A Herança da Roça: o uso da terra e a dinâmica do parentesco em comunidades do médio Solimões

July 15, 2017 | Autor: D. Lima | Categoria: Peasant Studies, Land tenure, Amazonia, Anthropology of Kinship, Ownership
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A H E R A N Ç A DA RO Ç A : O USO DA TERR A E A DINÂMICA DO PARENTESCO EM COMUNIDADES DO M ÉDIO S OLIMÕES 1

Deborah de Magalhães Lima Departamento de Antropologia Universidade Federal do Pará Nos anos cinqüenta, Eduardo Galvão e Charles Wagley publicaram os dois trabalhos que iriam se tornar clássicos para a Antropologia da Amazônia. Tanto Santos e Visagens (1955) quanto Uma Comunidade Amazônica (1957) tratam da cultura de uma comunidade que os autores batizaram com o nome fictício de Itá. Quarenta anos depois já não há mais segredo sobre o nome verdadeiro da localidade: Itá foi o nome dado a Gurupá, um pequeno centro urbano localizado no Baixo Amazonas próximo à região do estuário. A conceituação de Itá, ou Gurupá, como sendo uma comunidade, no entanto, continua intrigante, talvez mais intrigante hoje do que na época em que seus estudos foram publicados, não só porque o estudo de “comunidades” era voga na Antropologia americana como porque sem se ter a referência do nome verdadeiro da localidade não se tinha base empírica para questionar a qualificação de comunidade conferida pelos autores. No emprego feito por Galvão e Wagley, a comunidade Itá compreendia o centro urbano de Gurupá e localidades vizinhas, as “freguesias” de seringueiros e os “sítios” de roceiros2. Por que reunir, com esta denominação, grupos sociais com ocupações e interesses tão distintos? Como o foco dos dois estudos era a cultura, a noção de comunidade provavelmente foi usada mais com a intenção de identificar uma formação cultural comum a uma população heterogênea do que em definir, com precisão, uma associação entre uma área geográfica e um grupo social que fosse homogêneo, ou que possuísse uma clara noção de pertencimento e identidade. Pode-se relevar, com esta contextualização, a ambigüidade do conceito de comunidade empregado nestes dois trabalhos.

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Trabalho apresentado no Seminário Homenagem a Eduardo Galvão – Belém, MPEG, setembro de 1997.

“Comunidade usamos aqui definindo a unidade territorial, socio-econômica e religiosa que tem por centro a cidade de Itá. “Vizinhanças”, “sítios” e “freguesias”, designam os diversos aglomerados que mantêm estreitas relações com esse centro, e se consideram parte integrante da comunidade de Itá. Nesse sentido, distingue-se a comunidade da divisão administrativa, o município de Itá, o qual abrange várias comunidades.” (Galvão, 1955: 12). 2

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Ironicamente, o termo comunidade é hoje largamente empregado em várias regiões da Amazônia para se referir a um tipo de localidade - aquelas em que existe uma organização política própria, com cargos de representação (presidente, vice-presidente, tesoureiro, etc.) e uma prática democrática de discussão de seus problemas. Esta organização foi desenvolvida a partir do trabalho de promoção social feito pelo Movimento de Educação de Base, ou MEB, uma organização ligada à ala progressista da Igreja Católica que atua na Amazônia desde o final da década de sessenta. Em conseqüência do trabalho do MEB (misto de catequese e extensão), em muitas regiões da Amazônia o termo comunidade se refere a uma localidade politicamente organizada, cuja população se identifica como membros desta organização. Se nos anos setenta ainda se distinguia com clareza comunidade de localidade, já não se pode hoje perceber nem mesmo na fala dos próprios moradores uma clara diferença entre a referência ao grupo social e o lugar onde ele reside. Não se referem mais à sua localidade como sítio ou vila como faziam anteriormente: os povoados são chamados de comunidades e seus moradores muitas vezes referidos como comunitários. Conseqüentemente, as pessoas da cidade também não fazem essa distinção. O resultado é que em regiões como ao longo da calha do Amazonas e do Solimões, onde grande número dos municípios possui apenas um centro urbano (a sede municipal), os povoados da área rural são referidos e oficialmente contabilizados como as comunidades do município. A leitura desses dois livros foi ponto de partida para meu trabalho de campo na região do Médio Solimões. Minha primeira visita ao lugar de nome Nogueira, localizado no lago de Tefé, revelou duas questões que mais tarde persegui na pesquisa, a maior parte realizada neste mesmo povoado. Tinha como proposta estudar “os caboclos”, que Galvão havia apresentado sem grandes questionamentos. Mas nem em Nogueira, nem nas outras localidades que conheci encontrei pessoas se auto-referindo como caboclos, embora em Tefé todos falassem sobre eles e se referissem a Nogueira como “uma comunidade de caboclos”. Como escreveu Darcy Ribeiro (1970): caboclos são os outros. Não qualquer outro amazônida, mas aquele que é, no sistema regional de classificação de pessoas, inferior ao orador. Este uso decorre da história do termo, inicialmente empregado para se referir a índios aldeados e posteriormente a mestiços de branco e índio. A conotação pejorativa do termo decorre da hierarquia entre brancos e índios ou mestiços, donde a rejeição a uma identificação com o conceito de caboclo, carregado de representações e estereótipos, ser esperada (Lima, 1992). Mas se aqueles a quem empregamos a categoria de classificação social caboclos não se consideram como tais, qual é a identidade do grupo? Ao longo da pesquisa, esta pergunta foi respondida de várias maneiras, em diferentes contextos e com diversas intenções, como seria de se esperar neste e em outros casos de grupos sociais que não apresentam uma nítida definição étnica ou uma vontade política de marcar sua distinção. A primeira resposta, no entanto, foi rápida e concisa. A praia de Nogueira é muito

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visitada por moradores de Tefé e na minha primeira visita ao lugar, como turista, fui interpelada por um morador que avisou, demandando respeito: - “dona, isso aqui é uma comunidade”. Nesta formulação, o termo comunidade pode significar ou o grupo ou o lugar que ele ocupa porque ambos possuem a mesma referência geográfica. Em outros momentos, a distinção entre grupo e lugar é mais clara, como se evidencia na sua noção de propriedade. Perguntados sobre a propriedade da terra responderam “é da comunidade”. Portanto, a propriedade é coletiva: o lugar de nome Nogueira pertence à comunidade, ao grupo social, que nele habita. Em Nogueira, este grupo é formado por aproximadamente 45 grupos domésticos que, logo se fica sabendo, “é tudo parente”. A associação entre parentelas e localidades é extensiva a toda a região. Como o Médio Solimões é uma região de ocupação antiga e, ao contrário de áreas de fronteira, não apresenta intensos conflitos de terra, a existência de grupos sociais constituídos a partir de um sistema de reprodução estável, centrado no parentesco, foi a segunda questão que se apresentou à pesquisa. Qual o processo de reprodução desses grupos, ou de outra forma, qual é a origem da densidade de “parentes” que tanto caracteriza a formação das localidades rurais da região? A identidade das comunidades, dos grupos sociais, está fortemente ligada ao parentesco - aos laços, assim definidos, que unem seus membros. Muitos autores seguem Stephen Nugent (1993) e classificam os “caboclos” como o campesinato histórico da Amazônia. Ambas as conceituações de Nogueira como uma comunidade cabocla ou uma comunidade camponesa reúnem: a autoidentificação de um grupo social - comunidade - e duas categorias sociais - cabocla e camponesa que pertencem a sistemas de classificação externos ao grupo, sendo a primeira categoria uma construção empírica e a segunda, acadêmica. Como em qualquer sistema de classificação, a definição das categorias sociais que compõem os sistemas de classificação regional e acadêmico se baseia na identificação de atributos comuns a partir dos quais a ordenação da realidade é feita. A análise dos atributos usados para definir as categorias sociais é uma ferramenta importante para compreender a formação social. Quanto à identidade do grupo ou da comunidade, ela reúne, entre outros aspectos, a religião, o sistema de produção econômica e o parentesco. Estes últimos são praticamente indissociáveis em formações sociais como as camponesas, nas quais a produção e a reprodução são processos imbricados (Sahlins, 1988). A análise que se segue focaliza a integração entre economia e parentesco para descrever tanto os componentes estruturais (como os sistemas de produção e de parentesco, que incluem a definição da propriedade da terra) quanto seus processos sociais (como o ciclo de desenvolvimento do grupo doméstico onde as formas de “herança” ou acesso à terra se processam) que são responsáveis pela formação de localidades rurais do Médio Solimões.

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A POSSE DA TERRA E O SISTEMA DE AGRICULTURA DE RODÍZIO

Como na maioria das localidades rurais da região, em Nogueira a posse da terra é baseada no direito de usufruto que os moradores e seus parentes detêm. Pessoas não aparentadas que queiram residir na localidade também podem obter este direito, contanto que solicitem e recebam, do grupo, permissão para moradia e uso da terra. O território que pertence a Nogueira é comunal mas as parcelas de terra cultivadas possuem “donos”: aqueles que derrubaram a mata para plantar roças ou os que lhes sucederam. A posse individual de parcelas de terra é garantida pelo uso contínuo ou seja, a posse se refere ao trabalho investido na terra, e não à terra em si. O trabalho que cria a posse se expressa principalmente na derrubada da mata natural que, de acordo com esta concepção, não tem dono - é “da natureza” - pois ninguém a criou pelo trabalho. O direito de uso exclusivo se mantém também nas capoeiras, as matas secundárias que sucedem as roças, que consistem em pousios para recuperação do solo e plantio futuro. Em outras palavras, o direito de estabelecer parcelas de terra exclusivas se baseia em uma relação social - entre os parentes, afins e vizinhos - e a posse efetiva é conferida pelo trabalho, o que faz com que o domínio se caracterize não como definitivo mas como temporário (Bloch, 1984). Esta concepção de posse está associada ao sistema de agricultura de rodízio para o plantio da mandioca. O direito de usufruto, e não a divisão da terra em lotes fixos e exclusivos, confere flexibilidade ao sistema de produção agrícola (Netting, 1993: 161). As roças e capoeiras de diferentes idades compõem uma paisagem agrícola retalhada, comum aos sistemas de agricultura de rodízio (shifting cultivation). Em Nogueira, há muita negociação e transferência de parcelas de terra para acomodar as diferentes necessidades e capacidades de cultivo que cada família apresenta, sem que haja alguém responsável pela distribuição de lotes. Como o trabalho confere a posse, teoricamente aqueles que podem e investem mais trabalho possuem maiores extensões de terra. Portanto, o sistema de produção agrícola e a definição da posse da terra refletem uma ideologia corporativista e igualitária, onde todos os membros do grupo (moradores, seus descendentes, e parentes próximos) têm o mesmo direito de acesso ao principal meio de produção. Essa igualdade de direitos no entanto não impede que haja diferenciação econômica entre os moradores, em termos de área de cultivo exclusiva e volume de produção, que não é questionada porque decorre de uma variação do esforço individual de trabalho. A posse por usufruto impede que a diferenciação se “congele” e dê origem a classes econômicas permanentes dentro do grupo. Nogueira é uma localidade situada em área livre do domínio de patrões que ocuparam grandes extensões de terra ao longo da terra firme do Solimões durante o século passado e início deste com vistas a extração da castanha principalmente. A “propriedade” dessas terras, de valor legal controverso como em várias outras regiões da Amazônia, foi constituída com base no sistema de aviamento que definia a relação entre o dono do castanhal, o “patrão”, e os trabalhadores, seus

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“fregueses”, a partir do estabelecimento de vínculos comerciais exclusivos entre eles. A definição da propriedade a partir de uma relação comercial, acompanhada geralmente da criação de uma dívida do freguês com o patrão, foi a forma de instaurar o domínio sobre o trabalho e consubstanciar a desigualdade social em uma região de terras abundantes. Esta definição de propriedade não é totalmente dissociada da noção de posse por usufruto pois representa de fato uma maneira de “driblar” esta concepção para assim assegurar a desigualdade econômica que, não podendo afirmarse ideologicamente nem no domínio dos castanhais, que eram nativos, nem a partir de formas explícitas de escravidão, então abolida, foi feita através do controle do acesso ao mercado. Os conflitos de terra na Amazônia ocorrem geralmente em áreas onde surge a propriedade privada, as grandes fazendas de gado e de agricultura extensiva, que ao impor o domínio absoluto do território envolvem a expulsão dos posseiros e a imposição do assalariamento como relação de trabalho. Uma tal transformação, extensiva e violenta, não ocorreu no Médio Solimões onde inclusive muitas propriedades tradicionais possuem atualmente “comunidades” em seus domínios sem que haja cobrança de renda da terra para agricultura, apenas a manutenção do controle da comercialização da produção extrativa. Em Nogueira também há castanheiras nativas, conservadas em meio aos roçados. A coleta dos ouriços, seguindo o mesmo direito consuetudinário, é feita pelo sistema chamado “do avança”, ou seja, por quem chegar primeiro. Os moradores não têm compromisso de vender a castanha a um patrão fixo, já que suas terras são livres. Mas até os anos cinqüenta, quando o comércio em Tefé era pequeno e o mercado para produtos não extrativistas era limitado, todos negociavam com patrões, que forneciam mercadorias em troca de produtos extrativos e mesmo de farinha, mas em pequena quantidade. Com o crescimento das cidades a partir da década de sessenta, cresceu a demanda de farinha de mandioca e sua produção aumentou sensivelmente, a ponto da mandioca ser atualmente o principal produto agrícola da região. Os moradores de Nogueira hoje dedicam-se quase exclusivamente ao plantio da mandioca e vendem sua produção diretamente em Tefé. Perguntados sobre o “tempo dos patrões” dizem sem saudade: “o patrão agora é nossa produção …”. A venda da farinha confere uma liberdade de comercialização que não ocorre com a madeira e o peixe, principais produtos do extrativismo da várzea, que precisam do aviamento de regatões (comerciantes itinerantes que substituíram a função de financiadores da produção extrativa feita pelos antigos patrões sem no entanto manter o mesmo nível de coerção e exclusividade de comercialização). A farinha é a principal fonte de carbohidratos da população amazonense, e, segundo Albuquerque (1969:164) a mandioca é uma “planta social”. Mais do que um elemento central da culinária regional, a farinha é um depositário de valores simbólicos para a população, tanto que não concebem “comer sem farinha”. As várias qualidades de farinha, os diferentes tipos de maniva (o nome dado à planta),

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e o número de outros produtos feitos da mandioca caracterizam a sua produção como uma verdadeira tradição cultural. O surgimento do mercado para a farinha representa, assim, uma situação especial para seus produtores que, como é o caso de outros grupos camponeses, têm que gerenciar o destino de um mesmo produto - para venda ou para alimentação - a partir de um quadro complexo de necessidades e opções de consumo oferecidas por um mercado cada vez mais acessível e dominante. Na terra firme, as roças são cultivadas em seqüências contínuas. A um determinado período do ano, os moradores podem ter duas ou três roças: uma roça “madura”, como chamam, que está sendo colhida (plantada no ano -2), uma roça “verde”, ainda em crescimento (plantada no ano -1), e uma roça que está sendo cultivada. O trabalho de abertura de roçados se inicia entre junho e agosto, com a “roçagem” do terreno, ou corte dos arbustos, seguida da “derruba” ou corte das árvores maiores, e após a “queima” e a “coivara”, é feito o plantio, que chamam de “plantação”. O plantio da mandioca é feito a partir de “talos”, cortes de ramos da maniva que são retirados da roça madura, ou, como ouvi dizer: “plantando a maniva desse ano para tirar no próximo”. Dependendo da idade da capoeira em que a roça foi plantada, mais de duas sessões de “capina” são necessárias para o desenvolvimento da mandioca. Na terra firme a colheita da mandioca para o fábrico de farinha é feita aos poucos e o ideal é que a roça dure mais de um ano. Mas quando são de tamanho pequeno, ou se uma colheita precoce ou intensa for praticada, as roças são esgotadas após 8 meses de colheita contínua. Se uma roça terminar antes da próxima ficar madura, uma roça “verde” pode ter que ser “mexida”, como se referem à primeira colheita, com até 7 ou 8 meses após o plantio. Isso é evitado porque a produtividade das roças novas é baixa, e pode levar a um ciclo vicioso de colheita de roças verdes que se esgotam antes da próxima ficar madura. Para sair desse ciclo, o plantio pode ser adiantado para o começo do verão ou um esforço extra pode ser feito para abrir uma roça maior porque o tamanho de uma roça geralmente depende da anterior. Ao contrário de outros aspectos da produção agrícola (como o tamanho da roça e o volume de produção), a primeira colheita é sempre lembrada ela revela a qualidade da mandioca e é a data de referência para administrar o volume de cada colheita em relação a uma estimativa da duração da roça. Muitas vezes se referem a essa data como “o aniversário da roça”, uma lembrança que contrasta com a dificuldade de memorizar outras datas, como a de nascimento, própria, ou de membros da família. Tão grande é a importância do cultivo da mandioca para o grupo, pois representa o trabalho (a produção) que garante sua sobrevivência e reprodução, que certa vez uma senhora me disse, em meio a uma conversa sobre a sucessão das gerações, que “quando a gente morre, deixa a semente, os filhos, herança da roça”. De fato, a conformidade entre os ciclos de sucessão de roças e de gerações destaca-se entre os aspectos mais característicos do desenvolvimento do grupo doméstico.

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O CICLO DE DESENVOLVIMENTO DOS GRUPOS DOMÉSTICOS E A OCUPAÇÃO DA TERRA

Os domicílios familiares, ou grupos domésticos, são formados em sua maioria por famílias simples, ou nucleares, que consistem de uma unidade conjugal e filhos. A tabela 1 apresenta a composição dos grupos domésticos de 3 localidades do Médio Solimões no final da década de oitenta: Viola e Vila Alencar, situadas na várzea, e Nogueira, na terra firme3. A composição familiar dos domicílios nas três localidades é semelhante, e revela características comuns do ciclo de desenvolvimento do grupo doméstico que independem do tipo de ambiente. Este desenvolvimento, que na década de cinqüenta foi caracterizado por Fortes (1958) segundo as premissas e tensões que definem suas diferentes fases - formação e crescimento, dispersão, e dissolução - envolve tanto aspectos demográficos da sucessão de gerações quanto o contexto social no qual se processa o sistema de reprodução do grupo. A composição ideal do grupo doméstico, socialmente definida, é a família simples, como se pode observar, entre outras demonstrações além da estatística de tipos de família, na arquitetura das casas mais comuns, que possuem uma sala e um quarto apenas, onde dormem juntos pais e filhos. Tabela 1 A composição dos grupos domésticos de Viola (1986), Vila Alencar (1988) e Nogueira (1988). Estrutura do Grupo Doméstico e especificação

Viola

Vila Alencar

Nogueira

Total

Família Simples (uma Unidade Familiar Conjugal) Família Extensa (uma UFC e um parente) Família Múltipla (duas UFCs relacionadas) Família Múltipla e Extensa (famílias complexas) Solitária (adulto solteiro) TOTAL Grupos Domésticos

8 (67%) 3 (25%) -

9 (69%) 2 (15%) -

1 (8%) -

1 (8%) 1 (8%) 13

30 (68%) 7 (16%) 5 (11%) 1 (2%) 2 (5%) 45

47 (67%) 12 (17%) 5 (7%) 3 (4%) 3 (4%) 70

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*Baseado em Laslett (1972).

Os grupos domésticos que formam as localidades rurais são típicas unidades camponeses de produção e consumo. A autoridade paterna sobre o trabalho dos filhos se mantém até o casamento destes. Depois que estabelecem uma união conjugal, os filhos passam a ter sua própria roça e a trabalhar nela seguindo os mesmos costumes de divisão sexual do trabalho: os homens roçam, 3A

terra firme é formada por terrenos mais altos, de origem terciária, enquanto que a várzea é constituída por terrenos anualmente alagáveis pelas águas do Solimões, de origem quaternária. No município de Tefé, as localidades rurais da terra firme são maiores e têm em média 36 domicílios; as localidades da várzea são menores, apresentando 16 domicílios em média (dados fornecidos pelo Instituto de Desenvolvimento do Amazonas, 1995). Esta diferença decorre das características ecológicas distintas dos dois ambientes, em especial ao fato das áreas propícias à habitação na várzea serem restritas às estreitas faixas de terras mais altas - as restingas.

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derrubam e queimam; na plantação os homens cavam e as mulheres “semeiam” os talos de maniva; as mulheres capinam, e homens e mulheres juntos arrancam a mandioca, põem de molho, ralam, espremem o tucupi, e torram a massa no forno para fazer a farinha. Cada domicílio possui sua área de trabalho, suas parcelas de terra que chamam de sítio, onde constróem suas “barracas”, ou casas de farinha, plantam suas árvores frutíferas e suas roças de mandioca. Também são os membros do grupo doméstico que pescam, caçam, compram alimentos com o dinheiro da venda da produção, e comem juntos - raramente em mesas, geralmente no chão, sobre uma esteira ou “tupé” - a refeição preparada pela mãe. A autonomia econômica de cada domicílio não significa que não haja trabalho coletivo, ao contrário, os “ajuris”, grupos de trabalho recrutados para os trabalhos agrícolas, são essenciais para garantir uma produção agrícola além da capacidade de trabalho definida apenas pela mão de obra familiar. São formados principalmente para ajudar na roçagem e no plantio das roças. Mas todos os trabalhos coletivos, seja o “ajuri” ou alguma outra forma de colaboração, expressam claramente a autonomia e individualidade de cada grupo doméstico - nenhum deles tem poder de interferir, explorar ou usufruir incondicionalmente do trabalho de outro. A reciprocidade do sistema de ajuri é calculada de forma mercantil: o convidado a participar do ajuri de outro expressa sua certeza de que vai ser retribuído dizendo que “vai ganhando” enquanto que o dono da roça a ser trabalhada, que fez o convite, “fica devendo” a cada um dos participantes. O respeito e a reputação de um casal chefe de família em muito se deve a seu trabalho e capacidade de prover por si só as necessidades de consumo do grupo doméstico que chefiam. Muito raramente os casais estabelecem residência própria logo que se unem. Isso se deve ao fato de não terem adquirido antes autonomia sobre seu trabalho; poucos solteiros possuem roças individuais, e mesmo os que possuem não usufruem isoladamente do seu trabalho pois a maior parte de sua produção de farinha é consumida pela família. Por esse motivo, casais recém-formados residem com os pais de um dos cônjuges até adquirirem recursos próprios para se manter independentemente e estabelecer residência própria. Os casos de famílias múltiplas e complexas, apresentados na tabela 1, representam essas situações em que casais novos residem com os pais. A residência conjunta não é longa, dura em média um ou dois anos, sendo precipitada, entre outros fatores, pelo nascimento de filhos do casal jovem. A porcentagem de grupos domésticos com mais de uma unidade conjugal é relativamente baixa, 11% dos casos, refletindo assim a relativa “rapidez” com que casais novos estabelecem seus domicílios próprios, se considerarmos que têm apenas esse espaço de tempo para construir um patrimônio doméstico próprio, que embora simples, requer esforço e empenho do jovem casal. Os casos de famílias extensas se referem à inclusão de parentes de gerações ascendentes - geralmente a mãe ou pai de um dos cônjuges que enviuvou - ou descendentes, no único caso, um neto, filho de uma união temporária deixado com os avós depois

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que a mãe formou uma união mais duradoura e estabeleceu residência própria. Os três casos de solitários são homens adultos que moravam com os pais até a morte destes. São comuns os casos de adultos solteiros que constituem “casais de trabalho” com pais viúvos do sexo oposto. A “solidão” em que se encontram não representa uma preferência ou intenção de residirem sós; é antes uma decorrência de terem perdido aqueles com quem residiam. Se por um lado os casais constituem domicílios próprios em relativamente pouco tempo, a constituição de um patrimônio agrícola não apresenta a mesma agilidade e os casais permanecem ligados aos pais por mais tempo. Da mesma forma que a constituição de um casal dá início a um ciclo de desenvolvimento do grupo doméstico, assim também ocorre com o patrimônio agrícola: as capoeiras à disposição para o plantio, a casa de farinha e os instrumentos de trabalho agrícola vão sendo acumulados pelo casal, depois vão sendo compartilhados e divididos com os filhos casados até que os pais deixem de exercer seu papel de liderança no trabalho agrícola e sejam sucedidos pelos filhos. O número de capoeiras próprias, disponíveis para o plantio em rodízio e que permitem um intervalo de tempo ideal de pousio, é construído lentamente porque depende do usufruto. As roças plantadas pelo casal em diferentes parcelas de terra, ao serem postas para descanso, vão formando o patrimônio de capoeiras que eles dispõem para seu uso particular. Embora as primeiras roças sejam geralmente plantadas no sítio dos pais do cônjuge na casa de quem o jovem casal residiu, raramente estes podem manter uma cessão contínua do seu patrimônio de capoeiras. Para que o casal jovem possa atender às suas necessidades de área de plantio, que crescem com o aumento da família, é preciso que busquem outras opções de cessão. O sistema de posse por usufruto permite acomodar a necessidade de terra que varia com o tempo e oferece opções além da sucessão ou partilha do sítio parental. Observei sete tipos de ocupação em Nogueira. Aos sítios cultivados por pais e um ou mais casais de filhos chamei de “partilha parental”. Em alguns casos encontrei somente os irmãos dividindo o sítio parental, e a estes chamei de “partilha fraternal”. Aos casos em que um filho(a) sucede sozinho(a) a ocupação parental chamei simplesmente de “sucessão”; estes seriam os casos que mais se aproximariam de uma “herança” não fossem as particularidades desta sucessão, em especial, a necessidade do uso ser contínuo. Estes três são casos de transferência de posses entre parentes próximos. Pressão demográfica (ou muitas famílias para uma mesma área) e esgotamento do solo são alguns fatores que compelem os casais a buscar áreas fora do círculo imediato de parentes. Os casos que chamei de “apossamento” se referem à ocupação de áreas abandonadas por algum morador de Nogueira sem que houvesse um pedido formal para a transferência da posse. Já a “doação” se refere à concessão de uma área em favor de um morador específico. Embora sejam poucas as matas livres

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em Nogueira, ainda assim há casos de ocupação dessas áreas, que chamei de “sítio novo”. Por fim, há casais que compartilham o sítio de outros moradores que não são parentes próximos, dividindo capoeiras e a barraca com estes; a este tipo de ocupação chamei de “compartilhamento” simples. A tabela 2 mostra a freqüência de cada tipo de ocupação, referente às áreas de plantio de 51 casais de Nogueira. Mostra também o sexo do cônjuge através de quem o casal exerceu seu direito à requisição ou sucessão da área. A ocupação de sítios que não envolve algum tipo de transferência (apossamento e sítio novo) se baseia no direito inquestionável de cultivar áreas de terra da comunidade que um dos cônjuges ou o casal possui, devido ao fato de “serem do lugar”. Tabela 2 Tipo de ocupação de 51 sítios de cultivo em Nogueira e o cônjuge responsável pela requisição. Tipo de ocupação

Freqüência Absoluta Relativa

Marido

Cônjuge requerente Mulher Os Dois

Partilha parental Sucessão Apossamento Sítio novo Compartilhamento Doação Partilha fraternal

13 11 7 7 5 4 4

25% 21% 14% 14% 10% 8% 8%

6 8 1 4 3 3 4

7 3 3 1 -

3 3 2 -

Total

51

100%

29 (57%)

14 (27%)

8 (16%)

As posses ocupadas por partilha parental, sucessão e partilha fraternal são originárias de uma posse parental e constituem 54% do total das ocupações. Embora se assemelhem a heranças porque ocorre uma transferência entre as gerações, a temporalidade destas posses e seu caráter indefinido apontam para a pouca extensão das transferências verticais ou lineares tão comuns em sociedades camponesas (Segalen, 1986), apesar do fato de casais novos dependerem inicialmente desse tipo de ocupação. As categorias de ocupação “apossamento”, “sítio novo”, compartilhamento” e “doação” foram estabelecidas em parcelas não parentais e constituem 46% da amostra. Com relação ao sexo do cônjuge que fez o requerimento, os dados mostram que a maioria das posses foram adquiridas através dos maridos (57%). Somente 27% das aquisições se deram através das esposas e 16% foram baseadas em relações comuns aos dois cônjuges. Observa-se portanto uma tendência à sucessão patrifilial das posses, não definida por regulamentos mas sim circunstancial: desde cedo meninos participam mais efetivamente das atividades agrícolas que meninas e se tornam mais apegados ao sítio da família. Além disso, as meninas são mais livres para morar “em casa de família” e estudar na cidade que os meninos, cujo trabalho na roça, especialmente na roçagem, é mais valorizado. Da mesma forma que a estatística sobre os tipos de famílias é um retrato instantâneo de um processo dinâmico pelo qual passa o grupo doméstico, assim também ocorre com a estatística dos tipos de

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ocupação das posses. A dinâmica da ocupação é no entanto mais diversa, e as freqüências encontradas não permitem inferir um padrão de desenvolvimento comum a todos os casos, mas sim tendências, como as mencionadas acima. Os percursos do processo de formação do patrimônio agrícola não são os mesmos, ao contrário, cada casal tem um percurso particular. A descrição da história de ocupação de um casal de Nogueira, Raimundo e Teresa Fogaça, e seus parentes próximos, apresentada em anexo, ilustra como as escolhas e opções são diversas. Neste exemplo, o casal primeiro ocupou capoeiras no sítio da avó materna da esposa, que a criou. Este sítio foi do pai da avó, que ela sucedeu, e na ocasião era partilhado por dois dos 8 tios da esposa. Com a morte da avó, estes dois irmãos estavam dividindo as capoeiras do sítio da mãe deles. Depois desta primeira ocupação, o casal se mudou para o sítio do pai da esposa, que havia sucedido a posse do avô paterno da esposa. Lá partilhavam capoeiras com o pai e um irmão da esposa. A filha mais velha do casal também compartilhou com eles capoeiras deste sítio por um tempo e depois se mudou para um sítio doado a seu marido por sua cunhada. Na ocasião, além do pai e um irmão da esposa, a irmã do marido também iria compartilhar o mesmo sítio que o casal ocupava. Este exemplo, apresentado com mais detalhes em anexo, mostra que um mesmo casal realiza diversos tipos de ocupação não só porque as necessidades, suas e de parentes próximos, variam com o tempo como porque as opções disponíveis também são variáveis, circunstanciais mesmo.

DESEMPENHO ECONÔMICO E DIFERENCIAÇÃO DEMOGRÁFICA

Como a área de capoeiras à disposição do casal influi no tamanho da roça a ser plantada, e portanto no volume da produção, às vezes o grupo doméstico não consegue atender as suas necessidades de consumo de farinha porque não possui uma área de plantio suficiente naquele momento. De fato, a única explicação que recebi para a questão de como determinavam o tamanho da roça e de sua produção de farinha foi que dependia da área de capoeira “madura” disponível. Esta situação de Nogueira - ausência de propriedades privadas e posses construídas a partir do usufruto - é adequada para discutir a relação entre volume de produção e a composição do grupo doméstico, em termos do balanço entre sua necessidade de consumo e sua capacidade de trabalho, desenvolvida por A. V. Chayanov (1966). Mais do que um modelo a ser testado, as proposições de Chayanov oferecem ferramentas para analisar a importância da variável demográfica na determinação do volume da produção do grupo doméstico, ou em outras palavras, as implicações do desenvolvimento do grupo doméstico no desempenho econômico das unidades de produção familiares. São poucos os casos em que o modelo chayanoviano é aplicável, e, nestes, é necessária a presença de requisitos básicos como a existência de

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terras abundantes para acomodar a variação na demanda de consumo do grupo doméstico (contexto que Chayanov, 1966: 68, chamou de “áreas de repartição comunais”), ausência de trabalho assalariado e relativa independência do mercado (Netting, 1993: 298; 310). Nenhum destes fatores é completamente observado em Nogueira - embora exista terra em abundância em direção ao interior da terra firme, a qualificação de uma boa terra para cultivo e habitação é a proximidade a vias fluviais ou, em outras palavras, acesso ao mercado. Mas mesmo sendo a terra um fator limitante, a maneira como a posse da terra é definida, pelo trabalho, implica que a composição do grupo doméstico influencia o volume da produção, como pode ser observado na tabela 3. Esta tabela apresenta os valores médios das áreas de roça de 31 chefes de domicílio, ordenados segundo sua faixa etária, tomando a idade do chefe como referência para a idade do grupo doméstico (dados coletados em 1986). Observa-se que o valor médio das áreas de roça segue uma distribuição normal, onde os chefes na faixa de 40 anos apresentam as maiores roças, enquanto que os jovens e os mais velhos têm roças menores. Sendo que os patrimônios agrícolas são construídos ao longo da vida familiar, é esperado que os indivíduos de meia-idade tenham mais capoeiras à sua disposição, dado o maior tempo que eles tiveram para acumular capoeiras comparados a casais jovens, sendo também provável que casais mais velhos já tenham começado a entregar capoeiras a seus descendentes casados. Tabela 3. Valores médios de áreas de roça e índices de C/P segundo a faixa de idade do chefe do domicílio. Faixa etária do chefe masculino

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Área média de roça (ha)

Índice médio C/P

23 - 27 28 - 32 33 - 37 38 - 42 43 - 47 48 - 52 53 - 57 58 - +

4 5 3 2 5 6 3 3

0,64 0,72 0,71 1,16 1,03 0,85 0,58 0,53

1,25 1,43 1,15 1,51 1,67 1,29 1,25 1,10

Assim ordenados, os valores de área cultivada revelam uma tendência da produção doméstica acompanhar as necessidades de consumo do grupo doméstico, variáveis segundo sua idade, e, em termos gerais, que a diferenciação econômica entre os moradores de Nogueira é influenciada por fatores demográficos. Sob esta ótica, a proposição de Chayanov (1966: 78-84) de que o volume de produção é determinado pelo ponto de equilíbrio ou a interseção entre as curvas de utilidade marginal de bens e a desutilidade marginal do trabalho parece ser confirmada quando tomamos os mesmos índices que propôs para medir a contribuição relativa de membros da família para o consumo e a produção do grupo doméstico - taxas de consumidores, produtores, e

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consumidores/produtores (Chayanov 1966: 58)4. Tomando os valores médios de área cultivada por classes de idade apresentados, observa-se na tabela acima uma correlação estatisticamente muito significante (rs=0.87; n=33; p
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