A Gravura como Problema Artístico

June 30, 2017 | Autor: Emília Ferreira | Categoria: Desenho, Gravura, Exposições De Arte
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A gravura como problema artístico1 Emília Ferreira

Porque se expõe gravura? É a gravura uma arte? Dúvidas antigas, que permanecem intactas para muitos. Em 1998, no catálogo de uma exposição no Museo del Grabado Español Contemporáneo, reflectia-se sobre o desconcerto que o público mantém em relação à gravura. Juan Carrete Parrondo, Director da Calcografía Nacional, sentia por isso a necessidade de, a cada exposição, a redefinir. E explicava o porquê de semelhante situação: A razão é clara; o público associa a obra dos artistas geralmente à pintura, e a verdade é que em muitas ocasiões vê as mesmas imagens, mas numa técnica gráfica capaz de ser reproduzida. O problema pode radicar no próprio 2

artista, no espectador e, por vezes, em ambos.

Mas como podemos nós não ver a gravura, não a reconhecer, se justamente ela vive connosco há séculos, nos livros, nas paredes das nossas casas, nos mapas que nos esclarecem os sentidos do mundo? Arriscamos uma primeira resposta: a proximidade pode cegar, o hábito pode apagar a presença. Além disso, habituámo-nos a vê-la como veículo de reprodução, como mero elemento decorativo, ilustração de livro ou de carta de jogar. Essa prosaica proximidade afastou-nos da sua natureza artística. E, contudo, apesar da massificação, a presença da gravura no nosso quotidiano raramente foi singela. No caso dos livros, por exemplo, nos quais ela surgia com frequência, iluminando o frontispício, metáfora da passagem para um universo de ideias, espaço distinto e distante do profano, a sua inclusão sublinhava a importância 3

simbólica dessa ombreira . A gravura apontava desde logo a passagem do espaço profano para o sagrado. Um belo frontispício era equivalente a um pórtico de 1

Texto para o catálogo da exposição 1/150. Gravar e Multiplicar. Gravura da Colecção do CAM. [Curadoria de Ana Vasconcelos e Melo, Emília Ferreira e António Canau]. Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea, Almada, 2008. ISBN 978-972-8794-58-3. P. 13-20. 2

In PARRONDO, Juan Carrete — “El Artista y el público de la Estampa”, in Grandes Maestros del Gabado Español en el Museo del Grabado Español Contemporáneo. La Coruña: Museo del Grabado Español Contemporáneo, 1998. A tradução é minha. 3

e

Cf. FUMAROLI, Marc — L’École du Silence: Le sentiment des images au XVII siècle. Paris: Flammarion, 1994, p. 325.

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maravilhosa arquitectura que, uma vez transposto, nos conduzia à luz do templo. A presença ou ausência de imagens, a redução a letras trabalhadas de um modo que hoje diríamos gráfico, é significativo da proposta e dos pressupostos que informam a seriedade, a sobriedade ou o luxo que se quer veicular na imagem do livro. Ou seja: espelham a relevância da gravura, definidora dessa imagem. Além de povoar os livros, a gravura multiplicou-se e autonomizou-se, criando preciosos bancos de imagens. Importante veículo de difusão de obras de arte que, de outro modo, teriam permanecido por descobrir (e estudar) para a grande 4

maioria da população, ela teve um inestimável papel na divulgação das artes . Talvez por isso mesmo, pela sua natureza democratizante, haja na realidade um lado da gravura que não vemos. Para além do seu corpo físico, para além da sua capacidade de reprodução, o que sobretudo escapa ao olhar não iniciado é o seu valor intrínseco, o artístico; a sua qualidade única de objecto plástico. Mas como se pode considerar único aquilo que, de origem, se afirma como múltiplo, ao depender de uma matriz que assegura a sua reimpressão? Ou seja: cuja produção tem como objectivo a realização de uma pluralidade de objectos se não rigorosamente iguais, pelo menos semelhantes. A sua qualidade de múltiplo destitui-a da aura de unicidade e a decorrente menor valorização no mercado da “grande” arte pode também estar na origem de algum desinteresse por parte de um público coleccionador de originais (obras irrepetidas e irrepetíveis). Coleccionar originais — algo que não está ao alcance de todos, mas apenas de investidores mais ricos — coloca-se assim um ponto acima da colecção de múltiplos. A acessibilidade destes últimos reduziria, no mesmo passo, a sua importância como objecto. Como se pode ler, na introdução de Maps and Prints 5

for Pleasure and Investment , tanto mapas antigos como gravuras, quando comparadas com outras peças antigas, únicas, têm a vantagem de ostentar preços relativamente acessíveis; a sobrevivência de mais de um exemplar assegura uma

4 5

Cf. idem, p. 398.

Datado de 1978, este volume de divulgação destina-se a um público com apetências coleccionistas. Ensina a ler a gravura, a conhecer as técnicas e a organizar os critérios próprios para uma pequena, económica, mas interessante colecção. A sua relevância é significativa em termos históricos, já que indicia um aumento de interesse pela gravura antiga como objecto coleccionável.

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maior probabilidade de perenidade ao tempo e consequentemente não as faz 6

atingir também o estatuto de raridade que inflaciona o preço . Apesar destes aspectos, existe um vasto público para a gravura. Enquanto múltiplo que faculta o acesso à inacessível obra original o seu baixo custo e a qualidade da reprodução fazem com que a gravura seja apetecível como objecto coleccionável, sobretudo

para

o

coleccionador

que,

embora

medianamente

dotado

financeiramente, revela exigência da qualidade reprodutiva. Mais interessante e muito mais valioso, artística e financeiramente, do que o “poster”, a gravura tem um público fiel e crescente. Sabem-no bem os museus, cujas edições de reproduções de originais das suas colecções apresentam sempre grande sucesso de vendas. Além disso, enquanto obra artística, a gravura sempre teve cultores que lhe reconheceram o potencial plástico, experimental e inovador. Como notou Parrondo, para o artista, a arte gráfica não é uma mera reprodução, nem uma repetição mais ou menos simplificada da obra pictórica ou escultórica, mas algo com características significativas próprias — não apenas técnicas — nas quais o fazer se configura como parcela autónoma, embora não independente, no conjunto da sua criação. É complemento de outras actividades artísticas, nunca suplemento.

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Para os que apontam à gravura a supremacia técnica sobre a qualidade artística, o autor lembra que uma “das questões básicas do discurso e do próprio conceito de arte gráfica é o equilíbrio entre ofício e criação.”8 E recorda que a maioria dos artistas tem ampla consciência de que a gravura é portadora de uma linguagem específica, íntima da investigação, cuja prática abre e enriquece inúmeras possibilidades e soluções, simultaneamente técnicas e artísticas.

Breve definição de gravura

6 7

Cf. GOHM, D.C. — Maps and Prints for Pleasure and Investment, London: John Gifford, 1978, p. I.

In PARRONDO, Juan Carrete — “El Artista y el público de la Estampa”, in AA.VV. — Grandes Maestros del Gabado Español en el Museo del Grabado Español Contemporáneo. La Coruña: Museo del Grabado Español Contemporáneo, 1998. A tradução é minha. 8 Idem.

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Mas o que é a gravura? A definição inicial oferece uma aparente simplicidade: é 9

tudo aquilo que tem uma matriz. Existem, porém, complexidades anexas . Não só porque esta pode ter diversas naturezas como, sobretudo, porque a impressão que dela resulta — e que também se define como gravura — tem um duplo carácter: como vimos, enquanto reprodução de obra de arte e também enquanto obra com valor artístico intrínseco. Múltiplo de uma imagem mãe, a gravura defende-se de acusações de vulgarização através da exigência de qualidade técnica e artística que, em alguns casos — e sobretudo nos últimos anos — vem fazendo dela obra única. Parente próxima do desenho, esta técnica nasce também do traço. Incisão sobre uma superfície (cuja ferida permanece vestigial, testemunho do gesto) ou estampagem sobre uma outra superfície (espécie de contaminação por espelho), ela guarda memória, sendo multiplicável, qual história que repetidamente se conta.

Alguns traços sobre o seu surgimento

Confundindo-se com os tempos, a gravura — com diferentes técnicas, processos e objectivos — atravessou épocas e civilizações, servindo povos e propósitos diversos. Inventada na China, onde a estampagem nasce a partir da gravação de 10

um desenho na pedra, atravessaria toda a Antiguidade. Egípcios , Caldeus e 9

O termo designa “simultaneamente um conjunto de técnicas que consiste em gravar a superfície de um suporte, e o resultado obtido imprimindo uma matriz gravada e tintada sobre uma folha. Utiliza-se igualmente o termo “calcografia”: este designa primeiro que tudo a arte de gravar sobre cobre (de origem grega, o étimo de calcografia significa “escrito sobre cobre”) e, por extensão, todas as técnicas da gravura utilizando pranchas, ou matrizes, de metal. Além disso, o termo é quase sinónimo de talhe doce, que reagrupa todos os procedimentos de gravura em oco.” In [Guide Culturel] Les Techniques de l’Art. Paris : Flammarion, 1999, p. 142-143. A tradução é minha. 10

A gravura em pedras finas e preciosas é antiquissima; teve a sua origem no Egypto. Os phenicios a praticaram muito; porem os gregos a aperfeiçoaram egregiamente. Passou depois á Italia, onde foi cultivada por habeis artistas. In SOUSA, A.D. de Castro e — Breve resenha artística. Lisboa: Imprensa Nacional, 1863, p. 16. Sobre a origem da gravura, há autores que apontam raízes mais antigas do que o Egipto. A gravura começa na pré-história com as primeiras incisões sobre pedra, iniciando assim uma história conjunta do desenho e da gravura. “Os Mesopotâmios estiveram muito próximo de inventar a gravura. Os seus magníficos selos, esculpidos em cilindros de lápislazúli, alabastro, esteatite, pedra calcária e outros materiais, eram passados para barro húmido de

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Assírios usaram também a pedra como suporte da incisão, gravando selos com os quais moldavam argila e cera. A gravura em metal já era também usada, embora servisse apenas fins decorativos para peças de ourivesaria, não sendo por isso impressa nem repetida. Seria, contudo, a madeira o suporte que permitiria iniciar, com maior sucesso, o processo de multiplicação de imagens. Assim, a princípio, foi 11

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a xilogravura , a primeira técnica a possibilitar a repetição de motivos . Só mais tarde o mesmo princípio foi aplicado para imprimir gravuras e ilustrar livros. Para isso foi fundamental a invenção do papel, operada pelos Chineses no século I d.C., graças à qual, no século VIII a China tinha já uma considerável tradição de impressão de livros e reprodução de pinturas. Apesar de os Japoneses terem também desenvolvido, por volta do século I, um processo de fabrico de papel com fibras de algodão, foi o método chinês (a partir de fibras de bambu) que se tornou mais popular. Terão sido os Persas a passá-lo aos Árabes e estes, enfim, a introduzi-lo na Europa, já no século XI. Contudo, durante mais duzentos ou trezentos anos, o Velho Continente manterse-ia fiel ao livro manuscrito, realizado sobre pergaminhos, manual e morosamente transcritos e iluminados. Por isso mesmo, raro e de preços proibitivos, apenas acessível a uma muito restrita minoria, o livro permaneceu objecto de luxo até ao século XIII. O progressivo crescimento de escolas e universidades, um pouco por toda a Europa, com o consequente aumento do número de letrados, levaria a uma maior procura deste bem de consumo cultural e a uma resultante incapacidade de resposta pelas vias tradicionais de reprodução. Assim começaram a organizar-se corporações de escribas e comerciantes de livros. No século XV, três factores conjugaram-se para o definitivo êxito da gravura e sua maior divulgação. Por um lado, o embaratecimento do papel, então produzido em vasos e placas, deixando a marca da propriedade, patente e autoridade. Rolados sobre tinta e impressos em papiro, velino, ou têxtil, ter-se-iam aproximado do princípio da impressão em offsett ou em prensa rotativa, tal como a conhecemos hoje.” In EICHENBERG, Fritz – The art of the print. Masterpieces. History. Techniques. London: Thames and Hudson, 1976. P. 19. A tradução é minha. 11 12

Literalmente, gravura em madeira.

“Na China, onde a estampa nasceu da estampagem de pedras gravadas, ou na Coreia, as mais antigas gravuras sobre madeira foram também “amuletos”, vinhetas de efígies do Buda, com valor de talismã.” MELOT, Michel, “La rareté généreuse de l’estampe”, in NORONHA, Jörge de Sousa — L’Estampe objet rare. Paris: Éditions Alternatives, 2002, p. 9. A tradução é minha.

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maior escala e consequentemente mais económico ; por outro, a ideia de reproduzir imagens gravadas sobre esse suporte e, finalmente, a existência de meios técnicos de pressão. Não se sabe exactamente onde é que esta nova técnica surgiu, mas apontam-se dois locais credíveis: a Itália e a Alemanha, sendo que muitos eruditos afirmam ter sido nos ateliers de ourivesaria do Sul da Alemanha que surgiu a gravura em papel. Os ourives teriam usado esse material, recentemente tornado mais acessível, para registar as incisões realizadas sobre o ouro, mantendo um assentamento de elementos gráficos, que permitia tanto a gravação repetida e em simetria, como a manutenção de uma memória e de uma 14

fonte de estudo . Usada como instrumento de disseminação da palavra, na divulgação da fé, propalando com frequência cenas da vida de Cristo e dos santos, facultando-se como fonte privada de devoção, a gravura teria também um papel associado a questões profanas, como a criação de cartas de jogar ou de imagens amorosas. Além disso, teve fundamental relevo na divulgação científica. Com a descoberta do Novo Mundo, a informação visual relativa às suas espécies de fauna e flora, aos seus contornos — a cartografia — terá também nessa técnica artística uma essencial ajuda. Nos séculos XV e XVI multiplicaram-se os centros europeus de produção de gravura. Em Itália distinguiram-se ateliers em cidades como Florença (o mais importante centro), Ferrara, Bolonha, Mântua, Milão e Veneza. A dedicação dos artistas à gravura, o modo como a experimentaram e se dispuseram a afirmá-la como uma linguagem, do ponto de vista plástico, tão apetecível como as demais, foi desde logo determinante para a exigência qualitativa. Albrecht Dürer foi o primeiro a assumi-la como trabalho original,

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O primeiro centro importante para a manufactura de papel aparece em Itália, em Fabriano, cerca de 1276. Nos meados do século XIV, encontram-se já várias manufacturas a funcionar, respondendo a encomendas de toda a península itálica e também da Alemanha. A partir do século XVI, encontramos essas manufacturas a comercializar papel para mercados como o flamengo. Cf. WORTHEN, Amy Namowitz — “Engraving”. The Dictionary of Art, volume 10. Ed. Jane Turner. New York: Grove, 1996, p. 381. 14

Cf. idem, p. 381.

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acentuando nela uma marca autoral . Embora muitas vezes exista a dificuldade de atribuição de autorias, dadas as contaminações de escolas, estilos e gramáticas, a verdade é que desde cedo se tentou criar, também aí, uma definição individual. Libertando a gravura da supremacia da linha e ligando-a sobretudo a experiências 16

tonais, Dürer multiplicou as suas temáticas e conferiu-lhe autonomia artística . Ganhando adeptos um pouco por toda a Europa, a gravura cedo viria a influenciar, com o seu papel divulgador, o próprio desenvolvimento de outras formas de arte. Com efeito, uma das mais famosas casas produtoras, dirigida pelo reputado pintor e gravador flamengo Hieronymus Cock (1510-1570), produziu peças que puseram a circular obras de desenhadores de renome, cujo trabalho acabaria por fazer entrar na arte flamenga claras influências do Renascimento e Maneirismo italianos. Também as suas publicações de gravuras feitas a partir de obras de Hieronymus Bosch e de Pieter Brueghel se revelariam determinantes no curso da arte flamenga. Na sua já mencionada utilização como meio de difusão artística, constituindo um apetecível recurso de estudo (por claramente mais económico e portátil que as grandes obras artísticas de pintura ou escultura), a gravura passou também a oferecer uma fonte de inspiração, sendo possível determinar a criação de obras de 17

iluminação de livros e escultura feitas a partir de uma gravura . Com o passar do tempo, alargou-se o espectro representativo, encontrando-se, além das já habituais cenas religiosas e dos mapas, cenas clássicas e mitológicas, retratos,

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Nem todos os gravadores eram os autores das imagens, mas de qualquer modo, tinham de ser bons desenhadores. Cf. WORTHEN, Amy Namowitz — “Engraving”. The Dictionary of Art. Jane Turner Editor. Macmillan Publishers Limited, 1996, Volume 10, p. 382. 16

Cf. Idem, p. 384-385. “Como é do conhecimento geral, o grande artista germânico criou dois tipos de gravura: gravuras em cobre (ponta seca, água-forte), destinadas sobretudo a um público requintado e culto de humanistas e literatos, cheias de numerosíssimas alusões mitológicas e simbólicas dificilmente compreensíveis para os não iniciados, e gravuras em madeira (xilografias), mais toscas e elementares, destinadas ao povo e vendidas ao balcão em dias de mercado. Quem ousaria hoje afirmar que as magníficas estampas do Apocalipse são de qualidade artística inferior, ou de estilo diferente das gravuras em cobre, como a Melancolia ou O Cavaleiro, a Morte e o Diabo? Então porque é que o gosto do público, que outrora (pelo menos nas épocas de maior homogeneidade social e estilística) coincidia com o dos “competentes”, se veio progressivamente enfraquecendo e alterando de maneira a criar diversas estratificações apreciativas da arte actual?” In DORFLES, Gilles – As Oscilações do Gosto: A Arte de Hoje entre a Tecnocracia e o Consumo. Lisboa: Livros Horizonte, 2001, p. 31-32. 17

Cf. Idem, p. 382.

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vistas de arquitectura, alegorias, ornamentos e reproduções de obras de pintura e escultura. Um dos mais directos efeitos da gravura terá sido mesmo o nascimento 18

da paisagem como género artístico independente . Alterações e inovações sucederam-se ao longo dos vários séculos de prática da gravura, associando, desde o início, duas vertentes paralelas: a reprodutiva e a artística. De acordo com um dos históricos investigadores da gravura em Portugal, entre nós esta arte pode dividir-se em três fases: uma que vem do século XV até o seu apogeu no grande século português, chegando mesmo ao fim do século XVI; a segunda abrange o século XVII e o século XVIII até as medidas protectoras de D. João V, principalmente com a criação da Academia Real da História Portuguesa em 1720; a terceira provém da Tipografia Académica, e da Impressão Regia, com os processos e material modernos.

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No final do século XVIII e até ao princípio do XIX, a “introdução de novos processos mecânicos desenvolveu grandemente a gravura portuguesa”

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. Com larga

presença na imprensa, tal como então acontecia um pouco por toda a Europa, ilustrando livros, jornais e demais publicações periódicas, ocupando o lugar que mais tarde seria tomado pela fotografia, no final do século XIX, a gravura em Portugal sofreu contudo um abandono enquanto actividade artística.

Autonomização da gravura como objecto artístico

Ao tempo, dois acontecimentos importantes marcariam uma decisiva mudança no panorama artístico Ocidental: a vulgarização da fotografia e o confronto com novas formas plásticas (a introdução da gravura japonesa no Ocidente, por exemplo, influenciou artistas como Van Gogh, Mary Cassatt ou Claude Monet). Com a libertação operada pela fotografia, que se afirmou então como meio 18 19

Cf. WORTHEN, Amy Namowitz, op. cit., p. 389.

In CHAVES, Luís — Subsídios para a História da Gravura em Portugal. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1927, p. 4. 20

In RIBEIRO, José Sommer – Gravura Portuguesa Contemporânea: 1970-1987. Catálogo da exposição organizada pela Fundação Calouste Gulbenkian, em Estocolmo.

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reprodutor fácil, económico, fiável, a gravura pôde aumentar as suas potencialidades de experimentação, tão apetecidas por pintores e escultores. Paris tornou-se, sobretudo a partir dos anos 70 de Oitocentos, um centro de criação e debate plástico, no qual muitos artistas perseguiam formas e soluções estéticas não europeias. O renascimento da gravura, como obra artística, para lá da importância gráfica e de divulgação que vinha tendo, há décadas, na imprensa, ilustrando as páginas de jornais e de livros, abre caminho para uma exploração plástica crescente, que irá demonstrar ampla fecundidade ao longo do século XX. Já nos meados da década de 20, são muitos os ateliers de gravura onde artistas de vários quadrantes se encontram para trocarem experiências técnicas e estéticas. A gravura revela-se, 21

por esses anos, um meio de grande atracção plástica para muitos criadores . Para além da significativa criação da Associação Jeune Gravure Contemporaine, em 1929, encontramos também lugares de formação tão importantes como o conhecido Atelier 17, que o pintor, gravador e teórico da gravura, o inglês Stanley William Hayter, criara em 1927. Em Portugal, como nota Rui Mário Gonçalves, a gravura moderna levou vários anos a ser implementada. Com a notória excepção de Mily Possoz, na década de vinte, só nos anos 40 os artistas a adoptaram “com intenções modernas”. Essa mudança que se iniciou no Porto, estendeu-se apenas depois a outros centros 22

urbanos . Foi, contudo, apenas em 1956, com o surgimento da Sociedade Cooperativa de 23

Gravadores Portugueses «Gravura» , que a situação começou a mudar. De acordo com o testemunho de Fernando Calhau, pelas oficinas desta Soc. passaram inúmeros artistas plásticos, portugueses e estrangeiros, interessados nesta técnica e nos novos circuitos criados pela distribuição dos múltiplos gráficos. Desenvolveu-se, a partir de então, um novo alfabeto plástico. O metal, a pedra litográfica, a madeira, passaram a 21

Miró afirmaria ter sido a gravura a libertá-lo formal e tecnicamente, ao descobrir, com ela, as potencialidades de diferentes tipos de papéis. Ver Miro Grabador. Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia. Madrid: 1995. 22

In GONÇALVES, Rui Mário — Júlio Pomar: obra gráfica. Porto: s.n., 1999, p. 16. Segundo o autor deste texto, a “presença da gravura começou a adquirir expressão” na 7ª EGAP, em 1953. 23

Para maior desenvolvimento sobre este tema, ver texto de Inês Vieira Gomes, neste catálogo.

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ser utilizados como materiais susceptíveis de transmitir imagens ao papel. São, assim, estudadas as suas características expressivas e as relações com o 24

objectivo a atingir.

Crescentemente influente, a Cooperativa operará com inovação e originalidade durante várias décadas, acolhendo as experiências de vários artistas nacionais e estrangeiros, organizando cursos que promoviam o debate e convidando personalidades tão conhecidas como S.W. Hayter. No princípio dos anos 70, abriram em Lisboa e no Porto oficinas de serigrafia, que despertaram um grande interesse por esta técnica e ao mesmo tempo permitiram que jovens artistas mostrassem os seus trabalhos e fossem reconhecidos, num período difícil de crise e transição que Portugal atravessava.

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Ao longo do século XX, a experimentação da gravura acentua-se, notando-se um enorme crescimento nas décadas de 50 e 60. Nos anos 80, torna-se ainda mais popular, dilatando-se o mercado na directa proporção da inovação e das mais 26

fáceis técnicas de reprodução de obras de arte . Contudo, à margem de um mercado emergente e do aperfeiçoamento de técnicas de impressão, muitos artistas mostram propostas criativas, que visam manter a gravura no complexo e desejado estatuto do objecto único.

Um debate em aberto

A definição do que é uma gravura e da relação existente, na sua criação, entre labor artístico e capacidade oficinal permanece actual. Para a fecundidade do debate muito têm contribuído as várias exposições que, nas últimas décadas, se têm realizado internacionalmente.

24 25 26

In CALHAU, Fernando — Gravura Portuguesa Contemporânea. Brasil: Maio, 1978. In RIBEIRO, José Sommer, op. cit.

Sobre este assunto, ver Thinking Prints: Books to Billboards, 1980-1995. Deborah Wye (coordenação) NY: MoMA, 1996, p. 11.

10

Apesar de a primeira exposição de gravura ter ocorrido em 1858, no British 27

Museum , durante muito tempo a gravura foi considerada não-exponível. Os grandes centros expositivos, como os museus — templos de autoridade artística — expunham a grande arte, não a reprodução. Porém, nas últimas décadas, o panorama tem-se alterado. A definição e revalorização do que é uma gravura tem vindo a ser refeita, tendo para tanto sido significativas as exposições recentemente realizadas em museus, que não só aproveitam ao estabelecimento para um mais aturado estudo do seu acervo, como iluminam falhas e esclarecem mudanças, dando a ver a evolução e o estado da investigação sobre o tema. A aquisição, por parte de alguns museus, de arquivos relativos a oficinas de gravura, 28

tem servido também de importante instrumento de estudo da matéria . Instituições de prestígio, como a Tate Britain, começaram além disso a integrar a 29

gravura nas suas exposições permanentes , ao lado de pintura, fotografia, desenho ou escultura, contribuindo para a sensibilização do público geral das especificidades desta forma de expressão. Em 2001, o programa oficial da Europália Polónia integrava uma grande mostra de gravura, com cerca de 300 obras provindas de colecções nacionais e privadas. Com uma vasta panorâmica dos diferentes movimentos de renovação que a gravura observou na Polónia ao longo do século XX, a exposição dava assim conta da originalidade e do peso desta expressão artística e da sua relação com as artes gráficas, num dos países em que a gravura tem sido mais profícua. Sobretudo na segunda metade do século, a gravura polaca evidenciou uma notável emancipação em relação às exigências formais e artísticas condicionadas pelo regime político

27

Cf. GRIFFITHS, Anthony – The Archeology of the Print. In collecting prints and Drawings in Europe, c. 1500-1750. Ed. Christopher Baker, Caroline Elam e Genevieve Warwick. Ashgate Publishing Ltd, 2003, p. 9. 28

Cf. Thinking Prints: Books to Billboards, 1980-1995. Deborah Wye (coordenação) NY: MoMA, 1996, p. 11. 29

Em 1929, aquando da sua abertura, o Museum of Modern Art, de Nova Iorque integrou logo na sua colecção uma série de gravuras. Relembremos que os anos 20 foram ricos na experimentação artística e na consequente revalorização desta forma artística. Para mais informação sobre este assunto, ver WYE, Deborah Wye. AA.VV. — Artists & prints: materworks from The Museum of Modern Art. NY: MoMA, 2004, p. 8/288.

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então vigente, notabilizando-se no panorama plástico nacional, aspecto valorizado 30

pela criação, em 1966, da Bienal Internacional de Artes Gráficas de Cracóvia . Semelhantes eventos têm contribuído também para aumentar o interesse por parte do público, informando-o e dotando-o de elementos de técnicos e estéticos facultadores de uma melhor avaliação e apreciação da gravura. Como refere Juan Carrete Parrondo, o público da gravura terá de a olhar de um modo diferente do que usa para abordar a pintura, já que “aquela tem elementos de diferenciação mais que suficientes para não ter de estar sempre a sofrer os efeitos de comparações mal traçadas”

31

. Por um lado, afirma, o seu suporte mais

generalizado, o papel, surge como a sua “primeira singularidade”, a que se acrescenta a dimensão, em geral pequena (embora já existem gravuras de grandes dimensões). Depois ainda, a sequência, essa porta aberta à experimentação e à diversidade de resultados. Além disso, acrescenta, a gravura exige um saber ler específico e uma aproximação física do objecto, se quisermos perceber bem o grau de minúcia e de rigor que a sua criação implica. É certo que, com frequência, o carácter oficinal faz com que o gravador (nem sempre, ainda hoje, o autor da imagem, embora muitos artistas façam questão de dominar e realizar eles mesmos a complexidade processual das várias técnicas de gravação) seja visto como um artesão e não como artista. Mais uma vez, as exposições e os seus catálogos têm servido de espaço de debate e esclarecimento dessas questões. No texto Anotaciones sobre el grabado español contemporáneo, de José María Luna Aguilar

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, conservador chefe do Museu del Grabado Español

Contemporáneo, pode ler-se, na justificação da exposição, que não se referem aos artistas que a integram como mestres gravadores contemporâneos porque isso seria redutor em relação às suas carreiras, sustentando que o elemento de 30

Cf. Françoise Bernardi in L'estampe polonaise 1900-2000: dans le cadre d'Europalia Pologne. Au Centre de la Gravure de la Louvière, octobre -décembre 2001. LA LETTRE MENSUELLE. Consultado no site http://www.art-memoires.com/lm/l1214/13estpol.htm, a 9 de Outubro de 2008. 31

In PARRONDO, Juan Carrete – “El Artista y el público de la Estampa”, in Grandes Maestros del Gabado Español en el Museo del Grabado Español Contemporáneo. La Coruña: Museo del Grabado Español Contemporáneo, 1998. 32

In AA.VV. — Grandes Maestros del Gabado Español en el Museo del Grabado Español Contemporáneo. La Coruña: Museo del Grabado Español Contemporáneo, 1998.

12

diferenciação da gravura será além do conhecimento, utilização e facilidade com que se usam as suas técnicas, no domínio da “cozinha da gravura”, que alguns definem como um exercício próximo da alquimia, uma indubitável capacidade 33

criadora . Uma arte com muitas tonalidades, como se percebe. E que, além do mais, permanece, pela sua natureza, exigente, pessoal, particular. Obra de arte ou múltiplo? Preferimos colocar a questão de outro modo: a gravura é sem dúvida artisticamente generosa. Na sua natureza alquímica, mágica, experimental, até acidental, ela permite a quem com ela se cruza — artistas e público — o prazer da multiplicidade: do fazer e do ver. O prazer da partilha. Arte, sem dúvida. Talvez não exista outra tão pródiga nem tão prodigiosa.

33

Cf. AGUILAR, José Maria — “Anotaciones sobre el grabado español contemporâneo”, AA.VV. — Grandes Maestros del Gabado Español en el Museo del Grabado Español Contemporáneo. La Coruña: Museo del Grabado Español Contemporáneo, 1998.

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