A história rueira de Paulo Bomfim

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O ESTADO DE S. PAULO

DOMINGO, 25 DE SETEMBRO DE 2016

A HISTÓRIA RUEIRA DE PAULO BOMFIM Para celebrar os 90 anos do poeta paulistano, quem o homenageia são as próprias ruas de sua terra natal. Nos becos e esquinas da São Paulo ainda provinciana onde se ambientam seus livros, ressurgem tipos como o gatuno Galalau, marginal e boêmio, a Vovó do Pito, a embalar a cidade com cantos africanos, e o guarda Antônio, protetor dos casais apaixonados e dos pobres que dormiam nas praças TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

Origem. O escritor na Rua Rego Freitas, centro de SP, onde ficava sua primeira casa

Fraya Frehse

O

aniversário é seu, mas também nós temos 90 anos a comemorar. Muito já se escreveu sobre você e sua obra de poeta, cronista e historiador, sobre sua sensibilidade única para entretecer pessoas e acontecimentos na trama do tempo de nossa cidade e, assim, revigorar o presente através do passado, o asfalto por meio da terra, o sonho através da lembrança, São Paulo por meio de sua história. Bem menos, entretanto, foi dito sobre o quanto nós, as ruas da cidade, devemos a você. De fato, sem o seu olhar e palmilhar já quase centenários em nossa busca, não seríamos o que podemos ser, para a São Paulo de hoje. E é disso que queremos falar aqui e agora. É verdade que muitas de nós nascemos bem antes daquela primavera em que a luz do sol o alcançava pela primeira vez na Maternidade São Paulo, localizada na Rua Frei Caneca, uma de nós. Como você assinalou em crônicas, a taba do cacique Caiubi nos tempos da fundação desta São Paulo de Piratininga, em 1554, ficava na “velha Tabatinguera”. Por outro lado, nossa prima, a Praça do Patriarca, foi inaugurada no próprio ano de seu nascimento, 1926. História não nos falta, nem quem tenha dela tratado já bem antes de você se iniciar como escritor, ainda menino, na Biblioteca Infantil que hoje leva o nome de Monteiro Lobato, na Praça Rotary, Vila Buarque. Viajantes e memorialistas, jornalistas e historiadores locais, cronistas e poetas, mas também pintores e fotógrafos: cada um deles, e também delas – mulheres muitas vezes desconhecidas – colaboraram com o seu quinhão para que, quando você nascesse, naquele 30 de setembro, nós, as ruas, e nossos parentes os largos, praças e parques já contássemos com um acervo grande de informações e imagens a nosso respeito. Porém, nem tudo estava desvendado e imaginado; nunca está... E aí, nos anos 1920, entrou em cena – saiu às ruas! – a sua sensibilidade em relação a nós. Certamente não a única, mas decerto única. Ganha as ruas com a publicação de seu primeiro livro de poemas, Antônio Triste, ilustrado por sua amiga Tarsila do Amaral e prefaciado por Guilherme de Almeida. Aos 21 anos, você simboliza em tipos próprios da rua como Antônio Triste, “(s)ozinho(,) como os bancos de uma praça”, e Maria Felicidade, cujo sangue era o mesmo “dos anúncios luminosos; /(s)eus olhos de cor do asfalto /(d)urante os tempos chuvosos”, a complexidade humana que, ruas, abrigamos, espaços de natureza social que somos. Com efeito, você se aproximou de nós daquela primeira vez em busca de unidade na diferença em relação ao mundo do qual você mesmo provinha, famílias Lebeis e Bomfim, cujos nomes ocultam história profunda de peregrinações pelas terras paulistas. Daí que os tipos de rua nunca mais deixaram a sua obra.

Sua memória é pródiga em fazer o menino Cambuci, por exemplo, vira sinônimo da atuade cinco anos divisar com seu pai, na porta da ção política e religiosa do abolicionista e espíriantiga Drogaria Baruel, esquina das ruas Direi- ta oitocentista Batuíra; a Praça da Sé, cenário ta e 15 de Novembro, a Vovó do Pito, “preta ve- de lembrança dos restos mortais do cacique Tilhíssima com o apito na boca, que olhava a cida- biriçá, que a catedral abriga. A esquina da Rua de que embalara com seus cantos africanos”. Direita com a São Bento, por sua vez, reassume Ou de relembrar o mulato Araújo e o húngaro o histórico topônimo “Quatro Cantos” e evidenAdão pelas ruas da Vila Buarque de sua infân- cia ter abrigado o sobrado onde D. Pedro I teria cia, e o “preto velho e cego chamado Tobias” se hospedado quando da proclamação da Indeno portão de sua casa. Anos mais tarde, o jo- pendência do Brasil, e onde anos mais tarde, já vem estudante de Direito e boêmio de São Pau- como Hotel Itália, o poeta Castro Alves e sua lo sensibiliza-se, na Praça da República, com a amada Eugênia Câmara teriam vivido o seu morte de Galalau, “que tivera seus dias de gló- tórrido amor. Por tudo isso e mais um pouco, a história quaria na marginalidade” em harmonia com a boemia. É nesse mesmo logradouro que, já adulto, se quintocentenária de São Paulo deixa de ser você fica sabendo, pelo fotógrafo lambe-lambe algo distante, restrita a livros e estudiosos de nosso passado, e gaGuerra, da morte do SEBASTIAO MOREIRA/ESTADÃO nha carne e sangue. guarda de jardim AnTorna-se viva reavitônio, “que protegia vando a densidade hisos namorados, cobria tórica das próprias com jornal os pobres ruas. Evidencia-se que adormecidos sobre o fomos e somos cenábanco do jardim e trarios espaciais de todas zia a carteira repleta essas tramas humanas de fotografias de que, vividas dia a dia, crianças, suas compafizeram História sem nheirinhas de todos saber que a faziam. É os dias”. nesse sentido que Todos esses houma frase como a de mens de personalidaque “a alma de São de forte fazem par Paulo veio de José de com moças e mulheAnchieta” se reveste res de vigor análogo, de uma crucial dimencortejadas num misto são espacial: o interlode respeito e liberdacutor do poeta é insde. A mesma Praça da tantaneamente conduRepública é sinônimo zido ao Pátio do Colédas normalistas da Esgio, e a questionar-se cola Caetano de Cam- Quando jovem. Aos 18 anos, retratado acerca das camadas pos, que ornavam por Anita Malfatti, de quem foi amigo de história humana qual pérolas as sorveterias e confeitarias do entorno. Já nas várias que se ocultam nas fachadas só aparentemente ruas ao norte do logradouro, entre a Praça Julio coloniais do logradouro atual. É marcada por essa dinâmica que a sua obra, Mesquita e o Bom Retiro, pontilham as feições ao mesmo tempo viçosas e sábias das “mada- Paulo, fez e faz tanto por nós. Testemunha ocumes” Dadá, Amélia Preta, Geny das Tranças, Ro- lar de nosso destino ao longo dos últimos 90 sinha, Yara, Ceci, Francina, Roberta, Mathilde, anos, você não abandonou nossa história humana “rueira”. Ora, esta é mais e mais esquecida à Dulce e a cultíssima Paulete. Não ignoramos que, quando a memória flagra medida que, em São Paulo, centros urbanos se o poeta e jornalista adulto, o seu olhar tende a multiplicam ininterruptamente para fora da afastar-se dos tipos humanos que animam nos- chamada colina histórica, o que se dá sobretuso dia a dia em São Paulo. Ele concentra-se do desde a década de 1960. Daí que hoje são mais no ir e vir entre as livrarias e galerias, clu- poucos os que nos olham em busca do que sobes literários e artísticos do entorno da Praça terramos não apenas dos chamados grandes da República, além dos apartamentos e casas de processos históricos, porém da história humaamigos e familiares que, acompanhando a dinâ- na fugaz, mas nem por isso menos significativa, mica de urbanização desta nossa São Paulo, ten- da qual fomos e somos mediação dia a dia, e dem a trocar o centro histórico como lugar de que é ao mesmo tempo mediação precisamente moradia pelo entorno da Avenida Paulista. Ao daquela História mais abrangente. Graças a sua mesmo tempo, contudo, a memória não sosse- obra, Paulo, as ruas paulistanas em particular ga, e acontecimentos de rua ainda mais longe- da segunda metade do século 20 e deste início vos se aprofundam no horizonte imaginário do de século 21 contamos com um espelho abranpoeta-cronista-historiador. A Rua Espírita do gente através do qual vislumbrar o quanto o

que somos deve ao que fomos. Desse ponto de vista, o seu olhar permite retornar de modo renovado, porque inquiridor, às ruas paulistanas do presente. A curiosidade histórica tem como perscrutar, entre outros, o atual Largo Marechal Deodoro em busca do porquê da ausência, hoje, de qualquer referência à animada e constante presença, ali, do circo Piolin. Ela pode questionar-se sobre o que fez e, provavelmente, não faz mais do Largo de São Francisco o “Território Livre” enaltecido por ex-estudantes como Paulo Bomfim. O olhar interessado tem como aportar na Praça da Sé e interpelar, incomodado, os repuxos do jardim do atual logradouro sobre o destino do culturalmente vigoroso Palacete Santa Helena, que até nome de um dos mais ativos grupos de artistas paulistanos do século 20 virou... Na Rua Barão de Itapetininga e seu entorno, a curiosidade sai em busca de indícios mesmo que fragmentários da agitada Confeitaria Vienense, para não mencionar livrarias como a Francesa, a Teixeira, a Brasiliense. Enfim, o olhar inquieto pode regressar, já cansado mas nem por isso desanimado, ao lugar onde tudo isso começou: na infância vivida na esquina da Rua Rego Freitas com a Epitácio Pessoa. O amplo casarão que, em seu período mais agitado, chegou a abrigar 15 pessoas, foi desde cedo o quartel-general primordial a partir do qual o poeta incursionava pela cidade. Lembramos bem da “guerra das calças curtas” travada dia a dia com os meninos daquela e de outras ruas do entorno, no âmbito de “trocinhas” cuja dinâmica social e cultural o sociólogo Florestan Fernandes tão bem elucidou na mesma época. E como esquecer das escapadas para a Tabatinguera para “conversar com as velhas taipas”, e as horas passadas na biblioteca, onde o menino “ensaiou voar um dia”? Em busca de tudo isso, só o que a esquina em questão oferece ao olhar desassossegado do presente é a frieza dos muros de um prédio acalentado pelas cores vivas de um grafite. E a oportunidade de mais um “Por quê?”, “Desde quando?” se reaviva. É essa possibilidade crítica que você lega à São Paulo de hoje e amanhã por meio de nós. Prenhes de passado, fomos alçadas a referências fundamentais para o futuro, porque potencialmente emancipadoras da experiência urbana dos seres humanos que fazem de nós o que somos atualmente. Você bem sabe disso ainda hoje. Tanto que há poucos dias escreveu sobre um envelope fugaz, para os leitores deste jornal, que “As ruas são caminhos da solidão, percursos do sonho e esquinas dos desencontros”. E, uma vez mais, agradecemos. FRAYA FREHSE É PROFESSORA DO DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA DA USP E AUTORA DE O TEMPO DAS RUAS NA SÃO PAULO DE FINS DO IMPÉRIO E Ô DA RUA! O TRANSEUNTE E O ADVENTO DA MODERNIDADE EM SÃO PAULO (EDUSP, 2005 E 2011)

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