A Historiografia Contemporânea sobre a Ordem dos Pregadores na Idade Média

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FORTES, Carolina. A Historiografia Contemporânea sobre a Ordem dos Pregadores na Idade Média. Texto apresentado na III Semana de História da UFF, março de 2015.

A Historiografia Contemporânea sobre a Ordem dos Pregadores na Idade Média Carolina Coelho Fortes - UFF

Introdução Agradeço imensamente à Comissão Organizadora pelo convite para participar da Semana de História da Uff – Niterói, que é como nós, lá em Campos, nos referimos à sede. Espero que esse convite seja o prenuncio de um contato mais constante entre os dois departamentos, em especial no que se refere às trocas discentes. Com exceção da área de História Medieval, os diálogos entre Niterói e Campos parece não ter encontrado ainda muito espaço. Bom, a historiografia contemporânea sobre a Ordem dos Pregadores na Idade Média. Porque tratar de tema aparentemente tão árido? Minha intenção com a fala de hoje não é tão somente trazer à baila alguns pontos marcantes da produção historiográfica sobre a Ordem dos Frades Pregadores, objeto que vem ganhando atenção ainda tímida, mas crescente nas últimas duas décadas. Se assim o faço, é porque entendo como essencial o papel que a reflexão sobre a historiografia e, a partir dela, a construção de um debate bibliográfico, ocupam na pesquisa acadêmica, e na formação do historiador. Ao contrário do que pensamos quando começamos a pesquisa, muitos de nós ainda nos primeiros períodos da graduação, os que vieram antes de nós e se interessaram pelo que nos interessamos não são nem detentores de verdades instransponíveis (se é que existem), nem competidores em uma corrida pelo conhecimento que devemos ultrapassar a qualquer custo. Em outras palavras, o papel da historiografia não é ser aceita de forma inquestionável, nem rechaçada porque fundamentada em princípios epistemológicos considerados ultrapassados. No meu entender, o papel da historiografia é sobretudo lançar luz, fazer pensar, além das suas óbvias funções de informar, ensinar, descobrir. É por meio de levantamento e leitura atenta do que já se discutiu sobre nosso objeto de estudo que conhecemos sobre ele, mas sobretudo é a partir da produção de terceiros que podemos construir nossas próprias reflexões, considerações, caminhos. Quase sempre, é lendo os historiadores, e não as fontes ou considerações epistemológicas, que chegamos ao tema que desenvolvemos. Assim, a historiografia é o berço mais constante de novas pesquisas, e seu alimento mais necessário. Portanto, como a própria realização desse evento, já em sua terceira edição, demonstra, o trabalho do historiador, o trabalho

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de qualquer um que produza conhecimento, é trabalho coletivo, colaborativo,integrado, solidário. Dito isso, vejamos como essa colaboração contribuiu para a formulação de uma pesquisa específica, a minha, desenvolvida aqui mesmo durante o doutorado concluído em 2011. Minha inquietação principal na pesquisa que levou à redação da tese era, de início, simples: quem são os dominicanos? Ou ainda, quem eles pensam que são? Preocupei-me, assim, em buscar os elementos que garantiam identidade ao grupo que acabava de surgir nas primeiras décadas do século XIII. A resposta que a historiografia me dava, quando dava alguma, não me parecia satisfatória. Via de regra, os historiadores dos séculos XX e XXI viam no fundador a explicação para os pregadores serem como eram então. Ou seja, quando os estudiosos se preocupavam com essa questão, o que não era comum, davam uma interpretação baseada em uma lógica religiosa, salvífica mesmo da história, entendendo Domingos de Gusmão como um predestinado. São muitas as vertentes que levam à historiografia dominicana. Embora não possamos nos queixar da carência de pesquisas sérias sobre o primeiro século de existência da Ordem dos Pregadores, é de se considerar que as grandes sínteses foram feitas, sobretudo, há sessenta anos.1 Todas elas escritas por frades dominicanos. Essas sínteses grandiosas talvez tenham inibido a produção de novos estudos sobre a Ordem durante, pelo menos, quarenta anos. Isso porque foi só nas duas últimas décadas que começamos a perceber um interesse crescente em relação a vários aspectos da história dos frades pregadores por parte dos historiadores laicos. Portanto, com um hiato relativamente longo, podemos perceber não apenas posicionamentos teóricos e metodológicos diferentes, como a própria contraposição, na historiografia, de abordagens das mais amplas às mais específicas. A historiografia sobre os dominicanos, por conseguinte, segue no leito da História feita pelos historiadores, ainda que, aparentemente, a passos mais lentos. Diante da miríade de temas que estes estudos nos apresentam, optamos por apresentar aqui as principais obras sobre a formação da Ordem dos Pregadores, em especial no que tange ao que os historiadores entenderam como sendo a função primordial da Ordem.

A única exceção é a obra de Simon Tugwell, OP. Entre 1995 e 2005 o frade inglês laçou, anualmente, duas séries de artigos no periódico Archivum Fratrum Praedicatorum: Notes on the Life of Saint Dominic, AFP, nos.65, 66, 67, 68, p.5-169, p. 5-200, p. 27-59, p.5-116; e The Evolution of Dominican Structures of Government, AFP, nos, 69, 70, 71, 72, 75, p. 5-60, p. 5-109, p. 5-183, p. 26-159, p. 29-94. 1

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Privilegiamos o debate acerca de obras gerais. Em outras palavras, discutiremos aqui livros, conclusões mais amplas a respeito da formação da Ordem dos Frades Pregadores, e não artigos, que entendemos como apresentando conclusões apenas parciais de pesquisa. Além disso, optamos por construir nosso debate historiográfico com base naqueles textos considerados clássicos e, por isso, amplamente citados e consultados pelos demais historiadores interessados na história dominicana medieval. A historiografia dominicana alinha-se a critérios de cientificidade pautados pela busca da “verdade” e vê nas “origens” da Ordem já todo o seu destino. De certa maneira, perceberemos nas obras que passamos a analisar uma espécie de hagiografia científica, interessada em estabelecer relações entre as presumidas ideias de Domingos como fundador e guia de um séquito de seguidores e todo um desenrolar linear de acontecimentos que evidenciariam a predestinação e a santidade do cônego hispânico. Assim, foram escolhidas três obras que marcaram todos os estudos posteriores sobre o processo de formação da Ordem dos Pregadores, apresentassem estes concordância ou críticas àquelas: Saint Dominique, l'idée, 1'homme, et 1'oeuvre,2 do frade belga Pierre Mandonnet, lançada em 1938; quase vinte anos depois, em 1957, seu aluno, o frei MarieHumbert Vicaire publica sua Histoire de Saint Doninique;3 e passado quase meio século, frei Simon Tugwell faz uma breve síntese sobre o surgimento da Ordem em Saint Dominic, 4 de 1995.

A formação da Ordem dos Frades Pregadores na ótica de Pierre Mandonnet Antes de morrer, em 1236, Mandonnet deixou por concluir o livro que já havia intitulado, e do qual havia escrito boa parte, restando a seu discípulo Vicaire reunir vários estudos críticos manuscritos, inclusive o que redundou no capítulo XIX da obra, sobre a crise acadêmica do século XIII, que este acreditava ser o centro de todo o pensamento de Mandonnet. MANDONNET, Pierre St. Dominique, l'idée, 1'homme, et 1'oeuvre. Desclée de Brouwer & Cie, Bruges, Belgium, 1938. 3 VICAIRE: Histoire de Saint Doninique. Paris: Du Cerf, 2004. (edição original de 1957) 4 TUGWELL, Simon. Saint Dominic. Estrasburgo: Signe, 1995. Tanto Vicaire quanto Tugwell têm copiosa obra dispersa em dezenas de artigos publicados nos Cahiers de Fanjeaux e Archivum Fratrum Predicatorum, respectivamente. No entanto, acreditamos encontrar nas obras de síntese justamente isso, um apanhado de suas conclusões de pesquisa. Isso fica patente no caso de Tugwell, quando, em uma nota à obra acima citada ele escreve: “Tentei contar a história de São Domingos honestamente à luz das evidências. (...) seria inapropriado tornar esta narrativa maçante com repetidas qualificações tais como ‘talvez’, ‘possivelmente’ e ‘provavelmente’. Para aqueles interessados, irei publicar uma série de artigos nos quais devo apresentar as evidências e argumentos que levaram às conclusões que agora apresento.” TUGWELL, S. saint Dominic, p. I. 2

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A primeira parte da obra recebe o nome de “São Domingos e a Ordem dos Pregadores”. O “e” poderia ser trocado pelo “é”, sem qualquer perda ou equívoco no significado do texto. Aqui Mandonnet se estende longamente sobre o “caráter” de Domingos, e da Ordem fundada por ele, como uma extensão de sua própria personalidade e desejos, que resultavam da crise pela qual passava a cristandade e, em especial, a Igreja. O frade belga entende as ordens religiosas, inicialmente, a partir das semelhanças, da identidade que manifestavam entre si, e não separadamente. Mas este autor não tarda a fazer ligeiras diferenciações entre elas, pois prossegue estabelecendo um esquema histórico-evolutivo das ordens religiosas, que apresentaram dois tipos durante os séculos medievais: as ordens monásticas e as ordens mendicantes. Ambos os tipos de ordens responderam aos problemas e necessidades de seu tempo, afirma ele. E ambos seguiram o mesmo caminho. Em cada período, a primeira ordem a surgir trazia a marca da experimentação e de novas empreitadas. Estas seriam seguidas por ordens “típicas”, modelares, que abraçavam de forma mais adequada os meios pelos quais se atingiam as soluções para os problemas da época. Para ele, como fica explícito ao longo de seu estudo, a Ordem dos Pregadores foi tanto experimental – há um capítulo dedicado apenas a tais “atividades experimentais” – quanto modelar. Finalmente, surgiam outras ordens que captam o modelo daquelas que haviam conquistado estabilidade. Na perspectiva de Mandonnet, todas as demais ordens mendicantes, inclusive a dos frades menores, teriam seguido o modelo dos Pregadores. Segundo sua avaliação, Domingos estava também em consonância com a política reformadora do papado no que se refere ao estudo. Tendo o III Lateranense determinado a obrigatoriedade da educação dos clérigos e repetindo-se o mesmo no concílio seguinte, com maior detalhamento, é de se supor que tal atividade não estava sendo levada a cabo. Para o autor, Domingos solucionaria o problema. Na verdade, dois ao mesmo tempo, porque em seu “programa” de pregação, ordenado pelo concílio,5 o santo abraça também o da instrução nas ciências sagradas e se responsabiliza pela execução de duas medidas reformadoras em um grau que excederia em muito as ordens de 1215. A Ordo Praedicatorum se tornaria, assim, a Ordo Doctorum, termos que, segundo o frade belga,

O cânon 10 do IV Concílio de Latrão trata sobre a pregação. LATERANENSE IV. FOREVILLE, Raimunda. (ed). Vitória: ESET, 1972. p. 167-8. 5

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eram considerados equivalentes na tradição eclesiástica e na linguagem da época. Para ele, portanto, educação e pregação são a mesma coisa, confundem-se.6 Na perspectiva de Mandonnet, como também na de Vicaire e, até certo ponto igualmente na de Tugwell, a história da Ordem dos Pregadores respeita a lógica da santidade. Sendo o santo discernível por uma vida marcada de virtudes, e pelo fato de não se tornar santo gradualmente, ao longo da vida, mas desde o nascimento ser dotado de todas as perfeições e permanentemente habitados pela graça divina.7 É nesta perspectiva que o douto professor Mandonnet distintamente percebe seu objeto de estudo, que é também seu lugar social. Em suma, Saint Dominique é uma potente obra quanto a suas abrangentes conclusões: a Ordem dos Pregadores teria sido igualmente moldada pela santidade de Domingos, e pelas sugestões do papado, sendo o primeiro elemento indicado pela resposta ao segundo. A identidade da Ordem encontrar-se-ia no fato de haver uma equivalência entre a atividade de pregação e a atividade de ensino, ambas incorporadas a Ordem pelo seu fundador em obediência às determinações papais, e como sinal da providência divina.

A formação da Ordem dos Frades Pregadores na ótica de Marie-Humbert Vicaire Marie-Humbert Vicaire, cuja Histoire de Saint Dominique passamos a analisar, foi amigo de Febvre e Braudel, mas nitidamente discordava da concepção de História desses seus colegas. Sua biografia de Domingos foi lançada originalmente em 1957 e podemos vê-la como o coroamento de uma profícua atividade científica de mais de cinquenta anos na qual se encontram os frutos de uma tradição erudita plurissecular. A impressão causada pelo volume de 752 páginas, é que temos em mãos uma obra definitiva. O próprio título da obra de Vicaire assume não só o âmbito do interesse em que é executada a sua atividade de pesquisa, mas também a peculiar lógica “positiva” sobre a qual se fundamentam todos os seus célebres trabalhos. O mínimo que se pode afirmar sobre a documentadíssima biografia do fundador é que Vicaire, fazendo uso

Nesse sentido, por defendermos que o estudo é o principal elemento identitário da Ordem, aproximamo-nos das considerações de Mandonnet, sem que possamos concordar totalmente com seu ponto de vista, uma vez que, embora relacionadas, estas duas atividades têm, cada uma delas, características específicas para os Pregadores. 7 Cf. VAUCHEZ, Andre. “O santo” In: LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Lisboa: Presença, 1989. p. 225; BOESCH GAJANO, Sofia. Santidade. In: LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. (orgs) Dicionário Temático do Ocidente Medieval. V.II. Bauru - São Paulo: EDUSC - Imprensa Oficial do Estado, 2002. p. 449; CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982. 6

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combinatório das fontes hagiográficas, não levou em consideração as advertências metodológicas de colegas seus como Febvre e Braudel. Divisa-se, na obra de Vicaire, a interpretação do caminho providencialmente linear da vida do santo fundador, em que os obstáculos que este havia encontrado na realização de um projeto eclesiástico substancialmente concebido desde o início já adaptado ao IV Lateranense, configuram-se, hagiograficamente, como débeis momentos dialéticos de um tema edificante voltado para a exaltação do heroísmo e do apoio divino da empreitada providencial de Domingos para o destino da Igreja e da humanidade.8 Nesse sentido, o pupilo continua a obra do mestre, já que em Vicaire encontramos o mesmo pendor hagiográfico presente em Mandonnet. Vicaire caracteriza a missão de Domingos: a vita apostolica é informada por sua vocação pessoal. Ele considera o fundador um gênio, porque teria conseguido efetuar com sucesso inaudito a síntese entre duas tradições independentes “aparentemente inconciliáveis”. Essa vita apostolica era interpretada a partir da visão clerical de mundo, simétrica, mas marcadamente diferente, para Vicaire, do evangelismo de origem laica que reinava no início do século XIII, já que se orientava em direção ao estudo sagrado que culminava no pertencimento à Universidade de Paris. Assim, a originalidade de Domingos é total em relação aos outros movimentos apostólicos que precedem sua fundação, uma vez que, como Mandonnet, Vicaire acredita que, por pertencerem a uma ordem de clérigos, os pregadores assumiriam papel central na vida da Igreja. Para Vicaire, como para Mandonnet, a Ordem se gesta no seio da Igreja, uma vez que a pregação de Domingos é parte de uma política papal, inicialmente colocada no contexto de combate às heresias, em especial para a região do Midi.9 O frade suíço também percebe uma relação próxima entre pregação e estudo, embora se furte a desenvolver em que bases esta se dá.10 Ao contrário de Mandonnet, é apenas em um momento muito adiantado de sua narrativa sobre a formação da Ordem que Vicaire dedica um parágrafo inteiro à questão do estudo. Esta surge quando Vicaire, recorrendo à vida litúrgica de Domingos redigida por Humberto de Romans, faz menção aos estudos realizados pelos frades sob Alexandre de Stavensby. Como sabemos, essa passagem é muito posterior ao suposto fato, o que nos

Embora claro na obra Histoire de Saint Dominique, esse providencialismo fica ainda mais evidente na pequena obra de Vicaire L´imitations des Apôtres. Moines, chanoines et mendiants. Paris: du Cerf, 1963. 9 Idem, p. 228. 10 Idem, p. 230. 8

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garante segurança em descartar essa informação como um evento de formação da Ordem.11 Vicaire, no entanto, a entende como um indício da “importância fundamental dado pelo santo, desde o início da sua comunidade, aos estudos teológicos, fonte da pregação.”12 O estudo também seria “original, audacioso” da parte de Domingos.13 Embora não de maneira tão clara quanto vimos em Mandonnet e veremos em Tugwell, Vicaire também estabelece vínculos sólidos entre a fundação da Ordem e os desejos da Cúria Romana. Para ele, o governo de Inocêncio III se destaca pela insistência na importância da pregação. Domingos haveria dado à ação de Inocêncio através de seus legados e da legislação aprovada por ele – em especial aquela saída do IV Lateranense – um discernimento mais claro, e define sua ordem e o lugar que esta tomará ao lado dos bispos, “como colaborador e vigário desta missão pastoral.”14 Vicaire deixa no ar a resposta a uma pergunta que ele mesmo faz: é possível remontar ao papa a ideia de uma equipe de pregadores mendicantes? Indagando-se, sem no entanto fechar a questão, Vicaire sugere um equilíbrio entre a personalidade inovadora do santo e sua adequação aos ditames papais. Como vimos, Mandonnet não dá margens a dúvidas quando coloca Domingos como um “realizador” desse ditames, da mesma forma que fará Tugwell. A impressão geral da obra de Vicaire, além do autor ler as fontes a partir de uma perspectiva religiosa, é a de que o traço primordial da Ordem, demonstrado pela própria figura de Domingos, é a pregação. O estudo, embora atividade importante lembrada aqui e ali, aparece de maneira bastante secundarizada, ainda que já pensada desde o início pelo fundador. Outro traço de identidade recorrentemente citado por Vicaire é a relação estreita de Domingos com o papado, e o fato de Domingos fundar uma ordem de clérigos, o que a diferencia em especial da dos frades menores. Toda a importância que, em Mandonnet, recai sobre os estudos, em Vicaire é dada à pregação.

A formação da Ordem dos Frades Pregadores na ótica de Simon Tugwell Nesse sentido, Simon Tugwell seguirá os passos de Vicaire. Os estudos do frade inglês baseiam-se em uma nova e sistemática revisitação da imponente tradição manuscrita dominicana, redesenhando substancialmente os velhos conhecimentos sobre

Retornaremos a esse assunto em seguida. VICAIRE, M-H. Histoire … Op. cit., p. 358. 13 Idem, p. 359. 14 Idem, p. 363. 11 12

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a história redacional das legendas e do ofício litúrgico de Domingos no século XIII.15 Os trabalhos de Tugwell demonstram maior precisão no plano filológico sem, no entanto, subverter ou mudar de maneira decisiva a leitura “positiva” das origens dominicanas subjacente a pesquisa, menos acurada, de Vicaire, e a toda a tradição erudita da Ordem. De qualquer forma, é com certo alívio que empreendemos a leitura do Saint Dominic, de Tugwell. Para o estudioso, a santidade de Domingos é, diferentemente da de Francisco, caracterizada por sua adaptação às circunstâncias e às necessidades de seu tempo. Nesse sentido, o Domingos de Tugwell é um santo profundamente inserido no devir histórico. Se ele se tornou o pai de um novo tipo de Ordem, não foi porque buscou deliberadamente fazer algo de novo no seio da Igreja, mas porque foi levado pela providência divina. E aqui está ela mais uma vez, perpassando marcadamente a visão histórica dos estudiosos dominicanos.16 Assim, ao mesmo tempo em que Tugwell se aproxima de Mandonnet e Vicaire, abre uma nova perspectiva, assemelhando-se sua “providência divina” com o devir histórico. Ele continua afirmando que, para podermos encontrar Domingos, é necessário buscá-lo sempre em companhia de outros. Tugwell é mais direto em sua avaliação do papel de Domingos na formação da Ordem: suas escolhas foram ditadas por outros, leia-se, pela Cúria Romana. Ao contrário do que faz Mandonnet, colocando o surgimento da Ordem em meio a um clero “estéril e inerte”, Tugwell relativiza esse contexto. É nesta relativização que se encontra o frescor da obra do inglês. Para eles, as reformas que se iniciaram no século XI haviam levantado grandes expectativas em relação à santidade do clero, tendo estas se concentrado, no século XII, na imagem evangélica do apóstolo pobre e itinerante. Havia pouca preocupação com a doutrina católica, concorrendo, isso, para que os fiéis se sentissem atraídos por pregadores equivocados, que se enquadravam melhor do que os católicos nas expectativas evangélicas. Esse contexto abriu as portas para os hereges, que não seduziam adeptos pela sua doutrina e sim pelo seu exemplo. De acordo com Tugwell, como a doutrina não era o ponto central, eram fatores aleatórios que faziam com que alguém escolhesse ser católico ou cátaro, por exemplo, nas regiões próximas a Toulouse. TUGWELL, S. The nine ways of prayer of saint Dominic: a textual study and critical edition. Medieval Studies, XLVII, 1985, mp. 1-124. 16 Nossa surpresa em relação ao discurso religioso presente na produção historiográfica dominicana se justifica, sobretudo, pelo fato de que a eles recorrem copiosamente toda a historiografia acadêmica sobre a Ordem, sem que se faça qualquer crítica a esse respeito. A exceção que confirma a regra está em Canetti, que dedica especialmente a Vicaire uma crítica dura. CANETTI, Luigi. Intorno all´idolo delle origini. La storia dei primi fratri predicatori. In: MERLO, G. (ed.) I fratri predicatori nel duecento. Verono, 1996. p. 19-20. 15

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Este grupo de hereges surgiu ao mesmo tempo em que os cistercienses, o que contribuía, aos seus olhos, com o caráter aleatório da escolha religiosa, embora estes dois grupos apresentassem formas alternativas de responder às mesmas necessidades espirituais. Para o estudioso dominicano, abraçar a vida apostólica naquele momento era um meio de se atingir um objetivo. É assim que ele defende que a adoção da mendicância teria sido ditada pelas circunstâncias. Mais tarde, pondera Tugwell, a Ordem teria que se questionar se, de fato, a pobreza mendicante facilitava o cumprimento de sua missão. Outro tema que é absolutamente ignorado por Mandonnet e Vicaire, é atacado de frente e sem subterfúgios por Tugwell. É notório que, ao longo do século XIII, a Ordem teve que rever suas bases mendicantes, uma vez que, até para que pudessem sustentar as escolas, precisavam de propriedades.17 Tugwell ainda afirma que nem mesmo na própria Ordem todos os companheiros de Domingos compartilhariam da sua devoção à pobreza evangélica. Ou seja, o autor admite discordância dentro da Ordem, não vendo cada gesto do fundador como um decreto perpétuo sobre como esta deveria se organizar. Tugwell acredita que os homens que se uniram à Domingos, já naquele momento, buscaram se instruir em teologia com o mestre Alexandre de Stavensby, que lecionava no capítulo toulousano de Saint Etienne. Sabemos, no entanto, que a fonte de informação para esse fato é bastante posterior àquele momento, remontando, na verdade, à Vita sancti Dominici,18 escrita por Humberto de Romans por volta de 1255, em pleno desenvolvimento da polêmica com os mestres seculares de Paris e, portanto, referindo-se à legitimidade do estudo empreendido pelos pregadores nas universidades. Neste ponto, Tugwell perpetua a visão de Vicaire, que defende “a importância fundamental atribuída pelo santo, desde a origem de sua comunidade, aos estudos teológicos como fonte da pregação.”19 O retrato que pinta de Domingos mostra um homem um tanto “fisiológico”, que se adapta prontamente às necessidades de seu tempo, ainda que, conforme sucessivamente deixa claro o autor, não em proveito próprio, como Francisco, mas como marca da ação providencial. No capítulo dedicado à Paris, Tugwell afirma que ali eles eram tomados como mais um grupo de cônegos regulares e não como pregadores. Não tinham ainda, portanto, uma

ALCE, Venturino. I Domenicani nell´Emilia Romagna dal 1218 a oggi. Bologna: ESD, 1981. p. 8. HUMBERTI DE ROMANIS. Legenda Sancti Dominici. In: WALZ, A. (ed.) Monumenta Ordinis Predicatorum Historica. 1935, p. 400-401. 19 VICAIRE, M- H. Histoire de Saint Dominique... Op. cit, p. 333. 17 18

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identidade marcada. Em relação aos estudos, o historiador dominicano silencia. Sobre Bolonha, ele se refere apenas ao aumento da comunidade e a diversidade regional de seus membros, evocando novamente o caráter “mundial” que, em seu entendimento, caracteriza a Ordem.

Conclusão Esta discussão bibliográfica a respeito da formação da Ordem nos Pregadores nos leva a algumas conclusões. Não há desarmonia entre os historiadores dominicanos em ver este processo inserido nos desdobramentos da vida de Domingos, ponto com o qual discordamos porque acreditamos ser este processo gradual, e não limitado ao tempo de vida do fundador. Eles também concordam em entender a fundação da Ordem como produto da providência divina, enquanto nós somos levados a enxergá-la como resultado de processos históricos complexos. Mas há também pontos de discordância: enquanto Mandonnet alega que a Ordem dos Pregadores é uma Ordem de doutores, Vicaire e Tugwell elencam a pregação como seu mais evidente aspecto identitário. No nosso entender, isso se dá porque esses autores se detêm, sobremaneira, em uma leitura acrítica das fontes, bem como não levam em consideração o fato de que várias outras ordens, naquele momento, eram também caracterizadas pela pregação, como ocorria em parte com os cistercienses, os valdenses e os próprios menores. Se partirmos de uma perspectiva mais geral a respeito das possíveis interpretações dessa historiografia eclesiástica contemporânea, chegaremos à conclusões que, embora nos pareçam óbvias, acreditamos meritórias de destaque. Por um lado, por mais doutos e fundamentados em larga consulta aos documentos de época que tenham sido o produto de pesquisa de Mandonnet, Vicaire e Tugwell, todos eles adotam uma postura essencialmente religiosa, acrítica em graus diversos, da historicidade da Ordem dos Frades Pregadores do século XIII. Por outro lado, de modo algum podemos nos furtar a destacar a riquíssima contribuição que estes estudiosos deram – e continuam dando – às pesquisas acerca desta Ordem que continua sendo atenção de poucas reflexões por parte dos historiadores de formação laica.

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