A HISTÓRIA ORAL E SEU CAMPO DE PROBLEMAS

May 23, 2017 | Autor: Daisy Perelmutter | Categoria: Education, História Oral, Metodos Cualitativos Ciencias Sociales
Share Embed


Descrição do Produto

A HISTÓRIA ORAL E SEU CAMPO DE PROBLEMAS
Daisy Perelmutter*
Historiadora, mestre em Psicologia Clínica e doutora em História Social pela PUC-SP.
[email protected]

Sabemos o quão difícil é ficar indiferente ao apelo de uma narrativa envolvente. Mesmo quando a narrativa, em questão, não almeje a criação de um universo onírico e lúdico, como é o caso das conversas travadas ao pé da fogueira, mas constitui-se como um dispositivo de reflexão e produção de conhecimento.
A metodologia de pesquisa intitulada "História Oral" trouxe à baila um debate profundo sobre as especificidades, limites e possibilidades das histórias de vida no processo de cognição, angariando grande popularidade na década de 90. Ferramenta utilizada por diversos campos das Ciências Humanas e também por instituições extra-acadêmicas (Ongs, grupos comunitários, empresas privadas, instituições de ensino, museus, centros de cultura, grupos de dramaturgia, sindicatos) em busca da compreensão de seu próprio percurso, o testemunho oral, urdido através de uma relação dialógica entre entrevistado e entrevistador, coloca hoje uma ampla gama de problemas epistemológicos. A cautela manifestada pela historiografia com relação ao método de história oral como recurso de investigação foi gradualmente sendo superada e o argumento da fragilidade da memória e prevalência da subjetividade perdeu sua sustentação. Interpretados como entraves à suposta verdade dos fatos e acontecimentos, memória e subjetividade, a partir do reposicionamento promovido pelo debate da história oral, passaram ser eles mesmos objeto de escrutínio e investigação.
Um pequeno recuo faz-se necessário a esta introdução. Qual é afinal a abrangência temática e interpretativa da história oral e do que os enredos tecidos a duas vozes tratam? De uma maneira prosaica, pode-se dizer que a história oral é uma metodologia de pesquisa que produz a sua própria fonte documental, a partir de entrevistas gravadas, em um encontro artificialmente produzido, no qual os entrevistados que protagonizaram acontecimentos, conjunturas, modos de vida, sensações dão seus testemunhos e constroem suas versões da experiência vivida. Todas as manifestações humanas podem, em tese, ser investigadas balizando-se por esta metodologia: dos acontecimentos mais pontuais – a paralisação dos lixeiros no dia tal, o Réveillon do milênio, a memória do 11 de setembro - às experiências mais conjunturais – o processo de privatização das empresas públicas, a emergência de uma nova classe média no Brasil, a constituição de novos padrões familiares. O diferencial do campo está, justamente, na capacidade em lançar luz e dar voz às singularidades das vivências. A matéria exclusiva de que trata a história oral é, portanto, menos o arrolamento extensivo dos fatos e acontecimentos e, mais, o valor e significado atribuído às experiências. Ao vislumbrar este excedente como parte integrante do horizonte de problemas do documento oral, o entrevistador- pesquisador tem como uma de suas atribuições a fricção das experiências do entrevistado, em busca do sentido do vivido, a partir das suas lembranças. Este esforço não assegura, em absoluto, que o depoente encampe o convite e embarque no terreno instável e incerto da narração-interpretação.
O giro teórico-metodológico que a história oral produz como recurso investigativo, no entanto, não se resume ao tipo de memória – prospectiva - que busca instigar. Há vários outros dados aparentemente invisíveis, igualmente relevantes para a interpretação, que podem ser destrinchados a partir de um olhar arguto sobre o processo de construção do documento oral. A questão do corpo, por exemplo, é central para o entendimento da narrativa fabulada. A dissonância ou diálogo que se estabelece entre a linguagem corporal e a linguagem textual devem ser também interpretados pelo pesquisador. As formas que o corpo encontra para se expressar, o tipo de resposta perante o interlocutor, as variações e intensidades corporais diante dos fatos narrados, a exuberância ou parcimônia dos gestos corporais, a qualidade da respiração, as pausas, o timbre e a tonalidade da voz; todas estas informações, aparentemente invisíveis, são objetivas e passíveis de ser observadas no documento de história oral. Pode-se dizer, em certo sentido, que a fonte oral tecida no encontro entre entrevistado-entrevistador tem uma polissemia de semióticas e todos os enunciados lingüísticos em jogo devem coligir na interpretação do historiador.
Há muitos outros aspectos que singularizam a narrativa da história oral em relação às demais fontes de pesquisa, como, por exemplo, a participação do pesquisador no processo de produção da fonte. O conhecimento da "coxia" da cena retratada é um dado importante para a compreensão do repertório escolhido pelo entrevistado para construir o seu enredo. O depoimento de história oral não é, portanto, um arquivo morto, lacrado e refratário às interferências do presente. Não existe uma história do sujeito previamente erigida, à espera de sua revelação. Toda elaboração é parcial, temporária e contingencial. O que se apresenta e se materializa no contexto das entrevistas é um painel (às vezes abrangente, às vezes exíguo) onde algumas das "batalhas" que estão mobilizando o interlocutor, naquele exato momento, podem ser explicitadas. Não é indiferente o fato de alguns registros se alicerçarem inteiramente em referências do passado, outros, em idealizações do futuro, outros tantos, a partir de uma aderência atemporal ao presente. Há, portanto, uma fragilidade constitutiva a este tipo de narrativa, condicionado por um número infinito de variáveis (ex: empatia entre entrevistado e entrevistador, disposição física e psicológica no dia da entrevista, momento da vida pelo qual os protagonistas estão passando, expectativas em relação à situação do encontro). Quando estes fatores são ignorados corre-se o risco de superestimar o alcance do documento oral, como se transcrevesse de forma invariante uma suposta essência do sujeito investigado. A melancolia, euforia ou apatia que pautam certas narrativas não são insígnias permanentes que etiquetam aquela existência em foco. A capacidade de identificar, através do relato, as premências que estão mobilizando o presente do narrador são fundamentais para se compreender o tom nele impresso.
Há muitos outros pontos, como a própria estruturação formal da narrativa (elíptica, factual, circular, teleológica, digressiva) que evidenciam o espraiamento do campo de problemas com o qual a história oral dialoga. A vocação transgressiva reivindicada pela história oral em seu momento de afirmação (por volta de 1960 na Grã-Bretanha), quando tinha como bandeira promover a consciência, coesão e sentimento de identidade das comunidades dos "voiceless" – negros, mulheres, homossexuais, analfabetos, ciganos e todo tipo de minoria alijada do registro do universo culto – mantem potencialmente sua chama, podendo ou não ser ativada. Sem promover uma espécie de apologia romântica que cindiria em dois pólos antinômicos - de um lado a documentação oral e de outro a escrita – onde um seria reservado aos intrépidos e aventureiros investigadores e o outro o espaço mórbido das redundâncias e dos burocratas, há, todavia, no universo da história oral uma exposição constante às interferências de outros campos de conhecimento, o que torna o seu conhecimento mais poroso e mais receptivo às mudanças e renovações. Neste sentido, as fronteiras do campo estão constantemente sendo redefinidas a cada novo encontro e a cada nova parceria selada.
Como um esforço final de síntese dos aspectos apresentados de forma panorâmica ao longo deste rápido passeio e pensando nos futuros adeptos interessados em trabalhar com a metodologia, devemos sempre atentar aos pontos que a história oral observa e reclama como problema a ser analisado:
Relação singular entre historiador e fonte de pesquisa: relação entre sujeito e sujeito; o historiador não tem controle da fonte como nos demais documentos; historiador e entrevistado são co-autores do conhecimento que está sendo erigido na entrevista; conteúdo e a forma como o depoimento é narrado está condicionado pela qualidade da relação que se estabelece entre historiador e depoente.
Depoimento oral e passado: não há reconstituição do passado na sua suposta integridade e pureza, trata-se de uma reinterpretação do vivido a partir das necessidades e urgências do presente.
Depoimento oral e narrativização da vida: a vida não se estrutura naturalmente em uma história, a entrevista de história de vida é que de certa forma demanda este tipo de organização seqüencial.
Depoimento oral e ética: necessidade de cuidados em todo o processo de construção de conhecimento; construir uma rede plural de entrevistados para que não sejam cristalizados certos estereótipos do grupo; respeito em relação à disposição e limites colocados pelos entrevistados
Documento oral e memória: os esquecimentos, insistências, recusas, fantasias não se configuram como obstáculos ao conhecimento, mas sim objeto de análise e interpretação.


PARA O PROFESSOR
Embora o momento da entrevista seja identificado como o núcleo da prática de história oral, é importante instrumentalizar os alunos de que o processo tem início muito antes do momento epifânico do encontro e é concluído muito depois do término do registro. Um projeto elaborado dentro dos protocolos exigidos envolve:
Definição do grupo/ tema/acontecimento/conjuntura a ser investigada
Levantamento extensivo do material disponível sobre o recorte escolhido: livros, artigos de jornal, documentos de arquivo, fotos, objetos, diários, documentação sonora ou visual (no caso de entrevistas com figuras públicas, procurar conhecer a obra do entrevistado)
Avaliação do material colhido e definição de uma rede de entrevistados (verificada a insipiência de documentação, contatar um uma primeira testemunha que possa contribuir para o mapeamento da investigação)
Elaboração do roteiro de entrevista
Produção do depoimento – agendar com o entrevistado a data, local, horário do depoimento e verificar a qualidade do equipamento de gravação (privilegiar as escolhas do entrevistado)
Realização do depoimento (embora não haja uma duração padrão, um depoimento de até duas horas costuma ter um bom rendimento, mais do que isso os conteúdos costumam ficar comprometidos)
Solicitação do preenchimento do termo de doação
Realização de cópia de segurança
Elaboração de um diário de campo onde estão especificadas as curiosidades e dificuldades da produção do registro
Transcrição literal dos depoimentos e encaminhamento ao depoente para que faça as retificações, mudanças, esclarecimentos e complementações
Reunião do conjunto de entrevistas e análise do material colhido
Elaboração de algum produto como devolutiva ao grupo investigado e à comunidade de uma forma geral – texto, exposição, obra dramatúrgica.
Reunião e disponibilização de todo o material colhido ao longo do projeto de história oral – pesquisa do roteiro, roteiro de entrevista, diários de experiências, transcrição original e transcrição com alterações
SUGESTÃO DE TEMAS PARA SEREM TRABALHADOS COM OS ALUNOS:
Ofícios em extinção
Trabalhadores invisíveis
A experiência da paternidade: meus avós, meus pais e eu
A cordialidade como traço cultural
O dia em que São Paulo parou: a ameaça de ataque do PCC

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.