A Heterossexualidade, os Evangélicos e o Pós-Tradicional: notas sobre desconstruções e ressignificações sexo-gênero (capítulo de livro)

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A HETEROSSEXUALIDADE, OS EVANGÉLICOS E O PÓS-TRADICIONAL: Notas sobre desconstruções e ressignificações sexo-gênero (Capítulo contido no livro: Estudos feministas e religião: tendências e debates /Organização de Sandra Duarte de Souza, Naira Pinheiro dos Santos - 1.ed. - Curitiba: Editora Prismas, São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2015, p. 99-128). Emerson José Sena da Silveira1 RESUMO O texto discute a relação entre alguns grupos evangélicos, a heterossexualidade e a póstradicionalidade, entrelaçando conversas teóricas, relatos de bastidores etnográficos de pesquisas que realizei (no mestrado e doutorado em Ciência da Religião) e lembranças pessoais. São explicitados também alguns termos da equação cultural que altera as vinculações entre tradição, sexualidade, verdade e religião, no caso do cristianismo evangélico. O texto é marcado por duas tonalidades. Uma primeira, trazendo contribuições teóricas de Bourdieu (2010), Butler (2014), Preciado (2002) e Giddens (2001) e uma segunda, marcada por fatos empíricos, como a mobilização de evangélicos a favor dos modelos tradicionais de família, sexualidade e casamento. Há uma irremediável perda da aura, em termos de Walter Benjamim, com a derrocada da sacrossanta definição tradicional de heterossexualidade normativa, esposada por alguns grupos evangélicos, pentecostais e neopentecostais.

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Doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor do Departamento de Ciência da Religião da UFJF. Leciono no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, MG (PPCIR-UFJF). Atualmente invisto em duas frentes de pesquisa: 1) Católicos/evangélicos e memórias e tradições/estilos de vida contemporâneos (gênero, redes sociais eletrônicas, memória) e 2) Religiosidades católica, afro-brasileira e populares e rituais/terapias alternativas. Endereço do lattes: http://lattes.cnpq.br/9373911393003409

A HETEROSSEXUALIDADE, OS EVANGÉLICOS E O PÓS-TRADICIONAL: Notas sobre desconstruções e ressignificações sexo-gênero O texto que apresento discute a relação entre alguns grupos evangélicos, a heterossexualidade e a pós-tradicionalidade, entrelaçando conversas teóricas, relatos de bastidores etnográficos de pesquisas que realizei (no mestrado e doutorado em Ciência da Religião) e lembranças pessoais. Neste breve ensaio, debato alguns termos da equação cultural que altera as vinculações entre tradição, sexualidade, verdade e religião, no caso do cristianismo evangélico. O texto é marcado por duas tonalidades. Uma primeira, trazendo contribuições teóricas de Bourdieu (2010), Butler (2014), Preciado (2002) e Giddens (2001) e uma segunda, marcada por lembranças e fatos empíricos, como a mobilização de evangélicos a favor dos modelos tradicionais de família, sexualidade e casamento. Vim de uma família católica tradicional (catolicismo devocional), com incursões (visitas, orações, serviços, livros) pelo kardecismo, espiritualismo, Renovação Carismática Católica (RCC) e umbanda e essas marcas ficaram no corpo e na alma. As demandas vivenciais por saúde, equilíbrio e bem-estar, pessoais e familiares, permitiram abrir-me a outros mundos, outras percepções, outras maneiras de apreender a corporeidade, a família e os papeis sociais atribuídos com naturalidade aos homens e às mulheres. Assim, as muitas observações e experiências, acadêmicas e pessoais, motivaram-me a escrever estas reflexões sobre um fenômeno em pauta: a reivindicação heterossexual dos evangélicos brasileiros e sua ação regressiva ou restaurativa. Os ritos, mitos e imaginários religiosos contêm muitas imagéticas sobre o corpo, o homem, a mulher, o feminino, o masculino e a família, como, por exemplo: fale dessa maneira (voz), não cruze as pernas durante a sessão, os filhos são tudo, as almas não têm sexo, a atração sexual precisa ser disciplinada, há espíritos masculinos em corpos femininos ou almas femininas em corpos masculinos etc. Dessa forma, não houve vivência pessoal e investigação científica sem conflitos e tensões com as imagens e habitus internalizados: as questões da masculinidade e da heterossexualidade estavam presentes nas entrelinhas, em imagens, discursos, brincadeiras, orações e práticas religiosas, no habitus – essencial conceito bourdieusiano, inculcado desde cedo nos corpos e mentes dos homens e mulheres. Em poucas palavras, a questão e a hipótese desse ensaio se desenham sob a seguinte configuração: por qual razão, ou razões, grande parte do mundo evangélico investe na defesa da masculinidade-heterossexual? Possivelmente porque a tradição e o habitus religioso evangélico, que associavam de maneira ontológica fé cristã professada, sexo e gênero, perdem sua naturalidade (autoevidência) e são lançadas no jogo reflexivo da alta modernidade em busca de legitimidade, plausibilidade e manutenção da hegemonia. Após essas primeiras aproximações, esse roteiro reflexivo relê as reações dos evangélicos em defesa da heterossexualidade e da família cristã (com projetos de lei, entre outras formas) e reflete sobre a irremediável perda da aura do masculino heterossexual cristão, evidenciada por diversos efeitos como o burlesco, as inversões simbólicas e as melancolias existenciais. O corpo, o masculino e o religioso: do artificial-arbitrário ao êxtase-ontológico

O embate, e debate, sobre a ordem cultural e biológica do gênero e do sexo, em especial o masculino-heterossexual, ainda está em seus primeiros passos. A hegemonia naturalizada de um modus operandi másculo-heterossexual está passando por uma transição: de uma trama ontológica e autoevidente a uma trama na qual deve assumir, como assumiram as questões do feminismo e da homossexualidade, fóruns reflexivos públicos – que vão desde as redes sociais eletrônicas, as mobilizações de grupos variados (religiosos em geral) e os espaços políticos (câmeras de representantes políticos e legislações). Essas reações religiosas, em geral, assumiram uma face “essencialista”, ao contrário dos “construtivismos”, defendidos em campos acadêmicos e, mesmo, religiosos. Ambas as posições, “essencialismos” e “construtivismos” existem nas teologias, nas academias, teorias de gênero-sexualidade e nas coalizões políticas em defesa ou contra essas posições teóricas. De fato, essas posições recrudesceram durante a transição dos modos de viver e ser da sexualidade, virilidade, masculinidade, heterossexualidade e paternidade. Desse modo, antes de prosseguir, abrirei um parênteses e apresentarei, grosso modo, essas duas grandes frentes de intepretação e práxis. Por outro lado, se tomo como ponto de vista o desejo, não há definição a priori da identidade de gênero, ou seja, não se é a priori homossexual ou heterossexual. É possível excitar-se com as mais estranhas figuras ou objetos. A questão é que as sociedades acoplam a identidade sexual à identidade social, gerando aí as nominações homossexual ou heterossexual. Por outro lado, em uma sociedade democrática é importante garantir-se o direito aos indivíduos de apresentarem-se assumindo uma determinada identidade, sem que hajam punições além daquelas previstas nos casos mais gerais, como agressão física, difamação, calúnia, racismo e outros. Na posição “essencialista”, a diferença gênero-social, sexual, política e psicológica entre homens e mulheres é explicada e justificada a partir da biologia anatômica e da arquitetura genética. Na posição “construtivista”, a diferença gênero-social, sexual, política e psicológica entre homens e mulheres é explicada e justificada a partir da arquitetura social, cultural, histórica, econômica e jurídica das sociedades. As posições feministas e das minorias estavam às margens dos centros de decisão e legitimação (culturais e religiosos) do mundo moderno; isso se altera, em especial, quando as mulheres assumem posições de luta e de questionamento em relação à anterior ordem sexualcultural estabelecida. Assim, o direito a votar e ser votada nas eleições legislativas, as novas formas de divisão do trabalho sexual, as novas estéticas do corpo e da vestimenta, as formas afirmativas sobre a maternidade e a gestação (aborto e outras), passaram a pautar as lutas femininas, às quais se seguiram a luta dos homossexuais (gays e lésbicas), prostitutas, travestis e, recentemente, dos transgêneros. O arco temporal dessa transição é amplo e, por isso, construído de maneiras diversas. Contudo, creio que é possível identificá-lo a partir da segunda metade do século XIX e em momentos e eventos específicos, como a greve de mulheres que deu origem ao primeiro de maio, a patologização do corpo feminino como lugar da histeria (Charcot), as primeiras lutas das sufragistas, as escritoras, intelectuais e atrizes em sua atuação pública. Há muitas histórias nessa história, entrelaçadas aos contextos nacionais, regionais e locais, e às esferas de valor do mundo ocidental – entendidas segundo a clássica acepção weberiana como sendo: arte, religião, ciência, economia, sexualidade e política. No entanto, apontarei algumas das linhas narrativas entretecidas, pois há diversos elementos nessa história longa e cheia de desdobramentos, as quais atingirão, de algum modo, as certezas masculino-patriarcais-religiosas socialmente dominantes, mas cada vez mais reativas. As décadas foram passando e as transformações se aceleram, com maior ou menor velocidade, com maiores ou menores ações contrárias ou favoráveis às mudanças. Nasci num momento dessa longa transição, na década de 1970, logo após a emergência da contracultura (hippies), das lutas pelos direitos civis dos negros nos Estados

Unidos, da descolonização da África e das lutas anti-establishment (anticoloniais, antimanicomiais, anticlericais), do movimento espiritual new age, enfim, um momento em que uma geração, a nascida durante e após a Segunda Guerra Mundial, começava a ter seus próprios filhos e filhas e a se ver envolta em dilemas excruciantes em relação à educação da prole, à corporeidade, aos papeis sociais de homens e mulheres, aos modos de vestir e apresentar-se, aos cuidados pessoais etc. Questões essas que se estendiam, de maneira mais ou menos intensa, pelo corpo da sociedade moderna e suas legislações, mercados, escolas e universidades e, malgrado a perspectiva conservadora, suas religiões, institucionais e não institucionais. Modos de ser e viver como humano-homem-heterossexual atravessavam famílias religiosas e representações rituais e míticas. Nesse sentido, o controle ascético do desejo e da vontade, mesmo em suas manifestações ditas normais (heterossexuais), deve ser exercido, porque significa a domesticação do “animal” e sua progressiva “civilidade”. Isso está presente nos catecismos, manuais, palestras e pregações católicas, evangélicas pentecostais e nãopentecostais, espíritas kardecistas, umbandistas cristãs (linhas próximas ao kardecismo). Há muitos entrelaçamentos, percepções e imaginários. Li um livro psicografado, intitulado “Do Calvário ao Infinito”, romance ditado por Victor Hugo (espírito) a uma médium mineira, herdado da biblioteca de minha avó paterna, professora que veio da região rural de Carangola (Minas Gerais)2. A capa antiga, a brochura e a edição, dos anos 1940, abrigavam personagens, extremamente ascéticos, que brandiam a necessidade de conter os desejos carnais para a elevação espiritual, com apologia à formação familiar tradicional – pai, mãe e filhos. Nas pregações carismáticas e evangélicas, de padres e pastores, o casamento tradicional é eleito como destino, missão e vocação para homens e mulheres. Logo, ele é um plano de Deus e, portanto, uma ordem cósmica que transforma o contingente e o arbitrário, uma determinada ordem e arranjo histórico, em algo natural, permanente e relativo ao ser mais profundo da realidade. Nas rodas de conversas, familiares e vicinais, nas pregações das igrejas (católicas e evangélicas), nos rituais de umbanda e esoterismo que frequentei, eram veiculados os modos de ser e se comportar, alguns deles realçando os estereótipos de masculinidade (como voz grossa). As risadas, as piadas, a imitação de trejeitos másculos e não-másculos, viris e não viris, paternos e maternos, as categorias de acusação (bichinha, viadinho) circulavam de forma impressionante e permeavam temores, reações e ações meus, dos meus amigos, colegas e vizinhos. As manifestações de afeto entre homens, muito mais do que entre mulheres, tendiam a ser vistas – como ainda são – como um território ambíguo e perigoso, com potencial para “desmasculinizar-desvirilizar”. Por isso, o contato corporal entre homens é realizado por meio de jogo ritual de aproximação distanciada, ou seja, rodeado de cuidados, justificativas e outros aspecto simbólicos. Com efeito, o sexo não é, como órgão e prática, nem lugar biológico, nem impulso natural, mas [...] uma tecnologia de dominação heterosocial que reduz o corpo a zonas erógenas [zonas de excitação] em função de uma distribuição assimétrica do poder entre os gêneros (feminino/masculino), fazendo coincidir certos afetos com determinados órgãos, certas sensações com determinadas reações anatômicas (PRECIADO, 2002, p.22).

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O livro foi psicografado por uma médium chamada Zilda Gama e conta com numerosas reedições e milhares de exemplares, constando até hoje no catálogo da FEB-Federação Espírita Brasileira.

A inscrição do sexo como lugar biológico/impulso natural, feita por grupos e sociedades, tradições e estruturas sociais, é o texto, sendo o gênero, a escritura escarificada nos corpos, movimentos, gestos, gostos e estéticas (PRECIADO, 2002). Em outro sentido, a virilidade enquanto “quididade do vir, virtus, questão de honra, princípio de conservação e do aumento da honra mantém-se indissociável, pelo menos tacitamente, da virilidade física, através [...] das provas de potência sexual [...] que são esperadas de um homem que seja realmente homem” (BOURDIEU, 2010, p.20). Nesse ambiente transicional, as questões sobre o masculino, o corpo e o desejo, vieram à tona, de forma intermitente, atravessando minhas vivências como pessoa e como pesquisador. Atravessado pela imagética da família, da religião cristã e do masculino, em suas tensões e na busca por respostas que então não me satisfaziam, fiz o curso de Ciências Sociais no início dos anos 1990, na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Minas Gerais, optando pela ênfase em antropologia e imergindo em uma espiral de pesquisa, estudo e reflexão sobre variadas temáticas culturais, autores diversos, clássicos e inovadores, de Durkheim e Mauss a Deleuze e Foucault. As desconstruções sobre verdades sociais, religiosas e culturais construídas abriram novas caminhos de compreensão. De tal modo, a religião foi o pomo da discórdia e da concórdia e, ao fim do curso de graduação (1995), do mestrado (2000) e do doutorado e estágio pós-doutoral (2006 e 2009), realizei estudos sobre o movimento carismático católico local, seus rituais, mitos e estruturas, constatando alguns elementos de gênero nas falas, entrevistas e discursos religiosos: a predominância de lideranças femininas, a ascese de desejos sexuais por tecnologias de contenção e remodelagem de si (jejum, banhos frios, controle da masturbação etc.), as narrativas sobre a família tradicional como desejo e vontade de Deus, entre outros. Olhando para o passado, a escolha do tema faz sentido num processo de tensão, por mim vivido, entre a adesão vivencial ao movimento carismático católico e o crescente distanciamento reflexivo-acadêmico. A ordem êmica e a ordem ética estavam em discórdia concordante. Relendo os diários de campo para escrever este texto, dei-me conta da presença liminar das questões que procuro explicitar e articular aqui. Passei a integrar o corpo docente do PPCIR-UFJF e nele desenvolvi e desenvolvo pesquisas sobre temáticas diversas que, de forma renitente, esbarravam na questão de gênero: estilos de vida, juventude carismática, práticas religiosas heterodoxas (altares virtuais, turismo religioso). Ora, em Juiz de Fora, Minas Gerais, ocorria um grande evento, o Miss Brasil Gay, que anualmente, durante o mês de agosto, reunia, para um concurso nacional, travestis, transexuais, homossexuais e milhares de pessoas. Por uma semana, os hotéis e pousadas ficavam completamente cheios. O concurso tornou-se, ao longo de duas décadas, um dos maiores fenômenos gays, antes das grandes marchas LGBTTs (Lésbicas, Gays, Travestis, Transexuais e Transgêneros) dos anos 2000, realizando múltiplos eventos dentro dele. Três se destacavam: o desfile das beldades transexuais com a premiação da Miss Gay, o baile de gala e o desfile aberto numa das ruas mais importantes da cidade, com direito a drag queens, travestis, homens e mulheres com muita fantasia e amplo público. No decorrer dos estudos sobre os carismáticos católicos, que empreendo desde 1994, ouvi algumas vezes nos grupos “pregações”3 recheadas de vigorosas acusações contra os gays, mas, também, pregações com uma intensa apologia ao comportamento masculino considerado correto e, volta e meia, a possibilidade de “corrigir” a homossexualidade – que oscila entre pecado, erros psicológicos dos pais ou defeito da natureza – e tornar-se 3

Pregação é o termo nativo usado para o momento em que, após a leitura de um trecho bíblico, um membro do movimento vai à frente do grupo e fala sobre o mesmo. Só que, ao mesmo tempo, não é uma simples fala, mas um ritual importante durante o qual imagens, sentimentos e figuras são mobilizados para fazer a ponte hermenêutica entre o trecho bíblico, a situação presente e os desdobramentos, enfim, entre passado, presente e futuro.

heterossexual. Dependendo de um dos três caminhos enunciados (pecado, erro moral de caráter ou defeito), emerge um espelhamento do construtivismo social, entendido como o conjunto de teorias que compreendem o gênero como uma construção sócio-histórica e plural, diversa no tempo e no espaço. Isso tende a ocorrer quando os evangélicos, especialmente os renovados, pentecostais e neopentecostais, utilizam “tecnologias de produção da heterossexualidade”, como denomino as técnicas, discursos, rituais e mitologias empreendidos e aplicados para elevar homens e jovens à imagem ideal: homem-heteromásculo-viril-pai. Em 1998, durante a semana do Miss Gay, ocorreu uma panfletagem de grupos religiosos (pentecostais e neopentecostais) na porta dos locais previstos para o Miss Brasil Gay. Os panfletos protestavam contra um complô ou plano mundial gay, exaltavam a família heteronormativa (homem e mulher com filhos) e alguns deles continham trechos e imagens de “ex-travestis” e “ex-homossexuais”, convertidos e casados, com filhos e filhas. Muitos desses panfletos eram distribuídos pelo MOSES (Movimento pela Sexualidade Sadia), uma organização não-governamental evangélica fundada por um professor de filosofia, teólogo e ex-pastor batista, o carioca Sergio Viula, em 1997, e que fornecia auxílio a pessoas que desejavam abandonar a homossexualidade. O movimento atuou fortemente nas igrejas evangélicas, mas pude observar seus reflexos locais na Renovação Carismática Católica da cidade onde a estudei, a partir de uma perspectiva etnográfica. Nessa medida, começaram a pulular nos movimentos evangélicos “clínicas de cura” e “técnicas” de tratamento de desejos ou atrações homossexuais, com campanhas e mobilizações em torno da temática da restauração: homem restaurado em seu desejo, potência, natureza e missão – que é ser pai, homem, viril, heterossexual, segundo a crença cristã. Tais movimentos atravessaram tanto igrejas protestantes históricas quanto pentecostais, atingindo profundamente os movimentos carismáticos católicos e adquirindo diferentes estruturações nos países em que surgia, embora seu epicentro esteja situado nos EUA. Dessa forma, durante as etnografias dos grupos de oração carismáticos, feitas nos anos 1999-2001 e 2003-2005-2008, deparei-me com uma situação na qual um dos membros da equipe de coordenação de um grupo revelou, em um seminário interno, seus desejos homossexuais. Era um seminário de cura interior, voltado apenas para os membros que exerciam funções de coordenação (música, oração etc.) e envolvia toda uma tecnologia, um ritual e uma simbologia na qual memórias dolorosas, emoções e comportamentos são dissociados e ressignificados. Nesses encontros, muito reservados e discretos, uns oram pelos outros e entre as técnicas está a oração biográfica, em que cada momento da vida pessoal, desde a gestação até o momento atual, é repassado, revivido e partilhado. No relato emocionado, esse homem, na casa dos quarenta anos com todo perfil tradicional de heterossexual-viril (modos de sentar, andar, voz), relatou encontros gays ocorridos (antigos e novos), sempre carregados de culpa. Bastante comovido, o homem desabou em lágrimas abundantes contando sua luta para ser, em suas palavras, um “sonho de Deus”, homem e pai de família, honrado, honesto e dentro dos padrões que os carismáticos consideravam saudáveis. Contou fatos passados, tais como o pai distante e frio, a mãe que já o tinha vestido de menina, os conflitos da adolescência e os namoros frustrados, a entrada no movimento carismático e os encontros furtivos com alguns homens, dentro e fora do movimento. Depois desse seminário, o homem procurou uma “clínica de cura gay” em Niterói, de uma igreja evangélica. Contou-me algumas tecnologias usadas para curar sentimentos e memórias guardadas que conduziram à experiência de casar e ter um filho. Não pude acompanhar mais profundamente o desenrolar dessa narrativa porque redirecionei minhas pesquisas etnográficas para outros grupos carismáticos. De fato, a história é longa, porém percebi, na etnografia, o complexo jogo de imagens entre sexualidade e gênero, principalmente as concepções e imagens relativas à equação heterossexual-viril-

homem e suas oposições e complementaridades em relação à homossexualidade. Essas tecnologias de si evidenciam a contingência histórica das associações entre sexualidade e gênero no caso masculino, pois pode haver ordens de cominação/comutação/combinação diversas do masculino: homossexual-viril-pai, homossexual-delicado-pai, heterossexualdelicado-pai ou heterossexual-viril-pai. No entanto, em uma determinada leitura teológica cristã, apenas uma dessas combinações é natural, verdadeira e justificada por uma ordem divina, portanto, acima das vontades humanas. Entre essa leitura e as muitas práticas sociais efetivas, erguem-se tensões e conflitos que explodem dentro e fora dos grupos cristãos como um todo. Todavia, observo que, embora minoritárias, há outras leituras teológicas divergente-diferentes, deslocando e desconstruindo a naturalidade-sacralidade de uma equação homem-heterossexual-viril e apontando outras existências e teologias (queer, gay ou homossexual) (MUSSKOPF, 2012). Essas tecnologias de si estão muito presentes no campo evangélico e carismático e têm sido pouco compreendidas dentro de novos horizontes hermenêuticos. Em 2011, na mesma época em que começaram a intensificar projetos de lei que formavam a “santa aliança” pela heterossexualidade (Dia do Heterossexual, Família como sendo constituída apenas de homem e mulher, legitimidade da cura gay), o fundador do MOSES deu uma entrevista na qual se expressou com franqueza4. Sergio Viula foi casado, é pai de dois filhos, conheceu bem os métodos de “reorientação sexual” e, por fim, assumiu-se gay: Na época, pensava que qualquer sentimento ou atração fosse mera “tentação” e que isso poderia ser superado com oração e dedicação a deus. No grupo, basicamente, pensávamos que ser gay fosse pecado, que devia ser confessado e abandonado e para isso, fazíamos proselitismo, aconselhamento, oração, pregação, recomendávamos certos livros, leitura bíblica, coisas que os crentes geralmente fazem, mas com foco na homossexualidade, sempre demonizando a homoafetividade, infelizmente. Eu trabalhei com a igreja num total de 18 anos, o Moses começou em 1997 e em 2003 eu estava fora, foram quase sete anos. Tínhamos psicólogos parceiros e contávamos com vários voluntários. Uma vez enchemos um ônibus e levamos para o Miss Brasil Gay em Juiz de Fora só para evangelizarmos os LGBT que foram ao evento, mas na diretoria eram cerca de 10 pessoas.

Ao lado das invocações e êxtases do Espírito Santo, de mitos e ritos de origem, a Renovação Carismática Católica aproximava-se, ainda que de forma marginal e titubeante, desse discurso da desconstrução homossexual e da construção heterossexual que progressivamente imiscuiu-se em suas atividades e imaginário. No depoimento do fundador da ONG evangélica MOSES, a questão da construção de si ou de uma tecnologia de si emerge como uma finalidade, através de métodos e técnicas, alguns deles os velhos ascetismos (jejum) aliados a leituras bíblicas, reconstituir-se-iam a heterossexualidade-virilidade-masculinidade, tríade fundamental na visão cristã da natureza sexual-dicotômica. No entanto, essa tecnologia de reorientação sexual revelava, e revela, na verdade, as tensões inscritas na ordem arbitrária do gênero e do sexo, ambos indeterminados, não-definitivos, ao mesmo tempo em que se atola em uma contradição: se a natureza do homem é ser heterossexual-viril-másculo não deveria haver outra estrutura. Essa contradição é resolvida pelas igrejas evangélicas e grupos carismáticos católicos deslocando-se a homossexualidade para o território moral do pecado, da tentação, do erro ou da falta (psicológico-social como, por exemplo, pai ausente e mãe dominadora), em que um estranho processo antinatural ou contranatural (o desejo homossexual) necessitaria de uma tecnologia

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Disponível em: http://www.eleicoeshoje.com.br/entrevista-fundador-cura-homossexuais/. Acesso em: 01 de junho de 2015.

de si para ser extirpado, superado, contornado, corrigido, curado, ou seja, para que o homem voltasse ao curso natural, segundo narrativas cristãs conservadoras. Por outro lado, observo que a essas narrativas cristãs conservadoras opõem-se uma série de contranarrativas cristãs não-conservadoras que, ao invés de “patologizar-tornarpecado” a homossexualidade, a vê, por conseguinte, inscrita nas ordens naturais do sexo, nas ordens sociais do gênero e nas ordens espirituais da escritura sagrada, a Bíblia. São as igrejas inclusivas ou LGBTT ou, simplesmente, novas igrejas cristãs que emergem na década de 1970, nos EUA, e crescem em direção às periferias do mundo, chegando ao Brasil no fim da década de 1990. Com efeito, nos variados grupos evangélicos, o combate às minorias sexuais e aos seus direitos evidencia, por contraposição, uma narrativa de homem-heterossexual-masculino em que o ser viril, homem, pai e sentir-se atraído por mulheres são sinônimos naturais e coextensivos ontologicamente. Todavia, a disjunção entre essas “quididades” se mostraram plausíveis, factíveis e viáveis. Outras combinações entre ser-parecer homem, viril, pai, másculo, heterossexual e ser-parecer feminino, doce, homossexual surgem na sociedade. Essa existência acentua uma das gramáticas pós-modernas: o princípio da não-coincidência, da incerteza e do não-alinhamento entre papeis sociais, identidades de gêneros, desejos sexuais e estruturas biológico-genéticas. À luta de grupos religiosos e conservadores alinha-se a defesa da diferença biológica entre o corpo masculino e o corpo feminino, isto é, da “diferença anatômica entre os órgãos sexuais”, como “justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros” (BOURDIEU, 2010, p.20). Contudo, num mundo plural, com politeísmos identitários, religiosos, espirituais, sociais, sexuais e outros, os modos de viver e existir alinhados aos monoteísmos são vistos, por muitos, como apenas mais um dos modos de ser e viver disponíveis. Nessa medida, a percepção dessa perspectiva aciona os jogos reflexivos, tragando as tradições para um mundo pós-tradicional. Em outras palavras, as tradições (religiosas, sociais, culturais) antes naturalizadas, mobilizando um imenso poder simbólico e concreto advindo de sua aceitação ampla, internalizada nos corpos e mentes, de evidência imediata e fora de questão, tornam-se – nos novos contextos sociais, culturais e políticos – deslocadas, não mais evidentes por si mesmas, não mais vistas como naturais (GIDDENS, 2001). Desse modo, nesses novos contextos, as tradições e seus guardiões da verdade instituídos (os sacerdotes, as lideranças institucionais) precisam, a contragosto, entrar no jogo da reflexividade, lançar mão de mecanismos retóricos, políticos, sociais e econômicos para revalidar a natureza ontológica de sua verdade. Mas, num certo sentido, ao empreender as defesas e procurar justificar sua existência, entrando em todos os espaços e esfera públicas, das redes eletrônicas às marcas em avenidas e praças, a Tradição perde sua condição de Real, de única realidade, e torna-se tradição justificada e, sendo assim, ingressa no pós-tradicional (GIDDENS, 2001). Não obstante, os argumentos “essencialistas” podem trocar de campo e tornarem-se parte das lutas de minorias. Há alguns grupos feministas e gays nas redes sociais, por exemplo, dizendo que sem útero ou experiências homossexuais não é possível discutir feminismo, homossexualidade e as questões relativas a esses universos culturais. Constrói-se, dessa maneira, o oposto simétrico do argumento dos conservadores religiosos e, logo, um contrassenso é instituído. Entretanto, é preciso dizer que os movimentos de minorias sexuais possuem segmentações internas e não devem ser naturalizados, mas vistos de maneira dinâmica, assim como os grupos religiosos majoritários. Com efeito, a simetria e as oposições estão na maneira como a representação do biológico é posicionada na arquitetura do discurso e da ação de grupos conservadores religiosos e dos grupos de luta pelos direitos de minoria. Por um lado, o argumento biológico

é o aríete que os “órfãos da tradição” usam para manietar os grupos de defesa de minorias ao localizarem determinada ordem social e sexual (a equação homem é igual a heterossexual, viril, pai, marido, macho) no reino do instinto e da genética. Por outro lado, o argumento biológico se torna uma arma retórica para reivindicar a preeminência no debate epistemológico-político; porém, toda disputa feminista e de outras minorias se deu, justamente, no sentido de retirar a discussão da dimensão do biológico: a genitália não é o fundamento das questões epistemológicas e de gênero. Nesse sentido, é preciso destacar que O corpo e seus movimentos, matrizes universais que estão submetidos a um trabalho de construção social, não são nem completamente determinados em sua significação, sobretudo sexual, nem totalmente indeterminados, de modo que o simbolismo que lhes é atribuído é, ao mesmo tempo, convencional e “motivado”, e, assim, percebido como quase natural (BOURDIEU, 2010, p.20).

A posição bourdieusiana se equilibra entre um quase-determinismo sexual-biológico e um quase determinismo sócio-cultural. Não há sobredeterminações, mas mediadores e mediações que formulam o saber-fazer e o fazer-saber da sexualidade e do gênero (macho e fêmea; masculinidade e feminilidade; viril e inviril) em estruturas de longa duração e conjunturas específicas. Nesse sentido, as definições sociais dos órgãos sexuais não são apenas registros de propriedades naturais diretamente percebidas. Trata-se de uma “construção efetuada à custa de uma série de escolhas orientadas [...] através da acentuação de certas diferenças ou do obscurecimento de certas semelhanças” (BOURDIEU, 2010, p.23). Ora, a força da dominação masculina, em sua versão heterossexual, é trans-histórica, plantada em dualismos duramente arraigados (homem-mulher, viril-delicado, heterossexualhomossexual) e estão [...] profundamente enraizados nas coisas e nos corpos, não nasceram de um simples feito de nominação verbal e não podem ser abolidos com um ato de magia performática – os gêneros, longe de serem simples “papeis” com que se poderia jogar à vontade (à maneira das drag queens), estão inscritos nos corpos e em todo um universo do qual extraem sua força. É ordem dos gêneros que fundamenta a eficácia performativa das palavras – e mais especialmente dos insultos – e é também ela que resiste às definições falsamente revolucionárias do voluntarismo subversivo (BOURDIEU, 2010, p. 25).

Em outras palavras, no modelo tradicional de sexualidade-gênero, os dualismos se mantêm ocultados (internalizados) e as desigualdades marcadas a ferro e fogo nos corpos e nas palavras. Dessa forma, os dualismos ganham alguns formatos, entre os quais: o homem é marido-pai-heterossexual-forte, atua nos espaços públicos, dominador, racional e não cuida das tarefas domésticas; a mulher é mãe-heterossexual-delicada, atua nos espaços privados, é emotiva e intuitiva e cuida das tarefas domésticas e da prole. Um dos grandes aliados dessa estrutura tem sido o cristianismo tradicional, por uma série de razões de ordem histórica, teológica e cultural que, em outra oportunidade, poderão ser melhor explicitadas. Desordens androcêntricas e a luta pela hegemonia do masculino-heterossexual-cristão De imediato, uma constatação: “a força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem legitimá-la” (BOURDIEU, 2010, p.18). O arbitrário, historicamente constituído como dominação, torna-se natural e tão evidente que dispensa campanhas por sua defesa ou discursos de legitimação. Nesse caso, é todo sistema de

dominação masculina: a hegemonia sobre a ordem social, cultural, econômica e sexual nas sociedades. Mas, nas décadas de 1970 e 1980, os estudos sobre masculinidade já mostravam a crise das tradições imagéticas e estruturas herdadas das antigas configurações familiares e sexuais (LEMOS, 2009). Asssim, quando as campanhas de defesa de uma ordem moralsexual e os discursos legitimadores surgem e recrudescem, em especial no campo religioso, é sinal-sintoma-signo de fraturas no compacto conjunto das ordens sociais androcêntricas. Os grupos, preocupados em preservar ou reconstruir (reconstituir) hierarquias sociais, enfatizam a dimensão do biológico como fato central, indiscutível e inegociável em suas campanhas culturais, ou seja, em suas práticas de mobilização (manifestação, passeatas, pressão política), feitas para suscitar a adesão a valores, crenças e ideias nutridas a respeito da vida social, das diferenças, das religiões, do cosmos etc. Ora, esses não são agrupamentos restritos aos evangélicos, mas mantêm com estes uma estreita relação: revistas, livros, grupos, páginas e comunidades virtuais se multiplicam, alguns agressivos e patológicos, conhecidas como masculinistas (ou mascus), algumas mais leves e irônicas, outras preocupadas com a perda da heterossexualidade-viril-máscula, outras simplesmente bem humoradas e descontraídas5. Na verdade, esses exemplos parecem integrar importantes mudanças no campo da heterossexualidade – que são ainda pouco estudadas nas relações com a religiosidade, ou seja, há todo um campo inexplorado para as Ciências da Religião. Nesse sentido, o elemento biológico – expresso na ideia de comportamentos sexuais definidos, masculinidade e feminilidade, correspondendo a funções familiares específicas, pai e mãe – tornou-se um símbolo infraestrutural do cristianismo ao longo dos séculos, mas foi reconfigurado no mundo moderno ou na modernidade moderna. Por outro lado, o recurso ao biológico está submetido à ordem do artificial e da retórica, pois a própria ordem genéticonatural é objeto de engenharias sofisticadas, como atestam, por exemplo, a duplicação genética ou clonagens, os cereais e plantas híbridas, os ciborgues, entre outros. Desde a segunda metade do século XX, em especial no caudal da contracultura norteamericana, em diversas dimensões da vida e do espaço púbico (principalmente no setor artístico, de marketing e de meios de comunicação de massa) intensificou-se a desconstrução da sinonímia, historicamente contingente, entre virilidade-heterossexualidade-masculinidadepaternidade. Música, cinema, fotografia, moda, propaganda e comerciais de TV, quadros e programas humorísticos e de variedades nos rádios e TVs e, posteriormente, na rede mundial de computadores, livros e literatura (romances, quadrinhos, fotonovelas), em todos esses meios observa-se a dissociação do homem-másculo-heterossexual-pai de sua tradição cultural hegemonizada. Em bandas de rock e outras bandas de música, por exemplo, nas décadas de 19701980 começou um duplo processo de dissociação e associação: o masculino-viril associado ao desejo homossexual, invertendo a lógica cultural falocêntrica de associação do homossexual à feminilidade-passividade. No mundo da moda, os modelos masculinos incorporaram outras estéticas, para além dos estereótipos de virilidade. No entanto, não é somente nessa atuação que uma determinada forma de sexo-gênero é desassociada e reassociada: os movimentos feministas e homossexuais afirmaram-se no panorama da sociedade civil reforçando a percepção de construtos de sexo-gênero e, por sua própria existência, mostrando que o

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Entre as páginas e revistas eletrônicas mais profile: http://www.menshealth.com.pt/ e https://www.facebook.com/menshealthbrasil. Acesso em: 01 de junho de 2015. Entre as páginas que acabam caindo em preconceito: https://www.facebook.com/OrgulhoHeteroBR; https://instagram.com/orgulhohetero/; http://orgulhohetero.blog.br/. Acessadas em: 01 de junho de 2015. Entre os sites agressivos: http://masculinismoedireitosiguais.blogspot.com.br/ e http://canal.bufalo.info/. Acessados em: 01 de junho.

modelo heterossexual clássico é uma das possibilidades de existir e não o único real, a única ontologia do existir como homem. No mundo da televisão, muitos quadros, dente eles humorísticos, em especial pela carga irônica e, ao mesmo tempo, pelo humor, descontruíram as lógicas tradicionalistas, em um cenário de transformações que sacudiu e sacode o Mundo Ocidental e, inserido nele, o Brasil6. Pela lógica cultural do consumo, em uma sociedade cada vez mais globalizada, essa difusão e esse consumo de imagens e produtos são, também, um consumo de novas ideias, novas semânticas, gerando novas identificações e aberturas identitárias. Os espaços públicos, os espaços políticos (organismos legislativos e legislações) e os meios de comunicação de massa e eletrônicos se tornaram campos de batalhas entre as novas narrativas da relação sexo-gênero e as antigas narrativas, ainda lastreadas em determinadas visões de mundo, produtos e construtos históricos compactos e tornados tradição. Diante da vastidão e profundidade das mudanças culturais nas imagens, mitos e símbolos da relação sexo-gênero, principalmente em relação à concepção da heterossexualidade masculina, ocorreram ondas conservadoras, com suas reverberações e com maior ou menor repercussão, lançando mão de diversos mecanismos de contranarrativas e atuação político-social conservadora. Nesse sentido, no Brasil, é possível recordar pelo menos duas grandes ondas nos últimos anos trinta anos: aquela que emergiu no fim da década de 1980, justamente após o avanço do feminismo e das reivindicações de minorias étnicas e sexuais, convergindo com a derrota do Partido dos Trabalhadores (PT) nas campanhas eleitorais de 1989 e a eleição de Fernando Collor; e a atual onda conservadora, com picos agudos de manifestação, que se inicia no fim de década de 2000, convergindo com as eleições de 2010 e a permanência do PT no Poder Executivo. Em ambas as ondas, emergiram e avolumaram-se muitas acusações religiosas e morais, oriundas da classe média (sociológica) e grupos evangélicos, contra o Partido dos Trabalhadores e seus candidatos à presidência, em 1989 e 2010. Em geral, acusavam-se os candidatos presidenciais de apoiar o aborto e a causa gay e irem contra os evangélicos e a família cristã7. É preciso fazer um parêntese ou referência aos diversos grupos evangélicos. Há diversidade em termos teológicos, mas também em termos de apoio e ação política. Dentre os 6

Caberiam aqui, interessantes associações, simbologias e conexões, mas vou citar apenas duas. Por exemplo, a famosa banda Village People que, nas canções e videoclipes, trabalharam com múltiplos meios de ironia, humor e dissociação entre viril-heterossexual-homem. Uma de suas mais famosas músicas, “Y.M.C.A.”, é interessante nesse sentido, seja pela corrosão irônica dos estereótipos, seja pela poética subversiva da letra. Fundada em 1974, essa banda alcançou muito sucesso e, em 1978, compuseram o videoclipe da música em referência a famosa Associação Cristã de Moços (YMCA). Em geral, os membros se vestiam com os mais tradicionais estereótipos: chefe indígena, policial, soldado, operário, cowboy e uma figura híbrida, vestida de couro preto com um cassetete na cintura. Vídeo disponível em: http://www.vagalume.com.br/village-people/y-m-c-atraducao.html. Acesso em: 03 de junho de 2015. O vídeo-clipe oficial, postado no Youtube (https://www.youtube.com/watch?v=CS9OO0S5w2k), possui mais de 59 milhões de visualizações e 38 mil comentários em diversas línguas. A data da postagem do vídeo chama atenção: 26 de fevereiro de 2015. No Brasil, lembro-me de um famoso quadro, “Capitão Gay”, no programa humorístico produzido por Jô Soares (“Viva o Gordo”). Na década de 1980, quando eu era criança e assistia às segundas-feiras à noite, o quadro fazia sucesso, famílias e crianças gostavam. Um super-herói gay, com um assistente também gay, com os trejeitos humorados da associação entre homem-gay-delicado-sensível-inteligente, que fazia rir muito, mas que continha muitos elementos interessantes, a começar pela chamada do personagem: “capitão gay, gay de alegria, gay de defensor das minorias” e outros bordões. 7 Na campanha de 1989, na reta final da eleição, quando estava bem posicionado, o então candidato Luiz Ignácio Lula da Silva foi acusado pelo oponente, Fernando Collor, de ter pedido o aborto a sua ex-mulher, isso sem mencionar os boatos de que iria fechar ou taxar as igrejas evangélicas. Em 2010, a então candidata, Dilma Vana Rousseff, em plena era das redes sociais, enfrentou também acusações e boatos que iam desde uma suposta relação lésbica com uma ex-empregada até a acusação de apoiar o aborto e ir contra os evangélicos.

grupos evangélicos, aproximaram-se do PT, construindo alianças programáticas ou táticas (ocupando cargos no segundo e terceiro escalão do Poder Executivo) aqueles ligados à Igreja Universal do Reino de Deus e outras igrejas, dispersos entre os pentecostais (parte das Assembleias de Deus) e evangélicos históricos (parte dos Luteranos e dos Metodistas, por exemplo). Os grupos ligados às Assembleias de Deus, aos Batistas tradicionais e renovados e as outras igrejas pentecostais e históricas, posicionaram-se (e posicionam-se) contra o PT e suas políticas de valorização de minorias. Desse último grupo emergirá o Deputado Eduardo Cunha (PMDB) e seu grupo de apoiadores, como o Deputado Sóstenes Cavalcante (PSD), relator do projeto de lei que define a família como exclusivamente composta de mulher e homem, ligado ao Pastor Silas Malafaia, por sua vez, ligado às Assembleias de Deus. No entanto, em maior ou menor grau, têm concepções todos esses grupos majoritariamente de homem, mulher, família e sexualidade, conservadoras e ligadas as teorias do direito natural. Com efeito, o fato de existir uma campanha em defesa da heterossexualidade, tal como é defendida e representada por grupos cristãos, contra sua (planejada para alguns) “deslegitimação”, torna evidente a crise do biológico enquanto representação social e como símbolo de uma ordem social-familiar-sexual que se tornou hegemônica pari passu à constituição da modernidade moderna. Essas mobilizações assumem os mais variados tons, desde um plano mundial em marcha conduzido pelas ideólogas do feminismo até um complô gay mundial. A emergência dessas questões sobre a moral-sexual cristã conservadora pode ser compreendida na esteira do avanço dos evangélicos na sociedade em geral e, principalmente, nos meios de comunicação e nos espaços públicos, o que começa a ficar bem evidente durante a década de 1980. Essas posições ganham a agenda pública no caudal de um forte movimento de inserção dos evangélicos na política. Esse movimento tem seu início no processo de retorno à democracia, após o fim da Ditadura Militar, em especial, na Assembleia Constituinte e na Nova Constituição, no período 1985-1988. As igrejas evangélicas passaram a eleger deputados e, a partir daí, exercer crescente influência até as últimas eleições, como as de 2010 e 2014, nas quais alcançaram a cifra de 74 parlamentares expressamente ligados às igrejas. Sabe-se que, até a década de 1980, os evangélicos tinham uma atuação pública menor, ligada às igrejas históricas, refletindo uma gama diversificada de posicionamentos, mas a pautal moral (aborto, casamento homossexual e defesa da família heterossexual) não se mostrava poderosa e hegemônica. Os evangélicos pentecostais ainda estavam ligados a uma doutrina ascética de retirada do mundo (o mundo jaz sobre o maligno, ética do trabalho e da ascese pessoal e comportamental), com pouca inserção política e midiática e regras comportamentais e estéticas mais rígidas. Porém, sempre cabe observar que os evangélicos possuem imensa diversidade interna, em termos teológicos, rituais, mitológicos e narrativos, que vão desde as posições conservadoras (inerrância e fundamentalismo bíblico) até as baseadas nas lutas de minorias sexuais (teologia queer e igrejas inclusivas) (MUSSKOPF, 2012; FERNANDES et al, 1988). Essa diversidade de vozes no mundo evangélico existe e precisa ser estudada, posta em tela, tornada mais pública, pois podem ser identificadas ao longo de sua história de longa duração e nas últimas polêmicas que agitam o mundo sócio-cultural brasileiro – como, por exemplo, as relativas às novelas e propagandas, particularmente quando as cenas e personagens apontam para outras formas de viver/(a)parecer/ser a sexualidade e o gênero (homossexuais e transgêneros)8. 8

Vou dar dois exemplos de divergências fônicas no meio evangélico, um de longa duração e outra da atual conjuntura: a comunidade Oneida, nos EUA, formada por cristãos que possuíam outras formas de conceber a família e o casamento fora do padrão heteronormativo-patriarcal (CARRARA, 1999); e a polêmica em relação à

Contudo, apesar das diversidades, há posições majoritárias entre os evangélicos e essas defendem uma ordem moral-sexual baseada na perspectiva “essencialista-biológica”, ou seja, na primazia do sexo como vetor biológico de definição da família e da heterossexualidade. Note-se que, nas eleições de 1982, foram eleitos 12 deputados federais evangélicos, sendo apenas 2 pentecostais, já em 1986, foram 32 parlamentares, sendo 18 deles pentecostais. Porém, a inflexão política começou quando as Assembleias de Deus, a maior igreja pentecostal brasileira, reuniu-se em um grande congresso na cidade goiana de Anápolis, em 1985, e pastores e fiéis, inclusive de outras denominações, foram incentivados a participar do processo de escolha dos representantes na Assembleia Constituinte. Paulatinamente, a expansão dos evangélicos na política avançou sobre as outras esferas do poder estatal: câmaras estaduais e municipais, além das estruturas do executivo estadual e municipal, transbordando a esfera legislativa nacional. Os espaços midiáticos também sofreram forte influência evangélica, especialmente os meios de comunicação, como a televisão e as redes sociais eletrônicas (internet). Desde a redemocratização e a Constituição de 1988, que ampliou poderes do Poder Legislativo, emergiu o presidencialismo de coalizão brasileiro. O poder executivo desenvolveu alta dependência de alianças políticas para a construção do consenso e, assim, garantir a governabilidade empírica e processual. Com isso, tende a acolher agendas políticas de grupos representativos da sociedade, quer sejam aqueles que retrocedem direitos ou que os ampliem (MACHADO, 2006; VITAL & LOPES, 2013). Entre esses grupos estão as lideranças evangélicas, atores fortes no jogo político, pois possuem grande poder de convencimento frente a seus milhões de fiéis e, portanto, são capazes de sustentar campanhas eleitorais com grande visibilidade na sociedade (VITAL & LOPES, 2012). Esses setores evangélicos, com muitas lideranças em diversos níveis (municipal, estadual e federal) – entre elas o pastor Silas Malafaia e o deputado-pastor Marco Feliciano –, começaram a levar essa contranarrativa de gênero-sexo ao espaço público e político. O avanço dessas posições, imaginários, mitos e rituais reacionário-religiosos é a medida da solvência da ordem e da tradicional imagem de homem-heterossexual-marido-pai. A sustentação simbólico-jurídica-cultural dessa ordem mostra-se mais frágil e os grupos sociais a ela ligados, por afinidade teológico-estrutural ou por outros motivos, lançam mão de uma frente contranarrativa que mobiliza legislações, por exemplo, para estabilizar a solvência ou para restaurar o antigo estado de arte – o que não parece ser possível, mesmo com o acionamento de grandes forças midiáticas e políticas, em todos os níveis da estrutura do Estado. Dessa forma, vereadores e deputados evangélicos mobilizaram-se para cravar no calendário nacional propostas como a do Dia do Heterossexual. Algumas cidades-símbolos do Brasil, como São Paulo e Rio de Janeiro, com grande contingente de evangélicos pentecostais e neopentecostais, superando a média nacional, segundo o IBGE, propuseram a ideia do Dia do Heterossexual. Em 20119 e 201510, nas Câmaras Municipais paulista e carioca, tramitaram propaganda da empresa de cosméticos, O Boticário. Tal propaganda colocou em tela casais homossexuais, masculinos e femininos, que trocavam presentes. Muitos evangélicos não viram problemas na propaganda e ainda criticavam outros cristãos, chamando atenção para o preconceito, mas também, e esse é um detalhe importante, para questões implicadas na teologia bíblica: as palavras de Jesus de Nazaré e os Evangelhos. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2015/06/150604_salasocial_oboticario_opinioes_evangelicos_rs?ocid =socialflow_facebook. Acesso em: 05 de junho de 2015. 9 Disponível em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2011/08/camara-de-sp-aprova-dia-do-orgulhohetero.html. Acesso em: 02 de junho de 2015. 10 Disponível em: http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-05-22/vereadores-querem-criar-dia-doorgulho-hetero.html. Acesso em: 02 de junho de 2015.

ou iniciaram a tramitação, projetos de lei instituindo a comemoração cívica da heterossexualidade. Em nível federal, o projeto de lei que institui o Dia do Orgulho Heterossexual, apresentado pela primeira vez em 2011, foi arquivado, mas desarquivado em 2015. Tornou-se motivo de polêmicas, fartamente noticiado por grandes jornais, pela pequena imprensa, nas redes sociais, e multiplicou reações, muitas irônicas e outras apologéticas (em defesa). Nesse sentido, uma convergência de elementos acentuou os processos de desnaturalização da heterossexualidade normativa: crise das autorrepresentações da masculinidade, ascensão dos evangélicos e seu conservadorismo moral na esfera social midiática e política, aumento da pluralidade de representações de gênero, inclusive heterossexual. Por iniciativa do deputado Eduardo Cunha, a tramitação do projeto de lei sobre o Dia do Orgulho Heterossexual na Câmara Federal começa dia 28 de junho de 201111. Apesar dos esforços, inclusive com a proposição de convocar-se uma Audiência Pública sobre o tema, que não foi realizada, em 31 de janeiro de 2015 o projeto é arquivado. Mas, no dia 10 de fevereiro de 2015, logo após a posse como Presidente da Câmara, Eduardo Cunha desarquiva o projeto e o coloca em andamento12. Os deputados, em geral, passaram ao largo da proposta, mas ao assumir a presidência da Câmara, o deputado evangélico Eduardo Cunha desarquiva o projeto de lei e dá prosseguimento ao mesmo. O desarquivamento vem a reboque dos problemas do presidencialismo de coalizão: na fatura cobrada pelo apoio ao Poder Executivo, em sua agenda econômico-social, a discussão em torno da laicidade do Estado e da secularização da sociedade se fez mais presente. Contudo, a heterossexualidade-máscula-familiar é, dentre diversos itens da contranarrativa evangélica, um dos mais importantes, ao lado de tentativa de fixar na Constituição a definição da família como sendo formada por homem e mulher, em termo sexual-biológico. Nessa medida, as justificativas de um dia no calendário dedicado ao heterossexual, registradas nos diversos meios de comunicação, revelam a solvência da autoevidência da antiga ordem. São peças retóricas de contrassenso porque procuram se equilibrar entre os argumentos modernos, reflexivos, e a reivindicação, tácita, da preeminência biológica ou de inversões simbólicas, nas quais a ordem dominante aparece como dominada ou submetida à dominação, a maioria torna-se minoria. Observe a justificativa elaborada pelo deputado Eduardo Cunha: JUSTIFICAÇÃO. A presente proposta visa resguardar direitos e garantias aos heterossexuais de se manifestarem e terem a prerrogativa de se orgulharem do mesmo e não serem discriminados por isso. No momento que discutem preconceito contra homossexuais, acabam criando outro tipo de discriminação contra os heterossexuais e além disso o estimulo da “ideologia gay” supera todo e qualquer combate ao preconceito. Aqueles que tem bom senso são contra qualquer tipo de preconceito, seja por cor, raça, religião e opção sexual. Contudo, não podemos confundir combate a preconceito com uma ideologia de venerar a razão do próprio preconceito. O objetivo aqui é a livre manifestação das famílias, daqueles que respeitam as opções sexuais de quem quer que seja, mas querem deixar claro a sua opção e não irão se envergonhar dela. Daqui a pouco os heterossexuais se

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O deputado é ligado a setores evangélicos desde a década de 1990, no caso, da Igreja sara Nossa Terra, grupo neopentecostal de classe média. Como deputado estadual (Rio de Janeiro), atuou fortemente em defesa de projetos ligados aos interesses evangélicos. Em 2003, foi eleito deputado federal pelo estado do Rio de Janeiro. http://www.portaleduardocunha.com.br/projeto-de-lei-n%C2%BA-1672-de-2011/11/616.html Acesso em: 15 de maio de 2015. 12 Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=510199. Acesso em: 20 de maio de 2015.

transformarão pela propaganda midiática em reacionários e nós queremos ter a nossa opção pela família sendo alardeada com orgulho 13.

Nota-se que os heterossexuais, na visão conservadora, aparecem como necessitados de direitos e garantias, como se fossem discriminados em empregos14, como se lhes faltassem direitos civis e sociais ou sofressem violência (assassinatos e outras) pelo fato de assumirem o que pretendem ser. A inversão continua: vê-se como necessária uma lei que garanta a prerrogativa de se orgulhar da heterossexualidade. Uma mimese perversa insinua-se: “somos nós, e não eles, os que são perseguidos, tolhidos, censurados e cerceados por sermos o que somos e gostarmos do que gostamos”. Ora, é justamente essa a razão dos ordenamentos póstradicionais que, quando não são mais evidentes, naturais, indissociáveis do mundo e de suas estruturas, só se tornam plausíveis por outas vias, reflexivas ou reacionárias, reativas. Acusa-se a existência de uma ideologia gay, a partir de uma invenção simétrica: discutir e colocar em pauta o preconceito contra os homossexuais criaria no mesmo ato – segundo a visão do Deputado Eduardo Cunha e de todo um grande segmento de pastores e líderes evangélicos que ocupam cargos públicos no Parlamento e no Poder Executivo (Federal, Estadual e Municipal) –, o preconceito contra os heterossexuais. Há um estranho espelhamento que revela outros sentimentos: medo e inveja, sentimentos que reforçam uma identificação neurótica com o “objeto” em relação ao qual se sente atraído e, por isso, sentese, simultaneamente, forte rejeição. A constante necessidade de autoafirmação de um tipo de desejo e de estrutura trai, por sua intensidade, a naturalidade, a certeza e a plausibilidade com que esta procura mostrar-se. Ora, se essa estrutura e essa forma, heterossexualidade-másculaviril, é natural por que a necessidade de sempre afirmá-la como natural? Quando se lê a afirmação “não podemos confundir combate a preconceito com uma ideologia de venerar a razão do próprio preconceito”, há um forte não-dito, que ganha nessa frase toda força, por inveja: venerar e venérea são etimologias que provém da palavra Vênus, a deusa romana do amor. Amar a razão de ser o que se é e gostar do que se gosta são negados aos outros, enquanto afirma-se a própria veneração e o direito de assim se manifestar. Observem a justificativa empreendida pelos vereadores cariocas de direita: Rio - Em momento de crise financeira, problemas na gestão de unidades de saúde, aumento da violência e greves nas obras das Olimpíadas, vereadores do Rio decidiram abrir espaço na agenda para tentar criar o “Dia do Orgulho Hétero” e incluí-lo no calendário oficial da cidade. A proposta é assinada por Jimmy Pereira (PRTB), Eliseu Kessler (PSD) e Alexandre Isquierdo (PMDB). A justificativa é garantir ao cidadão “o direito de se manifestar pacificamente e afirmar seu orgulho em ser heterossexual. Para Jimmy Pereira, existe preconceito contra heterossexuais. O vereador afirmou que o projeto não tem nenhuma inspiração religiosa. “Todo dia é dia de alguma coisa, ué. Existe preconceito contra gordinho, careca, baixinho, idoso. A gente sabe que há preconceito contra gays, mas não podemos deixar de valorizar os héteros, que perpetuam a espécie. Nada pode se opor à família tradicional. Já propuseram dia do orgulho gay aqui”, afirmou o parlamentar ao lembrar iniciativa semelhante do presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha (PMDB-RJ).

Brandindo uma suposta descontinuidade entre o projeto e a religião, a fala do vereador Jimmy Pereira reforça as evidências, que tenho investigado aqui, pelo que diz e pelo que não diz: reconhece que há preconceito contra gays, mas, ao mesmo tempo, apela ao estereótipo do 13

Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=510199. Acesso em: 20 de maio de 2015. 14 Estudos recentes indicam que os homossexuais, travestis e outras minorias sofrem intenso preconceito no mercado de trabalho. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/duas-em-cada-dez-empresas-serecusam-a-contratar-homossexuais-no-brasil-1703.html. Acesso em: 03 de junho de 2015.

biológico-sexual para contrapor, no caso, a reprodução sexuada homem-mulher, terminando por um grito de guerra em defesa da família tradicional. No entanto, o projeto do dia do heterossexual não é o único, mas está associado a outros que reforçam a pauta de construção15. Na mesma época em que assume a presidência da Câmara, fevereiro de 2015, Eduardo Cunha autorizou a recriação de comissão para discutir o Projeto de Lei 6583 de 2013, conhecido como Estatuto da Família. Destaco a frase do segundo parágrafo: a entidade familiar é um “núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher”. Esse projeto de lei tramita há quase dois anos na Câmara e um dos possíveis desdobramentos pode ser o embargo à adoção de crianças por casais homossexuais, que, embora não esteja previsto na legislação, inúmeras decisões judiciais têm garantido. Dentre outras medidas desarquivadas, há quatro contrárias ao aborto: o Projeto de Lei (PL) 7443/2006, que determina a inclusão do procedimento dentre os crimes considerados hediondos; o PL 1545/2011, que impõe ao médico que praticar o aborto, fora das hipóteses previstas em lei, uma pena de prisão que vai de seis a 20 anos; a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 164/2012, que diz que a inviolabilidade do direito à vida é garantia de todos “desde a concepção”, incluindo, portanto, o feto; e o PL 5069/2013, que passa a considerar crime contra a vida o anúncio de substância ou objeto destinado à interrupção da gravidez e a orientação de gestantes para o procedimento, com pena de até dez anos de reclusão. Por sua vez, a transição entre uma estrutura de sociedade tradicional em direção a uma estrutura moderna e hipermoderna não permite o retorno a uma antiga ordem, dualistasegmentária. A especialização de funções e tarefas, o pluralismo das esferas de valor, a emergência de sistemas abstratos de alta complexidade e dos especialistas acantonou os guardiões da verdade e a verdade oracular a grupos religioso-espirituais restritos (GIDDENS 2001). E está aí o sentido de viver em uma sociedade pós-tradicional: a qualidade esotérica das tradições religiosas, que não é transferível e comunicável por parte dos guardiões às pessoas leigas, cede lugar cada vez mais aos sistemas peritos e abstratos que podem ser absorvidos por meio de treinamento e reflexividade (GIDDENS, 2001). Dessa forma, as tradições religiosas, em sua face erudita e letrada (as formações teológicas), também são afetadas fortemente e o poder ontológico e último da verdade oracular, ou seja, da verdade proferida pelos guardiões (sacerdotes e outros profissionais do sagrado), é perdido nos espaços políticos e públicos (GIDDENS, 2001). Doravante, caso alguns grupos queiram manter ou propor uma ordem sócio-religiosa a respeito da sexualidade-gênero, será necessário ultrapassar os limites da verdade oracular e dos poderes dos guardiões em direção ao debate público, às ciências em geral, aos meios de comunicação e à legislação/poder estatal. Os evangélicos conservadores têm preferido investir nessas frentes, sobressaindo-se os meios de comunicação e o poder estatal do legislador. Todavia, ao perfazerem essa trajetória, há problemas substanciais que se erguem contra os desejos de poder e as expectativas religiosas. Há uma dinâmica sobre a qual não há total controle por parte de algum grupo, pois o jogo democrático envolve persuasão e convencimento, capacidade de negociação, de acumulação de capital político e simbólico, oponentes e parceiros. Nesse sentido, a participação plena numa sociedade pós-tradicional, por parte de grupos religiosos defensores de uma verdade oracular sobre a sexualidade-gênero, significa a participação na arena do jogo democrático. Mas isso envolve também a participação em outras frentes, como a arena acadêmico-científica, na qual há um conflito insolúvel entre as ontologias naturalistas e as epistemologias não-naturalistas em relação aos enunciados, conceitos e categorias científicas.

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Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=597005. Acesso em: 25 de maio de 2015.

Considerações quase conclusivas A campanha nacional pelo orgulho heterossexual, defendida pelo deputado Eduardo Cunha, mostra, em dois sentidos, negativo e positivo, uma mesma orientação cultural. Primero, que há uma suposta campanha pela transformação do sexo em uma coisa artificial, inventada por certos segmentos para desvirtuar e desvalorizar a família tradicional. Segundo, que a dimensão do biológico (instinto, genética, natureza) é a ordem fundamental e verdadeira ou, em outras palavras, a campanha pelo biológico é também uma invenção da cultura, uma luta político-religiosa. As modalidades de relação que religiosos, com destaque para os evangélicos pentecostais e neopentecostais, têm com o poder público reverberam, com algum sucesso, valores muito presentes em nossa cultura. Com efeito, o despedaçamento do consenso cultural-religioso sobre o que é ser e parecer viril, homem, heterossexual, homem, pai, chefe e marido, trouxe à tona muitas formas de narrativa, associação, campanha cultural, luta e mobilização – regressivas ou defensivas. Dito de outra maneira, são formas características da “moral fechada”. No mesmo ato em que defendem uma ordem natural das coisas e das relações entre homens, mulheres e família, desejos, sexualidade e vida, supostamente ameaçadas por outras ordens artificiais e equivocadas, reconhecem a não-naturalidade daquilo que defendem, pois precisam da retórica e de ações concretas para tornar plausível essa ordem natural. Nessa medida, uma posição antropológica poderia contribuir para desnaturalizar e desbanalizar as dimensões nas quais o debate, a polêmica e a pesquisa sobre homem-machomasculino têm ocorrido: a natureza (biologia, instinto), a cultura (estruturas simbólicas), as minorias sociossexuais e as maiorias religiosas conservadoras. Por exemplo, minorias sociossexuais podem lançar mão de argumentos ontológicos, substituindo as mitologias de origem (BUTLER, 2014). Por outro lado, as discussões em torno do uso desses símbolos são bastante divergentes, mas é possível conceber o corpo como um texto socialmente construído e o sistema de sexo/gênero como um sistema de escritura (PRECIADO, 2002). A busca dos evangélicos conservadores é pelo reestabelecimento de uma escritura vigente em um determinado período histórico como matriz dominante heterossexual sobre corpos e corporeidades, mas também uma escritura que marque as ruas (marchas e mobilizações de rua), calendários (Dia do Heterossexual), enfim, o corpo cívico da nação com a ideia de conaturalidade entre família (homem-mulher), sexualidade (macho-fêmea) e orientação sexual (heterossexual). Nesse sentido, contrapõe-se a outras buscas de redefinição do texto (sexo) e da escritura (gênero) por parte de minorias sexuais, movimentos feministas e homossexuais. As equações que enlaçam heterossexualidade-masculinidade-homem-marido-pai podem existir no meio religioso como uma das possibilidades de construção sexo-gênero, sem que seja, necessariamente, defendida por leis e legislações como a única ou a verdadeira. Essas equações podem, inclusive, sofrer o influxo das conquistas e lutas feministas e de minorias tanto na esfera privada quanto na esfera pública. Isso, por exemplo, quando desnaturalizam antigas posições de afastamento do homem-heterossexual das tarefas domésticas, legitimando a redução da desigualdade de papeis e atribuições (lavar, passar, cuidar dos filhos) e quando legitimam novas posições e papeis das mulheres como empresárias, políticas, trabalhadoras e outras. É possível que essas equações (transformadas ou não) coexistam com outras formas e estruturas. Um dos indicadores dessa possibilidade seria a disposição de alguns grupos de evangélicos em aceitar e respeitar, por razões teológico-bíblicas ou por outras razões, inclusive acadêmico-sociais, outras configurações de afeto e família (homossexuais) – ainda que sejam grupos minoritários e de pouca visibilidade pública. Contudo, as tecnologias da escritura do sexo e gênero, em qualquer de suas combinações, bem como as instituições que lhes dão sustentação (majoritárias e minoritárias),

em especial no campo da religião, necessitam ser abaladas, repensadas e ressemantizadas, abrindo-se o caminho para novas ideias e práticas na relação entre a heterossexualidade, a sociedade pós-tradicional e mundo religioso evangélico. Referências Bibliográficas BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 7 ed. Rio de janeiro: Bertrand do Brasil, 2010. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. CARRARA, Sérgio. Utopias sexuais modernas: uma experiência religiosa americana. Religião & Sociedade. Rio de Janeiro, volume 20, número 1, abril de 1999, p. 93-108. FERNANDES, Rubem César; CARNEIRO, Leandro Piquet; MARIZ, Cecília; MAFRA, Clara. “Novo nascimento: os evangélicos em casa, na igreja e na política”. In: FERNANDES et lii. Novo nascimento: os evangélicos em casa, na igreja e na Política. Rio de Janeiro: Mauad, 1988. GIDDENS, Anthony. “A vida em uma sociedade pós-tradicional”. In: ______. Em defesa da sociologia. Ensaios, interpretações e tréplicas. São Paulo: UNESP, 2001, p. 21-96. LEMOS, Fernanda. Religião e masculinidade. Identidades plurais na modernidade. Santo André: Fortune, 2009. MACHADO, Maria das Dores Campos. Política e religião: a participação dos evangélicos nas eleições. Rio de Janeiro: FGV, 2006. MUSSKOPF, André. Via(da)gens teológicas: itinerários para uma teologia queer no Brasil. São Paulo: Fonte Editorial, 2012. PRECIADO, Beatriz. Manifiesto contra-sexual: prácticas de subversivas de identidad sexual. Madrid: Opera Prima, 2002. VITAL, Christina; LOPES, Paulo Victor Leite. Religião e Política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll & Instituto de estudos da Religião (ISER), 2013.

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