A história das verdades necessárias

June 20, 2017 | Autor: Leonardo Bernardes | Categoria: Wittgenstein, Imre Lakatos, Karl Popper
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A HISTÓRIA DAS VERDADES NECESSÁRIAS 1 Leonardo Bernardes

Em seu Ensaio autobiográfico Borges confessa expedientes que, embora bem conhecidos e empregados regularmente, não deixam de compor parte do fascínio que inspira sua obra. A História da eternidade é um dos reflexos do seu gosto por expressões que guardam algo de deliberadamente mal ajustado. Contraposta à exigência de limites, ainda que parcos, a eternidade não parece bem encaixada. A expressão é algo tão fantasioso como a imagem de um livro cujas páginas são infinitas e nunca se repetem2. Assim, a expressão a história das verdades necessárias faz lembrar as escolhas do escritor portenho, pois de verdade necessárias não esperamos senão que quedem estanques, à espera do diligente cientista a quem caberá revelar sua função essencial ao funcionamento do universo. Quando então ousamos sugerir que esse mundo etéreo pode ser tragado pelas engrenagens incessantes da história, o mesmo espanto que Borges costuma despertar reaparece, pois a historicidade instala a vicissitude onde só poderíamos enxergar fixidez. A recusa em aceitar a historicidade de conceitos reguladores, teorias rudimentares, verdades necessárias, seja qual for o nome dados às estruturas do discurso responsáveis pela composição das lentes por meio das quais olhamos o mundo parece um componente comum a muitas reflexões filosóficas. Articular distintas reflexões pode nos ajudar a lançar luz sobre novas questões e aprofundar outras já postas, mas é um trabalho que exige tempo que ora nos é indisponível. No entanto, talvez convenha destacar ilustrativamente como poderíamos identificar o solo comum camuflado em diferentes expressões, a fim de sugerir o alcance do que queremos apresentar. Nesse propósito, vejamos a filosofia de Popper como a primeira oportunidade para ilustrar nossa ideia. Uma característica destacada que convém realçar de início é o afinco com que Popper assimilou as lições humeanas. Seu pensamento se estrutura declaradamente segundo o propósito de evitar as incoerências do indutivismo3. Desse modo, para ele o método científico não deveria consistir num processo pelo qual passamos de enunciados singulares a enunciados universais. O propósito de responder ao justificacionismo também consta no quadro de características definidoras do pensamento de Popper, isto é, podemos compreender seu trabalho também como um esforço a se posicionar diante do problema de saber se nosso conhecimento pode ser justificado. Sua resposta 1 2 3

Texto apresentado no IV Simpósio Baiano de Filosofia da Faculdade de São Bento em 30 de agosto de 2013, em Salvador/Bahia. As ideias de eternidade e infinitude tem uma semelhança de família, mas é preciso lembrar que o infinito no real é um conceito problemático, como salienta Hilbert a partir dos trabalhos de Cantor. Aqui, no entanto, queremos apenas jogar com as imagens e com o senso comum. “A teoria a ser desenvolvida nas páginas seguintes opõe-se frontalmente a todas as tentativas de utilizar as idéias da Lógica Indutiva.” POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Editora Cultrix. p. 29-30.

inicial, no entanto, foi ambígua, pois embora pareça um movimento contestatório, uma categórica negativa à ânsia por justificação, em verdade traz consigo um forte componente de continuidade 4. O falsificacionismo dogmático, nome com o qual Lakatos designa a primeira fase dessa etapa do pensamento de Popper, admite que todas as teorias científicas são falíveis, frustrando as esperanças de justificacionistas empedernidos e cultivando uma atitude seguramente afinada, ou melhor, familiar ao ambiente que circunda aquilo que designamos como a história das verdades necessárias. Porém, a confiança que deposita nos enunciados singulares preserva uma herança justificacionista. Assim Popper estabelece suas ideias: Minha posição está alicerçada numa assimetria entre verificabilidade e falseabilidade, assimetria que decorre da forma lógica dos enunciados universais. Esses enunciados nunca são derivados de enunciados singulares, mas podem ser contraditados pelos enunciados singulares. Consequentemente, é possível, através de um recurso a inferências puramente dedutivas, (com auxílio do modus tollens, da lógica tradicional), concluir acerca da falsidade de enunciados universais a partir da verdade de enunciados singulares 5.

A verdade dos enunciados singulares cumpre papel central nesta maneira de compreender e demarcar o método científico, pois o recurso a inferências dedutivas só pode ser uma alternativa segura ao indutivismo se o falseamento resultante da operação estiver ancorado em bases firmes. O justificacionista pensava poder justificar suas teorias mediante fatos — e Popper denunciava a precariedade de suas justificativas, pois dos fatos não era possível extrair a verdade (e por consequência a validade positiva) de enunciados universais (como Hume nos houvera ensinado). No entanto, sua própria posição solicita que os fatos nos digam algo. Não algo sobre enunciados universais, seguramente, mas a verdade de enunciados singulares, que constituem uma base empírica cuja certeza não pode ser transmita às teorias. O justificacionismo ainda se preserva aí na versão enxuta da exigência antes colossal de que a natureza (ontologia) venha a chancelar a verdade dos nossos enunciados singulares. Conserva-se assim não só uma distinção bem marcada entre natureza (ou mundo) e linguagem, como também a prerrogativa que cabe à natureza de referendar e selecionar os instrumentos teóricos que refletem com fidelidade suas formas gerais. Lakatos observa que todas as vertentes da teorias justificacionista (e ele considera o falsificacionismo dogmático uma delas) contém uma psicologia da observação6. Nela estão prescritas as condições nas quais podemos confiar na verdade que os sentidos nos revelam. Por 4

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“Dogmatic falsificationism admits the fallibility of all scientific theories without qualification, but it retains a sort of infallible empirical basis. It is strictly empiricist without being inductivist: it denies that the certainty of the empirical basis can be transmitted to theories. Thus dogmatic falsificationism is the weakest brand of justificationism.” LAKATOS, Imre. The methodology of scientific research programmes. Cambridge: Cambridge University Press, 1978, p. 12. POPPER. A lógica da pesquisa científica. p. 43. (grifos nossos) LAKATOS. The methodology of scientific research programmes. p. 15.

fim, os sentidos não podem ser a fonte da verdade dos enunciados universais, mas podem abonar a verdade de enunciados singulares. O privilégio atribuído à natureza remonta em boa medida à distinção entre o que é puro e o que não é7, ou melhor, entre o mediato e o imediato. O retorno à natureza é assim o recurso ao imediato, àquilo que não está contaminado com as impurezas da teorias e que, sendo assim imediato, pode se mostrar como verdadeiramente é. Não pensem que o vocabulário deliberadamente anacrônico ou atópico impede o manuseio apropriado das ideias com as quais lidamos, em verdade somente usos semelhantes conseguem fazer ver os compromissos subterrâneos (ou nem tanto) às quais se associam tais ideias. Uma citação oportunamente mencionada por Lakatos talvez torne ainda mais claro este aspecto: “Quanto mais aperfeiçoamos uma teoria, mais aprendemos que a ordem lógica em que se dispõem as leis experimentais é o reflexo de uma ordem ontológica” 8. À parte o contexto, o comentário de Duhem torna explícito o privilégio que com algum receio queríamos sugerir aqui. E também a função especial que cabe ao cientista experimental, responsável por falsear ou não os artifícios teóricos contrapondo-os à natureza (em relação, claro, ao cientista teórico, responsável por elaborar a hipótese posta a teste) 9. Desse modo, só se pode escapar à subordinação ao observável — que é reflexo da prevalência que deve existir da ontologia sobre teoria — questionando a pureza e a imediaticidade das observações. Esse é o caminho que leva Popper à segunda etapa do seu falsificacionismo, designada por Lakatos falsificacionismo metodológico. Trata-se de dizer que uma observação não é uma ligação direta entre a teoria e a natureza, cuja evidência se impõe porque universalmente constatável, mas que ela só podem ser entendida no contexto de teorias de bases mais simples e previamente aceitas 10. O falsificacionismo metodológico tem então como uma das suas características mais destacadas um traço convencionalista. Isto é, a distinção entre o que é teoria e o que observação, ou, em última instância, entre o que é linguagem e o é que natureza, não se decide mais por referência ao caráter de cada uma delas: sendo a observação por assim dizer natural, proveniente dos sentidos e a teoria produto da ação livre do homem, construto e especulação artificialmente projetada e que deve passar pelo crivo da natureza — que lhes diz sim ou não 11. Se proposições factuais, enunciados 7 8 9

Cf. LAKATOS. The methodology of scientific research programmes. p. 15. DUHEM, P. apud LAKATOS. The methodology of scientific research programmes. p. 21. “Dogmatic falsificationists draw a sharp demarcation between the theoretician and the experimenter: the theoretician proposes, the experimenter — in the name of Nature — disposes”. LAKATOS. The methodology of scientific research programmes. p. 13. 10 E isso sempre nos pareceu inquestionável! Mas essa é uma outra conversa e, tendo em vista essa questão, talvez convenha ter em mente Feyerabend e seus comentários de que sentenças que julgamos observacionais só podem ser entendidas supondo teorias mais simples de base: “(...) calling the reports [informes] of our human eye 'observational' only indicates that we 'rely' on some vague physiological theory of human vision.” LAKATOS. The methodology of scientific research programmes. p. 23. 11 Esta página é extremamente ilustrativa de tudo que está se discutindo aqui. LAKATOS. The methodology of scientific research programmes. p. 13.

singulares e observacionais são igualmente falíveis, na medida em que supõem uma teoria de fundo por meio da qual se constituem, então não há mais proposições não-teóricas. Todas as proposições da ciência são teóricas, distinguindo-se apenas em níveis que vão das mais aceitas às mais instáveis e controversas12. Desse modo, tendo em vista nossos interesses momentâneos poderíamos comparar aspectos envolvidos na transição do falsificacionismo dogmático ao falsificacionismo metodológico a algumas questões caras à reflexão de Wittgenstein. Apesar das inegáveis diferenças, também Wittgenstein viu-se comprometido com posições convencionalistas. E para explicar esta então nova condição talvez convenha representar de modo breve e inusual algumas das questões que compõem o quadro de dificuldades com os quais ele se confrontou. A relação entre linguagem e mundo é talvez a mais nítida dificuldade a ser decifrada. Nas Investigações Filosóficas, em muitas oportunidades podemos enxergar reconstituídas as tentações a que Wittgenstein coube interditar. Sempre pareceu razoável perscrutar o mundo em busca de elementos pelos quais pudéssemos explicar não só a necessidade que reconhecíamos em nossas práticas mas também a verdade que pretendíamos atribuir aos nossos conceitos. E assim, uma vez mais, o mundo, como coisa externa, seria chamado a validar, ou melhor, a justificar as opções conceituais no interior de nossa linguagem. E para que não reste dúvidas sobre isso convém lembrar que para Wittgenstein justificar “consiste em apelar para uma parte/lado (Stelle) independente”13. Ora, também para o pensamento de Wittgenstein um dos pontos de inflexão consiste na desconstrução da independência ou da autoridade do mundo. Ou então, posto de outra maneira, na dissolução da possibilidade da separação funcional entre mundo e linguagem. Trata-se de confrontar a ideia de que à linguagem e seus construtos cabe sempre manter um certo nível de correlação a um mundo entendido como coisa que, embora não pudéssemos dizer sem auxílio da linguagem, fosse algo distinto no sentido em que assinala Wittgenstein, como parte independente (unabhängige Stelle) ou autoridade independente, conforme o seu tradutor 14. Se o mundo não pode mais responder pela justificação dos nossos conceitos, pois não sendo independente não goza mais da autoridade que a independência poderia lhe oferecer, cabe-nos a inevitável tarefa de repensar o estatuto das bases sobre as quais está fundada nossa linguagem. As críticas à psicologia da observação subjacente à primeira forma do falsificacionismo 12 LAKATOS. The methodology of scientific research programmes. p. 16. 13 Traduzir Stelle por autoridade parece forçoso, mas com isso fica bem representada não só a exterioridade daquilo que justifica, mas também a autoridade que lhe cabe por conta da independência que a exterioridade lhe confere. WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations. Oxford: Basil Blackwell, 2009, § 265. 14 Apesar da controvérsia que consiste em supor ou insinuar que também para o Tractatus o mundo é tomado como algo independente, convém esclarecer que o que queremos dizer é tão somente que também ali a linguagem, em algum ponto, precisa supor que se refere a algo independente dela mesma e, portanto, que para estabelecer as condições da significação seus próprios elementos não lhe bastam.

inspiraram as mudanças que culminam na ideia de que as proposições observacionais não são meros produtos do uso dos sentidos, desassistido de qualquer teoria. A verdade que parecíamos reconhecer em tais proposições não se justifica por expedientes extrateóricos, externos a um emaranhado teórico que lhe apoia, pois é ocupação fundamental da teoria convencionar que proposições devem ser tratadas como não-problemática, como observacionais lato sensu. Não nos interessa aqui o desenvolvimento do pensamento de Popper, que resultará também num aperfeiçoamento do convencionalismo aqui esboçado, nem as críticas a ele dirigidas, mas tão somente as questões que determinaram respostas que mantém um paralelismo ilustrativo com certos aspectos do pensamento de Wittgenstein. Aquilo que queremos indicar como comum a duas filosofias tão singularmente características não é tanto o ímpeto contra o qual em dado momento ambas se dirigem, ímpeto de buscar resposta a algumas questões supondo uma realidade como coisa exterior cujo espelhamento justifique esta ou aquele teoria, este ou aquele conceito. Antes, é a convergência a um mesmo resultado que lhes parece comum. Isto é, no contexto de pensamentos diferentes problemas relativamente similares dão ocasião a uma postura comum frente à ciência, os instrumentos que emprega e o conhecimento que produz. A expressão a história das verdades necessárias não só representa o signo dessa postura frente à ciência, como também oferece oportunidade a que se divise, pelo espanto provocado pela historicidade atribuída a verdades ditas necessárias, o desafio imposto ao seus defensores e a abrangência dos seus domínios. A ciência, suas teorias e enunciados, não apenas são passíveis de mudanças, mas também esta plasticidade constitutiva não compromete sua capacidade construtiva, nem sua força normativa. É gigantesco o desafio de responder a uma tradição tão longeva e difusa quanto aquela que pensa que a ciência retira sua força de fatos cuja verdade elementar não pode ser contestada, produzindo assim a estabilidade que alicerça os construtos teóricos que se seguem à descoberta dos fatos. Sem esse amparo ontológico, a ciência está condenada à errância e à instabilidade que erode a confiança que gostaríamos de lhe empenhar 15. Não é de espantar que tanto estranhamento cause qualquer suspeita de que se esteja advogando em favor de um relativismo. A história da verdades necessárias é o recado que deveríamos entender mesmo antes de compreender em detalhe as muitas reflexões nas quais tomam forma o mesmo descompromisso

15 Nota adicionada 05/11/2015: Uma “instabilidade”, diga-se de passagem, da qual já se queixava Descartes e contra a qual ele buscou encontrar sua certeza fundante, garantidora do conhecimento seguro.

teórico com uma ontologia16: a linguagem e suas manifestações são fenômenos espaçotemporais 17. Furtar-se a essa constatação a fim de escapar às consequências que lhe seguem — a falibilidade ou em certo sentido a contingência — só produzirá confusão e a incapacidade de compreender fenômenos como a ciência. A compreensão do que se pretende expressar por meio do dito a história das verdades necessárias depende de que se aceite o falibilismo — embora não apenas isso. Depende também de que se compreenda que os alicerces e bases que amparam nossas ações não são definidos em função de verdades espelhadas da natureza. A natureza que gostaríamos fiadora das nossas especulações e aventuras teóricas, isto é, parâmetro contra o qual atestaríamos a veracidade de nossas teses, não é senão a representação resultante da aplicação das mesmas. É que, conforme insinuamos até aqui, temos de nos empenhar a pensar o mundo não como sendo erigido a partir de verdades fundamentais que nos caberia justificar empregando todos os recursos e ferramentas da ciência, mas sob bases que não se definem segundo verdades justificáveis. Só assim poderemos não só nos reconciliar com nossa história (e particularmente com a história da ciência), mas fazer medrar uma atitude dialógica frente às outras culturas num mundo onde as diferenças são impelidas à coexistência (não necessariamente pacífica) em função das novas tecnologias e de questões políticas. De outro modo, arriscamos cultivar uma visão do mundo como a de quem se arroga por conhecer uma realidade que outros desconhecem, de quem pensa poder justificar sua visão, contrariamente à visão do outro. Essa maneira de pensar só pode redundar numa atitude como a de Frazer, que julgava as expressões rituais de outros povos formas primitiva de ciência18. Frente a um conhecimento que se justifica pela natureza, todas as opções alternativas são nenhuma outra coisa senão diferentes expressões do falso (ou, neste caso, do primitivo e incipiente)19. Isso não significa, porém, que instrumentos teóricos e conceitos que empregamos para lidar com o mundo sejam independentes do mundo ele mesmo. A formação de conceitos e teorias é 16 Convém registrar que a expressão foi inspirada em BOUVERESSE, Jacques. La force de la règle. Paris: Les Éditions de Minut, 1987, p. 152. “Pour le cognitivisme, la dureté du « doit » logique se ramène, en fin de compte, a la dureté spéciale d’une certaine catégorie de faits, que nos théories logiques et mathématiques s'efforcent de représenter correctement. Pour Wittgenstein, la dureté en question ne peut être que celle d'une règle que nous nous imposons; et, puisque la décision de conférer à une proposition le caractère intemporel d’une règle n’a manifestement pas le caractère irrévocable que devrait avoir la reconnaissance supposée d’une vérité éternelle, il est tout à fait compréhensible que les vérités nécessaires aient une histoire , ne serait-ce que parce que les incapacités imaginatives qui nous amènent à les reconnaître comme telles ne sont pas forcement définitives”. (grifo nosso) 17 Cf. WITTGENSTEIN. Philosophical Investigations, § 108. 18 Cf. WITTGENSTEIN, Ludwig. Remarks on Frazer’s Golden Bough. In: ______. Philosophical Occasions: 19121951. Cambridge: Hackett, 1993. 19 Nessas ocasião convém lembrar de Lévi-Strauss. STRAUSS, Levi apud FEYERABEND, Paul. Against the method. London: Verso, 1993, p. 3. “Several thousand Cuahuila Indians never exhausted the natural resources of a desert region in South California, in which today only a handful of white families manage to subsist. They lived in a land of plenty, for in this apparently completely barren territory, they were familiar with no less than sixty kinds of edible plants and twenty-eight others of narcotic, stimulant or medical properties”.

constitutiva da história natural humana e sujeita a todos os efeitos desse pertencimento. Não se trata de sair de um polo a outro do mesmo problema: abandonar o justificacionismo como uma das expressões da subordinação dos nossos conceitos a uma realidade externa, para a posição inversa que professa a subordinação do mundo, como representação (ou projeção), às regras da linguagem e da ciência como peças autônomas de fabricação da realidade. O que nos parece é que podemos passar sem divisões categóricas e funcionais entre o mundo e a linguagem, sem cair na armadilha de, por razões as mais variadas, fazer um prevalecer sobre o outro. E também nos convém sugerir, por ora sem maiores pretensões, que pensamentos distintos convergem a respeito desse tema, redundando na aceitação comum a isso que nomeamos aqui como história das verdades necessárias. Sem conceder a essa ideia a mesma ênfase que tenho aqui dispensado, tais reflexões advogam quase paralelamente em nome de uma perspectiva que identifica como antropológica — e não ontológica — a natureza de certas questões centrais. E o reconhecimento de que as questões centrais da ciência e da linguagem são antropológica e não ontológicas só é possível após o trabalho reflexivo prévio que desloca a ontologia, disfarçada de saber e verdade, do eixo a partir do qual elas se orientam. Por fim, de tudo isso resulta a constatação, que tem efeitos teóricos mas também práticos, de que a natureza não é senão o resultado do atrito entre condições materiais e a nossa presença como coisa simbolizante, cujas reações e respostas às circunstâncias naturais criam uma cultura dinâmica, contingente — em uma palavra, histórica —, cuja forma só se fecha em moldes fixos em nome da conservação da forma de vida dos responsáveis pela elaboração dos discursos que a sustentam. Não admira que Foucault tenha atribuído à vontade de saber a gênese da biopolítica, do biopoder20.

20 Cf. FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1999. (Volume I)

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