A “Guerra Justa”: São Tomás de Aquino e Outros Pensadores Cristãos

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
FLH0124 - História das Relações Internacionais I
Prof. Dr. Peter Demant







A "Guerra Justa"
São Tomás de Aquino e Outros Pensadores Cristãos






Lauriston Tomaz da Silva Junior
8029048
São Paulo
2015
SUMÁRIO


Introdução...........................................................................................3
Os Precursores.....................................................................................7
Agostinho............................................................................................9
Tomás de Aquino...............................................................................13
Conclusão...........................................................................................15
Bibliografia.........................................................................................16















INTRODUÇÃO


Desde os tempos mais primórdios das civilizações humanas os povos tem experimentado um dos mais significativos fenômenos da experiência humana: a guerra. O que se entende por guerra, porém, não é simplesmente o conflito entre duas partes a respeito de um determinado assunto; mas sim um conflito de estado motivado por divergências a respeito de como um território deve ser governado. Este conflito pode ser interno a um estado, ao qual chamamos guerra civil, ou entre mais de um estado; nos casos mais extremos, onde ela envolve vários estados, pode ser considerada uma guerra mundial.
Assim como a experiência da guerra tem sido constantemente presente na história das civilizações, também tem sido presente a discussão sobre as motivações das guerras e a justiça ou não com que ela é iniciada e conduzida. A discussão gerou no ocidente uma teoria que se desenvolveu através dos séculos entre diversos pensadores: a chamada Teoria da Guerra Justa. No debate sobre o que torna uma guerra justa ou não, fundamentalmente dividimos a questão em duas partes. Atribui-se a expressão latina jus ad bellum à motivação específica que leva um determinado estado a declarar guerra e jus in bello à forma com a qual ele se comporta e conduz sua campanha. Uma terceira parte é ocasionalmente adicionada à teoria, através da expressão jus post bellum, que seria a forma com que um estado age após o término do conflito.
A ideia de guerra justa não é exclusivamente uma inovação ocidental. Os antigos chineses, os egípcios, os babilônios, os hindus da Índia e outros discutiram as dimensões morais da guerra em escritos anteriores a qualquer um no ocidente latino (MATTOX, 2006, p. 2). O assunto também foi discutido na antiguidade clássica, onde se destaca principalmente Aristóteles (384-322 A.C.), especialmente em sua obra "A Política" (séc. IV A.C.), e também o cônsul romano Cícero, que foi um dos pais da teoria da Guerra Justa, sendo o pensador pré-cristão que mais influenciou os objetos de estudo deste trabalho, que são os pensadores cristãos que primeiro desenvolveram a teoria.
Cícero desenvolveu, ao longo de seus escritos, idéias relacionadas à chamada Guerra Justa que exerceriam grande influência sobre os pensadores cristãos posteriores, como Ambrósio de Milão e especialmente Agostinho de Hipona, que o menciona frequentemente em seus textos e que se utilizou de muitos conceitos do cônsul romano adaptados à sua teologia em sua principal obra, "A Cidade de Deus" (séc. V D.C.). Agostinho, por sua vez, influenciou todo desenvolvimento do pensamento cristão e filosófico no ocidente. Posteriormente, por volta do ano de 1148 D.C. o monge camaldulense Graciano, sob grande influência do pensamento agostiniano, reuniu pronunciamentos oficiais de várias autoridades da igreja através dos séculos, muitas vezes conciliando cânones discordantes entre si. Publicou a coleção como lei canônica, acrescida de seus comentários. Sua obra, "Concordia Discordatium Canonum", se tornou a mais conhecida e utilizada no direito canônico de sua época. Esses autores, sobretudo Agostinho, serviram de base para que Tomás de Aquino, alguns anos depois, definisse as suas condições sobre que poderia ser considerada uma guerra justa ou não em sua obra magna "Summa Theologica" (séc. XIII D.C.).
As obras destes autores representaram as principais influências sobre o pensamento religioso, político e filosófico na Idade Média, sobretudo na questão do que seria a Guerra Justa, originando a teoria que continuaria a ser desenvolvida e citada por pensadores posteriores, desde Stanislau de Skalbmierz, Francisco de Vitoria e Francisco Suarez. Foram através dessas ideias que se formularam as motivações, causas e conduções das guerras entre nações durante a Idade Média, especialmente durante o período das Cruzadas, em que o ocidente cristão se confrontou com o oriente muçulmano. Com o passar do tempo, com o advento da modernidade, a Europa cristã passou por um período de secularização da cultura e não foi diferente com a Teoria de Guerra Justa, que ganhou novos autores e chegou até os nossos dias, transformando-se e difundindo-se por todo o mundo. Por conta disso, o início desta teoria tem especial importância no estudo das Relações Internacionais, já que representa a gênese da forma e justificativa com que nações modernas ocidentais fazem guerra até hoje.





OS PRECURSORES


Cícero (106 - 43 A.C.)
Sem dúvida o pensador pré-cristão que mais se destacou na teoria ocidental da Guerra Justa foi o cônsul romano Marco Túlio Cícero. Para Cícero, ao contrário do que se pode pensar sobre as ideias de gregos e romanos, a paz seria o estado natural e desejável da relação entre Estados e não a hostilidade (HARRER, 1918, p.26). Para ele a paz deveria ser sempre o objetivo dos governantes, mesmo quando entravam em guerra. A guerra seria a expressão máxima do que há de mais bestial no ser humano; pois para Cícero a violência era a forma das feras de resolverem conflitos, enquanto a forma dos homens seria o diálogo. Apesar disso, ele não era um pacifista - longe disso. Mas acreditava que a guerra deveria ter uma causa (HARRER, 1918, p.27).
Só se deveria recorrer à violência quando não fosse possível que as querelas fossem resolvidas através de diálogo. Para ele haviam duas condições que tornavam a guerra justa: que ela ocorresse por conta de uma necessidade de reparação e que ela fosse formalmente declarada. Além disso, defendia que, uma vez proclamada, a guerra deveria ser lutada de maneira implacável, porém honrosa. Ressaltava a importância de que os tratados fossem respeitados honestamente e que os derrotados não sofressem crueldades (HARRER, 1918 p.28-30).
Alguns conceitos idealizados por Cícero - influenciado por pensadores da antiguidade clássica, sobretudo Aristóteles - fundamentaram sua teoria de Guerra Justa, e seriam posteriormente citados e adaptados por Agostinho à sua teologia cristã. Entre eles destacam-se as noções de justiça, lei natural, lei temporal e estado (NESTE, 2006, 13-48). Ele define a justiça como o altruísmo na realização dos deveres cívicos de um cidadão; a busca pelo bem estar dos companheiros como forma de promover a força e a estabilidade da sociedade humana. É uma virtude que advém da razão humana, mas só se manifesta socialmente. Nesse sentido, a justiça é um produto externo de uma virtude interna, verificando-se no tratamento em relação aos outros e tornando aquele que faz mal aos outros passível de punição. A justiça viria da lei natural, através da razão.
Para Cícero a lei natural é a lei eterna que rege todas as coisas e foi instituída por Deus. O Deus que Cícero menciona é único, e é considerado o arquiteto do universo, autor soberano de todas as coisas e superior aos deuses comuns do panteão greco-romano; embora ele tenha nascido e morrido antes do Cristianismo ser criado e não ser adepto de nenhuma religião monoteísta. Mas para Cícero Deus não tem a função de gerador de virtudes no homem, que viria a ter posteriormente em Agostinho, nem muito menos tem uma relação pessoal com ele. A lei natural seria descoberta pela razão, enquanto a lei temporal seria criada pela razão para o bem comum dos homens em sociedade. Ao contrário da lei natural, que é imutável e eterna, a lei temporal varia de acordo com tempo e espaço. Mas quanto mais a lei temporal reflete a lei natural, mais justa ela é e ela só pode ser justa quando se origina da lei natural.
A existência de um estado depende fundamentalmente da justiça e da lei temporal. Ele seria um acordo entre homens justos em prol do bem comum, para que convivessem em harmonia sob uma lei temporal. Para Cícero o homem é naturalmente um ser sociável, não podendo viver de outra forma e, portanto, a melhor forma de se viver em sociedade é em um estado, por seu objetivo ser obter vantagens comuns e manter seus integrantes em segurança. Os líderes do estado devem compelir aqueles que não vivem em justiça a viverem em justiça, para que assim o objetivo final do estado seja alcançado: o bem comum.
As guerras seriam originadas de violações destes conceitos - sobretudo da justiça - mas deveriam ser feitas para corrigir malfeitos e seu objetivo final deveria ser sempre a paz. Um a guerra só seria justa se ocorresse como resultado de uma dessas violações. Para Cícero existem dois tipos de injustiça: uma da parte daquele que inflige o mal e outra da parte daquele que, mesmo podendo intervir, não protege aquele a quem o mal está sendo infligido (MATTOX, 2006, p. 15).
Ele define dois princípios para que o jus ad bellum, ou seja, a motivação para ir à guerra seja justa: que houvesse aviso a respeito do impasse (que no caso de Roma era feito pelos sacerdotes conhecidos como fetiales) e que na impossibilidade de resolução a guerra fosse formalmente declarada. No sentido de um jus in bello, ou seja, das ações durante uma guerra, ele defende que a luta seja travada de forma implacável, porém honrosa - sem crueldade - respeitando honestamente os tratados propostos. Em termos de jus post bellum, o proceder posterior à guerra, ele defende que os soldados não deveriam ser culpados individualmente pelos atos que cometeram por ordem de seu governo - ideia que seria retomada por Agostinho posteriormente, refletindo sobre a participação de um cristão na guerra. Mas o ponto de encontro principal entre as ideias de Cícero e as de Agostinho é que ambos consideram que, ainda que existam motivos para que uma guerra seja iniciada, ela seja evitada a todo custo.

Ambrósio (ca. 340 - 397 D.C.)
Ambrósio, bispo de Milão, foi outro percursor da teoria da Guerra Justa. Ele viveu durante o período de transição em que o cristianismo passou de religião perseguida a religião oficial do Império Romano. Até então os pensadores cristãos se caracterizavam pelo pacifismo, mas se fazia necessário saber como o indivíduo cristão se portaria sendo cidadão romano em uma época de muitos conflitos e invasões bárbaras. Para ele, porém, tirar a vida de outra pessoa não era intrinsecamente um ato ruim, pois poderia ser justificado em determinadas circunstâncias. Suas ideias marcaram uma mudança que buscava conciliar o pensamento cristão com a guerra (MATTOX, 2006, p. 19). Foi Ambrósio quem excomungou o imperador Teodósio I após o massacre de 7000 pessoas em Tessalônica no ano 390 D.C., somente readmitindo-o depois que ele pagou meses de penitência; num episódio que marcou o início de uma era em que o estado se submeteria à igreja.
Ambrósio foi um dos primeiros a associar o Império Romano à própria fé cristã, afirmando que as invasões bárbaras seriam manifestações da indignação de Deus a respeito das heresias que se proliferavam no império (MATTOX, 2006, p. 20) - especialmente o arianismo, do qual sempre foi um feroz adversário. Desta forma, considerava que a defesa do império representava a própria defesa da fé, ou seja, seria um jus ad bellum aceitável. Ele evoca os quatro princípios de prudência, justiça, temperança e fortidão como comportamento esperado do cristão que devia se estender também ao jus in bello; dando ênfase especial à fortidão - a coragem e fibra moral do cristão -, ligando-a a exemplos bíblicos como o das guerras do rei Davi e ao pensamento de Cícero a respeito da justiça; notando que a fortidão sem a justiça é a fonte da maldade e que reagir em defesa do próximo não só pode ser aceitável como muitas vezes é moralmente obrigatório ao cristão; um ato de amor em nome da justiça. É por isso que para ele é essencial analisar a justiça de uma guerra.
O bispo não condenou atos de violência como o de 388 D.C., quando cristãos incendiaram uma sinagoga, por se tratar de um ato contra infiéis; submetendo a justiça ao fato dos agentes pertencerem à igreja (MATTOX, 2006, p. 21). Ele foi um dos primeiros a diferenciar a doutrina - essencialmente pacifista - apresentada nos evangelhos como sendo individual; diferente da violência que era perpetrada coletivamente. Ambrósio estabeleceu que, em termos de justiça, o tratamento de um inimigo deve depender proporcionalmente da magnitude de sua ofensa - baseando-se no Velho Testamento bíblico - mas favorece que ele seja tratado com misericórdia. Ele defendia que o clero não deveria lutar, noção que foi retomada por Agostinho posteriormente. De fato, Ambrósio foi um mentor para Agostinho, tendo-o batizado em Milão no ano de 387 D.C. e influenciado grandemente suas ideias, inclusive a respeito da Guerra Justa. Ambrósio reconciliou parcialmente a moral cristã com a teoria de guerra justa romana, enquanto Agostinho desenvolveu uma síntese total.
















AGOSTINHO DE HIPONA (354 - 430 D.C.)


Agostinho de Hipona foi um dos mais importantes filósofos e teólogos da história da civilização ocidental. Ele viveu na época do declínio do Império Romano no ocidente, uma época de intenso questionamento a respeito da relação do império com a fé cristã. Muitos pagãos culpavam o cristianismo pela decadência do império, enquanto muitos cristãos se perguntavam por que um império que havia se tornado oficialmente cristão estava sofrendo com uma tão ampla decadência. Ele tratou dessas e de muitas outras questões em seus textos e especialmente em sua obra magna "A Cidade de Deus" (séc. V D.C.). Entre os assuntos tratados está a sua teoria de Guerra Justa, a que nos dedicamos neste trabalho.
Agostinho nunca separou um espaço específico em sua obra para tratar da Guerra Justa, nem muito menos organizou sua teoria sistematicamente (MATTOX, 2006, p. 5). Ele também não pretendia, com seus escritos, lançar bases para nenhum tipo de legislação, mas sim formular apenas um guia ético para o soldado romano cristão de sua época. As ideias de Agostinho sobre o assunto, porém, apesar de estarem espalhadas em diversos temas diferentes, demonstram claramente que apesar de não ter formulado oficialmente uma teoria sistematizada ele a tinha em sua mente, como sua própria forma de pensar; uma teoria não escrita que os estudiosos cuidaram de desvendar após sua morte através de seus escritos, sobretudo em "A Cidade de Deus". Tão consistente é esta sua teoria que ele passou a ser considerado tradicionalmente como o pai do que se desenvolveu como a teoria da Guerra Justa no ocidente (MATTOX, 2006, p.1) e seu principal autor.
A teoria de Guerra Justa de Agostinho se alimentou de muitas das ideias de Cícero, a quem ele estudou na juventude, como era de costume na época; mas era considerado praticamente um especialista em sua obra (NESTE, 2006) e o creditava por sua iniciação na filosofia (MATTOX, 2006, p.28). A diferença fundamental entre os dois está no conceito da virtude. Diferentemente de Cícero, para Agostinho a virtude - sobretudo da justiça - provém de Deus, e não da razão. Portanto para ele a verdadeira virtude só se manifestava em verdadeiros cristãos. Além disso, na obra "A Cidade de Deus", Agostinho diferencia o plano das coisas terrenas e o plano das coisas espirituais; e também as ações coletivas das individuais e é nisso que se baseia toda a sua teoria.
Enquanto o plano das coisas terrenas é corruptível e imperfeito, o plano das coisas espirituais é perfeito e virtuoso. O plano terreno seria a "cidade dos homens", governado pelas leis naturais e temporais - assim como em Cícero - e o plano espiritual seria a "cidade de Deus", governado pela lei eterna. Por conta da cidade dos homens ser imperfeita, inevitavelmente existiriam guerras; mas que se feitas por causas justas poderiam ser um ato de amor: Agostinho compara a Guerra Justa a um pai corrigindo seu filho. O verdadeiro pecado na guerra não estaria na morte de um inimigo em si, mas sim no amor pela violência, crueldade vingativa e ganância por poder.
Agostinho se diferencia de muitos de seus contemporâneos, que acreditavam que Roma tinha uma missão divina de propagar o evangelho e a paz pelo mundo. Apesar de seu carinho por ela, ele não se constrange de declarar sua corruptibilidade e afirma que o seu destino final será o de todo estado: perecer. Para ele um estado jamais pode ser completamente justo, visto que a justiça - embora se expresse socialmente - não é uma virtude coletiva, mas sim individual. Por ser formado tanto por cidadãos injustos (ímpios) quanto justos (cristãos), um estado jamais seria perfeito. Um bom estado seria aquele que oferecesse as bases para que os cidadãos justos florescessem. Em um estado onde isso não acontecesse, abundaria a iniquidade. A Guerra Justa poderia ser a punição imposta por um estado a outro estado que tivesse um comportamento tão agressivo e abominável que violasse até mesmo as normas da justiça temporal. Assim Agostinho
[...] atinge a síntese entre os valores romanos e cristãos associados à guerra de uma forma que reconhece a guerra como um instrumento legítimo de política nacional que, ainda que inferior aos ideais perfeitos da cristandade, é um que os cristãos não podem evitar totalmente e com que eles devem de alguma forma aprender a lidar (Mattox, 2006, tradução nossa).
Agostinho considera justo que um estado vá à guerra quando é o melhor remédio possível para corrigir injustiças, ou por comando direto de Deus - no caso das guerras descritas no Antigo Testamento bíblico. Ele desaprova que sejam feitas guerras sem que o estado beligerante tenha sofrido algum tipo de injustiça. Guerras lutadas somente para mera expansão do estado não são nunca permitidas. Em termos de legitimidade, o estado e sua autoridade máxima são, para Agostinho, os únicos que tem o direito de declarar guerra; já que os governantes seriam autoridades instituídas por Deus. O dever dos homens seria obedecer a estes governantes; e caso estes declarassem uma guerra deveriam obedecer-lhes incondicionalmente (MATTOX, 2006).
A Guerra Justa seria para a restituição não somente material, mas também moral a uma nação lesada, reiterando a necessidade de uma causa justa em sua famosa definição:
Como regra, guerras justas são apenas aquelas que vingam ofensas, quando uma nação ou estado contra quem se está sendo feita guerra negligencia a punição de algum malfeito dos seus cidadãos ou devolver algo que foi tomado de forma errada (AGOSTINHO em "Resposta a Fausto o Maniqueu" 22.75, NPNF IV 2001, citado em Mattox, 2006, tradução nossa).
Embora esta citação seja a primeira nova definição de guerra justa desde Cícero, ela não engloba todas as justificativas dele. Agostinho considerava que alguns prejuízos não poderiam ser ressarcidos e portanto a guerra poderia servir como uma punição análoga à da lei privada - a punição moral. Desta forma ele excede a ideia de Cícero da guerra como apenas um meio de reestabelecimento do status quo ante bellum. Ainda assim, guerra só deveria ser feita por necessidade, como última alternativa; tendo sempre como objetivo final a paz - a paz terrena, que não é perfeita como a paz celestial, mas se trata de uma concordância entre os homens. Se a paz puder ser obtida sem confrontos armados, melhor ainda (MATTOX, 2006, p.60).
A necessidade seria o principal determinante na proporcionalidade defendida por Agostinho no jus in bello que é menos elaborado - se comparado a seu jus ad bellum - mas ele considera que para uma guerra ser considerada justa ela precisa não somente de uma causa justa, mas também de uma condução justa. Estabelecendo que numa guerra deve-se matar somente por necessidade e o mínimo necessário, Agostinho lançou as bases do princípio que o desenvolvimento futuro da doutrina de jus in bello: que o inimigo só fosse atacado por necessidade, não por desejo. Como consequência que as ofensivas fossem as mais objetivas possíveis; causando assim menos sofrimento. Aquele que deseja assassinar não é cuidadoso, mas aquele que deseja curar é preciso. Aquele que está do lado da verdade deve desejar corrigir o que há de errado; enquanto o iníquo deseja apenas a destruição (AGOSTINHO, Carta 189.6, NPNFI, 385, citada em Mattox, 2006).
Baseado nas suas ideias de distinção entre as ações coletivas do estado e as dos cidadãos individualmente, Agostinho estabelece o seu conceito de distinção no jus in bello. O poder de um rei, a pena de morte de um juiz, os capuzes dos executores e as armas dos soldados tem em comum serem deveres que podem ser justificativas legais e morais para tirar vidas (AGOSTINHO, Carta 156.6.16, citada em Mattox, 2006). Ele condena sem ressalvas a participação de clérigos e civis em guerras, mas inocenta completamente os soldados da violência que eles exercem durante elas, como forma de obediência devida ao estado - contanto que a ação cometida tenha sentido claro em relação ao objetivo final, que é a restauração da paz; mas ainda assim a misericórdia é preferível.
Assim como Cícero, Agostinho defende a honestidade e boa fé na condução da guerra e dos tratados, mas admite que o uso de estratégias como emboscadas pode ser justificado quando a guerra é justa. Manter a boa fé e manter a segurança do estado seria importante, mas não se pode considerar um simplesmente mais importante do que o outro. O objetivo final da guerra deve ser sempre a paz, sendo que a guerra em si seria o fruto de uma discordância entre estados a respeito das condições da paz. Para atingi-la os estados justos deveriam fazer tudo o que pudessem na guerra, mas utilizando-se do mínimo de violência possível.
Posteriormente, as noções de guerra justa de Agostinho foram apropriadas pela da guerra santa, especialmente quando Anselmo de Lucca publicou "Collectio Canonum", onde era justificada a coerção contra os inimigos da igreja católica. As cruzadas, diretamente autorizadas pelo Papa - e portanto representante de Deus na terra, sendo que para Agostinho guerras comandadas por Deus eram incontestavelmente justas - se tornaram a forma absoluta de guerra justa da igreja (GOMES, 2008). A influência de suas ideias não se resumiu somente a guerra santa, porém. Continuaram a exercer influência sobre diversos pensadores e juristas, entre eles o monge camaldulense Graciano em seu "Concordia Discordatium Canonum" - que reunia e tentava obter concordância entre diversos cânones anteriores como os de Anselmo - e outro célebre teólogo e filósofo medieval conhecido como Tomás de Aquino.




TOMÁS DE AQUINO (1225 - 1274 D.C.)


Tomás de Aquino foi um frei italiano da tradição escolástica considerado juntamente com Agostinho um dos principais filósofos e teólogos da história do cristianismo. Sua obra se caracterizou por tenta conciliar a filosofia aristotélica aos princípios cristãos. Em seu principal trabalho, a "Suma Teológica" (séc. XIII) ele reúne a tradição da lei natural com a ética bíblica (GOMES, 2008). Nela ele tratou da maior parte dos assuntos da teologia cristã; entre eles a questão da guerra, utilizando-se em grande parte da autoridade de Agostinho para tecer a sua teoria de Guerra Justa.
Ao tratar da guerra, Tomás de Aquino dividiu o assunto em quatro principais questões ou objeções que eram propostas em seu tempo e poderiam causar discórdia: se algum tipo de guerra era lícito, se a participação de clérigos nas guerras era lícita, se a utilização de emboscadas no esforço de guerra era lícito e se era lícito lutar em dias santos (Summa Theologica, p. 1813). A partir desses quatro pontos ele formulou o que seria considerado sua teoria a respeito da Guerra Justa.
Tomás responde a primeira e principal objeção de que a guerra é sempre um pecado dizendo que de fato todas as guerras são ilícitas, mas ainda assim não são um pecado em si, citando Agostinho a respeito das passagens bíblicas em que os conselhos dados a soldados não incluem abandonar suas funções militares e propondo três condições essenciais para que o jus ad bellum de uma guerra fosse considerado justo. A primeira, sendo seu principal critério (GOMES, 2008), é que o comando de guerra provenha da autoridade de um soberano. É da responsabilidade do soberano zelar pelos interesses coletivos, enquanto os privados podem ser resolvidos em tribunais, por exemplo. Ele cita Agostinho:
A ordem natural que conduz à paz entre os mortais demanda que o poder de declarar e deliberar a respeito da guerra deve estar nas mãos daqueles que detém a autoridade máxima (Agostinho, Contra Faust, xxii, 75, citado em Summa Theologica, p.1814, tradução nossa).
Em segundo lugar, é necessária uma causa justa, ou seja, que aqueles que serão atacados mereçam punição por conta de alguma injúria que cometeram. Uma guerra justa seria uma guerra que conserta malfeitos de seus integrantes, quando uma nação precisa ser punida por se recusar a consertá-los, ou devolver aquilo que foi tomado injustamente. Em terceiro lugar é necessário que os beligerantes ajam movidos por uma intenção certa, desejando conseguir o bem e evitar o mal. Tomás novamente retoma palavras de Agostinho quando este diz que as guerras justas são as que tem como objetivo a paz ao invés de ganância e crueldade. Ele então condena a má condução no jus in bello de uma guerra, ainda que esta tenha um jus ad bellum justo tendo sido, por exemplo, declarada por uma autoridade legítima e por uma causa justa. Ele cita Agostinho condenando a paixão pela violência, pela rebeldia e a ganância por poder; valorizando o menor uso da violência e a busca pela paz.
Tomás de Aquino compartilha da noção de Agostinho de que as ações individuais são diferentes das ações coletivas, e também na proibição da participação de clérigos nas guerras, a segunda objeção, considerando errado por conta do derramamento de sangue - que não condiz com o comportamento esperado dos sacerdotes. A respeito de emboscadas, a terceira objeção, ele considera que seu objetivo é iludir os homens; mas é diferente de enganá-los traindo promessas e acordos - o que é sempre errado. A emboscada se trata, porém, de meramente se reter informações e conhecimentos de um inimigo. Dessa forma não se trata propriamente de engano e não pode ser considerado injusto (Summa Theologica, p.1816).
A última objeção que Tomás de Aquino responde é a questão de que se é permitido ou não que se lute em dias santos. Para ele, assim como é permissível que um médico trate de seus pacientes em dias santos para zelar por sua saúde (ele cita o episódio descrito em João 7:23, quando Jesus cura um homem no sábado dos judeus), assim também uma nação pode lutar em dias santos para promover a saúde e segurança de seus cidadãos (Summa Theologica, p.1817). Os argumentos propostos por Tomás de Aquino se tornaram base do catecismo católico posterior e também referência para as teorias de guerras justa desenvolvidas por autores posteriores até os nossos dias.





CONCLUSÃO


No estudo dos primeiros pensadores da teoria da guerra justa no ocidente cristão fica evidente a sua importância para a forma com que as nações ocidentais realizaram guerras desde aqueles tempos até os dias atuais. A obra de Agostinho foi verdadeiramente marcante quando fez uma síntese dos valores romanos e cristãos numa época em que o cristianismo ascendia como religião hegemônica do império e o debate entre as ações do estado e os valores cristãos se intensificava. Sua obra monumental foi um marco do pensamento filosófico no ocidente, vindo a influenciar muitos pensadores futuros.
Os conceitos abordados pelos pensadores medievais são utilizados e debatidos até hoje. Após a Idade Média, a Europa cristã passou por um forte processo de secularização que também ocorreu com valores morais e éticos, e não foi diferente no caso da teoria da guerra justa. Desta forma, ainda hoje existem discussões do que seriam motivos justos ou não para que uma guerra seja iniciada e a forma com que ela seja conduzida, e os exemplos não faltam: a guerras do Golfo Pérsico, do Iraque, as rebeliões da chamada Primavera Árabe e o Estado Islâmico são bons exemplos de guerras que levantaram esse tipo de debate. Outros casos, como os do terrorismo, por exemplo, levantam discussões que de fato não haviam sido abordadas diretamente nos primórdios da teoria da guerra justa, mas que também podem ser analisadas sob essas perspectivas.
Ainda hoje os conceitos como discriminação entre civis e militares, autoridade legítima para declaração de guerra e necessidade ou não delas continua a ser fonte de extenso debate tanto entre leigos quanto entre acadêmicos. A criação da ONU, as suas funções e sua legitimidade expressam justamente essa questão da autoridade para se resolver conflitos e deliberar a respeito de uma investida militar nos dias de hoje e pode ser encarada como um desenvolvimento dessas ideias. A grande questão das armas de destruição em massa e de armamentos nucleares também levanta o debate a respeito da proporcionalidade da violência empregada em uma guerra, assim como as restrições no uso e na intenção da violência; questões que já se faziam presentes nas concepções de Agostinho e Tomás de Aquino. Com esses fatos em mente, podemos afirmar que as discussões sobre a guerra justa ainda estarão presentes por muito tempo nas universidades, congressos e no dia a dia das pessoas.
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Augustine the Christian philosopher achieves a full synthesis of the Roman and Christian values associated with war in a way that recognizes war as a legitimate instrument of national policy which, although inferior to the perfect ideals of Christianity, is one which Christians cannot altogether avoid and with which they must in some sense make their peace.
As a rule just wars are defined as those which avenge injuries, if some nation or state against whom one is waging war has neglected to punish a wrong committed by its citizens, or to return something that was wrongfully taken.
The natural order conductive to peace among mortals demands that the power to declare and counsel war should be in the hands of those who hold the supreme authority.

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