A história se repete: análise da cobertura jornalística dos impeachments de Collor e Dilma1.pdf

June 1, 2017 | Autor: Paulo Ferracioli | Categoria: Political communication, Frame Analysis
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A história se repete: análise da cobertura jornalística dos impeachments de Collor e Dilma1 FERRACIOLI, Paulo (mestrando em Comunicação)2 Universidade Federal do Paraná/Paraná ANTONELLI, Diego (mestrando em Comunicação)3 Universidade Federal do Paraná/Paraná

Resumo: Esse artigo pretende investigar os enquadramentos midiáticos da cobertura sobre o processo de impeachment no Brasil, mais especificamente no jornal Folha de S. Paulo. Através de uma análise de enquadramento, a intenção foi perceber as semelhanças e diferenças entre os julgamentos dos presidentes Collor e Dilma. As notícias foram coletadas em dois momentos distintos, na abertura do processo e na votação da Câmara que remeteu ao Senado. Cada matéria foi classificada a partir de dois critérios distintos: na linha de Iyengar (1991), foram divididos em episódicos e temáticos; e na ótica de Semetko e Vankenburg (2000), em conflito, interesse humano, consequências econômicas, moralidade e responsabilidade. Os resultados demonstram que, de um lado, a abordagem episódica é muito predominante na cobertura jornalística, com poucos momentos de contextualização. Já na outra classificação, o enquadramento de conflito foi o mais evidente nas matérias, seguido pelo de responsabilidade, com aparições raras dos vieses econômico e humano. Palavras-chave: jornalismo político; enquadramento; impeachment; Folha de S. Paulo.

1. Introdução Em 1992, o Brasil passou pelo primeiro processo de impeachment na sua história. Naquele ano, o então presidente Fernando Collor de Mello sofreu o processo de impedimento e ficou impossibilitado de terminar o mandato. Menos de 24 anos depois, o Brasil se vê às voltas com outro processo da mesma natureza, dessa vez da presidente Dilma Rousseff, reeleita para um segundo mandato em 2014 e que pode não encerrar sua gestão, que estaria prevista para 2018. A menção ao impeachment de Collor ao longo da cobertura sobre a Dilma é constante não só nos comentários que partem de cientistas políticos, mas também entre os cidadãos. Mesmo que existam diferenças entre os casos, principalmente em relação 1 Trabalho apresentado no GT de História do Jornalismo, integrante do 6º Encontro Regional Sul de História da Mídia – Alcar Sul | 2016. 2 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPR. Membro do grupo de pesquisa Comunicação e Participação Política. Graduado em Comunicação Social – Jornalismo (UFPR) e Direito (Unicuritiba). Bolsista Capes. [email protected]. 3 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPR. Membro do grupo de pesquisa Comunicação e Participação Política. Graduado em Comunicação Social – Jornalismo (UEPG). Jornalista. [email protected].

aos diferentes argumentos e justificativas para a instauração dos procedimentos, o protagonismo dos meios de comunicação é inegável em ambos os processos. Grande parte dos meios de comunicação aderiu à ideia favorável ao impeachment da Dilma e do Collor. A alta visibilidade conferida aos dois processos de impeachment, por exemplo, contribuiu para que uma parcela da sociedade “comprasse” a ideia da necessidade de afastamento dos presidentes nos dois casos citados. Somam-se a isso os editoriais dos principais jornais do país e as capas das principais revistas semanais sinalizando um posicionamento favorável das grandes corporações da imprensa no país ao impeachment. Esse volume de publicações, somados, tem possibilidade de gerar um efeito social e contribuir para que parte da população compartilhe do mesmo ponto de vista. É fundamental ressaltar, todavia, que apesar da forte inter-relação entre a mídia e a política através do influxo da mídia sobre o campo político, não é óbvia a dominação da política pelos meios de comunicação. As discussões públicas podem caminhar para um sentido oposto ao adotado pelos principais meios. Portanto, os efeitos da mídia não são uniformes em todas as situações e podem sofrer resistência: “decretar que a política 'se curvou' à mídia é tão estéril quanto negar a influência desta sobre a primeira”. (MIGUEL, 2002, p. 180). Independentemente dos efeitos gerados na sociedade é fundamental se debruçar para estudar e pesquisar a maneira como o jornalismo transmitiu esses eventos de amplitude única em um sistema democrático, ainda mais ao se considerar a importância atribuída aos atores envolvidos. Para captar essas particularidades da cobertura midiática, a análise de enquadramento demonstra ser uma ferramenta de alto valor. Assim, faz-se necessário compreender um pouco dessa corrente de pesquisa em comunicação. Para tanto, o jornal escolhido para a presente pesquisa foi a Folha de São Paulo, que é o jornal diário de maior circulação nacional, segundo dados de 2015 do Instituto Verificador de Comunicação (IVC), além de ser reconhecidamente um periódico com relevância na discussão pública brasileira. Os períodos escolhidos foram as semanas seguintes a dois momentos relevantes ao longo do processo de impeachment: a instauração inicial do processo pelo presidente da Câmara dos Deputados e a votação pelo plenário da Casa. Assim, na época do Collor, as notícias coletadas foram veiculadas entre 02/09 a 08/09/1992 (53 textos) e 30/09 a 06/10/1992 (80 matérias); no

período Dilma, foram colhidas as matérias entre 03/09 a 09/09/2015 (32 textos) e 18/04 a 20/04/2016 (59 notícias). Isso sempre no primeiro caderno do jornal, atualmente intitulado “Poder”, no qual está presente a cobertura política da Folha de São Paulo. 2. Enquadramento Noticioso O conceito de enquadramento, originalmente proposto por Gregory Bateson na década de 1950 e voltado primeiramente para estudos psiquiátricos, tem se tornado ferramenta metodológica muito utilizada em pesquisas acerca de produções midiáticas. Antes de apontar como esta lógica tem se desenvolvido no campo comunicacional destaca-se a proposta de Erving Goffman que a partir da lógica do enquadramento, dos frames, aponta um conjunto de posicionamentos e atitudes que as pessoas possuem perante determinadas situações. Para ele, os frames “não são estratégias simplesmente construídas por atores sociais para influenciar seus interlocutores” (MENDONÇA E SIMÕES, 2012, p. 190). Trata-se de uma espécie de estrutura que é processada e delineada por meio de um encontro entre sujeitos em determinadas e distintas situações. Com estudo focado nas relações e nas experiências sociais, Goffman aponta que os seres humanos estão ao tempo todo atuando, em uma metáfora de que a vida em sociedade se equipara a um palco de teatro. Dessa forma, Goffman define que o enquadramento deve ser utilizado para apontar como os indivíduos se utilizam de distintos quadros (ou frames) para se relacionar e interagir em determinada situação social. Nas palavras do autor, “quadro é a palavra que uso para me referir a esses elementos básicos que sou capaz de identificar. Esta é minha definição de quadro. Minha expressão ‘análise de quadros’ é um slogan para referir-me ao exame, nesses termos, da organização da experiência”. (GOFFMAN, 2012, p.34). Os enquadramentos, na visão do autor, podem ser constituídos em diferentes profundidades, podendo passar das chamadas “estruturas primárias” (que correspondem ao “mundo real” e mais rotineiro) a distintas faixas que podem fazer com que uma mesma situação tenha diferentes laminações, ou seja, que passe a ter diferentes significados aos olhos dos membros da sociedade. Assim, adotar o frame correto tornase indispensável para que a interpretação de uma determinada situação não seja equivocada.

Inspiradas nesses estudos de Goffman, o termo enquadramento foi apropriado pelo campo da pesquisa em comunicação para estudar como se dá a publicação das notícias, principalmente no que diz respeito às interpretações possíveis que podem resultar do conteúdo noticioso. Dessa forma, algumas correntes a partir da década de 1980 visaram analisar o enquadramento noticioso. Neste campo, Entman assume papel preponderante para sistematizar as análises dos frames jornalísticos. Segundo Entman, o frame é um processo de seleção e hierarquização da realidade social; o enquadramento assim faz parte de todo o processo da reportagem (MOTTA,

2010).

Por

meio

de

tal

metodologia,

pretende-se

investigar

o

“enquadramento estruturado e organizado nas narrativas jornalísticas, principalmente, através da seleção e saliência de alguns atributos da realidade” (PRUDENCIO, RIZZOTTO E SILVA, 2015, p.4). Isso significa que os “textos podem fazer algumas informações mais salientes pela colocação ou repetição” de palavras (VIMIEIRO e DANTAS, 2009, p.4). Dessa forma, os “frames selecionam e chamam a atenção para aspectos particulares da realidade descrita” e buscam analisar como a mídia cria e exclui determinados tipos de frames. O enquadramento da mídia muitas vezes se manifesta pela escolha de algumas palavras-chave, frases-chave e imagens que reforçam uma representação particular da realidade, além da omissão de outros elementos que possam sugerir uma perspectiva diferente ou desencadear um sentimento diferente. Os estudos baseados na proposta de Entman são, dessa maneira, identificados pela análise da seleção, localização, estrutura de palavras e frases de cada texto. Vários fatores influenciam o enquadramento, como as rotinas produtivas, a posição editorial dos meios de comunicação e até o clima político e econômico que acabam interferindo no processo jornalístico. Somam-se a esse fato as fontes que são ouvidas para a produção jornalística, já que o grau e a facilidade para entrar no campo da visibilidade midiática interferem na angulação e no enquadramento da notícia. Assim, como descreve Motta, cada uma das partes envolvidas procuram certa estabilidade para estar inserido no campo da mídia e as “verdades podem ser reciprocamente negociadas” (2010, p.143). Contudo, há uma diversidade de concepções teóricas sobre enquadramento midiático que dificultam encontrar uma consistência única na operacionalização desse

conceito. Essas diferenças podem acarretar em uma “indefinição conceitual e uma falta de sistematização metodológica entre os estudos sobre o tema” (VIMIEIRO e DANTAS, 2009, p.1). Uma proposta de classificação para agrupar e delimitar de forma mais consistente essa teia de pesquisas partiu de Scheufele (1999). A primeira divisão é entre os estudos dos enquadramentos midiáticos e dos enquadramentos individuais, ou seja, pesquisas que se dedicam aos estudos promovidos pelos meios de comunicação em oposição às investigações sobre os enquadramentos operados pelos outros atores sociais. A segunda divisão, por sua vez, opera o enquadramento como variável dependente ou independente. Na primeira área se encontram os trabalhos que examinam os fatores que levam à produção dos enquadramentos, enquanto no segundo lado estão aqueles que identificam os enquadramentos e a partir deles chegam às conclusões almejadas (SCHEUFELE, 1989). Assim, o enquadramento é entendido como variável dependente quando a pesquisa se pergunta quais fatores influenciam os jornalistas a enquadrar os acontecimentos de determinada maneira, se centrando sobre esses processos. Já ao tomar o enquadramento como variável independente a pesquisa pretende identificar os enquadramentos, mas utilizá-los como base para chegar a outras conclusões, não se preocupando com a sua formação.

3. Procedimentos Metodológicos

As diversas pesquisas já realizadas sobre enquadramento noticioso nos permitem agrupar os estilos de análise em dois grupos, denominados de generic news frames e issue-specific news frames (DE VREESE, PETER, SEMETKO, 2001). Enquanto esses últimos estão relacionados ao tema das notícias que estão sendo analisadas naquela pesquisa específica, os primeiros podem ser aplicados em coberturas de temas diversos, em tempos diferentes e até mesmo em países diferentes. Para o presente caso, no entanto, a opção pelos generic frames mostrou-se mais eficaz, inclusive para propiciar a comparação entre os dois eventos, que é objetivo primordial dessa pesquisa. Dentre reconhecidas análises que se enquadram no que é denominado de generic news frames, é possível citar a pesquisa de Iyengar (1991) sobre a opção da mídia por dois enquadramentos: o episódico, cujo foco recai em eventos

pontuais, e o temático, que situa as questões políticas de maneira mais contextualizada. Outra proposta de enquadramento genérico vem de Neuman et al (1992), como já citado, que investigou os textos jornalísticos a partir das categorias: conflito, interesse humano, consequências econômicas, moralidade e responsabilidade. Esse procedimento foi realizado em duas etapas diferentes. Na primeira, as notícias foram enquadradas de acordo com os 5 enquadramentos genéricos (NEUMANN et al, 1992; SEMETKO, VALKENBURG, 2000) com extensa utilização na pesquisa mundial da área,

conflito (ênfase nos embates entre os indivíduos),

interesse humano (cobertura que se baseia na apresentação de um lado emocional ou humano do tema), consequências econômicas (abordar um assunto sob a ótica dos seus efeitos econômicos sobre um grupo ou indivíduo), moralidade (foco no contexto religioso ou moral) e responsabilidade (apresentar o problema de maneira a atribuir sua causa a alguém) (SEMETKO, VALKENBURG, 2000). A classificação de Iyengar (1991), que divide os enquadramentos entre episódicos e temáticos, também foi utilizada. A matéria foi considerada episódica (código 1) quando apenas relatava um fato, sem contextualizá-lo ou oferecer explicações detalhadas. Em contraste, o enquadramento temático (de código 2) apareceu nas matérias que se propuseram a abordar os temas de maneira mais esmiuçada, com um viés mais amplo dos acontecimentos retratados. 4. Resultados

Em relação à cobertura sobre a instauração do processo de impeachment contra o ex-presidente Fernando Collor de Mello, isto é, quando a denúncia contra ele foi acatada pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Ibsen Pinheiro, é possível afirmar que, levando em conta os critérios metodológicos adotados por Neumann et al (1992) e Semetko e Valkenburg (2000), os resultados apontam uma grande maioria das matérias enquadrando o acontecimento a partir da perspectiva do conflito – das 53 reportagens, 39 parte desta perspectiva, ou seja, 73,5%. Nenhuma delas aborda o interesse humano ou a moralidade. A ausência do frame interesse humano é sinal de que a cobertura de política da Folha tendeu a tratar dos temas sem criar relações com a vida cotidiana dos cidadãos, criando um distanciamento entre os sujeitos e a política. Como pode-se perceber no gráfico abaixo:

Collor instauração - Classificação Semetko 39 40 35 30 25 20 10

15 10

4 0

5

0

0 1

2

3

4

5

O enquadramento “conflito” recebe destaque muitas vezes no próprio título, como "Collor se arma para batalha na Câmara" (03/09/1992), tratando o próprio processo de impeachment como um campo de conflito e que o então presidente precisaria se “armar” para tentar se defender. O conflito também está na construção ou angulação da notícia a reportagem do dia 02/09/1992, em que o assunto é o então presidente da Câmara rebatando o discurso do Collor, denotando uma disputa entre ambos. Outras marcam o conflito com a utilização de palavras que carregam esta semântica: “disputa”, “batalha”, “briga” e “guerra”, entre outras. Dez notícias enquadram o tema a partir da atribuição de responsabilidade; na maior parte delas pelo fato de toda matéria assim enquadrada “jogar a responsabilidade” ao então presidente da Câmara. Por último, quatro matérias são enquadradas como consequências econômicas, que tratou, basicamente, de propostas econômicas que poderiam ser tomadas no decorrer do andamento do processo de impedimento de Collor.

Collor instauração classificação Iyengar 1

52 1

2

Em relação à classificação de Iyengar (1991), a maioria absoluta das notícias (98%) utiliza o enquadramento episódico, como demonstra o gráfico acima. Isso significa que é recorrente que os acontecimentos sejam abordados sem contextualização e focados, sobretudo, em acontecimentos factuais. Isso pode ser percebido no gráfico a seguir: Já em relação ao período de notícias após a votação no plenário da Câmara dos Deputados, a divisão de enquadramentos a partir do conceito de Neumann et al (1992) e Semetko e Valkenburg (2000) também apontou uma preponderância do enquadramento conflito – 51 matérias de um total de 80, o que significa aproximados 64%, conforme mostra o gráfico a seguir:

Collor votação - classificação Semetko 60 51 50 40 30 20 12 10

5

8 4

0 1

2

3

4

5

Vale mencionar que no dia 30/09/1922, data posterior à aprovação do impeachment de Collor na Câmara, a Folha de São Paulo veiculou dois cadernos inteiros dedicados ao tema – foram 38 textos jornalísticos publicados (sem contabilizar textos de opinião ou similares). O enquadramento conflito acompanhou a cobertura ao longo de toda aquela semana e estampava, geralmente, as disputas políticas e por cargos políticos, como “Itamar assume a presidência” (30/09/1992) em que se mencionava como estava disputa por cargos e se debatia sobre as condições de Itamar Franco, o vice que assumiu o cargo de mandatário do Brasil, manter a governabilidade. Também foi denotado por algumas matérias as rusgas entre Itamar e Collor (por exemplo: “Presidente diz confiar em

besteiras de Itamar para voltar ao cargo”, também do dia 30/09/1992 ou “Itamar ataca 'símbolos' da era Collor em solenidade”, veiculada no dia 06/10/1992 em que Itamar crítica o modo de Collor governar). Ao contrário da cobertura de instauração do pedido de impeachment, após o processo ter sido aprovado foram veiculadas 12 reportagens enquadradas como interesse humano, dando indícios de que algumas histórias de vida ganharam espaço no jornal. A maior parte deste tipo de enquadramento confere um foco mais “humano” aos políticos, como esta publicada no dia 30/09/1992: “Depressão de Collor era segredo militar”, em que se conta a doença que teria acometido o ex-presidente. Ou ainda de reportagens em que as pessoas ditas comuns são colocadas como protagonistas na matéria, como a “’Teens’ conferem sua vitória de perto”, veiculada no mesmo dia e que conta como os jovens que protestaram contra o Collor acompanharam o processo de votação. Cinco reportagens trataram sobre aspectos econômicos, como “Haddad sugere pacto contra inflação”, do dia 02/10/1992. Oito outras matérias foram enquadradas como moralidade e quatro como responsabilidade. A partir da classificação de Iyengar (1991), constatou-se que 62 matérias eram episódicas, ou seja, centradas em assuntos factuais e sem contextualização e apenas 18 tinham persperctivas temáticas. Ao contrário do período anterior de análise, a cobertura temática após o processo de impedimento ter sido votado foi superior pelo fato de o jornal optar, em alguns momentos, por produzir reportagens mais analíticas e contextualizadas sobre o impeachment do Collor e as consequências deste processo para o país, como esta: “Acuado, Collor ignorava a realidade”, publicada no dia 05/10/1992.

Collor votação - classificação Iyengar 18

62

1

2

As eleições municipais daquele ano também contribuíram para o aumento do enquadramento “temático”, como mostra o gráfico acima. Muitas campanhas e candidatos usavam as acusações contra o Collor para tentar arrebanhar votos: “‘Collorgate’ dá o tom no horário gratuito” (02/10/1992) e “Itamar quer influenciar nas eleições municipais” (02/10/1992). Reportagens com teor mais investigativo, como “PC pagou tratamento dentário de Rosane (Collor, então esposa do ex-presidente)” (03/10/1992), também colaborou para um maior índice de reportagens enquadradas como temáticas. As matérias sobre o período da instauração do impeachment da presidente Dilma Rousseff também foram codificadas da mesma maneira que as do presidente Collor. A partir da classificação de Semetko e Valkenburg (2000), o resultado foi o seguinte:

Dilma instauração - classificação Semetko 30 26 25 20 15 10 4

5

2

0 1

0 2

3

0 4

5

Os números apontam que mais de 80% das notícias enquadram o acontecimento a partir da perspectiva do conflito (código 1), enquanto nenhuma delas aborda o interesse humano ou a moralidade. Em uma das notícias - “Governo e oposição duelam por rito do impeachment” (4/12/15) - o conflito recebe destaque já na manchete. Em parte delas o conflito é percebido no modo de apresentação dos fatos, como a notícia “Em dia de derrota na Câmara, Dilma ganha apoio de governadores” (9/12/15), que expõe o esforço de Rousseff em conseguir apoio político para barrar o processo; outras marcam o conflito com a utilização de palavras que carregam tal carga semântica: “duelo”, “rebater”,

“batalha”, “tensão”, “confusão”, “briga” e “rompimento”, entre outras. Quatro notícias enquadram o tema a partir da atribuição de responsabilidade: a responsabilidade recai ora exclusivamente na presidente Dilma Rousseff, a culpa é atribuída a Eduardo Cunha, ou a notícia coloca Michel Temer como solução para a crise gerada pelo pedido de impeachment.

Dilma instauração classificação Iyengar 2

30 1

2

Já sob a classificação de Iyengar (1991), a maioria absoluta das notícias utiliza o enquadramento episódico. Isso significa que é recorrente que os acontecimentos sejam abordados sem contextualização alguma. A notícia “‘Dilma nunca confiou em mim”, afirma Temer a aliados” (7/12/15) ilustra bem essa conclusão: fala do conflito entre a presidente da República e o vice-presidente apenas a partir do vazamento da carta escrita pelo vice, desconsiderando que a relação entre os dois existe, pelo menos, desde 2010. As únicas duas publicações que utilizaram o enquadramento temático foram: “Governo quer chantagear Temer a apoiar a presidente” de 04/12/15, que mostrou que o mercado financeiro não reagiu somente a Eduardo Cunha. A matéria tratou da decisão do Banco Central europeu sobre estímulos monetários na zona do euro e abordou previsões de como o impeachment afetaria a economia a longo prazo. E “Ação contra Dilma recicla veteranos da era Collor” de 6 de dezembro, que abordou os conflitos entre os parlamentares, apresentando as diferenças entre 1992 e 2015. No outro período de notícias, após a votação no plenário da Câmara dos Deputados, a divisão de enquadramentos foi muito semelhante. O enquadramento do conflito continua muito predominante, abordando a questão do impeachment através de disputas como direita e esquerda, Dilma e Temer, PT e PSDB. Em segundo lugar, surgiu o enquadramento do interesse humano. São

notícias com foco em personagens e algumas até se aproximam a textos de “perfil”, espécie de ampla utilização no jornalismo impresso.

Dilma votação - classificação Semetko 35 30 25 20 15 10 5 0

33

11

8 3

1

2

3

4

4

5

O tema da responsabilidade, ainda, é um enquadramento presente, ao imputar a questão do impeachment como responsabilidade de um indivíduo ou grupo específico. Ora a bancada da Lava-jato e Eduardo Cunha, ora o vice-presidente Michel Temer e a presidente Dilma são o centro dessas matérias e a esses personagens é atribuída, na narrativa de cada matéria, a responsabilidade pelo processo de impedimento. O enquadramento da moralidade surge também nessas notícias, mas em apenas 4 matérias, quando há a abordagem do tema da corrupção e as irregularidades na Administração pública, com um viés de punição dos envolvidos. As consequências econômicas, por fim, são o enquadramento que menos aparece nesse período e se restringe a repercussões no mercado financeiro sobre as mudanças que viriam com o afastamento da presidente Dilma Rousseff. Já a classificação dos textos jornalísticos sob a ótica de Iyengar (1991), entre episódicos e temáticos, demonstrou mais uma vez a absoluta predominância do enquadramento episódico, como se observa do gráfico abaixo:

Dilma votação classificação Iyengar 9

1

2

50

Cinquenta das 59 notícias tratavam a votação do impeachment como fato isolado, sem qualquer abordagem contextualizada. Apenas 9 matérias ofereceram essa visão temática, mesmo tendo havido um longo caderno na segunda-feira que se dedicou quase que exclusivamente à cobertura do impeachment. Esse enquadramento temático era percebido, em síntese, através de comparações históricas e relações entre aspectos nacionais e locais. 5. Considerações Finais Os enquadramentos utilizados em ambos os processos de impeachment se assemelharam muito em todos os momentos averiguados, o que pode indicar até mesmo um modo padrão na imprensa brasileira de cobertura política. Os enquadramentos episódicos são mais simples, rápidos, parecem se adequar melhor à lógica de produção de notícias e das rotinas produtivas do próprio jornalismo. Mas, paradoxalmente, ao ser utilizado excessivamente, como a presente análise constatou, contraria o próprio discurso dos meios de comunicação impressos, que – geralmente – se posicionam como um ambiente de matérias aprofundadas, contextualizadas. Afinal, matérias dedicadas apenas a um evento particular e que não fazem correlações com outros fatos e focado, sobretudo, no factual não é o que se espera de um jornal impresso e muito menos de um veículo que pretende contribuir para o ambiente democrático. O enquadramento de conflito, predominante na outra classificação, é outro indicador de que a cobertura jornalística não apresenta um grande viés democrático. Enfocar um evento da magnitude e repercussão de um impeachment apenas como conflito entre grupos e políticos rivais é ignorar a enorme repercussão de tal acontecimento. Imputar a responsabilidade a apenas um ator, como acontece em muitas matérias, é também outra técnica de construção da narrativa jornalística que pode facilitar o entendimento do assunto, mas despreza particularidades essenciais ao contexto político. O aspecto humano é frequentemente ignorado e até mesmo as consequências econômicas são abordadas em poucas matérias em ambas situações. A presente pesquisa aponta diversos caminhos que podem ser tomados. Ampliar a base de análise para outros veículos pode indicar parâmetros mais amplos e generalizantes da cobertura do impeachment. Incluir portais de notícias online,

especialmente aqueles alternativos à grande imprensa, seria outra maneira de aperfeiçoar a discussão aqui esboçada sobre a cobertura jornalística do impeachment. De qualquer modo, essa análise já mostrou as idiossincrasias dos textos jornalísticos de impeachment. Pensar em maneiras de superar essas falhas e melhorar a cobertura é essencial para o futuro do ofício jornalístico e da profissão. Referências DE VREESE, Claes H. News framing: theory and typology. Information DesignJournal, pp. 51-622005. DE VREESE, Claes H; PETER, Jochen; SEMETKO, Holli. Framing Politics at the Launch of the Euro: A Cross-National Comparative Study of Frames in the News. Political Communication, pp. 107-122, 2001. ENTMAN, Robert. Framing: toward a clarification of a fractured paradigm. Journal of Communication, v.43, n.4, 1993. ____. Framing U.S. Coverage of International News: contrasts in narratives of the KAL and Iran Air Incidents. Journal of Communication, v.41, n.4, 1991, pp. 6-27. GOFFMAN, Erving. Os quadros da experiência social – uma perspectiva de análise. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2012. IYENGAR, Shanto. Is Anyone Responsible?: how television frames political issues. Chicago: The University of Chicago Press, 1991. MENDONÇA, Ricardo Fabrino; SIMÕES, Paula Guimarães. Enquadramento: Diferentes operacionalizações analíticas de um conceito. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 27, n. 79, 2012. MIGUEL, L. F. Os meios de comunicação e a prática política. Lua Nova, nº. 55-56, pp 155-184, 2002.

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