A história do sujeito escolar como acto de resistência

Share Embed


Descrição do Produto

A história do sujeito escolar como acto de resistência Tomás Vallera Na conferência intitulada O que é o acto de criação?, em Maio de 1987, Deleuze, citando Paul Klee com o intuito de discutir a relação entre a “luta dos homens” e a “obra de arte”, introduz a noção de “povo por vir”. Anunciado em cada produção artística, este seria um povo em “falta”, que não existe ainda. Por não ter conhecimento dele, o proponente do gesto criativo não pode instaurar-se nessa relação na qualidade de líder, guru ou profeta. Apesar disso, existe para o pensador francês um vínculo entre o acto de criação e esse devir insondável dos homens, ainda que não seja da ordem do culto ou do militantismo. É uma ligação descrita como sendo “estreita” e “misteriosa” e que decorre do facto de o gesto criativo constituir, em si mesmo, um acto de resistência. Mas para que a obra de arte exista, para que esse sujeito se institua, é necessário um elemento adicional. O momento fundador da ligação entre o objecto de arte, a luta e o povo ignoto, é a afloração – pouco corrente e destinada a um saber específico – de uma ideia: «Não temos uma ideia em geral. [Temos] uma ideia em pintura, […] em romance, […] em filosofia, ou […] em ciência». Neste sentido particular, através do qual se configura uma concepção universal do acto criativo, o artista pode emergir no seio de qualquer disciplina: «Se pergunto a um erudito [savant] o que ele faz, também ele inventa. Ele não descobre – a descoberta existe, porém não é por meio dela que definimos uma actividade científica como tal – mas cria como se fosse um artista». É na medida em que partilham essa característica que as diversas áreas do conhecimento podem entrar em diálogo: «Se uma pessoa qualquer pode falar com outra […] se um cineasta pode falar com um homem de ciência, se [este] pode ter algo a dizer a um filósofo e vice-versa, é […] em função das actividades criativas de cada um». Porém, a ideia só aparece por relação com algo que não é da mesma natureza que ela, cujos propósitos não se coadunam com os seus e em relação aos quais ela não pode senão distanciar-se. Esse domínio em que ela não se inscreve é a esfera da informação e da comunicação: «Costumo dizer [...] que ter uma ideia não é da natureza da comunicação. [É] irredutível a toda comunicação». O que seria, então, a comunicação, nesta perspectiva que a situa à margem da inventividade? Pois bem, «é a transmissão e propagação de uma informação». No fundo, quando somos informados, «dizem-nos o que julgam que devemos crer»; informar não seria mais do que «fazer circular uma palavra de ordem». Remata ainda o co-autor do AntiÉdipo: «As declarações da polícia são chamadas, a justo título, comunicados. [...] O que equivale a dizer que a informação é justamente o sistema do controle» (Deleuze, 1999: 3, 10-14). Julgo ser possível retirar desta breve reflexão um conjunto de elementos profícuos para pensar a história da educação. Trata-se, nomeadamente, de ponderar o historiador na qualidade de sujeito de uma prática e a educação moderna enquanto objecto privilegiado no seu interior. Mais especificamente, pretende-se fazer o retrato de um modelo de pesquisa que tem por praticante o historiador da educação e por objecto o sujeito escolarizado. Equivale isto a dizer que a história da educação, em termos gerais, constitui uma área de investigação em que se confundem o sujeito e o alvo de todas as inquirições. O exercício que aqui se ensaia consiste em fazer o historiador da educação passar pelo crivo do artista (e do acto de criação que o

instaura como sujeito falante) entendido nos termos esboçados por Deleuze. Quando se propõe escrever sobre o surgimento desse novo actor social na trama da história, papel que ele próprio encarna, que ligação estabelece o investigador com um povo por vir? Até que ponto se vê envolvido na “luta dos homens” e em que medida pode o seu trabalho proporcionar um acto de resistência? Por fim, de que forma singular se afirma a sua escrita no que seria um percurso de afastamento relativamente às palavras de ordem disseminadas por qualquer sistema de informação ou veículo de comunicação? Em jeito de aproximação ao tema da historiografia como acto criativo, situemo-nos, por ora, na França de Luís XIV. Segundo Foucault, no seu curso Em Defesa da Sociedade (1975-1976), a história enquanto discurso crítico teria eclodido sob a forma de um instrumento de combate forjado pela nobreza com o intuito de contestar a hegemonia da Coroa e das suas instituições. Boulainvilliers, historiador aristocrata e membro do séquito do duque de Anjou (bisneto do rei e seu sucessor), teria sido incumbido de redigir uma súmula, com vista à instrução do jovem herdeiro, de um longo relatório levado a cabo pela administração régia, no qual se esclarecia o estado do país: finanças, comércio, contagem da população, entre outros elementos que deveriam integrar o saber do monarca. Por intermédio desta sinopse, que Boulainvilliers fez acompanhar de umas memórias sobre o reino de França, o círculo de fidalgos que rodeava o futuro príncipe iria procurar recordar os direitos próprios usurpados pelo poder monárquico no decorrer da história. Nascia assim um campo de análise para a historiografia que coincidia com a abertura de um novo quadro de acção para a luta política: denunciava-se a análise do passado como narrativa beatífica do poder régio sobre si mesmo (o “louvor de Roma”, diria Petrarca); acusava-se a história dos reis e das dinastias de relatar mitos e falsidades e as instituições judiciais de os encobrir com o selo da legalidade. Para a reacção nobiliárquica, era agora mester delatar as traições, as iniquidades e as espoliações que estariam por trás dessa crónica pacífica do poder sobre o poder, apontando o dedo às duas grandes fontes de saber por meio das quais a autoridade do rei e da sua administração se foi ampliando em detrimento de uma aristocracia alheada, secundarizada e cada vez mais dependente do favor do soberano: a justiça (tribunais) e a intendência (repartições públicas). Ao procurar reconstituir esse relato subterrâneo do modo como a Coroa havia infringido os direitos da nobreza, Boulainvilliers pretendia reconquistar o saber do rei, relembrando-o a ele, o mais poderoso dos aristocratas, de uma espécie de acordo implícito, longínquo, ofuscado pelos anais, sucessivamente violado pela administração e pelos organismos judiciais, que vinculava o soberano aos seus pares. Segundo Foucault, inaugura-se aqui a historiografia como linguagem do carácter relacional do poder, descobrindo-se no interior da república uma outra nação esquecida de si mesma e dos seus direitos, cujo dever, doravante, seria o de rememorar para melhor resistir. Advento, por conseguinte, de um novo sujeito-objecto da prática historiográfica: o nobre traído que, recorrendo a uma erudição profundamente anti-jurídica e anti-romana, tinha por missão contar aquilo que um grupo restrito de indivíduos como ele, unidos por certos costumes e estatutos, tinha esquecido acerca do seu próprio passado, culminando no estado de subalternidade vivido no presente. Este sujeito de uma nova escrita descobre-se como parte integrante daquilo que elegeu por objecto de estudo, inclui-se nessa nação dentro da nação que utiliza a história como arma política contra a presumida imparcialidade da lei e a suposta objectividade da estatística produzida pelas intendências. Ele estabelece um ponto de vista original, não em função de um súbito rasgo de inspiração ou dando prova de

uma inventividade incomum, mas na sequência de um diagnóstico do presente, da observação de um estado de coisas que se deplora e ao qual se pretende resistir. E para que esse conhecimento sobre a nação ofendida possa despontar, é indispensável que a pesquisa se oriente num sentido diferente daquela série de dados que o soberano recebia dos seus juristas e dos seus intendentes, que mais não era do que um sistema de informação por meio do qual a Coroa via sempre confirmada a sua legitimidade e onde não podia encontrar senão “a imagem mesma do seu próprio absolutismo” na forma do direito e da análise quantitativa. Mas o que este patrício engendrou, ao percorrer os confins da história em busca das rivalidades, das infidelidades e das extorsões, não se resume à actualização do grito imemorial da aristocracia orgulhosa e ferida com a qual se identificava e cujas reivindicações era imperativo trazer à luz do dia. De facto, a ideia de um Estado dentro do Estado deixará de lhe pertencer em exclusivo, passando a constituir o solo comum a partir do qual brotarão as exigências de outras nações oprimidas ou injustiçadas, designadamente o Terceiro Estado de Sièyes, cuja identidade se fundirá, na Revolução, com a nação francesa como um todo. Do século XIX em diante haverá, ainda, novos deslocamentos em torno desta nação de indivíduos aglutinados por um estatuto comum, que perpassa as leis, as instituições e até as fronteiras: o tópico das raças, o tema da luta de classes, a questão dos nacionalismos (Foucault, 2005: 152-162). Temos aqui o exemplo do historiador como arauto involuntário de um povo por vir que desconhece, que lhe escapa ao controlo, e sobre o qual não exerce qualquer tipo de autoridade. Verificou-se, portanto, que nesse momento fundador da história como instrumento e modelo analítico dos conflitos no tempo longo, tem lugar uma ocorrência em grande medida análoga ao acto de criação que constitui o artista. Como poderíamos agora invocar uma ideia no âmbito da história da educação? Que deslizamentos provoca essa personagem do aluno-aprendente no gesto que consiste em diagnosticar a actualidade socorrendo-se de uma investigação ancorada no pretérito? Em primeiro lugar, observa-se que o sujeito escolar moderno não é uma constante histórica, ao mesmo tempo permanente e remoto, como seria a nobreza na perspectiva de Boulainvilliers ou o Terceiro Estado nos escritos de Sieyès. Ele é o produto de um mundo transformado pela ascensão ao poder desta última nação que se fez uma só com o Estado e procurou, grosso modo, universalizar os preceitos educacionais do Iluminismo. Esse projecto supôs a articulação entre a liberdade e o confinamento institucional, a ilustração dos espíritos e a normalização dos comportamentos, para uma percentagem cada vez mais extensa da população desde os finais do século XVIII até aos nossos dias. Em consequência, o objecto de estudo que se apresenta ao investigador não enforma um sector específico da colectividade, com as suas vindicações estatutárias, mas a quase totalidade da população, ponto de aplicação dessa “pedagogia social e terapêutica” que se veio expandindo nos dois últimos séculos (Deacon e Parker, 1998: 140). Ao invés de uma identidade transhistórica, teríamos, pois, uma invenção relativamente recente no panorama social. Em segundo lugar, este sujeito dificilmente encontra, no passado como no presente, uma deslealdade inicial ou continuada, um antagonista principal contra o qual possa estruturar o seu esforço de resistência. No seu lugar, descobre relações de forças complexas, difundidas por sistemas disciplinares onde as posições de mando e de subordinação são concatenadas, provisórias, e amiúde intercambiáveis: «...o projecto do Iluminismo, que é a educação, está dirigido tanto para aqueles que administram quanto para aqueles que são administrados [...] os funcionários de vigilância das instituições disciplinares [...] são tão alvos das operações de colecta de

dados, de supervisão, e das técnicas normalizantes [...] quanto os seus subordinados» (Deacon e Parker, 1998: 144). Neste jogo que entrelaça em permanência a liberdade e a sujeição, dentro do que chamaríamos a “gramática escolar” (Ó, 2003: 165-182), o educando é convidado a exercitar-se na repetição e no resumo com o desígnio de confirmar uma verdade que se encontra já plasmada no currículo. Regredindo a finais do século XVIII ou à sua infância, o escolar não avista o que seria um adversário, mas colegas, professores, inspectores, contínuos – todos eles, de uma forma ou outra, produtos do mesmo sistema – em cujo convívio se fabricou como cidadão a um tempo livre e conforme. Por conseguinte, a fonte primordial das pesquisas em história da educação será sempre essa rede de interacções disciplinares por meio da qual o investigador, no contacto com os seus pares e docentes, se constituiu a si mesmo enquanto sujeito de conhecimento. A resistência dos indivíduos escolarizados provocaria, então, um duplo deslocamento. Por um lado, a familiarização com essas técnicas que nos constituem na mínima coisa dita ou pensada (cognição) e que se tornaram naturais (invisíveis) no presente. Trata-se de experimentar uma aproximação ao que é desconhecido justamente porque a sua contiguidade o torna imperceptível: «O que é conhecido é habitual; e o habitual é o mais difícil de conhecer: isto é, de ver como problema [...] como estranho, afastado, fora de nós» (Nietzsche, 2000: 242). Por outro, a denegação desse debate que constitui a lei perpétua da escola desde que ela nos foi legada pelos primeiros reformadores – «... as eternas críticas feitas à ortodoxia educacional, sejam as que partem da direita [...] sejam as que vêm da esquerda [...] são apenas aspectos opostos de um consenso subjacente: um consenso nada crítico relativamente ao papel que a educação formal exerce na produção de subjectividades modernas...» (Deacon e Parker, 1998: 141) – e o afastamento em relação ao saber enciclopédico ministrado nas salas de aula e sancionado pelo exame. Mais uma vez, trata-se de passar ao largo da lei, replicadora do que já se conhece, e da intendência, que informa (educa) na medida em que põe a circular uma palavra de ordem. Estudar os primórdios da Casa Pia de Lisboa, criada em 1780 pela Intendência-Geral da Polícia, permite pôr em prática essa aproximação consubstanciada num afastamento. Nessa instituição detectamos, de modo explícito, o acto policial que funda a lei e o governo da escola: a gradual escolarização do órfão; personagem dissoluta mas na rota da salvação, o inútil tornado útil, dependente mas a caminho da autonomia, irracional mas pré-ciente, portador de “bagagem social” mas cândido e transparente. A imagem do inocente primordial, carente de uma intimidade com os saberes, desde que configure o tipo de relação aprovado pela instituição; almejando por um futuro promissor, na condição que este seja inteiramente útil e planeado (Deacon e Parker, 1998: 148). Esta figura do selvagem resgatado encontrase, ainda hoje, no centro da contenda educativa, nesse lugar oculto a que estão destinadas as questões que já não se discutem. Podemos retirar duas consequências, uma para o trabalho do historiador, outra para a problemática educativa. Abre-se, para quem investiga o passado, a possibilidade de escrever sobre uma interioridade partilhada, sem se limitar a cumprir aquela divisa por meio da qual o Estado, entre nós, no século XVIII e de novo no século XX, incorporou a historiografia como sistema de informação e a reatou ao projecto de cantar o elogio identitário das sete colinas: Restituet Omnia, devolver a totalidade dos feitos nacionais à enciclopédia da História. Abre-se também a hipótese, fora de qualquer utopia de futuro, de imaginar um povo por vir, desconhecido, cujas ideias nos superarão.

Referências: Deacon, Roger; Parker, Ben (1998). Escolarização dos cidadãos ou civilização da sociedade? In: Silva, Luís Heron da (Org.). A escola cidadã no contexto da globalização. Petrópolis: Vozes. Deleuze, Gilles (1999). O acto de criação. Trad. José Marcos Macedo. In: Folha de São Paulo. Foucault, Michel (2005). Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes. Nietzsche, Friedrich (2000). A Gaia Ciência. Lisboa: Guimarães Editores. Ó, Jorge Manuel Nunes Ramos do (2003). O governo de si mesmo. Modernidade pedagógica e encenações disciplinares do aluno liceal (ultimo quartel do século XIX – meados do século XX). Lisboa: Educa.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.