A Guerra Cibernética como Nova Forma de Conflito e sua Configuração Jurídica

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A GUERRA CIBERNÉTICA COMO NOVA FORMA DE CONFLITO E SUA CONFIGURAÇÃO JURÍDICA1 RAMAZZINI, Guilherme Rodrigues; SANTOS, Guilherme Kenzo; SANTOS, Ramon Alberto dos; SILVA, Jhonatan de Castro; TEIXEIRA, Amanda Carolina

RESUMO Este trabalho abordará a guerra cibernética como nova forma de conflito, passando pelas definições clássicas de guerra e “atos de força” fornecidas pela doutrina internacionalista, pela análise desses conceitos na Carta das Nações Unidas e pela presença tanto de entes estatais quanto de não estatais enquanto sujeitos que se utilizam de tecnologias digitais para desferir ataques a organismos privados, estatais e internacionais. Essa situação aumentou o interesse da sociedade internacional na tipificação desse novo tipo de conflito na Carta da ONU, a fim de se definir a participação de novos atores, que antes tinham pouca relevância, bem como evitar que ocorram excessos nas respostas a atos de força. Saliente-se a dificuldade tanto probatória – na identificação dos responsáveis – quanto na aplicação de sanções a novos atores que ameacem a paz internacional. Desse modo, reafirma-se a necessidade de uma discussão cautelosa sobre as novas situações apresentadas, e enquanto não regulamentadas, uma abordagem restritiva no uso da força, pertinente apenas quando se tratar de entes estatais e de forma proporcional ao ataque sofrido. Por fim, conclui-se ser de suma importância para a segurança nacional uma integração entre os órgãos governamentais e a sociedade civil que seja hábil para a prevenção desse tipo de ofensiva e que propicie uma proteção efetiva da infraestrutura crítica do país.

1 A TIPOLOGIA DOS ATOS DE FORÇA NA CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS Dentre todos os fenômenos sociais, a guerra é um daqueles mais eminentes e que recebeu inúmeras atenções, sejam elas de pessoas comuns ou sacerdotes, filósofos e historiadores, juristas e sociólogos, politicólogos e economistas. Apesar dos holofotes, o que falta no entendimento da guerra é justamente a clareza que leva à limpidez conceitual. O sociólogo A. L. Machado Neto (1987, p. 223-241) bem demonstra que a guerra é o efeito da convergência de várias causas (política, psicológica, religiosa, econômica, demográfica, geográfica etc.), mas também é em si mesma a causa de muitas alterações substanciais em praticamente todos os quadrantes da existência social. Por exemplo: a guerra pode levar à consolidação de impérios e à centralização do poder (efeitos políticos); à sobrevivência de uma sociedade e ao definhamento de outra numa situação geral de escassez (efeitos econômicos); ao desenvolvimento de novas técnicas para uso militar e civil, tornando obsoletas as técnicas anteriores (efeitos tecnológicos); à evasão de pessoas dos territórios em conflito para outros que ofereçam condições de paz (efeitos demográficos). Alguns autores frisam que o Direito Internacional surgiu historicamente como a regulamentação jurídica desse fenômeno social ou a normatização do uso da violência entre

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Artigo originalmente elaborado – sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Alberto Araújo – para o X CADN (Congresso Acadêmico sobre Defesa Nacional), organizado pelo Ministério da Defesa e sediado na Escola Naval da Marinha do Brasil, no Rio de Janeiro, ano de 2013. Escolhido entre os cinco melhores artigos de todo o Congresso e, por essa razão, apresentado durante o evento.

sociedades jurídica e politicamente independentes (MACHADO NETO, 1987, p. 238-239; BOBBIO, 2008, p. 172)2. Este talvez seja um dos efeitos jurídicos mais relevantes. Apoiando-se em Hans Kelsen, considera-se o “Direito” como uma técnica social específica cujo núcleo é a organização e o monopólio societário do uso da força nas relações sociais. Por isso, a ordem jurídica é uma ordem coercitiva, não porque a força seja constante e ininterruptamente aplicada (ao contrário, é justamente a exceção), mas porque as normas jurídicas estabelecem quem deve, não deve ou está autorizado a aplicar a sanção quando alguém deixa de cumprir um dever jurídico. Aqui, a questão da força é de caráter normativo, não fático. De fato, a ordem jurídica internacional normatiza o uso da força entre sociedades jurídica e politicamente independes no seu mútuo relacionamento. Por isso, a guerra (como expressão máxima do uso da força) sempre foi proibida em geral e autorizada apenas como sanção em casos específicos. Esse é o critério essencial que faz o Direito Internacional poder ser considerado, verdadeiramente, “Direito” em sentido estrito, tal como será visto adiante. Em outras palavras: a nota essencial do Direito é a monopolização da força por parte da sociedade em questão, no momento em que é possível distinguir o uso juridicamente lícito e ilícito da força e, portanto, quando uma esfera mínima de interesses dos sujeitos é protegida de interferências forçadas por parte de outrem. Assim, quando certo indivíduo aplica a sanção contra o “delinquente”, é como se a própria sociedade o fizesse, porque essa conduta é imputada a ela enquanto pessoa atuante e o indivíduo age como seu “órgão” (em sentido lato). Isso vale tanto para as ordens jurídicas centralizadas (princípio da divisão do trabalho: órgãos especiais para apurar se o delito foi cometido e, se positivo, para aplicar a sanção de acordo com o processo previsto pela ordem jurídica)3 e descentralizadas (princípio da autotutela: ocorrida a conduta ilícita, a aplicação da sanção prevista fica a cargo do próprio ofendido). Eis, desse modo, as seguintes indagações: o que chamamos de “Direito Internacional” – aquele “Direito” que pretensamente disciplina a conduta dos Estados entre si – possui a tal nota essencial supracitada? O Direito Internacional prevê atos coercitivos como sanções, que pressupõem determinadas condutas contrárias àquelas dispostas como deveres jurídicos? O Direito Internacional autoriza a interferência forçada de um Estado na esfera de interesses de outro, sendo por isso a reação da própria sociedade internacional? Há a essencial distinção entre uso lícito e ilícito da força? A resposta é positiva para todas as perguntas. Conforme diz Kelsen, historicamente, o Direito Internacional sempre conheceu dois tipos básicos de “interferência forçada no domínio de interesses normalmente protegidos pelo Direito Internacional” (2010, p. 53), distintas apenas pelo grau: a represália e a guerra. A represália é a interferência limitada na esfera de interesses de outro Estado, com a utilização da força armada ou não. Por outro lado, a guerra – como fato jurídico – é “uma ação coercitiva que envolve o emprego de força armada efetuado por um Estado contra outro, constituindo da mesma forma uma interferência ilimitada no domínio dos interesses do outro Estado” (KELSEN, 2010, p. 63)4. 2

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O Direito Internacional é antiquíssimo, pois seu pressuposto lógico de existência é o fato do relacionamento mútuo entre comunidades ou sociedades independentes (do ponto de vista político), mesmo que não assumam a forma do Estado moderno. Por isso, dizemos que o Direito Internacional é aquele que disciplina a conduta dos “Estados” entre si somente para facilitar a exposição da matéria (tanto que hoje devemos considerar as organizações internacionais, como a ONU, UE, OEA, OTAN etc.). Denomina-se “Estado stricto sensu” quando a ordem jurídica é centralizada nos termos acima. A despeito da clássica lição de Max Weber (2006, p. 60), preferimos dizer que o Estado “reivindica a centralização do monopólio do uso legítimo da violência física”, ou melhor, que ele é a própria centralização do monopólio. Percebe-se claramente que as considerações de caráter sociológico registradas por Machado Neto se alinham com o que Hans Kelsen entende por “guerra” juridicamente: a guerra sempre foi a principal e mais gravosa sanção da ordem jurídica internacional. Mais curioso ainda é o paralelo com o conceito de “sistema internacional” elaborado por Raymond Aron, no campo da Ciência Política: “[sistema internacional] é o

A represália e – principalmente – a guerra sempre foram proibidas em princípio, sendo autorizadas apenas como sanções, aplicadas pelo Estado ofendido contra o Estado ofensor5: a ordem jurídica internacional sempre foi descentralizada e, portanto, de caráter “primitivo” – baseada no princípio da autotutela. Todavia, Carta de São Francisco (1945) representa a mais séria tentativa de centralização do Direito Internacional, já que ela pretende ser Direito Internacional geral (válida para toda a sociedade internacional, apesar de ser fruto de um tratado internacional ao qual nem todos os Estados aderiram). Essa centralização cria um mecanismo de “tutela coletiva” conduzido pelo Conselho de Segurança e pela Assembleia Geral (após a Resolução n.º 377/1950) da Organização das Nações Unidas. Contudo, a Carta da ONU trouxe um sério problema hermenêutico: há apenas uma única menção ao vocábulo “guerra”, feita em seu preâmbulo. Ao contrário, a Carta não utiliza um conceito dogmático específico e delimitado para as situações nas quais um Estado intervém de maneira forçada na esfera de interesses de outro, o que levaria à ruptura da paz internacional. Tal corre porque, para atingir esse seu magno objetivo, a Carta proibiu qualquer “ameaça” ou o efetivo “uso da força” nas relações internacionais (e. g., art. 2.º, § 4.º) e várias vezes ela fala na proibição de “atos de agressão” (e. g., art. 1.º, § 1.º). O que fazer? Apesar da omissão, Kelsen bem lembra que a “jurisprudência internacional, no entanto, não pode dispor do conceito de guerra enquanto importantes normas do Direito Internacional continuarem a se referir à ‘guerra’, tais como as normas que regulam a conduta na guerra” (2010, p. 62). Malcolm Shaw, sobre o art. 2.º, § 4.º da Carta, afirma: “A referência ao termo ‘força’ mais do que guerra é benéfica e, dessa maneira, encobre situações nas quais a violência empregada está aquém das exigências técnicas do estado de guerra” (2008, p. 1123, tradução nossa). Respeitando essas judiciosas observações, bem como unindo as considerações sociológicas de Machado Neto com aquelas de caráter científico-jurídicas de Kelsen, avançamos a seguinte tipologia para os fins deste artigo: dentro da categoria dos “atos de força”6, há a “guerra stricto sensu” – cujo conceito foi apresentado acima, na qual devem ser aplicadas todas as normas jurídicas sobre a conduta na guerra7 – e.g., as Convenções de Genebra de 1864, 1906, 1929 e 1949. Nesse sentido, quando a guerra stricto sensu for considerada ilícita pelo Conselho de Segurança ou pela Assembleia Geral, surge o conceito dogmático de “agressão” 8. A guerra stricto sensu, por outro lado, pode ser considerada lícita quando está de acordo com os propósitos da Carta, ou seja, quando é feita pelo Conselho de Segurança (arts. 42-47) para a defesa da paz internacional ou por algum Estado no caso de legítima defesa (art. 51). Evidentemente, ao denominar o gênero de “atos de força”, amplia-se a ideia tradicional de força como força “física ou armada”. De acordo com Malcolm Shaw, essa modificação da ideia de força é uma tendência antiga: “Um ponto que foi considerado no passado e agora é reconsiderado é se o termo ‘força’ no artigo 2(4) inclui não somente a força conjunto constituído pelas unidades políticas que mantêm relações regulares entre si e que são suscetíveis de entrar numa guerra geral” (2002, p. 153, grifo no original). 5 Kelsen tentou demonstrar a procedência dessa asserção com base na concepção do bellum justum. 6 Há a possibilidade desta ser uma subcategoria das “condutas contra a paz internacional”, alterando mais a tipologia. Afinal, da leitura do art. 1.º, § 1.º e do título capítulo VII, toda e qualquer conduta pode ser considerada pelo Conselho de Segurança como ameaçadora ou violadora da paz internacional, o que pode abarcar condutas omissivas. Mas, para os fins deste artigo e devido ao limitado número de laudas, essa ideia não será aprofundada. 7 As normas jurídicas que tratam da conduta na guerra são plenamente válidas e aplicáveis mesmo que ela seja ilícita, ou seja, o Estado (aqueles indivíduos que agem como seus órgãos) “delinquente” deve obedecê-las. 8 A Assembleia Geral editou a Resolução n.º 3314/1974 para definir, especificamente, o que é “aggression”. Ela considera a agressão como a “mais séria e perigosa forma de uso ilegal da força”, consistente no “uso da força armada por um Estado contra a soberania, a integridade territorial ou a independência política de outro Estado, ou de qualquer outra maneira inconsistente com a Carta das Nações Unidas” (art. 1.º).

armada, mas, por exemplo, a força econômica” (2008, p. 1124, tradução nossa). Retomandose essa tendência, entende-se a “força” como constrangimento exercido por um Estado (ou organização internacional) contra outro Estado (ou organização internacional), que pode ser desde o rompimento das relações diplomáticas até o uso concentrado e esporádico das forças armadas. Logo, essa tipologia tem como principal finalidade possibilitar a categorização de certos atos que não são de força física, mas que envolvem constrangimento ou coerção claramente incompatível com a Carta das Nações Unidas. Nesse ínterim, reveste-se de grande importância uma das mais recentes formas de guerra9: a guerra cibernética (cyberwar) ou ataque cibernético (cyberattack).

2 O CONFLITO DO SÉCULO XXI: A GUERRA CIBERNÉTICA O século XX viu o desenvolvimento das armas de destruição em massa, como as nucleares, as químicas e as biológicas. O século XXI observa agora o surgimento de um novo domínio de conflitos – com novos tipos de “armas” – que merece a mais profunda atenção do Direito Internacional: a guerra cibernética. Este é um fenômeno tão novo que, independentemente do poderio econômico ou militar, todos os Estados padecem de grande vulnerabilidade neste âmbito. O que importa nesta ceara são os mais diversos interesses em questão quando da existência de um determinado ataque cibernético a um Estado ou estrutura econômica, por parte não somente de outro Estado, mas também de um só indivíduo ou um grupo especializado, fazendo com que sejam postos mais uma vez em xeque os conceitos de soberania e Estado-potência. Para buscar a melhor compreensão dos aspectos políticos e jurídicos internacionais que envolvem o recente fenômeno da “guerra cibernética” propriamente dita, é interessante relatar dois casos paradigmáticos de “ataques cibernéticos”: a) os ataques cibernéticos à Estônia em 2007 e b) o caso Stuxnet. O primeiro caso teve início em 27 de Abril de 2007, quando um verdadeiro bombardeio de ataques Distributed Denial of Service (DDoS)10 atingiu a Estônia, derrubando desde os websites do governo até a infraestrutura bancária online do país. O ataque foi desencadeado após o governo ter determinado a remoção de um antigo monumento soviético do centro da capital Tallinn para um afastado cemitério militar – embora o governo russo tenha sido acusado de praticar referida ofensiva digital, as investigações indicaram que os ataques foram lançados de milhares de computadores particulares, alguns conectados em botnets11. Um oficial senior da OTAN, comentando os referidos ataques, demonstrou a Por esse motivo, arrolou-se como espécie a guerra “tradicional” como “guerra stricto sensu”, diferenciando-a de outros possíveis tipos de atos de força que também pode ser livremente chamados de guerra, como a guerra cibernética. 10 “Em um ataque distribuído de negação de serviço (também conhecido como “DDoS”, um acrônimo em inglês para “Distributed Denial of Service”), um computador mestre (denominado "Master") pode ter sob seu comando até milhares de computadores ("Zombies" - zumbis). Neste caso, as tarefas de ataque de negação de serviço são distribuídas a um "exército" de máquinas escravizadas, formando uma estrutura de comando e controle. O ataque consiste em fazer com que os Zumbis (máquinas infectadas e sob comando do Mestre) se preparem para acessar um determinado recurso em um determinado servidor em uma mesma janela de tempo. Chegada a hora marcada, todos os zumbis (ligados e conectados à rede) acessarão ao mesmo recurso do mesmo servidor. Como servidores web possuem um número limitado de usuários que pode atender simultaneamente ("slots"), o grande e repentino número de requisições de acesso esgota esse número de slot, fazendo com que o servidor não seja capaz de atender a mais nenhum pedido” (CAMPOS, 2013). 11 “‘Bots’ are analogous to ‘agent’ that in traditional DDoS models infect hostmachine & maintain access for attackers to control them via ‘handlers’ analogous to ‘botnets’, while referring to IRC networks. Typically, a bot when installed on a victim machine establishes outbound connections to a standard IRC network service port & joins attacker private channel. Public IRC networks such as Efnet, Undernet or DALnet, provide 9

necessidade de repensar como esses atos são considerados: “Se um centro de comunicações de um país membro é atacado com um míssel, você chama isso de um ato de guerra. Mas, então, o que você faz se a mesma instalação é desabilitada por um ataque cibernético?” (2007, tradução livre). No caso Stuxnet, um worm12 foi descoberto em 2010 pela empresa bielorrussa desenvolvedora de antivírus Kaspersky, por solicitação da International Telecommunication Union, agência da ONU responsável por assuntos de informação e tecnologia da informação. Especula-se que esse malware foi especificamente criado para infectar e causar danos no sistema operacional SCADA, desenvolvido pela Siemens e utilizado para controlar as centrífugas de enriquecimento de urânio do Irã. Além disso, constatou-se que 60% dos computadores infectados ao redor do globo se encontravam no Irã, reforçando a tese de que o principal alvo eram exatamente as usinas de enriquecimento do material radioativo, objeto de inflamados debates na sociedade internacional quando de sua instalação. Ante sua complexidade, alguns especialistas13 afirmaram que dificilmente um único hacker seria capaz de criar algo como o Stuxnet a partir de uma rede doméstica e que, por se tratar de um malware altamente complexo, teria sido feito com o apoio de um grupo com muito apoio tecnológico e financeiro. Logo, provavelmente algum Estado – com recursos técnicos, humanos e amplo banco de dados – estaria por trás de uma ofensiva dessas proporções (O’MURCHU, 2010). Por motivos históricos, diplomáticos e geopolíticos a suspeita recaiu sobre os Estados Unidos e Israel. Cumpre salientar que o fato de o verdadeiro autor do vírus não ter sido identificado dificulta a forma como os Estados poderiam reagir, caso o autor dos ataques fosse mesmo um Estado com o intuito de atacar as usinas do Irã. Diante de “ameaças” dessa envergadura, que desafiam a estabilidade, os interesses e a soberania de um país, questiona-se se esse tipo de ataque não poderia ensejar uma nova “corrida armamentista no mundo” (KUSHNER, 2013). Dadas essas possibilidades, ainda que não se possa afirmar que a guerra cibernética tenha substituído a guerra em sentido tradicional (com armamento cinético), o crescimento de sua importância e táticas poderiam ensejar o uso da força física ou armada pelo Estado ofendido como forma de legítima defesa. Outro ponto crucial é a ocorrência de um ataque cibernético por um sujeito não-estatal contra um Estado ou organização internacional (como a OTAN e a INTERPOL). Por tais razões, questiona-se de que modo seria possível adaptar essas novas hipóteses à Carta das Nações Unidas sem que esta seja violada. Afinal, de acordo com o que foi dito acima sobre sua “lacuna” dogmática, ela não menciona “guerra” ou “ataques cibernéticos” e sujeitos ou atores não-estatais não são abrangidos pelas suas normas. Nesse sentido, o surgimento de um espaço cibernético e de uma realidade virtual proporcionou mutações na ordem internacional, uma vez que a construção dos cenários nesta nova era transcende a ação unívoca dos Estados e fomenta a ação de indivíduos e forças ainda não claramente apontadas. A informação se torna então um bem público a ser protegido, na medida em que serve na “luta por territórios, por credibilidade e na guerra de ideias” (MANJIKIAN, 2010, p. 387).

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attackers with stable, scalable infrastructure to maintain, expand, manage & control their bots army” (PURI, 2003, p. 2). Para análise técnica do termo, vide: . Veja comentário de Mikko Hypponen, pesquisador chefe da empresa finlandesa de segurança F-Secure: . Acesso em 22 jun. 2013; e de Raph Langner, especialista alemão: . Acesso em 20 jun. 2013.

Esse cenário é ainda mais propício ao desenvolvimento do chamado “Conflito de 4.ª Geração” ou “Conflito Irregular Assimétrico”14, no qual há a utilização por grupos insurgentes, indivíduos ou mesmo os próprios atores estatais, de ferramentas cibernéticas com o intuito de paulatinamente minar as instituições e infraestrutura de um país, erodindo a própria segurança e confiança nacional. Posta a questão nesses termos, oportuno se faz identificar a origem e a autoria de um ataque cibernético, para somente então tomar as medidas jurídica e politicamente cabíveis. Como restou demonstrado no caso supracitado, os especialistas demonstraram a possibilidade de se identificar o mentor dos ataques às usinas de enriquecimento de urânio no Irã, mas muito provavelmente este Estado preferiu manter-se inerte ao invés de tomar atitudes que poderiam gerar resultados mais gravosos. De outra face, poderíamos pensar o ataque cibernético como um meio de dissuasão para uma possível guerra armada: um Estado poderia se valer de estratégias virtuais para conter o ataque inimigo na iminência de uma guerra, por exemplo. Interessante pensar o ataque cibernético não apenas como mecanismo de ataque, mas também de defesa e segurança, na medida em que os Estados buscariam o reconhecimento de sua credibilidade como provedor de segurança num cenário crescente de instabilidade. Assim, a adoção de recursos cibernéticos a fim de alcançar objetivos de defesa e segurança não pode deixar de ser considerada como estratégica por parte dos Estados, num momento em que as fronteiras e as soberanias se veem ameaçadas diante da “democratização” e “descentralização” no uso dessas tecnologias pelos mais diversos atores, inclusive para a prática de crimes e ataques terroristas, cuja estrutura estaria espalhada em células por diferentes países em redes não hierárquicas, atuando por meio de sistemas eletrônicos descentralizados de difícil reconhecimento impedindo a atuação individual de qualquer estado (VARELLA, 2013, p. 56-57).

3 A GUERRA CIBERNÉTICA E A CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS Conforme demonstrado previamente, não obstante o silêncio conceitual da Carta da ONU, criou-se doutrinariamente o conceito de “guerra stricto sensu” (tradicional ou em sentido clássico), assim como o conceito de “agressão” formulado pela Assembleia Geral quando a guerra é ilícita. Dessa forma, importa aqui a análise dos conflitos cibernéticos enquanto categoria jurídica, sob a égide da Carta da ONU. Várias tentativas de conceituar os conflitos cibernéticos enquanto atos de força ou ataques armados foram realizadas. Graham (2009, p. 101), ressaltando o papel axial da Carta da ONU na composição normativa no que importa aos conflitos cibernéticos, afirma que “é possível concluir que certos ataques cibernéticos podem ser considerados como ataques armados”. SKLEROV (2009, p. 65), identificando ataques cibernéticos enquanto ataques armados, justifica que “estados reconhecem que usos não convencionais de força podem justificar o tratamento como um ataque armado quando seu escopo, duração e intensidade forem de gravidade suficiente”. Tais considerações, juntamente com a noção de que "atos de força" não se resumem aos “atos de força cinética”, levariam à clara conclusão de que seriam aplicáveis os dispositivos do capítulo VII da Carta da ONU – em especial, a previsão de

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Encontra-se na “Doutrina Básica da Marinha do Brasil” a seguinte definição: “A guerra assimétrica é empregada, genericamente, por aquele que se encontra muito inferiorizado em meios de combate, em relação aos de seu oponente. A assimetria se refere ao desbalanceamento extremo de forças. Para o mais forte, a guerra assimétrica é traduzida como forma ilegítima de violência, especialmente quando voltada a danos civis. Para o mais fraco, é uma forma de combate [...] (1:2-2)” (apud BERMÚDEZ, 2006, p. 66).

“direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva – aos casos em que a gravidade do ataque cibernético seja suficiente para tal equivalência15. No entanto, a realidade se revela mais complexa. Os ataques podem ser realizados por atores não estatais, que não são contemplados pelos dispositivos supracitados da carta da ONU. A atuação destes atores, alvo de intenso debate entre os internacionalistas, ganha ainda mais relevo diante da problemática dos conflitos cibernéticos. Os baixos custos operacionais dentro do espaço cibernético aumentam as possibilidades de influência desses atores na sociedade internacional. Os novos atores, como as organizações terroristas, inúmeras organizações não governamentais e grandes corporações, fazem intenso uso desses recursos e são cada vez mais ativos, apesar de algumas capacidades, como agregação e análise de inteligência, sejam ainda atividades primordialmente estatais (RATTRAY; HEALEY, 2011)16. A Carta da ONU pouco trata sobre os atores não estatais. O capítulo VII, que dispõe sobre “ações em caso de ameaça à paz, rupturas da paz e atos de agressão”, foi certamente redigido considerando os Estados como os únicos atores relevantes em matéria de “guerra stricto sensu”17. Uma leitura literal impossibilita que os agentes não estatais sejam considerados como agentes dos Estados que o abrigam ou os auxiliam de outras maneiras. No emblemático caso “Nicaragua v. USA”, apesar a Corte Internacional de Justiça ter reconhecido que os Estados Unidos da América forneceu suporte material, intelectual, financiamento e treinamento ao grupo armado entitulado Contra para uma ação armada contra o Governo nicaraguense, os rebeldes não foram considerados instituições do Governo dos Estados Unidos, o que impossibilitou a responsabilização jurídico-internacional dos Estados Unidos pelo conflito dos rebeldes contra o governo nicaraguense em sua integralidade, ou seja, considerando o grupo Contra como um órgão do governo yankee. Mesmo nos casos em que um Estado se utiliza de meios cibernéticos para realizar um ato de força, existe uma questão crucial na possibilidade da atribuição da responsabilidade internacional do possível Estado ofensor: a dificuldade probatória. Conforme bem representado pelo supracitado conflito cibernético que tomou lugar na Estônia, quando a Rússia se negou a reconhecer sua responsabilidade nos ataques (HOLLIS, 2008, p. 1026), a dificuldade de se atribuir ataques a Estados é significativa18. Ainda, a possibilidade de se especificarem os autores individuais, vinculando-os aos governos que se pretende responsabilizar é ainda mais pífia, tendo em consideração os inúmeros mecanismos, como os botnets, que são utilizados nestas manobras e contribuem para a natureza anônima do ataque. Sobre a definição de um ato enquanto “ataque armado”, Graham coloca como parâmetro determinante o critério proposto por Jean Pictet: “The international consensus holds that criteria put forward by Jean Pictet in order to determine the existence of an international armed conflict under Common Article 2 of the 1949 Geneva Conventions also serve as a useful guide for assessing whether a particular use of force has risen to the level of an armed attack. Under this test, a use of force is deemed an armed attack when the force is of “sufficient scope, duration, and intensity” (2009, p. 90). 16 Os autores sugerem que: “Non-state actors wield more influence and pose greater national security risks in the cyber domain than in other domains for many reasons, starting with low barriers to entry. Technical tools that enable both malicious and benevolent actions can be downloaded or captured on the Internet. Soſtware can be adapted to malicious purposes with the proper expertise – and that expertise is generally available for hire. However, the low barriers of entry should not be over- blown. Tough even advanced capabilities can be obtained, it is difficult for non-state actors to master other tasks – such as gathering intelligence and analyzing centers of gravity for attack and defense – that are likely needed to have lasting strategic effects” (RATTRAY; HEALEY, 2011, p. 68). 17 Duncan B. Hollis (2008, p. 1047) sustenta que o direito da guerra é centrado no estado, primariamente regulando como os estados podem se utilizarem de força contra outros estados. Observa, ainda, que a maioria das tentativas de compreensão da guerra cibernética se baseiam em conflitos entre dois estados. 18 A Estônia admitiu que não tinha provas concretas que pudessem atribuir a responsabilidade dos ataques à Rússia, não obstante as reiteradas acusações do governo estoniano (2007). 15

Não obstante os empecilhos apresentados, a sociedade internacional faz uso de uma interpretação analógica dos dispositivos do capítulo VII, e, em especial, do art. 51 da carta da ONU. O referido artigo trata do direito à legítima defesa, isto é, a legitimação do uso da força por um Estado contra outro, quando da ocorrência de um ataque armado. Uma interpretação extensiva do dispositivo poderia nos fazer pensar que os ataques cibernéticos seriam uma extensão dos ataques armados físicos e, se estes ameaçam a paz e a segurança internacionais, legitimado estaria o recurso ao uso da força para coibir esses ataques (KIM, 2011, p. 325). Contudo, a legítima defesa exige a proporcionalidade entre o ataque e o contra-ataque. Estaria então um ataque por meio das forças armadas em resposta a um ataque cibernético respaldado na proporcionalidade? Em 1998, o representante permanente da Rússia nas Nações Unidas levantou a questão da regulamentação da guerra cibernética por meio de uma carta ao secretário geral da ONU (IVANOV, 1998). A resposta da sociedade internacional, no entanto, foi em considerar como um debate prematuro, ou como desnecessário por já existir um corpo normativo suficiente.

4 CONCLUSÃO A inexistência de uma normatização específica sobre a guerra cibernética tem efeitos práticos mais danosos que a mera dúvida doutrinária. Diante da impossibilidade de se conceituar adequadamente os atos cibernéticos de força, os atores – e especialmente aqueles que, por fazer extensivo uso de tecnologias digitais, são mais sensíveis a estes ataques – poderão fazer uso de uma leitura unilateral de "ato de força" e lançarem mão de seus "direitos inerentes de autodefesa individual ou coletiva" para atos que dificilmente seriam caracterizados como tal pela dogmática. Nesse contexto, a discussão e regulamentação multilateral tem o duplo papel de garantir a maior participação de atores que outrora dispunham de menor relevância, assim como evitar que ocorram excessos nas respostas a atos de força, logo a construção de um marco normativo a partir do diálogo da comunidade internacional se mostra imprescindível. Ademais, a crescente participação dos atores não estatais nos conflitos internacionais desafia as antigas concepções do Direito Internacional. O exemplo das organizações terroristas transfronteiriças é agravado no espaço cibernético – que faz poucas distinções entre fronteiras – levantando a inevitável questão da responsabilidade dos estados perante às ações dos atores não estatais que operam com qualquer espécie de assistência daqueles. Por fim, roga-se por uma abordagem cautelosa, interpretando-se o direito ao uso de força armada de maneira restrita. No que tange aos conflitos cibernéticos, no presente cenário, tal abordagem levaria à conclusão de que, não obstante a possibilidade de conflitos cibernéticos caracterizarem "atos de força" ou "agressões", os atores estatais somente poderiam lançar mão do "inerente direito de autodefesa" (art. 51 da carta da ONU) quando houver por certo que o autor dos referidos atos seja, também, um ator estatal (e não um ator não estatal operando no território de determinado estado).

REFERÊNCIAS A CYBER riot. The Economist, 10 maio 2007. . Acesso em: 23 jul. 2013.

Disponível

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