A grade televisiva e o cotidiano brasileiro

June 8, 2017 | Autor: Mariana Lima | Categoria: Social Sciences, Television Studies, Post-Humanism
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A grade televisiva e o cotidiano brasileiro

Mariana Marques de Lima


Mestranda em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP – Brasil. Email: [email protected]
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Resumo: O presente artigo aponta para a relação entre a grade de programação televisiva aberta e o cotidiano brasileiro, a partir dos conceitos de Arjun Appadurai e Vilém Flusser. O primeiro trará seu ponto de vista ao compreendermos a grade como uma mercadoria ao longo de sua exibição. E o segundo, trabalhará as noções de temporalidade por meio de uma visão pós humanista.
Palavras-chave: Televisão. Grade de programação. Tempo. Mercadoria.

A relação acadêmica com a televisão tende a focar e objetivar em uma visão bilateral, emissor e o receptor. Tal cenário não é em vão. A televisão como a conhecemos, ainda se coloca como um símbolo, marca da cultura de massa, dessa forma é comum entendê-la como o melhor emprego do tempo livre, ou um substituto ideal para as atividades sociais, em que somente o olhar é exercitado, na atividade do zapping, troca acelerada de canais de televisão, feita por meio do controle remoto. Nós últimos anos o material produzido sobre tevê é exacerbado de conteúdos apocalípticos, em que a máxima parece ser a elevação da internet, em detrimento da tevê. O que vemos, entretanto são processo híbridos, uma convergência de plataformas. No entanto, indagamo-nos como tal transição da televisão vem afetando o que entendemos por grade televisiva.
Em se tratando de televisão, muitos teóricos parecem se debruçar no entendimento que o aparelho perpassa por grandes mudanças. Não somente em se tratando de conteúdo, mas até mesmo, na forma em que lidamos com as telas que nos envolvem. O crescimento das plataformas audiovisuais, a tela everywhere não há limites. A pedagogia de imagem em que vivemos por meio dos diferentes equipamentos, nos deixa a sensação de que a tela/imagem não cessa de se comunicar em todo o canto.
Toby Miller, em "A Televisão acabou, a televisão virou coisa do passado, a televisão já era" (2009), destaca para dramaticidade que o "iminente" fim da TV tem alcançado em outros meios. O anseio por noticiar o fim de um dos instrumentos mais marcantes da sociedade nos últimos anos levou às grandes publicações internacionais refletirem se vivemos em um fim de uma era cultural e, em meio de um renascimento de outra era tão ou mais relevante. A revista Wired e o jornal Washington Post estão entre as citadas por Miller. As publicações além de profetizarem um fim de uma TV já conhecida, especula também seu renascimento, através das convergências de novas mídias, desenvolvimento e engajamento de novos conteúdos.
A televisão se reinventa quando se hibridiza com as novas tecnologias que surgem. Sua existência física, o modelo tradicional tal como o conhecemos, se traduz desde uma peça decorativa, objeto de desejo, até uma sucata. Todavia, a tevê com suas especificidades já marcadamente delimitadas, destaca-se de um suporte, para em seguida passar a pertencer a vários. Podemos dizer que há três tipos de TV; em um primeiro momento como um equipamento, necessário a exibição de imagens tanto na esfera pública, quanto na privada, a fisicalidade da TV mostra que ela tem esse caráter de intruso, no sentido de adentrar dentro de um específico espaço e dotá-lo de inúmeros sentidos, transformando o quê em uma primeira instância era somente um equipamento, em um membro daquele espaço. A segunda colocação corresponde a de meio de transmissão; a superfície da tela que nos permite a leitura de imagens em movimento, a emissão em massa de informações. E a terceira colocação, talvez a grande preocupação de executivos hoje, se trata do conteúdo. Ivan Askwith (2007) ressalta que show de TV virou conteúdo, portanto, tudo se resume a conteúdo e, em como tornar e criar conteúdos mais interessantes, permitindo que se alastre.
A hibridização da televisão possibilitou em sua não extinção, acarretando em fenômeno de alastramento a outros meios. A internet, principal agente nesse processo, foi incorporada pela tevê, especificamente nos conceitos de primeira e segunda tela. Através dessa lógica, pode-se entender que a televisão, do jeito arcaico que a conhecemos, se traduz em primeira tela, com uma transmissão realizada por meio da tela grande, a tradicional, fixada em um espaço, seja ele uma sala ou escritório e refém de uma grade de programação fixa. A segunda tela corresponde a todas as outras telas, onde são exibidos e compartilhados conteúdos referentes a um determinado programa, ou até mesmo o próprio programa, disponível a qualquer horário. Essa tela pode ser um tablet ou um smartphone, com acesso à internet.
Esse método de aproximação de plataformas já é bastante utilizado no contexto brasileiro. Com uma interação diferenciada é possível ao usuário ter acesso a conteúdos antes inalcançáveis, além de um compartilhamento em massa, exemplificando, uma onda de comentários antes e depois de um programa.

O que é grade?
Em uma primeira análise podemos afirmar que grade corresponde a uma organização da programação de um canal televisivo, melhor dizendo, uma espécie de agendamento de programas, organizados a partir de uma linha editorial. Em uma reflexão mais densa, à luz do pensamento de Jesus González Requena (1995) pode-se dizer que a grade funciona como um macrodiscurso global, que por meio de fragmentações se constrói uma continuidade. Para o autor, nestes macrodiscursos estão agregados sistemas semióticos repassados em um conjunto de áudio e vídeo. Raymond Williams (1975, apud, LOPES e PEREIRA, 2007, p. 02), teórico inglês, um dos primeiros a se debruçar sobre os estudos de programação afirma que o quadro geral de programações não é composto unicamente por programas descontínuos, mas sim por um fluxo contínuo de imagens e sons, que compõem um corpo, ou seja, a grade.
Lopes e Pereira (2007, p.05) em sua interpretação dos estudos sobre programação de José Angel Cortés ressaltam, que segundo o autor "a programação é um catalogo de oferta sinérgica, que deve conseguir a aceitação de um público, que convertido em audiência, servirá para proporcionar as receitas através da publicidade". Cortés evidencia o papel da grade nesse processo ao afirmar que o somatório das variadas emissões, portanto a sinergia dos programas apresentados em forma de gráfico, a grade, é essencial para a fidelização da audiência. Nesse aspecto a contribuição de Cortés é tamanha, tendo em vista que o teórico espanhol especifica que a programação resulta de um processo efetuado pelas emissoras que ele intitulou de "filosofia de programação", que são todas as diretrizes tomadas pela empresa de comunicação ao desenvolver um programa e colocá-lo no mercado. Ele explica que a filosofia de programação deve está em consonância com a atividade empresarial da empresa, o aspecto econômico nesse casa, é imprescindível para a criação de uma grade capaz de seduzir o telespectador.
Na edição especial do Jornal Meio&Mensagem, em 25 de novembro de 2013, destinado a programação, Edianez Parente, na reportagem "Da ideia à estreia", se propõem a explanar como se desenvolve a criação de novos programas em tevês abertas e em canais por assinatura. Em suas palavras, Parente explica que em redes abertas é adotado o modelo vertical para a produção, que tudo é confeccionado internamente com estrutura e recursos próprios. Ele deixa claro que a antes de chegar à etapa em que o programa já em modo de produção, ele já ultrapassou a fase de conversas e decisões entre executivos e diretores, incluindo departamento artístico e sua colocação na grade diária. Cada emissora entretanto, possui sua forma de trabalhar suas ideias de novos produtos. Porém, uma tendência vem se destacando no contexto brasileiro, que é a aposta na diversidade de gêneros e formatos, tornando a grade dinâmica e atrativa.
Os processos internos como citam Parente (2013) estão em conformidade com que Lopes e Pereira (2007) já esmiuçaram do trabalho de Cortés (2001). Os autores especificam que apesar da tendência ao dinamismo, de acordo com Cortés (2001) o canal tende a buscar uma característica que o destaque dos demais, seja por sua qualidade ou outras características; para isso ele deve seguir três elementos, sendo eles: a filosofia de programação, ligada a ideia de projeto; a linha editorial, criação de critérios a serem seguidos; e por último a imagem de canal, resultado dos dois elementos citados, além da junção de uma linha mercadológica. Esse três elementos elencados se traduzem nos grupos de discussões, formados por membros de diferentes áreas responsáveis pelas altercações sobre novas ideias e calculo de custos.
A questão mercadológica está no cerne da discussão, pois a grade como um gráfico organizacional nada mais é, também como uma mercadoria nos moldes apresentado por Arjun Appadurai (2008), em "A vida social das coisas". Para o autor mercadoria "são coisas com um tipo particular de potencial social, que se distinguem de produtos, objetos, bens, artefatos e outros – mas apenas em alguns aspectos e de um determinado ponto de vista". A tese defendida pelo autor de que a mercadoria, bem como as pessoas possuem uma vida social, nos leva a pensar na grade, esse fluxo contínuo de imagens e sons como um objeto, não palpável, de valor econômico. Por meio do equipamento televisão é possível ter acesso ao conteúdo, organizado de maneira a dispor diversos programas em determinados horários. O tempo, nessa lógica se articula como o valor de troca, já que o retorno econômico de uma empresa de comunicação, especialmente a tevê advém da propaganda. Portanto, o valor do tempo destinado a propagandas de certos programas indicam sua relevância dentro da grade, assim como a audiência. Como exemplo desse cunho mercadológico da grade, Parente (2013) cita as feiras internacionais de conteúdo audiovisual, onde se reúnem milhares de compradores e vendedores de produtos. Todas com a finalidade de expandir seus formatos e garantir uma fatia significativa no mercado latino, principalmente o Brasil.
No estudo americano "Consumers Trend Research: Quality, Connection and Context in TV Viewing" (2013), revela que a antes massa passiva de telespectadores, tornou-se socialmente conectada e interativa. Esses neotelespectadores tem a intenção de tomar o controle das próprias experiências visuais. O estudo ainda explica que para atrair esse novo público, bastante exigente, se faz necessário investir em produções de alta qualidade, aliada a um conteúdo interessante.
A escassez de estudos sobre grade demonstra a falta de interesse em estudar o velho (grade) reutilizado no novo (novas tecnologias). Diagnósticos sobre a profundidade do papel desempenhado pela televisão na cultura de massa ainda são inconclusivos, tendo em conta que até mesmo utilizar massa para descrever o emaranhado de indivíduos expostos a televisão, já soa incorreto. O ponto de vista mais adotado pelos teóricos que trabalham essa problemática retrata a "oferta televisiva como uma realidade composta por elementos específicos (os programas) inseridos num macrodiscurso global (a grade), como uma sucessão de enunciados, significações e valores" (LOPES E PEREIRA, 2007).

O cotidiano entre imagem e tempo
Como já registrado, a grade como mercadoria, tem como sua moeda de troca o tempo. Ao tratarmos do cotidiano, o autor americano Clay Shirk (2010), em a "Cultura da Participação" revela que o homem tem uma dificuldade em lidar com seu tempo livre, o que ele denominou de excedente cognitivo. Muitas vezes, esse individuo, devido ao excesso de trabalho, utiliza a televisão como uma válvula de escape, uma maneira para fugir ou de enfrentar diferentes crises, sejam elas de cunho emocional ou social. O autor complementa que a atividade de assistir tevê se tornou uma obrigação. Todavia, enquanto o crescimento da atividade de assistir a um programa tem aumentado, mesmo com o advento da internet, o pensamento de que passar horas em frente a uma tela, ainda resulta em algo maléfico.
Shirk (2010) afirma que as três atividades mais comuns realizadas pelo homem são "trabalhar, dormir e ver tevê". Adianto que se trata de uma análise do contexto americano, todavia não se exclui a importância do estudo para observarmos o caso brasileiro. Dessa forma, para o autor:
O dramático aumento do hábito de ver TV não era o problema, era a reação ao problema. Os seres humanos são criaturas sociais, mas a explosão de nosso excedente de tempo livre coincidiu com uma gradual redução do capital social – nosso estoque de relacionamento com pessoas nas quais confiamos e das quais dependemos. Uma pista sobre o aumento espantoso do hábito de ver TV é o fato de ele ter substituído outras atividades, sobretudo as atividades sociais. (SHIRK, 2010, p.12)


O uso do tempo livre para a ação de assistir tevê se tornou, de fato, a atividade do homem. Chega-se afirmar hoje, com o avanço das tecnologias e a expansão da segunda tela, já explanado acima, evidencia a estreita relação do homem com a tela, imagens e sons, que dela são transmitidos.
Vera V. França (2009) ao discorrer sobre televisão, argumenta que como a tevê reporta o mundo, ou seja, fala e mostra outros mundos, ela também, continuamente, volta ao presente, às coisas cotidianas, à proximidade. Portanto, "a televisão organiza o mundo e a sua complexidade, facilitando e aplainando nossa inserção nos lugares que são os nossos" (FRANÇA, 2009, p. 38).
A autora ainda destaca que ao se falar de televisão é necessário explicitá-la, tendo em vista que a tevê tem diferentes facetas, além de uma intrínseca relação com a vida em sociedade, sendo determinante em sua dinâmica (FRANÇA, 2009, p. 30). Parte significante na rotina, no tecido social como um todo, a tevê é uma ferramenta eficaz de criação e propagação de tendências, mudanças no cotidiano e manutenção do poder.
No auxílio a um entendimento das imagens, recorreremos a Vilém Flusser (2007) em sua explicação sobre as superfícies. Compreende-se que as superfícies estão inseridas na sociedade, por meio das telas, presente nas ferramentas de comunicação e, também com as fotos, outdoors e letreiros. O autor elucida que anteriormente tais superfícies tão comuns hoje, eram raras, e nem sua utilidade tão relevante como são agora.
A análise flusseriana sobre as linhas (escrita) e as superfícies (imagens) nos auxilia a entender a complexidade dessa pedagogia imagética na vida humana.O pressuposto de Flusser (2007, p. 103) de que o pensamento ocidental é histórico, e portanto concebido em linhas, na escrita linear. É sedimentado que as linhas são símbolo da erudição, do pensamento formal e relatam a história da humanidade. Nesse mesmo contexto, as superfícies emergem, sendo mais atrativas às massas que as linhas. Além de emergir, especialmente depois dos avanços tecnológicos, as superfícies se colocam como um modelo de representação do mundo, assim como a escrita ainda o faz.
Como um teórico pós humanista, Flusser denomina a televisão como um canal de articulação do pensamento, já que fazem uso das imagens em movimento para impor um pensamento e representar o mundo. Ressalto em sua análise, a afirmação de que ainda lemos as superfícies que nos circundam da mesma forma com que lemos as linhas. Ele explica que ao fazermos isso, por exemplo ao vermos um programa de tevê ou um filme, perde-se a capacidade de "captar a qualidade de superfície inerente a eles" (FLUSSER, 2007, p.108). O autor ainda prevê que num futuro próximo, será tecnicamente possível sobrepor, manipular imagens em filmes e programas televisivos; acarretando em uma absorção do que ele intitulou de pensamento-em-surpefície do pensamento-em linha.
Em síntese, vemos como essa pedagogia das imagens representam um grande salto para a compreensão do pensamento humano. Com a televisão já delegando e moldando a rotina humana, percebemos um encadeamento de hábitos e costumes propagado através de imagens em movimento. Como também pelo que definiu França (2009, p. 49): "a natureza das relações entre televisão e sociedade – relações de mútua afetação, configurando um quadro sistêmico, marcado por equilíbrios e desequilíbrios, estímulos (positivos e negativos, levando sempre aoa reposicionamento das partes na composição do todo.".



REFERÊNCIAS

APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas: As mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008.

CAPANEMA, Letícia. A Televisão Expandida: das especificidades às hibridizações. In: Rev. Estudos Comunicacionais, Curitiba, v. 9, nº 20, p. 193-202, set./dez. 2008.

FLUSSER, Vilém. O Mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação: Vilém Flusser; organizado por Rafael Cardoso. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

FRANÇA, Vera V.A Televisão Porosa – Traços e Tendências. In: A TV em Transição: Tendências de programação no Brasil e no mundo; organizado por João Freire Filho. Porto Alegre: Sulina, 2009.

LOPES, Felisbela e PEREIRA, Sara (2007). Estudos sobre programação televisiva: os programas de informação e os conteúdos para a infância. Disponível em: http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/8714

MILLER, Toby. A Televisão Acabou, a Televisão Virou Coisa do Passado, a Televisão Já Era. In: A TV em Transição: Tendências de programação no Brasil e no mundo; organizado por João Freire Filho. Porto Alegre: Sulina, 2009.

PARENTE, Edianez. Da ideia à estreia. In: Revista Meio&Mensagem – especial TV programação, São Paulo, 25 novembro de 2013, p. 4 – 6.

SHIRK, Clay. A Cultura da Participação: Criatividade e Generosidade no mundo conectado. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

Pesquisa de Mercado:
Consumer Trend Research: Quality, Connection, and Context in TV Viewing. Publicada em Julho de 2013, disponível em: www.ovum.com



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