A Hermenêutica Ontológica na interpretação do repertório históricamente informado

July 25, 2017 | Autor: Gustavo Medina | Categoria: Música, Hermenéutica, Teoria Da Interpretação
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Comunicação para o III Simpósio Internacional de Música Iberoamericana (Lisboa out. 2014) Titulo: A Hermenêutica ontológica na interpretação do repertório historicamente informado Prof. Gustavo Medina U.E.A.

Resumem O ressurgimento da hermenêutica como abordagem interpretativa aplicada a contextos estruturais cada vez mais amplos constitui um fenômeno de data recente se considerarmos sua origem na Grécia clássica. Este surgimento, diretamente associado a uma visão estruturalista que identifica a linguagem como meio fundamental que possibilita todo processo de compreensão, impulsionou sua expansão desde um procedimento usado para a exegese textual até a proposta de H.G. Gadamer que a eleva até o pensamento filosófico como uma forma de desvendar

as perguntas

fundamentais da existência humana. Neste sentido, a Arte sempre foi um terreno fértil para a reflexão filosófica e a discussão sobre a natureza e a forma em que esta ocorre ou deve acontecer. De uma forma muito especial, dentro da variedade crescente de manifestações artísticas, aquelas que dependem da execução ou performance, ganham um lugar de destaque por conta da sua ligação

especial

com

a

temporalidade,

tema

recorrente

na

reflexão

gadameriana assim como sua ligação com conceitos de visão de mundo, historicidade, ser-no-mundo e tradição. Desta forma, a convergência entre a interpretação musical propriamente dita e sua contextualização na história, nos coloca em uma perspectiva privilegiada para refletir sobre o assunto, utilizando como princípio a abordagem gadameriana para elucidar o processo de compreensão

que

deve

consequentemente mais rica.

se

abrir

a

uma

perspectiva

ontológica

e

Title: Ontological Hermeneutics in the interpretation of historically referenced repertoire

Abstract The rebirth of hermeneutics as an approach in the interpretation of very wide structural contexts is an historical recent phenomenon when is considered its origin in classical Greece. This emergence directly associated with a structuralist vision that identify the language as the main media to make the comprehension process possible, boosted its expansion for the textual exegesis procedure until the proposal of H.G. Gadamer that heightens the philosophical thought as the way to solve the fundamental questions of human existence. In this sense, the Arts has always been a breeding ground for philosophical reflection and discussion on the nature and the form in which this occurs or must happen. A very special way, within the growing variety of artistic events, those that depends on the execution or performance, winning a prominent place on account of their special bond with temporality, recurrent theme in gadamerian reflection as well as his connection to concepts of worldview, historicity, be-in-world and tradition. In this way, the convergence between the musical interpretation itself and its context in history, put us in a privileged perspective to reflect on this object, using as a principal the gadamerian approach to elucidate the process of understanding that should open up to the ontological perspective and consequently richer.

“A hermenêutica não é uma doutrina das ciências do espírito, mas a tentativa de entender o que são na verdade as ciências do espírito, para além de sua autoconsciência metodológica e o que as liga ao conjunto de nossa experiência de mundo” (GADAMER, 1997, p. 30)

Justamente, H.G. Gadamer, acrescenta que a partir da reflexão realizada acima da experiência da arte e a tradição histórica poderemos tornar visível o fenômeno hermenêutico em toda sua plenitude ao reconhecer nela uma experiência de verdade que dispensa justificativas filosóficas por ser ela mesma um modo de filosofar. Com estas palavras iniciais temos um marco referencial propício para refletir a convergência de dois conceitos basilares que fundamentam o processo interpretativo da música histórica como arte performática e suas raízes fincadas na tradição. A escolha gadameriana não procura restringir a reflexão hermenêutica nestes dois âmbitos senão colocar em evidência duas regiões paradigmáticas nas quais nos deparamos com fenômenos que são de natureza hermenêutica por excelência. Qualquer tipo de relação com uma obra de arte seja esta como espectador ou mesmo como executante implica de forma necessária um processo de interpretação através do qual procuramos determinar o que a obra tem para nos dizer. Porém, o entendimento documental da obra de arte e sua marca de legado histórico derivado do fato de ter sido escrita ou criada a certa distância temporal da nossa atualidade, a coloca em um horizonte histórico em que sua interpretação busca acessar uma verdade que se encontra na fusão de horizontes entre a origem da obra e seu intérprete. Desta forma, se não efetivarmos esta fusão, nos encontraremos presos em um dilema estrutural, ou tentamos colocarmos no horizonte de realização do que deve ser interpretado, e cuja distância temporal impede que seja alcançado plenamente sem poder ainda jamais livrar-nos daquele que carregamos conosco, ou desistimos rendendo-nos ao nosso próprio horizonte falsificando de alguma forma o que deve ser interpretado. A superação deste dilema é o que torna visível o fenômeno hermenêutico. Assim surgem imediatamente dois questionamentos, o primeiro deles referente ao entendimento documental que é precisamente o que coloca à obra em posição de ser interpretada e fundamenta o mencionado dilema estrutural e o segundo se existe realmente uma única verdade a ser desvendada pela interpretação de forma tal que qualquer tentativa deverá

coincidir com esta para poder ser considerada válida. Então, em que consiste o entendimento documental da obra artística? É a “leitura” da obra o caminho para sua interpretação? E se a resposta é positiva, em que consiste esta “textualidade” da obra de arte? Onde encontramos seu sentido e seu significado? Em sintonia com a proposta pós-estruturalista de Jaques Derrida em sua crítica ao logocentrismo (DERRIDA, 2011, p. 8), a necessidade de compreender o mundo e sua dependência dificilmente percebida da linguagem como significante do significante, transbordam o sentido da linguagem escrita ao transforma-la em condição da episteme, possibilitando assim a origem da história, da ciência e da filosofia ao servir de fundamento estrutural de todo sentido. Desta forma, o logos baseado na linguagem, precede todo processo de entendimento, comunicação, relação, sentido, expressão, significação ou pensamento ao fornecer o aparato necessário para a construção da nossa visão de mundo desde uma perspectiva logocêntrica segundo o projeto iluminista de autonomia radical da razão. Esta contingência histórica, que não podemos admirar ou lamentar neste momento, coloca o conhecimento e a verdade como um dado que deve ser descoberto satisfazendo os ideais metodológicos da ciência moderna como única forma de considerara-los válidos. Por isto, na tentativa de compreender o mundo, recorremos à textualidade atribuída a todo o que fazemos e nosso esforço interpretativo ultrapassa longamente a linguagem escrita para abranger universalmente a produção humana. Desta forma, se a ciência procura a verdade como um dado, a hermenêutica a busca como experiência que escapa ao controle do cientificismo e que em uma perspectiva mais ampla se entrelaça com a compreensão mesma servindo como fonte de sentido a nossa visão de mundo. Desde este ponto de vista, entende-se perfeitamente que no caso de um texto, sua compreensão deve passar por uma interpretação da estrutura escrita possibilitando o entendimento de significados estratificados, primeiramente nos signos alfabéticos e seguidamente em sílabas, palavras, frases e finalmente no discurso como tal. Porém na interpretação desta estrutura encontra-se uma dicotomia definida claramente por Ricoeur (RICOEUR, 2011, p. 13) e que reside fundamentalmente na diferença temporal existente entre a mensagem e

o código. A mensagem é um acontecimento temporal atrelado a uma dimensão diacrônica e o código surge de uma dimensão sincrônica em uma sequencia de acontecimentos em forma de sistema. Em outras palavras, a mensagem é intentada por alguém que quer comunicar alguma coisa com a compreensão que este indivíduo possui do sentido do seu discurso e determinou a escolha de palavras específicas e o código é um sistema linguístico anônimo e inconsciente que serve de repositório lexical ao serviço de um coletivo. Esta dicotomia temporal por si só já justificaria um esforço hermenêutico para a interpretação textual. Por isto, na inflação do sentido do conceito de linguagem, como expressa Derrida, encontra-se o entendimento que acolhemos sobre a arte e de maneira particular sobre a música como linguagem, não sem causar intermináveis discussões sobre a capacidade semântica da mesma e seu poder de transmitir sentidos no âmbito metafórico e emocional. Este pressuposto permitirá direcionar o debate sobre a representação, imitação, prefiguração e expressão de relativa facilidade para serem identificados em outras manifestações artísticas como a pintura, a escultura e a literatura, porém de grande dificuldade quando se trata da música, especialmente em aquela carente de palavras o de dança que a auxiliem nesta tarefa. Esta analogia que se refere à música como linguagem e que nos obriga a ler a obra para além das notas em virtude de alcançar seu entendimento, ver-se-á reforçada pelo empréstimo de significados conceituais que servem para designar elementos e critérios musicais a fim de permitir sua manipulação no espaço reflexivo em busca da interpretação e consequentemente sua compreensão. Porém, cabe destacar que, embora se fale de significados estratificados na linguagem, o significado não se constrói pela somatória de sentidos nos diferentes estratos, isto é, as palavras como entidades linguísticas possuem significados de forma tal em que há uma identificação com o significante funcionando semióticamente como signo, já a frase é estruturada com palavras e ganha um significado semântico distinto à simples junção de significados entre as palavras. Assim podemos falar que, embora seja um lugar comum entender a música como a arte de combinar os sons, se não fossem estruturados de acordo com um critério específico não seria possível a formação de uma frase musical. Isto é particularmente certo especificamente para o período da prática comum como a chama Walter Piston (PISTON, 1998, p. 4) conhecida também como música

tonal que demarca de maneira aproximada o repertório criado entre 1700 e 1900. Esta estratificação de significados opera também na música, mas a interpretação acontece em instâncias distintas, a saber, no compositor, no executante, no ouvinte e na crítica. A partir desta perspectiva temos alguns postulados que orientam a hermenêutica musical. Que a interpretação musical não pode ser realizada em fragmentos atomizados da estrutura senão partindo da sua totalidade, decifrando o significado do discurso musical como é chamado por Harnoncourt (HARNONCOURT, 1988). O fato de a obra musical ser interpretável e compreensível faz com que possamos usar a mediação linguística para verbalizar significados da mesma, porém, este meio não exprime completamente a experiência vivenciada. Ainda que a música possa obter sentidos de alguma referência externa, não precisa delas para poder significar alguma coisa e viabilizar a compreensão. Na direção contrária do entendimento cientificista cuja pretensão de objetividade implica a suspensão de pressupostos com o intuito de legitimar o conhecimento ao zerar nossas crenças, a experiência musical reclama uma interação plena do indivíduo com toda sua vivência para poder ativar por assim dizer, sua consciência estética, sua subjetividade não é obstáculo para sua compreensão senão a condição fundamental para a interpretação. Se isto pudesse ocorrer, se fossemos realmente capazes de desfazermos de toda vivência e conhecimento prévio ao iniciar a interpretação de uma obra desconhecida, estaríamos perante a dissolução de qualquer expectativa de sentido que oriente o que devemos interpretar. Assim, se já não lêssemos um texto guiados por uma expectativa de sentido retirado do seu próprio horizonte e que se projeta em forma de esboço de totalidade, não teríamos como orientar o significado das palavras com vistas a esse sentido. Da mesma forma, ao interessarmos por um tema em particular, o assunto sobre o qual refletimos nos fornece imediatamente o horizonte no interior do qual precisamos movimentar-nos incessantemente. Neste último repousam todas as experiências e vivências individuais relacionadas de maneiras diversas com o tema em si, assim, neste encontro ativo em que nos confrontamos com o esboço de totalidade da obra, se abre o espaço em que se produz a fusão de horizontes ativando o círculo hermenêutico da compreensão descrito por Heidegger (HEIDEGGER, 1926). Por isto, nenhuma interpretação se movimenta para além do espaço aberto

previamente pela compreensão. Este espaço possui características específicas ao apontar para uma totalidade que determina de maneira integral todas as possibilidades interpretativas subsequentes. A expectativa de sentido funciona através da compreensão em forma de projeto de horizonte globalizante, mostrando no seu interior todas as coisas possíveis ou impossíveis a ser confrontadas, enquanto outras, nem são consideradas segundo esta chave. A interpretação atualiza aquilo que a compreensão revela como possível incorporando-o ao horizonte compreensivo e ao mesmo tempo confrontando-o com as estruturas prévias de preconceitos já presentes no individuo. Desta forma o acontecimento hermenêutico é uma revisão constante entre a expectativa de sentido e o esboço de totalidade inicialmente projetado. Por isto, a interpretação da obra musical se produz em uma dinâmica de diálogo em condições em que a linguagem perde seu caráter instrumental de comunicação e

se

transforma

verdadeiramente

em

linguagem,

em

construtor

de

experiências. Este evento de caráter linguístico evidencia o quanto a linguagem está ligada à condição ontológica do ser-no-mundo. A linguagem não é um mundo próprio e nem sequer é o mundo, mas, porque estamos no mundo e somos

afetados

por

situações,

porque

nos

orientamos

mediante

a

compreensão em tais situações, temos algo a dizer, temos a experiência para trazer à linguagem. É por isto que quando estamos perante uma partitura, uma interpretação musical, muito além de seu conteúdo referencial, do lirismo ou de sua capacidade para movimentar as emoções, estamos diante uma expressão de civilidade, uma maneira de ver o mundo e posicionar-se na vida, um modo de pensar e sentir, toda uma espiritualidade pessoal e coletiva com sua infinita riqueza e variedade de matizes. Desta forma, a obra musical se conecta ao mundo em uma espécie de intercessão semântica em que se apropria de significados

provenientes

de

outros

âmbitos,

transformando-os

e

retransmitindo-os de volta em contextos diversos. Esta capacidade da música de processar significados é fundamental para compreender a experiência musical. Por isto, a interpretação musical não consiste em descobrir um significado como um dado ou na invenção de um novo, senão, de reconstruir aquele disperso entre prospectivas, histórias e subjetividades diferentes. A obra musical possui um sentido e uma determinação para além dela que precisamos reconstruir. A estética tradicional entende que a obra contém alguma intenção

específica do autor em alguma realidade metafórica que deve ser desvendada intelectivamente na interpretação, mas é justamente no momento em que ultrapassamos este pressuposto que se encontra o horizonte próprio de mostração, revelando-se e dizendo o que efetivamente tem para dizer e aqui sim, representar. O fato de inicialmente não representar não significa de modo algum não ter nada a dizer. Este gesto fenomenológico coloca antes da representação [Vorstellung] a ideia de apresentação [Darstellung]. Ao adentrarmos na lógica do que a obra apresenta poderá encontrar-se seu sentido sem a imposição de parte do intérprete ou a determinação total prévia daquilo que se procura interpretar em um processo monológico de doutrinamento. “A estética deve subordinar-se à hermenêutica” diz Gadamer (GADAMER, 1997, p. 231). Este processo interpretativo não estaria completo sem esclarecer o papel relevante da tradição. Todos vivem imersos na tradição. Esse cúmulo de conhecimentos e experiências que através de vivências e educação definem constantemente a visão de mundo de cada um está ligado ao conceito de autoridade, a qual não pode ser entendida como aquela que se obtém por designação e que se aplica pelo exercício do poder, senão aquela obtida pelo conhecimento de uma pessoa que está acima dos outros em juízo e visão e por isto reconhecida. O seguimento de suas orientações ocorre quando o subordinado abdica da sua posição ao reconhecer que o juízo da autoridade o precede em valor e o torna consciente de seus próprios limites, por isto, não é uma obediência cega senão o reconhecimento da autoridade como portadora legitima da tradição. Assim suas orientações são as que se esperam de um educador de quem não virão irracionalidades senão princípios que devem ser aprendidos e assimilados. Este canal de transmissão de conhecimento alcança uma dimensão única no espaço cultural iberoamericano. Muito antes da globalização das comunicações e distanciados da ideia

preconceituosa do descobrimento, nunca antes na história da

humanidade houve uma fusão de horizontes de mundos como o acontecido em nosso marco cultural. Assim, a música histórica ibero-americana alimenta-se de um intercambio em que mais uma vez a língua comum serve de mediadora para expressar esta comunhão. O repertório europeu veio até nós e se fez nosso ao nutrir-se da visão de mundo nesta beira mar, significando uma nova identidade e dando a luz novos autores que por sua vez, fizeram o caminho de

retorno trazendo ares de renovação que fundamentam o conceito do iberoamericano. Por isto, a presença nos palcos de repertórios e intérpretes em permanente reedição e o diálogo incessante revigora a tarefa de construção permanente da nossa identidade que deve fundamentar-se no reconhecimento de uma estética compartilhada. Nos dias de hoje, em que a música atual é predominantemente música histórica, a formação do intérprete deve ampliar a visão da execução muito além da precisão na execução tantas vezes sobrevalorizada. Resta muito do projeto iluminista e positivista que, como expressa Nikolaus Harnoncourt (HARNONCOURT, 1988, p. 31), infantiliza a uma maioria quando acreditam que a beleza e o sentimento são os únicos componentes aos que se reduzem a percepção e compreensão musicais, em um mundo em que tudo o que se ouve desde o nascimento o forma musicalmente e define sua visão de mundo a reflexão sobre como estamos interpretando deve guiar nossa tarefa de construção do futuro musical.

Bibliografia DERRIDA, J. (2011). Gramatologia. São Paulo, Brasil: Perspectiva. GADAMER, H. G. (1997). Verdade e Método (11a ed., Vol. I e II). (F. P. Meurer, Trad.) Petrópolis, Petrópolis: Editora Vozes. HARNONCOURT, N. (1988). O Discurso dos Sons. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. HEIDEGGER, M. (1926). Ser y Tempo (Edição eletrônica ed.). (J. E. Rivera, Trad.) Escola de Filosofía ARCIS. PISTON, W. (1998). Armonía. (M. DeVoto, Trad.) Cooper City: SpanPress. RICOEUR, P. (2011). Teoria da Interpretação: o discurso e o excesso de significação. (A. Morão, Trad.) Lisboa: Edições 70.

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