A HISTÓRIA NOS NOMES: PATRIARCALISMO EM LAVOURA ARCAICA, DE RADUAN NASSAR

June 6, 2017 | Autor: Leandra Postay | Categoria: Onomastics, Literatura brasileira, Onomástica, Patriarcalismo, Raduan Nassar, Lavoura arcaica
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A HISTÓRIA NOS NOMES: PATRIARCALISMO EM LAVOURA ARCAICA,
DE RADUAN NASSAR

Leandra Postay – Graduanda
Letras-Português
Ufes

[...] pois haveria de ouvir claramente
de meus anseios um juízo rígido, era um
cascalho, um osso rigoroso, desprovido
de qualquer dúvida: "estamos indo sempre
para casa".
Raduan Nassar

O romance Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, publicado em 1975, conta
a história da relação incestuosa entre os irmãos André e Ana, filhos de uma
família patriarcal e agrária, na qual se percebe uma forte herança
colonial. Com uma narrativa em primeira pessoa, o enredo é construído a
partir do ponto de vista de André, que, de maneira fragmentada, falando ora
do presente, ora do passado, revela por meio de um discurso colérico seus
desejos e as consequências deles advindas. Criado sob o peso do
conservadorismo, que confere à voz paterna e religiosa uma autoridade
inabalável, André se vê como transgressor, como questionador dessa ordem
opressora. No 7° capítulo, lemos:

[...] "não é o espírito deste vinho que vai reparar tanto
estrago em nossa casa" ele [Pedro] continuou cortante,
"guarde esta garrafa, previna-se contra o deboche, estamos
falando da família" ele ainda disse impiedoso, francamente
hostil, me fazendo sentir de repente que me escapava da
corrente o cão sempre estirado na sombra sonolenta dos
beirais, e me fazendo sentir que a contenção e a
sobriedade mereciam ali o meu escárnio mais sarcástico, e
me fazendo sentir, num clarão de luz, que era uma dádiva
generosa e abundante eu poder me desabar do teto, foi tudo
isso e muito mais o que senti com a tremedeira que me
sacudia inteiro num caudaloso espasmo "não faz mal a gente
beber" eu berrei transfigurado, essa transfiguração que há
muito devia ter-se dado em casa "eu sou um epilético" fui
explodindo, convulsionando mais do que nunca pelo fluxo
violento que me corria o sangue "um epilético" eu berrava
e soluçava dentro de mim [...] (NASSAR, 2012, p. 38-39)


Declarar-se como epilético[1] era a maneira de André se posicionar
como degenerado em relação à família. A obra se inicia com a chegada de
Pedro, primogênito, ao quarto de pensão no qual André se hospedava após
sair de casa, decisão motivada pela paixão que sentia por Ana. O irmão mais
velho está ali com a missão de levar o filho perdido de volta ao seio
familiar. O texto, que frequentemente intertextualiza com a Bíblia e o
Alcorão, aproxima as cenas a todo momento da parábola do filho pródigo.
Dividindo-se em duas partes, "A partida" e "O retorno", o livro apresenta,
na primeira, longos diálogos entre Pedro e André, assim como acontecimentos
que precederam a saída deste de casa. É em determinado momento destas
conversas que André acaba por confessar ao irmão os sentimentos que nutria
por Ana, decisão que terá como resultado o desfecho trágico da história. Na
segunda parte, o narrador-personagem volta para casa, é recebido com festa
pelo pai e pelas irmãs Huda, Rosa e Zuleika, com alegria pela mãe e com
desconfiança por Lula, o caçula.
A tradição paternalista sustentada por essa família de imigrantes
sírio-libaneses e árabes, fixada no Brasil, não pertence exclusivamente ao
campo da ficção. Sabemos que ela é histórica, que se estende à realidade e
está presente tanto no domínio privado quanto no público. Theodor Adorno
afirma, na Teoria estética, que


[...] mesmo a obra de arte mais sublime adopta uma posição
determinada em relação à realidade empírica, ao mesmo
tempo que se subtrai ao seu sortilégio, não de uma vez por
todas, mas sempre concretamente e de modo
inconscientemente polémico contra a sua situação a
respeito do momento histórico. (ADORNO, 2012, p. 17 e 18)


Há sempre, com variações epistemológicas, um tipo de pensamento que
postula a separação entre arte e realidade. A esfera artística serviria
exclusivamente à fruição, ao escape, ao deleite. O filósofo alemão se
contrapõe a tal concepção, apontando que o social perpassa a arte e que o
espaço desta deveria ser reservado para a reflexão, não para o mero
desfrute. A percepção da relação entre a história e a obra de arte é
importante ferramenta interpretativa, tanto do mundo quanto da obra em si.
A consideração da historiografia presente em um texto literário não deve
levar para fora dele, provocando uma leitura da sociedade a partir da
ficção. Pelo contrário: por meio da história podemos entrar cada vez mais
fundo na obra de arte, percebendo que os conflitos nela existentes são
também os conflitos da realidade empírica (ADORNO, 2008, p. 66). Detendo-
nos sobre o caso brasileiro, percebemos um país constituído a partir das
mais diferentes violências e contradições. A história do Brasil é marcada
pela exploração, pela existência de uma inabalável hierarquia de poder, que
culmina em genocídio e escravidão, por um cenário dominado por homens, que
se impõem como senhores sobre suas esposas, filhas e quaisquer outras
mulheres, pela política sempre elitista e oligárquica, por uma moral
religiosa bastante ortodoxa e por uma democracia que nasce falha e ainda
hoje engatinha. Essa história se estende até a atualidade e se imiscui a
todas as esferas da nação, inclusive à literária. O patriarcalismo é uma
das vertentes dessa realidade opressiva.
A partir disso, é possível considerar a força e a violência com que o
sistema patriarcal se impõe em Lavoura arcaica, sendo perpetuado, de
maneira mais sutil, inclusive no discurso e na postura de André. Adorno
afirma que "os antagonismos não resolvidos da realidade retornam às obras
de arte como os problemas imanentes da sua forma. É isto, e não a trama dos
momentos objectivos, que define a relação da arte com a sociedade" (p. 18).
Partindo da forma, portanto, e não dos "momentos objetivos", analisaremos a
onomástica do romance, considerando sua relação com o patriarcalismo. Serão
privilegiados os nomes de André, Ana, Pedro e Iohána, o pai. De acordo com
Roland Barthes, no texto "Proust e os nomes":


Também o nome próprio é um signo, e não, bem entendido, um
simples índice que designaria sem significar, como o quer
a concepção corrente de Peirce a Russel. Como signo, o
Nome próprio se oferece a uma exploração, a um
deciframento: é ao mesmo tempo um meio (no sentido
biológico do termo) no qual é preciso mergulhar, banhando
indefinidamente todos os devaneios que ele carrega, e um
objeto precioso, comprimido, perfumado, que é preciso
abrir como uma flor. Noutras palavras, se o Nome [...] é
um signo, é um signo volumoso, um signo sempre prenhe de
uma substância abundante de sentido [...]. (BARTHES, 2004,
p. 149).

Se os nomes se constroem como signo, contribuem de maneira relevante
com a leitura do romance. Individualmente e por meio de relações que
estabelecem entre si, os nomes próprios ajudam a delinear a história
contida no livro e enriquecem o trabalho crítico.
Todos os nomes a serem analisados possuem em comum sua origem bíblica.
André e Pedro designam apóstolos que também na história cristã eram
irmãos. Iohána seria em português equivalente a João, que nomeia diversos
personagens da Bíblia, como João Batista, primo de Jesus. Ana, por sua vez,
seria o nome da mãe de Maria, mãe de Cristo, e de uma profetisa do templo.
Tal dado é relevante não apenas pela significativa presença de textos
sagrados em Lavoura arcaica, mas também pela conhecida proximidade
existente entre a cultura patriarcalista e o discurso religioso ocidental.
Verifiquemos a etimologia de cada nome próprio individualmente:

JOÃO pelo gr. Ioánnes, depois pelo lat. Jo(h)annes, do
heb. Yohannan/Iehohanan, com várias interpretações: "Deus
(Javé) é misericordioso", "agraciado por Deus", "o Senhor
deu graciosamente", "cheio de graças".
[...] Há mais de 30 santos com esse nome.
(AZEVEDO, 1993, p. 327)

Iohána seria uma das variações hebraicas de João. Desse modo, a
grafia ancestral reforça a tradição que o pai personifica. Os diversos
possíveis significados do nome estão todos relacionados ao universo judaico-
cristão. Iohána seria um agraciado por Deus, a partir do que se poderia
deduzir um relacionamento com Deus e, por fim, uma autoridade conferida por
intermédio divino. É essa concepção de autoridade, divinizada e soberana,
que vigora em um grupo patriarcal. Sérgio Buarque de Hollanda, a este
respeito, diz, em Raízes do Brasil:


Nos domínios rurais é o tipo de família organizada
segundo as normas clássicas do velho direito romano-
canônico, mantidas na península Ibérica através de
inúmeras gerações, que prevalece como base e centro de
toda a organização. Os escravos das plantações e das
casas, e não somente escravos, como os agregados, dilatam
o círculo familiar e, com ele, a autoridade imensa do
pater-famílias. Esse núcleo bem característico em tudo se
comporta como seu modelo da Antiguidade, em que a própria
palavra "família", derivada de famulus, se acha
estreitamente vinculada à ideia de escravidão, e em que
mesmo os filhos são apenas os membros livres do vasto
corpo, inteiramente subordinado ao patriarca, os liberi.
[...] Sempre imerso em si mesmo, não tolerando
nenhuma pressão de fora, o grupo familiar mantém-se imune
de qualquer restrição ou abalo. Em seu recatado isolamento
pode desprezar qualquer princípio superior que procure
perturbá-lo ou oprimi-lo.
Nesse ambiente, o pátrio poder é virtualmente
ilimitado e poucos freios existem para sua tirania.
(HOLANDA, 2007, p. 81-82)

É esse patriarca que Iohána representa. Seus filhos são criados com
os mesmos ensinamentos que este recebeu de seu pai. A memória do avô, assim
como a figura de autoridade que ele representava, não deve jamais ser
abalada ou desrespeitada. "[...] É na memória do avô que dormem nossas
raízes [...]", diz Iohána (NASSAR, 2012, p. 58). Para ele, todos os valores
existentes são voltados para a preservação da família e cada um dos membros
deve viver de modo a beneficiar os demais. É isso que seus sermões à mesa
reforçam exaustivamente. É graças a esse senso extremista de coletividade
que a partida de André, na concepção do pai, representa não apenas um ato
inconsequente de rebeldia, mas uma postura egoísta e danosa à manutenção da
alegria e dos valores familiares. Como afirma André, é do pai que saem os
"bons" ramos da família, ou seja, os filhos mais propensos a acatar e a
perpetuar a visão de mundo paterna. Da mãe, nasce o mau ramo, do qual faz
parte o próprio André. A visualização pelo narrador desses ramos se dava a
partir da disposição dos membros da família à mesa, com o pai sentado à
cabeceira, com Pedro à sua direita, seguido por Rosa, Zuleika e Huda; e a
mãe à sua esquerda, seguida por André, Ana e Lula[2].
A mãe, em Lavoura arcaica, reforça esse ambiente em que predomina a
ordem patriarcal. Ela não possui nome e é a origem do ramo ruim, daquele
onde há desordem e desonra. A ausência de nome insinua a anulação de uma
existência individualizada. Percebemos, portanto, "a identificação da mãe
embutida na do pai" (SILVA, 2003, p. 39). Ela é representação metonímica da
mulher na sociedade patriarcal, que nasce e é criada para se casar e ser
submissa, que se torna progenitora e some por trás desse título. Essa mãe
deve se submeter inclusive ao filho, ela possui posição menor na hierarquia
familiar do que Pedro, porque este é homem, primogênito, futuro patriarca
e, portanto, propagador dos ensinamentos do pai e, consequentemente, do
avô.

PEDRO, pelo lat. Petrus e o gr. Pétros, tradução do
aramaico kepha, "pedra, rochedo". Foi Jesus quem empregou
esta palavra como nome de pessoa no momento que disse ao
príncipe dos Apóstolos, Simão: "E eu te declaro: Tu és
Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, as
portas do inferno não prevalecerão contra ela" (MT. 16,
18), para simbolizar o seu papel na fundação da igreja
[...]. (AZEVEDO, 1993, p.474)

Iohána é diretamente abençoado por Deus. Pedro, por sua vez, recebe
deste seu nome. Ele é designado para ser portador de uma palavra que não
deve arrefecer. Logo, tanto o pai quanto o filho encontram-se revestidos de
autoridade. Para a tradição católica, o apóstolo Pedro foi o primeiro papa
da história. Assim como o papa seria um representante de Deus na Terra,
Pedro seria o representante de Iohána, responsável por perpetuar seus
ensinamentos, por praticá-los e disseminá-los, tarefa que de fato recai
sobre o primogênito em uma família patriarcal. Sendo pedra, é firme, não se
deixa abalar. Pedro é preparado desde o nascimento para se tornar um novo
patriarca, para assumir a posição do pai quando necessário, ele é criado
para não questionar a ordem paterna e para não ser questionado quando
chegar o momento de reproduzi-la. Quando André, no primeiro capítulo, se
depara com o irmão à entrada de seu quarto, diz:

era meu irmão mais velho que estava na porta; [...] e foi
então que ele me abraçou, e eu senti nos seus braços o
peso dos braços encharcados da família inteira; [...] e eu
senti a força poderosa da família desabando sobre mim como
um aguaceiro pesado enquanto ele dizia "nós te amamos
muito, nós te amamos muito" [...]. (NASSAR, 2012, p. 9).

Pedro está tão envolvido pelos valores paternos e tão comprometido
com suas doutrinas que seus gestos e palavras trazem consigo toda a
família: sua postura é completamente regida pela tradição. Tendo Pedro à
sua frente, André se sente confrontado pelo pai, pela mãe e pelos irmãos.
Ao ser encarregado de resgatar André, o primogênito o faz de modo
eficiente, porque coloca sobre o irmão mais novo a pressão e as
expectativas de cada um dos membros familiares. André não apenas reconhece
Pedro como braço direito do pai, como também entende que o esperado era que
ele mesmo, enquanto filho homem, o segundo mais velho, representasse também
um sucessor paterno. Ele, no entanto, não se vê, a princípio, em condições
de assumir tal posição, enxergando-se, antes, como membro do ramo danoso da
família, do qual Ana é parte fundamental.

ANA, pelo lat. Anna, e pelo gr. Anna, do heb. Hanna,
"graça, misericórdia, mercê". Nome usado no Antigo e no
Novo Testamentos [...]. (AZEVEDO, 1993, p. 50)

Pela origem hebraica, Ana é mercê, ou seja, é aquela a quem cabe o
perdão e o sacrifício. Se tal significado traz uma conotação de
benevolência, evoca simultaneamente passividade, porque a misericórdia mais
consente do que confronta. É de fato graça e favor o que a família vê em
Ana, uma moça abnegada, que passa horas na capela, rogando pelos pais,
pelos irmãos, agradecendo pelo favor divino diante do retorno de André à
casa. Esse comportamento assemelha-se em muito ao de uma das Anas bíblica,
que passava todo o seu tempo no templo, pedindo a Deus por um filho (que
implorava, assim sendo, por seu direito de ser mãe). A imagem santificada
de Ana é transfigurada aos olhos de André, especialmente nos episódios de
dança:


[...] e não tardava, Ana, impaciente, impetuosa, o corpo
de campônia, a flor vermelha feito um coalho de sangue
prendendo de lado os cabelos negros e soltos, essa minha
irmã que, como eu, mais que qualquer outro em casa, trazia
a peste no corpo, ela varava então o círculo que dançava e
logo eu podia adivinhar seus passos precisos de cigana se
deslocando no meio da roda [...]. (NASSAR, 2012, p. 28-29)

Se por um lado a visão que André possui de Ana a livra desse papel
exclusivo daquela que silenciosamente clama e perdoa, por outro, não é
capaz de promover de fato uma individuação. Em Lavoura arcaica, Ana não
possui uma única fala sequer, tudo o que se diz a respeito dela, tanto de
seus atos quanto de seus sentimentos, é enunciado por André. É ele quem
afirma que a irmã pertence ao mau ramo da família, que possui a peste no
corpo. É de André a escolha do que deve ser relatado e do que deve ser
omitido. A Ana que André enxerga dificilmente é a Ana que ela mesma percebe
em si. A moça é mais uma mulher nessa família governada por homens. Assim
como a mãe, seu dever é se submeter e, no futuro, se tornar também uma mãe,
sumindo por trás de tal título, por trás de seu marido e por trás de seus
filhos homens. Filhos que tendem a perpetuar a tradição – rompida, em
parte, por André.

ANDRÉ, pelo lat. Andréas, "viril, varonil, robusto" [...].
(AZEVEDO, 1993, p. 53)


-andr(o)- elem. comp., do gr., andro-, de aner andrós
'homem, macho, viril' [...]. (CUNHA, 1997, p. 45)


André significa "homem", não enquanto "humanidade", mas enquanto "ser
humano do sexo masculino", como verificamos pela origem grega. Ser homem em
uma cultura patriarcalista é estar automaticamente na posição do opressor.
Precisamos, portanto, desconfiar desse narrador em 1ª pessoa, que se
apresenta como transgressor, como aquele que deseja subverter a ordem
paterna, mas que, concomitantemente, não concede voz à mulher a quem
destina seu amor, que a enxerga a partir de sua própria percepção –
masculina – do mundo. Ana está condicionada aos desejos de André. Também
ele espera dela consentimento. A única Ana revelada ao leitor é aquela a
quem cabe realizar as vontades do irmão. A impossibilidade da manifestação
de Ana fica mais perceptível na cena que se passa na igreja, momento
posterior à concretização sexual do incesto. Ana está na capela, em
silêncio, inerte, e André pronuncia um discurso cheio de ânimo, projetando
sobre ela sentimentos e responsabilidades, implorando por cumplicidade e
por correspondência:

[...] preciso estar certo de poder apaziguar minha fome
neste pasto exótico, preciso do teu amor, querida irmã, e
sei que não exorbito, é justo o que te peço, é a parte que
me compete, o quinhão que me cabe, a ração a que tenho
direito [...]. (NASSAR, 2012, p. 124)


Ana em nenhum momento do romance jura amor ao irmão, não lhe promete
um futuro juntos, sequer declara sentir qualquer coisa por ele. Ainda que o
fizesse, bastaria que mudasse de ideia para estar isenta da necessidade de
cumprir suas promessas de amor eterno. Mesmo assim, André deseja Ana e
acredita ser este fator suficiente para obrigá-la a realizar suas vontades.
Ao exigir o amor da irmã, afirmando ser este "o quinhão" que lhe cabe,
André reforça uma cultura paternalista, que confere ao homem direito de
posse sobre a mulher. Nesse sentido, a mulher ("Ana") seria a "graça" a que
o "homem" ("André") teria natural direito.
Em árabe, ana significa "eu", o pronome, palavra utilizada para auto-
referenciação, desempenhando, assim, um papel identitário. No universo
patriarcalista de Lavoura arcaica, no entanto, o "eu" de Ana não recebe a
oportunidade de se configurar como individualização. Assim como a
identidade da mãe está embutida na do pai, André enxerga a identidade de
Ana embutida na sua. Até mesmo enquanto forma, o nome de Ana sinaliza,
dentro do romance, para a aniquilação da identidade feminina: Ana está
contida em Iohána e imiscuída em André. Sua existência, portanto, está
condicionada aos homens que a cercam: ao pai, que, chefe de família e
autoridade soberana, a possui e detém completo domínio sobre ela, e ao
irmão, enquanto amante, que reivindica também sua posse. O próprio André
deseja deliberadamente essa ausência de identidade:


[...] entenda que, além de nossas unhas e de nossas penas,
teríamos com a separação nossos corpos mutilados; me
ajude, portanto, querida irmã, me ajude para que eu possa
te ajudar, é a mesma ajuda a que eu posso levar a você e
aquela que você pode trazer a mim, entenda que quando falo
de mim é o mesmo que estar falando só de você, entenda
ainda que nossos dois corpos são habitados desde sempre
por uma mesma alma [...]. (NASSAR, 2012, p. 129)

Nesse trecho, mais uma vez André fala por Ana, oferecendo a ela uma
ajuda que a moça nunca solicitou e da qual sequer demonstrou precisar. Ele
afirma que sua própria existência está sujeita em grande escala à
existência de Ana e, por isso, deduz que o inverso também seria verdade.
André é tão dependente de Ana que não é capaz de conceber a ideia de que
ela não dependa dele na mesma proporção. Como resultado, André se enxerga
como principal motivador dos gestos de Ana, como podemos conferir nos
trechos a seguir:

[...] vi o pavor no seu rosto, era um susto compacto
cedendo aos poucos, e, logo depois, nos seus olhos, senti
profundamente a irmã amorosa temendo por mim, e sofrendo
por mim, e chorando por mim, e eu que mal acabava de me
jogar no ritual deste calor antigo, inscrito sempre em
ouro na lambada dos livros sacros, incorporei subitamente
a tristeza calada do universo [...]. (NASSAR, 2012, p.
139)


[...] eu que estava certo, mais certo do que nunca, de que
era para mim, e só para mim que ela dançava [...]. (p.
189)


A insistência em dizer que as ações de Ana eram "por mim" e "para
mim" apenas reforça essa incapacidade de André de perceber a existência de
Ana desvinculada da sua. Contextualizando os trechos citados, é possível
notar que não há indícios claros de que o choro, o sofrimento, a dança de
Ana fossem de fato destinados ao irmão, nem mesmo que esse choro ou esse
sofrimento fossem atos de solidariedade.
No livro Literatura, violência e melancolia, Jaime Ginzburg, a
respeito de Lavoura arcaica, afirma:

No diálogo entre pai e filho, quando surgem palavras
comuns, o movimento de deslocamento de vocabulário cria um
efeito espantoso de ambiguidade. Guardada a identificação
familiar, com o elo de origem mítica entre pai e filho, as
palavras mostram-se capazes de produzir rupturas ao mesmo
tempo semânticas e ideológicas, culturais e políticas.
(GINZBURG, 2013, p. 58)

Como é possível que André se contraponha (semântica, ideológica,
cultural e politicamente) ao pai ao mesmo tempo em que reforça, por meio de
seu discurso e em sua relação com Ana, a ordem patriarcal? André intenta
romper com os valores familiares enquanto estes o impedem de realizar e
possuir aquilo que deseja. Percebemos nos diálogos travados com Iohána, nos
quais se estabelece o questionamento e a discordância, que a resistência de
André em reconhecer os ensinamentos paternos como absolutos advém da
impossibilidade de tais princípios aceitarem a sua união amorosa com Ana.
Nos momentos em que o narrador considera possível que os valores
familiares deixem de ser um obstáculo à sua vontade de se unir à irmã, ele
mesmo aponta para um futuro de conformação, anunciando sua intenção de
possuir um lugar junto à mesa da família, tornando-se um perfeito
colaborador para com a manutenção da ordem louvada pelo patriarca. Ainda na
cena que se passa na igreja, para convencer a irmã e, talvez, ainda
tentando convencer a si mesmo da possibilidade de viver com ela uma relação
erótico-romântica concreta, não clandestina, André fala a respeito de como
o pai se alegraria diante da revelação daquele amor:

[...] e logo que eu diga 'pai', e antes que eu prossiga
tranquilo e resoluto vou pressentir no seu rosto o júbilo
mal contido vazando com a luz dos seus olhos úmidos, e a
alegria das suas ideias se arrumam pressurosas para
proclamar que o filho pelo qual se temia já não causa mais
temor, que aquele que preocupava já não causa mais
preocupação, e, porque fez uso do verbo, aquele que tanto
assustava já não causa mais susto algum [...]. (NASSAR,
2012, p. 126)

André talvez fosse capaz de sinceramente acreditar que a revelação
levaria alegria ao pai porque, após isso, ele mesmo se adequaria ao modelo
familiar, deixaria seu posto de questionador, de rebelde. Essa seria, em
sua visão, a volta definitiva do filho pródigo para casa. É ele mesmo quem
diz: "tudo vai mudar, querida irmã [...], hei de estar presente na mesa
clara onde a família se alimenta; vou falar sobre coisas simples como todos
falam [...]" (p. 125). A menção ao ajuntamento à "mesa clara" é importante
índice para compreender que André de fato fala de uma mudança que aponta
para a conformidade aos moldes patriarcais. Ao longo do livro, ele se
apresenta como aquele que está em trevas, justamente por ser o desajustado,
o que não aceita passivamente os valores repetidamente enunciados em sua
casa. Ocupar um lugar onde há claridade, luz, é deixar de ser o liberal e
libertino, é trocar a subversão pela tradição.
Ao final do livro, Iohána toma conhecimento, por meio de Pedro, da
relação entre Ana e André. Sua reação diante da informação é completamente
diferente daquela que o personagem-narrador alimentava de forma ilusória. A
revelação é feita durante a festa elaborada em comemoração ao retorno de
André. Nesse momento, Ana dançava de forma intensa diante dos convidados:

[...] e eu de pé vi meu irmão mais tresloucado ainda ao
descobrir o pai, disparando até ele, agarrando-lhe o
braço, puxando-o num arranco, sacudindo-o pelos ombros,
vociferando uma sombria revelação. [...] e a partir daí
todas as rédeas cederam, desencadeando-se o raio numa
velocidade fatal: o alfanje estava ao alcance de sua mão,
e, fendendo o grupo com a rajada de sua ira, meu pai
atingiu com um só golpe a dançarina oriental (que vermelho
mais pressuposto, que silêncio mais cavo, que frieza mais
torpe nos meus olhos!), não teria a mesma gravidade se uma
ovelha se inflamasse, ou se outro membro qualquer do
rebanho caísse exasperado, mas era o próprio patriarca,
ferido nos seus preceitos, que fora possuído de cólera
divina (pobre pai!), era o guia, era a tábua solene, era a
lei que se incendiava [...]. (NASSAR, 2012, p. 191)

Diante da descoberta do pecado, exige-se um sacrifício. O assassinato
de Ana pelo pai, mais do que uma ação decorrente da ira, representa um
acerto de contas. Ana é misericórdia, ela se faz necessária ao pecador e
vem ao seu socorro. A morte de Ana é necessária para que se preserve a
honra de André, do pai, daquela família. André é o narrador e principal
personagem dessa história, na qual seus desejos ganham posição central. Ele
protagonizou o incesto tanto quanto Ana e foi o responsável por revelá-lo a
Pedro. Mas é Ana, a mulher, quem deve morrer para pagar por tal iniquidade.
Ana é mais uma Lucrécia, mais uma Capitu, mais uma Madalena, que morre para
que os homens possam continuar vivendo em paz. Esse é um episódio que se
repete de forma recorrente ao longo da História e da literatura. O
assassinato em nome da honra, por mais macabro que pareça, não é episódio
restrito ao campo na ficção. Em Raízes do Brasil, a respeito da cultura
patriarcalista, lemos:

Não são raros os casos como o de um Bernardo Vieira de
Melo, que, suspeitando a nora de adultério, condena-a a
morte em conselho de família e manda executar a sentença,
sem que a justiça dê um único passo no sentido de impedir
o homicídio ou de castigar o culpado, a despeito de toda a
publicidade que deu ao fato o próprio criminoso. (HOLANDA,
2007, p. 82)

O poder do chefe familiar, desse modo, está acima do próprio Estado.
É o gênero feminino que com maior frequência sente sobre si o peso
opressivo de tal poder. Quanto à morte de mulheres na literatura, Jaime
Ginzburg mostra que há um movimento repetitivo, que podemos notar, por
exemplo, em Grande sertão: veredas, Lavoura arcaica e São Bernardo.

A leitura dos romances leva a observar que é, em cada um
deles, a morte da personagem feminina o acontecimento de
impacto que motiva, como alavanca incontornável, o ato de
narrar. [...] É como se fosse necessário que uma mulher
morresse para que um homem contasse uma história. [...] A
literatura brasileira seria, ela mesma, espaço de
realização de uma cena sacrificial, de um ritual fúnebre.
(GINZBURG, 2013, p. 60-62)

Essa recorrência nos permite compreender que a situação que se repete
no espaço literário brasileiro está intrinsecamente relacionada à realidade
empírica. Também a percepção dos nomes enquanto signo possibilita essa
percepção historiográfica. André é homem. Ana é graça. Isso é inerente a
eles. Barthes diz que o nome próprio tem "uma significação comum: significa
pelo menos a nacionalidade e todas as figuras que podem a ela associar-se"
(BARTHES, 2004, p. 156). Não se deve entender a nacionalidade no nome como
ingênua celebração patriótica, mas como indicativo de que o nome próprio é
um signo carregado de história e que esta pode ser apreendida a partir
dele.
Adorno afirma que "a arte não é unicamente o substituo de uma práxis
melhor do que a até agora dominante, mas também crítica da práxis enquanto
dominação da autoconservação brutal no interior do estado de coisas vigente
e por amor dele" (ADORNO, 2012, p. 28). A obra de arte não é alheia ao
mundo concreto. Ela questiona o constante estado de manutenção, que é
favorável à continuidade especialmente da opressão e de violências. A
partir de um viés historiográfico, percebemos que Lavoura arcaica efetiva
tal movimento crítico e que o livro não conta a história de dois jovens que
se amam e que são impedidos de ficar juntos por causa da força da cultura,
da religião e da família. O romance conta a história de uma jovem que foi
morta por causa da urgência de um homem em realizar seus desejos e por
causa do receio de outro homem de que tivesse sua honra manchada.


REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor W. Palestra sobre lírica e sociedade. Notas de literatura
I. Tradução: Jorge de Almeida. São Paulo: Editora 34, 2008. p. 65-89.
ADORNO, Theodor W. Teoria estética. Tradução: Artur Mourão. Lisboa,
Portugal: Arte de comunicação, 2012.
AZEVEDO, Sebastião Laércio de. Dicionário de nomes de pessoas. Rio de
Janeiro: Editora civilização brasileira, 1993.
BARTHES, Roland. Proust e os nomes. O grau zero da escrita. Tradução: Mario
Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 143-160.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico nova fronteira da língua
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DELMASCHIO, Andréia. Entre o palco e o porão: uma leitura de Um copo de
cólera, de Raduan Nassar. São Paulo: Annablume, 2004.
GINZBURG, Jaime. Literatura, violência e melancolia. Campinas, SP: Autores
associados, 2013.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das
letras, 2007.
NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. São Paulo: Companhia das letras, 2012.
SILVA, Regina Celi Alves da. A tra(d)ição dos nomes na Lavoura Arcaica, de
Raduan Nassar. Revista Philologus, v. 25, p. 38-44, 2003.
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[1] A questão referente ao narrador epilético é bem trabalhada por Andréia
Delmaschio no livro Entre o palco e o porão: uma leitura de Um copo de
cólera, de Raduan Nassar, no qual analisa a novela Um copo de cólera, do
mesmo autor de Lavoura arcaica.
[2] Não escapou à crítica essa disposição à mesa, entre a direita
"conservadora" e a esquerda "rebelde", considerado o autoritário momento
político brasileiro.
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