A História Hoje: linhas de investigação e problemas actuais, Recensio. Revista de Recensões de Comunicação e Cultura, Universidade da Beira Interior, 2006. Disponível em: http://www.recensio.ubi.pt/modelos/recensoes/recensao.php3?codrec=39

June 15, 2017 | Autor: J. Gonçalves de F... | Categoria: Contemporary History
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Publicada em: Revista Recensio. Revista de Recensões de Comunicação e Cultura,

Universidade

da

Beira

Interior,

2006.

Disponível

em:

http://www.recensio.ubi.pt/modelos/recensoes/recensao.php3?codrec=39

A História Hoje: linhas de investigação e problemas actuais Judite A. Gonçalves de Freitas* RECENSÃO

CANNADINE, David (coord.), 2006 – Que é a História Hoje?, Lisboa, Gradiva, 218 p.

Por altura do quadragésimo aniversário da publicação da obra Que é a História? de Edward Hallet Carr (1961), o Institute of Historical Reseach de Londres organizou sob o patrocínio de David Cannadine, director do citado instituto, um simpósio em Novembro de 2001, com a finalidade de proceder a um balanço das “actuais perspectivas sobre o passado” (p. 7).

O resultado do referido encontro científico foi publicado recentemente entre nós sob a coordenação de David Cannadine, com intervenções a cargo de nove historiadores dos dois lados do Atlântico com preponderância para os investigadores de origem anglófona... e isto parece-nos explicar quase tudo! Coube a estes estudiosos provenientes de distintos domínios da história realçar aquelas que consideram ser as actuais tendências da história nos meios académicos ocidentais e de nos fornecer informação sobre a receptividade do discurso historiográfico pelo público em geral.

A obra tem como intuito apresentar de forma sintética as perspectivas actuais da história nos seus múltiplos domínios científicos, do social ao intelectual, passando pelo religioso e cultural, ou por categorias de análise como a história do género e a imperial. Não sabemos exactamente quais terão sido os critérios que presidiram a esta compartimentação das subespecialidades da história, mas intuímos que elas espelham as *

Doutora e Agregada em História pelo Departamento de História e Estudos Políticos e Relações Internacionais da Universidade do Porto; membro investigador do CEPESE / FCT e do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa; Professora Catedrática da FCHS / Universidade Fernando Pessoa.

2 tendências dominantes na historiografia britânica e norte americana, que, de algum modo, se colocam sob os auspícios da ciência pós-moderna e dos estudos pós-coloniais e de género, veja-se a interdisciplinaridade defendida por alguns dos articulistas e a especificidade das respectivas abordagens.

Na verdade, esta subdivisão de «territórios» historiográficos e o alargamento das perspectivas de abordagem representadas neste ensaio seria inconcebível ao tempo de Edward H. Carr, quando a confiança era inequivocamente colocada nos estudos de história social e económica associada aos excessos de «quantificação»; daí resultando o esbatimento da história política e das instituições e de outras subespecializações, e isto não obstante o alerta crítico lançado no final dos anos 60, contra a preponderância do estruturalismo marxista, pelo historiador do político Sir Geoffrey Rudolph Elton numa obra intitulada The Practice of History (1967).

Apesar de tudo, a ideia defendida por Edward H. Carr acerca do valor instrumental da história como saber de utilidade pública constitui um importante legado, bem como a noção de deslocalização da Europa e da sua história, para utilizar uma expressão hodierna e muito na moda nos meios de informação social e em certas áreas do saber académico (antropologia cultural et al.). Efectivamente, Carr defendia a existência de uma “história menos britânica” (p. 20), ou seja extra-europeia, e com ela a possibilidade de conhecer a visão do outro.

Quando passamos à análise das práticas historiográficas verificámos que algumas das análises produzidas sobre os domínios de aperfeiçoamento histórico colocam em causa designações consagradas.

Paul Cartledge, professor de história helénica em Cambridge e historiador do pensamento político da Antiguidade Grega, problematiza a ideia da existência de uma «história social» que, segundo expõe, remete mais para um modo de fazer história do que para um âmbito específico da história. As principais críticas do Autor incidem sobre o domínio da história social dos anos 60 e 70 que produziu nefastos efeitos em toda a história. O Autor prefere o termo «história de sociedades» ou o de «sociologia histórica» inflectindo para a dimensão temporal e a análise diacrónica da história, ao invés daquela que geralmente é defendida pelos praticantes da história social toutcourt.

3 Por isso o Autor remata “O pan-representacionismo (...) é tão preverso como a historiografia pan-social-realista” (p. 51).

De outro lado, Susan Pedersen, da Universidade de Columbia, estudiosa das relações familiares e da função do género na época contemporânea, com estudos sobre política no período situado entre as duas guerras mundiais, é chamada a pronunciar-se sobre o panorama actual da história política. Segundo a Autora, “De todas as formas de escrita histórica, a história política é certamente a que não carece de justificação. Uma vez que lida com questões de poder e resistência, autoridade e legitimidade, ordem e obediência, esta subdisciplina interessa não apenas aos historiadores profissionais, mas a todos os que esperam viver os seus dias com um pouco de paz e prosperidade” (p. 61). Mais à frente considera que a história política está em crise, atribuindo as razões de tal situação ao “assalto dos neo-marxistas” (p. 61), i.e. dos neo-estruturalistas, e à vaga de pós-modernistas. A este propósito dá como exemplo o mais baixo índice das conferências que versam sobre história política num dos mais importantes encontros científicos transatlânticos - o North American Conference on Bristish Studies (NACBS) -, que reúne profissionais de estudos britânicos nos Estados Unidos e no Canadá. E isto não obstante o ‘aparente’ paradoxo, como aliás acentua previamente David Cannadine, de todas as áreas seguirem “hoje o programa alternativo traçado pelos historiadores do pensamento político há mais de trinta anos”(p.10).

Ao ler o texto de Susan Pedersen não nos reconhecemos em algumas das observações que produz. Do nosso ponto de vista, e trata-se da nossa área de estudo específica e por esse facto justifica-se uma análise mais demorada, a Autora tende a salientar o que se tem produzido na América do Norte e na Grã-Bretanha, negligenciando a indispensável referência ao caminho percorrido pela história do político, de meados dos anos 70 para cá, nas academias do continente europeu, com destaque para a escola francesa e a alemã e as suas homólogas peninsulares. Efectivamente, e conforme refere, a história política tem tido no mundo de expressão inglesa, um trajectória difícil, atormentada pela predominância da história da(s) cultura(s) e da história intelectual, nos Estados Unidos, no Canadá e na Grã-Bertanha. Daí que as informações críticas que S. Pedersen fornece a respeito dos desenvolvimentos actuais da história política estejam, a priori, limitadas geográfica e cronologicamente. Aliás é significativo que a Autora consigne a expressão de «história

4 política» e não de «história do político» que, nos dias que correm, nos parece ser a mais consentânea com a natureza, o âmbito e as múltiplas incidências temáticas dos actuais estudos produzidos. Não se fala de história das culturas políticas (incluindo a história das representações, rituais, símbolos e imagens do poder); de história social e institucional dos poderes (a sociologia dos governantes, o seu pensamento e práticas políticas, incluindo a história das mentalidades políticas, para que tanto contribuíram as propostas inovadoras de Bernard Guenée, François Autrand et al., pioneiros dessa renovação historiográfica nos princípios dos anos 70); da ligação entre a História e a Diplomática com grandes tradições na Europa Continental; e menos ainda da ligação entre a História e o Direito, patente no desenvolvimento de estudos jushistoriográficos. Estes são, sem dúvida, alguns dos actuais e primordiais eixos da história do político. Bastará sugerir o percurso pela obra de nomes de pujante produção historiográfica medieval e moderna na actualidade, para percebermos a evidente fecundidade da história política, v.g. Claude Gauvard e toda a equipa do Laboratoire de Médiévistique Occidentale de Paris I, Miguel Angel Ladero Quesada, António Padoa-Schioppa, José Manuel Nieto Soria, Vicente Álvarez Palenzuela, Albert Rigaudièrre, Iñaki Bazan, et al., e entre nós Martim de Albuquerque e Ruy de Albuquerque, Armando Luís de Carvalho Homem, Maria Helena da Cruz Coelho, Armindo de Sousa, João Gouveia Monteiro, Luís Miguel Duarte et al. Esta «nova história do político» desenvolve-se sobre um leque alargado de problemáticas e linhas de investigação, do poder local ao central, passando pelos poderes intermédios, pelo estudo da actividade parlamentar (cortes), pelo quadro de produção legislativo e as práticas institucionais do poder, pelo sistema político e a construção do Estado Moderno, pelos serviços administrativos e as elites do poder, por uma história das conflituosidades de origem social e política ou por uma história social do crime, da violência e da guerra et al., com recurso aos mais variados suportes metodológicos sob o domínio da prosopografia. Por outro lado, quando a Autora refere que “na Grã-Bretanha a história política tem sido o alvo preferencial dos historiadores (...) grande parte desse trabalho pertence ao género da chamada história da liderança ” (p. 65), devemos entender que Susan Pedersen se reporta a determinado âmbito e ângulo do político, e no que a estes diz respeito parece haver coerência.

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Algumas das mais interessantes páginas deste ensaio são da responsabilidade de Olwen Hufton, autor de uma história das mulheres na Europa Ocidental relativa ao período de 1500 a 1800. Hufton leva-nos numa viagem pela história religiosa dos anos 30 aos nossos dias sustentada na análise retrospectiva do itinerário e da obra de três grandes nomes da historiografia neste domínio: Gabriel Le Bras, sociólogo da religião (18911970), Jean Delumeau, especialista em história do Cristianismo e Michel Vovelle, um dos expoentes máximos da historiografia da Revolução Francesa e das atitudes colectivas perante a morte no século XVIII. A escolha destes autores desvenda boa parte do percurso traçado por esta disciplina desde inícios do século XX, que, salvo as excepções apontadas, conheceu um longo período de ocaso (1930-1970), só transponível com a abertura à histoire sérielle e à histoire des mentalités. Para o Autor terá sido Gabriel Le Bras, o precursor do estudo das práticas religiosas centrando-se nas questões de género e respeitando uma metodologia própria da histoire sérielle (estatística). “Faz todo o sentido iniciar este capítulo com Le Brás, já que a história religiosa não voltou a ser a mesma depois dele” (p. 90). De igual modo, foi este o Autor que abriu caminho a uma história da família, do espaço doméstico, ao salientar a importância do estabelecimento de uma relação entre religião e comportamento individual e social. Estes e outros temas foram particularmente impulsionados por Lawrence Stone (1919–1999) e Philippe Ariès ao debruçarem-se sobre a família, os sentimentos e as relações de poder, bem assim como Jean-Louis Flandrin (1931-2001), que se situa na mesma linha de ideias, inclinando-se para a história da alimentação, da sexualidade e da família. Olwen Hufton realça a significativa contribuição de Jean Delumeau no que respeita a história das emoções, tendo procedido ao estudo do medo, da confissão e do purgatório no Renascimento europeu. Por fim, Hufton destaca a magistral obra de Michel Vovelle sobre a ascensão e queda do purgatório ao tempo do Barroco centrada no estudo dos dispositivos preambulares de milhares de testamentos.

A apreciação dos actuais desenvolvimentos da história cultural compete à professora Miri Rubin, medievista da Universidade de Londres, cujos estudos versam sobre história social da Europa do século XII aos inícios do século XVI, abordando as relações entre os rituais públicos, o poder e a vida das comunidades. Através da associação das abordagens da antropologia e da história actuais, salienta que o conceito

6 de «história cultural» é ambivalente, “tanto pode designar uma história tradicional da produção artística e intelectual, bem como algo diferente a que alguns chamam «nova história cultural»” (p. 111). A Autora realça o facto de presentemente vivermos uma «viragem cultural» em todos os domínios da história e de que esta viragem é, para todos os efeitos, mais saliente nos estudiosos da Idade Média tardia e do início da Idade Moderna (cfr. supra o que se disse a respeito da história do político). De outro lado, está também patente a interpretação cultural da experiência histórica de Marc Bloch e Lucien Febvre, pós I Guerra Mundial, com seguimento nos Annales “avançando do évenement para a estrutura, da histoire tout courte para a histoire-problème.” (p.113), que teve convincentes efeitos na obra de Fernand Braudel. Depois virão os historiadores que se afastam da análise estrutural marxista, e se deixaram persuadir pelas análises desconstrutivistas de Jacques Derrida e Michel Foucault. Um dos domínios particularmente sensíveis a esta «viragem cultural» é a história do género e a interpretação dos mais diversos significados e formas de representação do poder ‘resolvidos’ pela diferença biológica. A história da cultura para Miri Rubin é uma corrente renovada e adaptada da história das mentalidades, na medida em que busca uma abordagem crítica do «sentido do real» (p. 122) mediante a análise de documentos textuais de diferentes tipos (comunicação verbal) e documentos não textuais (toda a comunicação não verbal, incluindo as imagens, as representações figuradas, os sinais…), na linha de investigação de estudiosos da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) que associa a História à Antropologia (v.g. Jean-Claude Schmitt, Jacques Le Goff et al.).

A Alice Kessler-Harris, membro do Instituto de Investigação sobre a Mulher e o Género da Universidade de Columbia, coube a abordagem da história do género. A Autora reconhece a enorme influência da obra de Edward Carr na sua forma de entender e defender a história de um modo geral e a história do género em particular, quando diz se Carr “fosse vivo hoje, (…) reconheceria certamente que os seus argumentos abriram caminho a uma história do género, a uma perspectiva que invoca as relações sociais entre os sexos como fonte de mudança e, sim, de poder.” (p. 130). Para esta Autora Carr reconheceu a existência de perspectivas sociais parcelares e nessa medida suscitou “interesse pelas vozes dos imigrantes, dos marginais, das mulheres e dos negros” (p. 131). Nas últimas três décadas as questões do género invadiram toda a história, a história política, social, económica, intelectual, como que apoiadas na teoria pós-

7 moderna que confere ao conceito de «identidade» uma renovada dimensão e espessura. Alice Kessler-Harris conclui que a história do género é uma área necessariamente interdisciplinar, que “amplia a nossa visão do passado. Utilizando os conceitos e os métodos dos pós-modernistas (mas não a sua rejeição do material) (…) facilita a exploração da linguagem e da ideologia sobre as quais assenta o comportamento.” (p. 144).

A história intelectual é território explorado por Annabel Brett, leitora sénior do pensamento medieval na Universidade de Cambridge. Brett começa por salientar a ambivalência do conceito que, em bom entender, tende a confundir-se com a «história cultural». Tradicionalmente as vertentes abordadas por esta disciplina confinavam-se à história das ideias dos pensadores e à abordagem das grandes questões intelectuais ao longo do tempo. Hoje, a história intelectual é um domínio que explora a actividade do pensamento nas diferentes sociedades humanas no tempo, procurando compreender o que de mais profundo dá sentido à vida material das sociedades. Nesta medida, a Autora interpela se ao falarmos de história intelectual não deveríamos falar de também de uma “história sociocultural” (p. 152). Nos nossos dias, segundo adianta, a história das ideias associa o estudo do pensamento humano às acções e actos humanos (p. 152). Nesta medida, a história do pensamento e a história da acção e produção humanas interpenetram-se; o domínio intelectual não se sobrepõe ao domínio das actuações do homem quer individual, quer socialmente. A Autora salienta que esta alteração de perspectiva se deve, de algum modo, à influência dos historiadores do pensamento político, dos inícios dos anos 60, ligados à designada «Escola de Cambridge», que promoveram o desenvolvimento de uma área de investigação que se apoiava na existência de uma relação entre a linguagem, o pensamento, a acção e o tempo. O método de trabalho defendido pelos referidos autores assentava na ideia de que “para compreendermos os textos pelos actos discursivos específicos que representam, teremos que compreender o contexto histórico no qual são proferidos.” (p. 155). Segundo refere, “a história intelectual enquanto história da linguagem entende o uso da linguagem como um elemento constitutivo do pensamento” (p. 156). Neste sentido, a história intelectual é a narração dos «modos de falar» do passado.

O último capítulo dedicado à história imperial é da responsabilidade de Linda Colley, cujo estudo mais marcante está ligado ao desenvolvimento do sentimento de identidade

8 nacional britânico no período pós-Actos da União de 1707. Linda Colley é mulher David Cannadine, coordenador responsável do presente volume. Conforme refere, “Vivemos actualmente em tempos pós-coloniais, mas não ainda pós-imperiais.” (p. 175). Do seu ponto de vista, a história imperial foi tradicionalmente muito compartimentada e qualificada como a história do império britânico ao longo do tempo. Hoje, segundo diz, a história imperial é um domínio com enormes possibilidades e interesse, que estuda o passado e o presente, que assenta na transdisciplinaridade. A história imperial afirma-se como uma história comparada dos impérios situados em diferentes latitudes e inscreve-se na longa duração, para evitar “perspectivas tendenciosas e parciais” (p. 177).

Antes de terminarmos não queremos deixar de realçar que ainda faltam estudos cienciométricos e bibliométricos para poderemos afirmar com redobrada segurança a que níveis se situam os vários domínios e áreas da história no começo do século XXI e qual o peso relativo no conjunto das obras historiográficas.

Finalmente, o epílogo, assinado por Felipe Fernández-Armesto, procede a um vivo, completo e inteligente remate dos artigos reunidos nesta obra, estabelecendo os elos necessários à compreensão do conjunto, confrontando-o com a visão de Edward H. Carr Fá-lo com consciência de historiador, realçando as profundas mudanças sociais, políticas e ideológicas que ocorreram ao longo dos últimos 40 anos e que alteraram significativamente o mapa da História como disciplina científica de interesse público, conferindo-lhe simultaneamente maior amplitude, maturidade e especialização. Na verdade, trata-se de uma obra que cumpre o seu principal objectivo ao reconduzir a debate a questão: Afinal, o que significa ler e estudar História no dealbar do século XXI?

Judite A. Gonçalves de Freitas

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