborados no programa de pós-graduação em Geografia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), das unidades de Presidente Prudente e de Rio Claro, compõem 22% do universo analisado. Os demais trabalhos analisados foram defendidos nos programas de pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina (4%); da Universidade Federal do Rio de Janeiro (3%); da Universidade Estadual de Maringá (2%) e da Universidade Federal do Paraná (1%). Na análise detalhada dessa produção bibliográfica foi verificado que os autores têm como uma de suas preocupações o esclarecimento dos aspectos topológicos, pois as teses e dissertações são iniciadas com a apresentação de mapas com as respectivas coordenadas geográficas que delimitam a área de abrangência da investigação climática. Após a localização da área de estudo são apresentadas as características geográficas que individualizam os espaços estudados, é destacada a constituição dos compartimentos geomorfológicos com suas variações hipsométricas, declividades, formas do relevo, sua composição geológica, pedológica, as características da drenagem, a disposição das

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formações vegetais naturais e a dinâmica atmosférica secundária é caracterizada a partir de revisão bibliográfica. Por meio dos dados dos censos do IBGE e de mapeamentos que utilizam fotografias aéreas e imagens de satélites são expostas as formas de ocupação, os processos de produção do uso do solo, as atividades econômicas desenvolvidas, a caracterização da evolução da população e a densidade demográfica das áreas pesquisadas. Posteriormente passa-se para o detalhamento do clima dos lugares eleitos para a investigação subsidiando-se na definição sorreana de clima, ou seja, “[...] a série de estados atmosféricos acima de um lugar em sua sucessão habitual” (SORRE apud MEGALE, 1984, p. 31 – 32). A consideração dos estados atmosféricos desencadeados sobre os diversos lugares justifica a caracterização topológica, pois essa representa os fatores geográficos que interferem na configuração dos climas regionais e locais, enquanto que as manifestações físicas das propriedades internas da atmosfera, isto é, seus elementos, são desdobrados em uma análise climática considerando a atmosfera como um sistema aberto. Na busca pelo entendimento da organização e funcionamento desse sistema, são estudadas as manifestações temporais do clima coordenadas com os mecanismos dinâmicos da circulação atmosférica que se expressam no espaço pelo comportamento dos seus elementos. Esses elementos representam a quantidade de energia que adentra o sistema intimamente relacionado com os fatores geográficos que determinam as variações locais, as transmissões, o armazenamento e o pulsar dessa energia, numa análise que incorpora o conceito de ritmo climático. As teses e dissertações analisadas, subsidiadas no conceito de clima de Sorre, têm o ritmo como a essência da análise geográfica do clima e sua compreensão, segundo Monteiro (apud AOUAD,1978, p. 2), pressupõe uma metodologia associativa entre os atributos qualitativos e quantitativos do referido fenômeno. O autor citado propõe que tal procedimento seja realizado através da análise rítmica, sintetizando que a definição do ritmo climático e a expressão quantitativa dos elementos se complementam, formando um importante binômio. E, ainda, salienta que a organização dos fatos climáticos não pode estar dissociada do seu aspecto causal e que a idéia de coerência interna é essencial à organização dos espaços climáticos. Essa coerência é dada pelo ritmo e se revela na solidariedade entre os atributos e no dinamismo do espaço-tempo definido num campopresente (segmento temporal) expresso em momentos que, embora extremamente mutantes, guardem uma lógica rítmica que se projeta sobre o espaço físico e estrutura a unidade de organização climática. A partir desses preceitos foi verificado que as dissertações e teses partem da interpretação do comportamento quantitativo dos elementos climáticos associados às explicações qualitativas dos dados das cartas sinóticas de superfície, procurando evidenciar a gênese, a deflagração e a trajetória dos sistemas atmosféricos que desencadeiam tipos de tempo sobre os lugares, incorporando os procedimentos estatísticos com o objetivo de

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estabelecer um status técnico-científico às suas proposições sobre os climas brasileiros. O processo de elaboração dessa ordenação metodológica permite a concepção do clima como uma abstração teórica que incorpora totalidades espaço – temporais indissociáveis, ou seja, seus elementos e fatores. Todavia, o pensar exige decomposições e os elementos climáticos são desmembrados pelas pesquisas analisadas. A chuva, a temperatura do ar e do solo, a umidade relativa do ar, a evaporação, a radiação solar, a insolação, a direção e a velocidade dos ventos e a circulação atmosférica são analisadas separadamente. No processo de análise das teses e dissertações foi percebido que elas foram efetivadas segundo recortes temáticos semelhantes e conforme uma metodologia que assegura sua independência temática, agrupadas conforme o Quadro que segue.

A classificação temática apresentada foi composta a partir das palavras-chave que foram identificadas no decorrer da leitura dos trabalhos. Contudo, ressalta-se que esse agrupamento comporta uma generalização e que poderia ter sido feita a partir de outros parâmetros classificatórios (escalas, temas de enfoque meteorológico ou geográfico), mas compreende-se que a síntese temática exposta congrega os principais temas discutidos no interior da climatologia geográfica brasileira. Quando confrontamos a presente classificação temática com a análise elaborada por Fialho e Azevedo (2006), que identificaram que a produção científica dos estudos climatológicos divulgados nos Simpósio Brasileiros de Climatologia geográfica no período de 1992 a 2004 se concentra nas pesquisas dos seguintes temas: campo térmico, qualidade do ar, recursos hídricos, secas, impacto pluvial, estudos climáticos regionais e locais, dinâmica da atmosfera, clima e agricultura, clima e ensino e outros (neve, vento, desertificação e saúde), verifica-se que tais temas convergem para temáticas semelhantes à classificação proposta a partir da análise das teses e dissertações. Diante do exposto e da abrangência temática exposta no Quadro 1, evidencia-se que as teses e dissertações trabalham, preferencialmente, a temática do clima urbano. Essa temática ganhou notoriedade após a publicação da tese de livre docência de Monteiro,

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em 1976 e que motivou o desenvolvimento de uma escola brasileira de climatologia urbana, conforme Mendonça (2003, p. 8), no decorrer dos anos da década de 1990. O espaço urbano abordado pode comportar portes variados (metrópoles, regiões metropolitanas, cidades grandes, médias ou pequenas) e são estudados conforme os três canais de percepção humana: canal I – Conforto Térmico, canal II – Qualidade do Ar e canal III – Impacto Meteórico, propostos por Monteiro (1976, p. 100). Geralmente, esses trabalhos apresentam o histórico de formação espacial e a expansão das áreas urbanas pesquisadas, mapeando os diferentes momentos de constituição do uso do solo urbano, a rugosidade urbana, a composição dos materiais das edificações, a densidade de construções e da população, dados sobre o tráfego de veículos e pessoas, dentre outras informações que caracterizam a dinâmica das ações humanas nesses espaços. Posteriormente, os dados climáticos são tratados estatisticamente visando o estabelecimento de Medidas de Tendência Central e Dispersão e dos cálculos de Regressão e Correlação Linear Simples, além da aplicação das técnicas cartográficas de isopletas, do painel temporo-espacial, de diagramas e cartogramas e do gráfico de análise rítmica para a identificação de ilhas de calor, de frescor, ilhas úmidas, secas, o efeito obstáculo das construções sobre a circulação dos ventos, inversões térmicas, a emissão e concentração de núcleos de condensação no interior das cidades, sempre procurando correlacionar o ritmo climático com as especificidades do uso do solo urbano. Também procuram analisar dados dos componentes químicos da atmosfera (dióxido de enxofre, dióxido de nitrogênio, ozônio, etc.), de material particulado, dos índices de acidez da chuva considerando seu potencial hidrogênico (pH), calculam suas médias diárias e mensais e as correlacionam com as informações meteorológicas e sinóticas para a explicação dos períodos de concentração extrema dos componentes atmosféricos poluentes. Ao realizar essas pesquisas é pretendido, ainda, a constatação dos malefícios e os incômodos provocados pela poluição do ar e da água da chuva, a identificação das fontes poluidoras, a ocorrência de doenças, o conforto ambiental e a satisfação dos habitantes em residir nas cidades por meio da aplicação de entrevistas, bem como a explicação sobre os fatores que desencadeiam a ocorrência de episódios climáticos extremos. As análises das informações climáticas sobre a atmosfera das cidades permitem, ainda, comparações com aquelas provindas das áreas rurais circunvizinhas consentindo na avaliação e verificação das tendências climáticas particulares das áreas urbanas, dando indícios da diminuição da disponibilidade de umidade relativa do ar, da correlação positiva entre o aumento populacional e a temperatura do ar, bem como a alta variabilidade anual da precipitação pluvial sobre as superfícies densamente edificadas. Desse modo, os pesquisadores investigam e definem os parâmetros que interferem no conforto da sociedade, buscando uma melhor convivência com as especificidades dos climas das cidades e estabelecendo recomendações para o seu planejamento e

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desenvolvimento. Alguns trabalhos que valorizam a coleta dos dados específicos para o estudo do clima urbano sobressaem pelo fato de discutirem o processo de formação das cidades e a constituição de espaços desiguais a partir da perspectiva histórico-dialética, evidenciando a apropriação desigual dos espaços pela sociedade. A temática da variabilidade pluvial é discutida por 28% das teses e dissertações, procurando explicar os aspectos geográficos de diferentes espaços brasileiros envolvidos na mesma. São utilizados dados meteorológicos coletados em estações para o cálculo dos totais anuais e das normais climatológicas das séries temporais. Procuram estudar o clima como a totalidade dos ritmos atmosféricos para uma determinada relação espaçotempo, identificado pelo dinamismo dos sistemas atmosféricos inter-relacionados aos fatores da superfície terrestre vislumbrando a definição da tipologia pluvial e sua interferência na produção e no rendimento dos cultivos agrícolas, incorporando a gênese dos episódios pluviais importantes para o monitoramento e desenvolvimento das safras. A realização desses estudos orienta-se na consideração do conceito de variabilidade definido por Sorre (1951 apud SAKAMOTO, 2001, p. 18) como sendo a amplitude dos desvios entre valores sucessivos de um elemento do clima, ou seja, uma medida quantitativa do ritmo que expressa o retorno mais ou menos regular dos mesmos estados, e do conceito adotado pela Organização Meteorológica Mundial (OMM), que estabelece a variabilidade climática como a maneira pela qual os parâmetros climáticos variam no interior de um determinado período de registro (apud SANT’ANNA NETO, 1995, p. 34 – 35). A investigação das flutuações pluviométricas interanuais é realizada a partir da aplicação do método dos anos padrão desenvolvido por Monteiro (1971), complementando a análise com a estatística descritiva citada anteriormente. Geralmente, os resultados desses cálculos estatísticos são espacializados por meio do emprego das técnicas cartográficas supracitadas. No exame detalhado dessas pesquisas foi verificado que, aos poucos, ocorre uma atualização dos recursos estatísticos e cartográficos mediante a utilização da informática e de novas técnicas estatísticas, tais como: percentual chuvoso, índice de Gibbs Martin, índice de sazonalidade de Markham e índice de Walsh e Lawler. (CHRISTOFOLETTI, 1992) Depois de investigadas as causas e a tipologia da variabilidade pluviométrica de regiões do território nacional, de estados, de municípios, de cidades, de bacias hidrográficas, dentre outros recortes escalares, procura-se entender como essa variabilidade influencia as atividades humanas (o consumo de água, o desempenho das safras agrícolas, do comércio, do consumo de energia elétrica, a extração de sal marinho, a vazão das bacias hidrográficas, etc). A maioria dos trabalhos que tratam dessa temática procura analisar as relações solo–planta–atmosfera, havendo um pequeno número de estudos que se dedicam à explicação sobre os processos históricos, econômicos e políticos envolvidos na inserção

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de determinados cultivos agrícolas em algumas regiões do país, considerando os aspectos da modernização da agricultura nacional e do modo de produção. O terceiro recorte temático investiga o papel da dinâmica climática na análise ambiental e o reconhecimento de possíveis modificações nos padrões climáticos em função da ocupação dos diferentes espaços pelas atividades humanas, subsidiando-se na concepção de que o clima, correlacionado com os demais componentes naturais, ajuda a definir a estrutura do espaço ambiente, bem como sua funcionalidade e organicidade. Esclarecem ainda que as variações do ritmo climático local decorrem da dinâmica atmosférica global e regional, detalhando a análise de alguns episódios geradores de impactos ambientais que interferem no desenvolvimento agrícola, na deflagração de movimentos de massa, no escoamento superficial, na geração de erosões. Também são buscadas explicações para a origem de eventos pluviais extremos que permitem a conferência das hipóteses de mudanças climáticas, dos processos do estabelecimento da desertificação em variadas áreas do território brasileiro, além de investigações sobre a correlação das condições climáticas nas escalas administrativas municipais com a incidência de algumas doenças. Os trabalhos que enfocam a temática ambiental também procuram correlacionar o ritmo climático com o mapeamento das diferentes unidades da paisagem, incorporando informações da média e alta atmosfera produzidas pela meteorologia através de avançados recursos técnicos e metodológicos. A anexação dessas informações enriquece as análises que buscam entender a organização espacial, pois trazem novas diretrizes para a elucidação do comprometimento da dinâmica atmosférica na composição dos diferentes espaços. Os trabalhos desenvolvidos sob o tema da modelagem e estatística em climatologia geográfica visam à confecção e proposição de modelos matemáticos e computacionais que auxiliem e agilizem os cálculos estatísticos aplicados à climatologia geográfica, indicando como os sistemas geográficos de informações podem ser úteis nessas análises, além de se dedicarem à elaboração de classificações climáticas. Destaca-se que 5% das teses e dissertações analisadas dedicam-se às discussões teóricas da climatologia geográfica e à verificação de mudanças e avanços metodológicos nos diferentes momentos históricos do processo de construção desse ramo do saber. São procedidas revisões bibliográficas que motivam comparações de trabalhos que abordam o clima urbano, as diferentes possibilidades para a elaboração das classificações climáticas, as concepções do conceito de clima e das escalas climáticas, as contribuições da cartografia e as diversas possibilidades do ensino desse conhecimento em seus diferentes níveis de aprendizagem. Considerações Finais A análise das principais características de ordenação metodológica das dissertações e teses que constituíram o universo analisado e do processo histórico de construção

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desse saber no Brasil permite verificar que o estudo geográfico do clima foi edificado a partir do método hipotético-dedutivo, que lhe proporcionou segurança e status de conhecimento técnico-científico passível de ser aplicado na resolução dos mais variados problemas enfrentados pela sociedade, além de possibilitar o planejamento de suas ações futuras no espaço urbano e agrícola, dentre outras temáticas abordadas pelas mesmas. O estudo dessa produção bibliográfica reflete o processo de fragmentação do conhecimento científico que atingiu seu objetivo de desvendar a realidade a partir de suas diversas nuances, nas quais o clima também tem seu destaque e é analisado de forma dissociada, desmembrado na caracterização (quantitativa e qualitativa) de seus fatores e elementos que, depois de entendidos seus mecanismos particulares é que se processa a síntese e, consequentemente, sua explicação. O universo analisado segue como pressuposto metodológico a associação do método estatístico com a análise da dinâmica da circulação atmosférica secundária, facultando o estabelecimento da gênese da dinâmica climática dos lugares estudados. Destaca-se que os trabalhos analisados têm a constante preocupação de apresentar a caracterização topológica, ou seja, a localização da área de estudo e as respectivas características geográficas (compartimentação geomorfológica, hipsometria, declividades, formas do relevo, composição geológica, pedológica, drenagem, vegetação, usos do solo, densidade de construções), relacionando-as com o ritmo climático diário, semanal, quinzenal, mensal, sazonal e anual dos recortes territoriais elencados ou, até mesmo, desenvolvendo coletas específicas de dados que expliquem tal correlação. Na elaboração das teses e dissertações, de forma geral, permanece a discussão sobre o ritmo climático, a ação antrópica (ação biológica do homem) e os impactos ambientais procurando esclarecer as relações de causa e efeito do clima na superfície terrestre e defendendo a necessidade de preservação das condições climáticas para a sobrevivência humana. A análise das ações humanas que produzem o sistema espacial a partir da idéia de ação antrópica promove um entendimento de que as desigualdades existentes na relação homem – meio e na organização espacial são naturais, derivadas das próprias condições naturais que se organizam em determinados lugares para o favorecimento da agricultura, da indústria, do turismo, dentre outras atividades econômicas e que, em outros locais, tais condições não propiciam o desenvolvimento dessas atividades, que devem ser destinados para outros fins. Diante do exposto, conclui-se que a grande maioria do universo analisado (80%) direciona suas análises, muito especificamente, para a dinâmica da atmosfera, não enfocando a perspectiva do homem enquanto produtor dos territórios, de conhecimentos e da cultura que dão sentido para a sua existência, além de considerar a apresentação minuciosa e seqüencial das condições geográficas das áreas estudadas e sua respectiva localização enquanto sinônimo de análise geográfica do clima. Um percentual de 20% dos trabalhos enquadrados nas temáticas de clima urbano,

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da variabilidade pluvial e da análise ambiental e da paisagem merece destaque, pois tais pesquisas procuraram esclarecer o desencadeamento rítmico do clima conjugado às condições sócio-econômicas, discutindo como tal ritmo interfere na produção de distintas e desiguais espacialidades. Diante de tais dados, verifica-se que grande parte das teses e dissertações analisadas edifica sua metodologia a partir do método monteriano de análise do ritmo climático, finalizando suas análises juntamente com a compreensão da variabilidade dos elementos atmosféricos ou da dinâmica atmosférica. O que não é um trabalho fácil, considerando a escassez de estações e de dados meteorológicos. Contudo, ressalta-se que apenas o percentual citado, de 20% dos trabalhos analisados, procura implementar a metodologia monteriana em sua íntegra, ou seja, são providenciadas análises do ritmo climático dos lugares numa associação com a espacialização da dinâmica das atividades socioeconômicas, tais como a produção de sal marinho, o consumo de água e de energia elétrica em áreas urbanas, o desempenho das safras agrícolas, as atividades comerciais, dentre outras. O trabalho intelectual desenvolvido pelo universo analisado demonstra uma carência de discussões sobre as questões da epistemologia da geografia, sobre suas categorias, conceitos, teorias e dos seus paradigmas, o que dificulta a proposição de outras formas de analisar o fenômeno climático, ou até mesmo, a compreensão do clima enquanto um dos elementos constituintes do desvendamento da lógica espacial; pois quando o clima é analisado isolado de sua espacialidade não tem significado geográfico. Assim, entende-se que o conceito de clima proposto por Sorre e a metodologia da análise rítmica de Monteiro ainda apresentam um caráter inovador que subsidia o estudo geográfico do clima, pois exaltam a espacialidade específica produzida pela incidência da radiação solar, pela atmosfera e pelos demais fatores geográficos, bem como aqueles de ordem sócio-econômica. Esse referencial conceitual não se caracteriza como insuficiente para as análises empreendidas pela climatologia geográfica brasileira, mas que, atualmente, as explicações para os novos arranjos territoriais requerem uma leitura mais atenta e detalhada dos pensadores da geografia que contribuíram e contribuem para o entendimento da relação entre a sociedade e a natureza como produtora das diferentes espacialidades. A partir dessa breve análise, espera-se ter contribuído para que o olhar e as ações dos geógrafos, interessados no estudo do clima, se voltem para a compreensão do fenômeno climático como um dos fatores da organização territorial da sociedade e para que se possa discutir e investigar o papel desempenhado pelo referido fenômeno no entendimento dos novos arranjos espaciais, produzidos por uma sociedade extremamente complexa e desigual, além de colaborar com a discussão de que o homem é o produtor dessa sociedade, das diferentes concepções de mundo, de ciência, de territórios, de natureza e de clima. Referências AOUAD, Marilena dos Santos Tentativa de classificação climática aplicada para o Estado

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da Bahia. 1978. 64 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo. CURRY, Leslie Climate and economic life: new approach with examples from the United States. The Geographical Review. New York, v. 3, n. 42, 1952. p. 367 – 383. CHRISTOFOLETTI, Anderson Luis Hebling Estudo sobre a sazonalidade da precipitação na bacia do Piracicaba. 1992. 352 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo. DE MARTONNE, Emmanuel Panorama da geografia. Lisboa: Edições Cosmos, 1953. v. 1 ELY, Deise Fabiana Teoria e método da climatologia geográfica brasileira: uma abordagem sobre seus discursos e práticas. 2006. 208 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Ciência e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista. Presidente Prudente. FIALHO, Edson Soares; AZEVEDO, Tarik Rezende de, Análise da produção científica dos estudos climatológicos, a partir da criação do Simpósio Brasileiro de Climatologia Geográfica (1992 – 2004). In: VII SIMPÓSIO BRASILEIRO DE CLIMATOLOGIA GEOGRÁFICA. 2006, Rondonópolis. Anais... Rondonópolis, 2006. CD-ROM. GAMBOA, Silvio Ancízar Sánchez Epistemologia da pesquisa em educação: estruturas lógicas e tendências metodológicas. 1987. 229 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. JESUS, Emanuel Fernando Reis de Espaço, tempo e escala em climatologia. 1995. 204 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. MEGALE, Januário Francisco (Org). Max Sorre. São Paulo: Ática, 1984. (Coleção grandes Cientistas Sociais, 46) MENDONÇA, Francisco de Assis; MONTEIRO, Carlos Augusto de Figueiredo (Org). Clima urbano. São Paulo: Contexto, 2003. MONTEIRO, Carlos Augusto de Figueiredo Da necessidade de um caráter genético à classificação climática (algumas considerações metodológicas a propósito do estudo do Brasil Meridional). Revista Geográfica. Rio de Janeiro, v. 31, n. 57, Tomo 31, 1962. p. 19 - 44 ______. Análise rítmica em climatologia: problemas da atualidade em São Paulo e achegas para um programa de trabalho. Climatologia. São Paulo, n. 1, 1971. p. 1 - 21 ______. A Climatologia do Brasil ante a renovação atual da geografia: um depoimento. Métodos em Questão. São Paulo, n. 6, 1973. p. 1 - 14 ______.Teoria e clima urbano. São Paulo, 1976. (Série teses e monografias, 25) ______. A geografia no Brasil (1934 – 1977): avaliação e tendências. São Paulo, 1980. (Série Teses e Monografias, 37) ______. Clima e excepcionalismo: conjecturas sobre o desempenho da atmosfera como fenômeno geográfico. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1991. ______. O estudo geográfico do clima. Cadernos Geográficos. Florianópolis: Ed. da UFSC, n. 1, 1999. ______. De tempos e ritmos: entre o cronológico e o meteorológico para a compreensão geográfica dos climas. Geografia. Rio Claro, v. 26, n. 3, 2001. p. 131 – 153 MOREIRA, Ruy Ser-tões: o universal no regionalismo de Graciliano Ramos, Mário de Andrade e Guimarães Rosa (um ensaio sobre a geograficidade do espaço brasileiro). Ciência Geográfica. Bauru : 10, v. 10, n. 3, set / dez, 2004. p. 186 – 194 ______. Para onde vai o pensamento geográfico? Por uma epistemologia crítica. São Paulo: Contexto, 2006. PEREIRA, José Veríssimo da Costa A geografia no Brasil. In: AZEVEDO, Fernando de As ciências no Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1980, p. 315 – 412, v. 1 SAKAMOTO, Luiza Luciana Salvi A chuva na bacia do alto Paraguai: contribuição ao estudo de aspectos das flutuações interanuais durante o século XX. 2001. 153 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo. SANT’ANNA NETO, João Lima As chuvas no estado de São Paulo. 1995. 201 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo. ______. História da climatologia no Brasil: gênese e paradigmas do clima como fenômeno geográfico. 2001. 169 f. Tese (Livre Docência) – Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente.

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Recebido para publicação dia 30 Novembro de 2007 Aceito para publicação dia 14 de Fevereiro 2008

POR UMA GEOGRAFIA DO PASSADO DISTANTE - MARCAS PRETÉITAS NA PAISAGEM COMO MEMÓRIA SOCIAL DAS SOCIEDADES AUTÓCTONES

BY A GEOGRAPHY OF THE PAST DISTANT - PRETERITS’S MARKS IN THE LANDSCAPE AS AUTOCHTHONOUS SOCIETIES’S SPACE MEMORY

PARA UNA GEOGRAFÍA DEL PASADO DISTANTE - MARCAS DEL PASADO EN EL PAISAJE COMO MEMORIA ESPACIAL DE LAS SOCIEDADES AUTOCTONOS

SÉRGIO ALMEIDA LOIOLA Universidade Federal de Goiás UFG E-mail: [email protected]

* Resultado de pesquisa. Programa de Pesquisa e Pós-graduação em Geografia do Instituto de Estudos Sócioambientais, IESA, UFG. Orientação: Prof. Dr. Alecsandro José Prudêncio Ratts. Bolsa da CAPES.

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Resumo: A geografia brasileira tem desconsiderado a dinâmica territorial anterior ao século XVI. Por quê? Durante a investigação desse passado duas constatações se apresentaram: há limitações nas abordagens atuais e invisibilidades no discurso acadêmico, reproduzidas por ideários modernos e seus corolários na ciência. Do esforço de superar essas limitações resultou uma proposta de abordagem do passado anterior ao século XVI, argumentos iniciais a uma geografia do passado distante, que busca nas informações arqueológicas e paleoambientais suas fontes, sob o viés interpretativo da escola arqueológica pós-processual, etnogeografia e história ambiental. Parte da trilogia física, biológica e social da paisagem para investigar tanto a dinâmica ambiental quanto social, entendendo as marcas e a cultura material na paisagem como memória sócioespacial. Na tentativa de realizar análises sócioambientais e aproximar diferentes disciplinas, incorpora princípios de complexidade na estruturação de um método complexo que seja capaz de lidar com sistemas de objetos e ações sócioambientais no espaço-tempo. Palavras-chave: história ambiental, etnogeografia, método, complexidade, arqueologia social. Abstract: Brazilian geography has been disregarding the territorial dynamics before 16th century. Why? During investigation of the past we verified two problems. There are limitations in the current approaches and invisibilities in the academic language, reproduced by modern ideases and their corollaries in the science. Of the effort of overcoming these limitations resulted an proposal to approach the past before 16th century, initial arguments to a geography of the past distant, that have in the archaeological information and paleoenvironmental their sources, under interpretation of post-processual archaeological school, ethnogeography and environmental history. With support in the physical, biological and social trilogy of the landscape it investigates the environmental dynamics and social, understanding marks and material culture in the landscape as a space memory. To accomplish social and environmental analyses and to integrate different disciplines this approach incorporates complexity principles in the construction of a complex method, able to dialogue with systems of objects and actions social and with the environment, in the space-time. Key-words: environmental history, ethnogeography, method, complexity, social archaeology. Resumen: La geografía brasileña tiene desconsiderado la dinámica territorial anterior al siglo XVI. ¿Por qué? En las investigaciones de este pasado, dos aspectos surgieran: limitaciones en los enfoques actuales y invisibilidades en el discurso académico, reproducido por idearios modernos y sus corolarios en la ciencia. Del esfuerzo de superar estas limitaciones resultó una propuesta de enfocar del pasado anterior al siglo XVI, discusiones iniciales a una geografía del pasado distante, que tiene en la información arqueológica y paleoambiental sus fuentes, con interpretación de la escuela arqueológica pos-processual, del etnogeografia y de la historia ambiental. Con soporte en la trilogía física, biológica y social del paisaje investiga tanto la dinámica social cuanto ambiental, al presuponer las marcas y cultura material en el paisaje como memoria sócioespacial. En la tentativa de hacer análisis socioambiental y aproximar diferentes disciplinas, incorpora principios de la complejidad en el construcción de un método complejo, capaz de ocuparse de los sistemas de objetos y de las acciones socioambientales en el espacio-tiempo. Palabra-llave: historia ambiental, etnogeografia, método, complejidad, arqueología social.

Presidente Prudente

Ano 23, v. 2, n. 29

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Introdução Embora a geografia possua meios para investigar a diversidade sociocultural e o ambiente atual e pretérito, no Brasil os geógrafos relutam em pesquisar a formação sócio-espacial anterior ao século XVI. Por quê? Durante a investigação desse passado três constatações de difícil superação se apresentaram: escassez de trabalhos dedicados ao passado distante; limitações das abordagens e invisibilidades no discurso acadêmico. Apesar desse esquecimento, a arqueologia tem demonstrado que a produção do espaço de vivência é superior a onze mil anos AP1 na terra brasilis (Barbosa, 2002; Loiola, 2004).2 As pesquisas sugerem a existência de mais de mil sociedades antes do século XVI, cerca de cinco milhões de habitantes, centenas de línguas, tanto no centro quanto no litoral, cuja complexidade contraria os relatos etnográficos do século XIX (Prous, 2006; Guidon, 2006; Wüst, 1990, 1983; Funari, 2002; Gonzalez, 1996) Essas informações, a existência atual de centenas de etnias e os anseios desses povos remetem à questão central nos estudos do passado distante: o que havia antes de 1500 na terra brasilis? Na tentativa de superar limitações a esse tema, foi iniciada a construção de uma abordagem do passado anterior ao século XVI, denominada aqui de geografia do passado distante, resultado da aproximação entre arqueologia, geografia e história ambiental, sob uma perspectiva teórico-metodológica complexa.3 Mais que apresentar argumentos sob o ponto de vista das técnicas e da estruturação do espaço, busca-se ampliar os significados em torno das civilizações autóctones e o ambiente, bem como contribuição destes à formação sócioespacial brasileira, oferecendo marcos históricos e teóricos para aprofundamentos posteriores. Invisibilidade Sociocultural no Discurso Moderno e os Outros “Os outros somos nós mesmos.” AUTOR DESCONHECIDO

Na atualidade o padrão científico impõe três limitações às pesquisas orientadas ao passado: invisibilidade no discurso, determinismo histórico evolutivo e o esquecimento das sociedades milenares. Esse padrão científico e o sistema produtivo hegemônico se sustentam numa doutrina profunda e longeva, originado desde o resgate de valores clássicos na Europa renascentista: o pensamento moderno (Hissa, 2002). Se os sistemas produtivos e científicos se fundam na ideologia moderna, a superação de abordagens na ciência devem, antes, verificar as bases de sustentação desse paradigma (Unger, 1978). Entretanto, um paradigma extrapola as noções de Kuhn (2001). As 1

AP: Antes do Presente. O presente considerado é o ano de 1950. Terra brasilis: Termo derivado do mito europeu do Paraíso Terrestre associado a tradições Celtas que, segundo Souza (1999), englobava as ilhas Brasil. Conjunto de ilhas nos Açores, no Oceano Atlântico, cujo nome se transformou várias vezes: Brasill, Brazil, Bracil, Braxil, etc., registrado nas cartas de navegação de Pizigano desde 1367. Terra brasilis é usado aqui para momentos anteriores ao século XVI. 3 Referente aos princípios para um paradigma da complexidade de Edgard Morin. 2

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realizações científicas universalmente aceitas, capazes de prover problemas e soluções modelares durante um período, envolvem, além do nível lógico, o semântico e o ideológico (Morin, 1991). Desta forma, almeja-se aqui evidenciar as limitações desse paradigma, já que sua transcendência requer a crítica total ao ideário (Unger, 1978). Apoiado na tríade: progresso, pátria e a objetividade de uma razão instrumental, o pensamento moderno permeia a vida cotidiana. No entanto, o esgotamento de seus valores o põe em crise. Há uma descrença na promessa de progresso, pois a tentativa de alcançá-lo aprisionou a sociedade (Maldonado, 2001; Pelbart, 2000), e tem gerado desequilíbrios sócioambientais (Capra, 2001; Gonçalves, 2002; Monteiro, 2003; Lorenz, 1986). Justamente o oposto dos corolários de igualdade, fraternidade e liberdade. As sociedades tradicionais foram impedidas de participar das superestruturas sóciopoliticas, e suas culturas desqualificadas ao desenvolvimento moderno (Little, 2002; Gonçalves, 2002). A razão se colocou aos desígnios mercadológicos e estatais em detrimento do bem estar social. Simultaneamente, o fragmentário método positivo-cartesiano camufla a teia física, biológica e social do real, ao separar e isolar suas partes, e invisibilizam a diversidade sócioambiental (Morin e Moigne, 2000). Essa invisibilização ocorreu análoga ao que Said (1990) denominou de orientalismo: um conjunto de idéias construídas por europeus, ora coagindo, ora distorcendo imagens acerca dos povos árabes, operando no plano literário, do conhecimento e no político a fim de dominá-los. De modo análogo a invisibilidade das sociedades autóctones resultou da subestimação cultural, sobretudo durante a expansão mercantil dos séculos XV e XVI, na busca por rotas e ampliação territorial. Nesse período, o eurocentrismo não concebia cultura e civilização fora da “herança” greco-latina renascentista (Lambert, 2001). Sob pretensões econômicas e religiosas inferiorizaram sociedades fora do seu contexto. Por vezes desconsideraram outros povos como derivações do gênero humano, a fim de legitimar a exploração, sem ferir a moral cristã: “Sabe-se que, em 1556, quando já se difundia pela Europa cristã a leyenda negra da colonização ibérica, decreta-se na Espanha a proibição oficial do uso das palavras conquistas e conquistadores, que são substituídas por descobrimentos e pobladores, isto é, colonos.” (Bosi, 2002, p.12). Termos cujo uso corrente distorce a compreensão do que existia no século XVI: um continente povoado por civilizações. Sem saberem suas designações, denominaram de América.4 Assim, reduziram a representação dos autóctones a selvagens, indígenas, bichos, irracionais, atrasada, pobre, inferior, primitiva, rude, bárbara e preguiçosa (Apolinário, 2006; Ratts, 2003, 1996; Benavides, Guidon, 2005; 2001; Lambert, 2001; Moraes, 2000; Wüst, 1999; Ribeiro, 1995), subestimando civilizações nos continentes americanos, africano, asiático, Oceania e na própria Europa (Lambert, 2001). No processo de colonização, o “Novo Mundo”, que de novo pouco havia, foi inserido no circuito de acumulação capitalista, fornecendo matérias-primas, mercados e a mão-de-obra por meio da reinvenção de formas 4

Denominação dado a este continente em homenagem ao navegador italiano Américo Vespúcio.

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de trabalho compulsórias violentas (Bosi, 2002). Contudo, mais que força de trabalho, as sociedades locais eram dotadas de elevado grau de conhecimento, cultura e organização social, e resistiram. Supondo no início um encontro de culturas, como a visão do paraíso da carta de Caminha, este logo passaria ao confronto, com o estabelecimento de uma fronteira entre civilizações. Caminha elogiou às sociedades encontradas: “Eles porem andam muito bem curados e muito limpos e naquilo me parece ainda mais que são como aves ou animais monteses que lhes faz o ar melhor pena e melhor cabelo que as mansas, porque os corpos seus são tão limpos e tão gordos e tão formosos que não poderia ser melhor [...]”. E prenunciou o que viria: “[...] mas o melhor fruto que nela se pode fazer me parece que é salvar esta gente, e esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza nela deve lançar.” 5 O salvacionismo e a expansão econômica moderna não tardariam a invadir o território, desestruturando as sociedades ainda no século XVI (Wüst, 1999). Os germes trazidos por europeus e guerras internas contribuíram na desestruturação (Diamond, 2001), mas não reduziram a importância das civilizações pré-existentes, cujo esquecimento reflete a tentativa de apagar a culpa dos colonizadores, e a lembrança que a nossa sociedade se fez com o sacrifício delas (Guidon, 2005). Dos 25 milhões de habitantes estimados na região do atual México, 15 milhões foram mortos entre 1492 e 1542, reduzidos a um milhão em 1605 (Las Casas, 1552, apud Bosi, 2002). No século XVI Montaigne testemunhou: Quem jamais pôs a tal preção o serviço da mercancia e do tráfico? Tantas cidades arrasadas, tantas nações exterminadas, tantos milhões de homens passados a fio de espada, e a mais rica e bela parte do mundo conturbada pelo negócio das pérolas e da pimenta: mecânicas vitórias. Jamais a ambição, jamais as inimizades públicas empurraram os homens uns contra os outros a tão horríveis hostilidades e calamidades tão miseráveis. (Michel de Montaigne, 1588, apud Bosi 2002, p. 22)

Na terra brasilis e entorno, no início do século XVI existiam cerca de cinco milhões de habitantes, mais de 1400 grupos étnicos (Nimuendaju, 1944), e 1200 línguas (Rodrigues, 1997). Ciente dessa ocupação, a Coroa portuguesa foi hábil na apropriação. Já em 1549 o Regimento Tomé de Souza de D. João III regulava a criação de espaços ocidentalizados de servidão: aldeamentos (Moraes e Rocha, 2001). Essas intencionalidades se acirrariam no século XVIII com as premissas ilustradas de progresso, fraternidade, igualdade e liberdade, as quais fizeram o salvacionismo ceder a primazia ao ideal de civilização, tutorado pelo Estado (Perrone-Moisés, 1992). Guiadas por esses corolários e a febre do ouro, as frentes se expandiram ao sertão, em busca de metais, pessoas para escravizar e usurpar o território (Apolinário, 2006). 5

Carta de Pero Vaz Caminha, enviada ao rei português em 1500. In: PAPAVERO, 2002, p.73, p.79.

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Embora a Coroa tivesse afirmado numa provisão (lei) de 1726 que a liberdade dos povos era um direito natural, ela não seria cumprida. O desejo de expropriar e eugenizar se evidenciaram nas leis pombalinas indigenistas de integração. A lei do Diretório de 1758 reconhecia os autóctones como vassalos de El Rei, mas os declarou em estado de menoridade civilizacional, ordenando cercos de guerra e paz na tentativa de confiná-los nos aldeamentos (Apolinário, 2006) Tal qual o litoral, no interior predominavam sociedades agricultoras-ceramistas fixas (Wüst, 1990), que atuaram com habilidades defensivas, ora aliadas aos vizinhos em guerras contra os europeus, ora em acordos de paz com estes. Quando expropriados, utilizaram táticas bélicas flexíveis. “A percepção de uma política e de uma consciência histórica em que os indígenas são sujeitos e não apenas vítimas, só é nova eventualmente para nós. Para os indígenas ela parece ser costumeira.” (Cunha, 1992, p. 18) A inexistência de um poder central não impediu o estabelecimento de alianças e acordos políticos horizontalizados (Prous, 2006). Análises evolucionistas falham no entendimento dessa estruturas espaciais de poder por insistirem na comparação com a hierarquia estatal, comumente encontrada em sociedades ocidentais. Da Fronteira Cultural à Demonização do Ambiente O estranhamento não se deu somente no plano cultural. Referenciadas em paisagens e climas temperados, as descrições européias do ambiente tropical oscilaram entre paraíso e inferno (Teixeira e Papavero, 2002; Prestes, 2002). O paraíso descrito por Caminha foi convertido a “inferno dos negros, purgatório dos brancos e paraíso dos mulatos e das mulatas” na visão do Jesuíta André João Antonil, em 1711 (Souza, 1999, p. 79). Em parte, a idéia de “inferno verde” decorreu do etnocentrismo europeu em relação aos diferentes meios de vida nos ambientes tropicais. Por muito tempo os cientistas guiaram-se pelo senso comum, considerando as economias indígenas como pobres ou atrasadas, em vez de considerá-las apenas diferentes da sua economia capitalista e urbana. (Funari e Noelli, 2002, p.31)

É provável que esse paradoxo tenha se sustentado na afirmativa aristotélica de inviabilidade da vida nos trópicos. A evidência empírica oferecida pela diversidade biológica nos trópicos não teria sido fortalecida por um corpo teórico que apagasse de a noção aristotélica (Prestes, 2000), pois predominava a idéia de inadequabilidade tropical ao ser humano (Almeida, 2003; Doles e Nunes, 1992). O que pode ter induzido os relatórios de naturalistas no século XIX. Saint-Hilaire considerou as sociedades autóctones selvagens e a vegetação, embora tida como exuberante, foi dita inútil:

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Se alguns exemplares dos meus relatos resistirem ao tempo e ao esquecimento, as gerações futuras talvez encontrem neles informações de grande interesse sobre essas vastas províncias, provavelmente transformadas, então, em verdadeiros impérios. E ficarão surpreendidas ao verificarem que, nos locais onde se erguerão então cidades prósperas e populosas, havia outrora apenas um ou dois casebres que pouco diferentes das choças dos selvagens; [...]; que, em lugar das extensas plantações de milho, de mandioca, de cana-de-açúcar, e de arvores frutíferas, o que havia eram terras cobertas por uma vegetação exuberante, mas inútil. 6 (SaintHilaire, 1975, p. 14)

Nessa linha, a teoria do degeneracionismo de Von Martius (1845), e pensadores europeus, considerava o trópico desfavorável à humanidade. O clima quente e úmido das florestas induziria ao desordenamento sexual, criação de etnias e línguas, degeneração cultural e moral, levando à extinção. O ser humano foi reduzido a um subproduto ambiental: “Também podemos observar que, se as teorias explicativas encontram-se sempre imbricadas na sociedade que as origina, está claro que o determinismo ambiental inserese em certa visão de mundo colonialista.” (Funari e Noelli, 2002, p.52) Longe de serem boas ou más, as sociedades autóctones interferiram nas florestas com o manejo ambiental, desmatando e queimando para plantar, domesticaram espécies, caçavam, pescavam, guerreavam para conquistar, defender territórios, capturar mulheres, crianças, ou inimigos para serem incorporados (Prous, 2006). Essa é a sociedade real desse passado, resultante do convívio com seu ambiente há milênios. Fronteira entre Civilizações, uma Fronteira de Fronteiras Se a fronteira designa um ambiente onde sujeitos, ideários, culturas, imagens e interesses se digladiam por territorialidades (Martins, 1997), a invasão colonial gerou uma fronteira entre civilizações; ainda não estancada, composta inicialmente pelas civilizações ocidental e autóctone, posteriormente a africana (Loiola e Ratts, 2006). Do seu desdobramento derivaram as fronteiras da mineração, agro-pastoril e demográfica, configurando-se numa fronteira de fronteiras.7 Produto da apropriação mental de base empírica, essas fronteiras não só tiveram forma visível, como resultaram tanto da intencionalidade de seus atores (Loiola e Ratts, 2006), quanto das representações disciplinares por aqueles que a investigam (Hissa, 2002); no plano das idéias, crenças, saberes, culturas, método de pesquisa e do desejo de negação do outro, de modo que os conflitos, dilemas e contradições da fronteira sócioespacial são corolários de fronteiras imaginárias, de grande fluidez e abstração. 6 7

Grifo nosso. Sugerida por Luiz Sérgio Duarte da Silva em palestra no auditório do FCHF, UFG, 30/6/2005.

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Desta forma, ao adentrar o continente, os europeus já continham os pressupostos do confronto. Sob olhar cristão medieval, o ambiente e a cultura dos outros não foram considerados dignos, abrindo caminho à imposição da fé cristã, saque, escravização, expropriação e tentativas de re-ocupação, sob signos modernos. Tem sido tradição da geografia lidar com a fronteira sócioespacial. Como é o caso da contribuição de Frederick J. Turner acerca da dinâmica da fronteira sobre oeste dos EUA no século XIX. Porém, a geografia brasileira carece de teorias de e das fronteiras adaptadas ao nosso contexto, que incorporem princípios da complexidade de Morin (2001), dialoguem com outras disciplinas e contemple a diversidade etnocultural, tratando os contextos social, ambiental, histórico e econômico de forma integrada. Reprodução da Invisibilidade Sóciocultural no Discurso Acadêmico Tributárias da consolidação dos ideários modernos e da mobilidade de suas fronteiras (Hissa, 2002), algumas representações invisibilizam as sociedades autóctones no meio acadêmico. Contudo, tem sido crescente a crítica. Benavides (2001) alerta para o discurso homogeneizador das diferenças da mestiçagem8 , Lambert (2001, p.164), Guidon (2005) e Wüst (1999) apontam a conotação pejorativa do termo índio, Ladouceur (1992) e Little (2002) criticam o ideal de nação única. É inegável a miscigenação ocorrida no Brasil. Porém, ao contrário do que previam Freyre (1997) e Ribeiro (1995), difusores da mestiçagem, esta não homogeneizou as diferenças etnoculturais (Bosi, 2002; Ladouceur, 1992, 2003; Ratts, 2003, 1996). Existem 227 sociedades autóctones, 340 mil habitantes em aldeias, cerca de 400 mil em cidades, falando mais de 200 línguas (FUNAI, 2002; ISA, 2004; IBGE, 2000; Figura 1).9 Além de dezenas de grupos de origem africana, asiática e européia. A Figura 1 sugere que a invisibilidade étnica muitas vezes é camuflada na metodologia. Quando a FUNAI procura por etnias nas aldeias, a Região Sudeste apresenta demografia pouco expressiva e as Regiões Nordeste, Sul, Centro Oeste e a Região Norte assistem redução de 50% na população. Mas se indagada a auto-declaração no Censo geral, caso do IBGE (2000), a representatividade absoluta autóctone cresce distribuída em todo o território. Esses grupos remanescentes têm mantido sua cultura e modos de vida (Little, 2002). Não se identificam com a etnia brasileira, nem aceitam a anulação de sua diversidade. Mas desejam relativa autonomia territorial sem deixar de pertencer ao território brasileiro. Anseiam por reconhecimento de suas territorialidades, historicidades e cultura: “Ninguém respeita aquilo que não conhece. Precisamos mostrar quem somos, a força, a beleza, a riqueza da nossa cultura. Só assim vão entender e admirar o que temos” (Wabua Xavante, 2004). Não oferecem, portanto, ameaça ao Estado nacional. 8

Raça cósmica superior, proposto inicialmente por Vasconcelos no século XIX, México, constituída pela homogeneização das matrizes autóctones americana, africanas e européias (Benavides, 2001). 9 ISA: Instituto de Estudos Sócioambientais.

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Elaboração: Loiola, 2007. Fontes: Censo demográfico IBGE, 2000; FUNAI, 2007.

A Figura 1 sugere que a invisibilidade étnica muitas vezes é camuflada na metodologia. Quando a FUNAI procura por etnias nas aldeias, a Região Sudeste apresenta demografia pouco expressiva e as Regiões Nordeste, Sul, Centro Oeste e a Região Norte assistem redução de 50% na população. Mas se indagada a auto-declaração no Censo geral, caso do IBGE (2000), a representatividade absoluta autóctone cresce distribuída em todo o território.

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Esses grupos remanescentes têm mantido sua cultura e modos de vida (Little, 2002). Não se identificam com a etnia brasileira, nem aceitam a anulação de sua diversidade. Mas desejam relativa autonomia territorial sem deixar de pertencer ao território brasileiro. Anseiam por reconhecimento de suas territorialidades, historicidades e cultura: “Ninguém respeita aquilo que não conhece. Precisamos mostrar quem somos, a força, a beleza, a riqueza da nossa cultura. Só assim vão entender e admirar o que temos” (Wabua Xavante, 2004). Não oferecem, portanto, ameaça ao Estado nacional. Esquecimento da Diversidade Histórico-cultural na Geografia Diante da reprodução dos discursos invisibilizadores, à geografia brasileira cabe indagar se a abordagem centrada em processos econômicos das fronteiras não a estaria limitando ao uso instrumental? De fato, no Brasil, os geógrafos têm se preocupado mais com os aspectos econômicos (Martins, 1997; Moreira, 2000; Ladouceur, 1992; Gonçalves, 2002), por dois motivos: um político-ideológico e outro por deficiências teóricas (Chaveiro, Loiola e Oliveira, 2005). Vejamos a duplicidade desse problema. De um lado, no plano político-ideológico e a idéia de territórios vazios estiveram relacionados à institucionalização da geografia no final do século XIX e início do XX (Machado, 1995). Desde então, essa ciência esteve empenhada num projeto estatal de integração territorial, muito mais que compreendê-lo. Esse projeto fundamentava-se no ideal positivo de August Comte, de nação homogênea e centralidade do poder, o qual influenciou Vargas e Kubitschek na “marcha para o oeste” (Bosi, 2002). Quanto à representação de espaços vazios, no passado, e em certa medida hoje, a produção acadêmica se concentrou no litoral (Vidal e Souza, 1997; Leonídio, 2001). De lá, sem conhecer a diversidade do território reproduziram-se imagens europeizadas de sertão “vazio” e diversidade ecológica. Contribuindo para que as políticas freqüentemente induzissem conflitos e/ou degradação ambiental, por desconhecimento dos sujeitos, suas historicidades, aspirações e o ambiente da ação. De outro lado, está a carência teórica, resultante em parte, de interpretações equivocadas das ciências sociais da teoria da evolução, ao acreditar que padrões pudessem ser preditos (Morin e Moigne, 2000; Gonçalves, 2002; Lorenz, 1986; Capra, 2001). Assim, por teorias derivadas, o desenvolvimento é pensado em etapas obrigatórias e universais, referenciadas nas histórias dos países do norte, de climas temperados, outros ambientes, culturas e interesses (Souza, 1997). Muitas dessas concepções derivam da teoria do degeneracionismo de Von Martius descrita. Em 1845 Martius publicou sua teoria no ensaio “Como se deve escrever a História do Brasil” e, com ele venceu um concurso do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Tal fato evidenciou a influência sobre os intelectuais, cujo alcance perdurou até a década de 1970. Entre os seguidores estiveram Darci Ribeiro, e outros, sobretudo em instituições, como a FUNAI (Funari e Noelli, 2002).

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A obra intitulada Handbook of South American Indians (1946-50), organizada por Julian Steward reproduziu essas idéias deterministas. Na arqueologia Betty Megers seguiu Stewart. Em América Pré-histórica (1978) Megers atribuiu a diferença de desenvolvimento entre os Estados Unidos e o Brasil ao ambiente. Alimentam esses equívocos alguns relatos deixados por naturalistas, que por vezes geraram observações ora simplificadoras, ora deformadoras (Doles e Nunes, 1992, p. 83). Entre eles cita-se Silva e Souza (1849) [1849], Spix e Martius (1816 a 1819)[1981], Luis D’Alincourt (1818)[1975], Cunha Mattos (1824)[1874], Pohl (1818-1820) [1976], Saint-Hilaire (1819)[1975], Burchell (1827-1828)[Ferrez, 1981], Gardner (1839-1840)[1975] e Castelnau (1843)[2000]. Contudo, no Brasil central, As pesquisas arqueológicas realizadas nos últimos vinte anos em Goiás e no Mato Grosso modificaram consideravelmente esta visão tradicional que foi orientada por um forte viés evolucionista e que era tão conveniente para justificar o extermínio destas populações e a ocupação de suas terras. (Wüst, 1993, p. 100)

Influenciada por esses ideários, a geografia brasileira retratou mais as redes do que o conteúdo: os sujeitos e o ambiente (Ladouceur, 1992; Freitas, 2003; Souza, 1997; Moreira, 2000; Martins, 1997; Gonçalves, 2002), e considerou a produção do espaço somente a partir do século XVI (Loiola e Ratts, 2005). O esquecimento desse passado no ensino e pesquisa minimizou as contribuições dos autóctones na formação territorial, perpetuando os mitos de selvagens e nômades sobre seus antepassados. Na atualidade o determinismo ambiental tem sido contrariado pelos vestígios arqueológicos e diversas áreas atentas à justificativa da exploração da América Latina, travestida de destino ecológico (Funari e Noelli, 2002). Além do esquema monolítico barbárie ou civilização, análogo à representação céu-inferno, ocorreram múltiplas possibilidades, entre elas a formação sócio-espacial igualitária da terra brasilis. 10 É preciso construir meios para compreender diferentes temporalidades do espaço. Da Invisibilidade Sóciocultural Moderna à Visão Complexa “O simples não existe, há o simplificado” GASTON BACHELARD

Se os métodos de pesquisa desqualificaram ambientes e culturas milenares, cabe re-escrever essas histórias (Benavides, 2001). Todavia, os sujeitos de pesquisa precisam fazer escolhas diante das limitações. Sob o pragmatismo moderno a perspectiva mecânica 10 Caracterizada por domínio territorial e laços de poder horizontalizados tanto na gestão, organização quanto na defesa; divisão social do trabalho, modo de produzir e viver voltados a auto-suficiência, de base agrária, associados a valores culturais de não- acumulação; pouca concentração de poder e hierarquia; flexibilidade e laços socioculturais no plano interno e externo com grupos de diferentes etnias, línguas e bases econômicas. Ver Prous (2006), Guidon (2003; 2005) e Loiola, 2007.

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e fragmentária da realidade fracionou o saber (Morin e Moigne, 2000); promoveu a cristalização do determinismo cultural, social, psicológico, econômico, ambiental, teleológico e o evolutivo (Gomes, 1996). Reduziu assim a capacidade de apreender as possibilidades históricas, aprofundando invisibilidades sócioambientais. Reaproximar ciências da natureza, humanas e filosofia é um meio para superar essas limitações (Dosse, 2003). Tais aproximações adquirem maior coerência quando subsidiadas pelos princípios de complexidade, entendendo o real como uma teia de interações físicas, biológicas e antropossociais de densidade temporal (Morin, 1984, 2000). Nesse dilema fronteiriço encontra-se a geografia entre o “paraíso” simplificador e a complexidade (Passos, 2004; Hissa, 2002; Souza, 1997; Castro, 1995). Se por um lado predomina na geografia o paradigma simplificador, por outro se pode afirmar que o desenvolvimento de abordagens complexas já se territorializaram, subvertendo a ordem vigente (Chaveiro, Loiola e Oliveira, 2005). É nesse contexto que a abordagem a seguir busca estabelecer diálogos. Em Busca de uma Geografia para lidar com o Passado Distante Não é difícil reconhecer a carência na geografia de métodos que lidem com a trajetória temporal de suas categorias analíticas. Como alternativa, busca-se estruturar uma abordagem que aproxime geografia, história ambiental e arqueologia na investigação do passado (Figura 2 - página 276). Esses são argumentos iniciais a uma geografia do passado distante, que tem nas informações arqueológicas e paleoambientais suas fontes. Parte-se da trilogia física, biológica e social da paisagem, para investigar a dinâmica ambiental e social. Na tentativa de realizar análises sócioambientais e integrar diferentes disciplinas, incorpora princípios de complexidade. Para tanto, visa à estruturação de um método complexo, capaz de perceber com sistemas de objetos e ações sócioambientais no espaço-tempo. O método da Totalidade como base para uma abordagem complexa Apesar da geografia lidar com o meio físico, biológico e social, a divisão das disciplinas e a precariedade dos métodos para integrá-las reproduz uma falsa dicotomia entre geografia física e humana, camuflando as teias dos próprios objetos (Passos, 2004; Monteiro, 2003; Mendonça, 2001; Moreira, 2000). Um enfoque conjuntivo encontra correspondência no método da totalidade de Santos (1985), o qual propõe investigar o real por meio de categorias analíticas: forma, processo, função e estrutura, reintegrando-as na síntese. No entanto, as categorias do método da Totalidade carecem de tratamento para dialogar com o todo indiviso da teia física, biológica e antropossocial de uma realidade, deliberadamente analisada. Aqui se encontra o arquétipo, cujo aprofundamento requer esforço coletivo.

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POR UMA GEOGRAFIA DO PASSADO DISTANTE... GEOGRAFIA GEOGRAFIA DO DO PASSADODISTANTE DISTANTE PASSADO

GEOGRAFIA GEOGRAFIA

ETNOGEOGRAFIA ETNOGEOGRAFIA

HISTÓRIA HISTÓRIA

Figura 2: Proposta de abordagem geográfica do passado distante.

Sistema de objetos e ações no espaço-tempo Nenhum aspecto das sociedades se impõe tanto quanto o espaço de vivência, presente desde tempos imemoriais (Santos, 1979). Por ser lugar da escrita da história, o espaço é marcado pela dinâmica social ao longo do tempo. Marcas cujos significados são atributos dos momentos vividos pelas sociedades. Assim, as interpretações de fenômenos geográficos necessitam de compreensão temporal. É a paisagem a guardiã das sucessivas temporalidades: “O seu traço comum é ser a combinação de objetos naturais e de objetos fabricados, isto é, objetos sociais, e ser resultado da acumulação da atividade de muitas gerações.” (Santos, 2004, p. 53). Processos sociais e naturais refuncionalizam a paisagem. No entanto, parcelas residuais permanecem, tornado-a um acúmulo de tempos, permitindo resgatar parte dos atributos de uma formação sócio-espacial de outrora. É disso que se alimenta a arqueologia ao entrar em contato com os vestígios fósseis, artefatos, construções e pinturas rupestres. A forma dessa cultura material na paisagem é parte da herança de processos históricos, cujos sistemas de significados, objetos e ações permitem caracterizar formações sócio-espaciais, interpretar parte da função e estrutura dos elementos, bem como inferir sobre os processos (Santos, 2004, 1996, 1985, 1979). Pode-se, assim, ir além da geograficização da história e prover uma interpretação geográfica do passado. O tempo no espaço: multiplicidade, não-linearidade e anacronia Embora não contenha a totalidade sócio-espacial de outrora, objetos e signos da paisagem interferem nas sociedades contemporâneas, que agem sobre formas de hoje e

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do passado, constituindo o processo de realização geográfica da sociedade (Santos, 2004, p.60). Ainda que indiretamente, formas pretéritas interagem com as sociedades atuais, de modo que “A inserção da sociedade atual nesse conjunto de formas é um dos mais difíceis problemas epistemológicos. O estudo desses processos pretende-se, ao mesmo tempo, à história e à arqueologia.” (Santos, 2004, p.60), e agora, à geografia. No ocidente, artefatos do passado adquiriram maior importância após o século XIX, a partir da teoria da evolução das espécies (Prous, 2005).11 Desde então, de relíquias esses objetos assumiram valores históricos, de memória, científicos e econômicos. Se essas formas interagem com o presente, o tempo é atrelado ao espaço. Mas o resultado real deste argumento é que o tempo precisa do espaço para ele mesmo avançar; tempo e espaço nasceram juntos, junto com a relação que os produz. Tempo e espaço tem que ser pensados juntos, pois eles estão inextricavelmente entrelaçados. Neste caso, a primeira implicação deste ímpeto de considerar a temporalidade/história como genuinamente aberta é que a espacialidade tem que ser integrada como uma parte essencial deste processo da ‘contínua criação de novidade’. (Massey, 1999, p. 274)

Se o espaço tem uma componente empírica, unificar tempo e o espaço requer empiricizar o tempo (Santos, 1996). É por meio da técnica que se pode mensurar o tempo imerso no espaço, pois a técnica é um meio constitutivo do espaço e do tempo, tanto no campo operacional quanto percebido, ou subjetivo. A técnica, por meio do trabalho, é um recurso unificador do espaço e do tempo, tornando-os mutuamente conversíveis, historicamente e epistemologicamente, e fornece a possibilidade de empiricização do tempo e de qualificar o ambiente (Santos, 1996, p. 44). Desse modo, o espaço de vivência como sistema de ações e objetos é espaço-temporal. As temporalidades desse espaço-tempo têm componentes anacrônicas, diacrônicas e sincrônicas. Ao se debruçar sobre o passado com questões do presente, volta-se ao presente com o aprendizado do passado, realizando um anacronismo controlado (Loraux, 1992). Já o tempo diacrônico forma-se nas sucessões de momentos históricos, distinguindo o tempo presente e o passado; e o tempo sincrônico ocorre num eixo cujas temporalidades sociais diferem entre si, mas são simultâneas (Santos, 1996). Assim, os lugares só podem ser compreendidos pela interação de sucessões diacrônicas, coexistências sincrônicas e interação anacrônica, numa totalidade multireferencial. Passado e presente podem estar relacionados anacronicamente, e ser complementares (Loraux, 1992), numa permanente reconstrução do presente, com base na memória coletiva, marcas na paisagem e documentais, de acordo com as possibilidades do momento (Reis, 2002; Benavides, 2001; Funari, 1998). Multiplicidade, linearidade e não-linearidade são atributos da história e do espaço social de vivência. Função da forma: Marcas na paisagem como memória espacial da cultura 11

Palestra ao Mestrado em gestão do patrimônio na Universidade Católica de Goiás, 2005.

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No tempo, a dinâmica cultural comporta-se análogo a um imenso computador de programas autônomos, abertos e inacabados (Morin, 1991). Essa cultura é o espírito que, associado às emoções (alma), dão vida ao ser (Lorenz, 1986); conferindo sentido à existência (Dosse, 2003; Santos, 1996). Espírito (cultura) e alma (emoções) em ação produzem o espaço de vivência. Atuam indissociáveis. Imprimem a experiência humana na Terra, interagindo com o ambiente para atender as necessidades e aspirações (Santos, 1996, 2004). Resultante de ações pretéritas, essas marcas denotam maneiras de se relacionar com o meio, entre si e indicam como o ser se auto-elabora (Claval, 1995). Impressas na paisagem, as marcas se tornam matriz cultural, pois a organização e as formas que estruturam a paisagem transmitem usos e significações às novas gerações (Berque, 2004). Assim, paisagem é também memória espacial da cultura, dá suporte às representações sociais e promove as identificações étnicas e culturais (Loiola, 2007). Sua forma traz conteúdos de dinâmicas sócioespaciais pretéritas, as quais adquirem novos significados ante as leituras do presente (Santos, 1985, 1997, 2004). Se há uma geograficidade nessas marcas, a geografia pode ajudar a interpretá-las. Para a geografia, a arquitetura de aldeias e casas, a distribuição, inscrições, ferramentas, uso do solo, alterações ecológicas, uso da energia demonstram as técnicas e os instrumentos do seu sistema de engenharia; ajudam a revelar a estrutura espacial e política, seus sistemas de referência, rotas, fluxos, práticas espaciais, redes, hierarquias, domínio territorial, demografia, comportamento e a compreender o modo de produzir, organizar e se proteger (Gomes, 1998; Claval, 1997; Santos, 1997, 2004; Berque, 2004). Trilogia e significados da paisagem Por ser o lugar central das formações sócioespaciais, a paisagem destaca-se na análise. Sua ontologia informa que além do simbolismo e da memória, nela há processos físicos e biológicos, relativamente autônomos (Cronon, 1996; Freitas, 2003). Considera-se assim, três grupos de processos interagentes na paisagem: o sociocultural, no qual predominam as atividades sociais, econômicas, culturais e simbólicas (Chaveiro, 2005); o físico, sob uma fisiologia da paisagem, com processos morfodinâmicos, suportado por morfoestruturas passíveis de serem compartimentadas (Ab’saber, 1969), resultante de processos socioculturais, físicos e biológicos. Em terceiro, processos biológicos, ecológicas e biogeográficas, incluindo o gênero humano (Barbosa, 2002). Esse conjunto diz respeito à auto-organização, à cultura, à disponibilidade de recursos, às escolhas e a conservação das marcas. Assim, a paisagem é o retrato da sociedade e do ambiente no tempo, construída numa interação de trabalho e matéria, sociedade e ambiente, sons, cor, odor e ação (Chaveiro, 2005). Assume dimensões físicas, biológicas e simbólicas ao materializar desejos e aspirações (Santos, 2004), necessitando de uma noção de escala que permita relacionar fenômenos de natureza e amplitudes distintas: uma noção complexa.

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Noção de escala na abordagem complexa Um dos empecilhos à integração da parte ao todo na geografia tem sido a redução da noção de escala a uma proporção geométrica, limitando a percepção sistêmica de um espaço polimórfico, no qual fatos e fenômenos de natureza e tamanhos distintos, aparentemente desconexos, interagem num espaço de referência (Castro, 1995). O que requer, além do recorte temporal e espacial, incorporar a escala como operador de complexidade, oposta a noção positivo-cartesiana. Numa realidade não-analítica deliberadamente analisada, a parte conserva interações com a totalidade indivisa (Bohm, 2001). Se a parte não possui os recortes epistêmicos, e nem detêm hierarquias e dimensionalidades proporcionais a priori (Castro, 1995), a escala resulta de escolhas estratégicas envolvendo a significação da pesquisa: o que vemos é aquilo que escolhemos ver. (Giovanni Levi, 1998, p. 203). O território não contém os recortes de escala, nem é por ela contido (Morin, 1984). Seus diferentes níveis temporais e espaciais são representações abstratas de uma realidade não-objetiva (Granger, 1994). É dotado de níveis diferentes de realidade, complementares e com interações não-locais (Bohm, 2001; Nicolescu, 2000). Requerendo transformações qualitativas não-hierárquicas na análise (Castro, 1995). Integrada ao todo, a parte contém suas inscrições: a realidade é holográfica (Morin e Moigne, 2000; Bohm, 2001)12 seja o local, a memória individual e coletiva, bacia hidrográfica, rio, solo, etnia, paisagem, território usado, clima, célula “tronco”, espécie, região, sociedade ou indivíduo. Nela importa relevar a sistemicidade, a multidimensionalidade dos fenômenos e fatos que se imbricam numa teia de densidade temporal, necessitando de abordagens que estão entre, através e além das disciplinas (Nicolescu, 2000). Todavia, as limitações derivam mais da forma de perceber, compreender e conceber o real e da utilização dos instrumentos teóricos que dos aparelhos de medida, do objeto e suas especificidades (Bohm, 2001; Capra, 2001). Assimilar a escala por referenciais de complexidade requer entendê-la como estratégia metodológica para perceber, conceber, compreender, relacionar, diferenciar, reunir e representar o objeto na dinâmica do espaço-tempo, verificando permanências e rupturas (Castro, 1995). Suas propriedades incluem ordem-desordem, não-linearidade e linearidade, micro e o macro, complexidade e caos (Souza, 1997). Exige abstrair atributos além da forma. Aproximar dados empíricos, mensuração indireta, teorias e categorias abstratas para observar e compreender um todo relacional. Desse modo, a parte se aproxima cada dia mais ao plenum do filósofo grego Zenão (Bohm, 2001). Entretanto, requer atenção aos geógrafos: em que medida as inscrições do todo integram e interagem com a parte analisada? Como operacionalizar pesquisas com um objeto espaço-temporal polimórfico?

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Em uma imagem holográfica cada parte, ou pixel, contém informações da imagem como um todo.

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Arqueologia como fonte de pesquisa na geografia A tradição oral das sociedades autóctones na terra brasilis, a distância no tempo e as especificidades ambientais requerem desenvolvimento teórico metodológica específico da geografia e demais ciências para interpretar esse passado. Nesse sentido, na atualidade, mais que fornecer subsídios à arqueologia, é necessário realizar uma abordagem geográfica com maior nível de abstração, aproximar ciências afins sob princípios de complexidade e construir entendimentos geográficos abrangentes acerca das sociedades e seus territórios em conjunto com a dinâmica ambiental na terra brasilis no longo tempo. É a partir dos vestígios revelados pela arqueologia, dos estudos paleoambientais e dos registros etnográficos que se pode confirmar e interpretar a complexa dinâmica sócioambiental anterior ao século XVI (Wüst, 1999). Esses vestígios são fontes não só para a arqueologia, mas biogeografia, paleontologia, paleantropologia, etnobotânica, etnoastronomia, etnopedologia, etnomatemática, geografia e outras ciências que lidam com esse passado. Há rica fonte de pesquisa divulgada pela arqueologia em relatórios, teses, dissertações, revistas, artefatos em museus, bem como um arcabouço teóricometodológico desenvolvido na geografia, história ambiental e arqueologia. Essas informações resultam de interpretações arqueológicas, abstraídas de fonte primárias de difícil acesso, exigindo rigor técnico no resgate. Dadas as características de umidade e temperatura elevada, a cultura material se degrada rápido (Prous, 1992). Sementes, artefatos de madeira, restos alimentares são encontrados geralmente em abrigos cobertos e secos, já que o intemperismo acelera a atividade bioquímica. Esse tipo de deterioração predomina sobre a cultura material dos ancestrais dos autóctones. Apesar dessas limitações, métodos arqueológicos contemporâneos permitem extrair muitas informações. Dos esqueletos encontrados são inferidos costumes, sexo, filogenia, idade, características físicas, patologias, tipo de trabalho e alimentação (Prous, 2006). Dos restos de caça apreende-se o preparo dos alimentos, as técnicas de caça, os costumes e preferências; e dos restos vegetais conhecer as espécies domesticadas, as formas de coleta, plantio e período de colheita. Os artefatos de pedra, osso, cerâmica e madeira fornecem características tecnológicas do grupo e a comparação com outros grupos vizinhos. As análises químicas e de microscopia revelam os materiais empregados. A arte rupestre (grafismos, pinturas e gravuras), seja em paredões ou pequenos objetos, contém signos que possibilitam especular o simbolismo, temas, ritmos, contexto, as técnicas, comportamento, territorialidade etc funções (Guidon, 2005, 2006). O clima, relevo, ciclos sazonais, fauna, flora e hidrografia são variáveis no tempo e influenciam as sociedades (Cronon, 1996; Freitas, 2003); permitem supor o potencial ecológico e a adaptabilidade (Barbosa, 2002), a criatividade e escolhas culturais (Funari, 2002). Em geral, a cultura material é “guardada” por processos de sedimentação, cuja estratigrafia é correlata a climas e ambientes predominantes. Em condições especiais

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pode ocorrer no interior dos sedimentos a mineralização por substituição das substâncias, ou fossilização. Contudo, muito além desses objetos, a arqueologia contemporânea se preocupa com os aspectos espaciais, a estrutura do sítio ou conjunto de sítios, a fim de resgatar a vida cotidiana, a divisão do trabalho, a distribuição demográfica e a exploração do território (Prous, 2006). Para tanto, verifica a implantação no relevo, os sistemas de abastecimento e de engenharia, a posição dos objetos, a localização do sítio, a arquitetura e as diferenciações intra-sítio; considera comportamentos que geraram a cultura matérial: cosmologia, divisão de gênero, forma de trabalho, técnica, ideologias e as estruturas sócio-políticas. Pode-se assim inferir a diferenciação social, a estruturação, as relações externas e estratégias adotadas diante das condições ambientais (Wüst, 1999). Ao utilizar essas informações como fonte é preciso observar que culturas arqueológicas não só diferem da noção de cultura nas ciências sociais em geral, como não são suficientes para abarcar a realidade em estudo (Wüst, 1999), já que geralmente são atributos metodológicos classificatórios para levantamento (Prous, 1999). Desse modo, sugere-se partir tanto quanto possível da demanda do presente sob quatro pressupostos (Santos, 1997; Maia 2005;3 Ferro, 1979): 1. Marcas na paisagem deixadas por processos socioculturais pretéritos são memória espacial de culturas (Berque, 2004; Loiola, 2007). 2. A produção do espaço de vivência ocorre há mais de 10.000 anos na terra brasilis (Guidon, 2006; Loiola, 2004; Barbosa, 2002). 3. Etnia refere-se necessariamente a um lugar, ou espaço de referência (Little, 2002; Ratts, 2003). Por fim, recomenda-se utilizar correlações etnológicas com etnias atuais. Procurar significados que tenham conexão com a realidade presente, traz maior objetividade à investigação de sujeitos históricos com emergente visibilidade política (Benavides, 2001). Assim, as marcas na paisagem foram, e são, co-produtos espaçotemporais dos antepassados de sociedades vivas entre nós, à espera de quem lhes atribua novos significados. Contudo, ao utilizar informações arqueológicas, é preciso estar atento às escolas arqueológicas e o significado por elas atribuído à cultura material e, simultaneamente, buscar pontos de convergências com essa ciência. Compatibilidades entre discursos geográficos e arqueológicos A geografia tem fornecido importantes estudos especializados do passado como paleoclima, geomorfologia, pedologia etc. No Brasil existem diversos centros e trabalhos com tradição de pesquisas físicas, entre os quais os estudos geomorfológicos de Aziz N. Ab’ Saber e Antônio Christofoletti e climáticos de Carlos A. F. Monteiro. Esses estudos são fundamentais à investigação arqueológica. No entanto há na geografia carência de pesquisas relacionados as sociedades autóctones e o ambiente momentos anteriores ao século XVI, numa aproximação direta 3

Prof. Carlos Maia, em aula ao mestrado em geografia, IESA, UFG, primeiro semestre de 2005.

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com a arqueologia. Entre os poucos trabalhos estão o de Albuquerque (1990), voltados aos depósitos correlativos, discutindo a participação da geografia na interpretação arqueológica; e Kashimoto (1992), a qual investigou a influência dos aspectos geográficos no estabelecimento das populações humanas. Fora do Brasil não é difícil encontrar temas com essa aproximação, como é o caso de Waters (1992), Chambers (1994), Hodder (1991) e Pimenta (1996). No campo da geografia cultural a aproximação teve ênfase a uma arqueologia da paisagem. Na escola americana Calr Sauer (1998), no início do século XX, resgatou estudos corológicos, destacando a individualização e diferenciação das paisagens culturais sauerianas, e Wagstaff (1987, 1991) aproximou geografia e arqueologia dos estudos culturais e da paisagem. São igualmente conhecidos os trabalhos da geografia cultural renovada, resgatando interações entre a paisagem e a cultura, a partir da década de 1980: Claval (1995), Retaille (1995), Berque (1984) na escola francesa e Cosgrove (1998) na escola inglesa. O recuo no tempo dessa aproximação não poderia estar distante. Consolidada a partir do interesse em estudar a cultura material do passado, a arqueologia teve desenvolvimento recente no Brasil e no globo. Data do final do século XIX, dedicada ao conhecimento descritivo e pontual (Alves, 2002). Configurou-se como acadêmica após meados do século XX, mas já traz relevantes informações, contribuições teóricas, técnicas e metodologias (Prous, 1999). Entretanto, sofre com a separação de ciências afins e o método positivo-cartesiano, e busca a reaproximação com a história, antropologia, sociologia, geologia, geografia etc (Reis, 2002; Benavides, 2001). A arqueologia aborda a vida quotidiana, atribuindo importância à interação culturaambiente; dado ao afastamento temporal de seu objeto (Prous, 1999). Possui metas e recursos similares às ciências humanas. Procura entender as adaptações, desenvolvimento, funcionamento e representações simbólicas da sociedade necessitando das ciências da terra, da vida e exatas para tratar a cultura material (Reis, 2002). Entretanto, as interpretações arqueológicas não são definitivas por usarem métodos mais precisos, vez que representam as possibilidades do momento (Prous, 2006). Como em todo conhecimento científico, constrói representações interpretativas do real (Granger, 1994), não sendo suas teorias espelhos de uma realidade objetiva, pois são co-produtos do espírito humano e das condições sócioculturais (Morin, 1991). No Brasil, as principais escolas arqueológicas atuantes são: histórico-cultural, processual ou nova arqueologia, francesa e pós-processual. Esta agrega a arqueologia social, objeto de nosso interesse, por valorizar o indivíduo, ou como poucos indivíduos alteram a sociedade, considerando aspectos ideológicos, políticos e religiosos do passado, e dos arqueólogos na interpretação (Benavides, 2001). Apesar da herança linear do materialismo histórico dialético, a arqueologia social trouxe contribuições às ciências sociais em toda América Latina, ao ponderar a ação dos arqueólogos enquanto construtores do passado a partir de sua classe social, ideologia, cultura e gênero nas questões formuladas.

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Preocupa-se mais com o destino histórico do continente, que os aspectos tipológicos e cronológicos da cultura material. Na arqueologia, de forma similar à geografia, a paisagem e a análise espacial são centrais em diversas abordagens. Boado (1999) se dedica a uma arqueologia da paisagem, com base em três aspectos: o ambiente e o histórico biogeográfico; em seguida, busca na paisagem sinais que permitam caracterizar padrões de uso, técnicas e formações sócioespaciais; por último, especula sobre os significados dos objetos encontrados, o simbolismo e as formas de interação ou apropriação da natureza. Outros trabalhos como os de Wüst (1983, 1991) focam a análise espacial por visão sistêmica. Priorizam estratégias de implantação do relevo, arquitetura, formato e a distância entre aldeias, território, permanência, demografia, divisão do trabalho, uso de técnicas e do solo. Essa perspectiva baseia-se na nova abordagem estadunidense, a qual a visão sistêmica de cultura a considera uma interação de subsistemas de fatores culturais e não culturais (Mello e Viana, 2006). Essa abordagem sistêmica pressupõe subsistemas passíveis de serem analisados. Admite várias estruturas interpretativas das diferenças e similitudes da cultura material, a fim de investigar continuidades e mudanças. É capaz de dialogar com não-linearidade, descontinuidade, o ambiente e a não hierarquização de processos e de estruturas sóciopoliticas. Assim, as informações arqueológicas dependem do viés interpretativo da pesquisa, pois, o arqueólogo ao pesquisar estende sua vivência para dentro do passado, desvela o presente e projeta o futuro (Reis, 2002), sem sair da realidade (Loraux, 1992). Etnogeografia e História Ambiental a serviço da investigação do passado Na geografia há um campo de estudo que permite melhor aproximação com a arqueologia: a etnogeografia. Fruto da abordagem cultural renovada pós-1980, seu arcabouço viabiliza a investigação de grupos que tenham grande relação com o ambiente (Retaille, 1995), e permite investigar a diversidade cultural (Claval,1997), embora não dedicada somente a esses fins. Investiga os sistemas de representação, o espaço e o ambiente, buscando como as culturas “tiram partido da natureza para se alimentar, se proteger contra intempéries, se vestir, habitar etc., modelar o espaço a sua imagem e em função de seus valores e de suas aspirações” (Claval, 1997, p. 114). Ao supor que os conhecimentos no passado relativos ao espaço, à natureza, à sociedade, ao ambiente e à forma de explorá-lo se diferenciam pouco dos científicos, procura relacionar esses saberes, “[...] analisar suas bases e seus modos de elaboração e inventariar as categorias [...]” que a cultura recorta do real e atribui significado, questionando “[...] como esses conhecimentos são utilizados, reinterpretados, respeitados (ou transgredidos) [...]” (Claval, 1997, p. 113), reproduzidos e transmitidos. Sua abordagem entende a cultura por três aspectos indissociáveis (Claval, 1997). 1. O sistema de representação, manifestação da sua forma de sentir e perceber o mundo

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(cosmologias); 2. Dedica-se a dimensão coletiva dessa representação, sua comunicação padronizada, ou códigos e normas para reproduzir o conhecimento, que nas sociedades autóctones ocorre por meio da língua, cantorias, mitos, ritos, danças, pinturas e artefatos. 3. Está atenta a cultural dos indivíduos, que é dinâmica e não homogênea, dada às diferenças de gênero, formação e criatividade. Fruto desse processo cultural criativo, os grupos se diferenciam no espaço e no tempo, e podem ser apreendidos pela etnogeografia na análise de três perspectivas: atividade biológica; a transformação do meio por um conjunto de técnicas e, a cultura como manifestação simbólica em que normas, valores, crenças, cosmologias, códigos e suas significações atuam na organização social e no ambiente (Gomes, 1998). Essas dimensões dão pistas sobre o modo de vida, as relações sociais, a divisão do trabalho, a interação com a paisagem e a estruturação sócioespacial. Essa abordagem etnogeográfica se enriquece quando associada aos fundamentos da história ambiental, ramo recente da História e História natural. Para a história ambiental, a cultura resulta de interações físicas, biológicas e antroposociais, mantendo uma via de duplo sentido com o ambiente, com reflexos na reprodução do espaço de vivência, deixando marcas na paisagem. (Worster 1984, 1991; Turner, 1990; Cronon, 1996; Freitas, 2003, 2002c). Tanto o ambiente com suas oscilações e ciclos atuam sobre a cultura e as formações sócioespaciais, quanto a cultura constrói objetivação, simbolismos e artefatos, elaborando a paisagem junto com os processos naturais. Os três níveis de abordagem da história ambiental a aproximam da etnogeografia e da arqueologia social. Um trata da história natural, investigando o histórico biogeográfico dos ambientes (Worster, 1991). O segundo enfoca o plano socioeconômico e político, objetivando as decisões sobre o ambiente na história. Terceiro, no plano cultural, procura saber como um grupo ou indivíduo, percebe, cria valores, ritos, mitos e outras estruturas de significação a partir da dinâmica ambiental. Aproximar a perspectiva da história ambiental ao da etnogeografia e arqueologia social permite simultaneamente olhar para a sociedade e o ambiente no passado e no presente, sem afirmar os determinismos limitantes descritos. Contudo, um método, ou métodos para transitar entre, através e além dessas perspectivas necessita de aprimoramentos e permanente atualização, que não se fará sem a operacionalização de pesquisas conjuntas por diferentes atores da ciência. Isso pressupõe que fenômenos físicos, biológicos e antroposociais formem a totalidade complexa da teia da vida no tempo, cuja apreensão se viabiliza na conjunção dos ramos especializados (Cronon, 1996; Morin, 1990, 2000; Capra, 2001, Monteiro, 2003, Santos, 1996; Moreira; 2000; Mendonça, 2001). Pois, fenômenos físicos são mais antigos e relativamente autônomos, dos quais derivaram a história da vida, e indissociável desta emergiu a história humana (Morin, 2002). À compreensão dessa história requer reunir e distinguir essa tríade, e não isolar e separar.

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Considerações Finais A inerência entre espaço e tempo torna o passado distante um vasto terreno a ser investigado na geografia, desde que superadas as limitações modernas que invisibilizam nossos ancestrais. Mais que objetos de museus, a cultura material produzida por essas sociedades representa parte da memória de culturas vivas. Frequentemente noticiadas reivindicando o direito à terra, festejando seus mitos em rituais ou como objetos de exploração turística, mas que têm conquistado crescente representação política. Por meio dessa cultura material a arqueologia tem confirmado não só uma densa ocupação deste continente, como o elevado nível técnico, organização sociopolítica e territorialidades definidas, sobretudo nos trópicos sul-americanos. Afastado da noção mitológica do nomadismo, na formação sócioespacial da terra brasilis predominaram sociedades ceramistas-agricultoras sedentárias no século XV. Do mesmo modo, contrariando relatos etnográficos e as previsões deterministas histórico-lineares, ao aumento demográfico não correspondeu a formação de superestruturas políticas centralizadas. Os grupos fizeram escolhas. Construíram seu próprio caminho. As afirmativas teóricas acerca da inadequabilidade tropical para o desenvolvimento de sociedades humanas não se confirmam no passado distante (Guidon, 2007; Funari 2002). Não só foram nesses ambientes onde se consolidou o gênero humano, como neles se constituíram as primeiras grandes civilizações. De modo que neste continente ocorreu o inverso de hoje: a América do Sul e Central eram desenvolvidas e a América do Norte era periférica e subdesenvolvida. É enganoso afirmar o descobrimento, início do povoamento e a (re)produção do espaço de vivência somente a partir do século XVI no território brasileiro e neste continente. A produção do espaço de vivência humana nessa porção dos trópicos se dá há mais de 10.000 anos AP. Como seria então a formação sócio-espacial, ou sócioambiental, entes do século XVI? Levantar argumentos a essa questão na geografia se mostra promissor, já que arqueologia, geografia e história ambiental não só têm similitudes na linguagem e ciências auxiliares comuns, como construíram convergentes escolas teórico-metodológicas. Todavia, ao usar o anacronismo controlado do tempo cabe desconstruir imagens de feras rudes acerca dos personagens do passado desde o neolítico, dado o grau de sofisticação requerido à elaboração de suas culturas, que não estiveram estáticas. Suas histórias são sagas de continuidades e mudanças do gênero humano. Dessa forma, o termo pré-história é inadequado à caracterização das sociedades na terra brasilis nos séculos anteriores ao XVI. Embora orientada aqui às sociedades autóctones, esse olhar ao passado distante não escolhe temas, convida à sua continuidade, aproximar diferentes ciências no entendimento de dinâmicas sócioambientais pretéritas que, de alguma forma, têm reflexo sobre o hoje.

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