A hipermargem é o centro

July 24, 2017 | Autor: Adriana Facina | Categoria: Música Popular, Periferia
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A hipermargem é o centro Adriana Facina1

Novembro de 2014. Periferia de Belém. Após morte de um policial, outros policiais resolvem se vingar. Terra Firme, Guamá, Jurunas, Sideral, Marco, mais de uma dezena de pessoas mortas. Corpos no chão das periferias brasileiras, quase sempre negros e jovens, invariavelmente pobres. Com eles são sepultados sonhos e sons. É uma juventude sonora, corpos moldados na cultura do sound system, compartilhando diásporas e fluxos globais. No Brasil de hoje, onde mais se inventa música urbana, ao mesmo tempo contemporânea e territorial, é também onde mais se massacra. À potência criativa, o Estado responde com violência letal. Como afirmam Veena Das e Deborah Poole, nas margens o Estado reinventa suas fronteiras e suas formas de controle. Mas é também permanentemente desafiado por formas de resistência e reexistência criados por homens e mulheres na luta pela sobrevivência. E a criação artística é, certamente, uma das manifestações dessa luta. O livro de Tony Leão da Costa, originado de sua tese de doutorado em História Social, traz para essa reflexão a categoria de hipermargem. A margem tensionada ao extremo, a cidade amazônica, norte de um país periférico. Além dela, o rio. Segundo o autor, essa hipermargem é, ao mesmo tempo, espacial, cultural e histórica. Outras temporalidades, outras territorialidades, a différance tensionando fronteiras e fazendo emergir entrelugares sonoros. Atravessada por fluxos que transbordam, essas sonoridades são da cidade, são belenenses. Mas são também caribenhas, diáspóricas, indígenas, popular brasileiras, globais, frequentemente invertendo, ou subvertendo, as trilhas culturais que vão do centro para a periferia. A música de subúrbio, ou melhor, as músicas de subúrbio são assim apresentadas a partir de perspectivas múltiplas. A princípio, por meio da narrativa histórica um pouco mais linear que caminha da invenção do carimbó como tradição cultural do Pará ao brega como música moderna, engendrada nas mediações da indústria cultural (música popular “povão”, segundo o autor), chegando aos gêneros mais recentes, como a lambada e o tecnobrega. As tensões, os conflitos, os modos de produção musical que atravessam essa temporalidade histórica são abordadas pelo                                                                                                                 1

Antropóloga, professora do PPGAS/Museu Nacional/UFRJ.

autor a partir de um imenso e consistente corpus documental, incluindo dezenas de entrevistas com artistas, produtores, radialistas. O caboclo urbano, suburbano, é um personagem que se constrói nessa páginas por meio de uma cartografia sócio-cultural de Belém que se conjuga a um inventário de suas práticas musicais e literárias. Somos convidadas a um passeio musical-literário pelas ruas e bairros da cidade. Belém é personagem e não somente cenário na narrativa de Leão da Costa. Sobre esse plano mais fincado nas terras beleneses, ergue-se um outro que trata das relações dessa produção musical com a música “brasileira”, com as necessárias aspas indicando a construção histórica de uma centralidade cultural desafiada pelas suas margens. São também abordadas as relações com a música caribenha,

estabelecendo

nesses

múltiplos

vínculos

os

diálogos

de

um

cosmopolitismo periférico extremamente criativo, ao mesmo tempo submetido a lógicas comerciais da indústria cultural e subversor dessa mesma lógica. Nos subúrbios de Belém, as releituras e apropriações das “modas” do centro se conjugam com repertórios próprios, com práticas territorialmente inscritas que inventam uma cidade capitalmente musical. Atravessando esses planos estão as implicações do autor, muito significativas para uma proposta metodológica que é também uma escolha política. Migrante em Belém, vindo do interior do Pará para as periferias da capital, o olhar de Tony sobre seu “objeto” está erigido a partir da hipermargem. Não apenas como local geograficamente situado, mas também culturalmente vivido por alguém que é um agente cultural da cidade. É o boi-bumbá, o Bloco da Canalha, a ocupação “aquilombada” ou “amocambada” do Bar do Parque e posteriormente do Mercado de São Brás, o ativismo na cultura ressignificando a cidade e sua narrativa afetiva e afetada. A sua observação participante é participação observante, tornando uma vivência coletivamente partilhada matéria-prima para a construção de conhecimento acadêmico. Um conhecimento que, por sua vez, é ação política a afirmar uma cultura que sobrevive, resiste, reinventa, cria. A hipermargem se torna o centro não apenas por causa de uma produção musical rica e diversa, mas porque dali parte um olhar sobre as coisas, de Belém e do Brasil. Não um olhar celebratório da pobreza cordial, mas uma perspectiva que traz o conflito, as desigualdades sociais e regionais, as ambivalências para o coração da criação artística. O complexo é um princípio da hipermargem, posicionando seu lugar de fala no campo oposto aos discursos

simplificadores que fundam violentamente a bárbarie, desumanizando o povo da periferia. Na profusão de sons, cores, ritmos, passos de dança, cheiros, sabores as margens confrontam a pasteurização dos espaços públicos “revitalizados” pelo capital e os guetos privados do consumo. É a cidade da rua, do bar, dos clubes populares, dos mercados, onde criar arte é criar estratégias de sobrevivência, física e simbólica. O livro que vocês irão ler agora é pulsão de vida. Seu desdobramento político mais evidente, e audível, é um sonoro tapa na cara da cultura do extermínio.

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