A historiografia religiosa e a filosofia – uma proposta de diálogo

July 10, 2017 | Autor: Jefferson Ramalho | Categoria: Historia, Filosofía, Historiografía
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A historiografia religiosa e a filosofia – uma proposta de diálogo Jefferson Ramalho1

Introdução A temática de pesquisa com a qual temos trabalhado está delimitada entre a historiografia clássica da religião cristã que tem seu precursor em Eusébio de Cesaréia (c. 260 – c. 339) e a possibilidade de uma inovação desta historiografia, através do rompimento com o estilo apologético de Eusébio e a adesão de um método historiográfico interpretativo, ou seja, com maior autonomia. O estilo de Eusébio é marcado pelo discurso triunfalista e defensivo de uma identidade religiosa em transição naquele período. O fim da perseguição religiosa do império romano e o começo de uma aliança deste império com a cristandade são os fatores históricos que caracterizam todo o triunfo que permeia a obra de Eusébio. Para que este rompimento se estabelecesse, o imprescindível seria que o historiador assumisse uma postura autônoma, permitindo sua ação de intérprete, de hermeneuta, até mesmo de filósofo, e não simplesmente de um narrador, um mero reprodutor do passado. O historiador Henri-Irénée Marrou defende esta inovação no trabalho historiográfico ao responder à pergunta: o que é a história? Marrou responde afirmando que “a história é o conhecimento do passado humano. [...] Dizemos conhecimento e não, como outros, ‘narração do passado humano’, ou ainda ‘obra literária que visa a revivêlo’.” (Marrou, 1978, p. 28) Conhecimento do passado humano como definição de história não se trata de uma perspectiva rankeana, onde a história é vista, como uma reprodução do passado tal como aconteceu. Antes, se refere ao conhecimento que interpreta o passado, tanto a partir de fontes consideradas oficiais como de fontes materiais, arqueológicas, orais, que também têm o seu valor enquanto recurso histórico. O historiador intérprete se dedica à avaliação da historiografia já existente, pois o modo como historiadores positivistas reproduziram o passado, cabe ao historiador interprete avaliar. Para isso, se faz necessário explorar o debate que Marrou coloca na introdução à sua obra, entre a história e a filosofia, entre o historiador e o filósofo. A estrutura deste texto, portanto, está dividida no sentido de demonstrar as relações entre alguns pontos da filosofia conforme o que foi trabalhado no primeiro semestre de 1

Mestrando do Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião da PUC-SP. Graduado em Teologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e licenciado em História pelo Centro Universitário Assunção.

2 2010 na disciplina de Filosofia da Religião, ministrada pelo professor Luiz Felipe Pondé, no Programa de Estudos Pós Graduados em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e o projeto de pesquisa que estamos desenvolvendo no mesmo Programa, cuja preocupação tem como objetos temáticos a obra de Eusébio de Cesaréia, seu estilo historiográfico e a necessidade de uma inovação em história das religiões, neste caso, especificamente, da religião cristã. Como experimento de aplicação e exemplificação desta autonomia que o historiador passa a assumir, entendemos que entre tantas, uma situação caracteriza bem a transição vivida pela cristandade no início do quarto século de nossa era, quando o império romano resolveu favorecê-la. Observaremos as relações de poder entre o imperador Constantino e os superiores eclesiásticos daquele momento, sendo Eusébio um deles. Neste sentido, será possível compreender um pouco desta proposta de relação entre o trabalho do filósofo e a tarefa do historiador, e este, não mais como um simples contador de histórias, mas como um intérprete do passado e do que foi dito sobre ele.

1. O historiador como filósofo: intérprete e não apenas um narrador do passado Em uma introdução aos estudos históricos deve conter uma apresentação de elementos que farão parte do ofício do historiador. Quem pretende trabalhar com o passado, deverá ter contato com as principais ferramentas de seu trabalho. Neste caso, a característica que pretendemos destacar é aquela que evidencia o lado autônomo do historiador, através do qual ele consiga elaborar uma historiografia aprofundada. Para trabalhar com o passado, não é suficiente conhecer datas, nomes e cronologias. O historiador, de fato, não é aquele que memoriza estes dados, mas é aquele que, estando em contato com eles, consegue interpretá-los e avaliar o modo como foram reproduzidos pela tradicional historiografia. Assim, entendemos em primeira instância que o compromisso do historiador não se reduz à afirmação de uma verdade histórica absoluta, mas compreende em uma avaliação do que sempre foi reproduzido como verdade. Portanto, em uma introdução aos estudos históricos, cabe a pergunta: “que sentido terá para tornar-se um historiador?” (Marrou, 1978, p. 9). O historiador francês Lucien Febvre (1878 – 1956), fundador da Escola dos Annales2 ao lado do medievalista Marc Bloch (1886 – 1944), teria afirmado em sua aula 2

A Escola dos Annales foi oficialmente iniciada em 1929, a partir da publicação da revista acadêmica de História intitulada Annales d’Histoire Economique et Sociale. Os dois historiadores que lideraram as primeiras edições foram o medievalista Marc Bloch e o modernista Lucien Febvre, então professores da

3 magna no Collège de France, em 1933, que por muitas vezes ouvira sem contestar “que os historiadores não têm grandes necessidades filosóficas” (Marrou, 1978, p. 10). Esta preocupação de Febvre se ampliou de tal maneira que culminou nos avanços da historiografia propostos pela geração de historiadores da qual ele fazia parte. Claro, esta preocupação não era apenas de Febvre, mas de um grupo considerável de historiadores que não viam mais suficiência na teoria histórica de matriz positivista. Dentre os principais problemas observados por Febvre e seus contemporâneos, estava o comodismo do historiador que seguia o método positivista de escrita da história, cuja função se resumia em, apenas, narrar o passado sem apontar quaisquer problemas. Ao expor o programa historiográfico da Escola dos Annales e os seus rompimentos com o estilo positivista de escrever a história, José Carlos Reis afirma que A estrutura narrativa da história tradicional sintetizava todos seus pressupostos filosóficos: o progressismo linear e irreversível, que define o epílogo que dá sentido à narração; o seu caráter “acontecimental”, que, “recolhidos” dos documentos criticados, ficariam sem sentido se não fossem incluídos em uma ordem narrativa; a história política, diplomática e militar, que é constituída por iniciativas, eventos, decisões, que constituem uma trama que favorece a narração; a disposição “objetivista” do historiador, que recolhe os fatos dos documentos e, imparcialmente, os põe em ordem sucessiva, que é dada objetivamente pela cronologia, através da narração. (Reis, 2000, p. 74).

Portanto, para a narrativa histórica de caráter tradicional, o imprescindível consistia em reproduzir os fatos políticos mais importantes a partir de documentação oficial, respeitando linearmente uma ordem cronológica, fazendo jus à máxima de Leopold von Ranke, principal nome da historiografia positivista: was geschehen ist – “o fato tal como efetivamente aconteceu.”3 (Le Goff, 1982, 14). É importante salientar a observação que Marrou fez com relação a esta perspectiva filosófica crítica da história, a qual não devemos confundir com a filosofia da história de Hegel, pois trata-se de uma filosofia crítica da história, ou seja, “uma reflexão sobre a história, dedicada ao exame dos problemas de ordem lógica e gnosiológica, levantados pelas formas de proceder do espírito do historiador” (Marrou, 1978, p. 11). Universidade de Estrasburgo. Uma segunda geração desta escola historiográfica foi liderada por Fernand Braudel. A partir da década de 70, intelectuais como Jacques Le Goff e Michel Foucault passavam a liderar a terceira geração. Há quem afirme que desde 1988 uma nova geração desta escola tenha sido iniciada, tendo historiadores como Peter Burke compondo esta nova fase. Entre as propostas de inovação historiográfica dos Annales estão a problematização da história, o novo conceito de fonte histórica, a longa duração, o conceito de mentalidades e a interdisciplinaridade que propõe o diálogo da história com as ciências sociais. 3 É o nome de Leopold von Ranke que origina a terminologia “rankeana”, mencionada já na introdução.

4 Ao apontar os problemas do historicismo com o qual o historiador deverá romper ao assumir uma postura autônoma de intérprete, de filósofo, Marrou não deixa de considerar os perigos deixados como herança por esta crise da História. Para isso ele menciona que a essência deste dogmatismo histórico já estava criticado na totalidade do romance Guerra e Paz, de Tolstoi (1869). Assim, os historiadores que, embora, não possuíssem a autonomia de um filósofo ou de um hermeneuta, por outro lado eram aqueles que narravam o passado tal como de fato aconteceu e, a partir destas narrativas, estruturas políticas, instituições religiosas, dogmas teológicos e tradições oficiais diversas eram cristalizados e recebidos como verdades absolutas. Foi isso, por exemplo, que aconteceu com as “verdades históricas” narradas por Eusébio, cujas intenções, sobretudo, eram teológicas, apologéticas e, até mesmo, institucionais, já que a cristandade estava se aliando ao império romano. “Desta vez o historiador sucedia ao filósofo como guia e conselheiro. Senhor dos segredos do passado, era ele que, como um genealogista, trazia à humanidade as provas da sua nobreza, e retraçava o caminho triunfal do seu Devir.” (Marrou, 1978, p. 12). Neste caso, Devir tem certa relação com o positivismo de Augusto Comte, a idéia de progresso, mas não parece estar relacionado ao Vir a Ser de Heráclito. Isto porque, na prática, o que a historiografia positivista mais defenderá é um reconhecimento da história enquanto ciência, porém, com a defesa de verdades fixas, absolutas, ou seja, como já foi dito: o passado tal como aconteceu. Marrou insiste em sua crítica à filosofia da história hegeliana, apontando o seu dogmatismo ingênuo e a sua pretensa independência do problema do conhecimento, que no século XIX foi ousadamente criticada por Kierkegaard. Maior problema, na opinião de Marrou, tem a ver com um retorno a esta tendência em plena metade do século XX.4 “Hegel assistiu ao primeiro florescimento de uma história verdadeiramente científica: ele é contemporâneo de Niebuhr e de Ranke, a quem veneramos como os iniciadores e os primeiros mestres da forma atual da nossa ciência.” (Marrou, 1978, p. 12). Hegel faz críticas consistentes e, ao mesmo tempo, sarcásticas à obra de Niebuhr5. Conhece tal obra, e por se tratar de um filósofo de altíssima competência, Hegel não hesitou em perceber os seus problemas. Como afirma Marrou, Hegel surge em face de Niebuhr, “como o filósofo apressado em concluir e em dogmatizar, incapaz de suportar as longas esperas que exige [...] a subalternação das ciências. Ficamos ligeiramente 4 5

O texto original de Henri-Irénée Marrou é de 1954. Referimo-nos aqui à obra História de Roma, de Niebuhr.

5 desconcertados pela facilidade com que elimina o problema [...], e se lança ingenuamente à construção de uma história filosófica.” (Marrou, 1978, p. 16). Mas é em Hegel que “o historiador filosófico usa os resultados dos historiadores originais e reflexivos para interpretar a história como o desenvolvimento racional do espírito no tempo, algo que escapa a ambos os agentes históricos e a outros historiadores.” (Inwood, 1997, p. 162). Para alguns “é possível fazer uma filosofia da história [...] porque, como toda realidade, também a história é racional [...]. A filosofia da história tem a tarefa de captar essa racionalidade, de captar o significado do que acontece na história.” (Rovighi, 2002, p. 747). Em Hegel, esta filosofia da história, também chamada de “história filosófica, tem a tarefa de captar o significado dos eventos históricos; evidentemente não dos eventos isolados, mas das grandes épocas históricas.” (Rovighi, 2002, p. 748). Neste sentido, Hegel não parece se diferenciar de Ranke, pois este na condição de principal representante do positivismo historiográfico que será atacado pela Escola dos Annales de Frebvre e Bloch, valorizava uma história científica que considerasse as grandes épocas, personagens e acontecimentos enquanto elementos protagonistas de uma história verdadeira e oficial. A história filosófica hegeliana não é aquela historiografia reflexiva, elaborada com o intelecto, também não é obrigatoriamente crítica, erudita e filológica, mas se refere à historiografia que busca compreender os acontecimentos captando a sua racionalidade. No século XIX foi que se ressaltaram as diferenças entre a história filosófica hegeliana e a chamada “verdadeira” historiografia, esta de caráter nitidamente factual, preocupada em reproduzir fielmente o passado, sem distorções e subjetividades, enquanto que aquela, para o próprio Hegel, seria até capaz de analisar a segunda. Para pensar nas relações entre esta filosofia da história hegeliana com outras impressões historiográficas, também filosóficas, podemos levar em consideração o que buscaram Marx e Nietzsche, por exemplo, cada qual, à sua própria maneira, recomendarem a conversão de “percepções dos diversos tipos de história reflexiva em uma base para uma história genuinamente filosófica, uma história que não somente sabe alguma coisa acerca do processo histórico, mas sabe como sabe disso [...].” (White, 2008, p. 287). Porém, assim como Hegel, tanto Marx como Nietzsche não entendiam o conhecimento histórico como metodologia, mas enquanto problema de consciência, insistindo na necessidade de compreensão deste conhecimento histórico direcionado à vida presente, social e culturalmente, e não como mera contemplação do passado.

6 No campo da historiografia e na identificação do problema do “problema” da história “o propósito de Marx era traduzir ironia em tragédia e, em última análise, tragédia em comédia. Já Nietzsche encarava tragédia e comédia ‘ironicamente’.” (White, 2008, p. 288). O otimismo de Marx e o otimismo de Nietzsche diferenciam-se, em muito, do otimismo teórico, acadêmico e historicista de Ranke. Parece haver, portanto, uma abertura por parte destes filósofos para o campo da historiografia. A história filosófica em Nietzsche, contudo, não faz dele um amante do hegelianismo. Ao contrário, foi um dos principais críticos da tendência historiográfica hegeliana. É ele quem escreve: “esta bela história universal é, para falar como Heráclito, ‘um monte de imundícies’! É o forte que se impõe, esta é a lei geral: se pelo menos não fosse ele tão freqüentemente o bruto e o mau!” (Nietzsche, 2005, p. 231). O fato é que esta “tirania hegeliana” (Marrou, 1978, p. 16) há muito já está superada pelos avanços da historiografia. Mesmo com a tentativa de uma retomada desta historiografia, o método de Hegel já se faz ultrapassado. Semelhantemente, talvez ainda mais, a historiografia preocupada com a exatidão dos fatos passados, característica evidente no tom científico e acadêmico oficializado em Ranke, também se encontra em estado de extinção. Não se faz mais historiografia de modo sério recorrendo ao estilo rankeano, sobretudo, depois dos avanços da escrita da história ocorridos no século XX. Outro filósofo cujas idéias influenciaram no processo de desenvolvimento da historiografia moderna foi o alemão Wilhelm Dilthey, o qual ao invés de protestar contra a história, “manifesta admiração pela grandeza de suas conquistas [...], grandeza que lhe parece tão incontestável quanto a validade da física de Newton o podia ser para Kant; daí o seu projeto: elaborar a teoria dessa prática tão fecunda.” (Marrou, 1978, p. 17). Entre os historiadores admirados por Dilthey está Leopold von Ranke, demonstrando que apesar dos problemas da historiografia de matriz positivista, preocupada com a afirmação de fatos legítimos, o filósofo não desconsidera os seus valores. Foi a historiografia de Ranke que elevou a História à condição de ciência. Por muitos, Dilthey é considerado um dos mais importantes pensadores da segunda metade do século XIX. “Sua influência foi, na verdade, extremamente profunda; ela explica, em especial, a atenção concedida aos problemas da história, e a própria forma de colocar esses problemas, que notamos nos filósofos do ‘retorno a Kant’” (Marrou, 1978, p. 17 e 18), como Windelband, Rickert e Simmel. Marrou ainda comenta que “no próprio Dilthey, tão cônscio da sua oposição a Hegel, a referência a Kant é evidente: ele não cessou de apresentar o seu empreendimento como a elaboração de uma Crítica da

7 Razão Histórica, [...] um equivalente [...] da Crítica da Razão Pura. (Marrou, 1978, p. 18). Trata-se, portanto, de um prolongamento da obra mais conhecida de Kant. Com isso, conclui-se que Dilthey e seu movimento intelectual tenha superado “em todos os pontos a escola neokantiana stricto sensu.” (Marrou, 1978, p. 18). Não pode ser omitida a contribuição procedente da Fenomenologia que, conquanto “o contexto de sua problemática fosse completamente distinto, homens como Husserl, Jaspers e, sobretudo, Heidegger também reencontraram o problema da elaboração do conhecimento histórico6.” (Marrou, 1978, p. 18). Contudo, apesar de toda a originalidade de método e de “orientação desses filósofos, o seu pensamento, nesse ponto, não deixou de ser influenciado pela atmosfera irradiada de Dilthey, a cuja influência Heidegger, por exemplo, fez questão de prestar homenagem em Sein und Zeit.” (Marrou, 1978, p. 19). A renovação historiográfica, de maneira efetiva, se dá a partir do trabalho do filósofo Henri Berr. “O projeto da nouvelle histoire, no sentido mais amplo, veio, portanto, do exterior da história, veio da sociologia durkeimiana em grande parte, de um lado, e, de outro, da Revue de Synthèse Historique e de seu fundador, Henri Berr.” (Reis, 2000, p. 56). Não é exagero concordar com a hipótese de que foi a partir desta revista de Berr que os Annales tiveram o seu início na prática. O objetivo dessa revista organizada por Berr “era promover uma discussão teórica sobre a história-ciência e deveria contribuir à elaboração de uma teoria da história, afastada da filosofia da história e orientada para a observação empírica.” (Reis, 2000, p. 57). Segundo José Carlos Reis, “a história [...] deverá formular hipóteses, escolher o objeto, realizar a análise e a síntese. Deverá deixar de ser só descritiva para se tornar também explicativa. A ‘síntese’ deveria envolver uma equipe de cientistas sociais.” (Reis, 2000, p. 57). Foi, portanto, com a revista de Berr que o diálogo entre historiadores e cientistas sociais passou a se efetivar, diálogo que é uma das principais características dos Annales. Febvre colaborou intensamente com Berr tanto na formulação da Revue de Synthèse Historique como no Centre International de Synthèse. A posição defendida por Berr, naquele momento, não só era inovadora como problemática, pois sua originalidade consistia em exatamente anular a separação entre as ciências sociais, reaproximando-as 6

Paul Ricouer, Husserl et le Sens de l’histoire (conforme as obras, em grande parte inéditas, de 19351939), Revue de métaphysique et de morale, t. LIV, 1949, pp. 281-316 (frisa bem tudo aquilo que, na obra anterior de Husserl, parecia excluir “uma inflexão da fenomenologia no sentido de uma filosofia da história”); K. Jaspers, Vom Ursprung und Ziel der Geschichte, 1949, trad. Francesa, 1954. cf. nota 20 In. Marrou, 1978, p. 18 e 19.

8 da filosofia. Este ponto da reaproximação à filosofia é o que o afasta da revista que deu origem à Escola dos Annales, a Annales d’Histoire Economique et Sociale. De acordo com a informação passada por Reis, a intenção de Berr assemelha-se à dos intelectuais durkheimianos, ou seja, a de considerar “a história uma ciência social, fazendo-a passar à generalização, a partir da erudição.” (Reis, 2000, p. 57 e 58) Como Berr não era um filósofo positivista, mas um defensor da “especificidade do conhecimento histórico, mais ou menos na linha dos historicistas alemães” (Reis, 2000, p. 58) foi considerado intolerável para os intelectuais dos Annales, fosse pelo seu lado germânico ou em virtude do discurso filosófico que sustentava. Fernand Braudel afirmara “que Berr, filósofo por temperamento e vocação, ‘traiu-se’, como intelectual, ao atirar-se de corpo e alma na filosofia da história.” (Braudel, 1972, p. 455). O fundamento histórico de Berr encontra-se entre as temáticas da liberdade do indivíduo e dos limites da razão. Portanto, é na condição de filósofo que Berr acompanha a discussão do início do século XX a respeito da história enquanto ciência social, buscando esmiuçar este significado para a história. Embora tenha feito as críticas citadas acima ao Berr filósofo, o historiador Braudel não deixou de considerá-lo um antecedente dos Annales ao afirmar que é para ele que devemos olhar quando queremos saber quando a Escola dos Annales já se encontrava em sua fase embrionária. (cf. Braudel, 1972, p. 455).7 Marrou ainda faz referência a importantes influências que a historiografia recebeu da filosofia para assumir seu próprio desenvolvimento. É importante saber também que “por mais ampla que seja, a zona de influência de Dilthey não abrange tudo: desde que, ao sair dessa autarquia nacional onde por tanto tempo permanecemos confinados, começamos a nos conhecer uns aos outros e a pensar de maneira européia.” (Marrou, 1978, p. 20). Há, aqui, a perspectiva de que a Grã-Bretanha, por exemplo, tenha revelado uma linha de pensadores ligados a essa problemática, e que tem sua origem no empirismo do escocês David Hume. Esta linhagem foi bem representada por volta de 7

cf. Reis, 2000, p. 60: “Para Braudel, Berr não contribuiu para a nouvelle histoire como teórico, mas como interlocutor, promotor e organizador de reuniões, de encontros e de semanas de discussão. Foi a partir da Revue de Synthèse, entretanto, que surgiu a idéia de uma revista mais combativa, menos filosófica, baseada em novas pesquisas concretas. Ele afirma que foi este desejo que levou ao nascimento dos Annales... e que trouxe a ruptura com Berr e sua revista. Segundo Braudel, L. Febvre teria rompido com o seu ‘pai intelectual’. Braudel, finalmente, estabelece a distância entre a Revue de Synthèse Historique e a Annales d’Histoire Economique et Sociale: ‘não há nada de comum entre a RSH e a AHES. A Syntese abriu-se muito à discussão teórica, tinha muitas idéias que passavam como fantasmas ou nuvens. Com Annales, está-se firme no chão. Em suas páginas, os homens do passado e do presente aparecem com seus problemas concretos vivos... A casa do filho tem a alegria da vida, da compreensão, ataca e discute. Annales tornou-se a casa dos historiadores novos... (Braudel, 1972, p. 467).”

9 1830 até 1850 pelos chamados anglicanos liberais como Thomas Arnold, Richard Whately e F. H. Bradley, este mais tardio, que iniciara sua carreira de filósofo com a autoria do ensaio The presuppositions of critical history (1874). Bradley tem entre seus principais sucessores o britânico Robin George Collingwood, falecido em 1943, mais conhecido por sua obra The idea of history. Collingwood que, além de filósofo da história, era historiador e arqueólogo, não foi apenas influenciado por Bradley, Hegel e Kant, mas também pelo italiano Benedetto Croce, historiador e filósofo por vocação, que “dedicou aos problemas teóricos da história, desde a sua dissertação inicial, l’Histoire romenée au concept general de l’art (1893), até a obra de sua velhice, La Storia come pensiero e come azione (1938).” (Marrou, 1978, p. 20). Croce, entre tantas obras e ensaios de teoria da história, escreveu também Materialismo storico ed economia marxistica (1900), Teoria e storia della storiografia (1917) e Filosofia e storiografia (1949). Após interessar-se inicialmente por um debate crítico do marxismo, Croce “concentrou-se em torno da noção de historicismo, tentando aprofundar de modo crítico a doutrina inaugurada por Hegel, segundo a qual a realidade é redutível à história” (Nicola, 2005, p. 449), pois nesta visão hegeliana tudo se afirma, se nega e se supera. Uma problemática importante na reflexão de Croce é aquela que questiona se há distinção entre história e filosofia. Para Marrou “a personalidade desconcertante de Croce pareceu muitas vezes resumir, no entender dos estrangeiros, toda a atividade da especulação italiana.” (Marrou, 1978, p. 20). Se há separação entre filosofia e história “nenhum juízo e nenhum objeto de conhecimento se podem colocar fora da história, porque sempre serão eventos postos no tempo e inseridos em um processo em curso. [...] A filosofia, portanto, identifica-se com a história.” (Nicola, 2005, p. 450). Além disso, “Qualquer problema filosófico só pode ser entendido à luz dos eventos que lhe deram origem e todo conhecimento é condicionado pelo tempo. Mas também o homem, tanto a humanidade quanto o indivíduo, é redutível à história.” (Nicola, 2005, p. 450). Em comparação à filosofia da história de Hegel, para muitos, Croce é considerado a melhor “expressão da influência da filosofia hegeliana na Itália. [...] Contemporâneo da construção de uma Itália unificada, suas reflexões foram suficientemente densas para ultrapassar os limites do nacionalismo.” (Silva, 2001, p. 61). Com isso, Croce pertence àquele grupo de intelectuais “sem os quais torna-se mais difícil a compreensão do século XIX europeu.” (Silva, 2001, p. 61). Em crítica a Hegel, Croce escreve um ensaio no qual ataca às suas filosofias da história e da natureza, sem deixar de valorizar a

10 síntese dos opostos, ou seja, a conhecida dialética, pois para Croce nem os contrários são uma ilusão, nem a unidade é uma ilusão. “Os contrários se opõem entre si, mas não se opõem à unidade, pois a unidade verdadeira e concreta nada mais é que a síntese dos contrários.” (Bréhier, 1994, p. 921). Para Croce, tanto a filosofia da história como o determinismo histórico são “formas de transcendência histórica e, por isso mesmo, considera-os fora do campo da história propriamente dita.” (Silva, 2001, p. 63). Contudo, ainda que de acordo com o “princípio fundamental do historicismo, Croce diverge de Hegel no que se refere ao âmbito de aplicação do processo dialético.” (Nicola, 2005, p. 452). Enquanto que para Hegel a realidade, ainda que multiforme, pudesse por meio de um processo dialético reunir inteligência e matéria, espírito e natureza, para Croce é necessário romper com este paradigma totalizante, pois há quatro setores diferentes que são a filosofia, a ética, a economia e a arte, os quais precisam ser considerados de maneira distinta. Segundo Croce, apenas “no interior de cada um desses blocos valem as oposições dialéticas hegelianas (belo/feio, verdadeiro/falso, útil/inútil, bem/mal), mas no exterior, entre os diversos momentos da espiritualidade, existe apenas distinção”. (Nicola, 2005, p. 452). Portanto, em Croce, não há desenvolvimento em sentido linear conforme concebia Hegel, mas a vida do espírito se processa através da circularidade entre a filosofia, a ética, a economia e a arte. Embora o estudo de história das religiões fosse objeto da repulsa de Croce, não se pode negar sua influência na formação da escola italiana de Angelo Brelich, Ernesto De Martino8 e Vittorio Lanternari. Após esta breve viagem que fizemos, destacando encontros e desencontros entre a filosofia e a história, e neste caso específico, a história da religiões, chegamos a algumas conclusões que, a princípio, não passam de perguntas que pretendem ser hipóteses: a) é possível pensar numa historiografia da religião cristã que seja problematizada e que utilize os avanços teóricos de uma historiografia inovadora, rompendo assim com um estilo triunfalista, apologético, positivista conforme sempre foi marcada a escrita da 8

“Aluno de Raffaele Pettazzoni e assíduo freqüentador da casa de Benedetto Croce, Ernesto De Martino (1908-1965) entra no cenário dos estudos histórico-religiosos italianos com uma personalidade destacada, aberta às sugestões da psicanálise, do existencialismo mittel-europeu, do marxismo, ocupando-se de filões (como as tradições religiosas do Sul) que, de um lado, jamais foram objeto de pesquisa por parte dos próprios estudiosos sulistas (G. Dorso, G. Fortunato), e, do outro, previam pesquisas de campo segundo metodologias desenvolvidas somente pela antropologia moderna e postas em prática por B. Malinowski. [...] Num breve escrito juvenil de 1933 – Il concetto di religione – a influência croceana parece bastante forte: a idéia da religião como philosophia inferior e da dissolução conseqüente da história das religiões na história da filosofia baseia-se na doutrina do mestre.” (Filoramo; Prandi, 1999, p. 78).

11 história do cristianismo? b) trabalhar neste sentido da inovação historiográfica é o mesmo que assumir uma postura autônoma, de intérprete e não apenas de narrador dos fatos conforme efetivamente ocorreram? c) assumindo tal autonomia, estaria o historiador se apropriando corretamente de uma característica que sempre pertencera ao filósofo, ou seja, pode ser o historiador também um filósofo a partir do momento que se apropria de uma hermenêutica filosófica como ferramenta para o seu trabalho? Neste sentido, estamos desenvolvendo uma crítica ao estilo historiográfico de Eusébio de Cesaréia, que apesar do tempo, permanece influenciando grande parte dos historiadores da religião cristã. O objetivo deste estilo não é outro a não ser o apologético, e é a respeito deste problema que iremos tratar no próximo tópico.

2. O estilo historiográfico de Eusébio, seus problemas e sua permanência É possível pensar efetivamente em historiografia cristã a partir da obra História Eclesiástica, de Eusébio de Cesaréia. Escrita no início do século IV, foi a primeira obra de história do cristianismo e teve valor suficiente para proporcionar ao seu autor o título de “pai da história da igreja”. Cabe aqui uma breve reflexão a respeito dos problemas desta obra, os quais já foram identificados por muitos especialistas e comentadores de Eusébio. Após a observação de tais problemas, e tendo como referencial os avanços da historiografia, pretendemos questionar acerca da permanência do estilo eusebiano em obras de história do cristianismo produzidas, sobretudo, na segunda metade do século XX. Isso demonstra, a princípio, que os autores destas obras além de não acompanharem os avanços da historiografia, permanecem – é o que pelo menos demonstram – com as mesmas motivações apologéticas e até políticas de Eusébio. O historiador belga Eduardo Hoornaert, ao comentar sobre o estilo eusebiano de escrever a história, afirmou que “a tradição eusebiana só pode ser triunfalista e apologética. Triunfalista quando a instituição prospera, apologética quando ela se sente ameaçada.” (Hoornaert, 1986, p. 29). Hoornaert ainda demonstrará três problemas crassos no estilo de Eusébio escrever a história da religião cristã: a presença forte de uma relação entre o helenismo e o pensamento cristão dos padres da igreja, o eruditismo capaz de afastar o leitor não-iniciado e a explícita relação de poderes eclesiásticos e políticos. (cf. Hoornaert, 1986, p. 31 a 35). Como se não bastasse essa clara tendência motivada pela institucionalização que a cristandade vivia naquele momento da história, a obra de Eusébio também traz sérios problemas metodológicos. Roque Frangiotti, por exemplo, aponta alguns:

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Deve-se ressalvar, contudo, que suas inclinações e simpatias lhe tenham, por vezes, inspirado omissões surpreendentes e tendenciosas. Além disso, recrimina-se-lhe falta de síntese, a abundância de extratos, sendo alguns deles tão curtos que impedem qualquer compreensão. Tudo isso faz com que a obra se pareça, por vezes, mais com uma colcha de retalhos do que com uma história. Portanto, não se tem uma narração completa com a justa proporção dos episódios e o encadeamento lógico dos acontecimentos. O valor fica pelo trabalho, junto às fontes, dos documentos sobre a antiguidade eclesiástica, dos extratos de obras já perdidas. (Frangiotti In. Eusébio de Cesaréia, 2000, p. 23).

Para completar esta breve seleção de críticas ao estilo de Eusébio escrever a história da religião cristã, podemos mencionar as considerações de Hubertus R. Drobner: [...] ele não faz distinção entre fontes primárias e secundárias, omite e parafraseia passagens, utiliza mais os autores ortodoxos que os outros autores cristãos, mais os escritores célebres do que autores menos conhecidos, as proporções da apresentação nem sempre fazem justiça ao conteúdo, e numerosos julgamentos deixam a impressão de superficiais ou unilaterais. [...] O que mais pesa é que nos últimos livros [8-10], que tratam da época de sua própria vida, ele não escreve com a mesma fundamentação, deixando lacunas e expressando-se de uma forma mais panegírica do que objetiva e sóbria. (Drobner, 2000, p. 237 e 238).

Pensando nas motivações, omissões e pretensões de Eusébio, percebemos as razões por trás das motivações políticas e não somente eclesiásticas, as seleções arbitrárias daquilo que lhe era interessante registrar e, por fim, as intenções apologéticas – tanto em favor da igreja, como em favor do imperador Constantino – que compõem a obra. Mas não é este o maior problema. Talvez, naquela época, sobretudo por causa do que a cristandade estava vivendo, dificilmente Eusébio escreveria uma história da igreja com outra tendência. Defender a sua própria religião parece óbvio para ele que era bispo. Qual seria, então, um problema maior que o estilo de Eusébio? Parece-nos que a continuidade do seu estilo nas obras de história do cristianismo produzidas nos últimos cinqüenta anos ocorre por desconsiderar os avanços da historiografia9. De todas as observações que fizemos no primeiro tópico, entendemos que a problematização da história, proposta teórica da Escola dos Annales, é um importante fator a ser aplicado na historiografia cristã. Para percebermos esta perspectiva da história problema na obra de Eusébio e no tempo em que a sua História Eclesiástica era produzida, destacaremos 9

Assim como o modelo deixado por Eusébio está composto por diversas deficiências e desatualizado, principalmente após os avanços da historiografia, as obras que preservam o seu estilo apologético, acabam não acompanhando os mesmos avanços. A problematização da história, por exemplo, é uma das inovações propostas pela chamada Nova História, e que os historiadores da igreja não têm utilizado.

13 uma entre tantas questões que caracterizam bem esta experiência de transição na cristandade do século IV: as relações de poder entre o império e a religião cristã.

3. Constantino e as relações de poder entre o império e a cristandade A história problema é uma preocupação historiográfica enfatizada a partir dos Annales. Se o historiador é um intérprete, ele pode em seu ofício identificar os problemas presentes num processo histórico, rompendo através dessa tarefa com aquele modelo tradicional que selecionava, apenas, os acontecimentos políticos de triunfo. Este modelo, além de protagonizar as personagens políticas, omitia as relações de poder, as barganhas, as fraudes, e até mesmo alguns equívocos e conchavos que sempre foram pintados por historiadores positivistas como tendo sido acontecimentos que trouxeram importantes benefícios e ganhos. Os heróis que os historiadores positivistas criaram são os mesmos que promoveram as barganhas, os conchavos e os benefícios que uma história problematizada denuncia. Paul Veyne salienta a importância do papel do salvador na concepção cristã. Assim, “o cristianismo tem um salvador original que não pode agradar a todos os gostos: o neoplatonismo era menos melodramático aos olhos de alguns eruditos. Essa foi a história da cristianização.” (Veyne, 2010, p. 36). Assim, a participação do imperador Constantino foi decisiva, pois somente uma autoridade de fora faria com que uma prática superasse outra. O imperador, que não era obrigatoriamente cristão, assume o papel de salvador de um grupo religioso – no caso, os cristãos – que até então era vítima da perseguição do próprio império. Para justificar esta atitude do imperador, a historiografia eusebiana o defende, o qualifica e o coloca na condição de escolhido por deus para libertar seu povo da opressão. Os três últimos livros da História Eclesiástica de Eusébio são dedicados a relatar como que as relações de poder entre a cristandade e o império se estabeleceram. Contudo, a linguagem utilizada por Eusébio demonstra as suas principais intenções. Ele não está empenhado, somente, em defender sua identidade religiosa nas muitas vezes em que chama a religião cristã de “a religião verdadeira”, mas em reconhecer e propagar que o imperador Constantino, além de piedoso e benevolente, foi levantado pelo próprio deus para libertar os cristãos daquela última perseguição reiniciada em 303 por Diocleciano. As comparações entre Constantino e o perseguidor Maxêncio, por exemplo, explicitam as intenções de Eusébio. Ele caracteriza Constantino chamando-o de

14 “prudente e piedoso em tudo” (Eusébio, VIII, 13.13), “zeloso sucessor da piedade paterna” (Eusébio, VIII, 13.14), pois seu pai Constâncio, para Eusébio também o era, enquanto que ao se referir a Maxêncio, adversário de Constantino na batalha pela cidade de Roma, Eusébio desqualifica chamando-o de tirano, adulador, falso, criminoso, adúltero, devasso, assassino, supersticioso e pagão (cf. Eusébio, VIII, 14.1-13). É interessante ao extremo para Eusébio, tornar evidente as características de Constantino e omitir os seus prováveis equívocos. Trata-se de uma parceria. Além das apologias tendenciosas escritas por Eusébio, também foi registrado em sua obra sobre os benefícios que esta aliança acabou proporcionando não somente à instituição religiosa, mas aos seus superiores. “Os bispos recebiam individualmente cartas, honras, ricos presentes do imperador.” (Eusébio, X, 2.2). O triunfo é a marca registrada deste último bloco da obra de Eusébio composta pelos três últimos livros10. No intuito de legitimar ainda mais o aspecto salvador da figura de Constantino, Eusébio o relacionará à figura mitológica de Moisés do livro bíblico do Êxodo. A imagem de Constantino como um novo Moisés, resultante de um exercício hermenêutico elaborado por Eusébio, demonstra que as relações de poder entre o Estado e a cristandade estão apenas começando. É imprescindível para o autor da História Eclesiástica que sejam construídas analogias para que suas apologias façam sentido. o discurso de Eusébio se desenvolve a partir de suas motivações. Afirmar que Constantino tinha a força de deus em si do mesmo modo que a personagem da Bíblia Hebraica a possuía trata-se de uma analogia simultânea a que ele constrói acerca de Maxêncio. Este é o Faraó dos dias de Eusébio, pois virou às costas ao deus dos cristãos – o verdadeiro, nas palavras do nosso historiador – deixando apenas evidenciada sua maldade, perversidade e injustiça. Para Eusébio, Maxêncio terá recebido o justo castigo por seus atos contra os cristãos e por estar na condição de adversário do imperador levantado por deus. Como em muitas passagens da obra, a afirmação deste parágrafo vem condicionada a uma citação bíblica, no intuito de legitimá-la inclusive teologicamente. O objetivo de Eusébio não consiste somente em enaltecer aqueles que estão do lado da cristandade. Da mesma maneira que Constantino é elogiado por Eusébio, Maxêncio é 10

Estruturada em dez livros, a datação de composição da obra de Eusébio ainda é uma incógnita. Hipóteses não faltam, pois há aqueles que são favoráveis a uma composição dos primeiros sete livros em data anterior a 303, ano em que o imperador Diocleciano deu início à última perseguição oficial aos cristãos. Outros preferem afirmar que os primeiros sete livros foram escritos num espaço de tempo bastante breve de apenas dois anos, entre 312 e 313. O que, porém, parece unânime, refere-se às datas de composição dos três últimos livros, os quais teriam sido escritos entre 313 e 317, sendo que, apenas a vitória de Constantino sobre seu cunhado Licínio teria sido registrada por Eusébio por volta de 324, compondo a parte final do décimo livro.

15 desqualificado e associado às intenções impiedosas. Chamá-lo de “o homem mais ímpio” (Eusébio, IX, 9.7) é, simplesmente, enquadrá-lo na condição de alguém que não exerceu bondade aos seres humanos, já que não foi piedoso para com os cristãos. É para que a escrita de Eusébio ganhe uma força ainda mais triunfalista, que o imperador precisa ser comparado a uma personagem bíblica de peso, pois assim sua benevolência para com os cristãos será apresentada de um modo mais evidente. Da mesma maneira que os hebreus e seu grande líder teriam cantado louvações ao deus que supostamente os beneficiara contra os egípcios – pois antes que qualquer luta se sucedesse, os adversários foram afogados pela própria divindade no Mar Vermelho – semelhantemente os soldados de Constantino, além dele próprio, entraram em Roma entoando hinos de triunfo. Aquele povo, segundo Eusébio, antes oprimido pelo impiedoso Maxêncio, agora recebe Constantino com exuberantes e insaciáveis aclamações de júbilo. Além do povo, membros do Senado e dignitários, tanto os excluídos como as crianças e as mulheres, se alegravam com o triunfo do imperador que chegava a Roma, dando início a uma trajetória de vitórias que em 324 o colocará na condição de único governante do Império Romano. O que impressiona é o conjunto de adjetivos que o discurso de Eusébio oferece ao imperador triunfante. Ele o considera, fazendo analogia ao herói hebreu, um verdadeiro libertador, salvador e benfeitor. Todas estas caracterizações fazem parte da imagem de Constantino construída por Eusébio que, não somente pretende fazer apologia ao rei, mas, sobretudo, à veracidade de um suposto conteúdo teológico por trás da narrativa hebraica que nos primeiros séculos da nossa Era foi apropriada pela tradição cristã. Estas relações de poder entre a cristandade do início do século IV e o império liderado apenas por um imperador e não mais por uma tetrarquia11, estão registradas não somente na História Eclesiástica, mas também na Vida de Constantino12, obra também atribuída a Eusébio. Curiosamente, é somente nesta obra de Eusébio que está o relato sobre a experiência mística de Constantino que culminou em sua conversão, o que para nós trata-se de um problema a ser resolvido do ponto de vista historiográfico, porque a mesma narrativa sobre esta suposta conversão não está registrada na História 11

Desde Diocleciano, o Império Romano era governado por uma Tetrarquia. Neste período que estamos estudando, por volta de 312, Constantino governava as regiões da Gália e da Bretanha, enquanto Maxêncio governava Espanha, Itália e norte da África. Simultaneamente nas regiões do Oriente governavam os adversários Licínio e Maximino Daia. 12 O próprio imperador teria solicitado a Eusébio a elaboração de uma obra panegírica que foi intitulada Vida de Constantino. Publicada apenas após a morte do imperador, esta obra tencionava defende-lo diante das acusações e preservar a sua memória que, segundo o autor, de fato, tornara-se o primeiro imperador cristão. Deve-se ressaltar que não há certeza sobre se a autoria desta obra é realmente de Eusébio.

16 Eclesiástica. O que levaria Eusébio a omitir tão importante ocorrência na vida do imperador? Esta omissão é uma das razões que colocam em dúvida a credibilidade da autoria de Eusébio em relação à obra Vida de Constantino. No caso de Eusébio, mais do que isso, é o discurso em forma de panegírico que constrói a imagem de um herói. Marcel Simon e André Benoit comentam em sua obra, no capítulo sobre a conversão do imperador Constantino, que este, a princípio, estaria “vinculado ao paganismo clássico, à teoria da Tetrarquia que o dava como descendente de Hércules, e depois pouco a pouco lançando-se à prática do culto solar; a partir de 312, começou a manifestar simpatia cada vez mais acentuada para com a Igreja.” (Simon; Benoit, 1987, p. 307). Os detalhes da suposta conversão do imperador encontram-se não somente na obra Vida de Constantino, atribuída a Eusébio, mas também em Sobre a morte dos perseguidores, de Lactâncio. Esta, da época em que a História Eclesiástica era produzida; aquela, apenas ao final da década de 30, após a morte do imperador, em 337. De acordo com as duas narrativas a conversão de Constantino teria acontecido da seguinte maneira: ele teria tido uma visão antes da batalha que culminou na morte de Maxêncio e seus soldados, em outubro de 312, na Ponte Mílvia, sobre o rio Tibre, às proximidades de Roma. Constantino, que governava as regiões da Gália e da Bretanha, dirigia-se à capital imperial no intuito de conquistá-la, já que esta se encontrava sob o poder de seu adversário. Maxêncio também era imperador, graças à tetrarquia instituída por Diocleciano, e governava entre outros territórios do Ocidente, a tão cobiçada capital. Talvez seja esta cobiça uma das principais razões que faziam de Constantino e Maxêncio dois inimigos políticos, e não aliados conforme deveria ser, já que governavam territórios distintos de um mesmo império. O ódio pelos cristãos de um lado e a simpatia por outro, não nos parecem ser as grandes motivações daquele conflito entre aqueles dois imperadores. Mesmo porque, apesar da presença de cristãos em diversos e estratégicos pontos do império romano, “não constituíam mais de dez por cento da população e estavam pouco representados no exército e na aristocracia.” (Kee, 1990, p. 21). Por que dois imperadores lutariam por serem divergentes nesta questão? Resumidamente, Constantino teria visto, ao início da tarde, uma cruz luminosa no céu, acima do sol, com a seguinte inscrição: In hoc signo vinces (Por este sinal vencerás). Após terem testemunhado aquela visão, Constantino e seus soldados caíram assombrados. Tanto Eusébio como seu contemporâneo Lactâncio, intencionalmente apresentaram o imperador Constantino como um novo cristão, a partir daquela

17 experiência mística que teve ao lado de seu exército. Na noite seguinte, o imperador em sonho teria recebido uma mensagem do próprio Cristo de deus, ordenando que aquele sinal que lhe aparecera em visão, deveria ser desenhado nas roupas e escudos de seus soldados. Uma confirmação acerca da mensagem que apareceu sobre a cruz também foi feita naquele sonho. o. Constantino, segundo os historiadores apologistas, passara a alimentar a certeza de que por ter tido aquela visão, se tornaria vencedor na luta por Roma, contra seu adversário Maxêncio. Uma vez legitimada a visão da cruz, surge o que até hoje é reconhecido reconhec como símbolo da cristandade. O lábaro de Constantino corresponde ao que ele teria visto no céu. São as letras gregas Χ (khi) e Ρ (rô), ô), as duas primeiras do nome Cristo (ΧΡΙΣΤΟΣ). ( Conhecido pelo formato

, o lábaro de Constantino também legitima a filiação filia

religiosa que o imperador passava a ter desde que resolvera adotar ao deus dos cristãos. Uma vez Constantino tendo vencido Maxêncio em 312 na Ponte Mílvia, aquele “lábaro não somente foi o símbolo de sua aliança com Deus, mas também da vitória.” (Kee, 1990, p. 31). Contudo, era importante que o imperador tivesse uma filiação divina. Como antes ele já teria tido uma experiência no templo de Apolo, legitimando sua filiação do deus Sol Invictus quando rompera com a religião de Hércules, a visão da cruz não passaria de uma adaptação daquela experiência anterior. Trata-se Trata de “uma visão que o imperador tivera na Gália, no interior de um templo dedicado a Apolo, no verão de 310.” (Simon; Benoit, 1987, p. 317). Esta informação consta nos fragmentos dos Panegíricos Latinos,, em favor de Constantino. Rápida observação nestes documentos permite-nos nos pensar em uma trajetória religiosa do imperador, que se dividiu basicamente em três momentos: religião de Hércules-Júpiter Hércules Júpiter (306/307), religião de Apolo-Sol Invictus (310) e aliança com o deus dos cristãos (312). Portanto, as narrativas de Eusébio sobre as experiências místicas que Constantino supostamente vivenciou, não são suficientes para legitimar ocorrências históricas, mas demonstram a sua tendência apologética, seja enquanto bispo ou enquanto historiador. Fica, aqui, uma relação introdutória do trabalho do historiador das religiões, neste caso, da religião cristã, com a perspectiva da filosofia da religião, pensando numa autonomia que permite uma ultrapassagem, pois neste neste sentido não haverá mais os limites de uma historiografia reduzida à simples reprodução do passado ou à tendenciosa valorização de grandes personagens. Ultrapassando estes limites, o historiador – agora, também filósofo – poderá problematizar e interpretar interpr o passado, avaliando-oo de maneira crítica.

18 Conclusões Para atender a delimitação apresentada na introdução, nos propusemos a pensar nos valores do diálogo entre a filosofia e a historiografia, identificar os problemas e a continuidade do estilo deixado por Eusébio e, por fim, ensaiar uma aplicação de uma história problematizada da religião cristã quando esta se aliara ao Império Romano. Das escolas historiográficas mencionadas entendemos que os Annales tem as propostas que melhor atenderiam às carências desta historiografia cristã de caráter apologético, que tem na História Eclesiástica de Eusébio seu primeiro e máximo modelo. A problematização da história proposta pelos Annales é um fator teórico que se colocado em prática por historiadores da igreja, demonstrará que a capacidade de interpretar o passado poderia dar início a uma nova história do cristianismo. Conforme observamos em dado momento, a continuidade deste estilo defensivo deixado por Eusébio está bem presente nas obras de história da igreja publicadas na segunda metade do século XX, mesmo após tantos avanços na historiografia. Isso nos parece bastante grave, pois não só demonstra a preocupação do reprodutor em cristalizar supostas verdades históricas e teológicas, como também anula a capacidade que o pesquisador tem de analisar seu objeto de investigação, o passado humano, seja individual ou coletivo, e em se tratando da cristandade, mais coletivo que individual. Podemos afirmar com segurança que no âmbito da formação intelectual, as escolas e faculdades de teologia onde a disciplina de história da igreja é obrigatória, ainda há muito a ser desenvolvido. Na ambiência católica, a partir das obras de Jean Daniélou, Henri-Irénée Marrou, Jean Delumeau, Alain Corbin entre outros, tem havido bastante abertura para uma história da igreja repensada. Porém, em seminários protestantes, salvo raras exceções, ainda prepondera a adesão a obras que repetem o estilo eusebiano. Na aplicação, propomos uma relação entre este exercício de problematizar a história e o objeto de pesquisa de mestrado com o qual estamos trabalhando. A própria idéia de que o Constantino que chegou até nós não é necessariamente um “Constantino histórico”, mas o Constantino construído por Eusébio demonstra-nos que este objetivo de problematização da história da transição vivida pela cristandade no século IV poderá ser bem sucedido com o desenvolver da pesquisa. É o que almejamos! Há muito ainda para ser explorado, descoberto e, no sentido da nossa proposta, interpretado. Assim, consideramos que esta relação entre o exercício interpretativo e o trabalho do historiador pode contribuir sobremaneira para uma renovação de fato nos estudos de história das religiões e, no nosso caso, de história do cristianismo.

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